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DOUTRIN A

REFLEXOES SôBRE A REFORMA DA JUSTIÇA FISCAL


RUBENS GOMES DE SOUSA
Advogado em São Paulo

SUMÁRIO: 1 - Importância do problema da organização da Jus-


tiça Fiscal. 2 - Sit'U,,(J,Ção atual do problema no Brasil. 3 -
Diversas soluções propostas; solução adotada pela Constitui-
ção de 1946. 4 - Projetos de reforma atualmente em estudo
e sua crítica. 5 - A codificação do direito tributário como
preliminar da solução do problema da Justiça Fiscal.

1. Escrevendo em 1943 um trabalho de feitio acadêmico sôbre


o mesmo assunto destas notas deixamos consignadas algumas conside-
rações cuja oportunidade só se pode dizer que tenha aumentado com
o tempo decorrido. 1 O crescimento e a difusão do fenômeno tributário,
especialmente acentuados depois da primeira guerra mundial, tiveram
duas origens principais: o intervencionismo cada vez mais acentuado
do Poder Público nas atividades privadas, trazendo consigo a necessi-
dade de novos órgãos e serviços administrativos e por conseguinte a
exigência de novos recursos orçamentários, e a substituição das anti-
gas noções civilistas e liberais quanto à natureza do impôsto, pelas
noções, próprias ao direito público, da sujeição ao poder impositivo
do Estado como elemento da soberania, e da generalização da partici-
pação individual nos encargos coletivos da nacionalidade. A essas
duas razões poder-se-ia acrescentar uma terceira, de natureza mais
geral e por assim dizer anterior aos problemas tributários propria-
mente ditos, e que vem a ser o emprêgo de~larado do poder tributário
na atuação da política social e econômica do Govêrno, concepção a
princípio discutida mas atualmente aceita sem controvérsias, e por
fôrça da qual o impôsto deixou de ser simplesmente um meio de pro-
porcionar recursos financeiros para se tornar um poderoso instru-
mento de ação do Estado no terreno sociológico.
Da conjugação dêsses três elementos principais, decorre a impor-
tância cada vez mais acentuada do problema tributário, não só para
o Estado que dêle se utiliza ativamente, como também para o con-
tribuinte, submetido a êle como devedor ou sujeito passivo. Um exem-
plo dessa crescente importância do impôsto para o contribuinte, que

1 Rubens Gomes de Sousa, A Distribuição da Justiça em Matéria Fiscal. São Paulo,


1943, ps. 10 e segs.
·.1
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mencionamos em nosso trabalho anteriormente citado, serve ainda


hoje para dar uma impressão numérica de um fenômeno diàriamente
sentido por todos: a redução do mínimo de subsistência isento do
impôsto de renda, efetuada nos Estados Unidos em 1942, de 1.500 para
1.200 dólares, bem como a simultânea redução das deduções para en-
cargos de família, de 400 para 350 dólares, veio tornar contribuintes
do impôsto de renda cêrca de 4 milhões de pessoas que anteriormente
nem estavam obrigadas, em face do montante dos seus rendimentos,
a apresentar declaração, ao mesmo tempo que outros 7 milhões de
pessoas, que anteriormente eram isentas em virtude de deduções, pas-
saram a pagar impôsto.:)
A importância do problema, quer para o Estado, quer para o
contribuinte, é, de resto, tão evidente que dispensa comentários e
exemplos numéricos. Por outro lado, é intuitivo que um dos aspectos
sob o qual essa importância se manifesta mais intensamente na prá-
tica é o da distribuição da justiça fiscal, isto é, o da organização e
funcionamento dos órgãos encarregados de decidir as questões entre
o fisco e os contribuintes, suscitadas pela aplicação das leis e regula-
mentos tributários. Não é de admirar, assim, que êste seja um as-
pecto permanentemente vivo do problema em todos os países, tendo
recebido soluções diversas conforme a organização const,tucional ou
a tradição jurídica de cada um, ou provocando estudos e controvér-
sias nos países que ainda não o resolveram definitivamente.
2. O Brasil está nesta última situação, de modo que entre nós
o problema da justiça fiscal permanece, por assim dizer, permanen-
temente na ordem do dia. Sendo as questões tributárias, inegàvelmente,
de natureza altamente técnica, e exigindo, portanto, para a sua s0-
lução, formação científica especializada, que não se pode limitar ao
aspectu jurídico mas deve necessàriamente abranger o aspecto eco-
nômico e financeiro, indissociável daquele em matéria de tributos,
parece fora de dúvida que um dos aspectos primordiais da solução
do problema da justiça fiscal está na escolha e seleção das pessoas a
quem deva ser atribuída a função julgadora.3
Entre nós, êste aspecto do problema só recebeu até hoje solução
completa na esfera administrativa: seguindo o exemplo do Govêrno
Federal, que instituíra os Conselhos de Contribuintes em 1926, cria-
ram tribunais especializados para o julgamento de questões fiscais
os estados de São Paulo (1937), da Bahia (1938), do Paraná (1942),
de Minas Gerais (1946) e a Prefeitura Municipal de São Paulo (1946).
Em todos êsses casos, trata-se de órgãos julgadores cujos membros são
escolhidos em razão de seus conhecimentos especializados em maté-
ria fiscal. Todavia, como tais tribunais são órgãos administrativos,

2 Kent, The Revenue Act of 1942, na Columbia Law Review, vol. 43. ps. 1 e segs.
3 Giuliani Fonrouge, Anteproyecto de Codigo Fiscal, Buenos Aires 1942. p. 361;
Temístocles Cavalcanti, Tendências Modernas do Direito Administrativo, em Direito, volu-
me 18. p. 32; Dammervalle, Nature juridique de la créance d'impôt, Paris 1937, ps. 50
e segs.; Hauriou, citado por Trotabas no prefácio ao livro de Chaudat. Le contentieux
des impôts directs, Paris, 1938, p. VI.
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isto é, fazem parte do Poder Executivo, ou melhor, da Administração


Fiscal, as suas decisões, em face do nosso regime constitucional, que
não admite o chamado contencioso administrativo, em nenhuma hipó-
tese podem ser definitivas, estando sempre sujeitas à revisão por parte
do Poder Judiciário, tanto em matéria de direito, como em matéria
de fato,4 não tendo tais decisões, em face dos tribunais judiciários,
outro valor que o de simples pareceres técnicos, certamente de grande
valor elucidativo em razão da própria especialização dos órgãos que
os proferiram,~ mas sem nenhuma fôrça de coisa julgada. 6 A solução
definitiva do problema da justiça fiscal exige, por conseguinte, entre
nós, um perfeito entrosamento entre as duas instâncias, administra-
tiva e judiciária.
Quanto ao aspecto judicial do problema, é claro, em face do que
dissemos acima, que a solução perfeita seria a criação de tribunais
especializados também dentro do Poder Judiciário. Tentativas nesse
8€ntido, com maior ou menor amplitude, foram feitas entre nós desde
a Constituição de 1934, cujo art. 79 previa a criação de um tribunal
federal, órgão do Poder Judiciário, com competência para julgar,
entre outros, os recursos de atos e decisões definitivas do Poder Exe-
cutivo e das sentenças dos juízes federais nos litígios em que a União
fôsse parte, contanto que uns e outros dissessem respeito ao funcio-
namento de serviços públicos ou se regessem, no todo ou em parte,
pelo direito administrativo. 7 Êsse tribunal, embora não fôsse, como
se vê, exclusivamente dedicado às questões tributárias, na prática
exerceria as funções de um tribunal fiscal, porquanto é fora de dú-
vida que teriam sido dessa natureza a maioria, em volume e em im-
portância, das questÕ€s que teria de decidir. Um insígne constitu-
cionalista, aplaudindo a criação dêsse tribunal, observou que êle
viria corrigir o defeito dos Conselhos de Contribuintes que "são ór-
gãos do Govêrno contra o Govêrno", que "não podem defender efi-
cazmente os intertêsses da Farenda", porquanto "podendo fazer o
mal definitivamente, não podem fazer o bem".8 Essa crítica à atual
organização dos Conselhos é exata no sentido de que as suas deci-

4 Seabra Fagundes. o contrôle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário. Rio.
1941. ps. 107 e segs.; acórdão do Supremo Tribunal Federal. na Revista de Direito
Administrativo. vaI. 2, p. 153. comentário de Carlos Medeiros Silva.
5 Acórdão do Supremo Tribunal Federal, na Revista dos Tribunais. vaI. 147.
p. 787 e vaI. 151. p. 771; do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Revista de
Direito Administrativo. vaI. 1. p. 193. com comentário de A. Gonçalves de Oliveira;
do Tribunal de Justiça de S. Paulo. Revista dos Tribunais. vaI. 145. p. 670 e vaI. 162.
p. 342; do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Revista Forense, vaI. 99. p. ~74.
6 Rubens Gomes de Sousa. A coisa julgada no direito tributário. na ReVIsta doa
Tribunais. vaI. 160. p. 6; Revista Forense, vaI. 108, p. 240; Revista de Direito Admi-
nistrativo, vaI. 5. p. 48.
7 Na expressão "direito administrativo" a Constituição de 1934 compreendia. in-
dubitàvelmente. o direito fiscal: não cabe discutir aqui a imprecisão dessa terminologia.
em tace da autonomia do direito tributário como ramo do direito público desligado
do direito administrativo. mesmo porque a intenção do texto constitucional era clara,
embora a sua redação fôsse menos feliz.
8 Pontes de Miranda. Comentários à Constituição de 1934. s/d .. vol. I. p. 697.
Sôbre o assunto cf. também o n. a 4 infra. à nota 27.
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sões, quando a favor do contribuinte, e desde que sejam unamme[ó!,


são definitivas para a Fazenda, que não as pode discutir no Judi-
ciário, ao passo que o contribuinte pode sempre reabrir no Judiciá-
rio as questões decididas contra êle pelos Conselhos, unânimemente
ou não. Entretanto, a crítica referida não ressalva que as decisões
dos Conselhos, contrárias à Fazenda, e que não sejam unânimes, po-
dem ser reformadas pelo Ministro da Fazenda, ficando assim o con-
tribuinte, que pretender a restauração de decisão favorável do Conse-
lho, forçado a pleiteá-la no Judiciário, dando portanto indiretamente
à Fazenda a oportunidade de um novo exame da questão.
Um aspecto interessante do Tribunal previsto pela Constituição de
1934 era o de ser possível o recurso direto, para êle, de atos e decisões
definitivas do Poder Executivo - portanto também das decisões finais
dos Conselhos de Contribuintes ou do Ministro - sem necessidade,
por conseguinte, de ser proposta ação desde a primeira instância, com
o que se efetuaria considerável economia processual e prática, uma vez
que o recurso para o tribunal poderia ser limitado à questão de direito
controvertida, sem ser preciso repetir-se todo processado. 9
3. O Tribunal criado pelo art. 79 da Constituição de 1934 não
chegou, entretanto, a ser instalado. Sobreveio em seguida a Carta
Constitucional de 1937, que não continha dispositivo semelhante àquêle
art. 79, nem, sequer, um dispositivo genérico permitindo à União criar
outros juízos ou tribunais além dos expressamente previstos na pró-
pria Carta. Dessa forma, o problema volh)U a pedir solução, já en-
tão, porém, com a dificuldade adicional decorrente da necessidade de
reforma constitucional. Não obstante isso, vários estudos se fizeram
no período entre 1937 e 1946, todos atacando t1 e frente o entrave da
reforma constitucional, mesmo porque a maioria dêles visavam ali-
viar o que se chamou a "crise do Supremo Tribunal". A criação de
tribunais especializados em matéria administrativa, ou, mais especi-
ficamente, em matéria fiscal era, assim, objetivo secundário ou de-
corrência da finalidade precípua de tais estudos que visavam direta-
mente restituir ao Supremo Tribunal a sua função própria de côrte
de direito constitucional, retirando-lhe, ao contrário, o recurso ordi-
nário nas causas de interêsse da União, das quais as de maior ir
portância qualitativa, e quantitativamente, seriam, como dissemo;;, aO'
causas fiscais. lO
9 E' fora de dúvi:la. entretanto. que o recurso direto de uma inst2nc:a adminis-
trativa para uma instância judiciária se afasta dos princípies correntes do nosso direito
constitucional. Recursos c1cssa natureza existem nos Estados Unidos. e foram propostos
na Argentina em um projeto oficial de criaç50 de tribunais fiscais (Prccedimienlo con-
tencios'J cn lei apiicación de las l2yes fiscales, eà. oficial. BUênos i\.ircs. 1943. Entre nós,
estavam previstos no antigo regulamento do Tribunal IvIarÍtimo Administrati,·o (decreto
20.829 de 1931). mas o então Procurador Geral da República. Gabriel Passos. ela-
borou um convincente parecer no sentido de sua inconstitucionalidacc (Arquivo Ju-
diciário, vo1. 46. p. 141). 1\'0 caso do art. 79 da Constituição de 1934. desce que
expressamente previsto o recurso no préprío texto constitucional. estJva evidentemente
afastado o problema.
10 V Cf os seguintes estudos de diversos juristas. publicados. por iniciativa do
então Ministro da Justiça. Marcondes Filho. nes ArquitJos do Ministério da Justiça;
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Preocupando-se mais diretamente com os aspectos técnicos de di-


reito tributário do problema, o autor do presente artigo, já em 1943,
apresentara um trabalho a debate no Instituto dos Advogados de São
Paulo,l1 mais tarde publicado em volume. 12 A idéia central dêsse tra-
balho era o entrosamento das duas fases, administrativa e judiciária,
do contencioso tributário, através da delimitação das esferas de ação
de cada uma delas, de modo a conseguir que ambas funcionassem como
o complemento lógico uma da outra e não como uma simples repetição
ou, pior ainda, um conflito. Em um objetivo dessa natureza, a insti-
tuição de órgãos especializados de julgamento em ambas as fases era,
naturalmente, um pressuposto. Dentro da mesma ordem de idéias,
apresentamos, como membro da delegação brasileira à 2.a Conferência
Inter-Americana de Advogados, reunida no Rio de Janeiro em agôsto
de 1943, uma tese que, debatida na 6. a Sub~Comissão (Impostos) foi
aprovada pelo plenário da Conferência e deu origem à seguinte re-
solução: "Que a Comissão de Impostos da Federação Inter-Ameri-
cana de Advogados estude e proponha a instituição, em cada país
americano, de uma justiça fiscal autônoma, cujos membros possuam
as condições técnicas e gozem das garantias adequadas ao bom desem-
penho do cargo, cabendo, das decisões finais dessa justiça, revisão pelo
Poder Judiciário unicamente em casos especialmente previstos"P
Já anteriormente o Ministério da Justiça havia cogitado do assun-
to, propondo a solução que consistiria em atribuir ao Tribunal de Con-
tas o julgamento, em grau de recurso, das ações para cobrança da
dívida ativa da União ou do Distrito Federal.H Idéia semelhante ti-
vera, pela mesma época, o próprio Procurador do Tribunal de Contas,
que elaborou projeto atribuindo àquele Tribunal o julgamento dos re-
cursos nas causas de cobrança da dívida ativa da União e das decisões
dos Conselhos de Contribuintes. 15. Em sentido semelhante manifes-
tou-se ainda o Departamento Administrativo do Serviço Público,16 que
propôs a atribuição, ao Tribunal de Contas, de competência para jul-
gar, em recurso ordinário, as causas movidas contra a União, o Dis-
Filadelfo Azevedo (vol. 1. p. 7). Levi Carneiro (vol. 4. p. 52). Castro Nunes (vo-
lume 7. p. I). Luís Galloti (vol. 8. p. I). Sabóia de Medeiros (vol. lO. p. 1) e
José T. Nabuco (vol. 10. p. 13).
II Ver O Estado de São Paulo, de 15 e 17 de abril. 18 e 22 de maio. e
19 de junho de 1943.
12 A Distribuição da Justiça em matéria fiscal, S. Paulo. 1943.
13 Federação Inter-Americana de Advogados. Resoluções da 2. a Conferência. Rio
de Janeiro. Imprensa Nacional. 1943. p. 27. A referência da resolução ao Poder Ju-
diciário visava. evidentemente. o Poder Judiciário comum. isto é. não especializado: no
caso particular do Brasil, por exemplo. destinava-se a respeitar a competência consti-
tucional do Supremo Tribunal Federal. Por outro lado. a 7. a Comissão da mesma Con-
ferência (Direito e Processo Administrativo) chegara inrfependentemente a idêntica con-
clusão. recomendando ~que os conflitos decorrentes da atividade administrativa devem
ser decididos. em princípio. por tribunais especializados. qualquer que seja a sua posição
na estrutura do Estado" (op. e loc. cit.).
14 Projeto Francisco Campos. Arquivos do Ministério da Justiça. vol. 16. p. 16.
15 Projeto Cunha Melo. publicado. para receber ~gestões. no Diário Oficial. de
16 de janeiro de 1942, p. 817.
16 Exposição de Motivos n.o 616. de 14 de março de 1944. Arquivos do Mi·
nistério da Justiça. vol. 16. p. 18.
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trito Federal e os Territórios, e as de cobrança da dívida ativa da-


quelas entidades. Por todos êsses projetos, o Tribunal de Contas te-
ria, portanto, a sua competência ampliada, e passaria, concomitante-
mente com as suas demais funções, a funcionar como um tribunal
especializado em matéria fiscal.
De posse de todos êsses elementos, o Ministério da Justica ela-
borou novo projeto de lei constitucional, adotando as sugestões· feitas
pelo D.A.S.P. em seu projeto quanto à modificação da competência
do Supremo Tribunal, mas atribuindo a um tribunal federal novo,
que seria especialmente criado, o julgamento, em recurso ordinário.
das causas em que fôssem interessadas a União, o Distrito Federal
e os Territórios, em vez de cometer tal julgamento ao Tribunal de
Contas. 1, Êsse novo projeto, depois emendado em alguns pontos por
sugestão do próprio Supremo Tribunal, não chegou entretanto a ter
andamento, em virtude de haver surgido a Lei Constitucional n. o 9.
de 28 de fevereiro de 1945, dispondo sôbre a imediata realização das
eleições para o Congresso e conferindo a êste, em sua primeira le-
gislatura, poderes constituintes: perdeu, assim, oportunidade a so-
lução do problema por meio de lei constitucional, uma vez que se
compreenderia no plano, mais geral, da elaboração da nova Consti-
tuição pelo Congresso. A solução preconizada, para o problema que
nos ocupa, pelo último projeto do Ministério da Justiça foi, entre-
tanto, adotada pelo Ministro Sampaio Dória no projeto de Constitui-
ção que, em seguida, elaborou. 18
Simultâneamente com o Ministério da Justiça, também o da Fa-
zenda preocupou-se com o problema da justiça fiscal. O então Mi-
nistro da Fazenda, Dr. Gastão Vidigal, nomeou uma comissão de fun-
cionários para elaborar dois projetos, sendo um para a organização
da Justiça Fiscal (lei substantiva) e outro referente ao seu processo
(lei adjetiva) .19 Os trabalhos dessa Comissão, que seriam do maior
interêsse dada a competência dos seus membros, não chegaram, en-
tretanto, a ser divulgados, pela mesma razão que afetara os estudos
feitos pelo Ministério da Justiça, ou sej~, a instalação da Assem-
bléia Constituinte.
Na Assembléia Constituinte, foi apresentada e rejeitada, pela
Comissão da Constituição, uma emenda que mandava incorporar ao
texto o seguinte dispositivo: "Serão instituídos pela União, pelos Es-
tados e Municípios, órgãos com a participação de representantes elos
contribuintes, para o julgamento de questões fiscais, sem prejuízo ela
apreciação judiciária das respectivas decisões" .~O

17 Exposição de Motivos n.o GS-21 07. de 3 de novembro de 1944. do Minis-


tério da Justiça ao Presidente da República; Arquivos do Ministério da Justiça, vol. 16.
p. 29 e segs .. com parecer do Dr. Teodoro Arthou. Assistente Jurídico do Ministro da
Justiça.
18 Arquivo do Ministério da Justiça. vol. 16. p. 46; Arquivo Judiciário, vol. 77.
suplemento. p. 8.
19 Diário Oficial. de 23 de março de 1946. Revista Fiscal (seção imp. de con-
sumo), 1946. n.o 379.
20 Diário da Assembléia, 16 de maio de 1946, p. 1.766.
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o dispositivo, nos têrmos em que se achava redigido, seria mo-
cuo, porque, como bems:alientou o Deputado Aliomar Baleeiro em sua
declaração de voto ~ontrário à emenda, órgãos dessa natureza já exis-
tem. Não seria o caso de elevar a sua criação ao nível de uma impo-
sição constitucional, a menos que se regulasse o assunto em têrmos ca-
pazes de dar solução integral ao problema da justiça fiscal. Não te-
ria essa virtude o dispositivo proposto e rejeitado, porquanto, como
já dissemos no presente artigo, aquela solução integral e com-
pleta só se poderá obter com a instituição de tribunais especia-
lizados dentro da organização geral do Poder Judiciário. Neste últi-
mo aspecto do assunto, a Assembléia Constituinte, foi, aliás, forçoso
será reconhecê-Io, um tanto tímida, porquanto se limitou isso mesmo
com relutância, a criar o Tribunal Federal de Recursos, ao qual ficou
atribuída competência para julgar, em recurso ordinário, as causas
decididas em primeira instância, quando a União fôr interessada
como autora ou ré. 21 Adotou-se, assim, uma solução que sem dúvida
representa um progresso, em relação à situação anterior, no que se
refere à exclusão do recurso ordinário da competência do Supremo
Tribunal, mas que, por outro lado, descura o aspecto da especializa-
ção, essencial, como temos afirmado, a uma solução perfeita do pro-
blema da justiça fiscal. A Constituinte, aliás, ignorou a especializa-
ção do direito tributário, e sómente aceitou com relutância a do di-
reito financeiro, ao qual atribuiu um conceito compreensivo daquele,
como dão notícia os debates havidos em tôrno da redação da letra "b"
no n.o XV do art. 5.° da Constituição.22
O Tribunal Federal de Recursos, embora não especializado, ficou
sendo, assim, dentro da organização do Poder Judi~iário. o tribunal
fiscal por excelência, em razão da natureza das causas incluídas na
sua competência. Por outro lado a Constituição, enumerando limi-
tativamente, no art. 94, os órgãos de que se compõe o Poder Judi-
ciário, e deixando de incluir, à semelhança da Constituição de 1934,
um dispositivo genérico que permitisse a criação de outros órgãos ju-
diciários por lei ordinária, afastou a possibilidade de re-exame fu-
turo do problema da justiça fiscal em têrmos definitivos, indepen-
dentemente de revisão constitucional.
4. O único campo que se encontra atualmente aberto aos es-
tudos visando resultados práticos imediatos é, assim, o campo, ne-
cessàriamente limitado, da organização ou reorganização da justiça
fiscal administrativa. .
Neste terreno, entretanto, a atividade tem sido fecunda e intensa.
Deixando de parte os trabalhos de âmbito estadual ou municipal,~:; limi-

21 Constituição de 1946. art. 104. n.o lI. letra "a".


22 José Duarte. A Constituição Brasileira de 1946, Rio. 1947. ,'oI. L ps. 275
.e seguintes.
23 Quanto aos quais é interessante assinalar, entretanto. a criação de tribunais
fiscais administrativos na Bahia em 1938. no Paraná em 1942, em Minas Gerais e na
Prefeitura de S. Paulo em 1946, e a reorganização em 1939 do já existente no Estado
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taremoB as nossas observações aos três projetos atualmente em anda-


mento na Câmara Federal, visando a reforma dos Conselhos de Con-
tribuintes ou do processo fiscal.
Um primeiro projeto 24 institui nas capitais dos Estados cargos
de julgadores singulares, para os quais o Ministro da Fazenda desig-
nará, por três anos, funcionários de carreira dentre os mais gradua-
dos ào quadro de oficiais administrativos. Em segunda instância,
institui o projeto, nos Estados, Juntas de Fazenda, composta de cinco
membros, sendo dois representantes da indústria e do comércio desig-
nados pelas respectivas associações de classe, e dois funcionários fis-
cais, sob a presidência do Delegado Fiscal, Delegado Regional do Im-
vôsto de Renda, ou Inspetor da Alfândega. Êsse projeto apresenta dois
aspectos interessantes e recomendáveis: o de aliviar os Diretores de
Recebedorias, Delegados Fiscais e Inspetores de Alfândegas da sua
atual função de julgar os processos em primeira instância, porquanto
tais funcionários, dadas as suas outras atribuições, não podem, reco-
nhecidamente, dedicar à atividade judicante todo o interêsse que esta
exige; e o de descentralizar o julgamento em segunda instância, atual-
mente concentrado, na Capital Federal, nos Conselhos de Contribuintes
e Conselho Superior da Tarifa. Neste último ponto, entretanto, pa-
rece-nos insuficiente o projeto, porquanto limita a alçada das Juntas
de Fazenda a 20.000 cruzeiros, deixando subsistir a competência dos
Conselhos para o recurso das decisões em questões de valor excedente
daquela importância. Nessas condições, a vantagem obtida com o
descongestionamento dos Conselhos é, a nosso ver, destruída pelo in-
conveniente de se dar lugar a divergências de jUl"Ísprudência entre
as Juntas e os Conselhos e entre as Juntas entre si.
Um segundo projeto 25 dispõe sôbre o processo administrativo
para apuração de infrações a leis, a regulamentos fiscais e aplicação de
multas, estabelecendo a responsabilidade dos agentes do fisco pelas
autuações improcedentes. Nada dispõe, entretanto, quanto à organi-
zação dos órgãos administrativos de julgamento. Trata-se, por conse-
guinte, de um projeto que aborda o problema apenas parcialmente,
limitando-se a considerar as normas para o andamento dos processos,
e isso mesmo, aliás, apenas quanto a uma categoria de questões, OU
seja as que envolvam a imposição de penalidades, não abrangendo
as questões sôbre incidência, isenção e restituição de tributos, ou sô-
bre o cálculo do impôsto' devido.
Um terceiro projeto 26 mantém a atual competência para julga-
mento em primeira instância, bem como a atual organização dos
Conselhos de Contribuintes e do Conselho Superior da Tarifa, preo-

de S. Paulo. Note-se. ainda. que em nosso Estado existe neste momento na Assembléia
Legislativa um novo projeto de reforma (Diário Oficial do Estado. 1 de outubro de 1947).
24 Projeto n. ° 574/47. do deputado Antenor Bogéia Diário do Congresso
Nacional, 13 de agôsto de 1947. p. 4622.
25 Projeto n.o 584/47. do deputado Freitas Castro - Diário do Congresso
Nacional, 14 de agôsto de 1947. p. 4682.
26 Projeto n.o 947/47. dos deputados Sousa Leão e outros - Diário do Con-
gresso Nacional, 13 de novembro de 1947, p. 8005.
-9-

cupando-se unicamente com o recurso das decisões não unammes, fa-


voráveis ao contribuinte, proferidas por qualquer dos Conselhos, para
o Ministro da Fazenda. 27 Observando que a concessão unilateral dêsse
recurso, aliás já abandonado no caso da Junta de Ajuste dos Lucros,
a uma só das partes, isto é, à Fazenda, desvirtua o sistema, tornando
ilusórias as garantias que o mesmo oferece ao contribuinte, o projeto
elimina completamente o recurso ao Ministro e o substitui por um re-
curso de revisão para o próprio Conselho funcionando em sessão ple-
nária. Para êste efeito os atuais 1.0 e 2.° Conselhos de Contribuintes
passariam a constituir a La e 2.a Câmaras de um Conselho único, con-
servando as suas atuais competências, mas julgando, em sessão con-
junta, os recursos das decisões proferidas individualmente por cada
uma das Câmaras; igualmente, os recursos das decisões proferidas
pelas atuais La e 2. a Câmaras do Conselho Superior da Tarifa passa-
riam a ser julgados pelas referidas Câmaras em sessão conjunta.
O projeto aumenta, ainda, a duração do mandato dos membros dos
Conselhos de três para seis anos, com renovação bienal pelo têrço.
e dá aos Conselhos competência para decidir por equidade. Pare-
ce-nos que, conquanto seja de fato defeituosa a atual regulamentação
do recurso hierárquico para o Ministro, todavia a solução preconizada
pelo projeto não é a melhor. Com efeito, os atuais 1.0 e 2.° Conselhos
de Contribuintes possuem competência especializada: o 1.0 Conselho
julga as questões sôbre os impostos de vendas e consignações, de renda,
do sêlo, taxa de Educação e Saúde e as questões relativas à fiscaliza-
ção bancária ;28 o 2.° Conselho julga as questões referentes aos outros
impostos, taxas e contribuições internas, bem como as decorrentes
de outras leis e regulamentos do Ministério da Fazenda. 29 Por sua
vez as duas atuais Câmaras do Conselho Superior da Tarifa possuem
competência especializada, cabendo à primeira o julgamento dos re-
cursos sôbre classificação de mercadorias e revisão de despachos ati-
nentes a essa matéria, e à segunda o julgamento dos recursos sôbre
isenção e redução de direitos, armazenagem, contrabando e a apreen-
são de mercadorias, falta de volumes manifestados, avaria, rótulos es-
trangeiros, revisão de despachos referentes a êsses assuntos e qual-
quer outra infração de leis ou regulamentos aduaneiros. 30 Em face
dessas especializações de funções, é bem de ver que não seria reco-
mendável o julgamento por sessões conjuntas preconizado no projeto,
e que se compreenderia se o recurso fôsse limitado a certas questões-
de direito que, por envolverem princípios gerais, transcendessem à
competência especializada de cada uma das Câmaras e fôssem comuns
a tôdas, mas não em se tratando, como no caso, de um simples recurso-
de :revisão, versando portanto a matéria, quer de fato quer de direito,.
Peculiar à competência de cada uma das Câmaras.

27 Sôbre o assunto cf. o n.o 2 supra, à nota 8.


28 Decreto-lei n. U 607, de 10 de agôsto de 1938, art. 1.0, letra "a",
29 Decreto-nei n.o 607 cit., art. 1.0, letra "b".
30 Decreto-lei n.o 607 cit., art. 4.°.
-10-

Além dêsses aspectos que acentuamos mais particularmente os


três projetos examinados incorrem, ao nosso ver, em outros motivos
de censura: todos êles, com efeito, proporcionam soluções apenas
parciais ou limitadas a certos aspectos do problema; dentre os aspec-
tos que deixam de abordar, apontaremos o da definição do caráter de
obrigatoriedade das decisões dos Conselhos para a própria administra-
ção pública; o da definição dos poderes decisórios dos Conselhos, não
só especificamente (p. ex. em matéria de restituições) como generi-
camente, quanto aos métodos de interpretação e aos processos de inte-
gração jurídica a serem adotados; o da competência em matéria de con-
sultas e dos efeitos normativos e liberatórios destas; o, importantís-
simo, dos efeitos da atuação do Poder Judiciário sôbre a competência
e a jurisprudência dos Conselhos, de modo a delimitar claramente os
âmbitos respectivos da instância administrativa e da instância judi-
ciária e evitar situações extremamente confusas que se verificam
atualmente em certos casos; finalmente, considerando a inconveniên-
cia, que apontamos, do terceiro dos projetos examinados, deixam sem
solução satisfatória o problema da definitividade das decisões dos
Conselhos, que, dada a sua capital importância, exige novo estudo,
seja regulando melhor o recurso para o Ministro, seja adotando outra

-
solucão diferente.
Parece lícito afirmar, portanto, que, muito embora cada um dos
três projetos examinados contenha individualmente idéias interessan-
tes e aproveitáveis num trabalho de conjunto, todavia nenhum dêles
proporciona solução satisfatória para o problema a resolver.
5. Falta-nos espaço, no presente trabalho, para um exame mais
detido dos diferentes aspectos que acabamos de enunciar. Pretendemos
fazer êsse exame em uma segunda série destas notas. Desde logo, entre-
tanto, podemos adiantar, à maneira de conclusão, qual nos pareça ser,
em linhas gerais, o tratamento do assunto que seria susceptível de
proporciGnar a melhor solução possível para o problema da justiça
fifiCal, nos têrmos em que se encontra colocada a questão por fôrça
dos princípios adotados pela Constituição de 1946.
Iniciamos o presente trabalho com a indicação sumária dos prin-
cipais motivos que tornam imperativa a solução do problema da justiça
tributária em têrmos que se possam considerar definitivos dentro da
concepção que temos de tal problema. Aquêles motivos poderemos agora
acrescentar mais a seguinte observação: muito embora o Brasil seja
um país de direito escrito ou eodificado, entretanto em matéria fiscal
a cristalização dos princípios fundamentais tem ocorrido muito mais
através da jurisprudência do que propriamente da leL31 Essa situação
peculiar deve ser atribuída, em nossa opinião, à falta de uma sistema-

31 A elaboração do direito tributário entre nós aproxima-se. assim. mais do sistema


anglo-saxão da judge-made law que do sistema dos países. como o Brasil. cujo direito
deriva do direito romano codificado. Nos países anglo-saxões. como é sabido. o que
exerce a função que entre nós tem a lei escrita são as decisões dos tribunais: cf. Rabasa,
El derecho angloameâcano, México. 1944; cf. também a nota 32 mfra.
11-

tização legislativa dos princípios fundamentais do direito tributário,


que faz com que tais princípios, ou sejam deixados inteiramente à
elaboração do intérprete, ou sejam regulados de maneira individual
em cada uma das diversas leis relativas a cada impôsto particular,
dando assim em resultado, em um ou outro caso, a adoção de solu-
ções diferentes ou contraditórias em hipóteses que deveriam ser go-
vernadas por um mesmo princípio.
A codificação do direito tributário parece-nos, assim, o primeiro
e mais importante passo na solução do problema. Pouco adiantará.
-com efeito, aperfeiçoar os atuais órgãos de julgamento, ou mesmo, se
isso fôsse constitucionalmente possível, criar outros com definitividade
de competência, enquanto não lhes sejam fornecidos instrumentos efi-
cientes de trabalho. As críticas, que hoje são feitas à nossa jurispru-
dência tributária, administrativa e mesmo judicial, deveriam com maior
justiça ser endereçadas às nossas leis fiscais, que, pelo seu caráter
pragmático, imediatista ou utilitário, exigem dos tribunais um traba-
lho quase doutrinário de elaboração de conceitos fundamentais que,
por sua própria natureza em nosso sistema constitucional, não lhes
compete. Aos tribunais não cabe elaborar e firmar conceitos doutri-
nários nem ditar princípios gerais, mas, apenas, decidir casos con-
eretos: e porisso os conceitos e princípios gerais, que porventura os
tribunais venham a enunciar em suas decisões, permanecem sempre
restritos ao caso concreto decidido, e não podem exercer a função, que
seria necessária, de normas de aplicação obrigatória em casos seme-
lhantes, ou seja, não podem assumir o caráter de uma codificação das
normas gerais do direito tributário. 32 Por outro lado, forçoso é re-
-conhecer que não seria de todo justo criticar exatamente aquêle caráter
utilitário que apontamos nas nossas leis de impostos, porquanto, em
se tratando de leis especiais aos diferentes tributos, a sua função pode
ser entendida como sendo justamente essa, de lhes regular a aplicação
pela forma que seja mais conveniente ao Tesouro.

32 Sôbre a ausência de caráter normativo das decisõ2s judiciai3. cf. Chiovenda.


Instituições de direito processual civil, trad. bras .. S. Paulo. 1942, vol. I. p. 563; Cou-
ture, Fundamentos do direito processual civil, S. Paulo. 1946. ps. 338 e 354; sôbre tal
Gráter das decisões judiciais no sistema anglo-saxão, a que fizemos referência na nota 31
supra, cf. Gray. The nature and saurces af the latU, N. York. 1938. p. 241 e segs .. Às
decisões dos tribunais administrativos a lei atribui às vêzes caráter normativo (p. ex .
.à Junta de Ajuste dos Lucros em matéria de consulta. decreto 22.637. de 8-11-46.
art. 6.°. § único. e ao Tribunal de Impostos e Taxas de S. Paulo. decreto 10. 197. de
17- 5 - 3 9. art. 189); essa dinrsidade de situações decorre do fato de que as jurisdições
administrativas. sendo parte do próprio poder administrador. estão aptas a formular regras
·de conduta de observância obrigatória por parte das autoridades subordinadas. no inte-
rêsse de assegurar a melhor aplicação da lei e o funcionamento dos serviços administrativos
na conformidade dos princípios científicos e técnicos (Temístocles Cavalcanti. Tratado de
direito administrativo. Rio. 1944. vol. 6. p. 176 e segs.). Entretanto. dada a subor-
·dínação dos próprios tribunais administrativos em sua qualidade de órgãos do Poder Exe-
.cutivo. o caráter normati\'o das suas decisões é precário. estando aquelas sujeitas a serem
reformadas pelo próprio Poder Executivo (Ministro. Secretário. etc.). seja diretamente
em grau de recurso. seja indiretamente por circulares, etc.. Cf. sôbre êste último ponto.
quanto à Junta de Ajuste. o artigo de Tito Resende na Revista Fiscal e de Legislação
da Fazenda, seção Impôsto de Renda. 1947. p. 67 e segs ..
-12 -

Em resumo, não competindo aos tribunais, administrativos oU


judiciários, a elaboração de princípios gerais de direito, nem lhes
sendo possível, em nosso regime jurídico de direito escrito, exercer
eficazmente aquela função (embora de fato a tenham exercido entre
nós, por fôrça das circunstâncias, como já foi notado, contribuindo
notàvelmente para a elaboração sistemática do direito tributário) ~
não sendo, por outro lado, razoável esperar das leis esparsas sôbre
os diferentes tributos a observância rigorosa de princípios sistema-
tizados, os quais, de mais a mais, não estariam fàcilmente acessíveis
ao legislador, dada a reconhecida penúria da elaboração doutrinária
do direito tributário entre nós, a elaboração de um código, que reu-
nisse em forma orgânica os princípios gerais aplicáveis a todos os
tributos, e lhes desse a fixidez da sanção legislativa, parece inegà-
velmente a melhor solução.
A necessidade de um código fiscal para o Brasil não é idéia nova.
Já foi acentuada na vigência da Constituição de 1891, por Serze-
delo Correia, ao ocupar-se de um problema particular, o da deter-
minação das competências impositivas da União, dos Estados e dos
Municípios, ou seja, da regulamentação dos dispositivos constitucio-
nais que regulam a discriminação de rendas,33 e por Amaro Caval-
cânti, a propósito da regulamentação do dispositivo da citada Cons-
tituição que proibia a tributação recíproca das entidades políticas. 34
Mais recentemente, com caráter mais geral, e ao mesmo tempo
com resultados positivos de ordem prática, tivemos, na mesma ordem
de idéias da sistematização de princípios gerais, a promulgação da
lei que unificou em todo o país o regime procesmal da cobrança da
dívida ativa da Fazenda pública. 33 Logo em seguida, as resoluções
aprovadas por duas sucessivas Conferências de Técnicos em Conta-
bilidade Pública e Assuntos Fazendários, relativas à codificação de
normas gerais de caráter orçamentário, financeiro e contabilístico,
receberam sanção lega1. 36 Escrevendo sôbre essas leis de caráter co-
dificador, embora restritas em seu objeto, ilustre magistrado e pu-
blicista levantou a idéia de um código em sentido completo, no qual
se estabelecessem "normas que presidam à criação, lançamento e arre-
cadação dos impostos, que dêem solução aos inúmeros incidentes dos
processos administrativos fiscais e fixem as diretrizes da interpreta-
ção, da irretroatividade, da revogação, da decadência, da prescrição
e da sanção. Evitar-se-á que a jurisprudência invada o terreno do
direito privado, em busca de normas que, analogicamente, são apli-

33 Citado por Veiga Filho. Manual de Ciência das Finanças, 2." ed .. p. 218.
34 Amaro Cavalcanti. Regime Federativo, p. 317. A mesma idéia foi retomada
por Paulo Barbosa de Campos Filho em tese aprovada pelo Congresso Jurídico Nacional
reunido no Rio de Janeiro em 1943.
35 Decreto-lei federal n.o 960. de 17 de dezembro de 1938. conheci.:!a como "lei
dos executivos fiscais".
36 Decreto-lei federal n. o 1.804, de 24 de novembro de 1939: "Aprova normas:
orçamentárias. financeiras e de contabilidade para os Estados e Municípios". e decreto-lei
federal n. o 2.416. de 17 de julho de 1940: "Aprova a codificação das normas finan-
ceiras para os Estados e Municípios".
-13 -

cadas às questões fiscais, cujas soluções exigem, no entanto, o em-


prêgo dos princípios e conceitos gerais do direito público".37 Anterior-
mente a delegação de São Paulo à Primeira Conferência Nacional de
Legislação Tributária, reunida no Rio de Janeiro em 1941, já havia,
jnvocando a experiência verificada pela Segunda Conferência dos
Técnicos em Contabilidade Pública e Assuntos Fazendários, acentuado
a necessidade de concretização das normas legais "de maneira clara,
concisa e estável, de sorte que possam ser fàcilmente compreendidas
e aplicadas pelos contribuintes e agentes fiscais", concluindo por re-
comendar a codificação, afirmando que "quando os tributos estive-
rem codificados e contidos, portanto, nas suas noções e no seu nú-
mero exato, terá desaparecido a mais alentada fonte de erros e de
vícios, que conturba as administrações".38 Pela mesma época, a Admi-
nistração do Estado do Rio Grande do Sul ocupava-se de elaborar,
a título de estudo, para o qual sol1citava a colaboração dos interessa-
dos, um projeto de Código Tributário, que, embora de caráter prin-
cipalmente administrativo e limitado às finanças municip21is, nem
porisso deixa de representar um importante subsídio. 39 Finalmente,
a Carta Econômica de Teresópolis acolheu, entre as suas recomenda-
ções, a da uniformização da legislação fiscal dos Estados e Municípios
e criação de órgãos consultivos do Govêrno, de maneira a se unifor-
mizar a aplicação das leis. 40
Tôda essa inegável e fecunda tendência à codificação, entre nós,
pode aliás ser descrita como um resultado da observação da experiên-
cia estrangeira.
O primeiro. país a cuidar de uma codificação do seu direito tribu-
tário foi a Alemanha: 41 é certo que o código tributário alemão, pro-
mulgado em 1919, foi provocado inicialmente por uma necessidade po-
lítica, de adaptação do sistema fiscal à nova organização do Estado
decorrente da Constituição republicana de Weimar, e que se traduziu
pela criação de um sistema tributário centralizado e autônomo, em
oposição ao primitivo regime, anterior à guerra 1914/1918, em que as
finanças do govêrno central eram meramente parasitárias das finan-
ças dos governos dos diversos Estados que compunham o -Império ale-
mão. 42 Nem porisso, entretanto, deixou o código tributário alemão de
representar um importantíssimo progresso, não só sob o ponto de vista

37 João Martins de Oliveira. Direito Fiscal, Rio. 1943. p. 28. Note-se que o A.
citado acentua o alcance do código como orientador da jurisprudência, na mesma ordem
de idéias em que já tratamos do assunto mais atrás no texto.
38 Subsídios para o melhor aproveitamento dos sistemas tributários dos Estados e
M unicipios, S. Paulo. 1941. ps. 31 e segs ..
39 Estados do Rio Grande do Sul. Secretaria de Estado dos Negócios do Interior.
Diretoria das Prefeituras Mun!cipais. Ante-Projeto de Código Tributário e Fiscal para
os Municíp:os. Ed. oficial. Pôrto Alegre. 1942.
40 Revista Industrial de S. Paulo, ano I. n. o 7. junho de 1945 (separata).
41 Reichsabgabenordnung (Ordenança Tribu(~ria do Reich). Trad. francesa no
BuIletin Statisiique et de UgislJtlon Comparée, ed. oficial. Paris. 1934, L p. 1138, e
lI, p. 1081.
42 Becker, Accentramento e sviluppo dei diritto tributaria redesco, na Rivista di
.diárto finanziarlo e scienza delie finanze, Pádua, 1937, L p. 155.
-14 -

puramente legislativo, como sob o aspecto doutrinário, pelo floresci-


mento, que provocou, dos estudos teóricos e exegéticos de direito tri-
butário, e sob o aspecto jurisprudencial, pela decisiva influência que
exerceu sôbre a qualidade e o teor científico das decisões judiciaisY
Seguiram-se a França, com duas reformas de sentido codifieador.
em 1926 e em 1934, muito embora a orientação adotada tivesse sido
a de codificar as leis esparsas em códigos separados para cada cate-
goria de tributos (códigos dos impostos diretos, código dos impostos
indiretos, código dos direitos aduaneiros, etc.), descurando, de certa
forma, a codificação unitária dos princípios gerais;44 a Inglaterra,
com a constituição, em 1927, de uma comissão cujos trabalhos se pro-
longaram até 1935, e cuja limitação ao impôsto de renda não deve
impressionar, porquanto êsse tributo, dada a sua importância no sis-
tema fiscal inglês, apresenta pràticamente o caráter de um impôsto
único ;45 a Itália, com a promulgação, em 1929, da lei estabelecendo
normas gerais para a repressão da violação das leis financeiras, que
constitui um código de direito tributário penal, iniciativa portanto
apenas parcial, mas cujo prosseguimento foi obstado por circunstân-
cias de natureza política e pela segunda guerra mundial ;46 o México,
através da promulgação em 1936 da Lei de Justiça Fiscal e em 1938-
do Código Fiscal Federal, inspirado nos ensinamentos de Pugliese ;41
a Venezuela, em 1938, com a Lei Orgânica da Fazenda Nacional ;41>
os Estados Unidos, em 1939, com o "InternaI Revenue Code" (Código
de Impostos Internos), que entretanto se limita a consolidar as leis
relativas aos diversos tributos, exceto os direitos aduaneiros, sem fixar
normas de caráter geral. 49
Na Argentina, o primeiro a se manifestar pela necessidade de
uma codificação do direito tributário foi Bielsa, que, admitindo em-
bora a variabilidade de certos aspectos das leis fiscais em função

43 Vanoni, L' esperimza della codificazione tributaria in G~mania, na Ricista in-


ternazionale di scienze sociali, I q 3 7, \'01. 8, fascículo 5. u; Griziotti, artigo Diritto fi-
nanziario, no Nuovo Digesto Italiano, vol. IV, ps. 1058 e segs .. Sob o aspecto relativo
à atuação dos. tribunais, cumpre aliás notar que o código alemão foi promulgado em
seguida à criação do Tribunal Fiscal do Reich (Reichsfinanzhof) em 1918, fazendo assim
parte de um mesmo programa de reformas e obedecendo a uma unidade de conceito.
Muito do progresso científico do direito tributário na Alemanha é justamente atribuido
a Becker, que foi o principal autor do código. Cf. Buhler, L'importanza di Enno
Becker per lo sviluppo dei diritto tributaria tedesco dai 1918, na Rivista di diritto finan-
ziario e scíenza delle fínanze, Padua, 1937, I. p. 155.
44 Allix ~ Piatier, La codifícazione fiscale in Francia, na Rivista di diritto fi-
nanziario e scienza deUe finanze, 1937, I, p. 168.
45 Income Tax Codification Committee Report, Londres 1936 (ed. oficial);
Thompson ~ Jarach, II progetto di codiíicazione deU'imposta sul reddito In Inghiltl'rra.
na Rivista di diritto finanziario e scíenza deUe finanze. 1938, 1. p. 143.
46 Spinelli, Le preleggi penale finanziarie, Padua. 1933 (comentário à lei referida.
no texto).
47 Cortina: Prefácio à trad. castelhana das IslÍtuzioni di diritto finallziario -
diritto tributario de Pugliese. México. 1939; texto do Código em Giuliani Fonrouge, Ante-
proyecto de Código Fiscal, Buenos Aires. 1942. p. 207 e segs ..
48 Texto em Giuliani Fonrouge. Anteproyecto, cit .. p. 313 e segs.
49 Internai Revenue Code (vol. 53 Part I. U. S. Statutes at Large. 76th. Con··
gress. 1st. Session), ed. oficiai. Washington. 1939.
-15 -

das variações das fontes impositivas, afirmou, não obstante, a éxis-


tência de normas de direito tributário que devem ter relativa esta-
bilidade e certeza, porquanto não obedecem a considerações de ordem
puramente oportunística, mas se situam em plano superior, represen-
tando a atuação de princípios constitucionais de justiça, de garantia
da propriedade particular, de igualdade perante a lei, ou do direito
de defesa; essas normas, sustentou o publicista argentino, deveriam
s.er reunidas em uma "lei tributária orgânica", à qual denominaria
"Estatuto do Contribuinte", que seria, assim, "o conjunto de normas
que definissem juridicamente a lei impositiva e o regime jurídico do
impôsto e, além disso, os recursos legais do contribuinte em relação
ao fisco",5o considerando assim, em uma mesma ordem de idéias, como
nós também o sustentamos, o problema da codificação e o da orga-
nização das jurisdições fiscais. Seguiram-se, naquele país, já agora
no terreno das realizações práticas, o projeto elaborado por Giuliani
Fonrouge para o Seminário de Ciências Jurídicas e Sociais da Fa-
culdade de Direito e Ciências Sociais da Universidade de Buenos
Aires,51 obra fundamental não só pela sistematização de princípios
ger~is que contém, como pelos comentários e justificativas do próprio
autor, que acompanham cada artigo, e que valem por um resumo
completo do direito tributário; no terreno legislativo, a lei regulando
o processo de arrecadação dos tributos de competência de Diretoria
Geral do Impôsto sôbre a Renda 52 que, embora de caráter primordial-
mente administrativo, codifica certos princípios gerais, como sejam,
a capacidade passiva tributária, a responsabilidade solidária, a esta-
bilidade e revisão dos lançamentos, a responsabilidade tributária pe-
nal, etc. Mais recentemente, foi adotado pela Província de Buenos
Aires um Código Fiscal,53 a cujo respeito um autorizado comentador
argentino, embora manifestando certas reservas quanto à solução ado-
tada para determinados problemas particulares, reconhece tratar-se
de um indiscutível progresso no sentido da sistematização e ordena-
mento do regime tributário. 54
A idéia da codificação do direito tributário parece, portanto, que
se pode considerar vencedora na doutrina e na legislação estrangeiras,
e reconhecida entre nós como de premente necessidade. Resta, por-
tanto, analisar o escopo e os limites da codificação que melhor corres-
ponderia às condições peculiares da organização jurídica e das con-
veniências práticas em nosso país. ~sse estudo foi feito, em 1946, por

50 Bielsa. Estudios de derecho publico. Buenos Aires. 1932. p. 168.


51 Giuliani Fonrouge. Anteproyecto de Codigo Fiscal. Buenos Aires. 1942. Do
mesmo A. veja-se. sôbre o assunto do presente trabalho. o artigo: Direito financeiro:
Uma nova disciplina jurídica. A. codificação do direito fiscal, na Revista Forense, vol. 88,
página 381.
52 Decreto 14431. de 20 de maio de 1946. Boletim dei Minis.erio de Hacienda
de la Nación. ed. oficial. Buenos Aires. 1946. ano I. n.o 10. p. 822.
53 Província de Buenos Aires: Ministério de Hacienda. Economia y Previsión.
Código Fiscal (Ley 5.246. de 10 de janeiro de 1948). Ed. oficial. La Plata. 1948.
54 Giuliani Fonrouge. La codificación fiscal en la Província de Buenos Aires, na
revista La Ley, tomo 50. suplemento diário. 4 de junho de 1948.
-16 -

um"notável jurisconsulto paulista, sem dúvida o mais indicado, já pela


sua capacidade científica, já pela sua experiência prática, para em-
preendé-Io. 55 Preocupou-se inicialmente êsse trabalho em delimitar o
alcance da codificação, acentuando não só a inconveniência, como a
impossibilidade de um código tributário único, de vez que não temos
um direito tributário nacional, pela simples razão de que, cada qual
n~: sua órbita de competência, tanto a União, como os Estados e os
Munidpios legislam autônomamente sôbre os tributos que lhes são
próprios, dentro das normas traçadas pela discriminação constitucional
de rendas. Adverte, entretanto, contra o extremo oposto, que seria
a multiplicação de códigos tributários estaduais e municipais, não só
em face do número absurdamente elevado a que atingiriam, como
principalmente pela dificuldade de se conseguir a obediência de todos
êles a determinado'\! princípios comuns, fôssem quais fôssem as cau-
telas observadas. Decide-se, assim, o trabalho que estamos exami-
nando por uma solução intermediária, que consistiria, depois de defi-
nidos, através da consulta aos competentes, os princípios comuns, na
elaboracão de uma lei geral, fundamental, que lhes impusesse a obser-
vância ~ que viesse a constituir a "lei orgânica fiscal" de todo o país.
Essa lei estender-se-ia à própria legislação tributária da União, tra-
çando-lhe, também, diretrizes gerais, certas e invariáveis, dentro da.
quais tanto a União, como os Estados e os Municípios continuariam
a legislar sôbre os seus próprios tributos, fazendo-o, porém, cada qual,
com estrita observância daqueles princípios comuns, traçados pela
lei orgânica, e que imprimiriam ao conjunto a desejada uniformidade.
Rebatendo a fácil objeção de que o direito tributário, porque ainda
incipiente em sua estrutura científica, não se presta à codificação,
relembra o autor citado que a lei orgânica proposta teria o caráter
de uma complementação, preenchendo a lacuna que hoje se nota entre
os preceitos, necessàriamente muito gerais, que as Constituições enun-
ciam, e as disposições, também, necessàriamente muito particulari-
zadas, contidas nas diversas leis relativas a cada tributo; represen-
taria, assim, a lei orgânica proposta, a um tempo o natural e lógico
desenvolvimento dos preceitos gerais em que se desdobram as dire-
trizes constitucionais, e o padrão comum por onde se afiram as dis-
posições de caráter pragmático das diversas leis tributárias especiais.
O pensamento expressado pelo autor que acabamos de referir
foi integralmente aceito pela Constituição de 1946. A competência
atribuída à União para legislar sôbre normas gerais de direito finan-
ceiro 5G realiza exatamente o objetivo de prever uma estruturação sis-
temática de normas fundamentais, sem todavia invadir a autonomia
dos governos locais quanto à regulamentação das características pe-
culiares dos tributos de sua competência, o que levou um comentarista
do texto a escrever, exatamente, que a competência da União não é

55 Paulo Barbosa de Campos Filho, Codificação do Direito Tributário Brasileiro


- Revista de Direito Administratico, voI. 3, p. 44, e Reuista Forense, voI. 108, p. 5.
56 Constituição de 1946. art, 5.°, n.o XV. letra "b",
-17 -

ilimitada, não esgota o assunto, e a Constituição impõe que se res-


trinja a normas fundamentais, a diretrizes, a regras gerais. Dei-
xa-se campo aos Estados-membros, o que exclui a codificação, pelo
menos a codificação no sentido material, exaustiva. 57 A Constituinte
de 1946 situou, assim, o problema em seus têrmos exatos, embora
seja de notar que se recusou a reconhecer a autonomia do direito
tributário desmembrado do direito financeiro, não havendo, aliás,
passado sem resistências o próprio reconhecimento do direito finan-
ceiro como autônomo do direito administrativo e, mesmo, livre da
aplicabilidade de princípios de direito privado. 58
Em conclusão, lembraremos, com as palavras de um ilustre fisca-
lista italiano, 59 que a sistematização do direito tributário não deve
ser confundida - como acontece com a totalidade dos chamados
"Códigos" tributários decretados por diversos Estados brasileiros -
com a simples compilação, em um texto único, das leis esparsas sôbre
os diferentes tributos: importa, diz o referido autor, ir mais além,
importa pôr em evidência o pensamento fundamental e as necessi-
dades primeiras que inspiram as várias normas da tributação, im-
porta eliminar tudo quanto esteja em contradição com aquêle pen-
samento e com aquelas necessidades, importa criar o sistema: em
uma palavra há que proceder à codificação. Somente a codificação
pode dar ao contribuinte, à administração, ao juiz, o instrumento que
corresponda plenamente aos reclamos da atividade própria de cada
um dêles. Um pensamento lógicQ unitário deve inspirar todo o sis-
tema, desde a valorização das condições econômicas e políticas que
constituem as suas premissas, e dos princípios básicos técnicos e jurí-
dicos que decorrem necessàriamente de tais premissas, até à atuação
concreta dos mesmos princípios nas últimas particularidades da re-
gulamentação. SOmente assim o complexo dos tributos responderá
às exigências da doutrina e da prática. 60
Em seu estudo, do qual já tão amplamente nos utilizamos,_ afirma
Paulo Barbosa de Campos Filho que o govêrno que cuidasse de expe-
dir o ordenamento tributário básico tal como o idealizava (e tal como
o entendeu a Constituição de 1946) não só prestaria à Nação inesti-
mável serviço, como completaria a obra, que vem sendo realizada, de
revisão dos nossos códigos e das nossas leis gerais mais importantes,
uma das quais, por certo, seria a lei tributária fundamental. Que o
atual Govêrno está consciente dessa verdade, demonstrou-o o Chefe

57 Pontes de Miranda. Comentários à Constituição de 1946, Rio. s/d .. vaI. I. p. 340.


58 Cf. a nota 22 supra.
59 Vanoni. Il problema della codificazione tributaria, na Rivista di diritto finan-
ziario e scienza delle finanze, 1938. I. p. 361. às ps. 380 e 381.
60 Para um estudo histórico e jurídico-filosófico da idéia de código. ver AscareIli,
Origem e desenvolvimento da idéia de código no direito privado, em Direito, vaI. 16,
p. 5. e vaI. 17. p. 5. refundido. com importantes acréscimos. no volume: Problemas
das sociedades anônimas e direito comparado, S. Paulo. 1945. p. 53 e segs.• sob o titulo:
.A idéia de código no direito privado e a tarefa da interpretação. Ainda do mesmo A.,
sôbre o mesmo tema: Origem e desenvolvimento da idéia de código. na revista cit., volu-
me 50, p. 47.
·.2
-18-

do Executivo, em sua Mensagem de 1947 ao Congresso Nacional, ao


acentuar a necessidade e urgência da iniciativa legislativa no sentido
da codificação tributária, afirmando não ser possível lutar contra as
causas e efeitos da crise brasileira sem uma legislação adequada que,
entre outros objetivos, atualize as normas gerais do direito finan-
ceiro. 61
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Nesta primeira sene de notas, certamente prolixas e mal conca-
tenadas, procuramos demonstrar a importância de uma solução defi-
nitiva para o problema da justiça fiscal; historiar e comentar as di-
versas tentativas que se fizeram entre nós nesse sentido; e finalmente
comprovar, através da referência à doutrina e à experiência, nacionais
e estrangeiras, a nossa afirmativa de que a elaboração de uma lei
orgânica de sistematização dos princípios fundamentais básicos do
direito tributário é o primeiro passo indispensável para aquela solu-
ção definitiva do problema relevante da justiça fiscal.

61 Mensagem do Presidente da República ao Congresso Nacional. Diário do Con-


,resso Nacional, 16 de março de 1947. p. 497.

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