ARANHA, M.L.a. Importância Da História Da Educação. in - História Da Educação. 2 Ed. Rev. e Atual. São Paulo - Moderna, 1996, P. 15-20

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Importancia da histéria da educacgao Ahistéria é um profeta com 0 olhar voltado para trés: pelo que foi e contra o que foi, anuncia o que seré. 1. O homem é feito de tempo ‘Comecemos pela reflexio acerca da histéria e da pedagogia, como teorias que tém por objeto a agiio humana. A hist6ria € a interpretagdo da ago transformadora dohomem no tempo. A pedagogiaéa teoria critica da educagao, isto é, da agao do homem quando transmite ou modifica a heranga cultural. De inicio, podeinos admitir que o homem é um ser hist6rico, jé que suas agdes e pensamentos mudam no tempo, a medida que enfrenta os problemas no s6 da ‘vida coletiva, como também da experiéncia pessoal. O trabalho — que é a aco transformadora do homem sobre a natureza — modifica também a maneira de pensar, agir e sentir, de modo que nun- ca permanecemos os mesmos ao fim de uma ativi- dade, qualquer que ela seja. E nesse sentido que di- zemos que, pelo trabalho, o homem se autoproduz, a0 mesmo tempo que produz sua prépria cultura. Se o homem é 0 resultado desse devir, do pro- cesso pelo qual constrdi a cultura e a si préprio, é impossivel pensar em uma natureza humana com caracteristicas universais ¢ eternas. Nao hé um con- ceito de “homem universal” que sirva de modelo para os educadores. Melhor seria referirmo-nos a uma condigdio humana, resultante do conjunto das relagées sociais, mutaveis no tempo. Ou seja, no compreendemos homem fora de sua pritica so- ial, porque esta, por sua vez, se encontra mergu- Ihada em um contexto hist6rico-social conereto. 2, Educacao e ideologia A partir das relagies que estabelecem entre si, 08, homens criam padres de comportamento, institui- Eduardo Galeano ‘ges e saberes, cujo aperfeigoamento € feito pelas geracdes sucessivas, o que Ihes permite assimilar e modificar os modelos valorizados em uma determi- nada cultura, E a educagao, portanto, que mantém viva a meméria de um povo e da condigées para a sua sobrevivéncia, Por isso dizemos que a educagao uma instéincia mediadora que toma possivel a re- ciprocidade entre individuo e sociedade. Esse processo, no entanto, nao é isento de distorgdes. De inicio, nas sociedades tribais a cultura global é transmitida de maneira informal pelos adul- tos, atingindo todos os individuos. Nas sociedades ‘mais complexas, porém, com o passar do tempo, a educago formal assume um cardter intelectualista cada vez mais distanciado da atividade concreta, des- tinando-se apenas Aelite. As demais classes tém pre- terida a sua formagio, considerada desnecesséria porque a elas é destinado o trabalho bragal. Portanto a dicotomia trabalho intelectual versus trabalho ma- nual ora exclui os filhos dos trabalhadores manuais, ora cria uma escola dualista, com objetivos diferen- tes: para elite, uma escola de formagtio que pode se estender até os graus superiores, enquanto para os, trabalhadores restam os rudimentos do lere escrever € o encaminhamento para a profissionalizagiio. ‘Mesmo quando as criangas mais pobres tentam estudar, esbarram em dificuldades intimeras e, ge- ralmente, no prosseguem sua escolarizagao, EX plicagdes foram dadas para os fenémenos de ex- cclusiio, evasiio e repeténcia, mas tendem a tomar- se justificagdes ideolégicas quando escamoteiam os vertladeiros motivos, impedindo dessa forma a so- lugo dos problemas, ‘Vamos ilustrar com exemplos algumas dessas falsas justificativas da dicotomia, Hé quem pense —e nilo silo poucos! — que para a sociedade fun- 1 cionar é preciso que uns saibam e outros executem, uns mand 1 Os mais passivos to, porque “desde mM ¢ outros obedee: it pode ser f que © mundo & mundo, existem pobres & ricos”. Outros atribuem o estado de pobreza a incompe- téncia individual, tanto como o fracasso escolar & preguica, falta de talento ou ignorincia do aluno. Esses argumentos partem de uma naturaliza- (Go, pela qual os fatos sociais sao explicados como se fizessem parte da natureza. Sabemos, no entanto, que cles resultam das relagdes humanas, em que sao impostas a divisio, a hierarquia, a dominago de uns sobre os outros. Assim, muitos nao tém sucesso na escola nao por serem ignorantes ou incompetentes, mas por tornarem-se incompetentes gragas & divisdo so- cial, responsdvel pela distribuigao desigual dos bens de que a sociedade dispde, inclusive a edu- cagdo. Isso significa que a maneira pela qual a educagio é oferecida jé traz, embutida, a impos- sibilidade da sua universalizagao. A ideologia'é, portanto, um fendmeno das so- ciedades divididas em classes. Por meio dela a classe dominada no percebe a divisio que a inferioriza e, assumindo os valores dominantes, nao € capaz de elaborar a consciéncia propria da classe a que pertence. Essas consideragdes nos advertem de que 0 fenémeno educacional no pode ser definido como neutro, uma vez que se encontra intrinse- camente ligado aos problemas econdmicos, poli- ticos e sociais do seu tempo. A escola nao é uma Calvin and Hobbes mas faz parte do mundo, € nesse sentido re. paridades © as lutas sociais. Ignoray nermitir que a escola permaneca a sey. go do status quo, deixando de se tornar um pos. sfvel instrumento de transformacio. Questionando a educacao Atento as ciladas das interpretagdes apressa. das e tendenciosas, 0 educador precisa tomar sua pritica intencional, o que significa ultrapassar 9 espontanefsmo do senso comum. Apenas quan- do consciente dos seus fins, a praxis educacional pode ser mais coerente e eficaz Para explicitar de antemdo os fins a serem atingidos no processo, a educacao, como pratica, precisa estar em constante abertura para a teoria, porque € o vaivém entre o agir € 0 pensar que dinamiza a ago, evitando as formas esclerosadas da ideologia. Vimos que a pedagogia, como teo- ria da educago, possui seu contetido proprio, mas também precisa de ciéncias auxiliares, como a sociologia, a psicologia, a lingiifstica, a econo- mia e tantas outras ciéncias humanas. Também a filosofia oferece uma importante contribuigao, ao acompanhar reflexiva e critica- mente a praxis educativa. Segundo o professor Dermeval Saviani, “a filosofia da educacio é a reflexo (radical, rigorosa e de conjunto) a res- peito dos problemas que a realidade educacional apresenta™?, by Bill Watterson ALGDEM MAIS TEM] UMA PERGUNTA? INTERCONTINENTAL PRESS 0 TEMA DA AOU {Consultar M. Leia de Arruda Aranha e M. Helena Pires Martins, Filasofanco; introduglo A filosofia,p. 35. + Educagdo; do senso comum & consciéncia filosofica, p. 27. b A filosofia, no entanto, niio desenvolve esse trabalho a partir de conceitos abstratos como 0s de homem em si, valor em si, educagao em si, que seriam validos de uma vez por todas, como se fos se possivel ao filésofo indicar de antemiio os ca minhos a serem seguidos de acordo com modelos universais. Ao contririo, 0 filésofo da educagzio parte do conhecimento do contexto vivido, a fim de fazer a critica dos valores decadentes, bem como a dos novos valores, indagando a respeito de que hhomem se quer formar naquela determina- da sociedade ¢ naquele tempo especifico. 0 filésofo investiga entio os conceitos subja- centes 3 ago educativa que nem sempre se en- contram explicitados: os pressupostos antropolé- gicos (0 que € 0 homem?), os epistemoldgicos (0 que é conhecer?), os axiolégicos (0 que é valor?) 05 politicos (onde esté o poder?). Essa investiga do radical — no sentido etimol6gico de ir até as raizes, ao fundamento — tomar a agio educacio- nal mais hicida Ao ter sempre presente 0 questionamento so- bre o que € educaco, a filosofia contribui para que ela nio resulte em adestramento ou qual- quer tipo de pseudo-educagdo, nem que a peda- gogia se torne dogmitica. A filosofia da educa- 0 € importante por denunciar as formas ideo- logicas que utilizam a educag30 como instru- mento de poder. Pedagogia, sociologia, economia, filosofia: im- possivel pensar nelas sem a contribuigio de outra teoria, a histéria. Se, como jé dissemos, 0 homem € um ser histérico, nada escapa & dimensio do tempo, Lembrando o poeta Claudel, cuja epigrafe inicia este livro, “o tempo € o sentido da vida” 4. Reconstituindo 0 passado Vimos que, pelo trabalho, 0 homem atua so- bre o mundo, transformando-o. Cada gera assimila a heranga cultural dos antepassados, 40 mesmo tempo que estabelece projetos de mudanga, Ou seja, 0 homem se insere no tem- Po: 0 presente humano nao se esgota na ago que realiza, mas adquire sentido pelo passado € pelo futuro, Pensar o pasado nio deve ser visto como exercicio de saudosismo, mera curiosidade ou ‘erudigio. O passado no est morto, porque nele se fundam as ratzes do presente. E compreenden- do o passado que podemos dar sentido ao pre- sente ¢ projetar o futuro, "Também na vida pessoal acontece algo seme- Ihante: cada plano feito é embasado na meméria das experiéncias vividas, cujo significado se pro- cura compreender a cada passo. A propria inter- pretago desse passado sofre variagdes & medida que as experiéncias vao se diversificando, As- sim, o significado da infancia varia segundo a casio, por exemplo, enquanto a estamos viven- do, quando entramos na adolescéncia ou nos tor- namos adultos. Ainda mais, ao nos relacionar- ‘mos com criangas, sejam nossos filhos ou alu- hos, sempre nos baseamos na propria experién- cia, rememorada e reinterpretada. E bem verdade que essa retomada pode se tor- nar menos subjetiva se utilizamos o recurso mais rigoroso da ciéncia, analisando a infancia do ponto de, vista da psicologia ou da sociologia. Queremos dizer com isso que, de certa forma, 0 homem “reconstréi” a historia a partir do seu pre- sente, ¢ cada novo fato o faz reinterpretar a ex- periéncia passada. A hist6ria resulta da necessidade que 0 ho- mem tem de reconstituir 0 passado, relatando interpretando os acontecimentos em,uma ordem cronol6gica e por meio da selegao daqueles con- siderados relevantes. Essa disponibilidade de anilise, porém, nao 6 idéntica ao longo do tempo, variando também conforme a cultura, A meméria dos povos tri- bais, por exemplo, nao privilegia os aconteci- mentos da vida da comunidade, porque eles consideram que o passado se refere aos “tem- pos primordiais”, tempos sagrados em que os deuses realizaram seus feitos extraordinatios. Dessa forma, fazer histéria é recontar os mitos, € por isso, nos rituais tribais, os homens reatua- lizam os acontecimentos sagrados e imitam os gestos dos deuse: Ainda nos relatos dos gregos Homero © Hesfodo, os atos humanos se acham dependentes da agio divina, Na guerra de Trdia (século XI a.C.), por exemplo, cada herdi se encontra sob a proteciio de um dos deuses do Olimpo, néo ha-

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