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2/28/2019 O erro de David Harvey na compreensão da lei do valor em Marx – LavraPalavra

LavraPalavra

O erro de David Harvey na compreensão da


lei do valor em Marx

Por Michael Roberts, via The Next Recession, traduzido por Augusto Ribeiro Silva

Recentemente, o Professor David Harvey (DH) enviou um e-mail para várias pessoas, inclusive para
mim, com um breve artigo para discussão em anexo. O artigo apresenta a leitura de DH de que a teoria
do valor de Marx em economias capitalistas havia sido gravemente mal interpretada.

No caso de você não saber (o que seria difícil de acreditar), o Professor Harvey é
provavelmente o mais eminente estudioso de Marx vivo hoje, autor de livros, artigos e vídeos
educacionais sobre teoria econômica marxista. O breve artigo que circulou expressava
sucintamente sua leitura da teoria do valor de Marx, que ele recentemente apresentou mais
extensivamente em seu último livro, “A loucura da razão econômica: Marx e o capital no século
XXI“. [1]

No artigo, intitulado “A recusa de Marx da teoria do valor do trabalho“, DH argumenta que Marx
sequer tinha uma “teoria do valor do trabalho”. Sua teoria do valor era distinta daquela do
economista clássico David Ricardo. Invés disso, segundo DH, Marx teria argumentado que o
valor era um reflexo do trabalho corporificado em uma mercadoria que só seria

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2/28/2019 O erro de David Harvey na compreensão da lei do valor em Marx – LavraPalavra

criado/revelado em trocas no mercado. Como afirma DH: “se não há mercado, não há valor”. Se
isso estiver correto, então seria durante a realização do valor em sua expressão em dinheiro
que o valor emergiria, não no processo de produção em si.

DH então argumenta que se salários forem forçados para baixo ou até ao mínimo, então não
haverá mercado ou mercadorias e, portanto, nenhum valor – e essa é a “verdadeira raiz das
crises capitalistas”. Por conseguinte, uma política para evitar crises seria “aumentar salários
para garantir ‘consumo racional’ do ponto de vista do capital e colonizar a vida cotidiana
como um campo para o consumismo”. Essa seria a consequência de uma leitura correta da
teoria do valor em Marx, segundo DH.

DH destaca que essa interpretação da teoria do valor “vai muito além do que Ricardo tinha
em mente e é igualmente muito distante da concepção de valor geralmente atribuída a
Marx.” Certamente. Mas estaria DH certo em sua interpretação da teoria do valor em Marx e,
se ele estiver, teria essa interpretação alguma validade empírica? Eu responderia ambas essas
questões com: ‘no’, ‘non’, ‘nein’, para usar as três línguas melhor conhecidas por Marx.

DH inicia dizendo: “acredita-se amplamente que Marx adaptou a teoria do valor do trabalho
a partir de Ricardo como conceito fundador para seu estudo da acumulação capitalista” e
“como a teoria do valor do trabalho foi amplamente desacreditada, frequentemente constata-
se, autoritariamente, que as teorias de Marx são imprestáveis.” Não fica claro a quem DH está
se referindo aqui. Claramente economistas burgueses mainstream consideram a teoria do
valor de Marx inválida. Os marginalistas neoclássicos há muito rejeitaram o conceito de
valor-trabalho, taxando-o de “metafísico”. Economistas neo-ricardianos, pós-sraffianos e pós-
keynesianos, particularmente, estão fortemente inclinados a rejeitar qualquer noção de
“valor”, classificando-a como mistificação ideológica.

Mas a maioria dos economistas marxistas estão cientes da distinção entre a teoria do valor em
Marx e em Ricardo. E a diferença não é o que DH diz ser, que Ricardo tinha uma “teoria do
valor do trabalho” e Marx não. A diferença é que Ricardo tinha uma teoria de valor (de uso)
baseada em “trabalho concreto” (quantidade física de trabalho) medida em tempo de
trabalho. A lei do valor em Marx era baseada em “trabalho abstrato” (valor medido em
tempo de trabalho quando “socialmente” testado no mercado).

Sob o capitalismo, a força de trabalho humana é em si uma mercadoria a ser vendida no


mercado. De fato, essa é uma característica chave do modo de produção capitalista, em que a
maioria não dispõe de meios de produção e, portanto, deve vender sua força de trabalho para
os donos dos meios de produção. Então, assim como com outras mercadorias, trabalho tem
uma propriedade dupla. Por um lado, é trabalho útil, isto é, aplicação de trabalho humano
em uma forma concreta e para um propósito específico, com essa propriedade criando
valores de uso. Por outro lado, é trabalho abstrato, isto é, aplicação de “força de trabalho”
humana sem características específicas que cria o valor da mercadoria na qual ele é
representado. A partir disso Marx fez a distinção entre trabalho e força de trabalho, uma
distinção que é absolutamente crucial para a compreensão da fonte do lucro.

Esse foi o grande avanço da teoria do valor de Marx. O tempo de trabalho corporificado nas
mercadorias normalmente compradas pelo trabalhador para a sua reprodução e a de sua
família em um dia é menos do que o tempo de trabalho que o trabalhador de fato oferece
para o dono do capital durante o mesmo período. O resultado é que para qualquer período
de tempo dado, o trabalhador produz mais valor do que o salário correspondente que é pago
pelo dono do capital para o usufruto da força de trabalho. A essa diferença Marx dá os nomes

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de “trabalho não pago” e “mais-trabalho” – ou mais-valia. A teoria do valor do trabalho


abstrato de Marx expõe a natureza exploradora do modo de produção capitalista, algo que
nem a teoria do valor de Adam Smith nem a de Ricardo fazem.

DH menciona apenas uma vez (e de passagem) essa descoberta vital de Marx (o trabalho
abstrato) que distingue a lei de Marx da teoria do valor do trabalho clássica. E isso ocorre
porque DH deseja impor sua interpretação da teoria de Marx como uma em que valor é
criado/realizado apenas na troca, e não no processo de produção pela força de trabalho. DH
diz que “o valor é inicialmente tomado como um reflexo do trabalho social (abstrato)
cristalizado nas mercadorias.” Mas “como uma norma regulatória no mercado, o valor pode
existir, como mostra Marx, apenas quando e onde a troca de mercadorias se tornou um ‘ato
social normal’.” Então, sem dinheiro, não haveria valor.

Sim, mas o valor de uma mercadoria ainda é o trabalho contido nela e expandido durante o
processo de produção antes de ser levado ao mercado. O valor é a aplicação de trabalho
humano físico e mental, que é então extraído pelo processo social de produção e levado ao
mercado. Valor não é uma criação do dinheiro – pelo contrário. Dinheiro é a representação ou
valor de troca do trabalho aplicado, e não o oposto. Acredito que Marx seja nítido nesse
ponto crucial. Ele diz n’O Capital Volume Um: “O valor das mercadorias é expresso em seus
preços antes de elas entrarem em circulação, sendo, portanto, o pressuposto, e não o
resultado dessa última.” [2] [pág. 233 – O Capital Livro I, Editora Boitempo, 1ª edição revista]

Murray Smith, na edição nova e vindoura de seu livro, “Invisible Leviathan” [3], oferece uma
explicação concisa da diferença entre a lei do valor de Marx e a interpretação de DH. Marx
disse que: “O dinheiro como medida do valor é a forma necessária em que aparece a medida
do valor que é imanente às mercadorias, o tempo de trabalho.” Smith comenta que isso “é
certamente inconsistente com a ideia de que o valor pode ser criado no ato da troca. (…) É
precisamente porque a troca efetua um processo de ‘equalização de produtos do trabalho no
mercado’ (isto é, envolve uma abstração real) que a produção orientada à troca deve levar em
conta o fato de que ‘trabalho fisiológico’ cria valor de troca e forma o valor de uso – isto é, se
constitui como concreto e abstrato simultaneamente. Tentar argumentar que valor é criado
‘não na produção, mas na articulação de produção e circulação’ é uma noção repleta de
pensamento circular e que requer a mais robusta ginástica mental para que entretenha(…). O
problema com essa abordagem é que se for aceito que o trabalho abstrato associado não tem
existência substancial apartado da forma de valor, o dinheiro, então os valores das
mercadorias parecem ser separados totalmente de qualquer determinação pelas condições de
sua produção, e o caminho estaria pavimentado para uma efetiva identificação de valor e
preço.”

Em vez disso, a lei do valor de Marx se baseia na visão de que o trabalho envolvido na
produção de mercadorias produz o valor, enquanto a troca o realiza na forma-dinheiro. É
apenas por causa disso que Marx é capaz de distinguir entre quantidades de valor e mais-
valia criadas na produção de mercadorias, e as quantidades geralmente diferentes realizadas
através da troca.

Ao contrário do que pensam os economistas mainstream e neo-ricardianos, não se trata de


“mistificação”. O valor é objetivo e real e não apenas expresso em dinheiro. A lei do valor de
Marx, na qual o trabalho abstrato (medido em tempo de trabalho) explica o valor de troca e
os preços, pode ser validada empiricamente. [4]

Há razão por trás da interpretação de DH. Se valor for criado apenas no momento da troca
por dinheiro e “o dinheiro reina”, então será a demanda (efetiva) que decidirá se o
capitalismo tranquilamente acumulará sem crises recorrentes. Para mostrar isso, DH descreve
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com algum detalhe o impacto da acumulação capitalista sobre as condições e padrões de vida
enquanto os capitalistas empenham-se em aumentar a mais-valia relativa através da
introdução de maquinaria. Ele usa alguns exemplos gráficos proporcionados por Marx no
Capítulo 23 [25 no original] do Volume Um. DH enfatiza que a acumulação capitalista
pretende minimizar o valor da força de trabalho ao ponto da pauperização.

DH conclui que “Se esse é um resultado típico da operação da lei capitalista da acumulação
de valor, então há uma profunda contradição entre as condições progressivamente
deterioradas da reprodução social e a necessidade do capital de expandir o mercado. Como
Marx nota no Volume 2 d’O Capital, a verdadeira raiz das crises capitalistas está na
supressão de salários e a redução da massa da população à condição de pobres
despossuídos.” Então a “verdadeira raiz das crises” encontra-se na “supressão dos salários” e
na “redução da massa da população à condição de pobres despossuídos”. Essa é a uma teoria
das crises de viés subconsumista.

Há muito a ser pontuado aqui. Primeiro, o Capítulo 23 [novamente, 25 no original], intitulado


A lei geral da acumulação capitalista, não se refere apenas à pauperização da classe
trabalhadora. DH deixa de fora um aspecto muito importante da lei geral: a tendência ao
aumento da composição orgânica do capital [5]. É isso que aumenta a mais-valia relativa, mas
também é um fator chave na tendência de queda da taxa de lucro (desenvolvida no Volume
3), “a lei mais importante da economia política” [6], que estabelece a base da teoria das crises
de Marx. DH ignora esse aspecto.

Mas DH se aprofunda em sua interpretação subconsumista. “Valor depende da existência de


quereres, necessidades e desejos, apoiados pela capacidade de uma população de
consumidores de pagar(…) Isso também significa que a diminuição de salários a quase nada
será contraproducente na realização de valor e mais-valia no mercado. Aumentar salários
para garantir ‘consumo racional’ do ponto de vista do capital e colonizar a vida cotidiana
como um campo para o consumismo são cruciais para a teoria do valor.” A partir disso DH
argumenta que o capitalismo entra em crise porque os salários são suprimidos; então
aumentar salários, garantindo “consumo racional”, proporcionaria a “capacidade da pagar” e
daria fim às crises.

Essa interpretação subconsumista da teoria de Marx foi firmemente rejeitada – pelo próprio
Marx – na famosa nota no mesmo Volume 2 ao qual DH se refere (sublinhados meus).

“É pura tautologia dizer que as crises surgem da falta de um consumo solvente, ou da


carência de consumidores solventes. (…) Que as mercadorias sejam invendáveis significa
apenas que não foram encontrados compradores solventes para elas e, portanto,
consumidores (já que, em última instância, as mercadorias são compradas para o consumo
produtivo ou individual). Mas caso se queira dar a essa tautologia a aparência de uma
fundamentação profunda, dizendo que a classe trabalhadora recebe uma parte
demasiadamente pequena de seu próprio produto, de modo que o mal seria remediado tão
logo ela recebesse uma fração maior de tal produto e, por conseguinte, seu salário
aumentasse nessa proporção, bastará observar que as crises são sempre preparadas num
período em que o salário sobe de maneira geral e a classe trabalhadora obtém realiter
[realmente] uma participação maior na parcela do produto anual destinada ao consumo. Já
do ponto de vista desses paladinos do entendimento humano saudável e “simples” (!), esses
períodos teriam, ao contrário, de eliminar as crises.” [7] [pág. 514 O Capital Livro II, Editora
Boitempo, 1ª edição]

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A meu ver, Marx rejeitou tanto a lei do valor na interpretação de DH como também a
conclusão de que as crises são causadas pela incapacidade de pagar pelos “quereres,
necessidades e desejos” das pessoas. Mas Marx poderia estar errado e DH certo sobre a causa
das crises. No entanto, as evidências empíricas não apoiam DH.

Deixe-me citar apenas três fatos. O primeiro é que o consumo dos trabalhadores não é o
maior setor de “demanda” numa economia capitalista; é o consumo de capital produtivo.
Produto interno bruto é uma medida da demanda anual por “quereres, necessidades e
desejos”. Nos EUA, o consumo parece constituir 70% do PIB. No entanto, se você olhar para
o “produto bruto” que inclui todo os produtos intermediários com valor agregado não
contabilizados no PIB, então o consumo aparece como apenas 36% do produto total; o
restante constitui demanda do capital por partes, materiais, bens intermediários e serviços. É
o investimento de capitalistas que é o fator determinante e motor da demanda, não o
consumo de trabalhadores.

Isso fica demonstrado no segundo fato. Se analisarmos as mudanças em investimento e


consumo que precedem cada recessão ou baixa na economia norte-americana do pós-guerra,
veremos que a demanda de consumo teve pequeno ou nenhum papel na causação de uma
queda. Nas seis recessões desde 1953, o consumo pessoal caiu menos do que o PIB ou o
investimento em cada ocasião e absolutamente não caiu em 1980-2. O investimento caiu de 8
a 30% em todas as ocasiões.

Mudanças de porcentagem em consumo pessoal real (PC), investimento e produto interno


bruto (GDP).

O terceiro fato diz respeito diretamente a salários e à alegação de DH de que aumentá-los


ajudaria o capital. Carchedi estabelece que das 12 crises após Segunda Guerra, 11 foram
precedidas por aumento dos salários e apenas uma por queda dos salários (a crise de 1991)
[8]. Isso confirma a visão de Marx na nota do Volume 2 acima.

Eu concluo a partir do breve artigo de DH que ele pretende estabelecer uma tese de que a
luta de classes não é mais centrada ou decidida entre trabalho e capital no ponto de produção
da mais-valia. Em vez disso, no capitalismo “moderno”, ela se encontra em outros pontos
desse “circuito do capital” que ele apresenta em seu último livro e em várias apresentações
globalmente. Para DH, é no ponto da realização (isto é, aluguéis, hipotecas, superfaturamento
por farmacêuticas etc.) ou na distribuição (por impostos, serviços públicos etc.) que os
“pontos quentes” da luta de classes estão focados agora. A luta de classes na produção agora
é menos importante (ou até inexistente).

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A meu ver, para apoiar isso, DH apresenta uma série de confusões teóricas em seu artigo.
Primeiro, Marx não teria uma teoria do valor do trabalho. Segundo, o valor só seria criado na
troca (na realização). Terceiro, a taxa de lucro (ou mesmo o próprio lucro) seria irrelevante
para as crises: o importante seria o decréscimo do valor da força de trabalho ao mínimo (ou
até a zero!) não permitindo que os trabalhadores sejam capazes de alcançar seus “quereres,
desejos etc.” Isso resulta numa teoria do subconsumo bruta – ainda mais bruta que a de
Keynes.

DH deliberadamente ignora a diferença (e a dualidade) entre trabalho concreto e abstrato, e


sua contrapartida, valor de uso e valor de troca. A natureza dual do valor numa mercadoria,
como Marx descobriu, é reduzida por Harvey a uma incapacidade dos trabalhadores de
comprar seus valores de uso. Valor de uso (quereres e desejos) é a chave, não o valor de troca
no valor, para DH. A teoria das crises de Marx (baseada em mais-valia insuficiente) é
substituída por valores de uso insuficientes para trabalhadores como consumidores.
Sobreacumulação é substituída por subconsumo. A luta de classes deixa de ser sobre
trabalhadores versus capitalistas para se tornar sobre consumidores versus capitalistas ou
pagadores de impostos versus governos.

Não é a visão de Marx. Mais importante, a abordagem inteira é confusa para uma análise
classista e estratégica para a luta da classe trabalhadora.

Os erros de compreensão de Michael Roberts

Por David Harvey, traduzido por Augusto Ribeiro Silva

Há, obviamente, alguns pontos sérios para discussão a respeito da teoria do valor de Marx e
eu espero que o diálogo com Michael Roberts auxilie nessa questão. Antes de me ater a eles,
eu preciso corrigir uma série de erros de leitura e interpretação sobre minha posição
presentes na resposta de Roberts. Permitam-me ser claro: o valor sempre é criado no ato da
produção. Mas é realizado no momento da troca no mercado. Eu, portanto, penso no valor
em termos do que Marx chama de “a unidade contraditória da produção e da realização.” O
valor não pode ser produzido através da troca no mercado. Marx é suficientemente claro a
esse respeito.

A essência do valor é o trabalho abstrato ou, como eu prefiro dizer, “trabalho socialmente
necessário”. Roberts está obviamente correto em dizer que a definição de Marx é inteiramente
diferente do tempo de trabalho concreto postulado por Ricardo. No entanto, não importa se
dissermos “trabalho abstrato” ou “socialmente necessário”, o ônus da questão cairá sempre
em como a abstração seria feita e no que se entenderia por socialmente necessário. A resposta
a tais questões deve se basear em processos materiais e não construída através de exercícios
idealistas. Portanto, por qual processo materialista o valor será construído se não for
“inerente” às mercadorias, mas historicamente criado.

A resposta é dada no ponto de partida de Marx n’O Capital, que é o ato material idealizado
da troca de mercadorias. Se o capitalista leva a mercadoria ao mercado e não há querer,
necessidade ou desejo por ela, então o trabalho cristalizado nela é socialmente desnecessário
e, portanto, não tem valor (isso é o que Marx diz ao fim da primeira seção d’O Capital)
[página 211 da edição da Boitempo, Livro I]. Isso não significa que o valor seja criado no
mercado (o que Roberts erroneamente me acusa de dizer). Mas – e essa pode ser minha visão
particular da questão – eu tomo o valor criado na produção como um valor meramente
potencial até que ele seja realizado. Outra forma de dizê-lo seria afirmar que o valor é
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produzido, mas que será perdido se não houver para ele demanda no mercado. Nesse caso,
precisaríamos construir uma teoria forte de desvalorização para dar conta do que ocorre no
mercado. A desvalorização raramente aparece nas considerações de Roberts e não tem lugar
em sua resposta. Dado meu interesse na relação entre valor e não-valor ou anti-valor, essa
última formulação pode também funcionar para mim. Mas em ambos os casos eu acredito
que seja inegável que o estado de quereres, necessidades e desejos apoiados por capacidade
de pagamento tenha um papel importante na sustentação da circulação do capital. Isso não
significa, como Roberts infere repetidas vezes, que esse seja o único fator relevante na
formação da crise. Eu me esforcei para dizer diversas vezes que esse é apenas um momento
importante na circulação do capital onde desvalorizações (eventualmente, mas nem sempre,
da proporção de uma crise) podem ocorrer.

Mas Roberts adora por diversas vezes me relegar a essa categoria pejorativa de
subconsumista sempre que eu menciono tais questões. Foi Marx, e não eu, quem disse que “a
verdadeira raiz das crises” está no poder de compra diminuído das classes trabalhadoras e se
eu cito Marx nesse momento é porque é um impecável antídoto para todos aqueles que
incansavelmente recorrem à queda da taxa de lucro. Eu tenho argumentado que crises vêm
em muitas formas e tamanhos. A queda da taxa de lucro ou o colapso da demanda
consumidora são duas de muitas explicações (eu noto de passagem que Marx, em seus
comentários sobre as crises de 1847 e 1857 – crises que assemelharam-se excepcionalmente à
de 2007-8 – descreveu as crises como comerciais e financeiras sem qualquer menção à queda
da taxa de lucro ou a demanda consumidora insuficiente).

Minha objeção a qualquer interpretação produtivista excludente (para fazer uma


caracterização pejorativa correspondente!) é que elas isolam totalmente toda a história de
criação de quereres, necessidades e desejos (sem mencionar a mecânica de garantia da
capacidade de pagamento) na história da acumulação capitalista. Acredito que devamos
prestar muito mais atenção a esse aspecto. Isso não significa que eu subestime, negue ou
refute todo o trabalho que tem sido feito no processo de trabalho e a importância das lutas de
classes que têm ocorrido e continuam a ocorrer na esfera produtiva. Mas essas lutas devem
ser relacionadas às lutas em torno da realização, distribuição (por exemplo, extrações de
renda, execuções de dívida), reprodução social, o manejo da relação metabólica com a
natureza e os presentes gratuitos da cultura e da natureza. Esses todos têm tido grande
importância em movimentos anticapitalistas recentes e eu insisto que os encaremos com
seriedade ao lado do mais tradicional foco na esquerda marxista com a tendência de assumir
a luta de classes no ponto da produção como o momento-chave da luta. É por isso que eu
acredito que o diagrama que eu ofereço da circulação e a definição de capital como valor em
movimento seja tão importante. É estranho ver tudo isso desprezado na citação de Murray
Smith como “pensamento circular”!!

Essa perspectiva abre algumas linhas interessantes de questionamento e pontos de


divergência. As considerações de Marx sobre lutas em torno da jornada de trabalho e das
forças que movem mudanças tecnológicas e organizacionais em busca de mais-valia relativa
todas dependem das “leis coercitivas da competição”. Esse termo aparece em vários pontos-
chave no argumento de Marx ao longo d’O Capital. Onde essa força é mobilizada e mais
distintamente notada? No mercado, é claro! Nós não podemos entender o que ocorre no
âmbito da produção (ou reprodução social) sem a atuação de forças de mercado. São as leis
coercitivas da competição no mercado que orientam o reinvestimento capitalista e o
prolongamento da jornada de trabalho etc.

Mas isso nos remete a como Marx estabelece a abstração de valor – o que é, aliás, na visão de
Marx, uma relação social, portanto “imaterial porém objetiva” e não “inerente” e “real” como
a citação de Murray propõe (“Exatamente ao contrário da objetividade sensível e crua dos
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corpos-mercadorias, na objetividade de seu valor não está contido um único átomo de


matéria natural.” diz Marx n’O Capital). [página 125 de O Capital Livro 1, editora Boitempo,
1ª edição revisada] O valor emerge não como produto do pensamento, mas como produto de
um processo material histórico. O estudo de Marx de formas de valor equivalentes e relativas
leva à generalização da troca que fundamenta o surgimento do valor como uma norma
regulatória que opera no mercado, e é essa norma regulatória do valor que então retorna para
dominar comportamentos não apenas no mercado, mas também no âmbito da produção e da
reprodução social. Esse é um movimento muito dialético que Marx faz, mas é comumente
encontrado no trabalho de Marx. Apenas dessa maneira, por exemplo, pode-se entender
como se dá que os trabalhadores façam o capital que em seguida retorna para dominá-los e
que todos nós possamos nos tornar prisioneiros de nossos próprios produtos (atenção
acadêmicos!!).

Finalmente, permitam-me comentar sobre o exemplo empírico no qual Roberts reduz a


demanda final de 70 para 30 porcento. Para ser claro, há uma questão complicada sobre como
lidar com relações de valor através de cadeias de mercadorias (há um artigo interessante de
Starosta sobre Cadeias de Mercadorias e a teoria do valor de Marx na revista Antipode de
2011). Mas imagine a situação em que minério de ferro seja minerado e a empresa
mineradora produza valor e mais-valia, a serem realizados através da venda para uma
companhia que produza aço, que por sua vez realize mais valor e mais mais-valia através
duma venda para uma empresa automobilística, que produza ainda mais valor e mais-valia
pela venda de automóveis para consumidores finais que queiram e necessitem de um
automóvel e tenham dinheiro para comprá-lo. O valor do automóvel é todo o trabalho
abstrato pretérito aplicado. Suponha que, por algum motivo, os consumidores finais não
sejam capazes de pagar ou estejam saturados de automóveis. Então todo o valor acumulado é
perdido (desvalorizado). Na prática, como Marx observou, a cadeia de pagamentos pode
demorar para se estabelecer, mas quando ela o faz toda a produção de valor nessa cadeia
desaparece.

Claro, todo outro tipo de cenários pode ser imaginado. Mas o ponto aqui é que ninguém
exceto loucos e especuladores desejarão acumular aço na ausência de um mercado adequado.
Então o que ocorre com o valor nessas situações torna-se problemático e as considerações de
Robert fazem parecer que investimento na produção de meios de produção é independente
da demanda final e pode ocorrer independentemente das condições finais do mercado. Claro,
há certos tipos de investimento com todo tipo de defasagem temporal (capital fixo e
infraestrutura), como a superprodução chinesa de cidades financiadas pelo endividamento,
onde as coisas ficam muito complicadas (como eu destaquei no capítulo final de Loucura da
Razão Econômica). Mas o exemplo empírico de Roberts não faz sentido para mim na
elucidação do porquê da realização ou as políticas de realização serem irrelevantes ou no
máximo colaterais à ação central do âmbito produtivo.

Tudo isso e nós ainda não nos debruçamos sobre as questões espinhosas do dinheiro e das
políticas de distribuição ao lado da circulação de capital portador de juros em relação à teoria
do valor. Podem bancos produzir valor? Eles claramente podem produzir representações de
valor a passo largo… Seríamos nós colaterais também?

Notas:

1) h ps://profilebooks.com/marx-capital-and-the-madness-of-economic-reason.html

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2) [pág. 233 – O Capital Livro I, Editora Boitempo, 1ª edição revista]

3) Murray Smith, Invisible Leviathan, 2018

4) Cocksho e Co rel dividiram a economia em um grande número de setores para mostrar


que o valor monetário do produto bruto desses setores correlaciona-se fielmente com o
trabalho empenhado na sua produção. Anwar Shaikh também fez algo similar. Ele comparou
preços de mercado, valores de trabalho e preços padrão de produção calculados das tabelas
de fluxo [input/output] dos Estados Unidos e constatou que em média valores de trabalho
desviam de preços de mercado por apenas 9,2% e que preços de produção (calculados a taxas
de lucro observadas) desviam de preços de mercado por apenas 8,2%. Lefteris Tsoulfidis e
Dimitris Paitaridis investigaram a questão das variações de preço-valor usando a tabela de
fluxo [input/output] do Canadá. Eles constataram que para a economia canadense os
resultados são consistentes com a teoria do valor de Marx. E G. Carchedi, em um artigo
recente, mostrou que a validade da lei do valor de Marx pode ser testada com dados oficiais
dos Estados Unidos, os quais são preços deflacionados em dinheiro de valores de uso. Ele
constatou que taxas de lucro de dinheiro e valor moviam-se na mesma direção (com uma
tendência ao decréscimo) e mantinham-se muito próximas uma à outra.

5) “A acumulação de capital, que originalmente aparecia tão somente como sua ampliação
quantitativa, realiza-se, como vimos, numa contínua alteração qualitativa de sua composição,
num acréscimo constante de seu componente constante à custa de seu componente variável.”
[pág. 704 O Capital Livro I, Editora Boitempo, 1ª edição revisada]

6) Grundrisse.

7) O Capital Volume 2, Capítulo 20

8) h ps://thenextrecession.files.wordpress.com/2017/09/carchedi-the-old-and-the-new.pdf

Publicado por LavraPalavra

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18 de fevereiro de 2019
Crítica

Capitalismo, David Harvey, Economia, Lei do valor, Mais-trabalho, Marx, Michael


Roberts, Murray Smith, Trabalho abstrato, Valor de troca, Valor do trabalho, Valor
trabalho

https://lavrapalavra.com/2019/02/18/o-erro-de-david-harvey-na-compreensao-da-lei-do-valor-em-marx/ 9/10
2/28/2019 O erro de David Harvey na compreensão da lei do valor em Marx – LavraPalavra

2 comentários em “O erro de David Harvey na


compreensão da lei do valor em Marx”

1. Pingback: O erro de David Harvey na compreensão da lei do valor em Marx –


LavraPalavra – Contramedia
2. Alan
disse:
20 de fevereiro de 2019 às 15:30
O único equívoco de Roberts foi classificar Harvey como “subconsumista, quando, na
verdade, ele é um “ultrraconsumista”

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https://lavrapalavra.com/2019/02/18/o-erro-de-david-harvey-na-compreensao-da-lei-do-valor-em-marx/ 10/10

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