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A FOLHA DE SÃO PAULO FALA SOBRE O MARÇO DE 1964: OS

EDITORIAIS DO JORNAL À “ESPERA” DO GOLPE CIVIL-MILITAR

Marcelo Hornos Steffens

Este texto foi escrito com o objetivo de refletir sobre alguns aspectos do papel da
imprensa e sua relação com a democracia em momentos de crise no Brasil dos anos de
1960. Para isso, buscamos primeiro identificar a posição do jornal Folha de São Paulo
no mês de março de 1964, diante dos acontecimentos que produziram o golpe civil-
militar. Para isso, fizemos referência aos temas enfatizados pelos editoriais do periódico
naquele contexto, que tradicionalmente são o espaço no qual seus editores/proprietários
apresentam a sua visão sobre acontecimentos eleitos como os principais do momento e
que afetam as relações políticas e sociais de alguma forma, afetando interesses de
diferentes setores sociais.
Através da análise dos editoriais buscamos, também, refletir sobre como parte da
imprensa se comportou naquele contexto, verificando se o jornal posicionou-se de
forma legalista ou se ele se integrou aos demais grupos civis e militares golpistas
(JEANNENEY, 2003) com a construção de um ambiente favorável à ruptura
institucional (BECKER, 2003).
Derivando do objetivo anterior, buscamos identificar a cultura política que o
periódico Folha de São Paulo representava, defendia e dava eco. Cultura política
entendida como
(...) uma leitura do passado histórico — com a qualificação positiva ou
negativa de fatos, momentos e personagens — compõe-se com
elementos de base ideológica e ou filosófica; com definições
institucionais traduzidas no plano da organização política do Estado;
com idealizações de concepções acerca da ―boa sociedade‖; com
utilizações de uma linguagem política e de um vocabulário de
símbolos, ritos, gestos e representações visuais que confluem para
uma mesma visão de mundo a ser partilhada. As culturas políticas,
assim, constituem, em determinados momentos históricos, um
conjunto homogêneo, no qual os componentes são estritamente
solidários entre eles, devendo, por isso, ser considerados um todo
coerente, não obstante o fato dos trabalhos dos historiadores
constatarem todo o tempo a existência de vários sistemas de
representação coerentes, rivais entre si, que impregnam a visão que os
homens têm da sociedade e do lugar que nela ocupam e de suas
condutas políticas. Esses sistemas de representação seriam enraizados
na cultura geral da sociedade considerada e lhe seriam solidários
(DUTRA, 2002, p. 24-25).

A imprensa e o governo Jango


O governo do presidente João Goulart teve uma importância significativa na
história brasileira recente, não apenas por ter sido derrubado pelo movimento civil-
militar que instituiu uma ditadura no país, mas por apresentar propostas de
transformação da sociedade brasileira, mesmo pela via reformista, que de modo mais ou
menos profundo, atacavam o seu perfil extremamente desigual.
De acordo com as recentes produções da historiografia sobre o governo de
Jango, (FERREIRA, 2005; FERREIRA, 2011; GOMES, 2014) sua visão política, muito
embora vinculada ao getulismo, assinalou a ampliação de fronteiras e percepções sobre
a democracia e constituiu, por meio do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), do
trabalhismo e de suas alianças, uma alternativa avançada e progressista para a época – e
para hoje ainda, uma vez que abordava diversas questões ainda sem solução, como a
reforma agrária e a reforma urbana - de desenvolvimento nacional, atribuindo a ele uma
ideia de inclusão e participação popular de grande amplitude até então desconhecida no
país.
Por pressões diversas e por uma oposição sistemática do pensamento
conservador Jango foi derrubado em 31 de março/1 de abril de 1964, dando início a um
período de lamentáveis desmandos e autoritarismo que deixou traços profundos em
nossa cultura e prática política nacional, em especial a interpretação, muito presente
ainda hoje em avaliações apressadas, de que no período da ditadura o país
―funcionava‖.1
A ditadura, por onde estendeu suas garras, criou monstruosidades que
permanecem em pleno funcionamento ou que guardam daquele período traços
definidores significativos. Referimo-nos em especial ao funcionamento das polícias,
com sua característica militarizada e que adotaram como método de investigação a
tortura e a desconsideração aos direitos humanos em suas abordagens e formas de ação.
A imprensa, diante da ditadura que se instalou, via de regra, calou-se. Não
apenas por força de censura, mas por opção, convicção e apoio ao novo regime.
Evidentemente que a imprensa não agiu de modo igual (FERREIRA; GOMES, 2014),
1
Nada mais enganoso. Somente para lembrarmos, foi durante e na ditadura que se institui a nomeação,
sem eleições, de prefeitos e governadores – dentre eles Fernando Collor de Mello, Paulo Maluf, Antônio
Carlos Magalhaes e José Sarney –, que criaram estruturas corruptas de governo e que através delas
fizeram fortunas, estruturas que em sua maioria, sobrevivem ainda hoje.
havia pormenores que a distinguiam no apoio ao golpe. Jornais como O Globo2 e O
Estado de São Paulo eram os mais explícitos, em março de 1964, quanto ao apoio,
incitação e convocação à intervenção militar e ao golpe, conforme verificado na coluna
da Folha de São Paulo, intitulada Política na opinião alheia, espaço no qual o jornal
reproduzia trechos de outras publicações.
A Folha de São Paulo adotou uma posição menos explícita, que buscaremos
analisar a seguir, muito embora também golpista, articulando o seu conservadorismo à
demonização dos ―trabalhistas‖ (dominados, na visão da Folha de São Paulo, pelos
comunistas), ao seu declarado apoio às reformas de base – nunca assim chamadas pelo
jornal, mas apenas como reformas ou pejorativamente de ―reformismo do sr. João
Goulart‖– marcado pelo suposto reconhecimento de sua necessidade, ao mesmo tempo
em que assinalava enfaticamente a sua ilegalidade, bem como pela acusação ao
presidente da República de que ele ameaçava o Congresso e desrespeitava a
Constituição.
Em nosso estudo, identificamos quatro pilares essenciais na argumentação
utilizada pela Folha de São Paulo ao tratar do governo Jango em março de 1964: a
ameaça/demonização dos comunistas (MOTTA, 2002); a análise das reformas; o papel
da democracia, o povo e a participação popular; a ameaça à Constituição e o papel dos
militares.
Para fins de organização do texto e análise, inicialmente pretendia-se separar os
editorais da Folha de São Paulo por temas, mas, logo se percebeu que tal separação não
seria possível, uma vez que os diversos assuntos se misturavam e apareciam articulados
uns aos outros. Em outros termos, não foi possível dividi-los em assuntos estanques,
pois geralmente o tema central do editorial era reforçado por outros que corroboravam a
oposição ao governo de Jango. Assim, o jornal, ao tratar da influência comunista no
governo de Jango, articulava-a aos problemas da reforma, da subversão e da ineficiência
administrativa do governo.
Assim, a solução metodológica que pareceu mais adequada foi a de apresentar
cronologicamente os editoriais, em que pese o risco de incorrer na repetição de
determinados temas, mas com a vantagem de poder se notar a dinâmica e a
intensificação do discurso golpista do jornal contra o governo de João Goulart.

2
Conforme afirmou o ex-ministro da Justiça Armando Falcão, no conhecido documentário Muito além do
Cidadão Kane (1993), O Globo foi até mais fiel do que o esperado.
Primeiras semanas
Março de 1964 foi o mês derradeiro do governo Jango e a exacerbação da crítica
feita pela oposição política acompanhou esta trajetória. A Folha de São Paulo assumiu
esta posição, quando em diversas oportunidades o jornal fez observações sobre a
presença de comunistas/subversivos no governo, relacionando-a com a incapacidade de
governar e com a impossibilidade da realização das reformas de base. No dia 1º de
março o editorial da Folha de São Paulo teceu a seguinte análise:
(...) O governo que aí se acha instalado no poder, fazendo por vezes,
mediante alguns de seus porta-vozes, propaganda nitidamente
subversiva, é um governo eminentemente trabalhista. Ou assim se
diz. (...) O que ressaltamos é, pura e simplesmente, a demonstração
que mais uma vez se dá ao público de que, em verdade, toda essa
máquina, tão cara e tão ineficiente, está muito longe de atender aos
elevados fins para que foi criada, presa que se acha da mais miúda
política partidária.
Enquanto assim for, enquanto o governo ―trabalhista‖ não conseguir
endireitar sequer esse setor básico do trabalhismo, como poderá
esperar que o povo acredite no que ele fala a respeito da reforma
agrária, de reforma urbana, de reforma de tudo, inclusive a
Constituição? (FSP, 01 março de 1964, p.4). 3

Para o jornal, um dos problemas fundamentais do governo Goulart era o da


presença comunista e a sua consequente ineficiência administrativa. Por sua vez, esta
última, determinada pela influência subversiva, impedia que fossem levadas a bom
termo, leia-se técnica e não politicamente, como proclamava o jornal, as reformas de
base. O alvo do periódico, contudo, parecia ser muito mais as medidas propostas do que
propriamente os comunistas. De acordo com essa visão, portanto, não seria possível
tratá-las de modo político e sem resolver antes outras questões. Sincera ou não, a crítica
do jornal indicava a necessidade de se postergarem as reformas.
No editorial de 4 março, nova carga do jornal contra os comunistas, e,
surpreendentemente, tratando de modo bastante antecipado da organização do Comício
da Central do Brasil que só ocorreria em 13 de março:
O comício: Mas tudo a respeito desse comício é muito estranho. Os
comunistas é que o estão preparando. As Forças Armadas estão
mobilizadas para garanti-lo. E o presidente da República, que era o
patrocinador-mor da concentração, já começa a demonstrar dúvida
sobre a conveniência de comparecer (FSP, Primeiro Caderno, 04
março de 1964, p.4).

3
Os grifos nos editoriais são meus.
Novamente o periódico deu ênfase à presença comunista no governo.
Paradoxalmente o jornal sinalizou para a possibilidade da ausência de Jango no
Comício, torcendo para que o presidente da República se afastasse, mesmo que
temporariamente, das ―forças vermelhas‖. Outra possibilidade para a compreensão do
editorial talvez seja a de uma hipotética intenção do periódico em enviar um recado ao
presidente para que, se não participasse no comício, a vinculação constante entre eles
seria arrefecida.
Também é importante notar, neste editorial de março, o aparecimento dos
militares na cena política. Conforme o jornal, o comício seria promovido pelos
comunistas, cabendo às Forças Armadas garantir a segurança. Em uma leitura mais
ampla, temos as Forças Armadas, defensoras da Constituição, dando cobertura a um
grupo político ilegal, corroborando a ilegalidade constitucional.
No editorial de 6 de março, mais menções à presença comunista nas fileiras do
governo, à consequente impossibilidade de reformas e à radicalização das manifestações
políticas em diversos estados do Brasil. No caso, o estado de Pernambuco, na época
governado por Miguel Arrais,4 era lembrado com alguma frequência como exemplo de
governo com a infiltração subversiva e desordem.
Radicalização: A radicalização das posições políticas no Brasil está
se aproximando de limites sumamente perigosos, como os recentes
acontecimentos em Pernambuco acabaram de demonstrar. (...) Aí
estão o desvirtuamento dos sindicatos, as falsas organizações sindicais
que montaram uma fábrica nacional de greves, a infiltração comunista
na administração federal. Aí está o abuso que essas correntes fazem de
certos conceitos, dos quais pretendem dispor segundo conveniências:
só eles são povo, só eles são nacionalistas – ou só é povo e
nacionalista quem os aplaude e apoia. Aí está a luta pelas chamadas
reformas de base totalmente descaracterizada e transformada em
pretexto para agitação e subversão.
Toda a ênfase, todavia, que precisa ser empregada na condenação ao
extremismo de esquerda, não deve nem de longe ser transformada em
condescendência com o extremismo de direita. Não se confunda a
luta contra o desvirtuamento das reformas de base, com a luta
contra as reformas de base. Este jornal, por exemplo, orgulha-se de
ter patrocinado a realização em São Paulo, há um ano, do Congresso
Brasileiro Para a Definição das Reformas de Base, justamente com o
objetivo de dar conteúdo prático à pregação reformista. (...) Mais
vezes merecem críticas os radicalismos de esquerda que os de direita.
É que eles são mais agressivos, mais provocadores, mais danosos ao
país. Recebem hoje, é inegável, o beneplácito do governo federal e por
isso são mais perigosos. A cada dia se tornam mais ousados nos

4
Alguns personagens eram identificados pelo jornal como comunistas e consequentemente representantes
da desordem, e continuamente eram ―homenageados‖ pela Folha De São Paulo, dentre eles: Miguel
Arrais, Leonel Brizola e Darci Ribeiro.
ataques à iniciativa privada, por exemplo, cuja destruição significaria
a ruína do regime democrático. Os próprios excessos que nos últimos
dias podem ser apontados em setores de opinião tidos como
moderados (vide os acontecimentos de Minas Gerais) são em grande
parte devidos ao recrudescimento da provocação das esquerdas. E se o
país olha com intranquilidade para Pernambuco, neste momento, por
ter ali a radicalização atingido níveis porventura ainda não vistos entre
nós, deve-se ter em conta que é aquele Estado o preferencialmente
usado pelos extremistas de esquerda para incentivar a luta de classes,
explorar ressentimentos e jogar brasileiros contra brasileiros (FSP, 06
março de 1964, p.4; grifos meus).

O editorial sintetiza muitos elementos do pensamento conservador: oposição às


formas de reivindicação, da ação dos sindicatos, do povo considerado sem consciência,
facilmente manipulado e a relação entre existência da iniciativa privada e o regime
democrático. Em outros termos, para a Folha, a liberdade do capital é que garantiria a
democracia, conforme defendiam os primeiros liberais do século XIX.
Além disso, neste texto, os editores produziam uma relação muito interessante
entre os comunistas ―instalados/ infiltrados‖ no governo, que se apropriavam de
conceitos como o de nacionalismo e de povo para garantir a execução das reformas de
base, e para confundir a opinião pública. A Folha de São Paulo tentava ―esclarecer‖ aos
espíritos desavisados, sobre a manipulação a que estavam sendo submetidos.
Em 7 de março, mais uma denúncia de má administração, agora relacionada à
Petrobras e ao processo de reformas de base, com a possível encampação de refinarias
estrangeiras em solo brasileiro:
Política na Petrobrás: (...) a PETROBRÁS num momento em que
esta se acha ainda sob suspeita, dada a crise ali ocorrida, e anuncia que
a intenção presidencial é mesmo assinar a encampação no dia do
comício. Acrescenta que no dia 19 de abril a refinaria já estará
integrada no sistema PETROBRÁS. Assim se comemoraria a data
natalícia do ex-presidente Vargas.
(...) Desse modo, ninguém duvide o petróleo não será nosso mesmo,
nem agora nem nunca. Um órgão onde deveriam estar ativamente
trabalhando engenheiros e técnicos outros, em pesquisas várias,
destinadas a fazer surgir da terra o petróleo e aproveitá-lo da melhor
maneira, ter-se-á transformado cada vez mais numa presa política e
num instrumento de pressão de determinados grupos (FSP, 07 março
de 1964, p.4; grifos meus).

Elementos diversos, mas reiterados emergiam da avaliação do jornal. As críticas


à Petrobras e aos seus problemas de administração tinham, como ficou demonstrado, o
objetivo primeiro de atacar as reformas e o governo, demonstrando sua incapacidade
administrativa para tocar adiante qualquer tentativa de modificação mais séria na
estrutura do país.
Na nova denúncia que a Folha fez, os comunistas novamente eram o centro,
agora com sua indesejável presença na administração da Petrobras. Para o jornal, a
administração da empresa deveria ser exclusivamente técnica e livre de ingerências
políticas, nas quais os subversivos eram os campeões.
Além disso, houve uma ―homenagem‖ ao presidente Getúlio Vargas, uma figura
que provavelmente mobilizava uma parcela da oposição conservadora e que o
relacionava a posturas pouco democráticas, como a da encampação de refinarias e o
caráter estatizante das reformas de base, um dos temas mais sensíveis à oposição a
Jango pela Folha de São Paulo.

O Comício
Visto que as pressões da Folha para a não realização do comício não
funcionaram, só restou ao jornal tecer análises da forma com que lhe era peculiar:
Comício-provocação: Resultaram vãos todos os apelos dirigidos ao
presidente da República para que usasse de sua influência sobre os
promotores do comício marcada para esta tarde na Guanabara, no
sentido de cancelar a reunião ou ao pelo menos atenuar-lhe os
inquietantes aspectos que a revestiram.
(...) É com dolorosa sensação de perplexidade que se observa, por
assim dizer, uma ação conjunta do Partido Comunista e do Exército,
de organismos sindicais comunizados e das nossas Forças Armadas.
Aos primeiros CGT, UNE, o próprio PC, etc. coube a organização da
concentração; às Forças Armadas de terra, mar e ar, cabe garantir-lhe
a realização. Vinculados aos primeiros estarão quase todos os oradores
e por isso não é temerário prever insistentes ataques às instituições
que às Forças Armadas cumpre defender. A que vexatória situação
foram elas conduzidas!
(...) O radicalismo de esquerda, cuja fina flor deve comparecer ao
palanque, parece empenhado em atiçar o radicalismo de direita para a
prática de atos insensatos. A provocação vai além, e atinge os setores
descomprometidos com os extremismos, e interessados apenas na
preservação da ordem e das instituições.
(...) Este deverá reunir bastante gente, entre a pelegada de vários
Estados, cuidadosamente arrebanhada para esse fim, a claque
industriada para gritar Jango-65, e os milhares de soldados
mobilizados para ―garantir‖ o comício. É duvidoso que compareçam
aqueles que honesta e seriamente se preocupam com os verdadeiros
problemas nacionais. Estes (e entre eles se incluem muitos que estão
de acordo com as próprias teses do governo) preferirão assistir de
longe o espetáculo, que lembra as maciças concentrações populares
organizadas e dirigidas para sustentar ditadores ou aspirantes a tal.
(FSP, 13 de março de 1964, p.4; grifo meu).

A infiltração e radicalização de esquerda e os termos ―pelegada‖ ou ―povo


manipulado‖ eram referências constantes nas publicações. Mas o jornal, também, fez
referência a um novo tema, a presumível intenção de permanência de Jango no poder,
com a denúncia do ―Jango-65‖. Por sua vez, a Folha repetiu sua preocupação e alertou
para o que era um problema em sua visão, o da presença/participação ―forçada‖ dos
militares no comício. O jornal alertava que os militares – garantidores da ordem e das
instituições – passavam por um processo perigoso de envolvimento com a política, à
esquerda.
O editorial do dia seguinte ao comício fez críticas à ―pregação reformista‖, tendo
como referência as Reformas de Base. As coincidências com a pregação golpista foram
marcantes, com o editorial se parecendo muito mais com um programa de oposição
golpista a Jango do que qualquer análise jornalística.
Para quê? Depois de uma longa, sensacionalista e até por vezes
ridícula preparação psicológica, realizou-se sem maiores incidentes,
como era de esperar, o comício que as esquerdas promoveram na
Guanabara.
(...) A pregação reformista de sempre, sem o menor esforço para
dar-lhe o conteúdo pelo qual se interessam tantos brasileiros
sinceros, que reconhecem a necessidade de muitas reformas,
porém feitas com honestidade. E nessa pregação, os ataques
costumeiros à Constituição que o presidente jurou defender e
respeitar, e a afirmação, sem dúvida lamentável, de que a
multidão vale mais que a Constituição. Lamentável especialmente
quando se pensa em termos daquela multidão, arregimentada, como
todos sabem, para bater palmas nas horas certas às palavras do
presidente, que se porta como um pré-―fuehrer‖. E também, nessa
pregação, a insinuação de que o poder público não se oporia aos
que invadissem terras, num evidente convite à desordem e à
ilegalidade (não se falou, em nenhum momento, na lei e na
legalidade, senão para enxovalhar a lei máxima do país). Isto, para não
se lembrar a infeliz referência ao rosário das senhoras mineiras, numa
demonstração de que nada mais se acha o governo disposto a
respeitar. E para não falar também das referências à legalização do
comunismo no país.
É tempo de perguntar qual a verdadeira finalidade desse comício.
Assinar os decretos da SUPRA e da desapropriação das refinarias
particulares constituiria na verdade ato que, por mais transcendental
que o considere o governo, dispensaria o espetáculo e o cenário
organizados à custa do dinheiro do povo. Com mais dignidade far-
se-ia a assinatura longe do ambiente de agitação e passionalismo do
comício.
Dar uma demonstração de força, eis outro objetivo que nem se deve
considerar, porque a um presidente, num país tranquilo como o nosso,
não é difícil reunir a multidão que queira e organizar os mais vistosos
espetáculos de pirotecnia. Incitar o povo, com essa demonstração,
contra determinados obstáculos que se opõem às ambições do
presidente e de seus áulicos?
(...) O comício de ontem, se não foi um comício de pré-ditadura, terá
sido um comício de lançamento de um espúrio movimento de
reeleição do próprio sr. João Goulart. Resta saber se as Forças
Armadas, peça fundamental para qualquer mudança desse tipo,
preferirão ficar com o sr. João Goulart, traindo a Constituição e a
pátria, ou permanecer fiéis àquilo que devem defender, isto é, a
Constituição, a pátria e as instituições. Por sua tradição, elas não
haverão de permitir essa burla (FSP, 14 de março de 1964, p.4; grifos
meus)

Diversas observações podem ser feitas sobre a publicação: ao que nos pareceu, a
Folha havia estabelecido como evento-limite o Comício da Central do Brasil, a partir do
qual se intensificou o tom das acusações ao governo, a Jango, à situação econômica e
política ou a qualquer indivíduo ou organização favorável ao governo.
Neste texto, em especial, se articularam os diversos temas de crítica ao governo.
Primeiramente - o ponto central do programa golpista - a crítica às reformas de base.
De acordo com o jornal, o governo não as apresentava com a clareza devida, sendo
tratadas por ele de modo leviano, desonesto e demagógico. O jornal continuava
afirmando seu apoio à necessidade de reformas, desde que propostas legitimamente pelo
Congresso Nacional e não às reformas capitaneadas por Jango.
No mesmo editorial, Jango foi acusado de utilizar o dinheiro público para a
realização do comício, financiando desde o pagamento do transporte até a presença da
multidão. Com isso, o presidente também teria demonstrado, de acordo com o jornal,
outra de suas intenções: sua perpetuação no poder.
O jornal também lançava mão de outro argumento que seria importante na
articulação das oposições para a deposição de Jango: as reformas anunciadas pelo
presidente da República desmoralizavam a Constituição e o Congresso Nacional.
De acordo com a Folha, havia na Constituição mecanismos através dos quais
uma reforma poderia ser proposta. E o Congresso Nacional poderia encaminhá-la. Mas
da forma como Jango o fazia significava que a casa legislativa perderia suas
prerrogativas essenciais de proposição de leis. O presidente, portanto, ameaçava o
legislativo.
A alternativa para a proteção da Constituição e das instituições, conforme a
Folha, seria a presença e a intervenção das Forças Armadas, que assumiriam o papel
protagonista em 31 de março de 1964. Havia, como já dito, outros jornais que
clamavam há mais tempo por uma interferência deste tipo, mas pareceu que nesta data,
14 de março, o jornal e o grupo paulista que ela representava,5 deu o sinal verde para

5
Quando falamos em grupos com os quais o jornal se identificava, pensamos em camadas da população
que compartilham uma cultura política comum e que eram representadas pelo periódico como modelos a
serem seguidos. Dentre esses modelos sociais localizamos o empresário que deseja produzir; o
esta possibilidade. Se isso foi determinante ou não para o golpe não é possível afirmar,
mas é concebível inferir que este grupo, a partir de então, sinalizava para o apoio à
intervenção dos militares.
Em 17 de março foi publicado novo editorial, referindo-se às reformas e ao
Congresso e, em especial, à proposta de adoção do mecanismo do plebiscito para a
aceleração de medidas de interesse popular.
Reformas e Congresso: Entre as medidas que o presidente da
República solicita ao Congresso Nacional, na mensagem que lhe
encaminhou no ensejo da abertura dos trabalhos da presente
legislatura, há algumas dignas de acatamento, outras discutíveis,
terceiras merecedoras de pronta e decidida repulsa. Entre as
primeiras: providências legislativas destinadas a facilitar a
reforma agrária, dentro, por exemplo, do princípio de que “a
ninguém é lícito manter a terra improdutiva, por força do direito
de propriedade”, definido pelo sr. João Goulart. Entre as segundas:
as emendas constitucionais sugeridas para outorgar o direito de
voto ao analfabeto e tornar elegíveis os alistáveis, no caso
sargentos e praças. Entre as terceiras: a revogação do princípio da
indelegabilidade dos poderes e o recurso da consulta ao povo, isto
é, plebiscito, “caso se deixe abrir uma brecha entre as aspirações
populares e as instituições responsáveis pela ordenação da vida
nacional”.
Em outras palavras, estas últimas providências o Congresso não as
pode sequer tomar como objeto de deliberação, a não ser que deseje
proclamar a própria falência e assinar seu atestado de óbito. (...) O que
desejamos são reformas dentro da lei e da ordem. A atuação do
presidente da República não parece conduzir a isso; a do Congresso
parece conduzir a nada, isto é, à manutenção da situação atual, sem as
modificações que se impõem. Em face do desafio que lhe é lançado,
deve o Legislativo atentar para os seus deveres reformistas – usemos o
termo da época – contrabalançando, com o exame sereno dos
problemas, o tratamento tumultuado e até subversivo que o Executivo
lhes tem dispensado. Este jornal, que há mais de um ano promoveu
um Congresso Brasileiro para a Definição das Reformas de Base,
sente-se à vontade para reclamar a execução delas, sem traumatismos
para a nação, como é perfeitamente possível.
(...) Que o Congresso, em face da mensagem governamental, se
lembre de que é um poder soberano, do qual se esperam decisões
livres e dignas. Se o problema é dialogar com o Executivo, não se
recuse a isso; recuse-se apenas a permitir que o diálogo se transforme
num monólogo (FSP, 17 de março de 1964, p.4; grifos meus).

trabalhador que deseja trabalhar ordeiramente; a camada média urbana paulistana que saiu às ruas em
defesa das ―tradições nacionais‖ - o catolicismo e o espírito pacífico do povo -, e da Constituição,
defendendo, na análise da Folha, o país da ameaça comunista.
Neste texto, ficou clara uma artimanha jornalística6 recorrentemente usada pela
Folha. O jornal sempre se colocava como defensor das reformas de base, nominalmente
da reforma agrária, assinalando, contudo, a sua discordância ―apenas‖ em relação à
forma como seria encaminhada. Em especial, se ela fosse por meio do plebiscito, isso
descaracterizaria o papel do Legislativo, concentrando poderes excessivos nas mãos do
Executivo. Além disso, o perigo apontado estaria na postura do presidente da República,
em muitos casos, ―subversiva‖ e ―demagógica‖, e no uso que ele faria do povo, que na
visão do jornal não estava pronto para intensificar sua participação ainda mais através
da forma plebiscitária.
Aliás, sobre o tipo de democracia imaginada pela Folha, o jornal defendia-a de
maneira formal, política, característica do liberalismo do século XIX que, conforme
José Murilo de Carvalho, seria uma democracia marcada fundamentalmente pela
participação popular tradicional, essencialmente no momento do voto, sem direito a
contestações posteriores, como se o sistema representativo e partidário funcionasse
perfeitamente (CARVALHO, 2002).
Na publicação do dia 17 de março de 1964, um segundo texto colocava em
posições opostas o presidente da República e as Forças Armadas 7, e assinalava a
dificuldade de entendimento entre eles:
Soberania: Na abertura dos cursos da Escola Superior de Guerra, ao
falar da “noção nacional” pretendeu o sr. João Goulart ensinar aos
brasileiros de hoje, e especialmente aos que seguem o curso da
Escola Superior de Guerra, assim como aos oficiais que por dever
de ofício lá se encontravam a ouvi-lo, que a soberania não é apenas
territorial e que a função das Forças Armadas não é defender apenas o
território do país.
Ora, quem lê a Constituição Federal – e tanta gente importante
deveria fazê-lo, neste Brasil – aprende que a função das Forças
Armadas é a defesa da Pátria. E Pátria, sabem até mesmo as
crianças de colégio, não é apenas o território, mas o seu povo, as
suas tradições, as suas riquezas naturais ou produzidas pelo
homem.
(...) A soberania só existe verdadeiramente se dão ao povo os
elementos essenciais para que ele possa realmente trabalhar; quando o
país, mercê de sua capacidade técnica e da qualidade de seu trabalho,
pode dialogar com os outros países em pé de igualdade, a igualdade

6
Dois editoriais, um sobre os aluguéis (FSP, Primeiro Caderno, 27 de março de 1964, p.4) e outro sobre a
autonomia universitária (FSP, Primeiro Caderno, 30 de março de 1964, p.4) demonstram ainda mais
como as reformas de base incomodavam o jornal.
7
A página dedicada ao editorial era um pouco diferente do espaço dedicado a ele hoje. Ela estava
dividida em alguns textos de tamanhos distintos e algumas pequenas notas. O texto principal era o maior
e o primeiro texto, localizado no centro e no alto da página, mas, como disse, toda a página do editorial,
como se espera, era povoada de textos de caráter opinativo.
que resulta, no plano político, da qualidade e da capacidade do povo
como trabalhador.
A soberania não se constrói com palavreado, mas com trabalho. E
trabalho de qualidade, resultante do cultivo de boa ciência nas
universidades, da técnica nas escolas adequadas de vários níveis e,
também, do ensino sincero dos padrões de vida democrática, feito nas
escolas e também construído pelo exemplo dos bons administradores.
Mas isto é muito sabido. Sabem-no muito especialmente os oficiais
de nossas Forças Armadas, tão atentos aos problemas essenciais
do Brasil (FSP, 17 de março de 1964, p.4; grifos meus).

A Folha, neste editorial, pareceu buscar tensionar ainda mais as relações entre
Jango e as Forças Armadas, assinalando a clara divergência entre elas e o presidente.
Divergência principal relacionada à emergência da participação e discussão política
dentro das Forças Armadas, algo para a visão de democracia do jornal, inaceitável. Para
o periódico, Jango e os comunistas eram os evidentes responsáveis por incitar
movimentos desta natureza.
Além disso, foi possível identificar a reiterada apresentação de um projeto de
governo, coincidente em diversos pontos com o que viria a ser a ditadura: a ênfase dada
a um pretenso papel apolítico das Forças Armadas que, segundo a Folha, era a
defensora das instituições, ideia que como se comprovou mais tarde, pavimentou o
caminho para o golpe de 31 de março. Também cabia aos militares a defesa da
soberania, o que significava dar ao povo as condições adequadas para o trabalho e
ponto, sem qualquer forma ou possibilidade de participação política além daquela
oferecida pela democracia política, o que seria a tônica nos anos posteriores da ditadura
civil-militar.

Últimos dias: Da Marcha ao Golpe de 1º de abril


No dia 20 de março, o editorial da Folha se dedicou à análise da ―Marcha da
Família com Deus e pela Liberdade‖. Nele afirmava-se:
Povo, apenas povo: Poucas vezes ter-se-á visto no Brasil tão grande
multidão na rua, para exprimir em ordem um ponto de vista comum,
um sentimento que é de todos, como o que encheu o centro da cidade
de São Paulo, na ―Marcha da Família com Deus e pela Liberdade‖.
Ali estava o povo mesmo, o povo povo, constituído pela reunião de
todos os grupos que trabalham pela grandeza da pátria, cioso de suas
tradições e de suas crenças e consciente de seus destinos
democráticos. Ali não estava nenhum ajuntamento suspeito, recrutado
por órgãos especializados na manipulação de massas humanas para o
aplauso ruidoso, porém despido de significação, aos líderes que detêm
o poder, ou a ele aspiram, ou nele desejam de alguma forma continuar.
Aquele mar humano formou-se espontaneamente, pelo natural
desembocar de afluentes vários, surgidos nos bairros e do interior,
nascidos nas mais diversas fontes. E formou-se de súbito, quase por
milagre, ao simples apelo de um grupo de mulheres e organizações
femininas que percebiam com extrema argúcia o sentimento íntimo do
povo.
Nada de especial, nenhuma longa preparação psicológica, nenhuma
doutrinação conduzida pelos especialistas na arte de convencer, se
tornou necessário para que a gente de São Paulo saísse à rua e
exprimisse, sem necessidade de porta-vozes, sua profunda crença na
democracia e na ordem constituída.
A reunião de ontem foi, sem dúvida, uma dura lição para os que,
dispondo de todos os poderes e de todos os recursos financeiros,
precisam, para garantir-se um meio de impressionar ou atemorizar
pela massa humana que em torno de si congreguem, longos meses de
propaganda, enorme movimentação de cúpulas arregimentadoras de
claques e tremendos dispositivos de força, não certamente para lhes
garantir a integridade física, jamais ameaçada, mas para atribuírem-se
direito de dizer o que em verdade não lhes é lícito dizer contra a
Constituição, contra a lei e contra os sentimentos do povo.
Não se interprete mal, entretanto, o significado daquilo a que se
assistiu ontem. O povo não estava na rua para desafiar, para tripudiar,
para forçar, para ameaçar. Estava pura e simplesmente para afirmar-se
e afirmar sua crença. Para definir seus ideais e para mostrar, enfim,
que o sentido do vocábulo povo não pode ser desvirtuado, deixando de
significar a população como um todo, unida pelos mesmos
sentimentos de nacionalismo, pela mesma fé no trabalho, pela mesma
capacidade de sofrer pela pátria, para definir apenas as suspeitas
multidões arregimentadas para as greves políticas e para comícios
subversivos, essas multidões que os encarregados de defender a
Constituição proclamam estarem acima da Constituição.
Nem se venha amanhã dizer que o povo que ali se encontrava era o
agrupamento dos que defendem as ―estruturas arcaicas‖. Não, era o
povo que reconhece a necessidade de muitas reformas e prega a
melhor adequação de muitas leis às necessidades do país. Mas que
acredita que tudo isso se pode fazer dentro da ordem, sem agravo às
instituições e, muito especialmente, sem necessidade de, por uma série
de atos injurídicos, inverídicos e insinceros, chegar, talvez sem querer,
à expropriação da pátria, em benefício dos inimigos da democracia
(FSP, 20 de março de 1964, p.4).

Em sua ―análise‖, o jornal recorreu a uma leitura maniqueísta, particularmente


em relação à qualificação do ―povo bom‖ e do ―povo mau‖. De um lado, o ―povo mau‖,
manipulado pelo governo e pelos comunistas; do outro o ―verdadeiro‖ povo, que se
manifestava patrioticamente. De um lado o que queriam a ruína do país, do outro, os
que defendiam as tradições nacionais. Na lógica da Folha, os que concordavam com as
posições antigovernistas faziam parte do ―povo bom‖ e teriam a sua bênção; os que
eram da situação, seriam acusados, como o foram os seguidores de Vargas e do
trabalhismo, de serem manipulados e enganados. Uma pérola da mais pura leitura
elitista da sociedade.
Além disso, chamou a atenção o domínio e a simpatia que os editorialistas
tinham em relação às propostas da Marcha e a certeza de sua sinceridade, o que talvez
indicasse o profundo envolvimento do jornal. No dia 21 de março, os editores voltavam
sua carga contra Jango e o seu governo:
Fé no regime: (...)o que o presidente da República deve fazer após a
Marcha] O melhor que tem a fazer é escutá-lo, no mínimo com a
mesma atenção com que escutou a multidão do Comício da Central. O
que legitimamente se quis dizer na capital paulista é que o povo
brasileiro é visceralmente contrário ao processo de agitação em curso
no país, não aceita estribilho demagógico dos que proclamam a
falência da Constituição e quer que as reformas, as tão exploradas
reformas, se façam dentro da lei.
Nada, portanto, que um presidente da República não possa escutar e
acatar.
(...) Se o problema é de plebiscitos, a ―Marcha da Família‖ pode ser
encarada como uma espécie deles. O pronunciamento livre de uma
grande parcela do povo está aí. Queiram os céus que o governo saiba
ouvi-lo (FSP, 21 de março de 1964, p.4).

A Folha insistia, paradoxalmente, na tese da necessidade das reformas, desde


que nas suas condições as quais definia como ―dentro da lei‖ e nas mãos do Congresso
Nacional, e que naquele momento não oferecia a maioria necessária ao presidente da
República. O jornal aproveitava também para, ironicamente, questionar a proposta de
realização de um plebiscito sobre as reformas. Para a Folha, a ―Marcha‖8 deveria ser
considerada pelo governo como uma demonstração da vontade popular, com a
vantagem de não ser manipulada, como fazia o presidente.
Dias após uma relativa calmaria dos editoriais, ressurgia com força a questão da
relação de Jango e do governo povoado por comunistas com os militares. No dia 29 de
março, o jornal tratava do movimento de marinheiros e fuzileiros navais que almejavam
o direito de votar e concorrer às eleições, um importante ponto proposto nas reformas de
base. A Folha de São Paulo assim analisou movimento:
Indisciplina vitoriosa: A solução dada pelo presidente da República à
crise na Marinha de Guerra tem todas as características de uma
capitulação. A indisciplina saiu vitoriosa, e aos indisciplinados só falta
conceder medalha de honra ao mérito.
(...) Mais forte, porém, que o empenho de restabelecer o primado da
hierarquia na Marinha, falou nas altas autoridades da República, a
começar do presidente, a preocupação de ―ficar bem‖ com os

8
―Movimento organizado no início de 1964 com a finalidade de sensibilizar a opinião pública contra as
medidas que vinham sendo adotadas pelo governo João Goulart. Congregou setores da classe média
temorosos do ‗perigo comunista‘ e favoráveis à deposição do presidente da República. [...] O movimento
consistiu numa série de manifestações ou ‗marchas‘, organizadas principalmente por setores do clero e
por entidades femininas. A primeira dessas manifestações ocorreu em São Paulo, a 19 de março‖ de 1964.
(DHBB, 2001, p.3551-2).
insurretos, que se afirmam integrados nos movimentos reformistas
comandados pelo Executivo federal.
E a solução encontrada foi um ―acordo‖, que recebeu o beneplácito da
Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais e do todo-poderoso
CGT. É difícil entender o que tem essa entidade sindical espúria com
problemas militares. No Brasil de nossos dias, entretanto, está-se
vendo que ela tem mais força ainda do que se poderia imaginar...
O fim aparente da crise está sendo apresentado, por fontes palacianas,
como vitória pessoal do sr. João Goulart. Oferecendo ao CGT e
anexos a cabeça do ministro da Marinha que se empenhava em
preservar tradições disciplinares dessa arma, e reconduzido ao
comando dos Fuzileiros Navais o conhecido alm. Aragão, ―enfant
gaté” das esquerdas, o presidente teria atalhado o desdobramento da
crise. Uma vitória sim, mas conseguida ao preço de compactuar com a
insubordinação e de promover rebeldes à condição de quase-heróis.
Uma vitória que deixa abertas portas para que rebeldias semelhantes
se repitam.
A nação não tem direito de iludir-se mais. A vaga insurrecional que
engolfa o país já atingiu também as Forças Armadas. O princípio da
autoridade, cuja deterioração se processa de cima para baixo, dando os
maiores responsáveis pelos destinos nacionais reiterados exemplos de
menosprezo a ele, está seriamente abalado nas corporações mesmas
que se destinam a assegurar a lei e a ordem. Outro dia foi rebelião dos
sargentos em Brasília, aos quais se cuidou de conceder anistia antes
mesmo de apurar a inteira extensão de seus atos; agora os marinheiros
e fuzileiros navais. Amanhã, o quê?
A falta de pulso na repressão a esses movimentos conduz a sua
repetição: a indisfarçável simpatia do governo federal pelos rebeldes
significa-lhes precioso estímulo. Em relação à área militar, a ação das
autoridades da República tem contribuído poderosamente para jogar
subalternos contra comandantes. Só faltava, talvez, erigir o CGT em
árbitro de problemas estritamente afetos às Forças Armadas.
Nem isso, infelizmente, falta mais (FSP, 29 de março de 1964, p.4).

O momento era, sem dúvida, delicado, e mais uma vez era explorado pela Folha
numa direção em que pouco importava a normalidade institucional e a continuidade da
democracia no país. O jornal parecia estar convencido de que chegara a hora de preparar
a população para que ela compreendesse a necessidade da tomada de determinadas
atitudes que freassem os chamados desmandos e o descontrole do governo. A
penetração comunista e sindicalista havia chegado ao último lugar protegido pelo ―bom
senso‖ e pela ―tradição‖; havia chegado às Forças Armadas, que agora haviam tido um
dos pilares de seu funcionamento abalado, a quebra da hierarquia. Coincidentemente,
este seria o argumento usado pelos militares na justificativa do golpe (CASTRO;
D‘ARAÚJO, 1998).
Em 1º de abril o jornal fez menção ao discurso de Jango para os sargentos no
Automóvel Clube, realizado no dia 30:
Discurso infeliz: (...) mais infeliz ainda foi a manifestação
presidencial de anteontem, em que o sr. João Goulart parece haver
desejado lançar um desafio a toda oficialidade das corporações
militares.
(...) No momento em que o país atravessa uma das mais sérias crises
de sua história, decorrente da quebra de disciplina da Armada; no
momento em que se tornou patente a interferência das mais espúrias
forças de pressão até mesmo na escolha dos mais altos chefes
militares; no momento em que se acham acirrados ao máximo os
ânimos dos integrantes dos escalões menos graduados das Forças
Armadas em consequência de manobras cuja intenção é fácil perceber,
qualquer governante ponderado trataria de transferir ou adiar
manifestações que pudessem reacender ou entreter a chama da
indisciplina, ou ainda atribuir, pelo menos aparentemente, a um
determinado escalão das Forças Armadas mais valor e mais foros de
confiança do que os escalões superiores.
Como é comum nos pronunciamentos do presidente da República, não
faltaram desabaladas promessas, especialmente de natureza salarial
[discutia-se aumento de 100% para o funcionalismo federal] sem a
menor indicação, porém, de sincero empenho em combater a inflação,
que é a arrasadora dos salários.
Mais forte, porém, do que esse anúncio de benefícios salariais foi a
insistência nas reformas de base, as reformas a que nem o
presidente nem os seus assessores até agora deram conteúdo. Usou
delas, como tem repetidamente feito, pura e simplesmente como aríete
contra a Constituição, que ele deseja reformar a qualquer preço, como
se a ele coubesse, dentro da ordem constituída, alterar a Constituição.
Não poderia faltar, é óbvio, o condimento do ataque aos privilegiados.
Não aos privilegiados reais, que não hão de faltar neste país, em todos
os setores, sem excluir vários líderes que engordam à custa dos
trabalhadores. Mas contra todos aqueles brasileiros que lutam por
situações democráticas e legais, pois estes é que são hoje os
―privilegiados‖, termo não à toa criado pelos filósofos comunistas que
orientam as falas presidenciais.
O mais lamentável, porém, no discurso presidencial foi o tom em que
falou aquele que, por sua posição mesma no cenário político, deveria
representar a ponderação e o espírito de concórdia e apaziguamento.
Era o tom de quem deseja, inflamando sargentos e suboficiais, cindir
de maneira irreparável as Forças Armadas. Era o tom de quem, tendo
por máximo dever preservar as instituições, jogava, numa última e
decisiva cartada, o destino delas (FSP, 1 de abril de 1964, p.4).

O jornal novamente foi duro com o presidente da República. Acusando-o de


incentivar a quebra de hierarquia no seio das Forças Armadas e atacando, como fizera
ao longo do mês de março, as reformas de base. O periódico continuava a atacá-las, não
demonstrando, no entanto, sua oposição a elas, mas sua oposição ao governo que não
conseguia, por sua fraqueza e incapacidade, dar-lhes conteúdo. Para a Folha, Jango
usava as reformas de modo demagógico e acima da Constituição e não tinha intenção
―verdadeira‖ de realizá-las.
No editorial de 2 de abril, apresentava-se a fatídica ―análise‖ sobre a purgação
política ou, para uma leitura mais crítica, a exposição dos motivos do golpe civil-
militar:
Em defesa da lei: (...) Ninguém por certo desejou tal situação,
excluídos certamente os elementos comunistas para os quais a
situação do país estará tanto melhor quanto pior em verdade for. Esses
elementos, infelizmente, vêm agindo há muito em altos cargos da
administração pública federal e, de certa forma, orientando muitas
ações do governo.
O que pessoas de bom senso têm reiteradamente perguntado é isto: se
o Partido Comunista se acha fora da lei, se os sentimentos do povo
brasileiro claramente repelem o comunismo, se os elementos
sabidamente comunistas têm sido sistematicamente batidos nas
eleições em que prevalece o voto secreto e, mais do que isto, se têm
obtido esmagadoras vitórias os líderes que se declaram
ostensivamente contra os comunistas, por que haveriam estes de
dominar o Brasil e dar o tom da política nacional?
Outra pergunta que as mesmas pessoas não raras vezes se fizeram é
esta: se existem meios constitucionais para resolver a maioria dos
grandes problemas nacionais, assim como para realizar as reformas
necessárias ao progresso do país, por que se fez desse tema reformista
uma simples bandeira de agitação, pregada com violência e com
evidente propósito, não poucas vezes, de atirar vários grupos sociais
uns contra os outros? E por que se passou a denunciar a Constituição,
a lei suprema, como fonte de todos os males do país e instrumento de
opressão do povo? E por que passou a ataca-la, exigindo sua reforma,
o chefe do poder Executivo, que jurou cumpri-la, quando essa
iniciativa de reforma é prerrogativa de outro Poder?
(...) Enquanto ganhava corpo, no governo, a tendência para o abuso de
poder e o desrespeito aos outros Poderes da República, submetiam-se
às Forças Armadas ao duro vexame de assistir ao apoio que a tais atos
era dado por alguns oficiais colocados em postos de direção. Com
habilidade foram assim as Forças Armadas aos poucos envolvidas na
política, dando-se ao povo a impressão de que elas existem para
defesa do presidente, transformado em superpoder, e não, e
igualmente, para defender os outros poderes e de um modo geral as
instituições.
(...) A cada abuso de poder crescia a apreensão natural das pessoas
que têm consciência do regime constitucional em que vivemos, e que
é o democrático. Essa apreensão manifestou-se na maioria da
imprensa brasileira independente. Este jornal registrou numerosas
vezes sua estranheza ante a cada vez maior ilegalidade em que ia
mergulhando o governo federal, apelando ao patriotismo responsável
pela coisa pública, a fim de que se reexaminassem as falsas posições e
se dessem ao povo, com sinceridade, os frutos do regime democrático
sadiamente aplicado e vivido, em lugar dos engodos de um
totalitarismo subversivo.
Clamamos em defesa da Constituição, em defesa do regime
democrático, em defesa da independência e da harmonia dos poderes.
E nesse clamor, não visamos a ninguém pessoalmente, havendo
distribuído nossas críticas tanto ao presidente da República quanto a
todos os outros elementos civis e militares, que integram ou defendem
os Poderes da República.
(...) As sucessivas paralisações do país mediante greves que não
nasciam dos trabalhadores mas de uma cúpula política bem engordada
em cômodas posições de falsa liderança, falsa porque armada à custa
do governo, ensombreciam ainda mais o ambiente nacional.
Finalmente, no lamentável comício do dia 13, na Guanabara, o que se
viu e ouviu foi, diante dos chefes militares, a pregação aberta da
revolução e do descumprimento da Constituição, ao mesmo tempo que
os mais profundos sentimentos do povo eram ridicularizados pelos
que mais deviam respeitá-los. E logo a seguir, numa verdadeira fúria
de quem precisa realizar em pouco tempo uma obra imensa de
destruição, a crise provocada na Marinha e o intolerável atentado à
disciplina e à hierarquia militar.
(...) Assim se deve enxergar o movimento que empolgou o país.
Representa, fora de dúvida, um momento dramático de nossa vida,
que felizmente termina sem derramamento de sangue. E termina com
a vitória do espírito da legalidade, reestabelecido o primado da
Constituição e do Direito. Resta-nos esperar que os focos de
resistência esboçados em raros pontos logo se desfaçam, para que a
família brasileira reencontre no menor prazo possível a paz a qual
tanto aspirava e o povo, livre da pregação e da ação dos comunistas
que se haviam infiltrado no governo, volte a ter o direito, que lhe
haviam tirado, de trabalhar em ordem e dentro da lei (FSP, 2 de abril
de 1964, p.4).

Parece-nos plausível considerar o conteúdo do editorial de 2 de abril uma


espécie de síntese das razões que levaram à derrubada de João Goulart e que não por
mera coincidência serão posteriormente utilizadas nas justificativas dos golpistas,
demonstrando não um falseamento de seus anseios, mas uma perspectiva de sociedade.
Nela, não haveria espaço para os comunistas, que embora na ilegalidade, ocupavam e
influenciavam decisivamente, segundo o jornal, os atos do governo, que ameaçariam a
Constituição e o Congresso Nacional e a legalidade democrática de então.
A Folha fez referência também à quebra de hierarquia nas Forças Armadas, e
que posteriormente será argumento recorrente e momento identificado pelos militares
como a gota d‘água em relação a sua tolerância à permanência de João Goulart na
presidência da República. As greves dos trabalhadores civis, equivaleriam a essa mesma
quebra de hierarquia, e colocavam, na visão do jornal, a sociedade em perigo,
ameaçando o seu bom funcionamento e à garantia ao direito do trabalho, que segundo o
jornal era o desejo da maioria do povo brasileiro.
Ainda, conforme o editorial, a deposição pela força das armas de João Goulart
fora realizada, paradoxalmente, pelos ―defensores da democracia‖. Militares de lata
patente, empresários da indústria e proprietários de grandes extensões de terra, não raro,
improdutivas, governadores de grandes estados da federação como Magalhães Pinto
(MG), Carlos Lacerda (RJ) Ademar de Barros (SP), Ildo Meneghetti (RS), por setores
da igreja católica e por uma classe média urbana alicerçados por uma cultura política
conservadora e autoritária que consideravam as tentativas de reformas sociais uma
ameaça a sua própria existência.

Considerações finais
O jornal Folha de São Paulo apresentou, por meio de seus editoriais, uma visão
peculiar, limitada e restritiva da democracia, segunda a qual eram os militares os
guardiães da Constituição e da postura política conservadora, na qual cabia ao
Congresso legislar – produzir leis, e quem sabe reformas -, ao Executivo administrar e
ao povo trabalhar de forma ordeira. Assim, quando Jango propôs a realização de um
plebiscito sobre as reformas, o periódico alertava que a participação mais direta era um
risco à democracia, numa lógica muito própria ao conservadorismo e ao pensamento
reacionário, para a qual o ―povo‖, a ―arraia miúda‖, nunca estaria suficientemente
preparado, em que mais democracia corresponderia, na verdade, a menos democracia.
O mês de março de 1964 foi explosivo, como visto. O jornal construiu uma
leitura própria do contexto e da tentativa de implantação das reformas de base, tendo
como método a constante denúncia de ameaça à Constituição, o perigo à ordem que
representava o movimento dos sargentos, marinheiros e fuzileiros navais e a constante
influência dos comunistas e do Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), o que serviu
para articular a justificativa para a entrada definitiva dos militares na cena política, num
primeiro momento considerados protetores da Constituição e da democracia, e, às portas
do golpe, tal qual o Poder Moderador do Império, como fiadores da ordem e da paz para
os ―brasileiros‖.
A Folha de São Paulo, via de regra, não apresentou claramente suas posições e a
de seu grupo político, nem sua relação com as Forças Armadas. Para estes era
inaceitável o ponto das reformas que permitiria aos militares de baixa patente (soldados,
cabos e sargentos) tornarem-se candidatos às eleições e votarem. Mas atacar estes
pontos diretamente, assim como outros aspectos mais populares da reforma, como a
reforma agrária e urbana, talvez cobrasse um preço excessivamente alto em relação a
possíveis apoios de setores sociais ao jornal. Em outras palavras, seria menos custoso
para o periódico, e seu grupo político e mais palatável para os seus leitores atacar e
derrubar Jango por um pretenso desrespeito à Constituição e incentivo à quebra da
disciplina do que pela proposição das reformas. Por outro lado, a resistência a elas
unificou civis e militares na direção do golpe civil-militar de 1964.
A Folha de São Paulo se utilizou da demonização dos comunistas para marcar
sua posição anti-Jango e para aglutinar as diversas forças conservadoras que, no período
(MOTTA, 2002), agiam aberta e claramente para barrar uma pretensa ameaça vermelha,
independente se isso representasse o enfraquecimento da democracia e a barreira para a
discussão de certos projetos de desenvolvimento para o país, debate com o qual,
definitivamente naquele momento, o jornal não estava preocupado.
Além disso, pode-se notar que os grandes jornais da época construíram uma
pauta política homogênea e única (REIS, 2014, p.68). As imagens de um governo em
crise, povoado de comunistas e incapaz de exercer a sua função pautaram repetidas
vezes o noticiário e os editoriais, na forma de informação isenta, mergulhando-se num
ambiente de crise constante e com a sensação de que o país marchava para o caos.
Nesse sentido, a chance de que se percebesse a informação como tendenciosa,
eleitoreira e no caso, golpista, ficaria limitada. Tudo parecia notícia e informação
confiável.
No contexto de 1964, a Folha de São Paulo corroborou a criação de um clima
negativo em relação ao governo Jango. O tema que mais incomodava o jornal era o das
reformas de base, apesar de afirmar o tempo todo que era favorável a elas; o tempo todo
e a todo o momento levantava objeções que apontavam para uma pretensa ilegalidade
do governo que, segundo os editores, teria passado por cima do Congresso Nacional,
demonstrando suas claras tendências antidemocráticas. Esta era a questão de fundo.
Uma visão reacionária sobre as reformas de base.
A democracia surgia aí como um apanágio para as críticas do jornal. Ele
defendia a democracia formal. Tentativas de mudança, como a convocação de um
plebiscito para as reformas de base, eram vistas como ameaça ao poder do Congresso
Nacional.
Os militares, na visão da Folha, eram os guardiões das instituições, apresentados
como estando acima das discussões e interesses políticos, os fiadores da democracia.
Como vimos, os movimentos de militares de patentes inferiores precipitaram e deram
força ao argumento da necessidade de uma intervenção, uma vez que Jango teria
colaborado com a quebra da hierarquia nas Forças Armadas e ameaçado a democracia.
Argumento moralmente muito mais aceitável do que a oposição às reformas e que será
utilizado para justificar o golpe civil-militar em 1964, sendo utilizado, inclusive,
posteriormente no depoimento de Ernesto Geisel dado ao CPDOC e publicado após sua
morte em 1996.
Desta forma, pode-se afirmar que os grupos conservadores, tanto civis quanto
militares, temiam as reformas – em especial qualquer ideia de relativização do direito à
propriedade, que no Brasil se encontra ainda na esfera do sagrado, sem a aceitação de
qualquer menção à sua função social. Da mesma forma, temia-se qualquer possibilidade
de transformarem-se em homens políticos os membros das Forças Armadas, o que,
dentre outras coisas, significaria o enfraquecimento do poder de generais e
comandantes, que perderiam a possibilidade de intervirem a qualquer hora na política
nacional e o que unificava mais ou menos seus passos e suas leituras sobre o governo.

Fonte: DANIELI Neto, Mário; STEFFENS, Marcelo H.; ROVAI, Marta G.O.
Narrativas sobre tempos sombrios. São Paulo: Letra e Voz, 2017.

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