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Artigos & Ensaios Historicgrafia Brasileira Mangereth Rage Dopo. de Hictxia- IPOH Unicamo A preocupacao em inventar 0 Brasil, isto é, em descobrir pais, suas supostas raizes histérieas, contidas. na linha de continuidade dos eventos his- téricos, unindo presente e passado, encadeando os processas so¢iais, po- liticos e culturais marcou 0 horizonte de muitos historiadores dos anos 20 30.1 Envolvides com a tarefa de de- terminar futuros possfveis, de encon- trar as formas de superacao dos obst culos.ao desenvolvimento social e eco- némico, perguntaram-se pelos tracos que marcavam a cultura brasileira, pe- las caracteristicas essenciais do povo brasileiro, pelo passado que nos havia constituide como tal. Que pais é este? foi a questao a que procuraram respon der em termos das interpretacées de nossas arigens histéricas, da coloniza- Gao aos dias atuais. Que pais quere- mos que seja? Tem sido a pergunta colocada desde entao, retomada em ssucessivas ocasi6es, inclusive agora, na era da globalizacso, em que se desfa- zem as antigas referencias nacionais. Se hoje os conceitos de Nacdo. Estado-nacao, conseiéneia nacional envelheceram e so insufieientes para dar conta das mtiltiplas realidades po- Iiticas, naquele instante pareciam ex- tremamente férteis para representar a comunic i ej , Raquele momento significava a possibilidade mesma de encontrar um forte lago comum, a partir do qual as dificuldades sociais pederiam ser pro- blematizadas e possiveis solugdes po- deriam ser aventadas.° ‘As reflexdes de Pierre Nora a res- peito das relagdes entre meméria.e his- téria sugetem pensar que as constan- tes desteritorializaces a que somos expostos cotidianamente abalaram tao profundamente o sentimento de per- tencimente a um grupo fixo, como a Nagao, que necessitamos de outro ar- senal conceitual para compreendermos presente, para nossituarmos no mun- do e também para reorganizarmosnos- so préprio espaco interno, delimitan- do a constituicao de novas subjetivi- dades fugazes e mutantes, antes quase que totalmente impensaveis. Ninguém mais acredita haver um sé Brasil ¢ di- ante de tanta multiplicidade e expan- so territorial, inclusive a desejante, cada vez mais procuramos nos locali- zar a partir de referéncias especificas, flexiveis e provisérias. Para aquela geracho, no entan- to, a8 quesiées colocavam-se de outro modo ¢ fundamentalmente tratava-se Wjose 9 respetto: HERSCHINANIN, Mico ML; PERE. RA. Carlos beso Wesse0e,. org 8 rwoneoo do Bras! moderne. Medicina. equooeae # en ‘genhatic nes anos 20.30. Rio Ge Janae: Reo Co. 1994. * Bxptess30 do: ANDERSCN, Benedict, Imagine ‘communis. Chops! Hil, 1982, *HOBSBANNE Bic. Nocoer e nacianalisms cose 1870. Be de Janeiro: Pos ¢ Torta, 1990. 59 60 Artigos & Ensaios de estabilizar, de fixar, de fincar esta- case definir nossa suposta identidade cultural, encontrando os pontos fixes, ‘ou a tao prestigiadaesséncia, oculta nas profundezas da terra e da psique. Tra tava-se de compreender o passado para transformar © presente: libertar- sede um fardo, romper com as pesa- das tradiges que emperravam © pro- gresso e entrar no compasse da hist6- Tia, © leque de questes que eles se -colocavam tinha por objetive detectar ‘as raizes do mal, entender os proble- mas sociais tao violentos e gritantes em nossa sociedade e, principalmente, 2 incapacidade de nos construirmos como uma Nagao moderna, rica € po- derosa, a exemplo dos Estados Unidos Buarque de perguntava por que a modernidade no se completava no pais, quais eram os entraves a formacéo da estera pi- Ulica moderne no Brasil, tentando per- ceber as linhas tendenciais de uma ‘possive] modernizacdo fransformado- ra, que pudesse nos igualar, ou ac menos, aproximar das fases de desen- volvimento de povos mais adiantados. ‘Sao consagrados os trabalhos produzides nessa época, como Retra- to do Brasil. Ensaio sobre a tristeza bra- sileira (1928), de Paulo Prado, recen- temente republicado; Casa-grande @ senzala (1933), de Gilberto Freyre; Evolucao politica do Brasil (1933) Formacao do Brasil contempordneo (1942), de Caio Prado Junior; Raizes do Brasil (1936), de Séraio Buarque de Holanda.” Estes brilhantes estudos, amplamente elogiados ¢ difundidos, formaram inameras geragbes, molda- ram a consciéncia nacional, tormando- se nossa principal referéncia acerca de nés mesmos, lentes através das quais passamos a nos olhar e a teconhecer nossa imagem de brasileiros(as). Paulo Prado, autor ce Retrato do Bras 9G | (2528). om to ce 1- dose Ling oo Rego 2. Octavia Tarauinig de Seuss Pawo Prado Jasé América de Almeida ior Freyre | FRABO, Bau. Retrate se srost, Ensaio voDte frsless praiint, 3.@0. Soo Poul: [s.). 1929. Para uno onoive da eb10 Coste auto veloc: BEREL coves Paulo Frogs: cab cone. Tose {Doutcracse). FREVRE, Gibeto. Cosagrondee searato, 203. Foo cs Joncro: Sofia Eestox 1938. HOLANGA Sérgio Buorque de. Roizes do Bras. ed Rio de sangro: Jot Olmpo, 1994, PEAGO UR. Car, - Evalugsa potica do Frost e cguras gags. (1899) 1 -e8, Soo Rade: Bes liense, 197%, re” Farmaco co Bron eontemporéneo, ‘Sa Paulo: Uinaen Maria Fontes, 1942 Gibeas Freyre Contudo, hoje, 0 que mais me chama a atencao nessas obras, princi- palmente nas duas primeiras ¢ a ma- neira pela qual é construida uma inter- pretacdo da realidade brasileira e, pe o istorico ‘observa ao longo de nossa hi tGria estaria contido, em germe, nes- ses fragos que se constituiram nos pri- mérdios, nas relacdes primarias que se estabeleceram na infincia do Bras quando chegaram os primeitos con” quistadores e iniciou-se © proceso de mniscigenacéo racial, sendo entéo re- postas interminavelmente. As relacées entre a cultura ero aa ciéncia parecem ter sido sempre. tensas ¢ complicadas, nao apenas no Brasil. Alias, aqui talver sejam até mais faceis, se nos compararmos com os paises de tradicéo puritana. O erético permeia nosso cofidiano, das piadas 0s jogos de seduco, das roupas aos comportamentes, nos. escritérios ou nos bares. Séria, sé mesmo a ciéncia, _que alguém chamou de cinza. Viverios uma cultura e sociedade extremamen- Artigos & Ensaios te sexualizadas, em todos os sentidos, inclusive no da violéncia e a imagem da sexualidade-tropical-do-sul-do- Equador nao deixa de ser muito esti- mulada pela indistria do turismo, na exporiagao das mulatas sensuais, do samba, do camaval, do tchan e de tudo aquilo que conhecemos muito bem como o imaginario do Brasil Tropical, ‘onde no ha limites, <6 excessos ¢ onde naose conhece o pecado, Ja disse Sér- gio Buarque que formes colonizados Por aventureiros mais do que por tra- balhadores, pelos semeadores portu- queses, a0 contrério dos ladrilhadores espanhdis, enfim, por figuras que ti- nham uma concepeao espacosa do mundo e que nao viam limites nem fronteiras para sua expansao desterri- torializante. Somos uns desterrados em nossa propria terra.® Por isso: mesmo, também chama aatencao ofato de que apenas recen- temente passamos a perceber a cen- tralidade conferida 4 sexualidade no discurso dos historiadores, voliados para a interpretacdo cientifica da reali- dade brasileira ¢ para a definicio da identidade nacional ou, em outros ter- mos, para a questo do enclausura- mento de desejo na casa-grande e sen- zala. Vale notar que, recentemente, livro de Paula Prado foi republicado numa bela edicdo, recebeu varias pa- ginas nos jomais e revistas da atuali- dade, mas em nenhum momento se fez qualquer aluséo a esta dimenséo que irrompe vigorosamente do pré- rio texto: a sexualidade tropical. Alguns historiadores, a exemplo de Ronaldo Vainfas, questionaram a imagem desregrada da Colénia, pr duzida pelos observadores dos primé ros séculos da colonizagao e reprodu- ida pelos historiadores, enconirando muitas regtas ¢ formas de culpabiliza- ao, onde outros viram apenas caos e descompromisso. SHOLANOR sergio Bucrue de, Op. ci.p. 3 61

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