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02 - Apontamentos
Direito Penal
Faculdade deDireito
Direito da Universidade de Lisboa
(Universidade de Lisboa)
I. — Introdução
simples como uma forma atenuada daquele, embora possa ser esse o sistema adoptado em
outras legislações.
6
“A genética analisa o planeamento do organismo, planeamento contido numa série de genes transmitidos
pela ascendência para definir a arquitectura do futuro organismo”: François Jacob, O ratinho, as mosca e o
homem, Gradiva, 1997, p. 135. Apontam-se três características importantes do código genético: é específico de
cada indivíduo; é diferente em cada indivíduo; por fim, a informação genética é sempre a mesma em qualquer
célula de cada indivíduo, permitindo a referência a uma “impressão genética” (genetic fingerprint).
7
Ulrich Eisenberg, Beweisrecht der StPO, 4ª ed., 2002, p. 800, recomenda no local do crime o uso de
vestuário que cubra a cabeça e a boca do operador para evitar o risco de contaminação, que de resto pode
ocorrer também durante o transporte e a manipulação no laboratório. Veja-se a propósito o artigo 25º da Lei nº
45/2004, de 19 de Agosto, sobre as perícias médico-legais e forenses.
8
P. Roberts and A. Zuckerman, Criminal evidence, Oxford University Press, 2004, p. 291.
9
Serve igualmente para outros fins. Alain Buquet conta que em 1985 cientistas da Universidade de Leicester,
tendo analisado a informação genética contida na molécula de DNA de um imigrante ilegal ganês e o da mãe,
já residente na Grã-Bretanha, conseguiram o estabelecimento da filiação sem ambiguidades, não obstante
terem sido inconclusivos outros exames anteriores, nomeadamente de sangue. Informa o mesmo autor ter sido
a primeira vez que a Scotland Yard lançou mão das modernas técnicas biológicas para identificar um indivíduo
pelo seu bilhete de identidade genético. No Sri Lanka, depois do tsunami de 26 Dezembro de 2004, que
devastou o sudeste da Ásia, o “bébé nº 81”, que era reclamado por vários casais, foi entregue aos pais, que foi
possível identificar por testes de DNA. Entre nós, é a Lei nº 12/2005, de 26 de Janeiro, que define o conceito
de informação genética e de informação de saúde. A informação genética, segundo o nº 2 do artigo 6º, “pode
ser resultado da realização de testes genéticos por meios de biologia molecular, mas também de testes
citogenéticos, bioquímicos, fisiológicos ou imagiológicos, ou da simples recolha de informação familiar,
registada sob a forma de uma árvore familiar ou outra, cada um dos quais pode, por si só, enunciar o estatuto
genético de uma pessoa e seus familiares”.
por traumatismos, por certas asfixias, por anomalias ligadas à sexualidade, por
envenenamentos e até mesmo questões de identificação de pessoas. A autópsia médico-legal
tem lugar em situações de morte violenta (acidente, suicídio, homicídio) ou de causa
ignorada, salvo se existirem informações clínicas suficientes que associadas aos demais
elementos permitam concluir, com segurança, pela inexistência de suspeita de crime,
admitindo-se, neste caso, a possibilidade de dispensa de autópsia (cf. o artigo 18º, nº 1, da
Lei nº 45/2004, de 19 de Agosto). Mas há mortes cuja causa permanece indeterminada mesmo
depois da autópsia. (10) O caso particular das impressões digitais é essencialmente assunto da
polícia científica. Por serem dotadas de uma individualidade própria, são imutáveis pelo
decurso do tempo e permanecem um elemento de identificação absolutamente significativo.
Os resultados dos exames dactiloscópicos oferecem plena garantia, sem necessidade de
confirmação posterior, ainda que digam respeito a uma só impressão, desde que esta
evidencie a existência de pelo menos 16 ou 17 pontos característicos iguais pela forma e pela
posição. (11) Nestas hipóteses, a prova dos pontos característicos poderá ser produzida por
uma perícia que proceda à recolha das impressões, as identifique e compare. Contudo, a
altíssima credibilidade destes e de outros índices privilegiados, como as impressões genéticas,
diz unicamente respeito à identificação das pessoas e não à prova de que o indivíduo A ou B é
o autor duma infracção. Pode dar-se o caso de que provas absolutamente incontrovertíveis
como essas sejam de classificar como provas indirectas ou mediatas se forem utilizadas para a
demonstração de factos que constituem simples premissas do factum probandum objecto do
processo. Tais provas só podem ser utilizadas depois de interpretadas e nisso têm os peritos
um papel a que se não pode renunciar. De facto, se é uma verdade sem contestação que o
aparecimento no local do crime de substâncias orgânicas ou de impressões pertencentes ao
arguido fornece, desde logo, a prova da presença do mesmo nesse lugar e do contacto dele
com certos objectos, também é verdade que tais provas não serão por si só idóneas para
demonstrar a autoria do crime na falta de outros elementos que confirmem a hipótese
acusatória. Uma impressão digital, se pode ser um indício de presença, não é forçosamente
um indício de culpabilidade. (12)
10
Sobre o exame do cadáver e a autópsia veja-se Carlos Lopes, Guia de perícias médico-legais, 3ª ed., 1958; o
guia, destinado a juristas, da autoria de D. Lecomte-Bonnet et G. F. Nicolas, Guide pratique de thanatologie
médico-légale à l’usage des professions judiciaires, Ed. Le Léopard d’or, 1989; e, em geral, mas igualmente
destinado a profissionais do foro, Jean Planques, La médecine légale judiciaire, Puf, 1967. O Parecer nº
30/2005 da PGR DR II série de 1 de Setembro de 2005 aborda o conceito de autópsia médico-legal e a
condição jurídica do cadáver.
11
O número de pontos de concordância varia de país para país, mas em geral está compreendido entre 12 e
17. O cálculo mostra que para encontrar duas coincidências é preciso examinar 16 impressões, para encontrar
três coincidências é preciso examinar 64 impressões”, e assim por diante, até concluirmos que para encontrar
dezassete coincidências é preciso examinar 17.179.869.184 impressões. Se considerarmos o número de
habitantes da Terra conclui-se que “com 17 pontos idênticos, a identificação de duas impressões não apresenta,
praticamente, nenhuma probabilidade de erro”. Cf. Ed. Locard, A investigação criminal e os métodos
científicos, Coimbra, 1939, p. 137.
12
Sobre tudo isto há uma vasta bibliografia. Cf., ainda assim, Alain Buquet, Manuel de criminalistique
moderne, Puf, 2001, p. 35; Marcel le Clère, Manuel de police technique, 2ª ed., p. 241; Pinto da Costa,
Impressões digitais — contribuição para o seu estudo médico-legal, Porto, 1972; e M-C. Nagouas-Guérin, Le
doute en matière pénale, 2002, p. 236.
artigos 111 e ss. do Código Penal suíço de 1937; os §§ 75 e ss. do Código Penal austríaco de
1974; e os artigos 131º e ss. do Código Penal português de 1982.
O homicídio simples do artigo 131º, como crime de homicídio doloso, punido com a moldura
de 8 a 16 anos, é, como já se acentuou, o tipo fundamental da tutela penal da vida. A ofensa
à integridade física dolosa aparece, de modo necessário, como o estádio intermédio no
cometimento do homicídio. A norma que pune a ofensa à integridade física é afastada pelo
desenvolvimento posterior da lesão da vida.
Objecto da acção é "outra pessoa". A capacidade de vida autónoma do feto não é pressuposto
da qualidade de pessoa. Também um doente terminal é "pessoa".
O desvalor da conduta assenta em qualquer acção dirigida à morte de outra pessoa. O
homicídio é um crime de forma livre, pode ser cometido pela aplicação de uma descarga
eléctrica, com um tiro disparado por uma arma de fogo, por afogamento, por envenenamento,
etc. O desvalor do resultado assenta na morte objectivamente imputável de "outra pessoa".
Vejamos agora, num ligeiro percurso normativo e para se obter ideias mais claras, o
resultado letal, que nem sempre está ligado à execução do homicídio:
- O resultado letal como elemento típico de uma norma incriminadora: o artigo 131º
(homicídio); o artigo 137º (homicídio por negligência).
- O resultado letal como condição objectiva de punibilidade (13): no artigo 151º
(participação em rixa); no artigo 135º, nº 1 (incitamento ou ajuda ao suicídio): o acto
suicida — ou a sua expressão mínima, como simplesmente tentado.
- O resultado letal nos crimes agravados pelo resultado (área da preterintencionalidade): o
artigo 147º (agravação pelo resultado); a morte da vítima em resultado da privação da
liberdade no sequestro (artigo 158º, nº 3); a morte que resultar da exposição ou abandono
(artigo 138º, nºs 1 e 3, alínea b)); o suicídio como resultado da privação da liberdade no
sequestro (artigo 158º, nº 2, alínea d)); o suicídio ou a morte da vítima como resultado
dos comportamentos enumerados no artigo 177º, nº 4.
- A morte de “outra pessoa”, prevista no nº 3 do artigo 210º (roubo).
- No artigo 144º, alínea d), o resultado não é a morte, mas um perigo (concreto) para a
vida: prevê-se a punição de quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa, de forma a
provocar-lhe “perigo para a vida”. No artigo 138º (exposição ou abandono) pune-se a
colocação da vida em perigo (crime de pôr em perigo a vida), por exposição ou abandono.
Veja ainda os artigos 272º, nºs 1, 2 e 3, e 291º, nºs 1, 2 e 3, entre outros, dos mesmos
capítulos (criação de perigo para a vida, etc.).
13
As chamadas condições objectivas de punibilidade são elementos do crime que se situam fora tanto da
ilicitude como da culpa, “não se exigindo, para a sua relevância, que entre elas e o agente exista uma qualquer
conexão psicológico-intelectual, podendo ainda serem fruto do mero acaso” (Taipa de Carvalho). Exemplos:
no artigo 135º, nº 1 (incitamento ou ajuda ao suicídio), é necessário que se verifique a adequada influência,
psíquica ou material, entre a acção de incitamento ou ajuda e o acto suicida, cuja expressão típica se reconduz,
no mínimo, à tentativa, como condição objectiva de punibilidade; o participante em rixa (artigo 151º, nº 1) só
é punido se ocorrer morte ou ofensa corporal grave, funcionando esta condição como limitadora da
punibilidade — e é punido independentemente de ter previsto ou querido que uma pessoa pudesse morrer ou
ser gravemente atingida na sua integridade física. A explicação de alguns autores assenta em que o
comportamento básico incluído na exigência de culpa oferece já um certo grau de merecimento de pena,
porque através dele se desencadeia um perigo. Veja-se ainda a insolvência negligente (artigo 228º), que só é
punida se ocorrer a situação de insolvência e esta vier a ser reconhecida judicialmente. As condições
objectivas de punibilidade caracterizam assim um especial desvalor de resultado que tem de acrescer a um
desvalor de acção já existente para que a conduta surja como punível.
- A morte como acidente: o toureiro colhido na arena (no espectáculo bárbaro e deprimente
que é a "tourada"). O touro não é (!) o “quem” com que se inicia a norma incriminadora.
- Outros casos em que o resultado pode ser a morte: artigos 10º, nº 1; 18º; 22º, nº 2, alínea
b); 24º, nºs 1 e 2; 25º.
14
Nestes termos, Jorge de Figueiredo Dias, Conimbricense I, p. 7. Os escritores de língua alemã, por ex.,
Kienapfel BT I, p. 2, referem-se ao começo das dores de abertura (Beginn der Eröffnungswehen) e à incisão
sobre o útero (Vornahme des Eingriffs), no parto, artificialmente provocado, por cesariana. As dores do parto
são divididas entre as dores de abertura (dores durante o período de abertura) e dores de pressão (dores durante
o período do expulsão).
15
Tutela que se exprime na previsão e sancionamento de condutas dolosas e negligentes. Note-se que os crimes
contra a vida intra-uterina são, ao contrário, do tipo exclusivamente doloso.
16
Claus Roxin, “A protecção da vida humana através do Direito Penal”. Conferência realizada no Congresso
de Direito Penal em Homenagem a Claus Roxin, Rio de Janeiro, 2002.
17
Rui Carlos Pereira, O crime de aborto e a reforma penal, 1995, p. 77.
ferimentos, doença progressiva, etc.) não tenham nenhuma possibilidade de continuar a viver
fora do ventre materno". (18)
Noutras situações, pode acontecer que a conduta tenha sido levada a efeito em momento
anterior ao nascimento, mas os efeitos só são verificáveis já depois do nascimento (condutas
médicas pré-natais). Se o início da produção dos efeitos (como momento decisivo) da
conduta pré-natal se verifica no período em que o nascimento ainda se não iniciou (o médico
provoca um nascimento prematuro que leva à morte do feto) não haverá homicídio (nem
doloso nem negligente) mas só o crime de aborto consumado, se a actuação for
subjectivamente dolosa.
Caso nº 0 A actuação dolosa do médico foi anterior ao início do acto do nascimento (consistiu em fazer
abortar). A criança nasceu, mas sem capacidade de vida autónoma. A intervenção médica para
acabar com a vida do recém-nascido continuou a processar-se, até que a morte efectivamente se
verificou.
Crime de aborto (consumado?; tentado?) em concurso efectivo com crime de homicídio?
Justificar a resposta.
18
Jorge de Figueiredo Dias, Conimbricense I, p. 8, que se refere ainda à perfuração (rara e para casos em que
a cesariana já se não revela viável), a qual "realiza o tipo objectivo do homicídio, não o do aborto".
19
A extracção prematura de órgãos pode configurar um crime de ofensa à integridade física ou mesmo ser
punida como homicídio.
que uma construção para possibilitar transplantes de órgãos”. (20) Para a demonstração da
ausência de fluxo sanguíneo cerebral, os especialistas procedem à constatação clínica e
registo de coma profundo com exames complementares do tipo angiográfico. Em Portugal, as
leis n.ºs 141/99, de 28 de Agosto, e 45/2004, de 19 de Agosto, estabelecem respectivamente
os princípios em que se baseia a verificação da morte, e o regime jurídico das perícias
médico-legais e forenses. (21)
6. A questão do suicídio
Hoje em dia, o direito já não faz distinção entre os mortos. Mas nem sempre foi assim.
Proibia-se o enterramento dos suicidas nos lugares de culto, impunham-se penas aos parentes
mais chegados, confiscavam-se-lhes os bens e levava-se o “criminoso” ao tribunal. Em
França, acabaram-se os delitos dos suicidas em 1791, secularizaram-se os cemitérios em
1881. Actualmente, o suicídio não é um acto ilícito. “Ainda ninguém demonstrou que o dever
constitucional de protecção da vida se imponha ao próprio titular; constata-se uma
“tolerância” pela ordem jurídica relativamente a tal acto desde que efectuado sem
intervenções alheias que contribuam para a sua promoção” (M. M. Valadão e Silveira). O
suicídio consumado não é punível, “desde logo porque as penas são intransmissíveis — artigo
30º, nº 3, da Constituição”. “Apenas se pode discutir se há, na nossa ordem jurídica, um
verdadeiro direito subjectivo ao suicídio, a que corresponderia, no plano passivo, um dever de
respeitar a vontade do suicida, ou se, diferentemente, o suicídio se insere num espaço jurídico
livre de direito, onde a ordem jurídica não entra.” O suicida e o auto-ofendente não se podem
prevalecer da legítima defesa, em geral, contra quem tenta evitar o suicídio ou uma auto-
mutilação grave. Apenas se podem defender, se, naturalmente, a tentativa de evitar o suicídio
ou uma auto-mutilação grave igualar ou superar, na sua eficácia, a intensidade de uma ofensa
corporal perigosa ou com dolo de perigo. Seria dificilmente sustentável, do ponto de vista
ético, que o suicida pudesse lesar a vida de quem tenta evitar a sua morte. ( 22) Cf. o artigo
154º, nº 3, alínea b).
20
Claus Roxin, “A protecção da vida humana através do Direito Penal”. Conferência realizada no dia 7 de
Março de 2002, no encerramento do Congresso de Direito Penal em Homenagem a Claus Roxin, Rio de
Janeiro. Disponível na Internet: <http://www.mundojuridico.adv.br>. Veja-se também Hans Georg Koch, "O
princípio e o termo da vida como problemas do Direito (Penal) da medicina", RPCC 14 (2004), p. 151.
21
Veja-se J. Pinto da Costa, "Verificação da morte", Responsabilidade médica, p. 165. Sobre a verificação da
morte e a Lei nº 141/99, de 28 de Agosto: Luís Carvalho Fernandes, "A definição de morte — transplantes e
outras utilizações do cadáver". Direito e Justiça, 2002, tomo 2.
22
Rui Carlos Pereira, O consumo e o tráfico de droga na lei portuguesa; e Fernanda Palma, A justificação por
legítima defesa como problema de delimitação de direitos, I vol. 1990, p. 557.
a) Não levanta problemas para o direito o verdadeiro auxílio, aquele que não conduz ao
encurtamento da vida (por ex., a ministração de medicamentos para alívio das dores) e que,
por isso mesmo, não integra os momentos objectivos do tipo de ilícito de homicídio.
Mas já levanta problemas a eutanásia que envolve o encurtamento do período natural da
vida.
b) A eutanásia activa, por acção, isto é: como ajuda activa à morte, portanto intencional e
com encurtamento activo da vida, é proibida. A eutanásia "homicida" activa, que abrange
aqueles casos em que o autor (geralmente um médico, que provoca a morte —injecção letal
— ou apressa o momento da morte) é determinado pelo exclusivo propósito de poupar o
paciente ao sofrimento físico cai na previsão do homicídio (eventualmente, homicídio a
pedido da vítima).
Deve atender-se a que "sem uma intervenção legislativa" (Figueiredo Dias) torna-se extremamente difícil
alcançar a impunidade dos casos de mercykilling (por ex., a falada injecção letal). Não se descortina qualquer
causa de justificação, sendo de rejeitar apoios nas teorias do conflito de deveres ou da ponderação de bens que
conduzam a um estado de necessidade justificante. Para situações extremas (doentes terminais sujeitos a
sofrimentos cruelmente insuportáveis), o razoável será a dispensa de pena por via do estado de necessidade
desculpante (artigo 35º, nº 2). (23) O chamado "modelo holandês" é o do reconhecimento da ajuda activa à
morte quando exista desejo expresso de um doente grave. A forma como a eutanásia é praticada na Holanda
(24) influenciou notavelmente o posterior desenvolvimento do debate na Europa, sem que isso signifique que
idênticas soluções tenham sido adoptadas.
c) Por constituir uma autêntica "Früheuthanasie", não pode deixar de se referir aqui a hipótese
de deixar morrer um recém-nascido: sendo o comportamento doloso é de crime de homicídio
(pode ser até um infanticídio, da responsabilidade da mãe) que se trata, mesmo em casos de
malformação. Ninguém tem o direito de matar uma criança, embora se apontem limites ao
dever de tratar recém-nascidos sem previsível capacidade de sobrevivência. Cf., em todo o
caso, esta realidade com a não punibilidade da interrupção voluntária da gravidez efectuada
por médico, nas situações descritas no artigo 142º, nomeadamente havendo seguros motivos
para prever que o nascituro virá a sofrer, de forma incurável, de doença grave ou
malformação congénita.
d) Ao contrário do que se pensava anos atrás, a doutrina tende actualmente a atribuir a
primazia à vontade do paciente relativamente ao dever de preservação da vida. (25)
A eutanásia passiva tem como pano de fundo os deveres de garante do médico
(Fürsorgepflicht), de salvaguarda da vida e da integridade física do paciente: artigo 10º. O
médico viola eventualmente os deveres de garante se se abstém de tomar as medidas ou de
fornecer a medicação adequada a prolongar a vida do doente. ( 26) Cabe-lhe no entanto
respeitar a decisão do paciente, tomada livremente depois de informado, de desistir ou de não
ser submetido a terapia intensiva e de morrer de morte natural. Não há o dever de prolongar a
vida de um moribundo a qualquer preço. Ao médico caberá, isso sim, a obrigação de prestar
auxílio na morte (por ex., ministrando medicação para alivio das dores).
23
Sobre tudo isto, Jorge de Figueiredo Dias, Conimbricense I, p. 14 e s.
24
Para quem tiver interesse em ir à lei holandesa: Cleiren / Nijboer, Strafrecht, 3ª ed., 1997, anotação ao Art.
293 (Levensberoving op verzoek / euthanasie), p. 871 ss. Veja-se ainda Peter J. P. Tak, RPCC 4 (1994), p. 135.
25
Numa decisão muito conhecida (caso Witting, de 1984), o Tribunal Federal absolveu o médico que se
limitou a ficar sentado à beira da cama da desesperada viúva, de 76 anos, vítima de uma sobredose, mas cujo
coração ainda batia. Isso em nome do respeito pela vontade suicida da doente, expresso em escrito dirigido ao
médico, e da preferência pela possibilidade de uma morte digna e livre de dores perante a eventualidade de um
período de vida curto, na perspectiva do pior sofrimento.
26
José Hurtado Pozo, Droit Penal, partir spéciale I, 3ª ed., p. 18.
10
Se o paciente recusa ser tratado, deverá dar-se relevo a essa vontade que, sendo pessoal e
conscientemente formulada, há-de ser igualmente marcada pelas suas características sérias e
livres. Se o médico respeita a vontade do paciente que se opõe ao tratamento ou exige a
interrupção do já iniciado, o médico o que faz é não praticar uma intervenção ou tratamento
médico-cirúrgico arbitrário (artigo 156º), pelo que não será responsabilizado por comissão
por omissão, uma vez que a oposição do paciente faz cessar o dever de garante do médico e,
com ele, a sua obrigação de tratar. (27)
Se, ao contrário, o médico, fazendo descaso da vontade do seu paciente, prosseguir a
intervenção (mantendo, por ex., o sistema de reanimação que o doente proibiu ou recusou)
compromete-se com a tipicidade do artigo 156º, que prevê a intervenção médica arbitrária.
(28)
Em casos em que o paciente, porventura em coma, não tem condições de se manifestar, está
indicado recorrer à vontade presumida. Os índices de que se pode lançar mão são, a título de
exemplo, certas conversas ou afirmações anteriores ou determinadas referências escritas. Mas
não só: deve atender-se às convicções religiosas, aos valores pessoais e à capacidade de
sofrimento de cada um. (29)
Tem-se entendido que não existe o dever de continuar a ventilação artificial de um doente
terminal se, no termo de uma doença prolongada e incurável, surgir incapacidade permanente
de comunicação e o tratamento se revelar simplesmente um prolongamento da morte e não
um prolongamento da vida. (30) O desfecho pode aliás considerar-se seguro com as indicações
eventualmente deixadas no chamado "testamento do paciente". (31)
Escreve Helena Morão, em jeito de resumo, que "à luz dos princípios conformadores da
Constituição Penal do sistema jurídico português, a eutanásia passiva consentida deve ser
considerada atípica em face dos tipos penais de homicídio incriminados no Código Penal".
(32) A vontade do paciente põe limites à responsabilização penal do médico e ao seu dever de
garante, o mesmo é dizer que lhe não compete um dever de garantia absoluto. Manter
artificialmente um doente vivo contra a sua vontade, depois de informado pelo médico de
"maneira completa e exacta", constituirá um atentado à sua liberdade como pessoa e uma
ofensa à dignidade do paciente.
c) Nos chamados casos de eutanásia activa "indirecta" o médico utiliza meios destinados a
poupar o moribundo a dores e sofrimentos, sendo previsível "um encurtamento eventual e
27
Além do Conimbricense I, cf. a exposição de Helena Morão, RPCC 15 (2005), p. 53).
28
Se o doente recusa ou proíbe o prosseguimento da intervenção médica, solicitação que o médico não atende,
e manda o doente para os cuidados intensivos, mantendo-o ligado à máquina de manutenção da vida, entra-se
no âmbito da intervenção médica arbitrária (artigo 156º). A boa doutrina encaminha-se para a justificação da
conduta por aplicação analógica do disposto no artigo 154º, nº 3, alínea b), norma com características de
autorização legal específica.
29
Releva a vontade do paciente, nos termos expostos, não a dos parentes ou pessoas mais próximas.
30
Veja-se Hans Georg Koch. RPCC 14 (2004), p. 164.
31
O “testamento de paciente” consiste em declarações escritas em que o paciente declara, para a hipótese de
vir a ser encontrado inconsciente, que se opõe a qualquer tratamento indicado para salvar a vida. O
“testamento de vida” é uma disposição de vontade, feita por escrito, solicitando a morte, por ex., na previsão
de determinado acontecimento.
32
H. Morão a propósito da atipicidade da eutanásia passiva consentida diz que ela representa uma excepção ao
princípio da indisponibilidade do bem jurídico vida em face de condutas (activas ou omissivas) de terceiros,
independentemente do consentimento do seu titular, fundada nos valores fundamentais da autonomia e da
dignidade da pessoa humana.
11
não muito sensível do período de vida como consequência lateral indesejada" (Figueiredo
Dias). (33) Preenche-se eventualmente o tipo objectivo de ilícito do homicídio, mas será caso
de justificar a conduta, porventura através da ideia do risco permitido (34): a medicação
prescrita vai ao encontro do desejo expresso ou presumível do paciente que quer o alivio das
dores e do sofrimento: o médico actua consciente dos efeitos secundários da medicação (que
podem apressar a morte), mas põe na sua administração o cuidado devido de acordo com as
circunstâncias concretas. A vontade presumível deve ser entendida como aceitando o risco de
o alivio das dores poder significar um encurtamento da vida.
1. Elementos típicos
a) O tipo objectivo consiste em matar outra pessoa, com o que se manifesta a importância
daqueles dois passos, já abordados, que têm a ver com o início da vida e com o termo da vida.
A morte dá-se com a lesão irreversível do tronco cerebral. Sobre o tema, ver o artigo 12º, nº
1, da Lei nº 12/93, de 22 de Abril. A questão prende-se especialmente com a colheita de
órgãos ou tecidos e com o Estatuto do não dador (Decreto-Lei nº 244/94, de 26 de Setembro),
uma vez que em termos médicos será decisivo escolher, para a recolha, o momento que
medeia entre a morte cardíaca e a morte cerebral. (35) (36)
33
Fala-se mais exactamente de eutanásia indirecta nos casos, cada vez mais frequentes, em que o necessário
recurso a doses cada vez maiores de analgésicos pode redundar num encurtamento da fase terminal da vida do
paciente, dando origem a um círculo vicioso entre a acostumação e a intensificação das doses, em termos de
não poder excluir-se a provocação, como efeito secundário, de lesões tóxicas. São práticas reconhecidas em
geral como lícitas (Costa Andrade, Consentimento e acordo, p. 411).
34
Há quem adiante outras soluções, ainda que se reconheça a dificuldade de afastar o dolo eventual homicida
(Küpper BT I, p. 7). A doutrina alemã parece apontar maioritariamente para a solução do estado de necessidade
justificante (§ 34), ponderando a maior valia de um dos interesses opostos. O interesse no alívio de dores
insuportáveis ultrapassa o risco de um ligeiro encurtamento da vida (Hirsch, in Lackner Festschrift, 1987, p.
609). O médico, que tem a obrigação de preservar a vida do paciente (Lebenshaltungspflicht) tem igualmente o
dever de minorar os sofrimentos físicos e psíquicos do mesmo paciente (Pflicht zur Leidensminderung): Arzt,
JR 1986, p. 312.
35
A merecerem considerações algo diferentes são os casos de anencefalias (monstruosidade que consiste na
falta de cérebro) de recém-nascidos.
36
Cadáver, despojos, decomposição, ossadas. Quanto ao cadáver —quer dizer: o corpo de uma pessoa morta
ou de um nascido morto, de que podem sobrar apenas as cinzas, havendo cremação— e às consequentes
referências penais, cf. Carvalho Fernandes, “Cadáver”, Polis-enciclopédia, tomo I; e "A definição de morte —
transplantes e outras utilizações do cadáver", Direito e Justiça, p. 38. O artigo 254º prevê a profanação de
cadáver ou de lugar fúnebre. O “descanso” e a lembrança dos mortos são praticamente as últimas coisas com
algum significado religioso que o Direito Penal ainda protege. Cadáver, enquanto objecto do facto tipificado
na al. a) do n.º 1 do artigo 254.º, é o corpo de uma pessoa falecida, enquanto se possa dizer que ele representa
12
b) O tipo subjectivo exige o dolo em qualquer das suas formas. Uma vez que o dolo
homicida, seja na forma de dolo directo, necessário ou eventual, importa a prova de um
elemento do foro íntimo do agente, essa descoberta só é alcançável através de dados
exteriores, designadamente:
— a violência da agressão;
— a natureza da arma utilizada;
— a parte do corpo da vítima atingida;
— a personalidade do agressor;
— a motivação do crime,
assim se chegando à verdade prático-jurídica que sirva de suporte à decisão (acórdão do STJ
de 12 de Novembro de 1986, BMJ 361, p. 244). (37)
O juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre
apreciação do julgador, diz o artigo 163º — sempre que o julgador divergir do juízo contido
no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a discordância, não o fazendo, viola a
norma, com a consequente anulação do julgamento. A justificação pode resumir-se no
“scientifica scientifice tratanda” (o que é científico deve ser cientificamente tratado: a solução
encontra-se pericialmente). Apresentado o laudo pericial com as conclusões científicas ou
técnicas, o juiz fica-lhes vinculado, sem espaço para a formação de uma convicção própria, a
menos que veja razão para divergir dos peritos.
Mas o juízo sobre a “intenção de matar” não é um juízo técnico, científico ou artístico, nem
tão pouco um juízo de técnica médica. A presunção de intenção de matar é apenas um juízo
de probabilidade sobre aquela intenção, pelo que não se lhe aplica o disposto no artigo 163º
do CPP (acórdão do STJ de 3 de Julho de 1996, processo nº 8/96).
O dolo directo (nº 1 do artigo 14º) não é indispensável à condenação pela autoria do crime do
artigo 131º, bastando o eventual previsto no nº 3 do mesmo artigo 14º. Deste modo, ao
desfechar uma espingarda, a cerca de 1,35 metros de distância, sobre a vítima, embora sem
intenção de lhe causar a morte, o réu comete o crime do artigo 131°, com dolo eventual, por,
ao fazer o disparo, ter previsto a possibilidade de atingir aquela e de a matar e, não obstante
isso, não ter deixado de praticar a acção, por lhe ser indiferente o resultado previsto e com
este se ter conformado (acórdão do STJ, de 12 de Dezembro de 1984, BMJ 342, p. 227).
Configura uma situação de dolo eventual, susceptível de conduzir à condenação do agente
como cúmplice de homicídio, a conduta de quem, conhecedor de que um terceiro já cometeu
crimes graves de homicídio e de que o mesmo se encontra em cumprimento da respectiva
pena de prisão, lhe fornece uma arma de fogo para lhe possibilitar a fuga da cadeia, se o
recluso, na fuga, usar tal arma e matar pessoa encarregada da sua vigilância, por, em tal caso,
essa mesma pessoa - portanto quando não se tenha verificado o processo total de decomposição ou quando não
se tenha quebrado, por uma qualquer razão, a conexão simbólica entre os despojos e a pessoa falecida; o
cadáver tem de ser uma espécie de representação do corpo — diz-se no acórdão do STJ de 21 de Junho de
2006, proc. nº 06P1913. Veja-se ainda o artigo 2º, alínea i), do Decreto-Lei nº 411/98, de 30 de Dezembro.
Após a decomposição, ficam as ossadas.
37
A actuação do agente que, utilizando um x-acto com lâmina de 9 cm, desfere alguns golpes superficiais na
face e um golpe no flanco esquerdo do abdómen do ofendido (sem penetração na cavidade abdominal),
provocando-lhe lesões que determinaram 10 dias de doença, com incapacidade para o trabalho, tendo tal
ocorrido quando já estava em vias de pacificação um confronto físico entre um amigo seu e o ofendido, não
permite inferir, sem margens para dúvidas, a intenção de matar (acórdão da Relação do Porto de 28 de Março
de 2007, proc. nº 0616808).
13
o referido agente ter de prever como possível o resultado morte de outrem e não se abster da
sua referida conduta (acórdão da Relação de Évora de 20 de Janeiro de 1987, CJ 1987, tomo
1, p. 321). O Código encerra uma terminante opção normativa, ao erigir em padrão decisivo
da distinção, nos artigos 14º, nº 3 e 15º, alínea b), o critério da conformação ou não
conformação do agente com o resultado típico por aquele previsto como possível. Para se
considerar existente essa conformação, torna-se necessário que, para além da previsão do
resultado como possível, o agente tome a sério a possibilidade de violação dos bens jurídicos
respectivos e, não obstante isso, se decida pela execução do facto. Provando-se que o réu
representou a morte da vítima como consequência possível dos disparos que fez, e mesmo
assim disparou, conformando-se com o resultado representado e a que se mostrou indiferente,
não pode duvidar-se de que o réu agiu com dolo eventual e não apenas com negligência
(acórdão do STJ de 18 de Junho de 1986, BMJ 358, p. 248).
c) Admite-se sem contestação relevante a eventualidade do homicídio por omissão (comissão
por omissão; omissão imprópria). É certo que na PE, os desenhos típicos, tirando um ou outro
caso, descrevem condutas activas, como no artigo 131º, aplicável a quem dolosamente “matar
outra pessoa”. Mas tanto mata aquele que abate a tiros um vizinho por questões de águas
como o que consciente e voluntariamente deixa morrer de fome a velhinha sua mãe, com
quem vivia desde sempre. A conduta do que mata o vizinho (por acção) entra directamente no
artigo 131º, mas a daquele que dolosamente deixa a mãe morrer de fome, nada fazendo para
impedir tal resultado, dificilmente se torna inteligível sem uma norma que estabeleça o
correspondente dever de agir, alargando o âmbito de punibilidade da previsão do homicídio.
A diferença está em que o dever de evitar que a senhora morra radica, não numa qualquer
pessoa, mas naquele seu filho, ou seja: nas descritas circunstâncias, o indivíduo sobre quem
recai um dever jurídico que pessoalmente o obriga a evitar esse resultado. Esta posição de
garantia é por assim dizer o factor de legitimação da equivalência da omissão à acção e é
afirmada em norma da PG, o artigo 10º, que, se por um lado alarga as margens de
punibilidade, por outro faculta “uma razão de ser para que um non facere possa merecer o
mesmo desvalor, quer de omissão, quer de resultado, que o próprio facere” (Prof. Faria Costa,
Omissão).
Nesta matéria, um pressuposto relevante reside no estado de perigo em que se encontra o bem
jurídico vida. Se um processo causal se desencadeou e ninguém intervém activamente para o
interromper, a evolução da situação pode conduzir à lesão do bem jurídico ameaçado, se for o
caso pode conduzir à morte da vítima.
Exige-se, no entanto, que o omitente tenha a possibilidade de evitar o resultado. Se ao sujeito
falta a capacidade de intervir, não omite a evitação do resultado. A mais disso, deve apurar-se
a causalidade da omissão, a qual existirá se, com a execução da acção pelo omitente, tivesse
sido possível evitar o resultado.
Do lado subjectivo, o dolo deve abranger todos os elementos objectivos do ilícito, por ex., o
omitente deve conhecer os elementos fácticos donde deriva a sua posição de garante: o
marido deve saber que a pessoa que caiu à água e está prestes a afogar-se é a sua mulher, ou o
seu filho, etc.
Caso nº 00 Querendo castigar a neta de dois anos, a avó encheu a banheira de água a ferver e mergulhou nela
a criança que, como era previsível, sofreu extensas queimaduras pelo corpo. A avó limitou-se a
deixar a criança na cama, untando as partes atingidas com umas pomadas, e assim foram passando
os dias, até que se tornou evidente que a criança, sem os convenientes cuidados médicos e
hospitalares, acabaria por não sobreviver. Apesar disso, a avó nada fez, deixando que as coisas
seguissem o seu rumo. A criança, infelizmente, também só pôde contar com a indiferença do pai,
que a visitou por duas vezes, e que de tudo se apercebeu, inclusivamente do seu fim próximo.
Acontece que nem a avó nem o pai da criança tinham qualquer dificuldade em socorrer a menina,
14
por haver perto diversos estabelecimentos de saúde, alcançáveis em tempo útil. Se um e outro, ou
qualquer deles, assim tivessem procedido, a criança tinha-se salvo, esclareceram os médicos na
autópsia. No entanto, acabou por morrer.
A vida da criança ficou em perigo quando (sem dolo homicida) foi mergulhada na água a
ferver. Os lenitivos da avó (e, naturalmente, a indiferença do pai) não interromperam o
processo causal assim iniciado, apesar de se ter tornado claro que a evolução da situação
levaria à morte da criança e de ambos estarem em condições de impedirem que isso viesse a
acontecer.
A acção devida e omitida teria certamente evitado o resultado, não obstante as dificuldades
inerentes à causalidade omissiva, formulada em termos de probabilidade muito elevada, uma
probabilidade a raiar a certeza, de modo que não subsistam dúvidas suficientemente
relevantes para impedir a condenação.
A morte da criança explica-se causalmente pela omissão da avó e do pai, que, dolosamente,
com conhecimento das circunstâncias inerentes, deixaram andar as coisas até que a morte
chegou.
Sobre ambos incidia um dever especial (dever pessoal, como diz a lei: artigo 10º, nº 2) de
evitar a morte da criança. Em geral, liga-se o dever de garantia à proximidade do agente com
certos bens jurídicos e determinadas fontes de perigo, antes que directamente à lei, ao
contrato e à ingerência, concepção que tem a seu favor o advérbio “pessoalmente” do nº 2 do
artigo 10º (Figueiredo Dias) (38). A avó, que ilicitamente criara o perigo (ingerência), tinha o
dever de impedir que este viesse a converter-se em lesão da vida. De qualquer forma, os laços
familiares impõem deveres de garantia, em termos de explicarem também a responsabilidade
criminal do pai. Cada um deles é autor (não há co-autoria) dum crime de homicídio por
omissão (imprópria): artigos 10º e 131º, sem cuidar agora da existência de circunstâncias
qualificativas.
2. Exemplos práticos
O homicídio “simples” é o tipo fundamental da tutela penal da vida. Pode ser de comissão por
acção (artigo 131º) ou de comissão por omissão (artigos 10º e 131º). Casos há que integram
um crime de homicídio simples na forma tentada (artigos 22º, 23º, nº 2, e 131º). Outros
desenham-se em co-autoria material (artigos 14º, 26º e 131º). A justificação pode advir da
legítima defesa (artigo 32º), devendo conceder-se-lhe uma especial atenção.
No artigo 132º prevê-se o homicídio qualificado. No artigo 133º o homicídio é o privilegiado,
não corresponde portanto a um tipo de desculpa. O artigo 35º (estado de necessidade
desculpante é que contém elementos que, convergindo na situação concreta, levam à
desculpação; igualmente podem levar à desculpação certos casos de excesso de legítima
defesa (artigo 33º, nº 2): no artigo 33º enquadram-se casos de excesso de legítima defesa não
punível (excesso asténico e não censurável) e de excesso de legítima defesa punível.
Há também situações em que o agente se encontra em situação próxima da incapacidade
acidental. É no artigo 20º, nºs 1 e 2, que se contemplam os pressupostos da inimputabilidade.
38
Para o Professor Figueiredo Dias, o dever de garantia não resulta dos indicados fundamentos positivos (lei,
contrato e ingerência), mas sim de "uma valoração ético-social autónoma, completadora do tipo, através da
qual a omissão vem fundamentalmente a equiparar-se à acção na situação concreta, por virtude das exigências
de solidarismo do homem para com os outros homens dentro da comunidade. Decisiva é uma relação fáctica
de proximidade (digamos existencial) entre o omitente e determinados bens jurídicos que ele tem o dever
pessoal de proteger, ou entre o omitente e determinadas fontes de perigo por cujo controlo é pessoalmente
responsável, alargando-se assim o catálogo das situações em que o dever de garantia se afirma”.
15
16
lesões e a morte; não obstante isso, não se absteve de espetar a faca no B, por lhe ser indiferente o
resultado previsto e com este se ter conformado.
Uma vez que A espetou uma navalha no abdómen de B (“outra pessoa”) com dolo homicida
(ainda que eventual), fica desde logo comprometido com a tipicidade do artigo 131º. Todavia,
o B não morreu (B continua vivo), pelo que o crime não passa da tentativa (artigos 22º e 23º,
nº 2). Não há qualquer causa de justificação, nomeadamente, não se verifica uma situação de
legítima defesa: como se decidiu no acórdão do STJ de 19 de Janeiro de 1999 BMJ 483, p.
57, o A, ao agredir com a navalha o B, não estava já perante uma agressão ilícita e actual
(artigo 32º). Também não agiu com intenção de se defender, mas, como igualmente se
provou, com o único intuito de afastar de si o B. Não ocorrendo os pressupostos da legítima
defesa, não se verifica excesso de legítima defesa.
Qual a moldura penal aplicável a um caso destes? É a de 1 ano, 7 meses e 6 dias no limite mínimo e de 12
anos e 8 meses no limite máximo (artigos 131ª, 22º, 23º, nº 2, e 73º, nº 1, alíneas a) e b)). É a moldura
aplicável ao crime consumado (artigo 131ª: pena de prisão de 8 a 16 anos) especialmente atenuada (artigo 23º,
nº 2), ou seja [artigo 73º, nº 1, alíneas a) e b)], 1/5 de 8 anos (=1 ano 7 meses e 6 dias) a 16 anos-1/3 (=12 anos
e 8 meses).
Caso nº 3 Dolo eventual e tentativa acabada: “homicídio frustrado”. Movida por violento ciúme, e após
conhecimento da infidelidade dele, a A disparou com uma carabina sobre o companheiro,
atingindo-o no peito. Agiu com dolo eventual relativamente à morte deste, que não ocorreu.
Para o acórdão do STJ de 8 de Março de 2006, no proc. nº 06P269, sendo eventual o dolo do
homicídio, levantava-se a debatida questão da punibilidade da tentativa, tendo-se considerado
o seguinte: “cremos nós que as dificuldades que se possam levantar, relativamente à
punibilidade da tentativa, se situam no domínio da intenção relativamente aos casos de
tentativa inacabada, para usarmos a linguagem de Roxin (Problemas Fundamentais de
Direito Penal, p. 302). Nestes casos, o conformar-se com o resultado próprio do dolo
eventual pode tornar-se algo discutível porque não se chegou ao momento em que poderia ter
lugar a produção desse resultado. Assim, no exemplo deste autor (ob. cit. p. 298 ), o agente
puxou da pistola para ameaçar o padrasto, contando com a possibilidade de disparar sobre a
vítima e, neste caso aceitava a consequência da morte. O tribunal alemão rejeitou - com
aplauso geral - a resolução do facto e, consequentemente, a tentativa punível de homicídio.
Mas, no nosso caso, a figura que se nos depara é a da tentativa acabada, porque a arguida
disparou mesmo e até atingiu o antagonista. Ou seja, para usarmos as palavras ainda deste
autor (p. 323), ela desafectou "da sua esfera de domínio o acontecimento que, de acordo com
o plano deverá prosseguir até ao resultado." Nestes casos, a conformação com o resultado,
própria do dolo eventual, não foi truncada. A nível subjectivo ficou completa, falhando só a
verificação objectiva desse mesmo resultado, mas esta é estranha ao dolo. Aliás, se
abandonarmos a terminologia de Roxin e nos lembramos da do Código Penal de oitocentos,
afastamos a ideia de tentativa e entramos no domínio do que, então, se chamava "homicídio
frustrado" (art. 10.º). A respeito do qual não se levantava a mínima dúvida sobre o
acolhimento da figura do dolo eventual”.
Caso nº 4 Homicídio. Co-autoria material. Acordo tácito. Suficiência (ou insuficiência) da consciência
de colaboração? O I é pai do C. Chegados ambos à praça da localidade ali encontraram A e a sua
companheira M. I fez estacar o carro e do interior do mesmo saiu o C, munido de uma espingarda
municiada com 3 cartuchos. De imediato, o C efectuou um disparo na direcção do A, que o atingiu
na parte lateral esquerda do abdómen. Surpreendidos e assustados com este comportamento do C,
o A e a M dirigiram-se para a porta oposta à do condutor da carrinha em que se deslocavam para
nela se protegerem e abandonarem o local. Estando essa porta aberta, com o A e a M no interior
da carrinha, o C posicionou-se em frente da carrinha e a escassos metros efectuou novo disparo na
direcção do A, que acertou no canto superior direito do pára-brisas, perfurando-o. A cabeça do A
encontrava-se muito próximo deste local. O A e a M começaram então a correr em direcção do
café das imediações para se protegerem. O A apercebeu-se de que o C e o I o queriam matar.
17
Nesta ocasião, o I tirou a arma das mãos do C, seu filho e, a uma distância de cerca de 4 ou 5 m
do A, efectuou um disparo na direcção deste. Este disparo atingiu o A na cabeça e provocou que o
mesmo caísse no chão. Em consequência deste disparo do I, sofreu o A destruição da abóbada
craniana na metade posterior e outras fracturas que foram causa directa e necessária da morte. Ao
agirem da forma descrita, quiseram o C e o I tirar a vida ao A.
Segundo o acórdão do STJ de 9 de Fevereiro de 2000, BMJ 494, p. 106, C e I praticaram em
co-autoria um crime de homicídio simples do artigo 131º, na medida em que mataram A a
tiro, actuando com dolo homicida. Ainda assim, suscitaram-se algumas questões no que
respeita à co-autoria. Contra o A foram disparados 3 tiros, os dois primeiros pelo C. O último,
devido ao disparo do I, foi o que tirou a vida à vítima, esfacelando-lhe a cabeça. Tanto C
como I actuaram com intenção homicida. Segundo o artigo 26.° do Código Penal, é punível
como autor quem executar o facto, por si mesmo ou por intermédio de outrem, ou tomar
parte directa na sua execução por acordo ou juntamente com outro ou outros, e ainda quem,
dolosamente, determinar outra pessoa à prática do facto, desde que haja execução ou começo
de execução. A decisão conjunta, visando a obtenção do resultado típico, pressupõe um
acordo que pode ser tácito, mas que para alguns deverá ser necessariamente prévio [opinião
discutível para quem admita o acordo sucessivo]. Pode aliás bastar-se com a existência da
consciência e vontade de colaboração dos vários agentes na realização de determinado tipo
legal de crime. As circunstâncias em que os arguidos actuaram, inclusivamente nos momentos
que antecederam o crime, podem ser indício suficiente, segundo as regras da experiência
comum, desse acordo tácito. Já no que toca à execução, não é indispensável que cada um
deles intervenha em todos os actos ou tarefas tendentes ao resultado final, basta que a
actuação de cada um, embora parcial, se integre no todo e conduza à produção do resultado.
(Cf., por ex., o acórdão do STJ de 22 de Fevereiro de 1995, BMJ 444, p. 209; CJ, ano III
(1995), p. 221; e o acórdão do STJ de 18 de Março de 1993, CJ 1993, p. 195).
O acórdão cita Jescheck, que esclarece: “O acordo pode também produzir-se [...] tacitamente ou mediante
actos concludentes”— e conclui que as condutas de C e I foram postas em conjunto para alcançarem o
resultado típico, a morte do A, o que efectivamente foi conseguido.
Caso nº 5 Homicídio. Criação propositada da aparência de uma situação de legítima defesa. Conduta
determinada por provocação injusta da vítima. Homicídio com atenuação especial da pena
(artigos 72º, nºs 1 e 2, b), 73º, nº 1, a) e b), e 131º). Num café duma vila beirã, houve uma
escaramuça inicial entre A e B, provocada por este: logo após a entrada do A no café, o B insistiu
em humilhar e agredir o seu antagonista, dizendo-lhe, inclusivamente, “Ah, ladrão, que te hei-de
matar”, ao que o outro respondeu: “Se queres matar-me, mata-me”. Pouco depois, o A voltou ao
café, pediu água quente para descongelar o pára-brisas do carro, regressou ali para devolver a
garrafa vazia e pediu uma cerveja, tendo permanecido no interior do café até que este fechou e
todos saíram. O A foi à frente, o B atrás e, saindo quase ao mesmo tempo, dirigiram-se cada um
para os respectivos carros, estacionados do outro lado da rua. O B, que se encontrava
manifestamente embriagado, foi ao seu carro donde retirou uma bengala. O A retirou, por sua vez,
um revólver do seu carro. O B então desferiu uma bengalada na cabeça do outro e o A,
cambaleante, em resposta, efectuou um disparou com o revólver, atingindo o B numa parte não
apurada do corpo. Por causa da bengalada, o A veio a cair do outro lado da estrada, tendo sido
seguido pelo B, que o pretendia agredir pela segunda vez com a bengala. Receando ser de novo
atingido, o A efectuou mais quatro disparos. Os cinco tiros atingiram o B, designadamente no
tórax e no abdómen, tendo um deles atingido órgãos vitais, provocando a morte do B como causa
directa e necessária. O A agiu voluntária, livre e conscientemente, com o propósito de matar o B.
Uma vez que A deu vários tiros na pessoa de B fica desde logo comprometido com a
tipicidade do artigo 131ª: A sabia que matava B (outra pessoa) com os tiros e quis isso
mesmo. A disparou e B morreu. Não se coloca qualquer problema relevante de causalidade: a
morte foi produzida pelos tiros disparados por A. Este agiu dolosamente, com conhecimento e
vontade de realização do tipo de ilícito indicado. Trata-se agora de saber se se encontra
presente qualquer causa de justificação ou de desculpação. O Tribunal de Trancoso puniu A
18
como autor material de um crime de homicídio com atenuação especial da pena (artigos 72º,
nºs 1 e 2, alínea b), 73º, nº 1, alíneas a) e b), e 131º) com 5 anos de prisão. O A recorreu,
desde logo por entender que agiu em legítima defesa. Argumenta ter praticado o facto como
meio necessário para evitar a sua morte, intentando repelir a agressão que se iniciara e era
actual e ilícita. Além disso, quis defender-se e a existência de vários tiros —disse— não retira
o animus defendendi, pois um homem médio não tem tempo para pensar, após levar uma
arrochada na cabeça que o atira à distância. O Supremo (acórdão de 7 de Dezembro de 1999,
BMJ 492, p. 159) entendeu que se não configura “situação de legítima defesa”, pois o que
existe é a propositada criação, pelo A, da “aparência de uma situação de legítima defesa”. O A
andou a entrar e a sair do café; entretanto, o B, que se encontrava com uma elevada taxa de
alcoolémia no sangue, permanecera sempre ali e não há referência a que se tivesse
intrometido de novo com o A, apesar daquelas idas e voltas deste, e só saiu quando saiu toda a
gente, incluindo o A. Porque não foi o A embora enquanto o B estava no café, sabendo-se
(porque também ficou provado) que este era pessoa conflituosa? Cá fora, o A podia ter-se
metido na viatura e partido, mas optou por aguardar que o B estivesse armado com a bengala
para, munido do revólver e empunhando-o em direcção àquele, se dirigir para a vítima,
encurtando assim a distância entre os dois de modo a instigar o B a desferir-lhe a bengalada e
a poder ser por ela atingido, em vez de o intimidar com o revólver, mantendo-se fora do
alcance da bengala manejada pelo B.
Concluiu-se no acórdão que o A, conhecedor do temperamento conflituoso e agressivo do B,
quis tirar desforço da humilhação que este lhe infligira — e provocou deliberadamente uma
situação objectiva de legítima defesa, para deste modo alcançar, por meio ínvio, a impunidade
de um ataque que fez desencadear propositadamente. Não há assim legítima defesa. E porque
não há legítima defesa, também se não configura excesso de legítima defesa, porque este
pressupõe a existência de uma situação autêntica de legítima defesa a que se responde com
excessos dos meios empregados.
Mas também não era caso de homicídio privilegiado do artigo 133º. O Supremo foi de
opinião que o A não agiu impulsionado por motivo de relevante valor social ou moral, nem
por compaixão ou desespero; e quanto a ter actuado sob o domínio de compreensível emoção
violenta, tal não consta nem decorre da factualidade provada. O que se prova é que o A
“aguentou” as provocações e ameaças do B, dominando o estado emotivo (de ira, cólera,
humilhação…) que as mesmas naturalmente lhe causaram, e “guardou” para momento que
considerou oportuno a ocasião para se desafrontar. Admitindo-se que agiu exaltado e que a
sua conduta foi determinada por provocação injusta da vítima, o enquadramento dado pela 1ª
instância, onde se condenou o A como autor de um homicídio com atenuação especial da pena
(artigos 72º, nºs 1 e 2, alínea b), 73º, nº 1, alíneas a) e b), e 131º), é o adequado ao caso
concreto.
Caso nº 6 Homicídio. Excesso de legítima defesa não punível; excesso asténico e não censurável — e
por isso não punível. A matou B, seu irmão. Com uma faca de cozinha, A desferiu um golpe no
tórax da vítima, causando-lhe, como consequência directa e necessária, ferida corto-perfurante
transfixiva do lobo superior do pulmão esquerdo, e lesão determinante da morte. A agiu em
legítima defesa, com excesso asténico do meio utilizado, não censurável e, por isso, não punível,
de acordo com o artigo 33º, nº 2, com referência ao artigo 32º. Cf. o acórdão do STJ de 5 de Junho
de 1991, BMJ 408, p. 180.
Houve por parte da vítima uma agressão actual, ou seja, um desenvolvimento iminente aos
interesses pessoais (integridade física) de A e ilícita, por o seu autor não ter o direito de a
fazer, já que a primeira se aproximou do segundo e seguiu-o, mesmo quando este recuou para
o interior da cozinha, com o propósito de o agredir a murro e a pontapé, tal como já o fizera a
uma irmã, a um irmão e ao pai de ambos. Houve por parte de A agressão à vida da vítima em
19
20
aos meios necessários para sustar ou prevenir a agressão, exigindo-se a verificação dos
pressupostos objectivos da legítima defesa inicial. O acórdão do STJ de 26 de Abril de 1984,
BMJ 336 , p. 331, excluiu a legítima defesa e seu excesso, na falta de animus defendendi,
para além da falta da actualidade da agressão, o que implica a necessidade de ter que dar-se
como provado um propósito de defesa, como condição de procedência da causa justificativa e
da relevância do excesso em questão.
Caso nº 9 Homicídio (infanticídio) privilegiado? Desespero? A, mulher casada e residente na ilha de Porto
Santo, encetou uma relação amorosa com outro homem, na sequência da qual ficou grávida. Nessa
altura pretendeu abortar, mas o amante opôs-se, declarando, nomeadamente, que iria viver com
ela. A mulher, acreditando nessa promessa, nada fez para interromper a gravidez; ele, porém,
alguns meses depois, deixou a ilha, e não voltou a dar notícias. Tendo conseguido ocultar a
gravidez até ao momento do parto, a agente matou a criança logo após o nascimento. Resumo de
Curado Neves, RPCC 11 (2001), p. 209.
Comentário de Curado Neves: “Se o facto tivesse sido praticado antes do termo de Setembro
de 1995, a autora podia certamente beneficiar do privilegiamento previsto para o infanticídio
destinado a “evitar a desonra”. Mas em 1 de Outubro daquele ano entrou em vigor a Reforma
de 1995 que suprimiu aquela referência, só indicando agora o art. 136.° como fundamento do
privilegiamento do infanticídio a influência perturbadora do parto. Pensou-se, ao alterar a lei,
que a referência à desonra já se não justificava nos nossos dias. Já na altura da entrada em
vigor da reforma do Código Teresa Serra expressava sérias reservas quanto aos efeitos que
poderia ter a alteração do art. 136.°. Este processo judicial é a prova de que os seus receios
eram plenamente fundamentados. O tribunal colectivo aplicou a esta mulher, cujo estado de
perturbação bem se pode depreender das circunstâncias relatadas, a pena brutal de catorze
anos de prisão, que o STJ reduziu apenas ligeiramente para 12 anos (acórdão de 12 de Março
de 1997). Para este efeito o facto foi considerado como homicídio qualificado, por via das als.
a) e b) do art. 132.°, n.° 2. (…) Mesmo que o art. 136.° não seja aplicável por se não verificar
a influência perturbadora do parto, o facto deve ser subsumido no art. 131.° e não no art.
132.°. O que não significa que se não deva aplicar antes o art. 133.° O tribunal ignorou pura e
simplesmente esta possibilidade, o que se deve concerteza à influência perturbadora da ideia
de que o art. 133.° pressupõe emoção violenta decorrente de provocação injusta. Mais uma
vez, o STJ ignorou a possível verificação de uma situação de desespero. Contudo, as
circunstâncias do caso relatadas no acórdão fazem supor que este se verificava: não desespero
como uma emoção que toldasse a capacidade de motivação da autora, mas como impressão,
baseada num quadro fáctico objectivamente perceptível para um observador externo, de se
encontrar perante um obstáculo dificilmente contornável à manutenção de um modo de vida
tolerável.”
Caso nº 10 Homicídio negligente. Homicídio tendo em vista encobrir um outro crime. Comissão por
omissão. Tentativa e dolo eventual. A entra num táxi que lhe não pertence, senta-se ao volante e,
sem autorização, começa a conduzir a viatura pelas ruas do Porto. Pretende dar com ela umas
voltas e depois deixá-la perto da estação de Campanhã. Quando porém passava pela Avenida de
Fernão de Magalhães A atropelou B, no momento em que este, pelo seu pé, atravessava a via na
passagem destinada aos peões. A não parou, quando se aproximava da passadeira, devidamente
marcada no chão, nem abrandou a velocidade de mais de 90 quilómetros por hora, portanto
excessiva para o local, situado em plena cidade. B foi projectado e bateu com a cabeça
violentamente no chão. A parou, saiu do carro, e verificou que B acabaria por morrer se não fosse
imediatamente transportado ao hospital. Todavia, deixou-o ficar, pois sabia que se o levasse ao
hospital lhe fariam aí perguntas embaraçosas. Alguém, porém, viu o que se passou, mas B foi
socorrido demasiado tarde e morreu. A polícia diligenciou por identificar o veículo atropelante e
montou uma barreira na estrada, à aproximação deste. Logo que A viu os agentes G e N a
fazerem-lhe sinal para parar aumentou a velocidade, carregando a fundo no acelerador. G só não
foi apanhado pela trajectória do carro que A conduzia por ter dado um salto repentino para o lado.
Os dois guardas perseguiram B e acabaram por apanhá-lo. (cf. Samson, caso nº 8).
21
Punibilidade de A? Vamos, por agora, deixar de lado os crimes patrimoniais: furto (artigo
203º, nº 1)? furto de uso de veículo (artigo 208º)?
a) Homicídio negligente (artigo 137º) ou ofensa à integridade física por negligência (artigo
148º)? A atropelou B em plena passadeira, não lhe dando a oportunidade de atravessar a rua,
como cumpria. A não parou nem abrandou a velocidade, que era excessiva para o local. A
cometeu contra-ordenações causais do acidente e violou o dever geral de cuidado. Era
manifesto, a todas as luzes, que A devia, mas também podia, ter previsto o resultado, o
atropelamento de B, com as fatais consequências que se deram. A incorreu na previsão do
artigo 137º, nº 1, se causalmente se estabelecer que a causa da morte foi o atropelamento (e
não a omissão que se verificou em seguida). Na falta de uma relação causal desse tipo, o
crime só poderá ser o do artigo 148º.
b) Homicídio por omissão (artigos 10º e 131º). A pode ter cometido um crime de homicídio
por omissão, porquanto deixou ficar B e não o levou a um hospital. O desenho objectivo
supõe em primeiro lugar a morte de uma pessoa, e B morreu. Depois, é necessário que o
agente pudesse ter impedido a morte. De acordo com a matéria de facto, B podia ter sido
salvo se A o tivesse conduzido imediatamente a um hospital. O táxi ficou utilizável, como se
viu, e A tinha a capacidade de executar a correspondente acção salvadora e levar B ao
hospital. Contudo A não fez isso. Acontece que há elementos que apontam para a posição de
garante de A relativamente à vida de B.
Tradicionalmente, indicam-se as seguintes fontes do dever de garante (artigo 10º do CP): A lei, que define
deveres jurídicos primários. O contrato (por ex., uma educadora assume o dever de vigiar a criança que foi
confiada aos seus cuidados). Uma actuação precedente geradora de perigos ( ingerência): por ex., o dono de
um bar que insta o cliente a beber até estar completamente embriagado fica obrigado a remover os perigos que
ameacem o cliente ou que nele tenham origem. Exemplo de escola (Figueiredo Dias): dando um tiro na vítima
que a deixou a sangrar, o agente — ainda que sem intenção de matar, e por isso mesmo — criou, com esta sua
conduta anterior (anterior à omissão, entende-se) um perigo para bens jurídicos que ficava juridicamente
obrigado a remover. Não o fazendo, antes omitindo a acção necessária à remoção do perigo — e considerando
ainda que este perigo não só era adequado à realização do evento, como até foi criado com violação de um
dever jurídico e mesmo culposamente —, resulta daí que o evento letal era juridicamente imputável à omissão
do agente, a título de negligência ou mesmo de dolo, consoante as circunstâncias do caso.
Nos casos indicados existem certamente deveres de garante. Mas o critério é demasiado
estreito. Assim, por ex., a educadora é garante, mesmo que o seu contrato seja nulo face à lei
civil. A indicada tripartição é formal, não nos indica o conteúdo dos correspondentes deveres
de garantia. Por isso se emprega actualmente um outro modelo, que tem em conta também
aspectos materiais. Distingue-se entre deveres de garante que consistem: Numa função
protectora para um bem jurídico concreto (deveres de assistência provenientes da
solidariedade natural com o titular do bem jurídico, de estreitas relações de comunidade ou de
assunção voluntária); e aqueles em que incumbe ao garante responsabilidade por
determinadas fontes de perigo (deveres de segurança em que o agente pode ser responsável a
três títulos: ele próprio deu causa ao perigo (por ingerência); deve remover os perigos que
provêm de coisas pelas quais ele é responsável (vigilância de fontes de perigo); deve remover
perigos que resultam de pessoas por quem ele é responsável (vigilância de outrem).
O que está aqui em causa é um dever de garante por anterior intervenção geradora de perigos
para bens jurídicos alheios (por “ingerência”). A pôs em perigo a vida de B: atropelou-o, não
parando quando este atravessava pela passagem para peões, nem reduziu a velocidade que era
manifestamente exagerada para as condições do local. A criou, de forma ilícita, um perigo
adequado para a vida de B, daí lhe advindo a posição de garante (veja-se o disposto no artigo
10º).
22
O tipo objectivo do crime está portanto preenchido. O tipo subjectivo supõe em primeiro
lugar o conhecimento da situação típica. A sabia que B iria morrer se o auxílio fosse omitido.
Além disso, A sabia a maneira como poderia salvar B. Em suma, A conhecia a situação típica,
a ameaça da produção do resultado, e sabia quais os passos a dar para salvar a vida de B.
Além disso conhecia as circunstâncias donde derivava o seu dever de garante. Está do mesmo
modo preenchido o lado subjectivo, não existindo qualquer causa de justificação. Como A
omitiu culposamente, conhecendo o dever de agir, sem que se mostrem presentes quaisquer
causas de desculpação, A cometeu por omissão um crime de homicídio (artigos 10º e 131º).
c) Homicídio por omissão na forma qualificada (artigos 10º e 132º). Atento o comportamento
de A, pode, no entanto, perguntar-se se não estarão preenchidos os elementos do artigo 132º
(homicídio qualificado). Os correspondentes elementos do tipo, sendo idênticos aos do artigo
131º, mostram-se presentes. Falta averiguar os índices reveladores da culpa.
No artigo 132º prevê-se o homicídio qualificado, punível com a moldura agravada de prisão
de 12 a 25 anos. Utiliza-se aí a técnica dos exemplos-padrão, tendo-se abandonado a
orientação do código do século 19, em que o homicídio qualificado se encontrava na
descrição múltipla do artigo 351º e ainda em outros tipos autónomos, como o envenenamento,
o parricídio e o infanticídio. Fazendo jus à técnica dos exemplos padrão, o Supremo vem
decidindo que os factos apontados no nº 2 do artigo 132º não são elementos constitutivos de
um homicídio especial, mas apenas o indício, confirmável ou não, de uma intensa culpa, ou
seja, as circunstâncias enumeradas são apenas susceptíveis de revelar culpa especial, não
sendo “presunções fatais dela” (acórdão de 8 de Fevereiro de 1984, no BMJ 334, p. 258). As
circunstâncias enumeradas, a título exemplificativo, no nº 2 do artigo 132º do Código Penal
não são de funcionamento automático: pode verificar-se qualquer delas sem que deva
necessariamente concluir-se pela “especial censurabilidade ou perversidade” do agente”
(acórdão de 20 de Março de 1985, BMJ 345, p. 248).
No caso, pode perguntar-se se A teve em vista “(...) encobrir outro crime, facilitar a fuga ou
assegurar a impunidade”. Como se sabe, neste exemplo-padrão os problemas estão
especialmente ligados ao “outro crime”, aquele que se tem em vista preparar, facilitar, etc.
Mas a designação legal “ter em vista” levanta também dificuldades, especialmente
relacionadas com o dolo eventual e, justamente, com os casos de omissão. É duvidoso que A
tenha omitido a condução ao hospital com a apontada finalidade. Nos casos de conduta activa,
do que se trata é de assegurar a impunidade ou de encobrir o próprio agente ou um terceiro,
de forma que o encobrimento é o fim último da actuação ou um fim intermédio: no exemplo-
padrão tem que se atender à energia ou à persistência criminosa do agente, mas tudo isto
parece incompatível com a omissão. O que sabemos é que A deixou ficar B por temer que lhe
fizessem perguntas embaraçosas no hospital, o que não corresponde ao exemplo-padrão
apontado, nem a qualquer outro que seja sinal perfeitamente demonstrativo de uma especial
censurabilidade. A não cometeu um crime qualificado de homicídio com a sua omissão.
d) Omissão de auxílio (artigo 200º). Como se sabe, a omissão constitui aqui um crime de
omissão pura ou próprio. O ilícito é de natureza dolosa. São seus elementos típicos
objectivos: uma situação de grave necessidade (...) provocada por (...) acidente que ponha em
perigo a vida, saúde, integridade física ou liberdade de outrem; que o agente deixe de prestar
o auxílio que se revele necessário ao afastamento do perigo, por acção pessoal ou
promovendo o seu socorro. Ora, no caso, a situação configurava-se como de grave
necessidade e era decorrente de acidente que o próprio A tinha provocado, estando a vida de
B em perigo. Existia a situação típica e as outras características objectivas fundamentadoras
do dever de actuar. Não obstante a exigência da prestação de auxílio, A nada fez para socorrer
B ou para promover o seu socorro, tendo a real possibilidade física, sem risco para si, de
23
realizar a acção ordenada (nº 3 do artigo 200º). Subjectivamente, podemos afirmar o dolo de
A. Basta o dolo eventual. Não havendo qualquer causa de justificação, A cometeu, como autor
material, um crime do artigo 200º, nºs 1 e 2.
e) Homicídio tentado (artigos 22º e 131º). G só não foi apanhado pela trajectória do carro que
A conduzia por ter dado um salto repentino para o lado. Isto pode integrar um crime tentado
de homicídio. De qualquer modo, não se tendo verificado o resultado desaprovado, a morte
de G, só poderá falar-se em tentativa. A prova não é expressa, mas A actuou com dolo
homicida, ainda que eventual. Quem avança com um carro a grande velocidade para o lugar
onde se encontra uma pessoa conta em regra com a possibilidade de a atropelar e até de a
matar: A conformou-se com esse resultado, que representou de modo sério. A tentativa exige
sempre o dolo de consumação, só podendo ser compreendida, portanto, a partir da vontade de
realização, do dolo, sendo este elemento constitutivo da sua ilicitude. Embora haja quem
entenda não ser possível, no nosso direito, e com a redacção actual da lei, a configuração de
uma conduta como tentativa de um crime a título de dolo eventual, a jurisprudência e boa
parte da doutrina inclinam-se para essa compatibilidade. ( 39) Por outro lado, A praticou actos
de execução (artigo 22º, nºs 1 e 2): logo que A viu os dois agentes a fazerem-lhe sinal para
parar, aumentou a velocidade, carregando a fundo no acelerador, e G só não foi apanhado
pela trajectória do carro por ter dado um salto repentino para o lado, tudo a constituir, dir-se-
á, actos idóneos para a produção de um resultado típico. Como não existe qualquer causa de
justificação, A cometeu uma tentativa de homicídio. Cf. ainda o artigo 132º, nº 2, alínea e):
“ter em vista (...) facilitar a fuga ou assegurar a impunidade do agente de um crime.”
f) Veja-se ainda o disposto no artigo 291º quanto à condução perigosa de veículo rodoviário.
39
Veja-se, porém, entre a jurisprudência mais recente, o acórdão do STJ de 23 de Novembro de 2006, no proc.
06P3770, com o seguinte sumário: Se já não é fácil compatibilizar o dolo eventual com a especial
censurabilidade ou perversidade do agente, muito mais difícil parece ser essa conjugação quando a especial
censurabilidade não advém de uma qualquer circunstância facilmente objectivável (v. g., o uso de uma arma
com um grande poder destruidor), mas da própria formação de vontade do agente (que decide usar o objecto
de agressão de modo inesperado e súbito, para que a vítima não desconfie, mas com dolo eventual quanto ao
resultado). Por isso, não se tendo provado o dolo directo ou necessário quanto à intenção de matar, mas apenas
o dolo eventual, não se verifica uma especial censurabilidade que se possa reconduzir ao crime de homicídio
qualificado tentado, por ter o agente desferido um golpe com a parte metálica de uma sachola (mais
vulgarmente designada por “olho da sachola”), por trás, do lado esquerdo, na cabeça do assistente e, assim,
actuado de forma inesperada, súbita, sem que a vítima tivesse sequer desconfiado dos seus intentos, a uma
curta distância, pois aquela forma mitigada de dolo é, neste caso, incompatível com um tipo especial de culpa.
Deste modo, o recorrente deverá ser condenado um crime de homicídio simples, na forma tentada, p.p. pelos
art.ºs 131.º, 22.º, 23.º e 73.º n.º 1, als. a) e b), do Código Penal.
24
25
40
Cristina Líbano Monteiro, RPCC 6 (1996), p. 126; também o Conimbricense, p. 54.
26
41
Não basta a comprovação da existência no agente duma anomalia psíquica, por mais grave que ela se
apresente. É ainda e sempre necessário determinar se aquela anomalia é tal que, na expressão do Prof.
Figueiredo Dias, torne impossível o juízo judicial de compreensão, de apreensão da conexão objectiva de
sentido entre a pessoa e o seu facto; que o torne impossível ou ao menos altamente duvidoso (e aqui entramos
nas hipóteses chamadas de imputabilidade diminuída).
27
28
vários actos. O primeiro acto, anterior no tempo (produção da anomalia, actio praecedens,
causa), tem uma relação relevante, no que toca à culpa, com o segundo acto, posterior no
tempo (facto cometido com anomalia psíquica, actio subsequens). A alic só existe onde a
inimputabilidade é provocada, com o dolo intencional (que abrangerá o dolo directo e o dolo
necessário), no propósito de cometer o facto.
O Código prevê no artigo 295º o crime autónomo de embriaguez e intoxicação. No artigo 20º, nº 4, a
inimputabilidade não é excluída quando a anomalia psíquica tiver sido provocada pelo agente com intenção de
praticar o facto— compreende apenas a alic com dolo directo ou com dolo necessário. Os casos de dolo
eventual e os negligentes estão abrangidos pelo artigo 295º, nº 1. Cabem no nº 1 do artigo 295º os casos em
que o agente pratica um facto ilícito típico num momento de inimputabilidade provocada por ele próprio—
sem qualquer conexão psicológica no momento da autocolocação em perigo. Os casos de imputabilidade
diminuída autoprovocada seguem a regra geral, não cabem no artigo 295º, que pressupõe um estado de
inimputabilidade autoprovocada.
d) A aplicação conjugada dos artigos 131º e 72º (atenuação especial da pena).
Finalmente, a questão da “substituição” do regime do artigo 133º pela aplicação conjugada
dos artigos 131º e 72º (atenuação especial da pena). Dominante, até há relativamente pouco
tempo, no pensamento jurisprudencial, não deixou de ser denunciada pela doutrina, para
quem “a procura de critérios concretos de compreensibilidade, na resolução dos casos, é o
único caminho para a correcta interpretação e aplicação” do artigo 133º, o qual “representa
um elemento importante do carácter humanista e eticista do Código Penal” (Amadeu Ferreira,
p. 146).
e) No artigo 133º não se prevê nem regula especificamente a "provocação” como
circunstância com influência bastante para a qualificação da conduta do agente como
integradora do crime aí definido.
No artigo 133º não se prevê nem regula especificamente a “provocação” como circunstância
com influência bastante para a qualificação da conduta do agente como integradora do crime
aí definido, mas o estado emocional tanto pode resultar ou ser causado por provocação como
por qualquer outro facto (cf. o acórdão do STJ de 3 de Outubro de 1984 BMJ 340, p. 219).
f) A provocação aparece também como circunstância de atenuação geral da pena na
alínea b) do nº 2 do artigo 72º: provocação injusta ou ofensa imerecida.
No caso prático que agora analisamos, não há dúvida de que B, voluntária e conscientemente,
quis tirar a vida ao A, como aliás tirou. Contudo, não deixa de ser evidente que a situação
aponta para uma emoção violenta de que B estava possuído. Ainda assim, poderá entender-se,
para negar o privilegiamento do artigo 133º, que a emoção violenta não era compreensível,
face ao tempo que decorreu após os últimos factos ou que, por não terem sido alteradas as
normais condições de determinação de B, não se gerou por parte deste uma reacção
proporcional ao comportamento da vítima (como exigia ainda há pouco a jurisprudência).
Restaria então sustentar a aplicação dos artigos 131º, em conjugação com o artigo 72º
(atenuação especial da pena), nºs 1 e 2, b): provocação injusta ou ofensa imerecida.
29
Acórdão do STJ de 23 de Novembro de 2006, proc. 06P3770. Homicídio tentado com dolo eventual.
Circunstância qualificativa não facilmente objectivável. Se já não é fácil compatibilizar o dolo eventual
com a especial censurabilidade ou perversidade do agente, muito mais difícil parece ser essa conjugação
quando a especial censurabilidade não advém de uma qualquer circunstância facilmente objectivável (v.g.,
o uso de uma arma com um grande poder destruidor), mas da própria formação de vontade do agente (que
decide usar o objecto de agressão de modo inesperado e súbito, para que a vítima não desconfie, mas com
dolo eventual quanto ao resultado). Por isso, não se tendo provado o dolo directo ou necessário quanto à
intenção de matar, mas apenas o dolo eventual, não se verifica uma especial censurabilidade que se possa
reconduzir ao crime de homicídio qualificado tentado, por ter o agente desferido um golpe com a parte
metálica de uma sachola (mais vulgarmente designada por “olho da sachola”), por trás, do lado esquerdo,
na cabeça do assistente e, assim, actuado de forma inesperada, súbita, sem que a vítima tivesse sequer
desconfiado dos seus intentos, a uma curta distância, pois aquela forma mitigada de dolo é, neste caso,
incompatível com um tipo especial de culpa. Deste modo, o recorrente deverá ser condenado um crime de
homicídio simples, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 131.º, 22.º, 23.º e 73.º n.º 1, alíneas a) e b), do
Código Penal.
Acórdão do STJ de 26 de Fevereiro de 2004, CJ 2004, tomo I, p. 206: arguida portadora de ligeira deficiência
mental que após ter tido um bebe regressa a casa descontrolada, assustada e angustiada, e nesse estado
enterra o recém-nascido, matando-o. O acórdão optou pelo homicídio simples.
Acórdão do STJ de 13 de Janeiro de 1993, BMJ 423, p. 222: aprecia-se o modo de execução do homicídio
cometido por um filho na pessoa de seu pai; com superioridade em razão da arma e da idade; de noite; com
espera, surpresa e traição; através de meio insidioso e com premeditação; e o abandono da vítima. Tudo
isso a pôr em evidência os índices dos correspondentes exemplos-padrão. Aprecia-se depois o quadro em
que o arguido deu morte ao pai: conflitualidade das relações familiares da responsabilidade da própria
vítima, que hostilizava o réu e demais família, de forma prepotente e agressiva, a par da existência de
traços paranóides na personalidade do arguido, que foi concebendo a ideia do aniquilamento físico do pai
“como missão a cumprir”. Conclusão: contraprovada a especial censurabilidade, o crime é o de homicídio
simples do artigo 131º.
Acórdão do STJ de 7 de Dezembro de 1998: interrupção do nexo causal; comparticipação; causa adequada;
imputação objectiva. Os arguidos agiram em conjunto com vista à captura de P, tendo formado uma “linha
de caça” para o apanharem. As lesões provocadas por A eram de natureza letal e os sete réus que haviam
apanhado o P, previram a morte deste como consequência necessária das suas condutas. Quando
transportaram o P para o largo da povoação e aí o abandonaram, ainda com sinais de vida e enquanto se
ouviam frases como “matem-no!” e “queimem-no!”, previram necessariamente que alguma ou algumas
pessoas lhe pudessem dar a morte, como veio a fazer o B. Vd. o resumo dos factos e um comentário breve
de Carlota Pizarro de Almeida à solução dada ao caso in Fernanda Palma (coord.), Casos e Materiais de
Direito Penal.
Acórdão do STJ de 4 de Maio de 1994, CJ, ano II (1994), tomo II, p. 204: homicídio praticado por agente da
PSP, fora de funções, com a arma distribuída: homicídio simples.
Acórdão do STJ de 12 de Fevereiro de 1998, Processo n.º 1120/97: A presunção médico-legal de intenção de
matar não constitui juízo técnico ou cientifico que se imponha ao julgador face à regra do valor pericial
consagrado no art.º 163, n.º 1, do CPP. A intenção de matar constitui matéria de facto a apurar pelo
tribunal face à diversa prova ao seu alcance e esta, salvo quando a lei dispõe diversamente, é apreciada
segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador.
Acórdão do STJ de 19 de Março de 1998: o juízo sobre a intenção de matar não constitui sequer, ou
eventualmente, um juízo técnico e também não é um juízo da técnica médica. A menção ou a conclusão
num relatório de autópsia sobre a intenção ou não intenção de matar, reveste-se assim tão somente de
natureza e força sintomatológicas e é nessa medida que hão-de ser consideradas, sopesadas e valoradas, no
conjunto das provas a apreciar livremente.
Acórdão do STJ de 12 de Novembro de 1998, BMJ-481-326: homicídio e profanação de cadáver; crime do
posto da GNR de Sacavém.
Acórdão do STJ de 12 de Abril de 2000, CJ ano VIII (2000), tomo 2, p. 172: medidas de segurança;
pressupostos da duração mínima do internamento; crime de homicídio voluntário qualificado, com uma
anotação na RPCC 10 (2000). Considerou-se incorrecta a decisão do tribunal a quo em integrar os factos na
previsão do artigo 132º do Código Penal, para o qual relevam somente questões atinentes à culpa — o
ilícito típico em questão para efeitos de aplicação da medida de segurança era o do artigo 131º.
30
Acórdão do STJ de 7 de Dezembro de 1999, BMJ-492-159: não se pode considerar agindo em legítima defesa
aquele que provoca deliberadamente uma situação objectiva de legítima defesa para alcançar, por esse
meio ínvio, a impunidade de um ataque desencadeado propositadamente já com intenção de matar o
agressor.
Acórdão do STJ de 1 de Abril de 1993, BMJ-426-154: dolo eventual: comprovação dos actos psíquicos. A e
B envolveram-se em discussão, tendo o B caído no solo. Uma vez este no solo, o A encavalitou-se nele, e
agarrando-o pela cabeça por várias vezes lhe deu com ela no pavimento de paralelepípedos de granito.
Apesar de não ter havido um pronto internamento hospitalar, o Supremo deu como assente a conexão, em
termos de adequação causal, entre as lesões produzidas e a morte. Como o A praticou a agressão prevendo
a possibilidade da ocorrência letal, aceitando-a, é autor de homicídio voluntário simples com dolo
eventual.
Acórdão do STJ de 21 de Junho de 2006, 06P1913: homicídio e profanação de cadáver.
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