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Gravitação semiclássica
(Semiclassical gravity)
Fazemos aqui uma breve descrição da teoria semiclássica da gravitação que tem conseguido antecipar de
forma bastante robusta alguns efeitos de gravitação quântica.
Palavras-chave: relatividade geral, mecânica quântica, teoria de campos quânticos em espaços-tempos curvos,
gravitação quântica, gravitação semiclássica, buracos negros, efeito Fulling-Davies-Unruh, radiação Hawking.
We make a brief description of the semiclassical gravity theory, which has been able to anticipate some effects
of quantum gravity.
Keywords: general relativity, quantum mechanics, quantum field theory in curved spacetimes, quantum grav-
ity, semiclassical gravity, black holes, Fulling-Davies-Unruh effect, Hawking radiation.
em compartimentos estanques as teorias que descrevem campo eletromagnético é relativamente fácil. Em sua
o micromundo das teorias que descrevem o macrocos- formulação quântica, ondas eletromagnéticas acabam
mos. É necessário que os princı́pios que regem todas sendo interpretadas em termos de fótons, que fazem o
as teorias, sejam elas usadas para explicar o micro- papel de “partı́culas de luz”.
mundo ou macrocosmos, sejam compatı́veis. Assim, há Uma das previsões mais interessantes feitas pela
meio século que se procura por uma teoria que compa- Teoria Quântica de Campos é a de que há criação de
tibilize a teoria da relatividade geral com os princı́pios pares de partı́culas, elétron-pósitron, em regiões com
quânticos (veja p. 147). campo elétrico intenso. O pósitron é também chamado
Estamos, em minha opinião, ainda longe de uma de anti-elétron pois possui a mesma massa do elétron
teoria completa e consistente de gravitação quântica, mas demais números quânticos invertidos, e.g., carga
mas seja qual for ela, é natural esperar que dependa elétrica, número leptônico, etc. A energia necessária
das seguintes constantes (dimensionais) fundamentais: para a criação dessas partı́culas provêm do campo
a velocidade da luz c, que carregaria a natureza rela- eletromagnético.
tivı́stica da teoria, ~ que refletiria a natureza quântica Com o efeito acima em mente, é natural argüir-se se
da teoria e G que expressaria ser esta uma teoria rela- um fenômeno análogo não poderia acontecer em cam-
tivı́stica de gravitação quântica. Com estas grandezas pos gravitacionais intensos. Em caso afirmativo, quiça
podemos construir três escalas fundamentais que for- parte da matéria do Universo pudesse ter sido gerada
mam a assim chamada escala de Planck: a distância de pouco depois do big bang a partir do fabuloso campo
Planck r gravitacional primordial. Foram motivações como essa
~G que levaram L. Parker a estender, nos fins dos anos 60, o
LP = ≈ 10−33 cm ,
c3 conhecido formalismo de Teoria de Campos no espaço-
o intervalo temporal de Planck tempo de Minkowski para espaços-tempos curvos. O
espaço-tempo de Minkowski é a solução de vácuo espa-
r
~G cialmente plana, homogênea e isotrópica das equações
TP = ≈ 10−44 s de Einstein. Com efeito, tal espaço-tempo descreve lo-
c5
calmente bastante bem o espaço-tempo em regiões com
e finalmente a massa (ou energia) de Planck baixa densidade de matéria.
r Apesar de não podermos esperar que a validade da
~c teoria possa ser extrapolada para a escala de Planck,
MP = ≈ 10−5 g . a gravitação semiclássica já tem antecipado efeitos de
G
origem puramente quântica em gravitação, tal como a
Acredita-se, então, que a relatividade geral (e talvez radiação Hawking sobre a qual voltaremos a falar mais
a mecânica quântica) uma vez generalizada(s) numa adiante.
teoria de gravitação quântica, que permitiria tratar
fenômenos em situações extremas como as preconizadas
pela escala de Planck, não apresentará as singularidades
3. Teoria clássica de campos em
exibidas pela teoria clássica. espaços-tempos curvos
Mas podemos antecipar algo mais concreto desta
A primeira dificuldade na formalização da gravitação
nova teoria de gravitação? A resposta é sim, e pelo
semiclássica (também denominada teoria quântica de
menos em parte isso se deve à assim chamada for-
campos em espaços-tempos curvos) pode ser vista já
mulação semiclássica da gravitação, também denomi-
antes dos campos serem quantizados. Assim como o
nada de teoria de campos em espaços-tempos curvos.
campo eletromagnético é descrito a nı́vel clássico por
meio das equações de Maxwell, um campo escalar real
2. Gravitação semiclássica: Motivação livre não maciço φ é descrito pela equação de Klein-
histórica Gordon
¤φ = 0, (2)
Denominaremos aqui de campo a objetos matemáticos na qual
definidos em cada ponto do espaço-tempo. Por exem-
plo, podemos falar do campo de temperaturas de um ∂2 ∂2 ∂2 ∂2
¤≡ − − − .
certo sistema termodinâmico se em cada instante tem- ∂t2 ∂x2 ∂y 2 ∂z 2
poral associarmos um certo valor T a cada ponto espa- Tanto as equações de Maxwell como a de Klein-Gordon
cial P. Outro exemplo é o campo eletromagnético. são equações relativı́sticas, no sentido que estão de
O campo eletromagnético, por ser de longo alcan- acordo com as simetrias do espaço-tempo preditas pela
ce, possui, assim como a gravitação, uma formulação relatividade. Podemos pensar no campo φ como des-
clássica. As equações que descrevem classicamente o crevendo “fótons sem spin”. Apesar da Eq. (2) ter
campo eletromagnético são as equações de Maxwell. solução no espaço de Minkowski, ela não possui solução
Contudo, ao contrário da gravitação, a quantização do em espaços mais exóticos.
Gravitação semiclássica 139
Suponhamos um espaço-tempo plano com topologia admitem definições distintas de partı́cula elementar
de um quatro torus com lado espacial L e temporal T . para uma mesma teoria de campos. Por exem-
Então se T 2 /L2 for irracional, a Eq. (2) não admite plo, no espaço-tempo de Minkowski há uma maneira
solução não trivial (i.e. a única solução admissı́vel é óbvia de definir partı́culas elementares com relação a
φ = const) (veja Ref. [2]). Fica claro assim que as pro- observadores inerciais, i.e. livre de forças. Por ser
priedades do espaço-tempo influenciam na construção o espaço de Minkowski maximamente simétrico, uma
das possı́veis teorias de campo mesmo a nı́vel clássico. outra definição independente pode ser dada além da
Felizmente, para a maior parte do espaços-tempos fisi- anterior, usando-se observadores uniformemente acele-
camente relevantes, as equações que descrevem os cam- rados, assim como reza o efeito Fulling-Davies-Unruh.
pos clássicos possuem solução. Em resumo, o efeito Fulling-Davies-Unruh diz que
um observador acelerado no vácuo de observadores
4. Teoria quântica de campos em inerciais, detecta um banho térmico de partı́culas ele-
espaços-tempos curvos e partı́culas mentares de Rindler cuja temperatura é dada por
elementares
~a
TU = , (3)
Assumindo que a teoria de campo clássica possua 2πkc
solução, podemos partir para sua quantização. Uma
na qual k é a constante de Boltzmann e a corresponde
das perguntas que surge naturalmente é como extrair o
à aceleração própria do observador. Para criarmos al-
conteúdo de partı́cula da teoria. Antes de mais nada,
guma intuição sobre o efeito Fulling-Davies-Unruh [3]
devemos afirmar que assim como o conceito de partı́cula
investigaremos brevemente a resposta de um detector
elementar deixa de ser bem definido em certas situações
acelerado no vácuo de Minkowski onde usaremos como
tais como, por exemplo, “durante” um processo de co-
detector um sistema de dois nı́veis, também chamado
lisão, o conceito de partı́cula elementar deixa de ser bem
de detector de Unruh-DeWitt [4].
definido em espaços-tempos que não possuem certas
simetrias temporais. Com efeito, para podermos dis- A probabilidade de excitação de um detector (de
cernir entre modos de freqüência positiva de modos de partı́culas escalares sem massa) uniformemente ace-
freqüência negativa, i.e. partı́culas de anti-partı́culas, lerado no vácuo de Minkowski (por unidade de tempo
é necessário que o espaço-tempo possua aquilo que de- próprio) em primeira ordem de perturbação, é dada por
nominamos de um campo de Killing global tipo tempo.
Em tais espaços-tempos existe uma famı́lia de obser- q 2 ∆E
R= , (4)
vadores para os quais as propriedades geométricas do 2π(e∆E/kTU − 1)
espaço-tempo não mudam.
Pela definição acima, não é claro como definir o con- na qual lembramos que partı́culas escalares sem massa
ceito de partı́cula elementar em espaços-tempos sem al- podem ser entendidas como fótons sem spin, o vácuo de
guma simetria temporal que, com efeito, é o caso do Minkowski é aquele estado quântico onde observadores
Universo em expansão em que vivemos. A despeito livres de forças não detectam partı́culas, q é a constante
disso, experiências tı́picas que envolvem partı́culas do acoplamento mı́nimo entre o detector e o campo e
elementares acontecem num perı́odo de tempo tão ∆E é a diferença de energia entre os dois estados do
curto (em relação à expansão do Universo) que, em detector. É fácil ver que se o detector está numa tra-
boa aproximação, podemos assumir que o Universo é jetória inercial, a = 0, então (4) se anula como espe-
estático. Nestes casos podemos falar sem problemas de rado. No entanto, se o detector possui uma aceleração
partı́culas elementares. Em situações mais gerais, con- própria constante a, a Eq. (4) não se anula. O fator tipo
£ ¤−1
tudo, isso não é possı́vel. Planck e∆E/kTU − 1 indica que para este detector
Quando o espaço-tempo tende a Minkowski assin- acelerado, em particular, seu comportamento é idêntico
toticamente no passado e no futuro podemos comparar ao que teria se estivesse em repouso num banho térmico
o número de partı́culas nas regiões assintoticamente caracterizado pela temperatura TU .
planas, e atribuir uma possı́vel criação de quanta à Vale notar que detectores distintos acoplados a
variação do campo gravitacional. Note-se mais uma outros campos podem ter comportamentos totalmente
vez, contudo, que mesmo que chegássemos à conclusão diferentes, o que não desafia de forma alguma o efeito
que tivesse havido uma criação de N partı́culas, con- Fulling-Davies-Unruh. O efeito Fulling-Davies-Unruh
tinuamos não podendo afirmar nada sobre existência não afirma que todo detector acelerado uniformemente
ou não de partı́culas no perı́odo não-estático. se comportará como se estivesse inercial num banho
térmico caracterizado pela temperatura TU , mas que os
5. Efeito (Fulling-Davies-)Unruh observáveis obtidos no referencial inercial com o vácuo
de Minkowski podem ser recuperados no referencial uni-
Assim como há espaços-tempos nos quais não se pode formemente acelerado se assumimos um banho térmico
definir partı́culas elementares, há espaços-tempos que à temperatura TU .
140 Matsas
É interessante notar que a excitação do detector contexto clássico de que observadores co-acelerados com
é acompanhada, segundo a descrição feita por obser- a carga não observam radiação, mas explica também
vadores inerciais, da emissão de uma partı́cula ele- “para onde foram”os fótons emitidos assim como acu-
mentar. Isso somente é possı́vel porque o agente que sados pelos observadores inerciais.
acelera o detector fornece essa energia. É interessante
notar também [5] que cada partı́cula de Minkowski
emitida pelo detector assim como observada no refe- 7. Princı́pio de equivalência e radiação
rencial inercial, é descrita pelo observador acelerado
O problema acima está diretamente ligado com
como a absorção de uma partı́cula de Rindler pre-
a clássica controvérsia se deverı́amos esperar pelo
sente no banho térmico. As denominações partı́cula
Princı́pio de Equivalência que cargas estáticas em cam-
de Minkowski e partı́cula de Rindler estão associadas
pos gravitacionais também estáticos irradiassem [8].
à quantização do campo com respeito aos observadores
O “paradoxo” pode ser enunciado como segue: É
inerciais e acelerados respectivamente.
sabido que cargas aceleradas irradiam com respeito a
Finalmente é interessante notar que a observação da
observadores inerciais. Como radiação pode ser inter-
depolarização dos feixes de partı́culas em aceleradores
pretada quantum-mecanicamente em termos de fótons,
pode ser interpretada no referencial co-acelerado, ao
seria natural esperar que observadores co-acelerados
menos em parte, como devida à presença do banho
com a carga também observassem radiação. Por fim,
térmico que induziria uma transição no spin [6].
usando ingenuamente o Princı́pio de Equivalência,
poderı́amos ser levados a concluir que cargas estáticas
6. Solução para um velho problema em campos gravitacionais também estáticos emitem ra-
diação, o que seria inconsistente do ponto de vista de
Um outro problema que pode ser entendido comple- conservação de energia.
tamente neste contexto é a questão se cargas acele- Como já vimos acima, o fato do conceito de
radas irradiam segundo observadores co-acelerados. É partı́cula elementar ser dependente do observador per-
bem sabido que cargas aceleradas irradiam tal como mite que observadores em co-movimento com uma
observado em referenciais inerciais. Classicamente, con- carga uniformemente acelerada não observem fótons de
tudo, havia uma controvérsia sobre se observadores energia finita sendo irradiados pela carga, ao contrário
co-acelerados com a carga mediriam alguma radiação. de observadores inerciais. Entretanto, como já visto,
Atualmente existe consenso no contexto clássico que esses observadores co-acelerados atribuem à carga
observadores co-acelerados com a carga não medem emissão e absorção de fótons de energia nula. É natural
qualquer radiação. então se perguntar se observadores estáticos com uma
No contexto da mecânica quântica, a investigação carga num campo gravitacional também estático podem
destas questões se torna ainda mais interessante, devido igualmente atribuir a ela a emissão e absorção de algum
ao papel desempenhado pelo banho térmico no qual a tipo de partı́cula de energia nula. No caso em que uma
carga está imersa em seu referencial de repouso. Clara- carga se encontra em repouso fora de um buraco negro
mente, a corrente que descreve a carga no seu referencial de Schwarzschild em equilı́brio termodinâmico com um
de repouso não pode interagir com partı́culas de energia banho térmico, pode-se mostrar, de fato, que tal carga
finita pois é estática. absorverá e emitirá fótons de energia nula.
Foi mostrado então [7] que a emissão de fótons Vale comentar que num certo caso particular, uma
com momento transversal k⊥ assim como visto no igualdade notável se faz presente. Consideremos uma
referencial inercial, pode ser interpretada como a fonte escalar com aceleração própria a = const,
emissão/absorção de fótons de Rindler de energia nula acoplada minimamente com um campo de Klein-
com o mesmo momento transversal k⊥ para/do banho Gordon Φ através de uma pequena constante q. Foi
térmico de Davies-Unruh no qual a carga está imersa mostrado recentemente [9] que a resposta
em seu referencial de repouso.
Com respeito à mensurabilidade dos fótons de RS = RS (r, M )
Rindler de energia nula, notamos que apesar de car-
regarem momento transversal finito, fótons de Rindler da fonte à radiação Hawking (associada com o vácuo de
emitidos pela carga não são detectáveis. Isso se deve Unruh) emitida por buracos negros sem carga ou mo-
não apenas ao fato de que existem infinitos fótons de mento angular calculada quando a fonte repousa com
energia nula no banho térmico todos eles concentra- coordenada radial (de Schwarzschild) r = const > 2M
dos sobre o horizonte de eventos onde os observadores fora do buraco com massa M é exatamente a mesma que
acelerados não tem acesso, mas também porque a taxa a resposta RM (a) da fonte quando ela está uniforme-
de emissão e absorção destas partı́culas é a mesma e mente acelerada (com a mesma aceleração própria que
o banho não sofre disrupção, i.e., |ni → |n + 1i tem antes) no vácuo inercial do espaço-tempo de Minkowski.
a mesma taxa de transição de |n + 1i → |ni . Nossa Que este resultado é de fato surpreendente pode ser
conclusão não só está em acordo com a análise feita no visto como segue. Primeiramente, devemos lembrar que
Gravitação semiclássica 141
[22] F. Halzen, E. Zas, J.H. MacGibbon and T.C. Weeks, [25] S.W. Hawking, Nature 248, 30 (1974); S.W. Hawking,
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[23] R.M. Wald, The Thermodynamics of Black Holes in [26] W.G. Unruh, Phys. Rev. Lett. 46, 1351 (1981).
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