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Linguística Textual


Rosângela Hammes Rodrigues
Marcos Antonio Rocha Baltar
Nívea Rohling da Silva
Período Vidomar Silva Filho

Florianópolis - 2012
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Catalogação na fonte elaborada pela DECTI da Biblioteca Central da


UFSC

L755 Linguística textual : 4º período / Rosângela Hammes Rodrigues ...


[et al.]. – Florianópolis : UFSC/LLV/CCE, 2012.
192 p.

Inclui bibliografia
UFSC. Licenciatura em Letras-Português na Modalidade a Distância
ISBN 978-85-61482-51-0

1. Linguística. 2. Análise do discurso. 3. Ensino a distância.


I. Rodrigues, Rosângela Hammes
CDU: 801
Sumário
Unidade A - Trajetória e objeto(s) de pesquisa........................ 9
1  Panorama histórico da Linguística Textual ..........................................11
2  Concepções de texto ..................................................................................19

Unidade B - O texto na ótica dos estudos


da textualidade.........................................................27
3  Noções gerais.................................................................................................29
4  Coesão textual................................................................................................39
5  Coerência.........................................................................................................55
5.1 Elementos linguísticos.....................................................................................56
5.2 Conhecimento de mundo..............................................................................58
5.3 Inferências ...........................................................................................................61
5.4 Focalização...........................................................................................................64
5.5 Relevância.............................................................................................................68
6  Intencionalidade e aceitabilidade...........................................................75
7  Informatividade.............................................................................................83
8  Situacionalidade............................................................................................93
9  Intertextualidade..........................................................................................99

Unidade C - O texto na ótica dos estudos


da enunciação........................................................ 113
10  Texto, gênero, discurso: três conceitos indissociáveis................ 115
11  Texto, hipertexto, hiperlink, novas formas de interação .......... 125
12  Multimodalidade..................................................................................... 131
13  Referenciação............................................................................................ 141

Unidade D - O texto na sala de aula....................................... 165


14  O texto nas aulas de Língua Portuguesa.......................................... 167
15  O que é texto para o aluno?................................................................. 175
Considerações Finais...................................................................................... 185
Referências ....................................................................................................... 187
Apresentação

C aro aluno,

Apresentamos a você o livro da disciplina Linguística Textual,


que faz parte do conjunto de disciplinas da quarto período do Curso de
Licenciatura em Letras – Português na modalidade a distância.

Este livro tem por objetivo abordar o histórico dos estudos da Linguís-
tica Textual e, principalmente, as diferentes noções de texto e conceitos
correlatos, conhecimentos que julgamos importantes para a formação do
professor. Além disso, objetiva discutir a questão do texto na disciplina
escolar Língua Portuguesa. Para dar conta do objetivo proposto, o livro
está organizado em quatro unidades. Na Unidade A, apresentamos um
breve panorama histórico da Linguística Textual e discutimos as concep-
ções de texto que foram construídas durante o percurso de consolidação
dessa área e que fizeram com que a disciplina fosse adotando, em sua tra-
jetória, um caráter dinâmico e multidisciplinar. Na Unidade B, aborda-
mos a noção de texto a partir dos estudos da textualidade: apresentamos
o conceito de texto nessa perspectiva teórica, o conceito de textualidade
e desenvolvemos os princípios de textualidade.

A partir dessa Unidade, incluímos, ao final das seções, uma orientação


mais específica para a formação do professor, a qual relaciona os con-
ceitos teóricos abordados com a prática de ensino e aprendizagem dos
conteúdos na disciplina Língua Portuguesa. Na Unidade C, apresentamos
o conceito de texto a partir dos estudos atuais da Linguística Textual e de
áreas afins que também tomam o texto como objeto de estudo. Discutire-
mos a noção de texto na perspectiva dos estudos do discurso, dos gêne-
ros do discurso/textuais, do hipertexto e da multimodalidade (vertente
enunciativa dos estudos do texto). Além disso, discutiremos a noção de
referenciação no texto (vertente sociocognitiva dos estudos do texto). E,
por fim, na Unidade D, relacionamos mais especificamente o estudo teó-
rico do texto com o ensino e aprendizagem das práticas de leitura, escuta
e produção textual nas aulas de Língua Portuguesa.

Nosso objetivo final é que este livro seja um meio eficaz para introduzir os con-
ceitos fundantes desse importante campo de estudo que é a Linguística Textual,
bem como demonstrar a articulação desses conceitos com o ensino e aprendi-
zagem das práticas de linguagema na disciplina escolar Língua Portuguesa.

Rosângela Hammes Rodrigues


Marcos Antonio Rocha Baltar
Nívea Rohling da Silva
Vidomar Silva Filho
Unidade A
Trajetória e objeto(s) de pesquisa

Duas jovens lendo. Pablo Picasso, 1934.


Nesta Unidade, vamos apresentar uma introdução aos estudos da
disciplina Linguística Textual.

Ao final do estudo desta Unidade esperamos que você seja capaz de:

ӲӲ Conhecer a trajetória da Linguística Textual;

ӲӲ Conhecer as diferentes concepções de texto, sujeito e língua


que nortearam a pesquisa nessa disciplina;

ӲӲ Refletir criticamente sobre as implicações teórico-metodológi-


cas das diferentes concepções de texto nas práticas de lingua-
gem em sala de aula.

Para atingir os objetivos propostos, dividimos a Unidade em dois


capítulos: no primeiro, apresentaremos o histórico da disciplina; no se-
gundo, abordaremos o objeto da Linguística Textual, por meio da discus-
são dos conceitos de texto que se constituíram nessa disciplina.
Panorama histórico da Linguística Textual Capítulo 01

1 Panorama histórico da
Linguística Textual

O texto foi e é objeto de investigação de diferentes disciplinas te-


óricas. Podemos observar que, no campo dos estudos da linguagem, a
primeira disciplina a se ocupar do texto foi a Retórica, seguida da Esti-
lística e da Filologia. Também se ocupam do texto disciplinas de outros
campos do conhecimento, como a Teoria Literária, a Antropologia, a
Sociologia etc. Neste livro, vamos abordar o estudo do texto no cam-
po da Linguística e, em especial, em uma dada disciplina, a Linguística
Textual. É preciso ressaltar que embora todas essas disciplinas de algum
modo partam do texto como unidade da interação humana, ou tomem
o próprio texto como objeto de investigação, elas constroem objetos te-
óricos distintos. Por isso, Marcuschi, no livro pioneiro de Linguística
Textual no Brasil, destaca que a Linguística Textual não é Teoria da Li-
Linguística de Texto: o que é
teratura, nem Estilística, nem Retórica, embora reconheça o parentesco e como se faz (1983).
entre essas disciplinas. Para o autor, a Linguística Textual constitui-se
como uma linha de investigação interdisciplinar dentro da Linguística.

Até os anos sessenta do século vinte, no campo da Linguística, com a


primazia dos estudos imanentes da língua, as unidades de análise foram o
fonema, o morfema, a palavra, a oração; enfim, as unidades da língua vista
na sua condição de sistema e de estrutura. O interesse pelo estudo do texto
nesse campo surge somente a partir do final da década de sessenta, quan-
do começam a aparecer novas pesquisas, cujo objetivo era olhar o texto
não por meio da ampliação e/ou alteração das teorias já existentes, calca-
das nos estudos imanentes da língua, mas por meio uma nova teorização,
construída a partir do estudo do texto. Essa nova posição desenvolveu-se
especialmente na Europa continental, principalmente na Alemanha.

“Em linguística estrutural [...], chama-se imanente toda pesquisa que


define as estruturas de seu objeto apenas pelas relações dos termos
interiores deste.” (DUBOIS et al, 1993 [1973], p. 331, grifo do autor).

11
Linguística Textual

Por exemplo, a estrutura fonológica de uma língua é definida pe-


las oposições dos fonemas entre si, sem levar em conta a realização
concreta da fala e os participantes da interação. Em síntese, os estu-
dos imanentes da língua são aqueles que olham a língua como es-
trutura, abstraída das condições de uso, focalizando a relação entre
elementos dessa estrutura.

Segundo Bernárdez (1982), a linguística do texto como tal aparece


pela primeira vez na segunda metade dos anos sessenta, em vários tra-
balhos, mas independentes entre si: Das direkte Objekt in Spanischen, de
Horst Isenberg; Pronomina und Textkonstitution, de Roland Harweg; e
Semantische Relationen im Text und im System, de Erhard Agicola. Tam-
bém nessa época, mais especificamente em 1966, é publicado o livro
Linguistik der Luge, de autoria do alemão Harald Weinrich. Já a primeira
aparição do termo linguística do texto, de acordo com Bernárdez (1982),
ocorreu um pouco antes, em 1956, no texto Determinación Y entorno,
Eugenio Coseriu de Eugenio Coseriu. Nesse texto precursor, o autor discute a necessida-
O autor se refere à parole de de se realizar também uma linguística da parole, dado que a linguís-
na dicotomia saussuria-
na do signo linguístico:
tica da langue já se encontrava constituída nos estudos linguísticos. E
langue/parole. Podemos salienta que o produto da fala (parole) é o texto; logo, havia essa neces-
observar que o autor
discute o paradigma epis-
sidade de uma linguística do texto. Ainda segundo Bernárdez (1982),
temológico vigente da as idéias de Coseriu não encontraram continuidade imediata, pois os
Linguística da época, que
tomava como objeto de
estudos iniciais do texto (o que se denominou como a primeira fase da
estudo a langue (língua Linguística Textual) não buscaram estudar o texto como produto da
como estrutura).
fala, ou seja, como produto de uma atividade linguística concreta dos
falantes, mas, antes, explicar fenômenos sintáticos e semânticos que
não podiam ser descritos adequadamente no nível da oração, como a
De fato, o conceito de
texto de Coseriu se apro- co-referencialidade.
xima mais das concep-
ções contemporâneas de
texto. A co-referencialidade ocorre quando, no texto, dois itens lexicais
têm uma identidade referencial, ou seja, referem-se ao mesmo ob-
jeto no mundo. Vejamos um exemplo:

12
Panorama histórico da Linguística Textual Capítulo 01

O Presidente Lula sobrevoou as cidades catarinenses afetadas


pela enchente. Ele ficou sensibilizado com a situação. O pronome
anafórico Ele retoma o antecedente O Presidente Lula. A anáfora e o
antecedente são co-referenciais, o que equivale a dizer que há uma
identidade referencial entre anáfora e antecedente.

Por essas diferenças teóricas iniciais da Linguística Textual, autores


como Fávero e Koch (1988 [1983]) consideram que embora a origem do
termo linguística do texto seja da obra de Coseriu, o uso desse termo no
sentido que lhe foi atribuído nos estudos iniciais do texto aparece pela
primeira vez na obra Linguistik der Luge, de autoria de H. Weinrich.

Assim, desde suas origens, a Linguística Textual propõe que se tome


o texto como objeto de estudo (embora com enfoques diversos, como
veremos a seguir, o que determina diferentes concepções teóricas do
que seja um texto). Objetiva ainda que se reintroduzam nos estudos da
linguagem o sujeito e a situação de interação, que, grosso modo, foram
excluídos das pesquisas da linguística estrutural. De acordo com Fávero
e Koch (1988[1983], p. 11), essa disciplina busca “tomar como unidade
básica, ou seja, como objeto particular de investigação, não mais palavra
ou a frase, mas sim o texto, por serem os textos a forma específica da
manifestação da linguagem”.

No Brasil, os estudos com enfoque no texto surgem na década de


1970 e têm forte inspiração em estudos de autores europeus: Weinrich;
Beaugrande e Dressler, entre outros, da Alemanha; Van Dijk, da Holanda;
Charolles, Combettes e Adam , da França; e Halliday e Hasan, da Inglater-
ra. Todavia, é a partir da primeira metade da década de oitenta que há uma
efervescência de pesquisas com foco nesse ramo da ciência linguística.
Isso se deve, em grande parte, aos trabalhos dos pesquisadores Ingedore
Villaça Koch, Leonor Lopes Fávero, Luiz Antônio Marcuschi, entre outros.

Segundo pesquisadores da área, no seu processo de constituição, a


Linguística Textual passou por três momentos distintos – que marcam

13
Linguística Textual

a ampliação do seu objeto de análise (da análise transfrástica para o es-


tudo do texto nas suas condições de produção) e seu afastamento pro-
gressivo teórico e metodológico das influências da linguística estrutural:

a) a análise transfrástica;

b) a construção de gramáticas textuais;

c) a construção de teorias de texto.

É importante destacar que não há consenso entre os autores se hou-


ve uma cronologia na passagem de um momento para outro. Por exem-
plo, Conte (apud FÁVERO e KOCH, 1988) salienta que se trata antes de
uma distinção tipológica, pois entre esses momentos não houve suces-
são temporal, mas diferentes desenvolvimentos teóricos. De todo modo,
há consenso entre os autores de que houve uma progressiva passagem
de uma teoria da frase para uma teoria de texto. A seguir, apresentare-
mos breve síntese desses três momentos da Linguística Textual.

ӲӲ Análise transfrástica – Trata-se do momento da análise das re-


gularidades que transcendem os limites da frase; parte-se desta
em direção ao texto. Segundo Fávero e Koch (1988), o enfoque
é o estudo das relações que podem ocorrer entre as diversas
frases que compõem uma sequência significativa no texto. Nes-
se estudo, destacam-se as relações referenciais, em particular
A coesão textual será
discutida na Unidade B. a co-referência, que é compreendida como um dos principais
elementos de coesão textual.

ӲӲ Gramáticas textuais – É o momento que tem como finalidade


refletir sobre os fenômenos linguísticos inexplicáveis por meio
de uma gramática da frase. A elaboração de gramáticas textuais
objetiva: a) verificar o que faz com que um texto seja um texto,
isto é, determinar seus princípios de constituição; b) levantar
critérios para a delimitação de textos; e c) diferenciar os tipos
de texto (FÁVERO; KOCH, 1988). Embora nesse momento
houvesse a busca pela construção do texto como objeto da Lin-

14
Panorama histórico da Linguística Textual Capítulo 01

guística, a sua compreensão ainda se pautava em grande medi-


da nos preceitos da linguística imanente. Por exemplo, postular
a construção de gramáticas do texto pressupõe a existência de
um sistema estável e abstrato, comum a todos os textos reali-
zados.

ӲӲ Teorias de texto – Nesse momento, a tendência dominante é cons-


truir teorias de texto que privilegiem os aspectos pragmáticos. As-
sim, a investigação se estende do texto ao contexto, compreendido
“O aspecto pragmático
como as condições externas de produção e recepção (interpreta- da linguagem concerne
ção) dos textos. às características de sua
utilização (motivações
psicológicas dos falantes,
Foi a partir da década de oitenta do século XX que o foco se vol- reações dos interlocutores
[...].” (DUBOIS, 1993 [1973],
tou para o estudo do texto inserido no contexto pragmático; em outras p. 480).
palavras, começou a ser de interesse da Linguística Textual a análise dos
textos nas condições de interação. Isso levou os estudiosos da área a
adotar em suas pesquisas o conceito de textualidade, em que está imbri-
cado um conjunto de princípios que contribuem para a construção e a
legibilidade do texto. A textualidade e os princí-
pios de textualidade serão
abordados na Unidade B.
Analisando o percurso da Linguística Textual por meio de seus di-
ferentes momentos, podemos observar que mesmo objetivando, desde
as origens, construir um estudo do texto alternativo às teorias imanen-
tes da língua, pelo menos nas fases iniciais esse estudo ainda se realizou
abstraído das condições de produção do texto e dos participantes da
interação; ou seja, também o texto foi analisado de um modo bastante
imanente.

Atualmente, os estudiosos da área têm se dividido em dois grandes


focos teóricos a partir dos quais olham o texto: o da cognição e o da
enunciação. Analisando o percurso da disciplina, observamos que de
uma abordagem do texto centrado mais na imanência, no produto e
na construção de uma teoria geral do texto, a Linguística Textual, hoje,
busca analisar o texto nas suas condições de produção, a partir de duas
visadas: de uma parte, como o sujeito se apropria dos conhecimentos
textuais e como os ativa na interação (foco da cognição); de outra, como

15
Linguística Textual

as questões de ordem social e discursiva interferem nos processos inte-


racionais e, logo, nos processos de produção e interpretação de textos
(foco da enunciação).

De acordo com Koch (2004), na vertente cognitiva, a partir da dé-


cada de oitenta, inicia-se o interesse pelo processamento cognitivo do
texto, especialmente a partir dos estudos de Teun A. van Dijk e Walter
Kintsch. Essa vertente intensifica-se na década de noventa, porém, ago-
ra, com forte apelo sociocognitivo. Nos estudos cognitivos da década
de oitenta, as pesquisas centram-se nas questões relativas ao processa-
mento cognitivo do texto (o que implica a consideração da produção e
compreensão do texto); às formas de representação do conhecimento
na memória; à ativação dos sistemas cognitivos por ocasião do proces-
samento; às estratégias sociocognitivas e interacionais imbricadas no
processamento textual (KOCH, 2002). Por outro lado, as pesquisas de
ordem sociocognitiva abordam os processos de referenciação e de infe-
renciação no texto, ressignificando os estudos da coesão textual.

Já na vertente enunciativa (com sua interface nos estudos do discur-


so, uma vez que ela se constitui a partir do diálogo com as diversas áreas
de estudo do discurso, especialmente aquelas que se baseiam nos estu-
dos do Círculo de Bakhtin, e com os estudos da Linguística Aplicada),
as pesquisas têm abordado questões de ordem interacional, tendo como
base a situação social de interação imediata e ampla em que ocorrem a
produção e a recepção (leitura, escuta) dos textos. Nesses estudos, essa
situação de interação é vista como parte do texto, ou seja, ela é constitu-
tiva dos processos de produção e recepção dos textos, da mesma forma
que há a compreensão de que sem os textos não há interação, uma vez
que o texto (visto na condição de enunciado) é a materialização dos
processos interacionais. Nessa vertente são objetos de interesse de pes-
Ver Unidade C . quisa a relação entre oralidade e escrita; a relação entre discurso e texto;
o papel dos gêneros do discurso/textuais na constituição e compreensão
dos textos; e, com a convergência das novas tecnologias e das diferentes
semioses, o texto visto a partir da noção de hipertexto e construído
por meio de diferentes processos semióticos. Como podemos observar,
essa vertente se constitui na relação interdisciplinar com outras áreas

16
Panorama histórico da Linguística Textual Capítulo 01

do conhecimento, como Linguística Aplicada e Análise de discurso (de


modo particular a análise dialógica do discurso, os estudos dos gêneros
do discurso/textuais e a análise crítica do discurso).

“Círculo de Bakhtin é a denominação atribuída pelos pesquisadores


ao grupo de intelectuais russos que se reunia regularmente no perío-
do de 1919 e 1929, dentre os quais fizeram parte Bakhtin, Voloshinov
e Medvedev. Bakhtin faleceu em 1975, Voloshinov, na década de vinte
e Medvedev, provavelmente, na década de quarenta.” (RODRIGUES,
2005, p. 152). A opção pelo nome de Bakhtin para se referir ao grupo
deve-se, provavelmente, à autoria de algumas obras de Voloshinov
e Medvedev, atribuídas também a Bakhtin por alguns estudiosos, e
pelo fato de a maioria dos textos do Círculo ser de autoria de Bakhtin.
É desse grupo de estudiosos que se desenvolve a concepção de lin-
guagem como interação. Os livros mais conhecidos no Brasil são Mar-
xismo e filosofia da linguagem (VOLOCHINOV), Estética da criação
verbal (BAKHTIN) e Questões de literatura e estética (BAKHTIN).

Analisando essas duas grandes vertentes atuais de estudo da Lin-


guística Textual e a interface da Linguística Textual com os estudos no
A Unidade C será destina-
campo do discurso e da Linguística Aplicada, ousamos afirmar que da a esses estudos.
podemos considerar que a Linguística Textual hoje se encontra em um
quarto momento: o estudo do texto considerando como constitutivos
os elementos da interação (situação social de interação e interlocuto-
res). Se nas décadas anteriores o texto era visto abstraído da situação de
interação, ou a situação de interação era vista como um elemento a se
considerar nos estudos do texto (daí a origem dos conceitos de co-texto
e contexto), hoje ela é um elemento fundante: o texto como tal (texto-
-enunciado) só existe na interação.

A partir desse breve olhar para a trajetória da Linguística Textual,


observamos que ela vem se consolidando como uma disciplina multi-
disciplinar, dinâmica e funcional. Segundo Koch (2002), inicialmente
era uma disciplina de inclinação gramatical (análise transfrástica), de-

17
Linguística Textual

pois pragmático-discursiva e, atualmente, tornou-se um campo de forte


tendência sociocognitiva. Acrescentamos a essa observação da autora a
atual tendência enunciativa da área, com forte apelo aos estudos discur-
sivos do texto. Entendemos que o caráter multifacetado e complexo do
texto é, de certa maneira, resultado desse objeto completo que é o texto
e é responsável pelos rumos que a Linguística Textual tem tomado como
campo de estudo, configurando-a como um campo transdisciplinar e
que intensifica cada vez mais seu diálogo com as demais ciências.

Neste Capítulo, apresentamos o panorama histórico da Linguística


Textual. No próximo Capítulo, apresentaremos as principais concep-
ções de texto desenvolvidas nessa Disciplina.

18
Concepções de texto Capítulo 02

2 Concepções de texto
Embora tenhamos uma noção intuitiva do que seja um texto, que
saibamos que não se interage do mesmo modo e nem com a mesma
finalidade em uma consulta médica, uma conversa de bar, ou diante de
um romance, de um e-mail de um amigo, de uma bula de remédio, de
um boleto bancário, de uma charge etc., construir uma definição teórica
do que seja um texto depende de uma série de fatores, como, por exem-
plo, o próprio desenvolvimento teórico da disciplina e a concepção de
língua e de sujeito que se tenha como fundamento teórico.

Neste Capítulo, vamos abordar algumas concepções de texto cons-


truídas pela Linguística Textual, pois a noção do que seja um texto so-
freu mudanças acentuadas nos estudos dessa disciplina, resultado dos
fatores anteriormente indicados: o próprio desenvolvimento teórico da
disciplina e a concepção de língua e de sujeito. Primeiramente, vamos
apresentar as concepções de texto dos diferentes momentos da Linguís-
tica Textual. Em seguida, vamos cotejar essas concepções e relacioná-las Estamos aqui nos refe-
com as noções de língua e de sujeito que as sustentam. rindo aos dois primeiros
momentos da Linguística
Textual, abordados no
Durante os períodos da análise transfrástica e da elaboração das Capítulo 1.
gramáticas textuais, época em que emergiram com muita força as pes-
quisas de sintaxe gerativa, o texto foi concebido, de modo geral, como
conjunto de sequências linguísticas. De acordo com Fávero e Koch (1988
[1983]), nessa fase, os conceitos mais recorrentes de texto foram: frase
complexa; signo linguístico primário e global; cadeia de pronominali-
zações ininterruptas; unidade superior à frase; sequência coerente de
enunciados. As propriedades organizadoras da definição de texto desse
primeiro momento, segundo Bentes (2001), estavam expressas na forma
de organização do material linguístico.

Desse período, o conceito de texto mais difundido no Brasil é o que


relaciona o conceito de texto de Isenberg (sequência coerente de enun-
ciados) com a noção de textualidade. Por exemplo, Koch e Travaglia
(1989, p.26, grifos nossos), ao discutirem a questão da coerência do tex-
to, definem que “textualidade ou textura é o que faz de uma sequência

19
Linguística Textual

linguística um texto e não uma sequência ou um amontoado aleatório


de frases ou palavras”. Costa Val (1991, p. 5, grifos nossos), ao anali-
sar a textualidade nas redações de vestibular, chama de “textualidade ao
conjunto de características que fazem com que um texto seja um texto,
e não apenas uma sequência de frases”.

Analisando outras definições de texto dessa época, percebe-


mos que o termo enunciado é intercambiado pelo termo frase,
demonstrando a relação entre eles. Nessas definições de texto,
o enunciado é tomado como uma unidade menor que o texto
e conceituado como “manifestação particular [...] de uma fra-
se.” (DUCROT, 1987 [1984], p. 164). Por exemplo, se duas pesso-
as (ou uma mesma pessoa em tempos diversos) pronunciam
“Faz bom tempo”, trata-se de dois enunciados, pois proferidos
por diferentes sujeitos em diferentes momentos, de duas ocor-
rências da mesma frase (entendida como uma estrutura lexical
e gramatical). Essa concepção difere da concepção de enun-
ciado do Círculo de Bakhtin, que será abordada na Unidade C
deste livro, quando discutiremos a noção de texto vista à luz
dos estudos do discurso. Antecipadamente, de modo sintético,
podemos dizer que se para Ducrot o conceito de enunciado
remete à frase enunciada, para Bakhtin o enunciado é visto
como o texto nos processos interacionais (o texto-enunciado).

Durante o momento das teorias de texto, tendo em vista a influência


Terceiro e quarto mo- da Pragmática e das Teorias do Discurso, enfim, da crescente ampliação
mentos da Linguística do escopo dos estudos linguísticos (da língua como sistema para a lín-
Textual.
gua em uso), passou-se a considerar, na elaboração do conceito de texto,
aspectos relacionados à produção e à recepção dos textos, ancorados em
situações de uso da linguagem. Dessa maneira, de uma estrutura, de um
produto pronto e acabado, o texto passou a ser visto como um elemento
importante nas atividades de comunicação. Podemos apresentar, como
representantes do terceiro momento, os conceitos de texto de Luiz Antô-
nio Marcuschi (1983) e Ingedore Grunfield Villaça Koch (1997).

20
Concepções de texto Capítulo 02

Para Marcuschi (1983, p.10-11),

o texto não é uma unidade virtual e sim concreta e atual; não é uma
simples sequência coerente de sentenças e sim uma ocorrência comu-
nicativa. [...]. Trata-se de uma unidade comunicativa atual realizada tanto
no nível do uso como ao nível do sistema. Tanto o sistema como o uso
têm suas funções essenciais.

Observe que o autor está elaborando o conceito de texto de modo


dialógico. Nessa parte da citação, ele está se contrapondo à concepção
de texto baseada na teoria gerativista, que postulava como escopo da
descrição de uma gramática textual o texto como uma unidade abstra-
ta, como um texto potencial. Em seguida, vai questionar o conceito de
texto como conjunto coerente de enunciados. Ambos são conceitos de
texto do primeiro e segundo momentos da Linguística Textual.

Para Koch (1997, 22), o texto pode ser conceituado como

uma manifestação verbal constituída de elementos linguísticos selecionados


e ordenados pelos falantes durante a atividade verbal, de modo a permitir
aos parceiros, na interação, não apenas a depreensão dos conteúdos semân-
ticos, em decorrência da ativação de estratégias de ordem cognitiva, como
também a interação (ou atuação) de acordo com práticas socioculturais.

Atualmente, segundo Costa Val (2008, p.63), a partir dos avanços


das teorias de texto, pode-se definir texto como “[...] qualquer produção
linguística, falada ou escrita, de qualquer tamanho, que possa fazer sen-
tido numa situação de comunicação humana, isto é, numa situação de
interlocução”. Assim, tanto um romance como uma conversa cotidiana
são textos. Para que tenha o estatuto de texto, segundo a autora, basta ao
objeto que faça sentido em determinada situação de interlocução. Para
Costa Val (2008), essa concepção de texto traz duas implicações:

1) Nenhum texto tem sentido em si mesmo;


Esta discussão pode ser
exemplificada na análise
2) Todo texto pode fazer sentido, numa dada situação, para de texto do capítulo so-
determinados interlocutores. bre Situacionalidade.

21
Linguística Textual

Nessa definição de texto de Costa Val, bem como na de Koch, Mar-


cuschi e na maioria das definições de texto da Linguística Textual do
terceiro momento, o conceito de texto se fecha para os textos media-
dos pela linguagem verbal. Um das características do quarto momen-
to, como mencionado no capítulo anterior, é olhar o texto a partir das
noções de situação social de interação, discurso, gêneros do discurso,
hipertexto e multimodalidade, o que leva à teorização do texto consi-
derando como constitutiva a situação social de interação e também as
outras modalidades semióticas (como a pintura, por exemplo), ou, de
modo mais intenso, a multimodalidade (pensemos, por exemplo, numa
charge publicada na internet, em que temos a junção de linguagem ver-
bal escrita, linguagem verbal oral e imagem em movimento). Essa in-
clusão teórica não tira a força da noção de que a produção de texto (em
qualquer materialidade semiótica) é a realização de um ato (ou ação)
sobre o outro, o interlocutor, mediado pela linguagem. O que esses es-
tudos recentes colocam em pauta é a ampliação da noção de texto, uma
vez que em muitos casos é entendido como texto somente aquele mate-
rializado pela linguagem verbal.

Koch (2002) observa que as várias concepções de texto que vêm


acompanhando (e delineando) a história da Linguística Textual levaram
essa disciplina a assumir formas teóricas distintas. A autora resume tais
concepções da seguinte forma:

1) Texto como frase complexa (fundamentação gramatical);

2) Texto como expansão tematicamente centrada de macroestru-


turas (fundamentação semântica);

3) Texto como signo complexo (fundamentação semiótica);

4) Texto como ato de fala complexo (fundamentação pragmática);

5) Texto como discurso “congelado” – produto acabado de uma


ação discursiva (fundamentação discursivo-pragmática);

22
Concepções de texto Capítulo 02

6) Texto como meio específico de realização da comunicação ver-


bal (fundamentação comunicativa);

7) Texto como verbalização de operações e processos cognitivos


(fundamentação cognitivista). (KOCH, 2002, p. 151).

Analisando as concepções de texto apresentadas, podemos obser-


var, de modo geral, a existência de duas vertentes básicas:

a) o texto visto como produto, ainda na sua imanência, que é o


conceito básico de texto do primeiro e segundo momentos da
Linguística Textual;

b) o texto visto como unidade de comunicação (interação), na sua


relação com as condições de produção, que é o conceito básico
de texto do terceiro momento e dos estudos atuais da Linguísti-
ca Textual, constituído na interface com os Estudos do Discur-
so e da Linguística Aplicada.

Em relação à primeira vertente, notamos que, de modo geral, as


definições acerca do texto revelam um olhar para o texto como produto
acabado, ou estrutura acabada, resultante da competência textual (e ide-
alizada) do falante. As propriedades definidoras do texto estão expressas Embora desde o início a Lin-
guística Textual buscasse uma
principalmente na forma de organização do material linguístico. A ên- teoria não imanente ao texto,
fase recai no aspecto material e/ou formal do texto: sua extensão, seus que se constituísse como uma
alternativa aos estudos estru-
constituintes, a relação interna entre esses constituintes. Ainda, segundo turais da língua, como vimos
Bernárdez (1983), muitas vezes, o texto é visto como uma unidade lin- no Capítulo 1, de fato, ela não
conseguiu se desvencilhar, nas
guística superior do sistema linguístico, o que mostra ainda a influência fases iniciais, da forte tradição
do estruturalismo nos estudos iniciais do texto. Por essas razões, Mar- estruturalista nos estudos lin-
guísticos.
cushi (1983) afirma que são definições imanentes de texto, pois partem
de critérios internos ao texto para defini-lo.

Já na segunda vertente, o texto passa a ser visto como unidade co-


municativa (BERNÁRDEZ, 1983), e não mais como unidade linguísti-
ca. Passa, portanto, a ser tomado como parte das atividades mais gerais
de comunicação. Os critérios para a definição de texto são temáticos e

23
Linguística Textual

transcendentes ao texto (à imanência do texto) (MARCUSCHI, 1983).


Por isso, passa a ser central na definição de texto a consideração das con-
dições de produção e recepção de textos, ou seja, a situação de interação
e os interlocutores, pois “o texto não existe fora de sua produção ou de
sua recepção” (LEONTÉV, 1969 apud FÁVERO, KOCH, 1988, p.22).

Nas diferentes vertentes teóricas acerca da linguagem, aquele que


se enuncia é definido e conceituado de diversas formas: falante, lo-
cutor, enunciador, interactante, produtor de texto etc. Embora re-
conheçamos que essa diversidade reflete concepções teóricas dis-
tintas, para efeitos didáticos, de modo geral, usaremos os termos
produtor ou autor, considerado como aquele que se responsabiliza
pelo texto-enunciado. Da mesma forma, aquele a quem o texto se
destina será nomeado como interlocutor ou ouvinte/leitor. Quando
nos referirmos a ambos, usaremos o termo interlocutores.

Nessa vertente conceitual, a elaboração do conceito de texto leva


em conta que:

a produção textual é uma atividade verbal, isto é, os falantes, ao produ-


zirem um texto, estão praticando ações, atos de fala [...];

a produção verbal é uma atividade verbal consciente, isto é, trata-se de


uma atividade intencional, por meio da qual o falante dará a entender
As diferentes concepções
seus propósitos, sempre levando em conta as condições em que tal ati-
de língua e de sujeito
serão também discutidas vidade é produzida[...];
nas disciplinas de Linguís-
tica Aplicada, no entanto, a produção textual é uma atividade interacional, ou seja, os interlocu-
é preciso antecipar que tores estão obrigatoriamente, e de diversas maneiras, envolvidos nos
as concepções de língua
processos de construção e compreensão de um texto [...] (BENTES, 2001,
e de sujeito apresenta-
das por Koch vêm das p. 254-255, grifos da autora).
reflexões do Círculo de
Bakhtin. Segundo Koch (2002), o conceito de texto depende das concepções
que se tem de língua e de sujeito. Na concepção de língua como re-
presentação do pensamento e de sujeito como senhor absoluto de suas
ações e de seu dizer,

24
Concepções de texto Capítulo 02
o texto é visto como um produto – lógico – do pensamento (represen-
tação mental) do autor, nada mais cabendo ao leitor/ouvinte senão ‘cap-
tar’ essa representação mental, juntamente com as intenções (psicoló-
gicas) do produtor, exercendo, pois, um papel essencialmente passivo.
(KOCH, 2002, p. 16).

Na concepção de língua como código – ou seja, como apenas um


instrumento para a comunicação – e do sujeito como pré-determinado
pelo sistema,

o texto é visto como simples produto da codificação de um emissor a


ser decodificado pelo leitor/ouvinte, bastando a este, para tanto, o co-
nhecimento do código, já que o texto, uma vez codificado, é totalmente
explícito. Também nesta concepção o papel do ‘decodificador’ é essen-
cialmente passivo. (KOCH, 2002, p.16).

Já na concepção de língua como interação (dialógica), na qual os


sujeitos são vistos como sujeitos sociais, “o texto passa a ser considerado
o próprio lugar da interação e os interlocutores, como sujeitos ativos
que – dialogicamente – nele se constroem e são construídos” (KOCH,
2002, p.17, grifo da autora). Como afirma João Wanderley Geraldi (1993
[1991], p. 102), “o outro é a medida: é para o outro que se produz o texto.
E o outro não se inscreve no texto apenas no seu processo de produção
de sentidos na leitura. O outro insere-se já na produção, como condição
necessária para que o texto exista”. Em outras palavras: ao elaborar o
texto, nós o fazemos pensando no interlocutor (quem ele é, o que sabe
etc.) e nos sentidos que queremos produzir sobre ele (informar, conven-
cer, esclarecer, ameaçar etc.).

Em resumo, podemos associar as duas primeiras concepções de


texto apresentadas por Koch (2002) com a primeira vertente concei-
tual de texto, ou seja, o texto como produto acabado. Por outro lado,
a terceira concepção de texto da autora (texto como lugar de inte-
ração) pode ser correlacionada com a segunda vertente conceitual.
Nessa segunda vertente, podemos observar, como já mencionado, a
presença da influência dos estudos do Círculo de Bakhtin. Conceitos
centrais de sua teoria, como interação, dialogismo, gêneros do discur-

25
Linguística Textual

so, esferas sociais, são fundamentais para a construção do conceito


de texto dessa vertente, isto é, o texto como unidade da comunicação
discursiva, como lugar de interação.

Nesta Unidade, apresentamos o histórico da Linguística Textual e


as principais concepções de texto desenvolvidas pela área. Na próxima
Unidade, vamos discutir a concepção de texto à luz dos estudos da tex-
tualidade.

Leia mais!
Sobre a trajetória da Linguística Textual, indicamos a leitura do artigo
de Ingedore Villaça Koch (2001) intitulado Lingüística Textual - Quo va-
dis?, publicado pela revista DELTA, disponível em: < http://www.scielo.
br/pdf/delta/v17nspe/6708.pdf >. Acesso em: 10/11/2011.

Para aprofundamento sobre as concepções de texto, indicamos a leitura


do capítulo Concepções de língua, sujeito, texto e sentido, publicado no
livro Desvendando os segredos do texto (2002), também de autoria de
Ingedore Villaça Koch.

26
Unidade B
O texto na ótica dos estudos da
textualidade

As fiandeiras. Velasquez, 1655.


Nesta Unidade, vamos abordar o texto na ótica dos estudos da tex-
tualidade. Para tanto, abordaremos a concepção de texto dessa verten-
te, o conceito de textualidade e princípios que constituem a tessitura dos
textos, chamados de princípios de textualidade, os quais serão relidos à
luz dos aspectos discursivos do texto e dos gêneros do discurso/textu-
ais. Apesar de o estudo dos princípios de textualidade estar ligado a um
momento de pesquisa clássico da Linguística Textual, consideramos que o
aprofundamento dessa temática, contraposta e complementada hoje com
os estudos dos gêneros do discurso/textuais, é extremamente relevante para
a formação do professor de Língua Portuguesa (e do professor de um modo
geral), pois lhe fornece base teórica necessária para o trabalho com deter-
minados aspectos do ensino e aprendizagem das práticas de escuta, leitura
e produção textual. Por essa razão, ao final de cada Seção, também serão
apresentadas algumas orientações pedagógicas para o trabalho em sala de
aula. Salientamos que essa opção de abordagem teórica, ainda que mencio-
nada por alguns autores da Linguística Textual, não foi desenvolvida até o
presente. Optamos por fazê-la aqui, pelas razões acima indicadas.

Ao final desta Unidade esperamos que você seja capaz:

ӲӲ Reconhecer a concepção de texto a partir dos estudos da textu-


alidade;

ӲӲ Reconhecer os princípios de textualidade;

ӲӲ Identificar o papel dos princípios de textualidade na tessitura


dos textos;

ӲӲ Reler os princípios de textualidade à luz das teorias dos gêneros


do discurso/textuais;

ӲӲ Reconhecer a importância do conhecimento dos princípios de


textualidade para o trabalho com o ensino e a aprendizagem
das práticas de escuta, leitura, produção textual e análise lin-
guística nas aulas de Língua Portuguesa.

Para atingir os objetivos propostos, dividimos a Unidade em sete


capítulos: no primeiro capítulo da unidade, discutiremos o conceito de
textualidade; nos demais, apresentaremos os princípios de textualidade,
seguidos de orientações para o trabalho em sala de aula.
Noções gerais Capítulo 03

3 Noções gerais
Na década de oitenta, no Brasil, os aspectos mais focalizados nas
pesquisas em Linguística Textual foram os princípios de textualidade, a
partir do conceito introduzido por Robert-Alain de Beaugrande e Wol-
fgang Dressler, em 1981, no livro Introduction to text linguistics. Para os
autores, o texto pode ser definido como uma ocorrência comunicativa Dressler e Beaugrande
que reúne/satisfaz sete princípios constitutivos da textualidade, que são:

a) coesão;

b) coerência;

c) intencionalidade; No Brasil, a textualidade


foi articulada por muitos
d) aceitabilidade; pesquisadores com a
noção de texto como se-
quência de enunciados. O
e) informatividade; exemplo mais eloquente
dessa perspectiva teórica
f) situacionalidade; é o conceito de Koch e
Travaglia (1989, p. 26):
g) intertextualidade. “textualidade ou textura é
o que faz de uma sequ-
ência linguística um texto
No livro citado, os autores não apresentam explicitamente um con- e não uma sequência ou
ceito de textualidade, mas, pela análise da obra e dos princípios de tex- um amontoado aleatório
de frases ou palavras”.
tualidade propostos, podemos definir a textualidade como o conjunto de
características manifestas/percebidas no texto, em uma dada situação de
interação, que fazem com que o mesmo seja compreendido pelos interlo-
cutores como um todo significativo, na situação de interação considerada.
Como a obra de Beau-
Assim, dada a relevância dos princípios de textualidade para a grande e Dessler de 1981
que citamos é uma versão
compreensão de como se constitui o texto e sua interpretação, eles serão digitalizada de 2002, va-
o objeto de estudo desta Unidade. No entanto, à guisa de introdução, mos usar esta data como
referência nas citações, se-
faremos já aqui uma breve exposição de cada um deles, segundo a con- guida da data da primeira
cepção de Beaugrande e Dressler (2002 [1981]): edição entre colchetes.

ӲӲ Coesão – Diz respeito às formas como os componentes do tex-


to de superfície, isto é, as palavras que efetivamente ouvimos
ou lemos, conectam-se em uma sequência veiculadora de sen-
tido. Para isso, a coesão deve se relacionar com os outros prin-
cípios de textualidade;
29
Linguística Textual

ӲӲ Coerência – Diz respeito às formas nas quais os componentes


do mundo textual, isto é, a configuração de conceitos e relações
que subjazem ao texto de superfície, são mutuamente acessíveis
e relevantes. A coerência não é uma mera característica dos
textos, mas antes o resultado de processos cognitivos entre os
usuários de textos;

ӲӲ Intencionalidade – Diz respeito à atitude do produtor de que o


conjunto de ocorrências deva constituir um texto coeso e coe-
rente, eficiente ao cumprir as intenções do produtor Relaciona-
-se às intenções do autor, que podem ser informar, impressio-
nar, convencer, pedir, ofender etc.;

ӲӲ Aceitabilidade – Diz respeito à atitude do interlocutor do texto


de que o conjunto de ocorrências deva constituir um texto coeso
e coerente e que tenha algum uso e relevância para o interlocutor;

ӲӲ Informatividade – Diz respeito ao grau de informação con-


tido em um texto: se as ocorrências do texto apresentado são
esperadas versus não-esperadas, ou conhecidas versus desco-
nhecidas/incertas;

ӲӲ Situacionalidade – Diz respeito aos fatores que tornam um


texto relevante para uma dada situação de ocorrência. O sentido
e a compreensão do texto são decididos pela situacionalidade;

ӲӲ Intertextualidade – Diz respeito aos fatores que fazem a com-


preensão de um texto dependente do conhecimento de um ou
mais textos já existentes.
Robert de Beaugrande
disponibilizava grande par- Esses princípios de textualidade têm sido rediscutidos recente-
te de sua produção teórica
em seu sítio pessoal: http:// mente, uma vez que, à época, foram interpretados e aplicados por pes-
www.beaugrande.com/ quisadores no estudo do texto concebido como produto. Beaugrande,
no livro New foundations for a science of text and discourse: freedom of
access to knowledge and society through discourse (Novos fundamentos
para uma ciência do texto e do discurso: liberdade de acesso ao conhe-

30
Noções gerais Capítulo 03

cimento e à sociedade através do discurso) (2004 [1997]), aborda essa


problemática. Discute, inicialmente, o fracasso de se estudar o texto a
partir de sua descrição formal como conjunto de frases, porque o tex-
to é, em essência, uma unidade funcional. Dessa constatação, lembra o
autor, o foco passou da elaboração de gramáticas do texto para o estudo
da textualidade.

Apesar disso, salienta que essa passagem não foi suficientemente


longe, pois os princípios de textualidade propostos na obra de sua auto-
ria e de Dressler (1981) foram equivocadamente interpretados a partir
de uma perspectiva formal (texto produto, abstraído das condições de
produção) e à luz dos estudos estruturalistas, fazendo uma correlação
entre os princípios de textualidade e os níveis linguísticos, com vistas a
analisar os textos: Passou-se a associar coesão com morfologia, sintaxe e
Segundo o estruturalismo,
gramática; coerência com semântica; intencionalidade, aceitabilidade e a língua é uma estrutura
situacionalidade com pragmática; informatividade com tópico/comen- composta de diferentes
níveis hierarquizados.
tário e tema/rema; e intertextualidade com estilística. Cada nível é uma camada
de análise, possui suas re-
gras e é formado por uni-
Essas correlações, segundo o autor, são inadequadas, pois os níveis dades, cujas combinações
linguísticos foram descritos em termos formais e no isolamento da lin- formam as unidades do
nível superior. Por exem-
guagem nela própria como um sistema virtual (abstrato). A associação plo, a combinação dos
dos princípios de textualidade a níveis linguísticos fez com que se olhas- fonemas (nível fonológi-
co) produz os morfemas
se o texto como produto, a partir de sua imanência, e incentivou que (nível do morfema).
se tratasse cada princípio de textualidade isoladamente, sem correlação
com os outros. Além disso, esses princípios de textualidade foram reli-
dos como características do texto em si e como critérios/fatores para se
avaliar se um dado texto particular era coeso ou não, coerente ou não,
por exemplo.

Para Beaugrande (2004 [1997]), esses princípios deveriam ser vis-


tos de modo funcional, integrado e em uma perspectiva transdisciplinar,
pois o texto é um evento comunicativo em que convergem questões de
ordem linguística, cognitiva e social. Portanto, “a textualidade é não só
a qualidade essencial de todos os textos, mas também uma realização hu-
mana sempre que um texto é textualizado [...] um texto não existe como
texto a não ser que alguém o esteja processando.” (BEAUGRANDE, 2004

31
Linguística Textual

[1997], cap. I, §41). Em outras palavras, os sete princípios de textualidade


não são critérios/regras para identificar textos e não-textos – pois não
existem não-textos –, mas são princípios que orientam o processamento
(produção) do texto e sua interpretação, e com os quais se atribui tex-
tualidade a um artefato. Um texto como produto é um mero artefato,
segundo o autor, que se transforma em um texto no ato da interação.

Essa concepção de texto


tem relações com a con- Vale destacar que, dado o sentido que se cristalizou em torno do
cepção de texto desen- termo textualidade, como resultado das abordagens que tomaram o tex-
volvida por Bakhtin, que
apresentaremos na Uni- to como produto, surge, em muitas pesquisas recentes, o termo textuali-
dade C: o texto pode ser zação, com o objetivo de evidenciar um afastamento teórico em relação
estudado como estrutura
ou como enunciado a essa noção de textualidade, que a instancia no texto como produto e
a toma como fundamento para estabelecer a fronteira entre um texto e
um não-texto. Na perspectiva da textualização, o sentido do texto não
reside na sua materialidade, pois está atrelado às condições de produção
do texto, ou seja, às condições cognitivas e sociais que estão imbricadas
nos eventos comunicativos. Assim sendo, “o sentido do texto não está
no texto, não é dado pelo texto, mas é produzido por locutor e alocutá-
rio a cada interação, a cada ‘acontecimento’ de uso da língua” (COSTA
VAL, 2008, p. 60). Podemos observar que esse conceito de textualização
converge para a noção de textualidade conforme proposta por Beau-
grande e Dressler (2002 [1981]).

Com as crescentes pesquisas acerca dos gêneros do discurso no


campo da Linguística Aplicada e na vertente enunciativa da Linguística
Textual, os princípios de textualidade podem ser relidos à luz dos gêne-
ros. Os estudos sobre os gêneros do discurso intensificam-se no Brasil
desde a década de noventa, em decorrência, dentre outros fatores, dos
estudos do texto a partir de suas condições de produção e da publicação
dos Parâmetros Curriculares Nacionais (1997) pelo MEC.

De modo sucinto, segundo Bakhtin (2003 [1979]), os gêneros cons-


tituem-se a partir do surgimento e da (relativa) estabilização de novas
situações sociais de interação e, uma vez constituídos, medeiam as inte-
rações dessa situação social.
Mikail Bakhtin

32
Noções gerais Capítulo 03

Cada gênero tem sua concepção de autor e interlocutor, tem uma


finalidade discursiva própria e apresenta certo modo de composição
textual e estilo particular. Por exemplo, o mesmo indivíduo assume pa-
péis de autoria bastante diversos ao escrever um romance ou uma tese;
um artigo científico e um livro didático dirigem-se a interlocutores dis-
tintos; a finalidade discursiva do artigo científico (apresentar resultados
de pesquisa) é diferente daquela que tem o livro didático (apresentar
conteúdos escolares aos alunos e mediar seu ensino e aprendizagem);
o artigo científico e a notícia têm estilos diferentes, mesmo que ambos
sejam redigidos na variedade linguística de prestígio.

Tomemos, como exemplo, o caso do gênero bula de medicamento.


Originalmente destinada a servir para comunicação entre o laboratório
e o profissional de saúde, a bula era vertida em estilo técnico e bastante
hermético. Em tempos recentes, devido ao interesse do paciente em
acompanhar a prescrição médica, ou, talvez, devido ao reconhecimen-
to do fenômeno da automedicação, o estilo da bula passou a ser cada
vez mais acessível ao cidadão comum e já existem muitas bulas didati-
camente escritas na forma de perguntas e respostas.

Os gêneros do discurso são concebidos como modos sociais de in-


teração sócio-historicamente constituídos, pois conduzem o processo
de produção e interpretação de textos. Segundo Bakhtin (2003 [1979]),
não conseguimos interagir com pertinência em dada situação se não
dominarmos o gênero dessa interação. No processo de produção, os gê-
neros balizam o autor: em que esfera social se encontram autor e inter-
locutor? Em qual interação social? Qual a finalidade dessa interação?
Quem é o interlocutor previsto? O que dizer e como dizer? No ato da
leitura, se não soubermos a que gênero relacionar o texto que estamos
lendo, teremos dificuldade em interpretá-lo. Será um artigo assinado?
Uma crônica? Um editorial? Esses três gêneros circunscrevem diferen-
tes situações de interação e, por isso, apresentam diferentes finalidades
discursivas, o que gera expectativas distintas para o interlocutor e dife-
rentes possibilidades de interpretação dos textos a eles vinculados.

33
Linguística Textual

Nessa conceituação de gênero, podemos propor que os princípios


de textualidade são balizados pelos gêneros, pois estes vão orientar di-
ferenças de textualização dos textos que se inscrevem em diferentes gê-
neros. Até mesmo os princípios de textualidade que foram inicialmen-
te compreendidos como ligados à materialidade do texto – a coesão e
a coerência – constituem ações linguísticas e discursivas mobilizadas
com vistas a cumprir o propósito discursivo dos interlocutores dentro
de determinado gênero.

A construção da coesão dos textos, por exemplo, é largamente


orientada pelos gêneros. É possível perceber nos fragmentos de texto a
seguir a diferença de manifestação linguística da coesão em um artigo
de divulgação científica e em um conto, que está ligada também ao estilo
de cada um dos gêneros.

1) Em sua teoria da relatividade especial de 1905, Einstein mos-


trou que nossas noções de espaço e tempo como entidades rígi-
das e imutáveis são ilusões causadas pelo fato de que os nossos
movimentos são muito lentos, se comparados à velocidade da
luz. Se nos movêssemos a velocidades comparáveis, mas me-
nores, veríamos as coisas encolhendo e o tempo passaria mais
devagar para elas. Entre as conseqüências, Einstein demonstra
a equivalência entre energia e matéria, algo que só é possível
a altíssimas energias. Na relatividade geral, de 1916, Einstein
redefine a gravidade como sendo a curvatura do espaço. A ex-
pansão do Universo e os buracos negros são descritos por essa
teoria.

2) Era uma vez um menininho, de carne e osso, igual a tantos que


se deleitam nas coisas simples que a vida dá. Ria nos seus mun-
dos de faz de conta, voava nas asas dos urubus, assustava os
peixes, nariz achatado nos vidros dos aquários, assobiava para
os perus, andava na chuva. Todas estas coisas que as crianças
fazem e os adultos desejam fazer e não fazem, por vergonha.
Sua vida escorria feliz por cima do desejo.

34
Noções gerais Capítulo 03

Como destacam Beaugrande e Dressler (2002 [1981], cap. 4, §41,


grifo dos autores),

se a textualidade assenta-se sobre continuidade [...], os usuários de


texto veriam, naturalmente, as situações e eventos do texto e do mun-
do como relacionados. Lacunas perceptíveis poderiam ser preenchidas
mediante atualização, isto é, fazendo inferências sobre como o texto-
-mundo está evoluindo.

Dessa forma, mediante análise dos tempos verbais, o lei-


tor pode concluir, no primeiro caso (artigo de divulgação cien-
tífica), que o tempo presente é usado para expressar as verda-
des gerais da ciência. Já no segundo trecho (conto), os verbos
no pretérito imperfeito descrevem a situação inicial de uma nar-
rativa, anterior ao conflito. Então, leitores familiarizados com o
gênero conto, sabem que a situação descrita eventualmente será, total ou
parcialmente, alterada.
Essa questão será abor-
Segundo Koch (1991 [1989]), a recorrência de termos verbais é um dada no Capítulo sobre
coesão.
mecanismo de coesão, pois indica se se trata de um sequência de comen-
tário (demonstra, redefine) ou de relato (assobiava, andava, escorria).

Sobre a relação entre gêneros e textualidade, Matencio (2006) conside-


ra que os estudos dos gêneros têm o potencial de promover reflexões acerca
das relações entre a materialidade linguística e textual e o contexto histórico
de produção de sentidos, e possibilita que se considere, a um só tempo:

(i) as instâncias ou esferas sociais que delimitam historicamente os dis-


cursos e seus processos, particularmente no que se refere às relações
São exemplos de esferas
entre instituições, lugares e papéis sociais e às suas representações; sociais a escola, a ciência,
o jornalismo, a arte, a
(ii) as práticas discursivas efetivamente em construção nessas instâncias religião etc.
num aqui-agora, num dado evento de interação, ou seja, a assunção
efetiva de lugares e papéis comunicativos, as representações das ações
que se deve empreender e dos modos pelos quais elas podem se mate-
rializar numa forma linguageira;

(iii) os processos de textualização que daí resultam, isto é, a pro-


dução de ações linguageiras, por um eu e por um tu, no aqui-
-agora. (MATENCIO, 2006, p. 139-140, grifo nosso).

35
Linguística Textual

A autora não relaciona


os princípios de textua- Vejamos, na citação de Costa Val a seguir, como podem ser
lidade com a noção de apreendidos os princípios de textualidade, tal como propostos por
gêneros. No entanto, o
modo como a apresenta Beaugrande e Dressler (2002 [1981]) e retomados nos estudos mais
a exemplificação torna a atuais, a partir da exemplificação da relação desses princípios em um
relação pertinente.
texto de um dado gênero, o catálogo telefônico:

O exemplo da autora é
semelhante ao proposto Um catálogo telefônico, que não apresenta as marcas linguísticas de co-
por Beaugrande (2004 esão responsáveis pela textura, tal como concebem Halliday & Hasan
[1997]), no qual a autora
se baseia. (1976), é analisado por Beaugrande (1997) como produto que se textu-
aliza num rico processo linguístico, cognitivo e cultural, à medida que a
ele aplicamos os sete princípios: com a coesão, conectamos suas formas
e padrões (nomes e números dispostos em lista); com a coerência, co-
nectamos seus significados; considerando a intencionalidade, supomos
que ele tenha algum propósito e interpretamos o que os produtores po-
deriam pretender significar e conseguir com aquela disposição formal
e semântica; atentando para a aceitabilidade, assumimos o que preten-
demos com ele e o que nos dispomos a fazer para tomá-lo como texto;
buscando informatividade, trabalhamos no sentido de interpretar os
conteúdos que ele nos apresenta a partir dos nossos conhecimentos
anteriores; em termos de situacionalidade, relacionamos o evento-texto
às circunstâncias em que interagimos com ele, considerando como sua
configuração pode torná-lo útil e pertinente aos objetivos que temos
em mente; ao interagir com ele, inevitavelmente, recorremos à nossa
experiência anterior com outros textos, processando-o, pois, em função
da rede de intertextualidade em que o situamos. (COSTA VAL, 2000).

Implicações para o processo de ensino e aprendizagem:

Como vimos neste Capítulo, segundo Beaugrande (2004 [1997]),


não existem não-textos. Isso porque quando as pessoas interagem,
elas buscam a resposta do interlocutor e, para isso, procuram cons-
truir um texto que atinja essa intencionalidade. Essa posição pode
levantar questionamentos para o professor de Língua Portuguesa,
tais como: Se não existe o não-texto, se tudo é texto, se não existe

36
Noções gerais Capítulo 03

texto sem coerência e sem coesão, uma vez que os princípios de textua-
lidade estão sempre presentes, então, não há nada mais a fazer com os
textos produzidos por meus alunos?. Veja a resposta de Beaugrande
(2004 [1997]) e Costa Val (2000):

“Os princípios são aplicáveis sempre que um artefato seja textualizado,


mesmo que alguém julgue o resultado ‘incoerente’, ‘não intencional’,
‘inaceitável’ etc. Esses julgamentos indicam que o texto não é apro-
priado (adequado para a ocasião), ou eficiente (fácil de lidar), ou eficaz
(proveitoso para o objetivo proposto); mesmo assim é um texto. Nor-
malmente, as perturbações e irregularidades são desconsideradas, ou,
na pior das hipóteses, interpretadas como sinais de espontaneidade,
estresse, sobrecarga, ignorância, e assim por diante, e não como perda
ou negação da textualidade”. (BEAUGRANDE, 2004 [1997], cap. 1, § 52).

“Acredito, pelo contrário, que este modo de compreender a textualida-


de abre perspectivas mais promissoras para o ensino e gostaria, agora,
de mostrar as possibilidades de aplicação que vejo para este quadro te-
órico nas salas de aula de Língua Portuguesa.” (COSTA VAL, 2000).

Na sequência de seu artigo, a autora apresenta um texto de um


aluno produzido em situação de exame e mostra como o professor
pode interpretar diferentemente um texto de um aluno quando ele
o olha não como um artefato, mas como “resultado de uma ativida-
de linguístico-cognitiva socialmente situada”. O texto analisado é:

Meu amigo

Eu queria ter um amigo e minha mãe o expulsou de casa.

Lá fora tinha um pouco de gente e eu vendi o cachorro.

E à noite caiu um temporal. E a mãe teve que pagar um prejuízo maior,


teve de trocar o telhado da casa.

37
Linguística Textual

Costa Val demonstra que quando resgatamos as condições de pro-


dução desse texto entendemos porque o aluno textualizou esse tex-
to. Veja a análise completa que ela faz desse texto, lendo o artigo da
autora, que se encontra na webteca desta disciplina.

Em resumo, quando o professor olha o texto de seu aluno a partir


das condições de produção, ele consegue entender por que o aluno
textualizou determinado texto e tem condições de indicar caminhos
para que esse aluno, no ato da reescritura de seu texto, consiga ade-
quá-lo àquelas condições de produção, de modo que ele seja aceitá-
vel para aquela situação de interação. Vamos voltar a essa discussão
na Unidade C deste livro e nas disciplinas de Linguística Aplicada,
quando discutirmos a noção de gêneros e os processos de reescritu-
ra de textos em sala de aula.

Neste Capítulo, exploramos o conceito de textualidade e aborda-


mos brevemente os princípios de textualidade. Nos Capítulos seguintes
desta Unidade serão apresentados mais detalhadamente os sete princí-
pios de textualidade.

38
Coesão textual Capítulo 04

4 Coesão textual
Beaugrande e Dressler (2002 [1981], cap. 4, §1) afirmam que “co-
esão e coerência são noções centradas no texto, designando operações
dirigidas aos materiais do texto”. À primeira vista, parece que, para os
autores, a coesão é um fenômeno que deve ser analisado no texto de Neste Capítulo apresen-
superfície e explicado a partir dele. Essa impressão, contudo, logo se taremos a coesão textual
sob a perspectiva da Lin-
desfaz quando os autores discutem longamente a relação entre coesão e guística Textual da década
processamento cognitivo do texto. de oitenta. Na Unidade C,
no capítulo sobre referen-
ciação, a coesão será re-
Apesar de a concepção cognitiva de coesão apresentada por Beau- tomada sob a perspectiva
dos estudos mais recentes
grande e Dressler (1981) estar até mais afinada com as tendências cog- da Linguística Textual. Esse
nitivas de abordagem do texto, no restante deste capítulo, adotaremos percurso tem por objetivo
evidenciar a trajetória da
como referência obras de Ingedore Koch, especialmente Koch (1989), Linguística Textual, desde
por serem essas obras seminais que muito contribuíram para populari- sua fase cognitivista até a
fase sociocognitiva.
zar entre nós o conceito de coesão textual e tiveram uma importância
capital para a Linguística Textual no Brasil.

Na construção da textualidade podemos dizer que há duas grandes


modalidades de coesão textual: a coesão referencial e a coesão sequencial.
Vejamos o funcionamento desses dois movimentos coesivos na tessitura
do texto analisado a seguir.

Neste livro, dadas as condições materiais deste suporte, os exemplos


apresentados são apenas de textos escritos. No entanto, ressaltamos
que os princípios de textualidade referem-se também aos textos
verbais orais e aos mediados por outros sistemas semióticos. Abor-
daremos a questão dos textos multimodais na Unidade C.

Texto 1
A história original de Pinóquio
foi escrita em 1881, na Itália, por Carlo
Pinóquio às avessas Lorenzini, sob o pseudônimo de Carlo
Collodi. A história versa sobre um bo-
neco de madeira que queria se tornar
Era uma vez um menininho, de carne e osso, igual a tantos que se de- um menino de verdade e alcança seu
leitam nas coisas simples que a vida dá. Ria nos seus mundos de faz de objetivo através da Fada Azul.

conta, voava nas asas dos urubus, assustava os peixes, nariz achatado
39
Linguística Textual

nos vidros dos aquários, assobiava para os perus, andava na chuva. To-
das estas coisas que as crianças fazem e os adultos desejam fazer e não
fazem, por vergonha. Sua vida escorria feliz por cima do desejo.

Não sabia que uma conspiração estava em andamento. Tudo come-


çara bem antes, quando um nome lhe fora dado. Nome do pai. Claro,
confissão de intenções: que o menino sem nome e sem desejos acei-
tasse como seus o nome e desejos de um outro que ele nem mesmo
conhecia. Filho, extensão do pai, realização de desejos não realizados,
sobrevivência do seu corpo, uma pitada de onipotência, uma gota de
imortalidade.

“Que é que ele vai ser quando crescer? Médico? Diplomata? Cientista?”

E as conversas se prolongavam, temperadas com sorrisos e boas in-


tenções, enquanto silenciosas se teciam as malhas do desejo em que
pai e mãe esperavam colher/ acolher/ encolher o menino dos desejos
simples...

Até que chegou o dia em que <segunda cor> lhe </segunda cor> foi
dito: “É preciso ir para a escola. Todos os meninos vão. Para se transfor-
marem em gente. Deixar as coisas de criança. Em cada criança brincante
dorme um adulto produtivo. É preciso que o adulto produtivo devore a
criança inútil.”

E assim aconteceu. Há certos golpes do destino contra os quais é inútil


lutar.

O menino de carne e osso aprendeu coisas curiosas: nomes de heróis,


frases que teriam dito, as alturas de montes onde nunca subiria, as fun-
duras de mares onde nunca desceria, a distância de galáxias, o ‘SE’, par-
tícula apassivadora, o “se”, símbolo de indeterminação do sujeito, nomes
de cidades de países longínquos, suas populações e riquezas, fórmulas
e mais fórmulas...

Sabia que tudo aquilo deveria ter um motivo. Só que ele não entendia.
O desejo permanecia selvagem. E disto eram prova aquelas notas ver-
melhas no boletim, testemunhas de como o menino cavalgava longe
do desejo dos outros, conspiradores secretos, escondidos na monoto-
nia dos currículos que não faziam o seu corpo sorrir...

“Pra que serve tudo isto?”, ele perguntava. E o pai respondia, sábio e
paciente: “Um dia você saberá. Por hora basta de saber que papai sabe o
que é melhor para seu filho...”

40
Coesão textual Capítulo 04
O menino cresceu. E aconteceu que, em meio às suas rotinas, veio a
se encontrar com dois cavalheiros bem vestidos e de fala branda, que
se puseram a contar estórias de um mundo encantado sobre o qual
ele nunca ouvira falar. Eles disseram de heróis em aventais brancos ca-
valgando microscópios e telescópios, brandindo máquinas fantásticas
e aparelhos misteriosos, em meio a líquidos mágicos que faziam viver
e morrer, encastelados em templos onde as coisas visíveis ficavam invi-
síveis e as coisas invisíveis ficavam visíveis, e lhe disseram de prodígios
de verdade, e lhe perguntaram se ele não desejava se transformar num
mago, num artista... A recompensa? O Poder, o conhecimento de segre-
dos que ninguém conhece, a glória, ser olhado por todos como um ser
diferente, sublime, superior. Se os seus prodígios fossem maiores que
os de todos, ele poderia aparecer no palco supremo da ciência, em país
distante, onde os mortais se revestem de imortalidade...

O menino grande se lembrou dos sonhos do menino pequeno. E sorriu.


Finalmente, chegara o momento da sua realização. Estranhou que os
narizes dos respeitáveis cavalheiros tivessem crescido enquanto fala-
vam. Mas, logo o tranquilizaram: “É só para te cheirar melhor, meu filho...”

Começaram as transformações. Primeiro os olhos. Já não refletiam ou-


tros olhares e nem borboletas... Aprenderam a concentração, a discipli-
na. Depois o corpo, que desaprendeu a dança, o voo dos papagaios
e o brinquedo. Era necessário dedicar-se totalmente. Os pensamentos
abandonaram as fantasias e os contos de fadas. Passaram a morar no
mundo das fábulas e dos experimentos. Até o prazer da comida se sa-
tisfez com os sanduíches rápidos do almoço, e na cama o corpo se es-
queceu do corpo...

E aprendeu coisas preciosas. Que o corpo do cientista é neutro. Que ele


não se comove por considerações de valor ou prazer. Que está acima da
vida e da morte (isto é coisa de políticos, militares e clérigos), em dedi-
cação total ao saber. Bastava-lhe ser um devotado servidor do progresso
da Ciência.

Mas tantos sacrifícios acabaram por receber merecida recompensa. A


sorte soprou, favorável, e de seu corpo diferente surgiu uma nova ma-
gia, e o palco da imortalidade lhe foi aberto. Lá, perante todos, compre-
endeu que valera a pena. Duas lágrimas lhe rolaram pela face.

Já não era o menino de outrora, carne e osso, crescera. Estava diferente.


Os aplausos de madeira enchiam a sala. Era a glória. E foi então que o mi-
lagre aconteceu. O recinto se encheu de suave luminosidade, e a Mosca

41
Linguística Textual

Azul, que até então só habitava os seus sonhos, veio de longe e roçou
o seu rosto com suas asas. E a grande transformação aconteceu. Era um
boneco de madeira, inteligência pura, sem coração. E os milhares de
bonecos, iguais, de pé, não paravam de tamanquear os seus aplausos
ao novo irmão, enquanto gritavam o seu nome: “Pinóquio, Pinóquio,
Pinóquio...”.

ALVES, Rubem. Pinóquio às avessas: uma estória sobre crianças e esco-


las para pais e professores. Campinas, SP: Verus Editora, 2005.

No Texto 1, os elementos destacados em roxo e em negrito são


exemplos de mecanismos de coesão textual. Koch (2004, p. 35) define
coesão como “[...] a forma como os elementos linguísticos presentes na
superfície textual se interligam, se interconectam, por meio de recur-
sos também linguísticos, de modo a formar um ‘tecido’ (tessitura), uma
unidade de nível superior à da frase, que dela difere qualitativamente”.
Ela é responsável, em grande medida, pela legibilidade do texto, uma
vez que explicita as relações semântico-discursivas entre os elementos
linguísticos que compõem o texto.

As palavras destacadas em roxo correspondem a elementos que


fazem referência a outro elemento do texto. Na maior parte do texto,
desenvolve-se um processo de retomada do item Pinóquio, que ocorre
desde o título do texto, Pinóquio às avessas, até o fechamento do texto,
Pinóquio, Pinóquio, Pinóquio... Há também referências a outros itens le-
xicais textualizados no texto, como é o caso de corpo do cientista, que
é retomado pelos pronomes ele e lhe em: Que o corpo do cientista é
neutro. Que ele não se comove por considerações de valor ou prazer. [...]
Bastava-lhe ser um devotado servidor do progresso da Ciência [...]

Já as palavras destacadas em negrito correspondem a elementos que


atuam na sequenciação no texto, ou seja, fazem o texto progredir, como,
por exemplo: E as conversas se prolongavam, temperadas com sorrisos e boas
intenções, enquanto silenciosas se teciam as malhas do desejo em que pai e
mãe esperavam colher/ acolher/ encolher o menino dos desejos simples [...].

Como podemos observar na análise de alguns dos mecanismos de


coesão no texto Pinóquio às avessas, existem dois grandes movimentos

42
Coesão textual Capítulo 04

de coesão textual: a retomada de um item lexical (palavras destacadas


em roxo) ou a sequenciação do texto (palavras destacadas em negrito).
Esses dois grandes movimentos de coesão textual (coesão referencial
e coesão sequencial) têm a função de estabelecer relações semântico-
-discursivas entre os segmentos do texto, de modo que o processo de
construção do texto, por meio de retomadas e sequenciações, constitua-
-se como uma unidade de sentido.

De acordo com Koch (1991[1989]), a coesão referencial é aquela


em que um componente da superfície textual faz remissão a outro(s)
elemento(s) do universo textual, ou seja, é aquela que marca as retoma-
das dos referentes textuais ao longo do texto. Koch (1991[1989]) chama
de forma referencial ou forma remissiva o componente que faz referência
a outro elemento do texto e de elemento de referência ou referente textual
a forma que é referenciada. (KOCH, 1991[1989]).

Como exemplo de coesão referencial, podemos apontar, no Texto


1, as ocorrências dos pronomes sua e lhe (formas referenciais/remis-
sivas), que fazem referência a outro elemento do texto. O pronome
possessivo sua (Sua vida escorria feliz por cima do desejo) e o pronome
pessoal lhe (Tudo começara bem antes, quando um nome lhe fora dado),
como formas referenciais/remissivas, retomam o referente textual ativa-
do anteriormente: Pinóquio às avessas. Do mesmo modo, as formas
remissivas menininho de carne e osso, menino sem nome e sem de-
sejos, filho, extensão do pai, ele, menino de carne e osso, menino de
outrora retomam o referente textual Pinóquio.

Entretanto, essas retomadas, no processo coesivo, não têm somente


a função de estabelecer a ligação com o referente, pois esse referente não
é idêntico: ele muda ao longo do texto, e as retomadas coesivas apon-
tam para essa mudança; logo, o processo coesivo não tem implicações Essa questão será retoma-
somente na interligação, mas também na ressignificação do referente. Por da na Unidade C.

exemplo, Pinóquio é retomado, mas também ressignificado como


menininho de carne e osso e, no final, como boneco de madeira, inte-
ligência pura, sem coração.

43
Linguística Textual

De acordo com Koch (1991[1989]), a referência/remissão a um


referente textual pode ser exofórica ou endofórica. A exofórica ocorre
quando a remissão é feita a algum elemento de referência da situação
comunicativa, isto é, quando o referente está fora do texto. Já a endofó-
rica, por sua vez, ocorre quando o referente está expresso no texto. Se o
referente textual preceder a forma referencial/remissiva, tem-se a anáfo-
ra; se vier após a forma referencial/remissiva, tem-se a catáfora.
Nas pesquisas atuais,
utiliza-se o termo anáfora No Texto 1, temos um exemplo de anáfora em: [...] dois cavalheiros
para se referir aos dois
processos. Assim, na Uni- bem vestidos e de fala branda, que se puseram a contar estórias de um
dade C, aprofundaremos mundo encantado sobre o qual ele nunca ouvira falar. Eles disseram de
o conceito de anáfora.
heróis em aventais brancos cavalgando microscópios e telescópios, bran-
dindo máquinas [...], uma vez que se e eles fazem referência/remissão a
dois cavalheiros e essa retomada está textualizada após o referente tex-
tual. Já em Tudo começara bem antes temos um caso de catáfora, pois a
forma remissiva/referencial Tudo é resumitiva de um referente que será
explicitado em seguida: quando um nome lhe fora dado.

Já a coesão sequencial consiste em estabelecer conexão e interrelação


entre partes do texto, com o objetivo de possibilitar a progressão textual.
Koch (2004, p. 35) conceitua a coesão sequencial da seguinte maneira:

A coesão sequencial diz respeito aos procedimentos linguísticos por


meio dos quais se estabelecem, entre os segmentos do texto (enuncia-
dos, partes de enunciados, parágrafos e mesmo sequências textuais),
diversos tipos de relações semânticas e/ou pragmático-discursivas, à
medida que se faz o texto progredir.

A progressão textual pode acontecer com ou sem o uso de elemen-


tos recorrentes, ou seja, retomando ou não itens lexicais já textualizados
nos texto (KOCH, 1991[1989]). No que se refere à coesão por meio de
procedimentos de recorrência, podemos citar como exemplos: recor-
rência de termos, de estruturas sintáticas, de assuntos, de tempo verbal.

Dentre os mecanismos de coesão sequencial no Texto 1, podemos di-


zer que a recorrência de tempo verbal é um importante elemento de se-
quenciação do texto. Tendo em vista de que se trata de uma narrativa, há a

44
Coesão textual Capítulo 04

predominância de verbos do mundo do narrar. Esses verbos do mundo do


narrar são alternados ao longo do texto para que, por meio da mudança dos
tempos verbais, a própria narrativa tome corpo e movimento. Inicialmente,
temos o menino de carne osso, que é introduzido por uma recorrência de
verbos no pretérito imperfeito: Era uma vez um menininho, de carne e osso,
igual a tantos que se deleitam nas coisas simples que a vida dá. Ria nos seus
mundos de faz de conta, voava nas asas dos urubus, assustava os peixes,
nariz achatado nos vidros dos aquários, assobiava para os perus, andava na
chuva. Todas estas coisas que as crianças fazem e os adultos desejam fazer e
não fazem, por vergonha. Sua vida escorria feliz por cima do desejo.

Depois, ao passo que se desenrola a narrativa, o tempo verbal se


altera para marcar o início da ação, uma vez que na narrativa há uma
ação/evento que se desenrola em um tempo e em um espaço. Essa ação
se circunstancia através da mudança dos tempos verbais; passa-se, en-
tão, da recorrência do pretérito imperfeito para a recorrência pretérito
perfeito: Até que chegou o dia em que lhe foi dito: “É preciso ir para a
escola”. [...] E assim aconteceu. O menino de carne e osso aprendeu [...].

Na sequência, há novas alternâncias dos tempos verbais (entre elas o


uso do mais-que-perfeito) até que, por fim, novamente volta-se à recorrên-
cia do pretérito imperfeito: Era um boneco de madeira, inteligência pura,
sem coração. E os milhares de bonecos, iguais, de pé, não paravam de ta-
manquear os seus aplausos ao novo irmão, enquanto gritavam o seu nome:
“Pinóquio, Pinóquio, Pinóquio...” Assim, no desfecho da narrativa, há um
retorno ao uso do tempo verbal utilizado no início do texto (pretérito im-
perfeito). As alternâncias marcam a ação ocorrida e o desfecho é marcado
pela retomada do tempo verbal utilizada no início do texto. Essas alternân-
cias verbais na narrativa marcam o movimento do texto e, fundamental-
mente, expressam a mudança sofrida pelo personagem Pinóquio. Assim,
a transformação do menino de carne e osso para o menino de madeira é
textualizada não só por meio de formas nominais, como também através
da alternância dos tempos verbais. Em síntese, podemos dizer que a recor-
rência de tempos verbais, juntamente com as formas nominais, além de es-
tabelecerem a coesão textual, incidem na construção da coerência do texto,
corroborando para a construção de sentidos no texto durante a sua leitura.

45
Linguística Textual

Além das recorrências, a coesão pode se realizar “por meio de su-


cessivos encadeamentos, assinalados por uma série de marcas linguísti-
cas através das quais se estabelecem, entre os enunciados que compõem
o texto, determinados tipos de relação” (KOCH, 1991 [1989], p. 55), tais
como: manutenção do tema; estabelecimento de relações semânticas e/
ou pragmáticas entre os segmentos maiores ou menores do texto; orde-
Disponível em: <http:// nação e articulação de sequências textuais. Em resumo, esses mecanis-
www1.folha.uol.com.br/ mos de coesão sequencial estabelecem procedimentos de: manutenção
folha/pensata/elianecan-
tanhede/ult681u464302. temática, progressão temática e encadeamento.
shtml.> Acesso em: 20 de
jan. de 2009.
Observemos, primeiramente, o Texto 2, que servirá de base para os
exemplos que serão posteriormente apresentados.

TEXTO 2

Obama: além de tudo, sortudo

George W. Bush foi um dos presidentes mais populares dos EUA,


com índices de aprovação que chegaram a bater em 90% depois
do 11 de setembro, mas sai da Casa Branca pela porta dos fundos,
com uma crise financeira internacional sem precedentes, com as
contas dos EUA de pernas para o ar e com a biografia para sempre
manchada por ter invadido o Iraque em cima de uma mentira – a
das armas químicas, afinal inexistentes – e passando por cima da
ONU. Quantos soldados americanos pagaram e quanto a economia
do país pagou por isso?

Barack Obama, o senador negro, nascido no Havaí, filho de queniano,


é um salto histórico enorme. Um salto de qualidade, pela simbologia,
pela concretização de uma mudança profunda que é política, social e
cultural. Mas é também um salto no escuro. Aos 47 anos, é bastante
jovem para o desafio, jamais ocupou cargos executivos de ponta e era
um desconhecido não apenas no mundo, mas dentro do próprio EUA,
até sair da cadeira de senador e bater a então imbatível Hillary Clinton
nas primárias do Partido Democrata.

Para fazer um bom governo, um governo tão extraordinário quanto sua


eleição, Obama conta com fatores objetivos e subjetivos. O mais objeti-
vo de todos é a força política: ele venceu com uma margem expressiva
e surpreendente de votos, contrariando as sempre apertadas eleições

46
Coesão textual Capítulo 04
americanas (vide a do próprio Bush...), vai unir um democrata na Casa
Branca com uma sólida maioria democrata no Congresso, contrariando
a tradição, e chega ao poder da maior, ou única, potência, com uma
simpatia internacional poucas vezes vista.

Além disso, Obama se beneficiou do “timing” da crise: ela se alastrou


pelo mundo e foi aguda durante a campanha,mas está ficando sob
controle e tende a amenizar por gravidade no início do seu governo.
Ou seja: a crise de certa forma prejudicou as pretensões do republi-
cano John McCain, correligionário de Bush, e favoreceu Obama, que
é democrata e baseou o discurso na “mudança”, na capacidade de
tirar o país do atoleiro. E ele, ao assumir em 20 de janeiro de 2009,
já deverá encontrar um ambiente econômico muito mais sereno, ou
pelo menos muito menos assustador. E poderá capitalizar indireta-
mente o clima do “pior já passou”.

Seu desafio será recolocar as contas públicas, o balanço de pagamentos


e os indicadores macro-econômicos americanos no lugar. Mas sem o
desespero da crise de setembro e outubro. Não será fácil, e o risco de
frustração realmente existe, mas é possível e bem provável que a situ-
ação no início do seu governo esteja muito melhor do que no fim do
mandato Bush. O primeiro passo é acertar na equipe, com os homens e
mulheres certos nos lugares certos.

Tudo somado, temos que Barack Hussein Obama, além de todos os


predicados concretos, tem também aquele que é fundamental: sor-
te. A expectativa é que assuma justamente quando o pior da crise já
tiver passado, prontinho para fazer o que é preciso fazer e colher no
final os louros.

Se a fase aguda da crise parece estar passando, isso vale também


para o Brasil, onde Lula mantém seus 80% de popularidade, os indi-
cadores da indústria ainda não acusaram o golpe e tudo indica que,
entre mortos e feridos, a campanha de Dilma Rousseff em 2010 vai
muito bem, obrigada.

Lá nos EUA, como aqui no Brasil, Obama e Lula têm muitas coisas em
comum. Uma delas é essa: sorte, uma incomensurável sorte. Ótimo.
Que isso reflita positivamente para os EUA, para o Brasil e principal-
mente para o mundo.

Eliane Cantanhêde é colunista da Folha, desde 1997, e comenta gover-


nos, política interna e externa, defesa, área social e comportamento. Foi

47
Linguística Textual

colunista do Jornal do Brasil e do Estado de S. Paulo, além de diretora de


redação das sucursais de O Globo, Gazeta Mercantil e da própria Folha
em Brasília. E-mail: elianec@uol.com.br

A manutenção temática nesse texto ocorre através do uso de termos


pertencentes a um mesmo campo lexical. Vejamos o exemplo: Barack
Obama, o senador negro, [...] bastante jovem para o desafio, jamais ocu-
pou cargos executivos de ponta e era um desconhecido não apenas no mun-
do, mas dentro do próprio EUA, até sair da cadeira de senador e bater a
então imbatível Hillary Clinton nas primárias do Partido Democrata.

Os itens lexicais destacados em negrito são termos recorrentes no


campo político. Por isso, por meio desses termos, ativa-se um esquema
cognitivo (frame) na memória do leitor, o que lhe possibilita o estabele-
cimento das inferências, bem como a possibilidade de avançar nas pers-
pectivas sobre o que deve vir a seguir no texto.

A manutenção temática está, pois, ligada à progressão temática, que,


por sua vez, está relacionada à maneira como se estabelece a organização
e a hierarquização das unidades semânticas no texto. Vejamos no Texto
2 como se organiza a progressão temática. Esse texto tem como aconteci-
mento desencadeador a eleição presidencial nos EUA em 2008. A partir
desse evento, a colunista manifesta seu posicionamento sobre as condi-
ções em que se deu a eleição de Barack Obama, bem como sobre as con-
dições favoráveis em que se encontrava Obama para assumir o governo.

Logo no título, Obama, além de tudo, sortudo, a autora anuncia a


probabilidade de Obama ter um bom início de governo. Isso porque,
de acordo com autora, há um conjunto de fatores que beneficiam Oba-
ma. Um desses fatores destacados no texto é a força política de Obama,
conforme podemos verificar no seguinte fragmento: [...] ele venceu com
uma margem expressiva e surpreendente de votos, contrariando as sem-
pre apertadas eleições americanas (vide a do próprio Bush...), vai unir
um democrata na Casa Branca com uma sólida maioria democrata no
Congresso, contrariando a tradição, e chega ao poder da maior, ou única,
potência, com uma simpatia internacional poucas vezes vista.

48
Coesão textual Capítulo 04

Outro fator apontado é a crise financeira mundial, como podemos


observar em: Além disso, Obama se beneficiou do “timing” da crise: ela se
alastrou pelo mundo e foi aguda durante a campanha, mas está ficando
sob controle e tende a amenizar por gravidade no início do seu governo.
[...] E ele, ao assumir em 20 de janeiro de 2009, já deverá encontrar um
ambiente econômico muito mais sereno, ou pelo menos muito menos as-
sustador. E poderá capitalizar indiretamente o clima do ‘pior já passou’.

Além desses predicados concretos, a autora apresenta um terceiro, a


sorte do presidente eleito. A sorte atribuída a Obama é o fio condutor das
considerações tecidas pela colunista, bem como o fator preponderante,
segundo ponto de vista defendido pela autora, para um bom início de
governo: Tudo somado, temos que Barack Hussein Obama, além de todos
os predicados concretos, tem também aquele que é fundamental: sorte.
A expectativa é que assuma justamente quando o pior da crise já tiver pas-
sado, prontinho para fazer o que é preciso fazer e colher no final os louros.

Para manifestar seu posicionamento, a autora organiza o texto


da seguinte maneira:

ӲӲ Título - Apresenta a primeira inserção do atributo sorte de Ba-


rack Obama, o qual será retomado no decorrer do texto e no
seu fechamento.

ӲӲ 1º e 2º parágrafos - Estabelece uma comparação entre as condi-


ções em que o presidente dos EUA, George W. Bush, assumiu
a presidência e as condições em que encerrou seu mandato e
apresenta Barack Obama e as condições em que se deu sua elei-
ção à Presidência dos EUA.

ӲӲ 3º, 4º e 5º - Aprofunda a análise sobre o cenário em que se de-


senrolou a eleição presidencial, tece considerações sobre o fu-
turo governo (os desafios) do recém-eleito Barack Obama, que
é figura central do texto. Apresenta e desenvolve os fatores que
beneficiam o presidente eleito quando assumir a presidência.

49
Linguística Textual

ӲӲ 6º - Inclui um novo fator com o qual Barack Obama conta para


seu governo: a sorte, a partir do qual a autora constrói seu posi-
cionamento no texto. É o fator preponderante, segundo ponto
de vista defendido pela autora.

ӲӲ 7º - Apresenta uma comparação entre a crise nos EUA e no


Brasil.

ӲӲ 8º - Estabelece uma comparação entre Barack Obama e Lula


com relação ao atributo sorte: ambos possuem uma incomen-
surável sorte no governo. Com essa posição a autora produz o
fechamento do texto.

ӲӲ Biografia resumida da colunista.

O que objetivamos mostrar com essa reflexão é que no Texto 2 te-


mos um tema geral organizado de forma funcional em subtemas, que
convergem para o tema geral.

Até aqui apresentamos aspectos relacionados à manutenção e à


progressão temática em um texto. Agora, discorreremos sobre a coesão
sequencial por encadeamento que, segundo Koch (1991[1989]), carac-
teriza-se pelo estabelecimento de relações semânticas e/ou discursivas
entre orações ou sequências maiores de texto.

A seguir, apresentaremos exemplos de conectores que corroboram


para o estabelecimento da sequenciação e de determinadas relações no
texto (extraídos do Texto 2, destacados em roxo):

Se: estabelece uma relação de implicação entre um antecedente e


um consequente – Se a fase aguda da crise parece estar passando [...] os
indicadores da indústria [...];

e, também, como, além de: esses conectivos somam argumentos em


favor de determinado argumento – Lá nos EUA, como aqui no Brasil, [...];

50
Coesão textual Capítulo 04

mas: introduz uma oposição com relação ao que se disse anterior-


mente. Seu desafio será recolocar as contas públicas, o balanço de paga-
mentos e os indicadores macro-econômicos americanos no lugar. Mas sem
o desespero da crise de setembro e outubro;

Até, quando – imprime o sentido de tempo – A expectativa é que


assuma justamente quando o pior da crise já tiver passado, [...].

Vejamos, a partir do Texto 1, outro exemplo de coesão sequencial


por encadeamento que estabelece uma relação de temporalidade entre
as partes do texto: o uso do numeral primeiro e do advérbio depois tem
a função de fazer o texto progredir, bem como imprimir uma conti-
nuidade temporal das ações.

Primeiro os olhos. Já não refletiam outros olhares e nem borboletas...


Aprenderam a concentração, a disciplina. Depois o corpo, que desapren-
deu a dança, o voo dos papagaios e o brinquedo.

Já no Texto 2, podemos observar o funcionamento de mecanismos


de coesão sequencial por meio de operadores discursivos, como além de
e também. Em “Tudo somado, temos que Barack Hussein Obama, além
de todos os predicados concretos, tem também aquele que é fundamental:
sorte”, temos a locução conjuntiva além de, que caracteriza um relação
de conjunção que, segundo Koch (1991[1989), ocorre quando o elemen-
to coesivo liga enunciados que constituem argumentos para uma mes-
ma conclusão.

Já em “Barack Obama, [...] é um salto histórico enorme. Um salto de


qualidade, pela simbologia, pela concretização de uma mudança profun-
da que é política, social e cultural. Mas é também um salto no escuro”, o
operador discursivo mas estabelece uma relação de contrajunção, pois
contrapõe enunciados de orientações argumentativas diferentes. Outros
operadores que estabelecem relação por contrajunção são: porém, con-
tudo, todavia, entretanto. Vejamos outro exemplo de operador-discursivo
de contraconjunção, Tanto favoritismo, porém, tem despertado preocupa-
ção entre os eleitores de Obama.

51
Linguística Textual

O uso do operador argumentativo mas possibilita à autora ma-


nifestar oposição contrária ao que vinha sendo dito antes, ou seja, as
perspectivas favoráveis ao candidato Barack Obama são contrapostas,
através desse operador. É interessante também mostrar que esse opera-
dor se repete ao longo do texto, o que aponta para uma forte orientação
argumentativa do texto. Em alguns gêneros jornalísticos (comentário,
artigo, carta do leitor, editorial), podemos observar que os operadores
de contraconjunção desempenham um importante papel na constru-
ção argumentativa, na medida em que contribuem para a construção da
orientação apreciativa do autor no texto.

Implicações para o processo de ensino e aprendizagem:

É importante salientar que, não raras vezes, os livros didáticos redu-


zem os mecanismos de coesão textual aos pronomes e às conjunções,
quando, na verdade, os recursos coesivos são extremamente varia-
dos. Vejamos um pequeno trecho extraído de um livro didático de sé-
tima série do Ensino Fundamental, que exemplifica o que afirmamos:

Conjunções:

As conjunções são importantes elementos de coesão. No texto,


além de ligar orações, elas estabelecem relações entre parágra-
fos, auxiliando-nos a expressar com clareza nossas idéias.

A parte de gramática que estuda as conjunções é a Morfologia


(Morfo= forma+logia = tratado, ciência).

Essa informação encontra-se em uma caixa de texto, no capítulo sobre


uso da língua e no tópico sobre conjunções, que trabalha com composi-
ção de períodos a partir de indicação de determinadas conjunções.

Se a informação fornecida sobre a coesão não está incorreta, por ou-


tro lado, é extremante pobre e vaga. Provavelmente, o aluno não vai
aprender a função e o uso dos mecanismos coesivos. Conjunções e

52
Coesão textual Capítulo 04

pronomes são elementos coesivos no texto. Fora dele, perde o sen-


tido falar de coesão. Se atentarmos melhor, veremos que o que o
autor quer trabalhar na seção são as conjunções e não os mecanis-
mos de coesão. Provavelmente seja por isso que os autores de livros
didáticos somente falam de coesão quando abordam pronomes e
conjunções. Se o tema fosse, de fato, a coesão, outros recursos de-
veriam ser explorados, como os grupos nominais definidos, as elip-
ses, a manutenção e a progressão temática etc. Mas esses recursos
somente conseguem ser demonstrados nos textos.

Um trabalho produtivo com a coesão como princípio de textualidade


somente se efetiva no ensino e aprendizagem das práticas de escuta,
leitura e produção textual. Na leitura, o professor pode orientar seu
aluno para a importância de saber retomar o referente para a compre-
ensão das partes do texto, para a produção de sentidos e os acentos
de valor que se marcam nas retomadas do referente (por exemplo,
tem um acento de valor bastante diverso retomar, em um texto, o re-
ferente celular antigo por esse modelo ou aquele tijolão).

Da mesma forma, na reescritura dos textos, o professor, via media-


ção com o aluno, pode observar se os mecanismos de coesão usa-
dos pelo aluno estão adequados ou não, se produzem ou não os
sentidos desejados pelo aluno.

Neste Capítulo, exploramos a coesão textual e seu papel na constru-


ção da textualidade. No capítulo a seguir, dando continuidade à exposi-
ção dos princípios de textualidade, apresentaremos a coerência textual.

53
Coerência Capítulo 05

5 Coerência
Para Beaugrande e Dressler (2002 [1981], cap. I, §6), coerência é
o princípio de textualidade que está relacionado às formas mediante as
quais conceitos e relações subjacentes ao “texto de superfície são mutu-
amente acessíveis e relevantes”. Os autores definem o
texto de superfície como “as
palavras que efetivamente
Os conceitos, por sua vez, são definidos pelos autores como “confi- ouvimos ou vemos” (BEAU-
gurações de conhecimento (conteúdos cognitivos) ativáveis ou recupe- GRANDE; DRESSLER, 2002
[1981], cap. I, §4).
ráveis na mente”, e as relações são “ligações entre conceitos que ocorrem
juntos em um mundo textual”. Assim, a coerência, conforme definida
por Beaugrande e Dressler, não é uma propriedade do texto em si, mas
essencialmente um conjunto de processos cognitivos que constroem a
interpretação do texto. Portanto, em termos gerais, todos os elementos
que colaboram para que um texto se constitua como interpretável para
o interlocutor podem ser analisados como fatores de coerência.

Considerando que a coerência não está no texto em si (artefato,


texto como produto, abstraído da interação), mas é estabelecida no mo-
mento da interação, os fatores que contribuem para a coerência textual
dizem respeito tanto aos aspectos imanentes ao texto, quanto ao inter-
locutor, ao produtor do texto e à situação de interação em que eles se
encontram. O estabelecimento da coerência dependerá, portanto, não
apenas do esforço do interlocutor em construir sua interpretação do
texto, mas também da capacidade do produtor do texto de prever quan-
to de conhecimento seu interlocutor pretendido possui a respeito dos
processos de textualização e dos gêneros do discurso. Como no capítulo anterior,
também optamos por
usar neste Koch e Travaglia
Koch e Travaglia resumem que o estabelecimento da coerência do como referência.
texto depende:

a) de elementos linguísticos (seu conhecimento e uso), bem como, evi-


dentemente, da sua organização em uma cadeia linguística e como
e onde cada elemento se encaixa nessa cadeia, isto é, do contexto
linguístico; b) do conhecimento de mundo (largamente explorado pela
semântica cognitiva e/ou procedural), bem como o grau em que esse
conhecimento é partilhado pelo(s) produtor(es) e receptor(es) do tex-

55
Linguística Textual

to, o que se reflete na estrutura informacional do texto, entendida


como a distribuição da informação nova e dada nos enunciados e
no texto, em função de fatores diversos; c) de fatores pragmáticos e
interacionais, tais como o contexto situacional, os interlocutores em
si, suas crenças e intenções comunicativas, a função comunicativa do
texto. (KOCH e TRAVAGLIA, 1999 [1989], p. 47-48, grifos dos autores).

Os autores examinam a contribuição, para a construção da coerência,


dos seguintes fatores: conhecimento linguístico, conhecimento de mun-
do, conhecimento partilhado (entre produtor e interlocutor), inferências,
focalização, relevância, fatores de contextualização, informatividade, in-
tertextualidade, situacionalidade, intencionalidade e aceitabilidade.

Neste Capítulo, vamos discutir o papel dos seguintes elementos


para a construção da textualidade: elementos linguísticos, conheci-
mento de mundo, inferências, focalização e relevância.

Os fatores informatividade, intertextualidade, situacionalidade, in-


tencionalidade e aceitabilidade, como constituem princípios de textuali-
dade, serão apresentados em capítulos específicos desta Unidade. Esses
princípios também contribuem para a construção da coerência porque
fornecem, de diferentes maneiras, elementos para a constituição do en-
trelaçamento de conceitos e relações que constituem o aparato socio-
cognitivo de que se vale o leitor/ouvinte para elaborar sua interpretação
do texto nos processos interacionais.

5.1 Elementos linguísticos

Como vimos no Capítulo 4 sobre coesão textual, pronomes, con-


junções e variadas formas de retomada lexical permitem a criação e
manutenção de uma rede coesiva que contribui para que o texto seja
percebido como uma unidade textual. Assim, os elementos linguísticos
formam a base da coesão. Da mesma forma, o estabelecimento da coe-
rência também depende fortemente do léxico e da sintaxe. Esta, contudo,
não pode ser entendida tão-somente em seu sentido estrito, como uma
estruturação das frases, com termos dispostos linearmente e unidos por

56
Coerência Capítulo 05

relações de dependência estrutural, marcadas ou não por conetivos. É o


que se evidencia no poema Serenata Sintética, de Cassiano Ricardo, cuja
sintaxe constrói-se essencialmente por via de paralelismos: In: RICARDO, Cassiano. Um
dia depois do outro. São
Paulo: Companhia Editora
TEXTO 3 Nacional, 1947.

Serenata Sintética

Rua
torta.

Lua
morta.

Tua
porta.

Esse poema, que se enquadra dentro da proposta estética do Movimento poético sur-
gido no Brasil, na década
Concretismo, caracteriza-se pela ausência de conectivos (preposições, de 50, cujas característi-
conjunções) e pelo uso de sentenças nominais (sem verbos). A coesão cas incluem “abolição do
verso tradicional, falta de
é criada pelo jogo de repetições próprio do texto poético: métrica re- linearidade, ausência de
gular (versos monossílabos), rimas em versos alternados (AB AB AB), pontuação, ruptura com
a sintaxe; aproveitamento
aliterações (/r/ e /t/), estrofes de mesmo tamanho (dois versos). do espaço – do ‘branco da
página’ – e a disposição
geométrica das palavras
Em termos lexicais e sintáticos, também se dá um jogo de repetições no papel; a exploração do
que contribui para a coesão do texto: em cada estrofe, há um caracteriza- significante quanto aos
seus aspectos sonoros,
dor (torta, morta, tua) e um substantivo caracterizado (rua, lua, porta). visual e semântico [...]”
(JORDÃO, R.; OLIVEIRA, C.
B., 2005. p. 301)
São os elementos linguísticos que, num primeiro momento, garan-
tem a coerência do poema, ao remeter o interlocutor a um ambiente
noturno (serenata, lua) e externo (rua), assim como a um contexto de Algumas possibilidades
de interpretação que o
história de amor (serenata, tua porta). Mas esses elementos também po- léxico oferece só podem
dem remeter o leitor a outros níveis de interpretação do texto. O adjeti- ser rejeitadas a partir de
outros fatores de coerên-
vo sintética corresponde ao caráter minimalista do poema, mas também cia, como a situacionali-
pode referir-se a fabricado, industrial, artificial. Em um plano interpre- dade e a relevância.
tativo, o adjetivo torta refere-se ao formato sinuoso da rua. Mas torto

57
Linguística Textual

também pode ser entendido como errado, duvidoso. Daí que a rua torta
possa ser entendida como os próprios descaminhos do eu‑lírico ou de
quem está por trás da porta.
No texto poético, o eu-
-lírico é a voz que se diri-
ge ao leitor; corresponde, O adjetivo morta, em um plano de interpretação, refere-se à ausên-
grosso modo, ao narrador
do texto narrativo. cia de vida. Temos então um sentido trivial: A lua, efetivamente, é um
astro sem vida. Mas morto também evoca o sentido de desaparecido.
Então, nesse plano interpretativo, a lua já se esconde além do horizonte
e se tem uma noite sem lua, escura, portanto, misteriosa. O pronome
tua parece referir-se, num primeiro plano, à amada do eu-lírico. Mas
Considerando que sere- também podemos supor que o eu‑lírico dirige-se ao leitor. Nesse caso,
natas são, normalmente, o pronome tua referir-se-ia à pessoa do leitor. A negação dessa hipó-
feitas por homens para
agradar a mulheres, tese, como veremos adiante, exige a ativação de outros conhecimentos
supõe-se que o eu‑lírico além do sistema linguístico. A palavra porta, que, em um plano inter-
seja um homem e a
amada, uma mulher. pretativo, é apenas a entrada para uma casa, comporta grande variedade
Mas ressalte-se que, do de outros significados, entre os quais acesso. Então, tua porta pode ser
ponto de vista estrita-
mente linguístico, nem interpretado também como acesso a ti, acesso ao teu coração. Por fim,
o sexo da pessoa amada retornando ao título, a expressão serenata sintética tanto pode referir-se
se pode garantir.
ao conteúdo do poema – elementos mínimos de uma serenata – como
ao poema em si, ele próprio bastante sintético.
Uma importante implica-
ção escolar dessa questão Observamos que os elementos linguísticos do texto, ao evocar con-
é a necessidade de os
alunos terem acesso a ceitos e relações variadas, permitem a criação de um mundo textual, nos
conhecimentos variados, termos de Beaugrande e Dressler (2002); ou, mais propriamente, devido
obtidos por meio da in-
teração com documentá- ao caráter ambíguo do texto poético, variados mundos textuais.
rios, filmes, jornais, livros,
visitas a museus, exposi-
ções de arte, parques eco- 5.2 Conhecimento de mundo
lógicos etc. Em escolas
que possuam recursos de
informática, também se
pode acessar uma varie- Um mesmo texto poderá parecer trivial ou impenetrável para dife-
dade de sítios eletrônicos
que permitem acesso rentes interlocutores, dependendo de quanto conhecimento a respeito
a museus e galerias de do assunto do texto eles possuam. Essa situação mostra que a construção
arte virtuais, assim como
a materiais em domínio da coerência de um texto é grandemente determinada pelos conheci-
público (livros e filmes, mentos de mundo prévios do interlocutor. Por isso, pessoas que possuem
por exemplo).
conhecimentos de assuntos variados têm melhor compreensão dos tex-
tos em geral e estabelecem a coerência textual com maior facilidade.

58
Coerência Capítulo 05

Segundo Koch e Travaglia (1999 [1989]), os pesquisadores costu-


mam diferenciar o conhecimento em: conhecimento enciclopédico (ba‑
ckground knowledge) e conhecimento ativado (foreground knowledge). O
primeiro tipo de conhecimento representa aquilo que está guardado na Esta questão também
memória de longo prazo. Já os conhecimentos do segundo tipo são tra- está relacionada aos
estudos do letramento. O
zidos à memória presente, ou operacional. Uma distinção importante conceito de letramento
entre os dois tipos de memória é que, na memória de longo prazo, os emerge na década de
1980 como reconheci-
conhecimentos encontram-se mais organizados e integrados entre si, mento das diferentes
formando redes conceituais, enquanto que, na memória operacional, os práticas sociais de uso da
leitura e da escrita mais
itens não estão tão integrados e, assim, são mais facilmente esquecidos. complexas que a codi-
ficação e decodificação
(aprendizagem do siste-
Esse conhecimento guardado na memória de longo prazo é aquilo a ma de escrita; alfabetiza-
que normalmente nos referimos como conhecimento de mundo e envol- ção no sentido estrito do
termo). Assim, vale desta-
ve uma ampla gama de informações de natureza bastante diversa, entre car que, em uma sala de
as quais se poderia incluir: aula, incluem-se diferen-
tes sujeitos. Os alunos
ӲӲ propriedades dos seres e seu comportamento; ali agrupados estão
inseridos em diferentes
ӲӲ memória de fatos passados, com variados níveis de relevância, práticas de letramento, o
que tem implicações nas
desde aqueles essencialmente pessoais até os eventos históricos; práticas de linguagem
na disciplina de Língua
ӲӲ gêneros do discurso; elementos da cultura do próprio grupo social Portuguesa.
e de outros grupos;

ӲӲ relação entre conhecimento científico e cotidiano;

ӲӲ relação entre ficção e realidade etc.

Para exemplificar como o conhecimento de mundo é relevante na


construção da coerência, vamos analisar seu papel na letra da música
De frente pro crime, de autoria de João Bosco e Aldir Blanc (1975):
BOSCO, J. Caça à raposa.
TEXTO 4 São Paulo: RCA Victor,
1975. 1 disco: 33 1/3 rpm,
estéreo. LP 31.84.
De frente pro crime

1 Tá lá o corpo estendido no chão

2 em vez de rosto uma foto de um gol

59
Linguística Textual

3 em vez de reza uma praga de alguém

4 e um silêncio servindo de amém

5 O bar mais perto depressa lotou

6 malandro junto com trabalhador

7 um homem subiu na mesa do bar

8 e fez discurso pra vereador

9 Veio camelô vender anel,

10 cordão, perfume barato

11 baiana pra fazer pastel

12 e um bom churrasco de gato

13 quatro horas da manhã baixou

14 o santo na porta-bandeira

15 e a moçada resolveu parar

16 então...

17 Tá lá o corpo estendido no chão

18 em vez de rosto uma foto de um gol

19 em vez de reza uma praga de alguém

20 e um silêncio servindo de amém

21 Sem pressa foi cada um pro seu lado

22 pensando numa mulher ou num time

23 olhei o corpo no chão e fechei

24 minha janela de frente pro crime

O corpo no chão (verso 1) poderia ser de alguém dormindo, de


alguém embriagado, de uma vítima de acidente. Entretanto, nosso co-
nhecimento de mundo nos leva a pensar em morte por causa da pala-
vra crime no título da canção.
60
Coerência Capítulo 05

No verso 2, um desafio à construção da coerência: Como a face de


alguém vira uma foto de um gol? A morte, obscena, precisa ser tirada
das vistas. Daí cobrir-se o morto com algo que esteja à mão. Nesse caso,
usou-se um jornal que trazia estampada a foto de um gol. Observe-se
que isso só é inferível por um leitor que conheça o fato de que é – ou,
pelo menos, costumava ser – usual cobrir cadáveres ainda não recolhi-
dos, como sinal de respeito.

Logo a seguir, nos versos 3 e 4, uma aparente incoerência: Se não


há reza, mas praga, por que amém (verso 4), que é fecho próprio de ora-
ções? A ativação do conhecimento de que amém significa “assim seja”
reinstaura a coerência: Um dos circunstantes pragueja contra a crimina-
lidade, contra a polícia ou contra o próprio morto; o silêncio dos demais
sugere uma concordância com essa fala ou com o próprio assassinato
– trata-se de “um marginal a menos”.

Outros conhecimentos de mundo precisam ainda ser mobilizados


para a construção da coerência. Por exemplo, compreender a relação
dos versos de 5 a 15 com o restante do texto implica ter alguma ciência
sobre a banalização da morte no ambiente das metrópoles brasileiras.

5.3 Inferências

Estreitamente ligada ao conhecimento de mundo está a construção de


inferências. Segundo Beaugrande e Dressler (2002 [1981]), inferir é suprir
conhecimento de que já se dispõe a fim de organizar um mundo textual:
“Esta operação [inferir] envolve suprir conceitos e relações apropriados para
preencher uma lacuna ou descontinuidade em um mundo textual.” (BEAU-
GRANDE e DRESSLER, 2002 [1981], cap. V, §32). Portanto, o processo de
inferenciação consiste em suprir, com base em elementos textuais e no co-
nhecimento de mundo, uma informação necessária ou pertinente ao esta-
belecimento de relações entre entidades no texto ou entre essas e o mundo.

Os autores descrevem a inferenciação como um processo ativo,


guiado pelas metas do produtor e do interlocutor: “[...] a inferencia-

61
Linguística Textual

ção é sempre dirigida para a resolução de um problema, no sentido de


[...] transpor um espaço onde a trilha não alcança”. (BEAUGRANDE e
DRESSLER, 2002 [1981], cap. V, §32)

As inferências são sempre motivadas por necessidades do leitor/


ouvinte em obter sentido, criar coerência. Citando Charolles (1987),
Koch e Travaglia dizem que

o processo de interpretação e reinterpretação é comandado pelo


princípio da coerência, que leva aquele que interpreta o texto a
construir relações que não estão expressas nos dados do texto: estas
relações são as inferências, que podem ou não ser linguisticamente
fundadas. (KOCH e TRAVAGLIA, 1999 [1989], p. 70).

Nos modelos teóricos que buscam explicar o processo de com-


preensão de textos, um problema a ser resolvido é a limitação das in-
ferências apenas àquelas que sejam necessárias ou de alguma forma
relevantes à construção da interpretação do texto. Koch e Travaglia
(1999 [1989], p. 73) indicam alguns possíveis mecanismos de limi-
tação das inferências:

a) O contexto, que pode ser o contexto linguístico (ou co-texto) e o


contexto de situação (contexto sócio-cultural, circunstancial) [...];

b) A cooperação retórica, em termos de aceitação de argumentos;

c) A força ilocucionária do enunciado e a tarefa do ouvinte (ou leitor);

d) A focalização, a que Charolles (1987) se refere como filtragem pelo alto.

É importante destacar que as inferências podem variar drasticamente


entre interlocutores e são profundamente dependentes das expectativas do
PAULINHO DA VIOLA. leitor/ouvinte. Estas, por sua vez, são guiadas por diversos fatores, que in-
Paulinho da Viola. São cluem os objetivos e o contexto imediato da interação, o gênero do discurso
Paulo: EMI/ODEON, 1978.
1 disco: 33 1/3 RPM, e mesmo questões de intertextualidade. Um bom exemplo de como a inter-
estéreo. textualidade pode guiar a inferência está na leitura/audição de Pelos vinte,
composição de Paulinho da Viola e Sérgio Natureza (1978):

62
Coerência Capítulo 05

TEXTO 5

Pelos Vinte
Você me deixou pelos vinte

No golpe da sorte

Entre a rosa e a preta

Na mesa da vida

Você me deixou sem saída

Sinuca de bico

A preta e a rosa

Na noite perdida

Você me deixou sem escolha

Com bolha no dedo

E o taco mais fraco

Com medo de errar

Você só deixou a tabela

E eu disse comigo

O efeito foi feito

Pra gente tentar

Tentei no capricho e matei sem perdão sua pose

A black e a rose

E a black outra vez

Enfim terminado este jogo

Chamei pelo cara do tempo

E tirei da caçapa o suor que suei

63
Linguística Textual

O texto descreve um jogo de bilhar tenso, ganho pelo eu-lírico


após uma jogada arrojada. Salvo por pistas sutis – como os versos Na
mesa da vida e Na noite perdida, que parecem remeter a contextos
existenciais mais amplos –, o texto parece definitivamente referir-se a
bilhar. Entretanto, vários leitores/ouvintes veem no texto a alegoria de
uma relação amorosa tensa, da qual o eu-lírico se vê livre.

Isso possivelmente se dá
porque quem conhece Finalmente, considerando que, como dizem Beagrande e Dressler,
outras canções gravadas inferir é suprir conhecimento, leitores/ouvintes que possuem conheci-
por Paulinho da Viola
sabe que ele não costu- mentos de mundo mais amplos serão capazes de construir inferências
ma trabalhar com temas mais amplas, que permitirão outras possibilidades de coerência, leituras
banais (como seria a mera
descrição de um jogo mais ricas. Na análise do texto De frente pro crime, por exemplo, mostra-
de bilhar) e que muitas mos como o conhecimento de mundo permitiu elaborar algumas inferên-
de suas músicas têm por
tema o amor. cias que serviram para integrar em um mundo textual coerente itens que
ficariam sem uma explicação plausível, como o verso em vez de rosto uma
foto de um gol. Mas, além dessas inferências, muitas outras podem ser
feitas, de forma a ampliar a compreensão do texto, atribuindo-lhe outros
sentidos. Por exemplo, a partir do fato de que o morto foi coberto com
jornal e não com material mais nobre, pode-se inferir que se trata, prova-
velmente, de alguém pobre. A partir da informação de que os populares,
ao deixar o local do crime, vão pensando em uma mulher ou um time de
futebol, é possível inferir que a morte já não os sensibiliza, banalizou-se.

5.4 Focalização

Segundo Koch e Travaglia (1999 [1989]), a focalização está direta-


mente ligada com o conhecimento de mundo e o conhecimento com-
partilhado. Nas interações, tanto o produtor quanto o interlocutor foca-
lizam sua atenção em apenas uma pequena porção do conhecimento de
que dispõem a respeito do assunto. Entretanto, para que a compreensão
se dê de forma adequada, é necessário que esse recorte do conhecimento
seja realizado de forma semelhante pelos participantes. Ou seja, é neces-
sário que os mesmos objetos de discurso sejam enfocados. Nas intera-
ções conversacionais, isso envolve mecanismos de negociação:

64
Coerência Capítulo 05
Os falantes agem como se estivessem focalizados semelhantemente,
quer estejam ou não (princípio da cooperação), e tendem a estabele-
cer um campo comum. Caso não estejam focados semelhantemente,
as diferenças de focalização causam problemas de compreensão que
só são detectados se ocorrerem problemas maiores de compatibili-
dade. (KOCH e TRAVAGLIA, 1999 [1989], p. 82).

Já nas interações mediadas por textos escritos, é bastante comum


que o produtor e o leitor não tenham possibilidade de negociar a fo-
calização. Daí a necessidade de que o produtor forneça os elementos
que permitam ao leitor decidir sobre o que está sendo focalizado num
dado momento. Há variadíssimas formas para isso. Observemos, por
exemplo, como, no primeiro parágrafo do conto Pinóquio às avessas,
reproduzido abaixo, o menininho de carne e osso vai ganhando forma
não como um menino específico, mas como uma entidade prototípica
de uma infância idealizada. Isso é conseguido, entre outros meios, pelo
uso do pretérito imperfeito para falar de ações corriqueiras do menino:

Era uma vez um menininho, de carne e osso, igual a tantos que se de-
leitam nas coisas simples que a vida dá. Ria nos seus mundos de faz de
conta, voava nas asas dos urubus, assustava os peixes, nariz achatado
nos vidros dos aquários, assobiava para os perus, andava na chuva. To-
das estas coisas que as crianças fazem e os adultos desejam fazer e não
fazem, por vergonha. Sua vida escorria feliz por cima do desejo.

Essa focalização do menino como uma espécie de representante ge-


nérico de toda a infância é importante para que se realizem os sentidos
pretendidos por Rubem Alves (entre os quais se inclui certamente uma
crítica à educação escolar).

Para a focalização, os conhecimentos compartilhados sobre os gê-


neros do discurso também têm grande relevância. No exemplo acima,
Rubem Alves abre o texto com Era uma vez, que remete o leitor ao
conto de fada. Portanto, um leitor proficiente saberá que a história que
lerá é ficcional. Então, focalizará as personagens não como pessoas
reais, mas imaginárias. Por outro lado, quando esse leitor proficiente
iniciar a leitura de um artigo assinado no jornal, a focalização já ini-
ciará com o próprio suporte do texto, o jornal, passando pela seção

65
Linguística Textual

em que o artigo é publicado, por seu título, pelo conhecimento do que


é o jornalismo e o gênero artigo assinado etc. Saberá que um artigo
de jornal é diferente, por exemplo, de um artigo publicado em revista
científica (são dois gêneros distintos) e também bastante diferente de
uma matéria publicada em uma revista de fofocas. Além disso, se uma
notícia estiver publicada na seção de esportes, nosso leitor hipotético
construirá sentidos diferentes para a palavra confronto do que se essa
notícia estiver publicada na seção policial.

Falando sobre as interações conversacionais, Koch e Travaglia


(1999 [1989]) destacam que as pistas para focalização podem ser
linguísticas ou não‑linguísticas, como aquilo que os falantes veem
durante a interação. Nas interações mediadas pela escrita, elemen-
tos sígnicos não‑linguísticos, como desenhos e fotografias, também
podem auxiliar a focalização.

As focalizações são fortemente dependentes do contexto e dos ob-


jetivos da interação. Por exemplo, se um jornalista escrever uma notícia
a respeito de um encontro de líderes políticos, escolherá quais aspectos
do evento é relevante noticiar, norteado pela situação imediata da in-
teração de seu texto e pelas condições que o gênero lhe permite: onde
e quando foi o evento, quem participou, qual o assunto, qual a opinião
dos líderes presentes, a que eventos correlatos fará referência, e assim
por diante. Se um dos debatedores for um ministro que, nas horas vagas,
A ideia de que a conver- dedica‑se a esportes de risco, tal fato não será, provavelmente, enfocado
sação opera segundo pelo jornalista –
­ a não ser que, durante o evento, o gosto pela aventura
princípios cooperativos é
de Grice (1975). Segundo do ministro fique evidente. Poderá, então, servir até para que o jornalis-
o autor, a comunicação ta enriqueça seu texto com um detalhe bem-humorado. O leitor, por sua
humana baseia-se em
regras tácitas de coope- vez, ainda que saiba dos gostos esportivos do ministro, tenderá a não
ração mútua. Uma delas, focalizar esse conhecimento para sua construção da coerência do texto,
por exemplo, permite
pressupor que, salvo a não ser que o jornalista o explore.
indicação em contrário,
tudo que o interlocutor
diz é verdadeiro e deve Como mencionado acima, tanto nas interações orais como naquelas
ser tomado como tal. mediadas pelo texto escrito, opera-se uma espécie de princípio cooperativo
segundo o qual os interlocutores realizam a mesma focalização. Ou, mais
propriamente falando, realizam focalizações coerentes, uma vez que os

66
Coerência Capítulo 05

objetos discursivos – que não se confundem com os objetos do mundo fí-


sico – jamais podem ser exatamente os mesmos. Mas esse princípio coo-
Retornaremos a essa discus-
perativo não raro é violado, muitas vezes intencionalmente. Às vezes, para são na Unidade C.
instigar a curiosidade do leitor ou para fazer um jogo lúdico, o escritor faz
com que ele dirija sua focalização equivocadamente, como ocorre no título
da matéria a seguir, publicada no jornal A Notícia:

A Notícia, 28 fev. 2009.


TEXTO 6 Disponível em http://www.
clicrbs.com.br/anoticia/jsp/
Ronaldo estreia... a caixa de multas default2.jsp?uf=2&local=1
8&source=a2421066.xml&t
Atacante “esticou” a folga e será punido pelo Corinthians. emplate=4187.t&edition=1
1806&section=888. Acesso
A diretoria do Corinthians anunciou ontem que o atacante Ronaldo será em: 6 mai. 2009.
punido pelo clube por não se apresentar no horário marcado na noite
de quinta-feira, em Presidente Prudente (SP).

Depois da folga da tarde, os atletas tinham de voltar ao hotel até as 23


horas – o astro do elenco desobedeceu à determinação e só retornou
de madrugada.

Em nota oficial, o clube não especificou qual será a punição, mas deixou
claro que ele realmente se atrasou, confirmando os boatos de que teria
aproveitado a noite da cidade do interior paulista. A polêmica surge às
vésperas da partida que pode colocar o Corinthians na liderança, contra
o Marília, amanhã, às 19h10.

Durante a manhã de ontem, Ronaldo não participou das atividades com


os outros atletas, no Estádio Eduardo José Farah. Mas, de acordo com o
técnico Mano Menezes e com a nota oficial, a ausência do jogador no
treino já era prevista. Ele realizou treinamento específico com fisiotera-
peutas na concentração.

Quando apresentado oficialmente no Corinthians, em 12 de de-


zembro do ano passado, o Fenômeno declarou, ao lado do presi-
dente Andrés Sanches, que gostaria de ser mais um no elenco e
não aceitaria ter privilégios. Só que o fato de ele não treinar com o
restante do grupo na manhã de ontem indica um benefício após
noite mal dormida.

Segundo o técnico Mano Menezes, o tratamento do craque separa-


damente, em sala de fisioterapia montada pelo time num dos quar-
tos do hotel, já estava programado pela comissão técnica. Mesmo

67
Linguística Textual

assim, a van que leva os jogadores ao treinamento esperou pelo ata-


cante até 9h20 – o treino estava marcado para as 9 horas.

Recém-contratado pelo clube, o jogador Ronaldo ainda não estre-


ara em partidas oficiais, havendo grande expectativa com relação a isso.
Valendo-se desse fato, o jornalista cria um efeito lúdico com o desvio de
focalização. As reticências, sugerindo uma pausa de suspense (e talvez a
quebra de linha), servem para indicar ao leitor que não se trata de casu-
alidade, mas de efeito intencional.

Citando Grosz (1981), Koch e Travaglia (1999 [1989], p. 82) des-


tacam que a focalização “não só torna a comunicação mais eficiente,
como, na verdade, a torna possível”. A focalização constitui, portanto,
uma condição necessária para a construção de coerência, ao permitir
que o produtor do texto e seu leitor/ouvinte selecionem porções de co-
nhecimento para construção do texto e de sua interpretação.

5.5 Relevância

Citando Giora (1985), Koch e Travaglia (1999 [1989], p. 95) afir-


mam que “uma das principais condições para o estabelecimento da coe-
rência é a de relevância discursiva”. Ou seja, um texto mostra-se coerente
quando é possível interpretar as partes que o compõem como tratando
todas de um mesmo tópico discursivo.

Como observam Koch e Travaglia (1999 [1989]), a relevância não é


percebida linearmente no texto entre pares de sentenças, mas entre um
conjunto de sentenças e um tópico discursivo. Assim, é possível que
diferentes conjuntos de sentenças tratem de diferentes tópicos discur-
sivos, mas, para que a condição de relevância seja atendida, é preciso
que um tópico maior os agrupe todos. Como afirmam os autores, “para
que diferentes tópicos discursivos possam [...] preencher o requisito de
Veja, por exemplo, a aná-
lise da progressão temáti- relevância, eles devem ser relacionados por um hipertópico discursivo
ca do Texto 2. subjacente em termos de ‘aboutness’ (ser sobre algo)” (KOCH e TRA-
VAGLIA, 1999 [1989], p. 95-96).

68
Coerência Capítulo 05

Em não havendo conexão aparente entre o tópico desenvolvido


por um segmento de texto e o tópico principal, é comum que o autor
negocie isso com seu interlocutor mediante um marcador de digres-
são. Na conversação, servem a esse propósito expressões como por
falar nisso, aliás, entre outras. Mas, muitas vezes, as quebras sequer são
sinalizadas na oralidade espontânea, porque o contexto informa ao
interlocutor que o segmento de diálogo (a digressão) não tem relação
com o tópico em desenvolvimento.

Em contexto escrito, costumam existir marcadores específicos


para início e fim da digressão, como no texto a seguir, onde o marca-
dor Inclusive marca o início de uma pequena digressão, enquanto Mas Trecho de comentário
voltando ao assunto marca a volta ao tópico principal do texto, que é a publicado no blog Memó-
rias fracas. Disponível em
relação do autor com dispositivos eletrônicos. Neste mesmo texto, os http://memoriasfracas.
travessões também foram usados para marcar uma outra digressão, com/2008/10/22/fios-
-cabos-adaptadores-
esta no meio de um período. -gadgets/. Acesso em 27
abr. 2009.
TEXTO 7
Fios, cabos, adaptadores, gadgets
22 DE OUTUBRO DE 2008

Na última semana, fui a São Paulo cobrir o TechEd, evento da Micro-


soft voltado para desenvolvedores. Inclusive, você pode ver alguns de
meus posts sobre o evento no WinAjuda. Mas voltando ao assunto, foi
um cobertura voltada para o mercado de tecnologia e envolvia equi-
pamentos tecnológicos. Numa manhã, enquanto eu, Carlos Cardoso
e Thiago Mobilon tomávamos café no hotel – acho que foi o café da
manhã mais demorado da minha [sic] –, esse último soltou uma pé-
rola. Mobilon comparou a necessidade de arrumação de uma mulher
com a necessidade que um geek tem de se manter conectado e cheio
de equipamentos. [...]

Koch e Travaglia (1999 [1989]) sugerem que, no texto jornalístico


escrito, as digressões podem ser destacadas na forma de quadros com
comentários e informações complementares (por exemplo, as informa-
ções apresentadas por meio de mapas e infográficos). Segundo os auto-

69
Linguística Textual

MATENCIO, M., L. M. Práti- res, se tais informações aparecessem no meio do texto da reportagem
cas discursivas, gêneros do ou da notícia, nos pontos em que se lhes faz referência, representariam
discurso e textualização.
In: Estudos Linguísticos, digressões. Seguindo a mesma linha de raciocínio, podemos considerar
São Paulo, v. XXXV, p. que muitas das notas de rodapé em textos científicos também represen-
138-145, 2006. Disponível
em: <http://www.gel.org. tam digressões, como podemos confirmar no trecho do texto a seguir,
br/estudoslinguisticos/ de autoria de Matencio (2006):
icoesanteriores/4publica-
-estudos-2006/sistema06/
mdlmm.pdf>. Acesso em: TEXTO 8
30 abr. 2009.
Na minha exposição, salientei aquelas que considero serem, de
uma perspectiva bakhtiniana, as contribuições mais relevantes dos
estudos dos gêneros para a reflexão sobre os processos de textu-
alização. Antes de passar às minhas considerações finais, gostaria
de dizer que a imensa popularidade desses estudos parece-me,
também, perigosa, na medida em que pode obscurecer as diferen-
ças nas abordagens 12 e, sobretudo, dar a ilusão de que não há mais
nada de novo a dizer.

NOTAS
[...]
12
A preocupação de “limpar o campo”, de delimitar, de uma vez por to-
das, a questão, parece ter sido, aliás, a preocupação de muitos dos tra-
balhos sobre os gêneros que circularam em fins dos anos 90, quando
se tentava distinguir tipo textual e gênero; mais recentemente, a pre-
ocupação de discussões que procuram identificar as distinções entre
trabalhos que se dedicam ao estudo dos gêneros textuais e aqueles que
tratam dos gêneros do discurso parece responder ao mesmo tipo de
inquietação.

Implicações para o processo de ensino e aprendizagem:

a) Como se pode ver a partir do pequeno exemplo explora-


do no item 5.1, os elementos linguísticos abrem muitas pos-
sibilidades interpretativas, variadíssimas formas de construir
a coerência. Portanto, no ensino e aprendizagem de leitura, o
professor precisa estar especialmente atento à polissemia dos

70
Coerência Capítulo 05

termos e expressões, especialmente nos textos em que pre-


domina a função poética da linguagem. Uma boa ideia pode
ser examinar atentamente o léxico antes de apresentar o texto
aos alunos e, possivelmente, recorrer ao dicionário à busca de
sentidos menos convencionais. Possíveis exercícios envolve-
riam: leitura de textos poéticos, investigando diferentes pos-
sibilidades interpretativas; escritura de poemas explorando a
polissemia de termos como forma de criar jogos de sentidos.
E é ainda importante, no ensino e aprendizagem da leitura,
que o aluno leia o texto situado genericamente, ou seja, que
ele saiba a que gênero o texto pertence, pois gêneros distintos
arregimentam diferentes possibilidades de interpretação. Por
exemplo, enquanto os textos dos gêneros da arte buscam a
polissemia, ou seja, várias possibilidades de leitura, os textos
jurídicos buscam o fechamento dos sentidos, logo, uma leitura
mais parafrástica.

b) A focalização também é importante para a construção da


coerência textual. Assim, no ensino e aprendizagem de pro-
dução textual, são importantes os procedimentos destinados
a levar os alunos a focalizarem seu texto. Tradicionalmente, a
orientação para que o aluno ‘delimite o assunto’ ou ‘defina um
recorte’ servem para isso. Entretanto, essa delimitação é quase
impossível quando não estão claras as condições de produ-
ção, que, em, em grande medida, estão ligadas aos gêneros
do discurso: Em que espaço social de interação estão escritor e
leitor? Que autoria assumirá o aluno-autor? Quem será seu
leitor previsto?

Quais são os objetivos do texto, ou seja, o que o aluno-autor


quer enunciar, por que e que reação-resposta ele espera de
seu leitor? Quais conhecimentos de mundo ele pode espe-
rar que o leitor possua? Como essa reação­‑resposta e esse

71
Linguística Textual

conhecimento de mundo previsto podem orientar o processo


de textualização? Onde, quando e como o texto será publica-
do? Da mesma forma, nos processos de leitura, é importante
a focalização, que pode começar justamente pela exploração
do gênero do discurso, com perguntas semelhantes às que se
apresentam anteriormente.

c) A elaboração de inferências é essencial para a compreensão


do texto e para a construção da coerência, permitindo que se
lhe atribuam outros sentidos. Por isso o ensino e aprendiza-
gem pode prever questões que levem os alunos a inferir in-
formação não explícita no texto. Pensando especificamente na
polissemia do texto literário, os alunos podem ser encorajados
a expandir sua compreensão buscando inferir as motivações
das personagens, a moral da história, e assim por diante.

d) A percepção da relevância – tomada como a integração da


informação ao tópico discursivo – é essencial para a constru-
ção da coerência. No ensino e aprendizagem de leitura, é pre-
ciso exercitar essa percepção. No caso de contos, crônicas, ro-
mances, mediante perguntas bem colocadas, é possível levar
os alunos a uma interpretação mais apurada da história. Pode-
-se, por exemplo, perguntar: “O que esse fato revela a respeito
da personagem X?”, “Qual a relevância dessa característica da
personagem X no desenvolvimento da história?”, “Por que a
personagem X agiu assim?”. No caso de artigos de opinião, po-
dem-se fazer perguntas que levem os alunos a perceber como
a argumentação se constrói, mormente, mediante raciocínios
lógicos e exemplificações. Na mediação da produção escrita,
igualmente, os alunos devem ser orientados a selecionar infor-
mações que sejam pertinentes à construção de textos coeren-
tes e adequados à situação de interação.

72
Coerência Capítulo 05

e) Dado o caráter determinante dos conhecimentos de mun-


do na construção de coerência, o ensino e aprendizagem de
leitura pode prever estratégias para facilitar a ativação desses
conhecimentos. Isso pode ser conseguido com perguntas di-
rigidas pelo professor à turma antes, durante e após a leitura
do texto. Por exemplo, antes da leitura do texto De frente pro
crime, poder-se-ia perguntar aos alunos se a reação das pes-
soas perante as mortes violentas varia ao longo do tempo e
conforme a classe social da vítima. Também seria possível pe-
dir aos alunos que pensassem sobre o que acontece no cená-
rio de um assassinato na rua enquanto a polícia não recolhe
o cadáver. O professor também pode buscar formas de suprir
o conhecimento de mundo de que os alunos não disponham.
Há várias estratégias para isso, desde informar diretamente
aquilo que os alunos não sabem até pedir-lhes previamen-
te que realizem pesquisas sobre o tema. Da mesma forma,
destaca-se a importância do conhecimento de mundo no
processo de produção textual.

Neste Capítulo, examinamos o papel, para a construção da coerência,


dos elementos linguísticos, do conhecimento de mundo, das inferências,
da focalização e da relevância. Nos Capítulos seguintes, apresentaremos
os demais princípios de textualidade: informatividade, intertextualidade,
situacionalidade, intencionalidade e aceitabilidade, que, da mesma for-
ma, têm grande relevância para a construção da coerência.

73
Intencionalidade e aceitabilidade Capítulo 06

6 Intencionalidade e
aceitabilidade

Quando o autor produz um texto, tenciona que este seja entendido


como tal, porque tem objetivos para a interação. Existe, via de regra, um
objetivo para a enunciação. O autor quer influenciar de alguma forma
o interlocutor: informar-lhe algo, fazer-lhe uma promessa, dar-lhe uma
ordem, obter dele uma informação etc. Isso não implica, obviamente,
que os esforços do autor sempre produzam o efeito desejado. Às vezes,
alguma dificuldade do interlocutor em lidar com o texto ou algum pro-
blema na textualização pode causar resultados inusitados. Vejamos, a
esse respeito, esta fotografia de um aviso pintado na parede externa de
um restaurante ou bar:
Disponível em: http://
blog-do-rona.blogspot.
TEXTO 9 com/2007/03/zaco-e-sua-
-flor.html. Acesso em 4
mai. 2009.

A intenção do anunciante, aparentemente, era informar a potenciais


POSSENTI, S. “Quase
clientes que ali se vendia guaraná afrodisíaco, para – é claro – melhorar gols de placa”. Dispo-
suas vendas. A forma como redigiu o aviso, entretanto, deu margem a nível em http://terra-
magazine.terra.com.br/
leituras e reações bastante diversas. A imagem do anúncio circulou, via interna/0,,OI1575149-
internet, por todo o Brasil e foi alvo de pilhérias. Todavia, o professor -EI8425,00.html. Acesso
em 4 mai. 2009.
Sírio Possenti fez uma análise do anúncio, mostrando que o suposto erro

75
Linguistica Textual

é, na verdade, um gol de placa em termos de criatividade frente a um


problema linguístico. Já o escritor Ronaldo Monte, inspirado pelo anún-
MONTE, R. Zíaco e sua cio, escreveu um breve conto, que simula uma narrativa mítica. Como
flor. Disponível em: se vê, o autor do aviso – por desconhecimento da palavra afrodisíaco em
<http://blog-do-rona.blo-
gspot.com/2007/03/zaco- sua forma escrita – produziu um texto cujos efeitos foram muito além
-e-sua-flor.html>. Acesso do que ele tencionava.
em: 4 mai. 2009 .

Esse desejo do autor de produzir um texto que cause algum efeito


sobre o interlocutor é chamado de intencionalidade, que é definida por
Beaugrande e Dressler (2002 [1981], cap.I, §13) como

[a] atitude do produtor de que o conjunto de ocorrências deva cons-


tituir um texto coeso e coerente, instrumental ao cumprir as inten-
ções do produtor; por exemplo, distribuir conhecimento ou alcançar
uma meta específica em um plano.

Contudo, como já vimos, a coerência não está no texto, mas é cons-


truída pelo leitor/ouvinte na interação. Portanto, o sucesso da intenção
do autor é altamente dependente das condições oferecidas por seu inter-
locutor, entre as quais sua maior ou menor disposição para aceitar o tex-
to como coeso, coerente e relevante para a situação. Essa disposição do
leitor/ouvinte constitui a aceitabilidade, assim descrita por Beaugrande
e Dressler (2002 [1981], cap. I, §14):

[...] atitude do receptor do texto de que o conjunto de ocorrências


deva constituir um texto coeso e coerente que tenha algum uso e
relevância para o receptor; por exemplo, adquirir conhecimento ou
fornecer cooperação em um plano. Essa atitude é responsiva a fato-
res como tipo de texto, cenário social ou cultural e a busca por metas.

No caso do anúncio do suco de guaraná a flôr de zíaco, por exem-


plo, tanto Sírio Possenti quanto Ronaldo Monte mostram-se coopera-
tivos como leitores. Para eles, o texto tem grande aceitabilidade. Mas,
enquanto Monte constrói uma coerência alternativa para a frase a flôr
de zíaco, Possenti a lê como um erro, ainda que inteligente:

Acho que esse é um bom exemplo de erro inteligente. É um erro, claro,


mas é brilhante. Lembra as etimologias populares (aviso breve, assustar

76
Intencionalidade e aceitabilidade Capítulo 06
o cheque), tentativas de dar sentido a palavras ou a expressões opacas. É
um erro comparável aos gols perdidos por Pelé. (POSSENTI, 2007).

Koch e Travaglia (1999 [1989]) afirmam que tanto a intencionali-


dade quanto a aceitabilidade podem ser tomadas em sentido amplo ou
em sentido restrito. Em sentido restrito, a intencionalidade manifesta-se
como a intenção do autor de produzir um texto dotado de coesão e coe-
rência. Já a aceitabilidade, em sentido restrito, constitui a disposição do
interlocutor em aceitar essas intenções do autor, tomando o texto como
coeso, coerente e relevante. Portanto, em sentido restrito, o produtor e
o leitor/ouvinte “agem como se o texto fosse coerente, numa espécie de
atitude cooperativa: Um sempre quer produzir um texto que faça sen-
tido e o outro sempre vê a produção do primeiro como algo que ele fez
para ter sentido” (KOCH e TRAVAGLIA, 1999 [1989]).
Esse parece ser o caso do
Em sentido amplo, a intencionalidade abrange todas as formas de anúncio analisado. Mes-
mo com os erros linguís-
que o locutor lança mão para realizar os seus propósitos comunicativos. ticos, autor e interlocutor
E a aceitabilidade, em sentido amplo, corresponde a uma disposição do tentam ser cooperativos.
Entretanto, nem sempre
leitor/ouvinte em compartilhar com o locutor esse propósito mais geral o interlocutor mostra
de estabelecer e manter a comunicação. Portanto, segundo Koch e Tra- cooperação. Muitas vezes,
os desvios de norma-
vaglia (1999 [1989], p. 80), intencionalidade e aceitabilidade, em sentido -padrão são motivos para
amplo, “são as duas faces constitutivas do princípio da cooperação”. Tão o interlocutor não apenas
não aceitar a intenção do
forte é esse princípio cooperativo que o leitor/ouvinte tolera eventuais autor, como para desqua-
problemas na coesão ou na coerência, a fim de manter a comunicação, lificá-lo.
como destacado por Beaugrande e Dressler (2002 [1981], Cap. 1, §13):

Em certa medida, a coesão e a coerência podem, por si sós, ser to-


madas como metas operacionais sem cuja consecução outras metas
discursivas podem ser bloqueadas. Contudo, os usuários de textos
normalmente mostram tolerância em relação a produtos cujas con-
dições de ocorrência tornam difícil manter coesão e coerência juntas VERÍSSIMO, L. F. In: NOVA-
[...], especialmente na conversação informal. ES, C. A. et al. Para gostar
de ler. v. 7. Crônicas. São
Paulo: Ática, 1982. p.
No texto a seguir, de Luiz Fernando Veríssimo (1982), é possível 35-37

perceber como as personagens do texto buscam interagir coopera-


tivamente. Para isso, as intenções comunicativas de um devem ser
aceitas pelo outro, mesmo que seja preciso tolerar eventuais falhas
na construção da coerência.

77
Linguistica Textual

TEXTO 10

Comunicação

É importante saber o nome das coisas. Ou, pelo menos, saber comuni-
car o que você quer. Imagine-se entrando numa loja para comprar um...
um... como é mesmo o nome?

“Posso ajudá-lo, cavalheiro?”

“Pode. Eu quero um daqueles, daqueles...”

“Pois não?”

“Um... como é mesmo o nome?”

“Sim?”

“Pomba! Um... um... Que cabeça a minha. A pa­lavra me escapou por


completo. É uma coisa simples, co­nhecidíssima.”

“Sim senhor.”

“O senhor vai dar risada quando souber.”

“Sim senhor.”

“Olha, é pontuda, certo?”

“O quê, cavalheiro?”

“Isso que eu quero. Tem uma ponta assim, entende?

Depois vem assim, assim, faz uma volta, aí vem reto de novo, e na outra
ponta tem uma espécie de encaixe, en­tende? Na ponta tem outra volta,
só que esta é mais fe­chada. E tem um, um... Uma espécie de, como é
que se diz? De sulco. Um sulco onde encaixa a outra ponta, a pontuda,
de sorte que o, a, o negócio, entende, fica fe­chado. É isso. Uma coisa
pontuda que fecha. Entende?”

“Infelizmente, cavalheiro...”

“Ora, você sabe do que eu estou falando.”

“Estou me esforçando, mas...”

“Escuta. Acho que não podia ser mais claro. Pontudo numa ponta,
certo?”

78
Intencionalidade e aceitabilidade Capítulo 06
“Se o senhor diz, cavalheiro.”

“Como, se eu digo? Isso já é má vontade. Eu sei que é pontudo numa


ponta. Posso não saber o nome da coisa, isso é um detalhe. Mas sei exa-
tamente o que eu quero.”

“Sim senhor. Pontudo numa ponta.”

“Isso. Eu sabia que você compreenderia. Tem?”

“Bom, eu preciso saber mais sobre o, a, essa coisa. Tente descrevê-la ou-
tra vez. Quem sabe o senhor desenha para nós?”

“Não. Eu não sei desenhar nem casinha com fumaça saindo da chaminé.
Sou uma negação em desenho.”

“Sinto muito.”

“Não precisa sentir. Sou técnico em contabilidade, es­tou muito bem


de vida. Não sou um débil mental. Não sei desenhar, só isso. E hoje,
por acaso, me esqueci do nome desse raio. Mas fora isso, tudo bem.
O desenho não me faz falta. Lido com números. Tenho algum proble-
ma com os números mais complicados, claro. O oito, por exemplo.
Tenho que fazer um rascunho antes. Mas não sou um débil mental,
como você está pensando.”

“Eu não estou pensando nada, cavalheiro.”

“Chame o gerente.”

“Não será preciso, cavalheiro. Tenho certeza de que chegaremos a um


acordo. Essa coisa que o senhor quer, é feito do quê?”

“É de, sei lá. De metal.”

“Muito bem. De metal. Ela se move?”

“Bem... É mais ou menos assim. Presta atenção nas minhas mãos. É as-
sim, assim, dobra aqui e encaixa na ponta, assim.”

“Tem mais de uma peça? Já vem montado?”

“É inteiriço. Tenho quase certeza de que é inteiriço.”

“Francamente...”

“Mas é simples! Uma coisa simples. Olha: assim, as­sim, uma volta aqui,
vem vindo, vem vindo, outra volta e clique, encaixa.”

79
Linguistica Textual

“Ah, tem clique. É elétrico.”

“Não! Clique, que eu digo, é o barulho de encaixar.”

“Já sei!”

“Ótimo!”

“O senhor quer uma antena externa de televisão.”

“Não! Escuta aqui. Vamos tentar de novo...”

“Tentemos por outro lado. Para o que serve?”

“Serve assim para prender. Entende? Uma coisa pon­tuda que prende.
Você enfia a ponta pontuda por aqui, encaixa a ponta no sulco e prende
as duas partes de uma coisa.”

“Certo. Esse instrumento que o senhor procura funcio­na mais ou menos


como um gigantesco alfinete de segu­rança e...”

“Mas é isso! É isso! Um alfinete de segurança!”

“Mas do jeito que o senhor descrevia parecia uma coisa enorme,


cavalheiro!”

“É que eu sou meio expansivo. Me vê aí um... um... Como é mesmo o


nome?”

Visando obter do cliente a informação de que precisa (o produ-


to que o cliente deseja) e diante da hesitação do cliente, o vendedor
instiga-o com perguntas gentis, mas cada vez mais curtas: Posso ajudá-
-lo, cavalheiro?; Pois não?; Sim? É como se houvesse urgência em obter
logo a informação para dar sequência à interação comunicativa.

Em vista de sua dificuldade em lembrar o nome do objeto, o cliente


fornece outro tipo de informação, a de que esqueceu o nome do objeto
que deseja comprar. Sua intencionalidade, neste ponto, desloca-se da meta
de nomear o objeto para outra meta: mostrar, nas entrelinhas, que não é
alguém mentalmente insano, mas que simplesmente esqueceu o nome de
algo. Essa estratégia discursiva é importante para manter alta a aceitabili-
dade do vendedor, que precisa acreditar que o cliente realmente está ten-
tando ser cooperativo. O vendedor aquiesce com Sim senhor duas vezes,
para mostrar que ainda está aberto o canal de interação entre eles.

80
Intencionalidade e aceitabilidade Capítulo 06

Diante da dificuldade em que se vê, o cliente muda ligeiramente a


meta inicial, que era lembrar o nome do objeto e passa a perseguir uma
meta alternativa: fazer com que o vendedor lhe dê essa informação. Para
isso, a intencionalidade do seu texto agora é, mediante uma descrição da
forma do objeto, fazer com que o vendedor o identifique. A princípio,
a aceitabilidade desse texto parece ser reduzida, porque o vendedor dá
respostas curtas e evasivas: Infelizmente, cavalheiro; Estou me esforçan-
do, mas... Se o senhor diz, cavalheiro.

Essa última resposta irrita o cliente, que percebe que a aceitabili-


dade de seu texto está se reduzindo. Novamente, ele precisa mudar sua
meta na interação, de forma a não deixar que a comunicação se inter-
rompa. Daí a necessidade de convencer o vendedor a aceitar o seu texto.
Isso é feito de duas formas: acusar o vendedor de que ele não está se
esforçando o suficiente (Isso já é má vontade) e insistir que é alguém
capaz de produzir um texto coerente. A intencionalidade do parágrafo
em que o cliente diz ser técnico em contabilidade e estar muito bem de
vida é basicamente essa.

Vendo que o foco da conversação mudou do objeto para ele pró-


prio e que o vendedor continua pouco cooperativo, o cliente muda no-
vamente de meta e pede que o vendedor chame o gerente. Isso tem sobre
o vendedor o efeito de aumentar sua cooperação – talvez por medo de
ser repreendido. E ele passa a perseguir juntamente com o cliente a meta
de identificar o objeto. Portanto, sua intencionalidade na interação tam-
bém muda: se sua meta anterior era ver-se livre do cliente (daí a opção
por frases curtas, evasivas), passa a ser agora identificar o objeto. Para
isso, ele confirma que entendeu as informações dadas pelo cliente e faz
perguntas para obter novas informações: Muito bem. De metal. Ela se
move?; Tem mais de uma peça? Já vem montado?

E a aceitabilidade de discurso do vendedor também aumenta: Perce-


bendo a mudança na intencionalidade do vendedor, o cliente não mais o
acusa de falta de cooperação, porque aceita as perguntas que ele faz como
relevantes para identificar o objeto. Por fim, o objeto é identificado, meio
por acidente, enquanto cliente e vendedor agem de forma cooperativa.

81
Linguistica Textual

O exemplo anterior ilustra como os princípios de aceitabilidade e


intencionalidade são mobilizados conjuntamente em interações coope-
rativas. Quando o objetivo maior é obter um modelo global da situação,
eventuais desentendimentos são ignorados ou negociados, de forma a
garantir a interação. Mas, especialmente em interações conversacionais,
a intencionalidade e a aceitabilidade também vão sendo construídas di-
namicamente, conforme a interação progride.

Implicações para o processo de ensino e aprendizagem:

Como vimos, tanto a intencionalidade quanto a aceitabilidade


têm estreita ligação com a construção de coerência. Por isso, no
ensino de produção escrita ou oral, o professor pode orientar
seus alunos a pensar em qual a intencionalidade de seu texto
(que efeitos querem provocar nos interlocutores, como desejam
que seu texto seja entendido), de forma a mobilizar os recursos
linguístico­‑discursivos nessa direção. Por outro lado, nas ativi‑
dades de recepção (leituras, assistir a vídeos), os alunos podem
exercitar a aceitabilidade, sendo orientados pelo professor a
procurar determinar as possíveis intenções dos locutores.

82
Informatividade Capítulo 07

7 Informatividade
Como já mencionado brevemente em Capítulo anterior, a in-
formatividade é um dos princípios de textualidade. Ela está relacio-
nada à quantidade de informação nova ou inesperada que um texto
traz ao leitor/ouvinte. Segundo Beaugrande e Dressler (2002[1981]),
ao se avaliar a informatividade de um texto, costuma-se enfatizar o
conteúdo. Isso ocorre porque o fator dominante para a textualidade
parece ser a coerência, uma vez que se aloca mais atenção para a sua
construção. Entretanto, destacam os autores que os textos podem ser
informativos relativamente a qualquer subsistema linguístico (sinta-
xe, fonética etc.).

Beaugrande e Dressler associam a informatividade à Teoria da


Informação, que se baseia em probabilidade estatística. Segundo essa
teoria, “quanto maior o número de alternativas possíveis em um dado
ponto, maior será o valor de informação quando uma dessas alterna-
tivas for escolhida” (BEAUGRANDE; DRESSLER, 2002 [1981], cap.
VII, §2). Entretanto, como destacam os autores, esse tipo de proce-
dimento estatístico não pode ser aplicado à comunicação linguística
natural, porque não é possível contar todas as possibilidades. Além
disso, as escolhas de itens não dependem apenas do contexto linguís-
tico imediatamente anterior.

Mesmo assim, segundo Beaugrande e Dressler, vale a pena consi-


derar a informatividade a partir da noção de probabilidade (presente
em noções como ‘expectativa’, ‘padrão’, ‘preferência’, ‘predição’). Assim,
os autores substituem a noção de probabilidade estatística pela probabili-
dade contextual e propõem três níveis gerais de informatividade:

a) Apresentam informatividade de nível 1 ou de primeira ordem as


ocorrências (palavras, expressões etc.) cuja probabilidade em um
dado contexto é tão alta que são considerados casos triviais e re-
cebem pouca atenção. Incluem-se aqui as chamadas palavras fun-
cionais (artigos, preposições etc.) e outras informações evidentes,
como as placas indicativas de banheiro masculino ou feminino;

83
Linguística Textual

b) Apresentam informatividade de nível 2 ou de segunda ordem


as ocorrências cuja probabilidade é menor, mas cuja aparição
no texto não chega a causar surpresa, sendo interpretadas com
relativa facilidade. A comunicação normal envolve majoritaria-
mente ocorrências com esse nível de informatividade;

c) Apresentam informatividade de nível 3 ou de terceira or-


dem as ocorrências muito improváveis, que causam surpresa
ou confusão no ato da leitura. Sua interpretação demanda, por
parte do interlocutor, grande quantidade de esforço cognitivo.
Em contrapartida, são dados que provocam mais interesse. Os
autores citam como exemplo desse tipo de ocorrência as des-
continuidades (aparente falta de informação no texto) e as dis-
crepâncias (quando padrões exibidos pelo texto não se ajustam
ao conhecimento armazenado pelo leitor).

Para Beaugrande e Dressler (2002 [1981]), quando ocorrên-


cias de terceira ordem, mediante esforço cognitivo, são integradas à
continuidade do texto e aos padrões do conhecimento armazenado
pelo leitor, tem-se um processo de rebaixamento da informativi-
dade. Quando isso não é possível, o resultado é uma impressão de
falta de sentido.

Pode também acontecer que ocorrências de primeira ordem so-


fram um processo de alçamento em sua informatividade. Os autores ci-
tam como exemplo a frase que inicia um texto em um livro de ciências:
O mar é água apenas no sentido de que água é a substância predominan-
te. Na verdade, é uma solução de gases e sais, juntamente com um grande
número de organismos vivos... A afirmação inicial de que o mar é água
parece trivial, mas logo essa informação recebe um alçamento quando
se informa que o mar não é exatamente água, mas uma solução de gases
e sais, mais organismos vivos.

Vemos, portanto, que as questões relativas à informatividade


podem ser decisivas para a coerência, uma vez que, na escuta ou na

84
Informatividade Capítulo 07

leitura, o ouvinte ou o leitor precisa ajustar a informatividade dos


elementos do texto, de forma a:

a) rebaixar a informatividade de algumas ocorrências com infor-


matividade de terceira ordem, de forma a integrá-las ao mundo
textual;

b) aumentar a informatividade de algumas ocorrências de primei-


ra ordem de informatividade, para integrá-las ao mundo textu-
al como informação não trivial.

Por outro lado, na escrita ou na fala, o autor também deve ajustar


a informatividade, de forma a prover informação que seja, ao mesmo
tempo, interessante e acessível aos leitores. Para fazê-lo, precisa calcular
como são seus leitores pretendidos (o quanto já sabem, qual sua capaci-
In: CORALINA, Cora. Es-
dade de realizar inferências etc.) tórias da casa velha da
ponte. São Paulo: Global,
1986.
A seguir, apresentamos o conto Boi de guia, para uma breve análise
que, esperamos, mostrará alguns desses ajustes de informatividade e sua
relação com a construção da coerência do texto:

TEXTO 11

O boi de guia

O menino tinha nascido e se criado em Ituverava, da banda de Minas.


O pai era um carreiro de confiança, muito procurado para serviços de
colheitas. Tinha seu carro antigo, de boa mesa rejuntada, fueirama firme,
esteirado de couro cru, roda maciça de cabiúna ferrada, bem provido o
berrame de azeite e com seu eixo de cotão cantador que a gente ouvia
com distância de légua. Desses que antigamente alegravam o sertão e
que os moradores, ouvindo o rechinado, davam logo a pinta do carreiro.

O pai tinha o carro e tinha suas juntas redobradas em parelhas certas,


caprichadas, bois erados, retacos, manteúdos, de grandes aspas e pe-
lagem limpa. Era só o que possuía. O canto empastado onde morava,
família grande, meninada se formando e sua ferra­menta de trabalho
— os bois e o carro.

85
Linguística Textual

Trabalhava para os fazendeiros de roda, principalmente na colheita de café e


mantimentos, meses a fio, enchendo tulhas e paióis vazios. Quando acaba-
va o café, era a cana, do canavial para os engenhos, onde as tachas ferviam
noite e dia e purgavam as grandes formas de açúcar, cobertas de barro.

O candeeiro era ele, pirralho franzino, esmirrado, de cinco anos.

Os pais antigos eram duros e criavam os filhos na lei da disciplina. Na


roça, então, criança não tinha infância. Firmava-se nas pernas, entendia
algum mandado, já tinha servicinho esperando.

Aos quatro anos montava em pêlo, cabresteava potranquinha, trazia be-


zerro do pasto, levava leite na cidade e entregava na fre­guesia.

Era botado em riba do selote, não alcançava estribo. Se des­cesse, não


subia mais. Punha o litro nas janelas.

O cavalo em que montava era velho, arrasado, manso e sabido. Subia


nas calçadas, encostava nos alpendres, conhecia as ruas, des­viava-se das
buzinas e parava certo nos fregueses.

Quando de volta, recolhendo a garrafada vazia, gritava


deses­peradamente:

— Garrafa do leite.. . garrafa vaziiia!...

Um da casa, atordoado com a gritaria, se apressava logo a entregar o


litro requerido.

Ajudava o pai. Desde que nasceu, contava ele. Nunca se lembra de ter
vadiado como os meninos de agora. Quando come­çou a entender o
pai, a mãe, os irmãos, o cachorro e o mundo do terreiro, já foi fazendo
servicinho. Catava lenha fina, garran­cheira pra o fogão, caçava pela sa-
roba os ninhos das botadeiras, ia atrás dos peruzinhos e já quebrava
xerém às chocas de pinto. Do pasto trazia os bois de serviço. Seu gosto
era vir pendurado no chifre do guia barroso — tão grande, tão forte,
tão manso — sem­pre remoendo seus bolos de capim, nem percebia o
fanico do menino que se pendurava nele e, se percebia, também não se
importava, não dava mostras.

Acostumou-se com os bois e os bois com ele. Sabia o nome de to-


dos e os particulares de cada um. Chamava pra mangueira. O pai
erguia nos braços possantes e passava as grandes cangas lustrosas;
encorreiava os canzis debaixo das barbeias, enganchava o cambão,

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Informatividade Capítulo 07
encostava o coice, prendia a cambota. Passava mão na vara, chama-
va. As argolinhas retinham e o carro com sua boiada arrancavam a
caminho das roças.

Com cinco anos, era mestre-de-guia, com sua varinha argolada.

Às vezes, o serviço era dentro de roças novas, de primeira derrubada,


cheia de tocos, tranqueirada de paulama, mal-encoiva­radas, ainda mais
com seus muitos buracos de tatu.

O carreador, mal-amanhado, só dava o tantinho das rodas. Os bois que


agüentassem o repuxado, e o menino, esse, ninguém reparava nele. Aí
era que o carro vinha de caculo. A colheita no meio da roça. Chuvas se
encordoando de norte a sul, ameaçando o ar do tempo mudado e o
fazendeiro arrochando pressa.

A boiada tinha de romper a pulso. O aguilheiro na frente, peque-


no, descalço, seu chapeuzinho de palha, seu porte franzino, dando
o que tinha.

Sentia nas costas o bafo quente do guia. Sentia no pano da camisa a


baba grossa do boi. O pai atrás, gritando os nomes, sacudindo o ferrão.
A boiada, briosa e traquejada, não queria ferrão no couro, a criança atra-
palhava. Aí, o guia barroso dava um meneio de cabeça, baixava a aspa
possante e passava a criança pra um lado.

O menino tornava à frente. Outra vez a baba do boi na camisa, o grito


do carreiro afobado, o tinido das argolinhas e a grande aspa passando a
criança pra um lado.

O pai gritou frenisado:

— Quem já viu aguiero chamá boi de banda… Passa pra frente,


porqueira.

— Nhô pai, é o boi que me arreda…

— Passa pra frente, covarde. Deixa de invenção, inzoneiro…

O menino enfrentou de novo. O homem sacudiu a vara pondo reparo.


A argola retiniu, as juntas arrancaram. O barroso alcançou a criança. Ia
pisar, ia esmagar com sua pata enorme e pesada.

Não pisou, não esmagou. Virou o guampaço num jeito e passou a crian-
ça pra um lado sem magoar. Aí o velho carreiro viu…, viu o boi pela
primeira vez…

87
Linguística Textual

Sentiu uma gastura e pela primeira vez uma coisa nova inchan­do seu
coração no peito e alimpou uma turvação da vista na manga da camisa.

As várias ocorrências do texto que informam que o menino tra-


balha desde muito pequeno poderiam entrar em contradição com
nosso conceito moderno e urbano de infância como fase da vida em
que se brinca e estuda e não se trabalha. Para evitar que essa infor-
mação a respeito do menino – absolutamente necessária para o de-
senvolvimento da história, mas que não é o tema central da narrativa
– assuma o nível 3 de informatividade, tornando-se surpreendente,
o narrador informa aos leitores que os pais antigos eram duros e cria-
vam os filhos na lei da disciplina e que na roça, criança não tinha
infância, trabalhando desde a mais tenra idade. Temos, portanto,
um rebaixamento da informatividade das ocorrências textuais que
mostram o menino fazendo trabalhos de adulto e sendo tratado com
severidade pelo pai, apesar de ter apenas cinco anos. Assim, essas
informações podem ser integradas facilmente à compreensão que o
leitor vai construindo do texto. Da mesma forma, a delicadeza do
boi barroso com o menino, ainda que contradiga um tanto nosso co-
nhecimento a respeito de animais de trabalho, também não se torna
surpreendente porque o leitor já foi previamente informado de que
o menino acostumou-se com os bois e os bois com ele e de que o boi
barroso, apesar de grande e forte, era também tão manso. Novamen-
te aqui, temos uma ocorrência muito relevante para a construção da
história – a delicadeza de um animal enorme –, mas que não pode
parecer inusitada demais, para não ganhar centralidade excessiva na
atenção do leitor.

Por outro lado, quando a história se encaminha para o seu clí-


max, seu ponto de maior interesse, o leitor se depara com a infor-
mação de que o velho carreiro viu o boi pela primeira vez. Cria-se,
então, uma aparente incoerência, uma discrepância que o leitor tem
que resolver, porque, já consta do seu conhecimento armazenado, a
partir da leitura do texto, que o boi pertencia ao homem. Da mesma
forma, o leitor também é surpreendido com a informação de que o
velho carreiro – mostrado como um homem ríspido, calejado pelo

88
Informatividade Capítulo 07

trabalho árduo – se emociona, sentindo uma gastura e uma coisa


nova inchando seu coração no peito, e chora. Aqui o leitor não recebe
ajuda do narrador para fazer o rebaixamento da informatividade dos
itens. Precisa fazê-lo sozinho. Exige-se aqui sua atenção justamente
porque esse é o ponto central da história. Mediante inferências di-
versas, o leitor pode concluir que:

a) o velho carreiro aprende com o boi a delicadeza, aprende que


ser forte não implica ser rude;

b) obviamente, o que o carreiro vê pela primeira vez não é o


boi; mas, num certo sentido a si próprio, a forma como sua
existência bruta transformou-o também num ser bruto. Po-
rém, é o gesto inusitado do boi que desencadeia essa súbita
revelação. Por isso, a afirmação de que o homem viu o boi;

c) o resultado dessa revelação é um choque para o homem. Daí as


lágrimas, às quais ele está tão pouco afeito que as percebe como
uma turvação da vista.

Cora Coralina recria a fala de pessoas do campo, com seu léxico


de difícil acesso para um leitor urbano. Isso provoca grande número
de ocorrências com informatividade de terceiro nível. É interessante
perceber que o conto pode ser compreendido sem que se tenha que
buscar no dicionário o significado de todos esses itens. Ou seja, o lei-
tor não precisa rebaixar a informatividade de todas as ocorrências,
mas somente daquelas que, se não integradas ao mundo textual, im-
possibilitarão a construção adequada da coerência.

Ao final da leitura, o título do conto – que inicialmente parece tri-


vial, servindo apenas para fazer referência a uma personagem da his-
tória – pode receber um alçamento na sua informatividade: O boi de
guia não guia apenas os outros bois no carreador; guia também o velho
carreiro na trilha do autoconhecimento.

89
Linguística Textual

Assim, podemos ver O controle da informatividade é também muito importante nos textos
como os gêneros do dis- de divulgação científica jornalística e naqueles dirigidos a especialistas. A
curso interferem no modo
da construção da infor- esse respeito, consideremos o texto a seguir:
matividade do texto.
TEXTO 12

O que é a Teoria da Relatividade?

Em sua teoria da relatividade especial de 1905, Einstein mostrou que


BRUM, E. O senhor do nossas noções de espaço e tempo como entidades rígidas e imutáveis
universo. In: Época, nº 429,
7 ago. 2006, p. 78-88. são ilusões causadas pelo fato de que os nossos movimentos são muito
lentos, se comparados à velocidade da luz. Se nos movêssemos a velo-
cidades comparáveis, mas menores, veríamos as coisas encolhendo e o
tempo passaria mais devagar para elas. Entre as consequências, Einstein
demonstra a equivalência entre energia e matéria, algo que só é possí-
vel a altíssimas energias. Na relatividade geral, de 1916, Einstein redefine
a gravidade como sendo a curvatura do espaço. A expansão do Univer-
so e os buracos negros são descritos por essa teoria.

Para um especialista, o Texto 12 será muito pouco informativo,


portanto, não causará grande interesse. Para um leigo, entretanto, es-
pera-se que apresente um nível de informatividade suficientemente ele-
vado para se mostrar interessante. Observemos que a autora do texto
regulou a informatividade de forma que o texto possa ser compreendido
sem que se entre em detalhes sobre itens de grande complexidade, como
a curvatura do espaço e os buracos negros.

Já o texto a seguir, resumo de uma dissertação na área de ortodon-


COELHO-FERRAZ, M. J. P. tia, deve apresentar um alto nível de informatividade para leitores espe-
Avaliação cefalométri- cialistas. Todavia, para o leitor comum, esse nível de informatividade é
ca da posição do osso
hióide em respiradores tão elevado que boa parte do resumo se mostra incompreensível.
predominantemente
bucais. 2004. Dissertação
(Mestrado em Ortodon- TEXTO 13
tia). Faculdade de Odon-
tologia de Piracicaba, Resumo
Universidade Estadual de
Campinas, Campinas, SP, O complexo craniofacial contribui como um elemento adicional
2004. importante no processo de diagnóstico ortodôntico e ortopédico
funcional dos maxilares. No presente trabalho realizou-se a avalia-

90
Informatividade Capítulo 07
ção cefalométrica da posição do osso hióide em relação ao padrão
respiratório em 28 indivíduos com padrão respiratório predomi-
nantemente nasal e de 25, com padrão respiratório predominante-
mente bucal. Todos eram do gênero feminino, leucodermas e com
Classe I de Angle, cujas idades médias foram de aproximadamente
10 anos. As medidas cefalométricas Ar-Pog, PP-Me, ENP-PM, S-PM,
Ângulo Goníaco, BaN.PM, PTM.PM, PO.PM foram utilizadas como
parâmetro de identificação da morfologia mandibular. As medi-
das cefalométricas horizontais, verticais e angulares, incluindo o
Triângulo Hióideo (Bibby & Preston, 1981) foram utilizadas com a
finalidade de determinar a posição do osso hióide. Estabeleceu-se
uma comparação entre os grupos por meio do teste t de student
com nível de significância de 5%, bem como correlação de Pearson
entre as variáveis. Observou-se que não ocorreram diferenças esta-
tísticas significativas para a posição mandibular e posição do osso
hióide e o tipo do padrão respiratório. O limite ântero-posterior
do espaço aéreo superior representado pelo Atlas-Espinha Nasal
Posterior (AA-ENP) também foi constante para o grupo com respi-
ração predominantemente nasal e bucal, com um valor médio de
32,87mm ± 3,34 e 32,86mm ± 2,18, respectivamente. No Triângulo
Hióideo, o coeficiente de correlação de 0,40 foi significativo entre
AA-ENP e C3-H (distância entre o ponto mais anterior e inferior da
terceira vértebra cervical e o corpo do osso hióide) demonstrando
uma relação positiva entre os limites ósseos do espaço aéreo su-
perior e inferior. Para as medidas cranianas houve uma correlação
significativa de 0,50 e 0,43 entre as medidas Ar-Pog e a distância
horizontal do osso hióide e PP-Me e distância vertical do osso hi-
óide, respectivamente, sugerindo uma relação entre a posição do
osso hióide com a morfologia mandibular. Os resultados permiti-
ram concluir que o osso hióide mantém uma posição estável para
garantir as proporções corretas das vias aéreas e não depende do
padrão respiratório predominante.

Os exemplos apresentados neste Capítulo mostram como o ajuste


da informatividade pelo autor tem grande relevância para permitir que
o leitor construa uma interpretação adequada do texto. Como destacam
Koch e Travaglia (1999 [1989], p. 81), “a informatividade exerce [...] im-
portante papel na seleção e arranjo de alternativas no texto, podendo
facilitar ou dificultar o estabelecimento da coerência”.

91
Linguística Textual

Implicações para o processo de ensino e aprendizagem:

Nossa discussão sobre o princípio da informatividade compor-


ta variadas implicações para o ensino e aprendizagem, entre as
quais poderíamos destacar:

a) No ensino e aprendizagem de produção textual, os alunos


podem ser orientados a regular a informatividade em seus
textos, de forma a causar interesse. Se um texto traz apenas
itens triviais, óbvios, sua informatividade é reduzida e, con-
sequentemente, é também reduzido o interesse que possa
ter para os leitores. Por outro lado, elementos no texto cuja
informatividade seja muito alta tendem a tornar o texto in-
compreensível caso o leitor não tenha condições de, median-
te inferências, obter um rebaixamento da informatividade;

b) No ensino e aprendizagem de leitura, o professor pode au-


xiliar os alunos no ajuste da informatividade dos textos. Pode
chamar a atenção para as pistas que lhes permitirão construir
as inferências necessárias ao rebaixamento da informativida-
de. Por outro lado, deve mostrar que certos itens que, à pri-
meira vista, pareçam triviais, podem ter alta informatividade,
especialmente em textos literários;

c) Na seleção de textos literários, a informatividade deve ser


levada em conta. Há textos de fácil leitura, mas de baixa in-
formatividade e, consequentemente, pouco indicados para
desenvolver nos alunos uma relação prazerosa com a leitura.
Por outro lado, textos cuja leitura requer a elaboração de in-
ferências para regular a informatividade são mais difíceis, mas
também mais interessantes, porque o leitor consegue assumir
uma postura mais ativa na construção da coerência. Então,
vale a pena investir na leitura de textos literários mais densos,
de autores menos óbvios.

92
Situacionalidade Capítulo 08

8 Situacionalidade
Segundo Beaugrande e Dressler (2002 [1981], cap. I, §19), a situa-
cionalidade “diz respeito aos fatores que fazem um texto relevante para
uma situação de ocorrência”. Consideremos, por exemplo, o seguinte
texto, afixado em um ponto de ônibus e copiado por um dos autores
deste livro em 30 abr. 2009:

TEXTO 14

ROÇO, FAÇO CAPINAS E CORTO GRAMA

ENSINO LER (TIPO REFORÇO PARA CRIANÇAS)

(TAMBÉM INGLÊS BÁSICO)

FAÇO UM PREÇO CAMARADA

[Segue-se um número de telefone móvel e um nome masculino]

O autor do texto afixou-o, estrategicamente, num local de grande


circulação de pessoas, inclusive escolares. Em termos de conteúdo, esse
anúncio soa estranho, porque o leitor fica a imaginar por que o autor
oferece serviços tão díspares como cortar grama e dar aulas de inglês
básico. Entretanto, considerando-se a situação de enunciação, o texto
se mostra relevante: seu autor, que tem variados serviços a oferecer, faz
isso a um público igualmente variado.

É interessante observar-se, conforme já apontado por Beaugran-


de e Dressler (2002 [1981]), que a situacionalidade afeta também os
meios de coesão. As escolhas do autor contribuem para que o anún-
cio possa ser lido fácil e rapidamente não só pelos usuários do pon-
to de ônibus, mas também pelos passantes: o texto, escrito em letras
relativamente grandes, é econômico e disposto de tal forma que cada
bloco de informações ocupe uma linha, e são dadas, praticamente, só
as informações essenciais. As explicações de que as aulas de leitura
são apenas para reforço escolar e que o inglês é básico são antes uma
demonstração eloquente da honestidade do anunciante do que indício

93
Linguística Textual

de prolixidade. Já a oferta de um preço camarada também visa a sedu-


zir um público que não deve dispor de muitos recursos, uma vez que
são usuários de transporte coletivo.

Como ocorre com a intertextualidade, a situacionalidade também


requer mediação, pois os participantes da interação precisam alimentar
seus modelos das situações comunicativas com seus próprios conheci-
mentos, crenças e metas, juntamente com dados oriundos da própria
situação. Beaugrande e Dressler (2002 [1981], cap. VIII, §1) sugerem
que tais dados podem servir para monitoramento da situação – quan-
do a função dominante do texto é “produzir uma explicação imediata
razoável do modelo de situação” – ou para gerenciamento – quando
a função dominante é “guiar a situação em uma maneira favorável às
metas do produtor de texto”. Mas, alertam os leitores de que as fron-
teiras entre monitoramento e gerenciamento podem ser difusas. Isso é
notório no caso dos implícitos. Por exemplo, quando alguém comenta
que o ambiente está abafado (monitoramento), pode estar tentando
convencer o interlocutor a tomar alguma providência a respeito, como
abrir uma janela (gerenciamento).

Uma vez que a relevância de um texto é sempre orientada pelo


princípio da situacionalidade, textos considerados incoerentes a
partir de uma visão estrita da articulação entre suas frases – ou
ainda quando se concebe a coerência como sendo interna ao texto
– podem tornar-se coerentes quando se levam em conta as condi-
ções de sua enunciação (KOCH e TRAVAGLIA, 1999 [1989]). No
Texto 14, por exemplo, a frase (TAMBÉM INGLÊS BÁSICO) está
entre parênteses, que são utilizados, normalmente, para marcar a
inserção de um item desvinculado da estrutura sintática do restan-
te do período e de ocorrência opcional. Como as aulas de inglês
parecem ter o mesmo status dos demais serviços oferecidos, gera-
-se uma certa incoerência, porque não parece que essa informação
seja realmente opcional. Uma possível explicação para o uso dos
parênteses é uma espécie de paralelismo com a frase anterior, EN-
SINO LER (TIPO REFORÇO PARA CRIANÇAS), porque as aulas de
inglês também seriam oferecidas a crianças.

94
Situacionalidade Capítulo 08

A situacionalidade é especialmente importante ao se decidir qual


sentido atribuir a uma palavra polissêmica ou a frases que comportam
mais de um sentido. Os fatores situacionais (propósitos, lugar e tempo
da interação, status dos interlocutores etc.) ajudam a desfazer ambigui-
dades. Por exemplo, numa conversa entre médico e paciente, durante
uma consulta, a queixa sinto um aperto no coração será entendida de
forma bastante diferente do que seria numa situação em que duas pro-
fessoras de uma comunidade pobre conversassem sobre as carências
materiais de seus alunos.

Uma questão importante a ser considerada relativamente à situa-


cionalidade é que o contexto, que provê as condições de interpretação
do texto, é também ele próprio parcialmente criado pelo texto. Como
destacam Koch e Travaglia (1999 [1989], p. 78), “[...] se, por um lado,
a situação comunicativa interfere na maneira como o texto é consti-
tuído, o texto, por sua vez, tem reflexos sobre a situação, já que esta
é introduzida no texto via mediação.” Assim, à medida que o texto é
lido ou à medida que o diálogo transcorre, as condições contextuais
vão sendo alteradas, de forma mais ou menos intensa. Dessa forma,
especialmente nas interações conversacionais, o contexto não pode ser
visto como algo estático, mas como um conjunto de condições mutá-
veis, em interação dinâmica com o texto.

A esse respeito, é importante destacar ainda que o contexto só


se apresentaria como um conjunto de condições objetivas para um
observador fora do contexto de interação. Para o participante de uma
interação, o contexto para construção da coerência é subjetivamente
construído, a partir de dados selecionados, conscientemente ou não,
dentre um conjunto bastante amplo de dados sobre o espaço, o tem-
po e as condições sociais e psicológicas da interação. Essa construção
subjetiva, individual do contexto ajuda a explicar por que duas pessoas
podem construir interpretações bastante diversas dos mesmos dados
linguísticos, do mesmo texto.

95
Linguística Textual

Implicações para o processo de ensino e aprendizagem:

Dada a relevância do contexto para a leitura do texto, eviden-


cia-se a importância de dois procedimentos no ensino e apren-
dizagem de leitura. Primeiro, é preciso deixar claro quais os
objetivos da leitura, porque este é um importante dado con-
textual a guiar a interpretação. Segundo, frequentemente é
preciso prover aos alunos as condições em que dado texto foi
inicialmente produzido e publicado. Por exemplo, ao explorar
com alunos de ensino médio poemas da primeira fase da poe-
sia modernista, é necessário explicitar as condições políticas e
artísticas daquele momento. Tome-se, como ilustração disso, o
poema Amostra da poesia local, de Murilo Mendes:

Tenho duas rosas na face,


Nenhuma no coração.
No lado esquerdo da face
Costuma também dar alface.
No lado direito não.

Se o contexto de produção dos poemas-piada do Modernismo


não for explicitado, esse texto poderá parecer somente engra-
çadinho ou até tolo, em vez de contestador e anárquico.

Da mesma forma, pode ser necessário explicitar o contexto


das charges, uma vez que elas estão, quase sempre, fortemen-
te calcadas na situação de produção imediata. Por exemplo,
quem vir a charge que aparece no Texto 15, no próximo Capítu-
lo, sem conseguir situá-la em relação ao contexto de produção,
terá uma dificuldade em construir uma interpretação coerente
para os vários elementos: o título EPIDEMIA, os homens com
feições de porcos, a menção às perdas das cotas de passagens,
o verbo contaminar... Explicitado o contexto de produção – es-
pecificamente, o mundo às voltas com uma possível epidemia

96
Situacionalidade Capítulo 08

de gripe suína e um escândalo relativo a mau uso de passagens


aéreas por deputados e senadores – torna-se possível integrar
essas informações em um todo coerente.

97
Intertextualidade Capítulo 09

9 Intertextualidade
O conceito de intertextualidade foi introduzido nos estudos lite-
rários por Júlia Kristeva para se referir à relação que um texto mantém
com outros textos: “[...] todo texto se constrói como mosaico de cita-
ções, todo texto é absorção e transformação de um outro texto. Em lugar
da noção de intersubjetividade, instala-se a de intertextualidade.” (KRIS-
TEVA, 1974, p. 64, grifos da autora). Segundo Proença Filho (1990),
esse conceito foi proposto pela autora como substituto do conceito de
dialogismo de Bakhtin.

Na concepção do Círculo de Bakhtin, a linguagem é essencialmen-


te dialógica, pois os nossos discursos nascem de outros discursos
já-ditos e orientam-se para a reação-resposta do interlocutor, que
é já um outro discurso. “A orientação dialógica é naturalmente um
fenômeno próprio a todo discurso. Trata-se da orientação natural
de qualquer discurso vivo.” (BAKHTIN, 1993, p. 88).

Como as relações dialógicas, segundo Bakhtin (1993 [1975]), Tradicionalmente, a


noção de tipo textual
se realizam não somente com relação a enunciados (textos- refere-se a conjuntos de
textos com características
-enunciados) já-ditos, mas também com relação à possível re- formais assemelhadas
ação-resposta do interlocutor, e como a noção de dialogismo é ou, ainda, às sequências
textuais de que os textos
condição de existência de qualquer discurso, salientamos que são compostos, segundo
o conceito de intertextualidade não pode ser tomado como a teoria de J. M. Adam.
Beaugrande e Dressler
sinônimo do de dialogismo, uma vez que a intertextualidade (2002 [1981], cap. 1, §22),
por exemplo, referem-se
refere-se a uma relação entre textos já materializados.
aos tipos textuais como
“classes de textos com pa-
drões típicos de caracte-
rísticas”. Nesta Disciplina e
Como vimos no Capítulo 3, a intertextualidade é um dos princípios na de Linguística Aplicada,
privilegiamos a noção
da textualidade. Segundo Beaugrande (2004 [1997]), ela diz respeito aos bakhtiniana de gênero do
fatores que fazem a utilização de um texto dependente do conhecimento discurso, que leva em con-
ta as condições de enun-
de um ou mais textos encontrados anteriormente. O autor sugere que o ciação. A discussão sobre
princípio da intertextualidade é mobilizado quando o produtor ou o ou- gêneros do discurso será
desenvolvida na Unida-
vinte/leitor conecta o evento atual de produção ou recepção de texto com de C e nas disciplinas de
experiências anteriores, especialmente com textos do mesmo tipo textual Linguística Aplicada.
e mesmo domínio discursivo.
99
Linguística Textual

Alguém que esteja familiarizado, por exemplo, com a leitura de


manuais de instrução encontrará e entenderá no manual as infor-
mações relativas ao funcionamento do seu gravador de DVD mais
facilmente do que alguém que jamais tenha lido um manual, pois
fará a leitura desse manual ancorado na relação intertextual que es-
tabelecerá entre esse texto e os outros do mesmo gênero a que já
teve acesso. Por outro lado, um servidor que trabalhe há muitos anos
no serviço público terá, muito provavelmente, maior facilidade de
escrever um ofício do que um servidor jovem, recém-admitido. En-
quanto aquele já tem grande familiaridade com esse gênero – quais
suas características estilísticas, quais seus usos, quem são os inter-
locutores –, este talvez tenha apenas uma noção mais geral sobre o
formato textual.

Beaugrande e Dressler (2002 [1981]) afirmam que a mobilização


do conhecimento intertextual pode ser descrita como um processo de
mediação: o locutor/interlocutor alimenta seu modelo da situação co-
municativa com suas próprias crenças e conhecimentos advindos de in-
terações anteriores mediadas por textos. Segundo os autores, a extensão
dessa mediação é variável:

Um exemplo de mediação extensa é o desenvolvimento e uso de


tipos textuais, que são classes de texto que têm certas característi-
cas visando a determinados propósitos. A mediação é bem menor
quando as pessoas citam trechos de certos textos bem específicos
ou a eles se referem, como discursos ou obras literárias famosas. A
mediação é muito pequena em atividades tais como a réplica, a re-
futação, o relato, o resumo ou a avaliação de outros textos, como se
costuma encontrar especialmente na conversação. (BEAUGRANDE e
DRESSLER, 2002 [1981], cap. IX, §1).

Os autores destacam que, apesar de a organização da conversação


ser bastante influenciada pela intencionalidade e a situacionalidade, ne-
nhum desses princípios pode dar conta por completo das escolhas de
conteúdo dos interlocutores:

Um texto deve ser relevante aos outros textos no mesmo discurso


e não apenas para as intenções dos participantes e para o contexto

100
Intertextualidade Capítulo 09
situacional. Tópicos devem ser selecionados, desenvolvidos e muda-
dos. Os textos podem ser usados para monitorar outros textos ou os
papéis e crenças implicados por esses textos. (BEAUGRANDE e DRES-
SLER, 2002 [1981], cap. IX, §13).

Para Koch e Travaglia (1999 [1989], p. 88), a intertextualidade in-


clui “fatores relativos a conteúdo, fatores formais e fatores ligados a ti-
Jornal A Notícia, 1 maio
pos textuais”. Segundo os autores, os fatores associados a conteúdo são 2009. Disponível em:
os mais notórios e estão associados ao conhecimento de mundo. Os <http://www.clicrbs.com.
br/anoticia/jsp/default2.js
autores citam o exemplo das matérias jornalísticas relativas a um fato p?uf=2&local=18&source
destacado, publicadas durante vários dias, e dizem que cada novo texto =a2494953.xml&template=
4188.t&edition=12231&se
assume que os leitores conheçam os textos anteriores sobre o mesmo ction=882>. Acesso em 1
tema. Um exemplo disso é a charge a seguir, que será compreensível mai. 2009.
por quem tenha acompanhado as notícias da época (de abril e maio de
2009) sobre: a) o escândalo relativo ao mau uso de verbas para passa-
gens aéreas por parte de deputados federais; b) a epidemia de gripe
suína que atinge vários países.

TEXTO 15

Opera-se aqui uma relação intertextual característica do gênero


discursivo charge. O leitor só construirá adequadamente uma inter-
pretação para este texto se teve acesso (em jornais, na TV, em con-
versas informais etc.) a outros textos nos quais aparecem os temas da

101
Linguística Textual

febre suína e do escândalo das passagens aéreas. E o efeito cômico e


crítico da charge constitui-se justamente pelo atravessamento desses
discursos, retomados de forma inusitada.

Outro exemplo bastante interessante de intertextualidade de con-


teúdo é uma frase criada por Ivan Lessa. Nos anos 1970, o governo da
ditadura militar criou o slogan Brasil, ame-o ou deixe-o, num recado
Ivan Pinheiro Themudo
Lessa (1935) é jornalista e direto aos descontentes com a situação política do País. Lessa cunhou
escritor brasileiro.
uma resposta bem humorada e corajosa: O último a sair, apague a luz do
aeroporto, publicada originalmente no jornal O Pasquim. Reenunciado
hoje, o anti-slogan de Lessa não ofereceria as mesmas possibilidades de
interpretação a alguém que desconhecesse o slogan dos militares, assim
como o contexto em que foi enunciado. É interessante observar ainda
que o leitor pode intertextualizar a frase de Lessa também com o reca-
do que usamos comumente: O último a sair apague a luz. Isso ajuda a
reforçar o efeito cômico, pelo atravessamento de mais um discurso, esse
da esfera do cotidiano.

A intertextualidade formal diz respeito à imitação da forma de tex-


tos específicos ou do estilo de um autor. Um exemplo frequente dessa
modalidade de intertextualidade é a paródia, que imita as características
Poeta, ensaísta, crítico formais do texto-base, mas viola o seu conteúdo. No exemplo a seguir,
literário e tradutor.
José Paulo Paes parodia com elementos mínimos a Canção do exílio, de
Gonçalves Dias, também reproduzida na sequência:

Poeta e teatrólogo ca-


racterizado como poeta TEXTO 16
romântico da primeira
geração de Romantismo
do Brasil. Canção do exílio facilitada

lá?

ah!

sabiá...

papá...

maná...

102
Intertextualidade Capítulo 09
sofá...

sinhá...

cá?

bah!

PAES, J. P. Canção do exílio facilitada. Disponível em <http://www.cce.


ufsc.br/~nupill/ensino/exilio/exilio_facil.htm>. Acesso em 29 de abril
de 2009.

TEXTO 17

Canção do exílio

Minha terra tem palmeiras,

Onde canta o Sabiá;

As aves que aqui gorjeiam,

Não gorjeiam como lá.

Nosso céu tem mais estrelas,

Nossas várzeas têm mais flores,

Nossos bosques têm mais vida,

Nossa vida mais amores.

Em cismar, sozinho, à noite,

Mais prazer encontro eu lá;

Minha terra tem palmeiras,

Onde canta o Sabiá.

Minha terra tem primores,

Que tais não encontro eu cá;

Em cismar – sozinho, à noite –

103
Linguística Textual

Mais prazer encontro eu lá;

Minha terra tem palmeiras,

Onde canta o Sabiá.

Não permita Deus que eu morra,

Sem que eu volte para lá;

Sem que desfrute os primores

Que não encontro por cá;

Sem qu’inda aviste as palmeiras,

Onde canta o Sabiá.

DIAS, G. Canção do exílio. In: JORDÃO, R.; OLIVEIRA, C. B. Letras & con-
textos: língua, literatura e redação. São Paulo: Escala Educacional,
2005. p. 75.

No poema de Paes, o conteúdo do texto-base é retomado na com-


paração entre a terra natal (lá) e o país estrangeiro (cá). A saudade do
Brasil e o desgosto com o país estrangeiro, tópicos centrais do poema de
Dias, são magistralmente sintetizados por Paes nas duas interjeições ah!
e bah!. Formalmente, tem-se uma retomada das rimas em a, abundantes
em Canção do Exílio (e servindo, segundo algumas interpretações, para
dar um tom lamentoso ao poema). É importante observar que, ao pa-
rodiar o texto de Dias, Paes não parodia somente a forma e o conteúdo,
mas também o próprio contexto discursivo no qual a Canção do Exílio
se insere: o do nacionalismo romântico da primeira metade do século
XIX. Novamente, se o leitor desconhecer Canção do exílio, suas possi-
bilidades de interpretação do poema Canção do exílio facilitada serão
bastante comprometidas.

Por fim, a intertextualidade por fatores tipológicos, para Koch e Trava-


glia (1999 [1989], p. 92), realiza-se em termos de retomada da “estrutura
que caracteriza cada tipo de texto” ou de “aspectos formais de caráter lin-
guístico próprios de cada tipo de texto”. Segundo os autores, “para que um
texto seja bem compreendido e visto como coerente, é preciso que apresen-

104
Intertextualidade Capítulo 09

te certas características próprias do tipo de texto do qual ele é apresentado


como sendo um exemplar” (KOCH e TRAVAGLIA, 1999 [1989], p. 92).

Entretanto, é ilusória a ideia de que existam tipos textuais


com características formais definidas. Mesmo Beaugrande e Dressler
(2002 [1981]), que também adotam o conceito de tipo textual, apon-
tam problemas nele:

A questão dos tipos textuais oferece um severo desafio à tipologia lin-


güística, isto é, a sistematização e classificação de amostras de língua/lin-
guagem. Na lingüística mais antiga, foram estabelecidas tipologias para
os sons e formas da língua [...]. Mais recentemente, a lingüística tem-se
preocupado com tipologias de sentenças. Outra abordagem é a constru-
ção de tipologias interculturais para línguas de construção semelhante
[...]. Todas essas tipologias dedicam-se a sistemas virtuais, que são o po-
tencial abstrato das línguas; uma nova tipologia deve lidar com sistemas
reais nos quais as seleções e decisões já foram feitas [...]. A principal difi-
culdade nesse novo domínio é que muitas instâncias reais não manifes-
tam características completas ou exatas de um tipo ideal. As exigências Veremos, na próxima
Unidade e nas disciplinas
ou expectativas associadas com um tipo textual podem ser modificadas de Linguística Aplicada,
ou mesmo superadas pelas exigências do contexto de ocorrência [...]. que o conceito de tipo de
(BEAUGRANDE e DRESSLER, 2002, cap. IX, §3, grifo dos autores). Bakhtin não se refere ao
resultado de uma taxio-
nomia (classificação) dos
Portanto, parece mais adequado falar-se, hoje, em intertextualidade textos, mas a uma tipifi-
cação social dos textos/
de gêneros discursivos, uma vez que esse conceito prevê maior flexibili- enunciados, resultado das
dade: “[...] cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativa- atividades humanas.

mente estáveis de enunciados, sendo isso que denominados gêneros do


discurso” (BAKHTIN, 1997 [1952‑1953], p. 280, grifos do autor). Como
os gêneros são apenas relativamente estáveis, oferecem um contorno ge-
ral para a interação. Assim, a situacionalidade, a intencionalidade e a
aceitabilidade, entre outros aspectos, podem exercer decisiva influência
sobre as escolhas de forma e conteúdo.

Muitos gêneros do discurso sequer apresentam características for-


mais fixas, definindo-se como tais pela recorrência de outros elementos,
que não a forma, como aqueles ligados à dimensão social do texto. So-
mente para citar um exemplo, a crônica, tradicionalmente enquadrada
pelas tipologias de texto como um tipo textual narrativo, frequentemen-

105
Linguística Textual

te não tem estrutura narrativa. E, quando a tem, sua distinção em re-


lação ao gênero conto frequentemente só se dá pela esfera discursiva e
pelo suporte. Enquanto o conto é da esfera da arte, a crônica é um gênero
da esfera jornalística, publicado em jornais e revistas.

São exemplos de esferas Outra razão para preferirmos o conceito de gênero do discurso é
sociais a escola, a ciência, que a noção de gênero compreende, para além dos elementos formais
o jornalismo, a arte etc.
do texto, os parâmetros da interação: em que esfera social o texto foi
produzido, quem são os interlocutores, qual a relação entre eles, qual
a modalidade (oral, escrita, mista) etc. Portanto, quando o autor pro-
duz um texto, faz isso situado não apenas nas características formais
do gênero de seu texto, mas também com base em seu conhecimento
daquela forma de interação. Já o leitor/ouvinte também precisa identifi-
car o gênero discursivo para, a partir das condições gerais da interação,
interpretar e atribuir sentido aos dados linguísticos. Por exemplo, para
a compreensão adequada do poema de Drummond (1967) a seguir, é
ANDRADE, C. D. de. Obra necessário que o leitor tenha conhecimento dos gêneros do discurso so-
completa. Rio de Janeiro: neto e carta pessoal:
Aguilar, 1967. p. 349.

TEXTO 18

Carta
Há muito tempo, sim, que não te escrevo.

Ficaram velhas todas as notícias.

Eu mesmo envelheci: Olha, em relevo,

estes sinais em mim, não das carícias

(tão leves) que fazias no meu rosto:

são golpes, são espinhos, são lembranças

da vida a teu menino, que ao sol-posto

perde a sabedoria das crianças.

106
Intertextualidade Capítulo 09
A falta que me fazes não é tanto

à hora de dormir, quando dizias

“Deus te abençoe”, e a noite abria em sonho.

É quando, ao despertar, revejo a um canto

a noite acumulada de meus dias,

e sinto que estou vivo, e que não sonho.

O conhecimento do gênero do discurso soneto permite ao leitor


identificar o texto como poético e, como tal, dotado de características
recorrentes nos gêneros da poesia, como estas:

a) Uso de linguagem figurada;

b) Subjetividade;

c) Lirismo;

d) Criação de realidades alternativas.

Já o conhecimento do gênero do discurso carta pessoal implica sa-


ber, entre outras coisas:

a) que a situação de interação mediada por textos desse gêne-


ro normalmente envolve pessoas com algum tipo de ligação
afetiva (parentes, amigos, amantes), que se encontram rela-
tivamente distantes;

b) que o conteúdo dos textos normalmente diz respeito à vida


pessoal, a pequenos eventos do cotidiano, a novidades;

c) que é frequente o uso da primeira e da segunda pessoa do singular,


para fazer referência, respectivamente, ao autor e ao destinatário.

107
Linguística Textual

Segundo Bakhtin (2003 São os conhecimentos relativos ao gênero soneto – notadamente a


[1979]), teríamos os casos possibilidade de se criar mundos alternativos – que permitem que leitor
de gêneros híbridos,
gêneros intercalados e construa a compreensão de que a pessoa a quem o eu-lírico se dirige é,
reacentuação de gêneros. possivelmente, sua mãe, já morta há bastante tempo. Enfim, é a noção
No exemplo, ocorre uma
reacentuação de gêneros, acerca da situação social de interação que orienta o leitor a tratar o texto
pois um texto de um como um soneto e não uma carta pessoal, apesar da relação intertextual
gênero x (soneto) assume
feições de um gênero y entre esses dois gêneros, e o texto em questão apresentar feições de carta.
(carta).
Em casos como este do exemplo, Marcuschi (2002) sugere que use-
mos a expressão intertextualidade intergêneros (FIX, 1997 apud MAR-
CUSCHI, 2002), que designa, segundo o autor, o aspecto da hibridiza-
ção ou mescla de gêneros em que um gênero assume a forma de outro.
A nosso ver, não é um gê-
nero que assume a forma
de outro, mas um texto A intertextualidade é uma característica bastante relevante nos tex-
de um dado gênero que
se faz passar por outro, tos científicos. A ciência, em nossos dias, é essencialmente uma ativida-
ou apresenta característi- de coletiva. Daí a necessidade de os autores fazerem referências frequen-
cas de outro gênero.
tes a outros textos, entre outras coisas, para mostrar que o seu trabalho
encontra amparo no contexto geral da ciência atual. É o que se podemos
ver no trecho a seguir, extraído de uma monografia de especialização:
Extraído de FREITAS, C. A.
A. Carga imediata em TEXTO 19
implantes dentários.
2004. Monografia (Espe- Segundo Faccio (1999), anteriormente ao desenvolvimento do concei-
cialização Lato Sensu em
Implantodontia). Centro to de osteointegração, os implantes eram normalmente submetidos à
de Ciências da Saúde, Uni- carga imediata. Entretanto, segundo Rosenlich (apud FACCIO, 1999), a
versidade Federal de Santa técnica provocava grande número de complicações e falhas, não sen-
Catarina, 2004. p. 10.
do bem aceita pela comunidade odontológica. Ocorria que, com os
implantes laminados não se obtinha uma boa estabilidade primária e
isso impedia a osteointegração. Segundo Brunski (apud TARNOW et al.,
1997), micromovimentos de amplitude superior a 100mm fazem com
que a ferida óssea sofra um processo de cicatrização fibrosa, ao invés
de se ter uma osteointegração do implante.

A partir dos estudos de Brånemark e colaboradores, definiram-se os cri-


térios necessários a osteointegração: máximo cuidado para minimizar
dano aos tecidos circundantes por contaminantes ou trauma térmico
ou cirúrgico. Segundo Adell et al. (1981, p. 412),

qualquer divergência em relação ao princípio de menor trauma


possível na instalação dos implantes aumenta o risco de perda de

108
Intertextualidade Capítulo 09
osteointegração e subseqüente ocorrência de uma estreita zona
periimplantar de tecido conjuntivo de cicatrização. Isto se aplica
especialmente aos efeitos do trauma térmico.

Observemos que, para que o leitor possa realizar mais facilmente


as intertextualizações, o autor apresenta paráfrases de outros textos,
Faccio (1999) e Tarnow (1997), cujos autores fizeram eles próprios re-
ferências a textos de outros autores (Rosenlich e Brunski, respectiva-
mente). Quando o autor deseja que seu interlocutor faça diretamente a
intertextualização, com menos mediação sua, apresenta uma cópia li-
teral de parte do texto visado, como se vê na citação Adell et al. (1981).
Assim, favorecendo a intertextualidade, ao mesmo tempo em que fa-
cilita ao interlocutor a construção da interpretação do texto, o autor
também obtém suporte científico ao seu trabalho, inserindo-o em no
contexto discursivo mais amplo da ciência.

Os exemplos oferecidos neste Capítulo mostram que a intertex-


tualidade pode ser bastante necessária à construção da coerência.
Frequentemente um texto não pode ser adequadamente compreen-
dido sem acesso a outro. E o conhecimento intertextual é relevante
não só para o leitor/ouvinte, mas também para o produtor de texto:
Este, ao elaborar seu texto, precisa prever os conhecimentos inter-
textuais que o seu interlocutor deverá/poderá mobilizar. Além dis-
so, muitas vezes, a rede intertextual é uma garantia para o dizer do
autor: No caso da monografia, a rede intertextual garante ao autor
sua inserção na comunidade científica e, ainda, valida seu dizer; no
gênero artigo assinado, da esfera jornalística, essa rede intertextual
é um dos lugares da ancoragem discursiva do ponto de vista que o
articulista defende em seu texto.

Implicações para o processo de ensino e aprendizagem:

Podemos citar alguns exemplos interessantes de intertextualidade


nos textos apresentados neste livro. Um deles é o seguinte trecho ex-
traído do texto Pinóquio às avessas, apresentado no capítulo sobre

109
Linguística Textual

coesão: “É só para te cheirar melhor, meu filho...”, que intertextualiza


com a fala do Lobo Mau no conto Chapeuzinho Vermelho. Vale des-
tacar que o próprio texto Pinóquio às avessas é construído a partir
de uma relação intertextual com o livro clássico Pinóquio. Sem essa
relação intertextual, a construção de sentidos, no texto de Rubem Al-
ves, não seria possível. Outro exemplo de intertextualidade com Pinó-
quio pode ser conferido no site do youtube: <http://www.youtube.com/
watch?v=KuGLHc2clB0>. Acesso em 19/12/2011. Nesse vídeo, podemos
verificar a inserção de Pinóquio, assim como diversos personagens
de contos de fada, na história de Shrek. Aliás, a personagem Shrek é
um exemplo muito feliz de intertextualidade e de desconstrução da
clássica figura de herói, caracterizando a figura do anti-herói. A partir
desses exemplos, sugerimos ao professor que o conceito de intertex-
tualidade seja trabalhado inclusive na perspectiva dos multiletramen-
tos, inserindo textos que circulem em diferentes portadores de texto
(vídeo, livro, internet). Isso porque, como vimos neste Capítulo, tanto
a compreensão quanto a produção de textos depende do conheci-
mento de outros textos, tanto em termos de seu conteúdo, quanto de
seus aspectos formais e do gênero do discurso.

Ao término deste Capítulo sobre intertextualidade, também finali-


zamos a Unidade B. Nesta Unidade, discutimos o que é textualidade e
cada um dos princípios de textualidade, mostrando seu papel na tessitura
do texto. Juntamente com a apresentação desses princípios, fomos tam-
bém contraponto um outro conceito, o de gêneros do discurso/textuais.

Resumindo o que apresentamos nesta Unidade acerca dessa con-


traposição e complementação, os princípios de textualidade e os gêneros
de discurso se interceptam em muitos pontos; podemos dizer que os
gêneros norteiam e dão acabamento aos princípios de textualidade. Por
exemplo, gêneros literários e gêneros científicos textualizam de modo
diverso a relação intertertextual. Se nos textos literários essa relação
com o outro texto não precisa ser explicitada, ou seja, o autor não pre-

110
Intertextualidade Capítulo 09

cisa dizer que faz remissão a outro texto e a qual texto, nos textos cien-
tíficos essa relação precisa ser explicitada. Como podemos ver no Texto
19, o autor da monografia explicita os textos a que se refere, e o faz por
ser uma condição dada pelo gênero: marcar as fronteiras entre o seu
discurso e o do outro, atribuindo a autoria desse outro discurso citado.

Mesmo entre gêneros de uma mesma esfera, podemos observar os


princípios de textualidade agindo de modo diverso. Por exemplo, os re-
cursos coesivos se textualizam de modo bem diverso entre os gêneros
da poesia e os gêneros romance e conto. Observe, por exemplo, a dife-
rença do uso recursos coesivos no conto Pinóquio às avessas (Texto 1) e
no soneto Carta (Texto 18).

Para finalizar, nesta Unidade abordamos a noção de texto a partir


da ótica dos estudos da textualidade. Na Unidade a seguir, o texto será
abordado na perspectiva dos estudos da enunciação.

Leia mais!
Para um aprofundamento sobre o conceito de textualidade indicamos a
leitura do texto: Texto, textualidade, textualização, de autoria de Maria da
Graça Costa Val. In: FERRARO, Maria Luiza et al. (Org.). Experiência e
prática de redação. Florianópolis: Editora da UFSC, 2008, p. 63-86.

Para uma maior compreensão sobre os princípios de coesão e coerência


textual, recomendamos a consulta ao livro: FÁVERO, L. L. Coesão e
coerência textuais. São Paulo: Ática. 1991.

111
Unidade C
O texto na ótica dos estudos da
enunciação
Ao discutirmos o histórico da Linguística Textual na Unidade A, regis-
tramos que, atualmente, os estudos da área estão voltados para dois campos
de investigação: o da sociocognição e o da enunciação. Vimos que, no cam-
po da enunciação, as pesquisas têm abordado temáticas de ordem intera-
cional, tais como: gêneros do discurso/textuais, multimodalidade, hipertex-
to e a relação entre oralidade e escrita; e que, no campo da sociocognição,
abordam-se questões relativas ao processo de referenciação e inferenciação.
Nesta Unidade focalizaremos algumas dessas temáticas atuais de pes-
quisa e que consideramos relevantes para a formação do professor de
Língua Portuguesa, visto que olham o texto sob a ótica dos estudos da
Esses conceitos serão enunciação, o que vai ao encontro dos documentos oficiais de ensino
estudados nas disciplinas no que se refere ao texto como unidade de ensino nas práticas de leitu-
de Linguística Aplicada.
ra, escuta, produção textual e análise linguística. Acerca das temáticas
focalizadas na vertente enunciativa da Linguística Textual, abordaremos
a noção de texto à luz dos estudos do discurso e dos gêneros do discur-
so/textuais, do hipertexto e da multimodalidade. Outrossim, vale regis-
trar que os estudos acerca dos gêneros do discurso/textuais são objeto
de estudo no campo da Linguística Aplicada. Por essa razão, eles serão
abordados de modo mais sistemático nas disciplinas desse campo de
conhecimento. Da vertente sociocognitiva dos estudos do texto apre-
sentaremos o conceito de referenciação.

Ao final do estudo desta Unidade esperamos que você seja capaz de:

ӲӲ compreender o conceito de texto à luz dos estudos do discurso


e dos gêneros do discurso/textuais;

ӲӲ compreender os conceitos de hipertexto e multimodalidade e


sua relação constitutiva com o texto;

ӲӲ conhecer o papel da referenciação na construção dos objetos


do discurso no processo de textualização dos textos.

Para atingir o objetivo proposto, dividimos a Unidade em três capí-


tulos: no primeiro capítulo da unidade, discutimos o conceito de texto
à luz dos estudos do discurso e dos gêneros do discurso/textuais; no
segundo e terceiro capítulos, a questão do hipertexto e da multimodali-
dade, respectivamente, e seu papel na constituição do texto; no quarto
capítulo, apresentamos o conceito de referenciação.
Texto, gênero, discurso: três conceitos indissociáveis Capítulo 10

10 Texto, gênero, discurso: três


conceitos indissociáveis

Em 1984 é publicada a obra seminal de João W. Geraldi e colaborado-


res intitulada O texto na sala de aula e, ao longo da década, muitas outras
A obra O texto na sala de aula
obras foram produzidas, a partir da leitura de pesquisadores brasileiros será discutida na Unidade D
dos textos seminais de autores europeus, tais como Beaugrande, Dressler, e os estudos de Breaugrande
e Dressler foram vistos na
Charolles, entre outros. Se, no Brasil, a década de oitenta do século XX foi Unidade B.
a década do texto e da linguística do texto, é possível dizer que a década
de noventa inaugurou uma nova fase nos estudos da linguagem em nosso
país, a saber, a linguística dos gêneros do discurso/textuais.

Nos quadros teóricos do interacionismo sociodiscursivo e da so-


ciorretórica norteamericana usa-se o termo gêneros textuais, en-
quanto que na abordagem bakhtiniana usa-se o termo gêneros
do discurso, para falar dos tipos de enunciados que organizam as
interações nas diferentes esferas da atividade humana.

Seja na perspectiva da Análise Dialógica dos Gêneros do Discur-


so, de pesquisadores ligados ao Círculo de Bakhtin; na perspectiva do
Interacionismo Sociodiscursivo, de Bronckart, Schneuwly, Dolz e cola-
boradores; ou da Sociorretórica de Swales, Miller, Bazerman e seguido-
res, a partir do início dos anos noventa, a ciência da linguagem passou
a considerar como objeto de estudo as práticas reguladoras da [inter]
ação humana, organizadas por modos típicos e recorrentes de agir, os
tipos relativamente estáveis de enunciados, denominados por Bakhtin
(2003[1979]) de gêneros do discurso.

Em 1984, a linguista americana Miller, pesquisadora do campo da


retórica e do ensino da escrita, propõe em Gênero como ação social uma
visada sociocultural e crítica para os estudos da retórica – ou sociorretó-
rica –, compreendendo os gêneros como ações retóricas tipificadas em
situações recorrentes de indivíduos que participam de práticas discursi-

115
Linguística Textual

vas específicas. A autora defende o estudo dos gêneros a partir das lentes
de uma retórica crítica que os concebe como chaves para a compreensão
de como é possível participar de uma ação exigida e motivada em uma
Esse conceito será dis-
cutido nas disciplinas de determinada comunidade (MILLER, 1984).
Linguística Aplicada. Por
hora, antecipamos que
entendemos por letra- No ano de 1990, o linguista americano Swales escreve Genre analy-
mento os usos sociais da sis: English in academic and research settings numa perspectiva sociorre-
escrita.
tórica próxima à de eventos de letramento, associando gênero às práticas
de falantes em uma comunidade, com ênfase nos propósitos comunica-
tivos e nas ações sociais. Para Swales (1990) gêneros são

[...] uma classe de eventos comunicativos, cujos membros compartilham


os mesmos propósitos comunicativos. Tais propósitos são reconhecidos
pelos membros especialistas da comunidade discursiva de origem e,
portanto, constituem o conjunto de razões (rationale) para o gênero. Es-
sas razões moldam a estrutura esquemática do discurso e influenciam e
impõem limites à escolha de conteúdo e de estilo. (SWALLES, 1990, p. 58).

A definição de Swales é bem próxima da concepção de gênero de


Bakhtin, tanto no que se refere à compreensão de sua constituição, ou
seja, como os gêneros surgem, como se materializam, como medeiam as
interações, quanto no que se refere a sua relação com uma determinada
comunidade/esfera da atividade humana. Bakhtin (2003[1979]) ao defi-
nir gêneros do discurso explica que

Todos os diversos campos da atividade humana estão ligados ao uso


da linguagem. Compreende-se perfeitamente que o caráter e as for-
Por questão de coerên- mas desse uso sejam tão multiformes quanto os campos da atividade
cia mantemos a opção
terminológica do tradutor humana [...]. O emprego da língua efetua-se em forma de enunciados
da obra que consultamos; (orais e escritos) concretos e únicos, proferidos pelos integrantes des-
ressaltamos, no entanto, se ou daquele campo da atividade humana. Esses enunciados refletem
que a opção da maioria
dos tradutores e estudio- as condições específicas e as finalidades de cada referido campo [...].
sos do Círculo é pela ex- Evidentemente, cada enunciado particular é individual, mas cada cam-
pressão esferas da ativida- po de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de
de humana e não campos
da atividade humana. enunciados, os quais denominamos gêneros do discurso. (BAKHTIN,
2003[1979], p. 261-262).

Em 1994, na Suíça, Schneuwly escreve sobre a validade do conceito


de gênero textual/discursivo no campo dos estudos da linguagem, para

116
Texto, gênero, discurso: três conceitos indissociáveis Capítulo 10

substituir a lógica da tipologia escolar tradicional – descrição, narração,


dissertação. Numa perspectiva interacionista sociodiscursiva, de base
vigotskiana e bakhtiniana, o autor genebrino sugere a metáfora de gêne-
ro como megainstrumento de interação social. Em outras palavras, ele
afirma que tanto para o desenvolvimento de capacidades de linguagem
(como narrar, relatar, expor, argumentar e instruir), quanto para agir
em sociedade e poder participar das práticas discursivas nas diferentes
esferas sociais, a apropriação – uso consciente – dos gêneros textuais/
discursivos é imprescindível para o desenvolvimento dos humanos.

Bernard Schneuwly coordena o Grupo de Pesquisa em Ensino de


Línguas Românicas, na Universidade de Genebra – Suíça. Seu tra-
balho, bem como o de seu colega Joaquim Dolz e de outros pesqui-
sadores do GRAPHE, é amplamente conhecido no Brasil, principal-
mente a partir da tradução e organização de um livro com os textos
de divulgação das pesquisas do grupo, elaborado por Rojo e Cor-
deiro, em 2004, sob o título de Gêneros orais e escritos na escola.
Infelizmente, a contribuição do grupo para os estudos da linguagem
e para o ensino de língua materna, alicerçada notadamente nas con-
cepções soiointeracionistas de Vigotski e Bakhtin, tem sido reduzida
à compreensão enviesada do tema dos modelos e das sequências
didáticas para apropriação de gêneros na escola.

O linguista americano Bazerman (2000, p.16), por sua vez, usa a


metáfora da navegabilidade e postula que:

Os gêneros nos ajudam a navegar no mundo complexo de comunica-


ção escrita e de atividades simbólicas, porque ao reconhecermos um
gênero de texto, reconhecemos muitas coisas sobre o cenário institu-
cional e social, as atividades propostas, os papéis disponíveis ao escritor
e leitor, os motivos, as idéias, a ideologia, o conteúdo esperado do docu-
mento, e onde isso tudo pode caber em nossa vida.

Segundo esse autor, quanto mais soubermos sobre os sistemas re-


correntes das atividades de comunicação, nas diferentes instituições so-

117
Linguística Textual

ciais em que estamos envolvidos, mais teremos condições de compreen-


der como utilizar os textos/gêneros que organizam essas atividades, ou
seja, mais estaremos aptos a transitar nas diferentes situações sociais de
interação das diferentes esferas sociais.

Em 2002, no Brasil, surge a primeira publicação em livro de pesqui-


sas sobre gêneros discursivos/textuais, na obra intitulada Gêneros Textu-
ais e Ensino, organizada por Angela Paiva Dionísio (UFPE), Anna Rachel
Machado (PUC-SP) e Maria Auxiliadora Bezerra (UFPB). Com apresen-
tação de Angela Kleiman, o livro traz no seu primeiro capítulo um texto
seminal de Luiz Antônio Marcuschi, intitulado Gêneros textuais: definição
e funcionalidade, cuja função é dar suporte teórico para as práticas de en-
sino de linguagem orientadas a partir dos gêneros do discurso/textuais.

A contracapa do livro esclarece que

Quando falamos ou escrevemos, seja em que situação for, sempre esta-


mos produzindo algum gênero textual. Essa constatação, por mais singela
e óbvia que possa parecer, não vinha sendo levada em conta pelos manu-
ais de ensino de língua. Na realidade, embora tenhamos uma certa com-
petência tipológica intuitiva para a produção de muitos gêneros textuais,
uma tal habilidade pode e deve ser analisada, treinada e ampliada [...].

Se a linguística formal nas vertentes estruturalista e gerativista do-


minou até a década de setenta, a partir dos anos oitenta aspectos funcio-
nais da linguagem – questões acerca do que se faz com a linguagem em
sociedade – emergiram e deram espaço a abordagens discursivas que
levam em consideração as práticas sociais mediadas pela linguagem.

Sobre os conceitos de texto, gênero e discurso, vale a pena lermos o


que nos diz o pesquisador e professor da UFSC, José Luiz Meurer:

[...] O discurso é um conjunto de afirmações que, articuladas através da lin-


guagem, expressam os valores e os significados das diferentes instituições;
o texto é a realização linguística na qual se manifesta o discurso. Enquanto
o texto é uma entidade física, a produção linguística de um ou mais discur-
sos, o discurso é o conjunto de princípios, valores e significados ‘por trás’ do
texto. Todo discurso é investido de ideologias, isto é, maneiras específicas

118
Texto, gênero, discurso: três conceitos indissociáveis Capítulo 10
de conceber a realidade. Além disso, todo discurso também é reflexo de
uma certa hegemonia, isto é, exercício de poder e domínio de uns sobre
os outros. A partir dessas características, o discurso organiza o texto e até
mesmo estabelece como o texto poderá ser, quais tópicos, objetos ou pro-
cessos serão abordados e de que maneira o texto deverá ser organizado
(KRESS, 1989). Assim, por exemplo, serão muito diferentes os textos cria-
dos dentro do discurso da igreja, da escola, da indústria, da ciência, dos
diferentes partidos políticos, da prostituição, etc. Cada instituição tem seus
discursos, sempre investidos de determinadas ideologias, determinadas
maneiras de ver, definir e lidar com a‘realidade’. Isso se reflete nos textos,
através dos quais nos comunicamos e executamos ações sociais. [...] Pense-
mos, por exemplo, nos textos usados nas escolas. Quais são eles, quem os
escolhe ou determina? Não são apenas os professores (principalmente) e
alunos, mas também determinações que vêm de práticas discursivas mais
amplas, pertencentes ao discurso que engloba, por exemplo, o programa
da escola, as normas da secretaria, da prefeitura, ou do estado, os PCN, ou o
MEC. A escolha de textos pode envolver ainda pressões da sociedade; por
exemplo, usar ou não usar textos que tratem de drogas, de relacionamento
ou identidade sexual etc. Fairclough (1989) fala em poder no discurso e
poder por trás do discurso. O primeiro é mais visível e pode ser exercido
in presentia, explicitamente, através de palavras ou textos específicos. O
poder por trás do discurso deriva de ordens do discurso não tão visíveis,
como é o caso dos discursos por trás da escolha do livro que a escola vai
adotar ou dos discursos que determinam o que significa ser professor e
consequentes formas de comportamento ou posicionamento diante da
profissão. São os poderes por trás do discurso que determinam qual gêne-
ro é mais apropriado para determinadas situações. Isto não significa que as
práticas discursivas não possam ser alteradas. Conforme aponta Giddens –
e Fairclough adota a mesma perspectiva –, cada situação de prática social
é simultaneamente coercitiva ou coibidora e capacitadora. Isto quer dizer
que ao mesmo tempo em que uma prática social pode repetir ou reforçar
práticas anteriores, pode também questionar, desafiar e mudar práticas
anteriores. Portanto, ao mesmo tempo em que os aspectos coercitivos ou
coibidores em princípio promovem a repetição, os aspectos capacitadores
permitem a mudança. Ter conhecimento sobre o envolvimento da lingua-
gem nas questões de poder pode cooperar para mudanças no exercício
de formas de poder. (MEURER apud MENEZES, 2010, p. 480).

Texto extraído de entrevista póstuma com José Luiz Meurer para o nú-
mero especial da Revista Brasileira de Linguística Aplicada, Belo
Horizonte, v. 10, n. 2, p. 479-494, 2010. Para ler a entrevista na íntegra
acessar: http://wac.colostate.edu/siget/rbla/meurer.pdf

119
Linguística Textual

A discussão que pretendemos empreender neste Capítulo ao apre-


sentarmos diferentes vertentes teóricas de estudo dos gêneros do discur-
so/textuais, tal como enunciado na abertura desta Unidade, é mostrar que
hoje a noção de texto é repensada à luz dos estudos do discurso e dos
gêneros do discurso/textuais. E o que isso quer dizer? Que o que enten-
demos por texto muda quando o olhamos à luz de diferentes enquadres
teóricos. Como vimos na Unidade A, nos estudos iniciais da Linguística
Textual o texto era visto a partir da sua imanência, o que levava a uma
dada concepção de texto, como conjunto coerente de frases/enunciados. Já
nos estudos dos princípios da textualidade, tal como vimos na Unidade B,
o texto passa a ser interpretado considerando os aspectos da sua imanên-
cia, com os estudos da coesão, por exemplo, mas já com uma visada nos
aspectos enunciativos. Os princípios da situacionalidade, intencionalida-
de e aceitabilidade são exemplos dessa nova visada. No entanto, de modo
geral, dado o desenvolvimento da área na época, alguns desses princípios
foram vistos mais como contornos do texto. Dito de outro modo, obser-
vava-se sua existência para a compreensão do conceito de texto, mas as
ferramentas teóricas da Linguística Textual não possibilitavam um estudo
do texto considerando os aspectos da interação como elementos consti-
tutivos do próprio conceito de texto. Com a virada discursiva dos estudos
do texto, os novos construtos teóricos redimensionam a noção de texto.
Tal como discutimos na Unidade B, o conceito de gêneros permite reler
de modo mais produtivo os princípios de textualidade, uma vez que esse
conceito [o de gêneros] relaciona de modo inextricável o texto à situação
social de interação. Um segundo exemplo é a noção de autor e interlocu-
tor (entendidos pelos princípios da textualidade como intencionalidade e
aceitabilidade) como constitutivos do texto, uma vez que são elementos
da situação de interação. Logo, os textos portam discursos, que não são
neutros, mas posicionados socialmente. Inclusive, temos de observar que
os gêneros do discurso/textuais têm sua concepção de autor e interlocu-
tor. Para ilustrar, pensemos que noção de autor e interlocutor evocam os
gêneros aula, edital, defesa de tese, conto de fadas etc.

Horizontes de valores Nesse enquadre teórico, a situação social de interação, com seus
sócio-ideológicos. horizontes axiológicos, não é apenas o espaço-tempo onde o texto é
produzido e interpretado, um contorno do texto, mas uma dimensão

120
Texto, gênero, discurso: três conceitos indissociáveis Capítulo 10

constitutiva do próprio conceito de texto. Assim sendo, um texto so-


mente existe como tal na situação de interação, no processo de inter-
locução de sujeito situados historicamente. Rodrigues (2005), relendo
as considerações de Bakhtin a respeito do texto nas ciências humanas
e sociais, destaca que, para o autor, o texto pode ser visto a partir de
dois polos: o polo da língua como estrutura e o polo da língua na sua
condição de discurso. No primeiro caso, o texto é visto na sua imanên-
cia, ou seja, o texto abstraído da situação de interação; no segundo, nos
processos interacionais. Essa distinção teórica a autora nomeia como o
texto visto na sua condição de estrutura (texto-estrutura), abstraído dos
processos interacionais; e o texto visto na sua condição de enunciado
(texto-enunciado), ou seja, o texto como o mediador e a materialização
de uma situação de interação.
Essa questão e suas im-
Foi a partir desse horizonte teórico que nos permitimos uma li- plicações para o ensino e
aprendizagem da leitura,
cença teórica, em nome da coerência pedagógica para a formação de da escuta, da produção
professores, para, na Unidade B, reler os princípios de textualidade à luz textual e da análise lin-
guística serão retomadas
dos estudos dos gêneros do discurso/textuais. Por exemplo, repensar o nas disciplinas de Linguísti-
princípio da situacionalidade a partir dos estudos dos gêneros ressig- ca Aplicada.
nifica esse princípio, uma vez que ele vai ser a porta de entrada para a
noção de texto na sua condição de enunciado: um texto somente existe
como tal, ou seja, texto-enunciado, em uma dada situação de interação.
E mais, cada situação social de interação produz seu gênero do discur-
so/textual que, uma vez constituído, medeia essa situação de interação,
produzindo textos balizados pelo gênero. Exemplifiquemos: uma aula,
uma reunião, uma tese de doutorado, um romance, são exemplos de gê-
neros porque correspondem a diferentes situações sociais de interação.
Pensemos em outro princípio de textualidade, a coesão. Estudos sobre
esse princípio observam que a coesão se materializa diferentemente nos
textos. O que gera essa diferença? Uma delas é o gênero no qual se ins-
creve o texto: se observamos anúncios e editoriais veremos que a coesão
se manifesta de modo bastante diversificado. O que gera essa diferen-
ça está ligado à situação de interação e ao gênero dessa situação. Por
exemplo, dado o alto custo financeiro do anúncio e a necessidade de
conseguir capturar rapidamente o leitor para chamá-lo para o consu-
mo do produto, o texto é de pequena extensão, tendo muitas vezes sua

121
Linguística Textual

coesão marcada por elementos de repetição. Já no editorial, que busca


a adesão do leitor ao ponto de vista da empresa jornalística, a coesão é
Muitos de nós ainda
guardamos na memória nitidamente marcada pelos operadores argumentativos.
a propaganda: Compre
batom, compre batom,
compre batom... Retomando a discussão de um modo mais geral, observamos que
discurso, gênero e texto são conceitos indissociáveis, o que leva à con-
clusão de que um texto existe como tal, como enunciado, na articulação
desses conceitos. Vejamos um exemplo:

Um novo José Josias de Souza


-São Paulo-

Calma, José. Diga: ora, Drummond, Agora FMI.


A festa não começou,
a luz não acendeu, Se você gritasse,
a noite não esquentou, se você gemesse,
o Malan não amoleceu. se você dormisse,
mas se não voltar a pergunta: se você cansasse,
e agora José? se você morresse...
Diga: ora, Drummond, O Malan nada faria,
agora Camdessus. mas já há quem faça.
Continua sem mulher,
continua sem discurso, Ainda só, no escuro,
continua sem carinho, qual bicho-do-mato,
ainda não pode beber, ainda sem teogonia,
ainda não pode fumar, ainda sem parede nua,
cuspir ainda não pode, para se encostar,
a noite ainda é fria, ainda sem cavalo preto,
o dia ainda não veio, Que fuja a galope,
o riso ainda não veio, você ainda marcha, José!
não veio ainda a utopia, Se voltar a pergunta:
o Malan tem miopia, José, para onde?
mas nem tudo acabou, Diga: ora Drummond,
nem tudo fugiu, por que tanta dúvida?
nem tudo mofou. Elementar, elementar,
Se voltar a pergunta, sigo pra Washington
E agora, José? e, por favor, poeta,
não me chame de José.
Me chame de Joseph.

Figura 1: Artigo assinado Um novo José Fonte: Folha de S. Paulo (apud


MARCUSCHI, 2002, p. 30).

Uma leitura rápida do texto, abstraído da situação social de intera-


ção, ou seja, o texto visto na sua imanência (ou como artefato), poderia
supor de que se trata de um texto do gênero poema, gênero da esfera da
arte. No entanto, quando se apresentam as condições de produção desse
texto e sua situação social de interação, vemos que se trata de um texto

122
Texto, gênero, discurso: três conceitos indissociáveis Capítulo 10

publicado no jornal Folha de S. Paulo no ano de 1999. Embora tenha


sido escrito em forma de poema, a situação social de interação e a sua
esfera de circulação não permitem que o leitor faça uma leitura desse
texto como sendo desse gênero, mas como um artigo assinado. O que
balizou nossa análise e os leitores do jornal na leitura desse texto foi a
noção de gêneros. Evidentemente, o texto estabelece relação de intertex-
tualidade com o poema E agora José, de Carlos Drummond de Andra-
de. Vemos agora que inclusive a relação de intertextualidade é marcada
também pela noção de discurso e de gêneros.

Apresentada a noção de texto à luz dos estudos do discurso e dos


gêneros do discurso/textuais, passaremos à noção de hipertexto.

Implicações para o processo de ensino e aprendizagem:

Assumindo a convicção de que é preciso tratar os conceitos de texto,


gêneros e discurso de forma indissociável, o professor poderá pro-
por trabalhos de leitura crítica e de produção de textos que se apro-
ximem dos usos reais de linguagem que ocorrem em sociedade, nas
diferentes esferas da atividade humana. Se nas décadas estrutura-
listas a chave para o trabalho com a língua e seu sistema era o con-
ceito de relação, agora, diante dessa nova concepção, o que vale é
o processo de interação entre “sujeitos de carne e osso” situados
socialmente e como esses sujeitos fazem uso consciente da língua
– linguagem [textos, gêneros e discursos] em sua vida, em busca do
exercício da cidadania e da execução de seus projetos de vida.

123
Texto, hipertexto, hiperlink, novas formas de interação Capítulo 11

11 Texto, hipertexto, hiperlink,


novas formas de interação

Se a década de noventa foi a década do início dos estudos


dos gêneros do discurso/textuais, as abordagens que trazem em seu
escopo central as práticas de linguagem que regulam as relações
sociais descortinaram uma nova forma de investigação no campo da
ciência da linguagem. A expansão da rede mundial de computadores
provocou um novo olhar para esse fenômeno e trouxe à cena novos
conceitos fundamentais para a compreensão da nossa interação feita
por intermédio de textos, gêneros e discursos. A leitura, a escuta e a
produção de textos no ambiente hipermidiático em que vivemos
tomaram novas proporções, adquiriram novas características e, de certo
modo, estão sofrendo influências dos novos modos de agir e interagir
pelas e sobre as linguagens (verbal, pictórica, musical etc.), mudando
as relações já estabelecidas entre autor – textos – leitores, provocando a
emersão de novas práticas de interação e de novos gêneros.

Mas, em que medida falar de hipertexto, hoje, no campo da


ciência da linguagem, é uma novidade?

Koch adverte que

[...] todo texto constitui uma proposta de sentidos múltiplos e não


de um único sentido, e [...] todo texto é plurilinear na sua construção,
[...] [pode-se] afirmar – pelo menos do ponto de vista da recepção –
[que] todo texto é um hipertexto. (KOCH, 2002, p. 61).

A autora, invocando o princípio da intertextualidade, menciona


o artigo científico com suas citações, notas de rodapé, referências como
texto hiperlinkado, portanto, um hipertexto, que há muito tempo figura
na esfera acadêmica, antes mesmo da produção, circulação e leitura de
hipertextos eletrônicos na web. Segundo esse ponto de vista, é preciso
falar então de hipertexto de um modo geral e de hipertexto eletrônico.
Essa distinção inicial pode ser interessante para adentrarmos nas
especificidades do hipertexto eletrônico. Trata-se, então de uma nova
forma de agir, uma nova cultura, um novo discurso?
125
Liguística Textual

Muitos autores que tratam desse tema têm se referido a uma


nova esfera – o ciberespaço –, a uma nova cultura – a cibercultura. São
muitas as características dos [hiper]textos que circulam nessa novo
SANTAELLA, Lúcia. O
novo estatuto do texto espaço de produção de discursos que os distinguem dos demais pela
nos ambientes de hiper- forma de dizer. A possibilidade de uma escrita não necessariamente
mídia. In: SIGNORINI, Inês
(Org.) [Re] discutir texto, linear, o manejo, a revisão e o monitoramento quase que instantâneo
gênero e discurso. São do texto que está em produção – processamento cognitivo do texto–, o
Paulo: Parábola Editorial,
2008. p. 47- 72. acesso em rede a outros textos através de um simples “click de mouse”
em um “link” – um elo –, a rapidez de acesso a dados; enfim, trata-se
de uma série de especificidades que afetam tanto os modos de leitura
quanto os processos de elaboração de um projeto de dizer.

Os textos escritos para o ciberespaço gozam do privilégio de


poderem estar linkados a todos os outros textos/gêneros que estão
disponíveis na web. Para tanto, o produtor – arquiteto – precisa lançar
mão de um recurso de ligação entre os textos. Esse recurso denomina-
se link – ou hiperlink. Os links ou hiperlinks têm função dêitica, quase
sempre catafórica e ejetam o leitor para outro texto, para outro tópico,
A propósito, e como
curiosidade, segundo para outro nível de leitura, para outro espaço físico e social em que está
Gomes (2011, p. 24), o localizado outro documento disponível na rede web.
termo hiperdocumento
já foi utilizado na esfera
da informática, mas “não Os hiperlinks exercem função coesiva e podem evitar a dispersão,
pegou”.
assegurando mais fluência e compreensão na leitura, evitando rupturas
no processo de construção do sentido. Por outro lado, eles também
fecham as leituras possíveis do texto, uma vez que vão dando direções
de leitura para o interlocutor.

No que diz respeito à arquitetura de um projeto de dizer e de


seu processo de recepção – processamento – os hiperlinks também
cumprem função cognitiva, pois funcionam como encapsuladores de
cargas de sentido, acionando modelos representados na memória (do
leitor), promovendo o encadeamento (mental) das informações.

Os links, materializados em palavras-chave, sintagmas, ícones


etc. definem as informações relevantes para a busca de informações –
auxiliando o leitor em seu trajeto, percurso de construção de sentidos.

126
Texto, hipertexto, hiperlink, novas formas de interação Capítulo 11

São pistas, caminhos, labirintos que conduzem os leitores, dando “foco”


aos conteúdos, topicalizando-os, auxiliando na busca de informações –
de acordo com as expectativas do leitor.

Estabelecem-se, assim, novas formas de relação entre produtores


de textos e seus interlocutores. O leitor de hipertextos, acionador de
hiperlinks passa a figurar no ciberespaço como um hiperleitor. Ele faz
escolha de seu percurso de leitura, decidindo se mantém o caminho
indicado pelo produtor do [hiper]texto ou se segue seu próprio caminho,
derivando para outros espaços.

Em muitos casos, principalmente em ambientes wiki, a relação


passa a ser de co-autoria. O exemplo clássico é a Wikipédia, em que
é possível tanto construir verbetes, quanto editar, revisar, aprimorar
os que já existem.

Figura 2. Página Wikipédia. Verbete Linguística Textual. Acessada em 28/11/11.

127
Liguística Textual

Então, se de um lado há a figura de hiperautor, do outro lado


evidencia-se também a figura do hiperleitor. Nessa relação, o autor –
produtor – arquiteto – escritor – roteirista de um texto[hiper], embora
seja um propositor de rotas, caminhos e sentidos possíveis, não figura
mais como único controlador do fluxo de informação, visto que no
ciberespaço o leitor também pode querer exercer essa função e decidir
a ordem, a direção a trajetória, a trilha, o labirinto e o nível de
aprofundamento de sua leitura.

No que se refere a essa nova relação entre autor e interlocutor no


ciberespaço, enquanto Marcuschi (1999) sugere a expressão trilha, Snyder
(1997) prefere usar a metáfora do labirinto. A autora adverte que pode
ocorrer estresse cognitivo no hipernavegador, quando ele se perde de seu
percurso previamente traçado em busca de um sentido para sua leitura.

Se aparentemente o hipernavegador – hiperleitor exerce certa


liberdade nas escolhas que faz dos caminhos que quer seguir em sua
trajetória de construção de sentidos, é preciso dizer que ele somente
tem acesso aos links previamente estabelecidos pelo produtor do [hiper]
texto. Logo, como as ligações são previstas pelo produtor do texto, trata-
se de uma liberdade controlada.

Em síntese, inspirado nas reflexões de Pierre Levy sobre o


presente e o futuro da comunicação humana, levando em consideração
as novas formas de agir, por intermédio de textos, gêneros e discursos no
ciberespaço, a partir do acesso cada vez maior de populações às novas
tecnologias de informação e comunicação, é preciso que, no campo da
educação, nós professores, assumindo nossas responsabilidades acerca
do ensino e da aprendizagem de crianças, adolescentes, jovens e adultos,
possamos estar atentos para auxiliar os estudantes a compreenderem
os avanços culturais de seu tempo, ou, parafraseando Foucault
(2008[1970]), compreenderem as novas ordens do discurso.

Algumas perguntas que recomendamos fazer sempre, em se


tratando de novas formas de produzir e de consumir textos na internet,
e sobre o impacto dos múltiplos usos desses novos projetos de dizer

128
Texto, hipertexto, hiperlink, novas formas de interação Capítulo 11

na hipermídia é o que de fato para nós é relevante, quais são nossas


prioridades? O que queremos saber e fazer quando percorremos
determinados espaços na web? Que grau de confiabilidade existe
nas informações ali encontradas? Quem são os responsáveis
pelas informações disseminadas no ciberespaço? Que grau de
responsabilidade precisaremos ter diante desse mar de informação?
Seremos sempre meros consumidores de informação ou seremos
também produtores? Estaremos sempre dispostos a interagir e repartir
publicamente nossos projetos de dizer com os outros, ou o que mais
vale nem é ter o que dizer, mas estar conectado com o outro, ou o que
mais vale é a interação propriamente dita?

Implicações para o processo de ensino e aprendizagem:

O trabalho com hipertexto eletrônico em sala de aula pode es-


tabelecer novas formas de ensino e aprendizagem de língua –
linguagem. Os professores de língua materna, compreendendo
o discurso do ciberespaço e as novas formas de agir em socie-
dade que se descortinam nesse ambiente, podem construir na
escola novos espaços criativos para a prática da leitura crítica e
para a produção de [hiper] textos, que possam modificar o esta-
tuto do aluno de um mero consumidor de informação para um
hiperautor, criativo e produtor de conteúdos para web.

129
Multimodalidade Capítulo 12

12 Multimodalidade
No que se refere à produção, à circulação e à recepção de textos,
nos estudos de Linguística Textual atuais não é mais possível desconsi-
derar o caráter multimodal dos textos.

Segundo Kress; Van Leeuwen (2001 apud BENTES, 2008), a


multimodalidade pode ser definida como o uso de várias semioses na
elaboração de um evento ou produto semiótico e a maneira particular
como essas semioses são combinadas, pois elas podem reforçar umas às
outras (dizer a mesma coisa de diferentes maneiras), podem se comple-
mentar e podem ainda ser hierarquicamente ordenadas.

Kress, é um pesquisador que tem se dedicado a estudar a mul-


timodalidade do ponto de vista da perspectiva semiótica, que
se refere aos sistemas de signos na produção de sentidos. No
entanto, sua abordagem se distancia da semiótica clássica na
medida em que leva em conta os contextos sociais, ou seja, as
práticas sociais na produção discursiva. Por isso, adota o termo
semiótica social e, mais recentemente, semiótica discursiva para
analisar os fenômenos semióticos do ponto de vista da lingua-
gem como prática social, afetada pela ideologia e pela cultura,
enfim, por variáveis históricas e culturais. (BALLOCO, 2005, p. 65).

Se prestarmos atenção a nossa volta, veremos que os textos que cir-


culam em nosso cotidiano compõem-se de mais de um material semiótico,
além da escrita (verbal). Até mesmo os textos escritos têm uma natureza
multimodal se considerarmos os diferentes tipos de letras, as cores e os
tamanhos das letras empregadas na hora de escrever um texto. Mas, em
termos de multimodalidade, é preciso somar a isso os elementos especifi-
camente não verbais, como o desenho, a fotografia, o som, a imagem etc.

Desse modo, compreender as relações de multimodalidade nos


textos é certamente um dos temas a ser tratados pela Linguística Textu-

131
Linguística Textual

al. Segundo Bentes et al. (2010), a investigação teórica sobre o caráter


multimodal dos textos permite um alargamento do conceito de texto, de
modo a incorporar nele elementos não verbais (imagem, cor etc.).

A multimodalidade nos textos não ����������������������������


é ��������������������������
algo novo, no entanto, po-
demos dizer que com o advento das Tecnologias da Informação e Co-
municação (TICs), os textos que circulam socialmente cada vez mais
apresentam uma hibridização de materiais semióticos: som, imagem,
cor, etc. Assim, o espaço digital é essencialmente hipertextual e multi-
modal. Conforme Marcuschi; Xavier (2005), o caráter multissemiótico
é intrínseco ao hipertexto digital, tendo em vista que os nós (links) pos-
sibilitam o acesso a uma diversidade de aportes sígnicos, como ícones
animados, efeitos sonoros, diagramas, tabelas tridimensionais etc.

Ao interagir no espaço digital os sujeitos interagem com textos


constituídos de múltiplas semioses; eles não somente fazem a leitura de
textos multimodais como também produzem esses textos, constituídos
a partir de variados materiais sígnicos. Podemos citar como exemplo os
sites de relacionamento (orkut, facebook, twitter, linkdelin, etc.), os blogs,
as páginas pessoais, que são textos multimodais constituídos de vídeos,
fotografias, animações etc. e que se unem à escrita (material verbal) para
De acordo com Kome- constituir novos modos de produção de textos, os textos multimodais.
su (2005), o termo blog Segundo Bentes et al. (2010, p. 413), tudo indica que os novos formatos
vem de weblog e significa
“arquivo na rede”. Criado de textos dos meios eletrônicos passarão a exigir cada vez mais que os
pelo norte-americano Evan usuários não só compreendam os textos multimodais como também se-
Williams em agosto de
1999, trata-se de um diário jam capazes de produzi-los, editá-los e postá-los.
aberto, uma vez que o blo-
gueiro deixa registrado, em
forma de diário, registros Vamos entender melhor a noção de multimodalidade a partir da
da sua vida. </link> análise de um gênero emergente em contexto digital, o blog. Do ponto
de vista do gênero, podemos dizer que o blog apresenta características
que trazem a nossa lembrança os conhecidos diários íntimos, escritos
em cadernos próprios, muitas vezes contendo pequenos cadeados para
isolar o que foi escrito aos olhos dos outros. No entanto, apresenta di-
ferenças bem marcadas, como, por exemplo, o objetivo discursivo. Na
escrita de diários íntimos em cadernos ou diários, o objetivo era não ser
lido pelo outro, pois tratava-se de um registro ou desabafo íntimo, tendo

132
Multimodalidade Capítulo 12

o próprio autor a si mesmo como interlocutor. No blog é justamente o


contrário, há uma expectativa de que muitos internautas leiam o que
está sendo registrado. Quanto mais leitores acessam o texto e quanto
mais comentários são registrados no blog, mais o blogueiro sente-se
motivado a continuar postando informações. Assim, a escrita do blog é
fortemente �������������������������������������������������������������
motivada pela reação resposta-ativa do interlocutor. Inicial-
mente os blogs eram listas de links e sites interessantes que poderiam ser
consultados, bem como notas de atalhos para navegação (MARCUS-
CHI; XAVIER, 2005, p. 61). Contudo, os conteúdos postados passaram
a ser cada vez mais abrangentes. Atualmente alguns blogs já estão sendo Rubens da Cunha é natu-
utilizados para fins diversos, como: poema, crítica literária, crítica de ral de Joinville. Publicou
vários livros de contos e
cinema, letras de música, opiniões políticas, relato de viagens. E mais, a poemas. É cronista do Jor-
multimodadalidade é acentuadamente marcada nesses textos. nal A Notícia desde 2004.
Mantém seu blog literário
desde 2005. Atualmente é
Vejamos uma imagem da página do blog do poeta catarinense doutorando em Literatura
na UFSC.
Rubens da Cunha.

Figura 3 – Página de abertura do blog Casas de Paragem. Disponível em: http://casadeparagens.blogspot.com/2006_02_01_archive.html>

Acesso em 25 de nov. de 2011.

133
Linguística Textual

Figura 4 – Página de abertura do blog Casas de Paragem. Disponível em: http://casadeparagens.blogs-

pot.com/2005_11_01_archive.html. Acesso em 07 de dez. de 2011

Nesse blog especificamente, o poeta-blogueiro insere seus po-


emas, normalmente acompanhados por imagens, que às vezes são
pinturas, outras vezes são fotografias. Nessa postagem (Cf. Figura 4),
vemos a inserção de uma imagem (pintura) e, ao lado, o poema do po-
eta-blogueiro, cuja autoria é sinalizada pelo nome do poeta bem como
pelo símbolo de registro ®, como vemos em: ® Rubens da Cunha. Logo
abaixo da imagem a inserção dos créditos dado ao artista da pintura
(nesse caso, Edvard Munch). Desse modo, o poeta-blogueiro indica a
autoria da obra e, além disso, possibilita ao visitante o conhecimento
de mais obras desse artista, já que o seu nome constitui um link para
a página de onde foi retirada a imagem. Ao lado direito do poema te-
mos também uma imagem, a da caixa de poemas, que é fixa no blog,
já que se localiza em uma coluna destinada a apresentar detalhes do
blog, como, por exemplo, a apresentação do autor do blog. Ao clicar
no nome do poeta – Rubens da Cunha – o visitante acessa o texto
perfil do blogueiro-poeta. Nessa coluna fixa é possível ainda localizar
uma lista contendo links de outros blogs ou sites prediletos do poeta,
caracterizando uma espécie de sugestão para o visitante do blog. Na
parte inferior são apresentados detalhes da postagem, como a autoria
da postagem – Rubens da Cunha -, e o horário da postagem. Ainda,

134
Multimodalidade Capítulo 12

na parte inferior, há a seguinte indicação: “10 Hospedaram-se Aqui”.


Trata-se do link que encaminha o internauta a verificar os comentá-
rios postados pelos outros visitantes do blog sobre aquela postagem
especificamente. Enfim, ao navegar nesse blog poderemos encontrar
vídeos, charges, pinturas, fotografias, poemas, contos, propaganda de
livros etc. Mas o destaque deste blog são os poemas publicados pelo
poeta-blogueiro.

A partir dessa breve análise, podemos dizer então que o blog é


um gênero cujos textos são eminentemente hipertextuais e multimo-
dais, tendo em vista que se constituem a partir de aspectos verbais e não
verbais. Assim, além da modalidade escrita (verbal), o blog constitui-se
a partir de uma multiplicidade de semioses, como: imagens, fotografias,
sons, animações, emoticons, cores e tamanhos distintos das letras nos
textos escritos, a disposição gráfica das postagens. Essa reunião de sig-
nos torna seu aspecto visual bastante saliente no gênero, que se organiza
textualmente a partir do registro das últimas postagens no topo da pá-
gina (as postagens mais antigas ficam no final da página). No mais, há
sempre o acompanhamento da data e do horário da postagem. Acres-
centemos a isso os links inseridos no interior das postagens, que apon-
tam para a hipertextualidade desse gênero.

Vamos a outro exemplo de texto multimodal, mas agora do jor- A expressão entrevista
pingue-pongue é o nome
nalismo de revista impresso. Vejamos a seguir um texto do gênero entre- atribuído ao gênero pela
vista pingue-pongue com a atriz Carol Castro. empresa jornalística.

135
Linguística Textual

Texto 20

A entrevista pingue-pongue também é um gênero multimodal,


constituído a partir de aspectos verbais e não verbais, ou seja, ma-
terializa-se por meio de duas modalidades semióticas: a verbal e a
pictórica, cuja articulação na organização textual é responsável pela
construção dos sentidos das/nas entrevistas. Essas múltiplas semioses
são articuladas através do trabalho de diagramação, quer dizer, pela
forma como os elementos verbais e pictóricos estão distribuídos nas
páginas da entrevista.

136
Multimodalidade Capítulo 12

Assim, o material semiótico pictórico é constituído por elementos


como as fotografias, as cores das páginas e também pela disposição grá-
fica dos elementos no texto (texto em coluna).

Podemos observar que a multimodalidade do gênero se eviden-


cia na composição linguístico-textual da entrevista, que se caracteriza
fundamentalmente pela estrutura pergunta-resposta. No Texto 20 essa
composição compreende a seguinte sequência de elementos:

a) Inserção do título da entrevista – que nesse caso se constitui


de um olho;

b) Inserção de introdução - apresentação da entrevistada e do teor


da entrevista; também faz menção ao nome do jornalista, no-
meado como repórter;

c) Inserção de sequência de perguntas e respostas - as perguntas


e respostas são introduzidas, respectivamente, pelo nome da
revista e pelo nome do entrevistado;

d) Inserção de foto do entrevistado - a fotografia da entrevistada


situada na lateral direita do texto, mais especificamente na par-
te final da entrevista;

e) Inserção de uma frase de fechamento.

Em toda essa composição linguístico-textual destaca-se a in-


serção da linguagem pictórica (cores, diagramação das letras, foto-
grafia, etc.) junto com a linguagem verbal. E dentre os elementos
mencionados, o que mais se destaca em termos de material semióti-
co nesse gênero é a fotografia, que, na esfera do jornalismo, normal-
mente integra também os gêneros notícia e reportagem e é chamada
de fotojornalismo.

No entanto, a fotografia que está incorporada à entrevista pin-


gue-pongue tem uma função diferente da dos gêneros notícia e repor-

137
Linguística Textual

tagem, pois ela não tem por objetivo capturar uma cena ou valorar um
fato propriamente dito, mas apresentar o entrevistado (a). A fotogra-
fia do entrevistado é um elemento constitutivo do gênero. Isso ocorre
porque é ela (a fotografia) que impulsiona o leitor para a leitura das
entrevistas, uma vez que, ao visualizar a fotografia o leitor pode se
sentir impelido a ler (ou não) a entrevista.

Além de atrair a atenção do leitor, a fotografia também é um


lugar da materialização da valoração axiológica, pois, dependendo
da foto publicada, ela ou depõe contra o entrevistado, ou o exalta,
tendo em vista seu papel social e a intenção interlocutiva do autor
da foto e da entrevista (e da instância jornalística). Portanto, a esco-
lha desse elemento pictórico, que se entrelaça à linguagem verbal do
gênero, corrobora com o projeto discursivo do autor da entrevista, o
que equivale a dizer que não se trata de uma escolha neutra ou ale-
atória, mas de um trabalho estilístico-composicional pertencente ao
domínio da autoria.

Assim, a articulação entre os elementos verbais e pictóricos


(principalmente os fotográficos) faz parte do acabamento estilístico-
-composicional do gênero e evidenciam o caráter multimodal dos
seus textos.

Em síntese, procuramos mostrar que os textos que circulam social-


mente, muitas vezes, constituem-se na interrelação de elementos verbais e
de elementos pictóricos (verbo-visual).

Implicações para o processo de ensino e aprendizagem:

A questão da multimodalidade, hoje cada vez mais presente


nos textos, traz novas demandas para o professor de Língua
Portuguesa. Sem esquecer a questão dos textos exclusivamen-
te verbais, ou seja, da modalidade verbal dos textos, a multi-
modalidade precisa ser trabalhada em sala de aula tanto nas
aulas de leitura/escuta quanto nas de produção textual.

138
Multimodalidade Capítulo 12

No caso do ensino e aprendizagem da leitura, a natureza mul-


timodal dos textos não se faz presente somente nos livros de
literatura infantil, mas em textos de gêneros diversos, como
notícia, entrevista etc. Nesses casos, é preciso destacar para o
aluno a importância das fotos, das imagens, dos infográficos
etc. para a construção dos sentidos dos textos.

139
Referenciação Capítulo 13

13 Referenciação
A relação entre língua, mundo e significação caracteriza uma
questão teórica que há muito tem sido foco de interesse dos estudos lin-
guísticos. Essa questão tem como principal objetivo saber como a língua
refere (ou representa) as coisas do mundo. Sobre isso Blikstein (apud Estamos nos referindo à
KOCH, 2004, p. 51) questiona: “Até que ponto o universo dos signos idéia segundo a qual a
língua é um sistema de
linguísticos coincide com a realidade ‘extralinguística’? Como é possível etiquetas que se ajustam
conhecer tal realidade por meio dos signos linguísticos? Qual o alcance mais ou menos bem às
coisas, concepção que
da língua sobre o pensamento e a cognição?”. caracteriza a história do
pensamento ocidental
(MONDADA; BUBOIS,
Nos estudos linguísticos, há, no mínimo, duas perspectivas que 2003) e que remete à te-
enfocam tal problemática. Uma delas é a noção clássica de referência, oria do mundo na mente
(SMITH, 1980).
propostas pelos estudiosos racionalistas. A outra é a proposta nomeada
referenciação, que, nos últimos anos, vem se opondo à primeira cor-
rente. As teorizações sobre referenciação têm sido desenvolvidas princi-
palmente por Apothéloz e Reichler-Bégueli (1995); Dubois e Mondada
(1995); Koch (2002); e Koch e Marcuschi (1998).

Koch (2002) define essas noções da seguinte forma:

ӲӲ Referência – Consiste em considerar que há um mundo ex-


tramental dado a priori, a ser internalizado. Tal concepção
persiste entre os cognitivistas clássicos e os racionalistas. A
referência caracteriza-se por ser um significado linguístico do
referente, ou seja, uma representação extensional de referen-
tes do mundo extramental.

ӲӲ Referenciação – Parte do pressuposto de que existe uma


realidade extramental, porém sua apropriação assume im-
plicações sociais e culturais, que são chamadas de versões
públicas de mundo. A referenciação consiste em uma ativi-
dade discursiva em que a realidade é mantida, construída,
reconstruída e alterada pela forma como os sujeitos socio-
cognitivamente interagem com o mundo. Em outros termos,
os sujeitos interpretam o mundo através da interação com o
entorno físico, social e cultural.
141
Linguística Textual

Na perspectiva clássica de referência, as entidades designadas


nas situações enunciativas referenciais são os objetos-do-mundo que
são referenciados, daí a possibilidade de vê-los dentro ou fora do
texto. A noção de referência está ligada a uma visão referencial (re-
presentativa) da língua, ou seja, a língua, de certa forma, representa
as coisas do mundo.

Já na perspectiva da referenciação, as entidades passam a ser ob-


jetos-de-discurso, tendo em vista que o referente não está dado, a priori,
para ser representado, mas no dizer de Koch (2004, p. 53), que rein-
terpreta Blinkstein, “a percepção/cognição transforma o ‘real’ em refe-
rente, ou seja, a realidade se transforma em referente por meio da per-
cepção/cognição”, ou, ainda, “o referente é fabricado pela prática social”.
Segundo Koch (2004), a referenciação implica uma visão de linguagem
não-referencial, o que leva Mondada e Dubois (apud KOCH, 2004) a
propor uma instabilidade das relações entre as palavras e as coisas.

Desse modo, nos estudos clássicos sobre referência, o referente


são coisas do mundo, referenciadas (etiquetadas) pela língua. Já no qua-
dro teórico da referenciação, o referente são as realidades sócio-histó-
ricas e culturalmente situadas, que são construídas e categorizadas nas
atividades discursivas. Nas palavras de Koch (2004, p. 78), os referentes
“são, na verdade, objetos-de-discurso que vão sendo construídos e re-
construídos discursivamente durante a interação verbal”.

Sobre essa discussão, vale destacar o que diz Marcuschi (2005, p.


72, grifos do autor):

Se o fato de não podermos dizer que o mundo em si é inevitável,


isso não significa que o mundo conhecido seja simples produto de
nossas atividades cognitivas. Portanto, não há motivo para alvoroço:
o mundo extramental existe. Contudo [...] todos os objetos de nos-
so conhecimento são produzidos no discurso, embora não se achem
confinados ao discurso e podem ser intersubjetivamente comunica-
dos. Também podemos acrescentar que, se por um lado, o mundo é
independente de nossas crenças e sensações, por outro, nossas cren-

142
Referenciação Capítulo 13

ças e sensações não são totalmente independentes dele. Mas isso


não justifica uma teoria da verdade como correspondência. Significa
que não se pode imaginar que a língua seja um simples, acabado e
eficiente instrumento a priori para construir ou retratar o mundo, e
que o mundo, tampouco, está aí pronto, discreto e mobiliado a priori
para ser designado. Com isso, nos afastamos tanto do anti-realismo
como do relativismo sem precisar admitir o realismo externalista
pura e simplesmente.

Assim, para Marcuschi (2005, p. 93), os objetos-de-discur-


so são “[...] ‘objetos constitutivamente discursivos’, isto é, gerados
na produção discursiva”. Ou ainda, de acordo com Mondada (apud
MARCUSCHI, 2005, p. 93),

[...] é no e pelo discurso que são postos, delimitados, desenvolvidos,


transformados, os objetos de discurso que não lhe preexistem e que
não tem forma fixa, mas ao contrário emergem e se elaboram pro-
gressivamente na dinâmica discursiva.

Koch (2004) também compartilha da visão dos autores citados,


ao afirmar que os objetos-de-discurso são dinâmicos e, após serem in-
troduzidos no discurso, são constantemente ativados, reativados, trans-
formados, desativados e recategorizados.

Ainda sobre a diferenciação entre objeto-do-mundo e objeto-


-de-discurso, Koch (2004, p. 57) diz que nos estudos da referenciação,
quando se menciona o termo referência, este não é compreendido no
sentido que lhe é mais tradicional, como representação extensional de
referentes do mundo extramental, mas como aquilo que “[...] designa-
mos, representamos, sugerimos quando usamos um termo ou criamos
uma situação discursiva referencial com essa finalidade: as entidades
designadas são vistas como objetos-de-discurso e não como objetos-do-
-mundo” (KOCH, 2004, p. 57).

Assim, podemos observar que a distinção entre objeto-do-mun-


do e objeto-de-discurso, nos estudos da Linguística Textual, está ligada à

143
Linguística Textual

investigação sobre como se opera cognitivamente esse processo de ca-


tegorização do mundo. Isso nos mostra que há um deslocamento nos
estudos sobre referência, uma vez que o conceito de referenciação assu-
me a perspectiva de que a linguagem não se constitui em um sistema de
etiquetas para referenciar as coisas do mundo, mas, conforme propõem
Mondada e Dubois (2003), em uma atividade intersubjetiva em que os
sujeitos constroem versões públicas de mundo em suas práticas discursi-
vas, sociocognitivas e culturalmente situadas.

Nessa perspectiva, não existe um mundo que se dá a conhecer


da mesma forma por todos os sujeitos. O que ocorre é que os sujeitos
categorizam o mundo a partir de suas práticas sociocognitivas e criam
Este vídeo encontra-se
disponível no sítio do you- versões públicas de mundo.
tube: http://www.youtube.
com/watch?v=ntXCiB0Ehfk
Essa perspectiva pode ser demonstrada por meio da análise do
vídeo Chico Bento no Shopping. Chico Bento, como sabemos, é um me-
nino da região rural. Nessa história, Chico Bento visita um shopping na
companhia de seu primo. Antes mesmo de entrar no shopping, ele acha
estranho o fato de as pessoas da cidade ficarem presas dentro de um
prédio num dia tão lindo de sol: Vixi como isso é grande sô. He, He, He,
mai ocêis da cidade são burro mesmo né! Solzão lá fora! O solzão lá e ocêis
inventaram de ponha esse forro pra deixa escuro e dispois enchê de luz...
A personagem caipira Chico
Bento foi criada em 1961. Logo no início de sua visita, a personagem tentar subir a escada
Maurício de Sousa, autor-
-criador da personagem, teve rolante que estava descendo e estranha o fato de não sair do lugar, apesar
como inspiração um tio-avô, de seu esforço: Eu devo de tá fraco memo, subo, subo e não saio do lugá.
sobre quem ouvia muitas his-
tórias contadas pela sua avó.
Depois, ao chegar no piso superior, Chico fala sobre sua impres-
são do shopping: Arre mais que sem graceira esse treco de shopping. Só
tem gente e loja, gente e loja... Nesse momento, observa que as palavras
que se encontram nas vitrines das lojas e os próprios nomes das lojas são
diferentes da escrita que ele aprendeu na escola, uma vez que há mui-
tos termos em inglês, o que é próprio do ambiente de shopping. Sobre
essa observação, Chico Bento tece a seguinte consideração: Acho que
fui enganado, a fessora me ensinô tudo errado, num intendu nada que tá
escrivinhado por aqui. Outro momento da história que julgamos rele-

144
Referenciação Capítulo 13

vante para se pensar como os sujeitos interagem diferentemente com a


realidade é quando Chico Bento é abordado por um vendedor que lhe
oferece sapatos:

– Hum, ficou lindo, divino, vai levar?


– Bão, já que o senhô insisti eu levo... Inté, einh...
– Ei, e o dinheiro?
– Dinhero? Eu tô duro.
– Segurança, atrás dele...

Nesse momento, a personagem não entende por que o vende-


dor lhe oferece os sapatos e depois os pede de volta: – Que coisa feia,
dá e despois toma.

Uma das últimas aventuras de Chico Bento é quando ele se ba-


nha totalmente nu na fonte de águas do shopping, achando que se trata
de um lago. Por fim, quando já havia retornado ao sítio, um amigo lhe
pergunta sobre o shopping. Chico Bento faz a seguinte descrição do sho-
pping, a partir de sua visita,

– E como que é lá nesse tar de shopping hein?


– Tem umas loja debaixo do forro iluminado, apesar da luz do sor lá
fora; uma escada que come butina; e um laguinho mixuruca i sem
pêxe.
– Só isso?
– [...] Mas não tem nada não, um dia esse povo da cidade cria juízo
e imita nóis.

Essa história bem-humorada do passeio de Chico Bento no


shopping ilustra a maneira como os sujeitos constroem a realidade a
partir de suas vivências. Assim, no processo de referenciação do ob-
jeto-de-discurso shopping center, o que pode parecer completamente
inaceitável para indivíduos que vivem na zona rural, pode parecer
absolutamente normal para as pessoas que moram na zona urbana
e vice-versa, tendo em vista as diferentes vivências com o entorno
físico e social desses indivíduos.

145
Linguística Textual

Ainda nos estudos sobre referenciação é necessário discutir os


processos anafóricos no quadro dos estudos mais recentes da Linguísti-
ca Textual, fazendo, para isso, um contraponto com os estudos sobre a
coesão da década de 80, explanados na Unidade B deste livro.

O conceito sobre coesão textual apresentado na Unidade B des-


te livro leva-nos a discutir, de forma mais aprofundada, o fenômeno
da anáfora, abordado de distintas formas pela Linguística Textual. No
intuito de sistematizar os diferentes conceitos sobre o tema, é possível
estabelecer dois grupos: um que corresponde à concepção de anáfora
ancorada em uma leitura clássica e mais restrita do fenômeno, e outra,
ancorada em trabalhos mais recentes de base sociocognitiva, em que o
fenômeno é compreendido de forma mais abrangente.

A noção de anáfora tradicionalmente postulada em trabalhos


seminais como de Halliday e Hasan (1976) é de fenômeno linguístico
que possibilita o estabelecimento de uma relação semântica entre itens
lexicais de um texto. A anáfora, portanto, constitui um importante ele-
mento de coesão e operador de progressão de suma relevância para a
tessitura do texto.

Segundo a concepção clássica de referência, ocorre anáfora


quando um item do texto não pode ser interpretado semanticamente
por si mesmo, mas remete a outro(s) item(ns) do texto ou do contexto
necessários a sua interpretação (KOCH, 1991 [1989]). Nessa concepção
mais pontual, a anáfora é essencialmente ligada à coesão textual, sendo
um elemento estritamente responsável pelas retomadas de itens já tex-
tualizados no texto, ou seja, um caso de continuidade tópica.
Trecho extraído do Texto
1, apresentado na Unida- Além disso, nessa perspectiva, a anáfora precisa ser co-referen-
de B deste livro.
cial e ter um antecedente explícito, como podemos verificar no exemplo
a seguir:

O menino de carne e osso aprendeu coisas curiosas: nomes de


heróis, frases que teriam dito, as alturas de montes onde nunca subi-
ria, as funduras de mares onde nunca desceria, a distância de galá-

146
Referenciação Capítulo 13

xias, o ‘SE’, partícula apassivadora, o “se”, símbolo de indeterminação


do sujeito, nomes de cidades de países longínquos, suas populações
e riquezas, fórmulas e mais fórmulas... Sabia que tudo aquilo deveria
ter um motivo. Só que ele não entendia.

No exemplo apresentado, a anáfora ele retoma o antecedente O


menino de carne e osso. Essa anáfora refere-se explicitamente ao Sin-
tagma Nominal (SN) antecedente: assim, a anáfora e o antecedente são
co-referenciais, o que equivale a dizer que há uma identidade referencial
entre eles. Essa anáfora é chamada de anáfora pronominal, por ser repre-
sentada por pronome. Além disso, é também considerada uma anáfora
direta, pelo fato de retomar um referente previamente introduzido no
texto, estabelecendo uma relação co-referencial entre anáfora e antece-
dente. Segundo Marcuschi (2005, p. 55), “a anáfora direta seria uma es-
pécie de substituto do elemento por ela retomado”.

Nessa acepção com que tem sido concebida, a anáfora é concei-


tuada como um elemento que estabelece um continuum e que tem essen-
cialmente como tarefa a retomada de elementos, ou, ainda, nos termos de
Marcuschi (2005), realiza um processo de reativação de referentes prévios.

A partir, porém, dos estudos sobre referenciação, foi introduzida


na Linguística Textual a discussão sobre a complexidade imbricada nos
processos de referenciação textual, uma vez que nem sempre há uma rela-
ção biunívoca entre anáfora e antecedente. Ou seja, nem todas as anáforas
são diretas, desempenhando o papel de estar em lugar de, como tradicio-
nalmente tem sido tomado esse processo. E nem todas as informações
para a interpretação de um texto estão situadas no contexto imediato. As-
sim, a ativação do conhecimento partilhado entre os interlocutores – a
memória discursiva de que tratam Apothéloz e Reichler-Béguelin (1995) –
tornou-se um fator relevante a ser considerado nos processos anafóricos.

Dessa forma, o uso de anafóricos parece extrapolar a função de


retomada referencial, assumindo um importante papel no processo de re-
ferenciação e na construção de sentidos do texto. Trata-se, na verdade, de
conceber como processo anafórico o fenômeno que, até então, evidente-

147
Linguística Textual

mente havia no texto, mas não era assim categorizado. Podemos perceber
que o conceito de anáfora foi ampliado, passando a ser concebido tam-
bém como elemento responsável pelas recategorizações de referentes no
texto. Os estudos mais recentes sobre o processo anafórico mostram que
há casos de anáforas em que não são ativados elementos já textualizados.
O que se dá é um processo de ativação de referentes novos.

Exemplo disso são as formas nominais anafóricas que, segun-


do Koch (2002), operam na recategorização dos objetos-de-discurso,
isto é, na maneira como esses objetos serão reconstituídos, de forma
a atender os propósitos comunicativos dos interlocutores. Ao recate-
gorizar, muitas vezes através do uso de metáforas, a forma nominal
anafórica assume papel crucial, que, segundo Cavalcante (2003), con-
tribui para evidenciar informações relativas ao ponto de vista do pro-
dutor sobre o referente.

Isso se confirma no Texto 1, no qual o referente Pinóquio, que


está presente no título do texto e também no final do mesmo, é, no
decorrer do texto, retomado através de formas nominais anafóricas
(anáforas lexicais) e também por anáforas gramaticais (uso de prono-
mes, por exemplo), como podemos observar no quadro a seguir:

Anáforas lexicais Anáforas gramaticais

menininho de carne e osso ele

o menino sem nome e sem desejos lhe

filho

extensão do pai

realização de desejos não realizados

o menino de carne e osso

148
Referenciação Capítulo 13

o menino

o menino grande

o menino de outrora

boneco de madeira

inteligência pura

sem coração

novo irmão

Quadro 1: Exemplos de anáforas lexicais e gramaticais presentes no Texto 1.

Observamos, a partir do quadro, que o uso de anáforas lexi-


cais e gramaticais implica uma diferença significativa na construção
de sentido. Enquanto as anáforas gramaticais apenas co-referenciam o
referente Pinóquio às avessas, ou seja, substituem o referente, as aná-
foras lexicais, por seu turno, ressignificam-no. Ao ser retomado pe-
las anáforas lexicais, o referente é recategorizado, o que extrapola um
mero processo de retomada referencial.

No Texto 1, as formas nominais anafóricas são elementos fun-


damentais na construção de sentido, tendo em vista que são responsá-
veis por caracterizar a mudança por que passa a personagem do tex-
to. Inicialmente, tomada como menino de carne e osso, a personagem
passa por um processo gradual de transformação, até que, ao final do
texto, ela é nomeada como Pinóquio – o boneco de madeira. Esse pro-
cesso ocorre tendo em vista que os objetos-de-discurso são dinâmicos
e, após serem introduzidos, são constantemente ativados, reativados,
transformados, desativados e recategorizados (KOCH, 2002).

Sobre a maneira como Pinóquio é categorizado e recategoriza-


do, vale destacar o que diz Koch (2004) sobre os processos de cons-

149
Linguística Textual

trução de referentes textuais. De acordo com a autora, quando um


referente é introduzido/ativado no modelo textual, tal ativação pode
ser ancorada e não-ancorada.

Conforme Koch (2004, p. 64),

A introdução será não-ancorada quando um objeto-de-discurso total-


mente novo é introduzido no texto, passando a ter um ‘endereço cog-
nitivo’ na memória do interlocutor. [...] Tem-se uma ativação ‘ancorada’
sempre que um novo objeto-de-discurso é introduzido, sob modo do
dado, em virtude de algum tipo de associação com elementos presen-
tes no co-texto ou no contexto sociocognitivo, passível de ser estabele-
cida por associação e/ou inferenciação.

No Texto 1, o objeto-de-discurso Pinóquio às avessas, ao longo


do texto, vai sofrendo recategorizações de diversas ordens, por meio de
formas nominais anafóricas. Logo no início do texto, à medida que o
leitor lê o título, Pinóquio às avessas, opera-se uma série de inferências
sobre a história clássica de Pinóquio. Já o item lexical às avessas (modi-
ficador do SN), a seu turno, produz a mobilização de inferências que
possibilitam a ativação de sentido, que remete o leitor a informação de
que, no decorrer do texto, haverá uma recategorização do referente (a
figura clássica de Pinóquio).

É possível perceber ainda que, no Texto 1, os elementos co-


esivos estão intimamente ligados à intertextualidade, haja vista que
Pinóquio às avessas remete ao texto clássico, Pinóquio, em que o ca-
minho é o inverso: tem-se um menino de madeira que almeja tornar-
-se um menino de carne e osso.

Assim, tendo em vista o relevante papel das formas nominais


nos processos de referenciação, vamos aprofundar agora essa questão.
No capítulo sobre coesão textual, em que discorremos sobre as formas
remissivas referenciais, mencionamos o uso das expressões nominais.
Retomaremos aqui a discussão sobre o uso dessas expressões, porém,
agora, sob o olhar dos estudos da referenciação.

150
Referenciação Capítulo 13

A expressão formas nominais ou expressões nominais referen- Veja como a noção de re-
ciais tem sido atribuída às formas linguísticas constituídas, basicamen- troação relaciona-se com
a coesão referencial (re-
te, de um determinante (definido ou demonstrativo), seguido de nome corrência) e a prospecção
(KOCH, 2002). Essas formas nominais referenciais são responsáveis por com a idéia de sequencia-
ção, conforme estudamos
dois grandes processos de construção do texto (e, consequentemente, no capítulo sobre coesão
do estabelecimento de sentidos no texto): retroação e prospecção textual.

Koch (2006, p. 2) apresenta as formas nominais referenciais como


uma categoria maior, que inclui diferentes tipos de anafóricos. De acor-
do com a autora, as formas nominais referenciais são “[...] os grupos
nominais com função de remissão a elementos presentes no co-texto
ou detectáveis a partir de outros elementos nele presentes”. Na acepção
Em Linguística Textual, co-
da autora, a retomada é vista como uma “[...] atividade de continuida- -texto significa o entorno
de de um núcleo referencial, seja numa relação de identidade ou não.” verbal do texto, mais espe-
cificamente, os segmentos
(KOCH, 2004, p. 60). Isso reforça o que mostramos até aqui: a anáfora textuais precedentes e
pode dar-se com ou sem absoluta identidade com referentes anterior- subsequentes de uma
dada frase ou palavra do
mente expressos. Segundo Cavalcante (2003), no primeiro caso, pode texto.
haver simplesmente co-referência entre a expressão anafórica e seu an-
tecedente textual, ou ocorrer a recategorização deste. Então, na reto-
mada não referencialmente estrita, essas formas anafóricas operam na
recategorização dos objetos-de-discurso, isto é, na maneira como esses
objetos serão reconstituídos, de forma a atender os propósitos comuni-
cativos dos interlocutores (padrão de intencionalidade e aceitabilidade).

Koch (2005) defende que, além da função de reconstrução


dos objetos‑do-discurso, as formas nominais, de modo geral, têm
uma orientação argumentativa. Nas palavras da autora: “[...] uma das
funções textual-interativas específicas é a de imprimir aos enuncia-
dos em que inserem, bem como ao texto como um todo, orientações
argumentativas conformes à proposta enunciativa do seu produtor”
(KOCH, 2005, p. 35).

A seguir, pontuaremos, de modo mais sistemático, a classi-


ficação das anáforas na visão de Koch (2006). A primeira grande
diferenciação proposta pela autora está nas anáforas correferencias e
não-correferenciais. As anáforas correferencias são aquelas nas quais

151
Linguística Textual

ocorre uma retomada de antecedentes textuais. Essas anáforas, que


podem ocorrer sem recategorização do referente ou com recategori-
zação do referente, são classificadas da seguinte maneira:

Os exemplos de formas
nominais anafóricas 1) Anáforas co-referenciais sem recategorização:
expostas neste capítu-
lo foram extraídos de
Koch (2006). ӲӲ Por repetição: Durante a conferência, o Professor Doutor José
Mendonça pediu a palavra. O professor insinuou que o confe-
rencista estava cometendo um sério engano. Ou: Durante a con-
ferência, o Professor Doutor José Mendonça pediu a palavra.
Mendoncinha insinuou que o conferencista estava cometendo
um sério engano. Ocorre quando o núcleo da forma nominal
repete o antecedente que está sendo retomado, seja de forma
parcial ou na íntegra.

ӲӲ Por sinonímia: A polêmica parecia não ter fim. Pelo jeito, aquele
bate-boca entraria pela noite a dentro, sem perspectivas de solu-
ção. Nesse caso, a retomada de um antecedente ocorre através
de expressões sinônimas ou parassinônimas (quase-sinôni-
mas).

2) Anáforas co-referenciais com recategorização:

ӲӲ Uso de hiperônimo: A aeronave teve de retornar à pista. O apa-


relho (aeronave) estava com defeito. Ocorre quando a anáfora
por hiperonímia funciona necessariamente por recorrência a
traços lexicais, isto é, o hiperônimo contém, em seu bojo, todos
os traços lexicais do hipônimo.

ӲӲ Uso de nomes genéricos: trata-se da retomada do referente por


meio de nome genérico: coisa, pessoa, negócio, criatura.

Mistério no zôo

A polícia que investiga as mortes dos animais do Zoológico de São Paulo


trabalha com duas hipóteses: envenenamento criminoso ou transmis-
são do veneno via ratos. Na última semana, a polícia apreendeu em

152
Referenciação Capítulo 13
uma loja de São Paulo frascos de um veneno cuja fabricação e venda
estão proibidos no Brasil. O material apreendido contém a mesma
substância encontrada nas vísceras dos animais mortos, o fluoracetato
de sódio. (Época, 16/02/04)

ӲӲ Uso de descrições nominais (definidas e indefinidas): trata-se de


uma escolha dentre as propriedades ou qualidades capazes de
caracterizar o referente.

O prefeito é especialmente exigente para liberar novos empreendimen-


tos imobiliários, principalmente quando estão localizados na franja da
cidade ou em áreas rurais.[...]. “O crescimento urbano tem de ser em di-
reção ao centro, ocupando os vazios urbanos e aproveitando a infra-es-
trutura, não na área rural que deve ser preservada”, repete o urbanista
que entrou no PT em 1981 como militante dos movimentos popu-
lares por moradia. (Quem matou Toninho do PT? In: Caros Amigos 78,
setembro de 2003, p. 27)

Já as anáforas não-co-referenciais são aquelas em que não há


identidade estrita com um antecedente textual. Essas, a seu turno, são
agrupadas da seguinte forma:

1) Anáforas indiretas - quando um novo objeto-de-discurso é intro-


duzido, sob modo do dado, em razão de algum tipo de relação
com elementos presentes no co-texto ou no contexto sociocog-
nitivo. Koch (2006) considera a anáfora associativa como um
subtipo da anáfora indireta. No exemplo a seguir, temos um caso
de anáfora indireta, em que vagões e bancos são ingredientes de
trem, nas palavras de Koch (2006). Uma das mais animadas atra-
ções de Pernambuco é o trem do forró. Com saídas em todos os fins
de semana de junho, ele liga o Recife à cidade de Cabo de Santo
Agostinho, um percurso de 40 quilômetros. Os vagões, adaptados,
transformam-se em verdadeiros arraiais. Bandeirinhas coloridas,
fitas e balões dão o tom típico à decoração. Os bancos, colocados
nas laterais, deixam o centro livre para as quadrilhas.

2) Anáforas rotuladoras (encapsulamento anafórico) - trata-se


de formas híbridas, referenciadoras e predicativas, que con-

153
Linguística Textual

sistem em uma seleção particular e única dentre uma infini-


dade de possibilidades lexicais para referenciar o objeto. No
exemplo a seguir, extraído de Koch (2006), temos um caso de
anáfora rotuladora, em que um desafio assim funciona como
uma paráfrase resumitiva de toda uma sentença anterior.
É fácil apontar as razões de sucesso – ou fracasso – de um projeto após
sua conclusão. O complicado é antecipá-las. Os executivos da Petro-
brás, a maior empresa brasileira, enfrentaram um desafio assim há
quatro anos, quando iniciaram a implantação do programa de ges-
tão R/3 da SAP, batizada de projeto Sinergia. (Exame, 18/02/04)
Disponível em: http://
www1.folha.uol.com.br/ Para ilustrar melhor essa discussão sobre os fenômenos ana-
folha/pensata/valdocruz/ul-
t4120u463723.shtml. Aces- fóricos, apresentamos análise dos processos de referenciação em um
so em 20 de jan. 2009. texto jornalístico.

TEXTO 21

Só dá Obama
Se a eleição para presidente dos Estados Unidos fosse apenas na Califór-
nia, mais precisamente em San Francisco, o democrata Barack Oba-
ma poderia dormir tranquilo nessa terça-feira, dia quatro de novembro,
já montando sua equipe de governo e delineando suas primeiras me-
didas. Por aqui, aonde quer que você vá, praticamente todo mundo diz
que vai votar ou já até votou no candidato democrata. Por sinal, os
eleitores de Obama estão votando em peso antecipadamente. Na se-
ção de votação aqui de San Francisco, filas enormes estão se formando,
avançando até para fora do prédio. Tem gente que fica até na chuva
aguardando sua hora de votar. E se você começa a perguntar, de dez
eleitores nas filas na última segunda-feira, nove afirmavam que votariam
em Barack Obama. Não é nenhuma surpresa. A Califórnia, governada
pelo republicano Arnold Schwarzenegger, é dada como Estado definido
a favor de Barack Obama.

Esse favoritismo do democrata está se repetindo em boa parte dos


Estados Unidos. Tanto favoritismo, porém, tem despertado preocupa-

154
Referenciação Capítulo 13

ção entre os eleitores de Obama. Quase todos falam abertamente que


estão preocupados com alguma surpresa na data final de votação. É co-
mum ouvir por aqui que muita gente diz uma coisa para pesquisadores,
mas depois na hora de votar muda de idéia. Fui testemunha de pelo
menos um caso em que o eleitor chegou decidido a votar em Obama,
mas mudou de lado durante o período em que passou na fila esperando
seu momento de depositar seu voto.

Enfim, nessa reta final, os eleitores de Barack Obama simplesmen-


te não estão acreditando que podem ser testemunhas de um fato histó-
rico, como muitos analistas não cansam de repetir por aqui, da eleição
de um afro-americano presidente dos Estados Unidos. Alguns deles,
como um motorista de táxi, me disse que às vezes acha que está so-
nhando com o que pode acontecer nesse ano, com Obama ganhando
a presidência americana. O risco é esse sonho virar pesadelo. Até aqui,
parece improvável. Mas eleição, todos sabem, é como mineração, diriam
os mineiros. Você só sabe o resultado exato depois da apuração.

Valdo Cruz, 46, é repórter especial da Folha. Foi diretor-execu-


tivo da Sucursal de Brasília durante os dois mandatos de FHC e no
primeiro de Lula. Ocupou a secretaria de redação da sucursal e atuou
como repórter de economia. Escreve às terças.

E-mail: valdo@folhasp.com.br

No período de campanha eleitoral para a presidência dos EUA, o


candidato Barack Obama foi focalizado como um referente do mundo
extramental, cujos atributos foram negociados, via construção de ver-
sões públicas de mundo. No processo de referenciação desse objeto-de-
-discurso em específico, destacamos, para as finalidades deste capítulo, o
uso de formas nominais referenciais de implicação anafórica.

De acordo com Koch (2002), as formas nominais referenciais de-


sempenham importantes funções cognitivo-discursivas, dentre elas
a de ativação e reativação de um referente na memória discursiva dos
interlocutores. Elas atuam como forma de remissão a elementos ante-

155
Linguística Textual

riormente apresentados no texto ou sugeridos pelo co-texto precedente,


possibilitando a reativação na memória do interlocutor, ou seja, na alo-
cução ou focalização na memória ativa deste.

Diante disso, podemos dizer que as nomeações atribuídas ao pre-


sidente Barack Obama, em primeira instância, constituem-se em estra-
tégias de ativação desse referente, veiculando informação nova. Depois
de tais formas serem repetidas, reintroduzidas várias vezes no discurso,
elas passaram a constituir estratégias de reativação desse referente, veicu-
lando atributos a ele no limite do dado.

Centramos o foco de análise nas anáforas lexicais, tendo em vista


que, em grande parte das vezes, elas trazem consigo progressão re-
ferencial, exigindo compartilhamento de versões públicas de mundo.
Assim, foi possível apreender os novos olhares, sociocognitivamente
negociados, sobre esse objeto-de-discurso em particular: o presidente
norte-americano Barack Obama.

No Texto 21, podemos observar, na maioria das vezes, o uso de


formas nominais de implicação anafórica, de natureza co-referencial e
recategorizadora, tendo em vista que remetem ao objeto-de-discurso já
textualizado e imprimem ao referente a construção de um novo olhar.
No processo de referenciação do objeto-de-discurso Barack Obama,
destaca-se o uso de formas nominais, dentre elas o uso de descrições
nominais definidas (Dt. + Nome + Modificadores), como em: um afro-
-americano presidente dos Estados Unidos; o democrata Barack Obama.

Segundo Koch (2002), o uso de uma descrição definida implica


sempre uma escolha dentre as propriedades ou qualidades capazes de
caracterizar o referente. Tal escolha se dá em virtude do contexto e, so-
bretudo, é determinada pelo querer-dizer do autor. Ainda, de acordo
com a autora, trata-se da ativação, dentre os conhecimentos pressupos-
tos como partilhados com o(s) interlocutore(s), de traços do referente
que o autor procura ressaltar (KOCH, 2002).

156
Referenciação Capítulo 13

No caso do objeto-de-discurso Barack Obama, observamos duas


ancoragens para o uso de formas nominais de implicação anafóricas,
que estão ligadas às intenções que o autor pretende ressaltar no texto:

ӲӲ Formas nominais de implicação anafórica que focalizam a ori-


gem étnica do objeto-de-discurso:

Enfim, nessa reta final, os eleitores de Barack Obama simples-


mente não estão acreditando que podem ser testemunhas de um fato
histórico, como muitos analistas não cansam de repetir por aqui, da
eleição de um afro-americano presidente dos Estados Unidos.

ӲӲ Formas nominais de implicação anafórica que focalizam a ori-


gem política do objeto-de-discurso:

Esse favoritismo do democrata está se repetindo em boa par-


te dos Estados Unidos.

Assim, ao referenciar o objeto-de-discurso por meio de descrições


definidas – candidato democrata; afro-americano presidente dos Estados
Unidos –, as formas nominais de implicação anafórica cumprem sua fun-
ção de especificar o referente e, além disso, operam, de forma significati-
va, na introdução do ponto de vista do autor, recategorizando o objeto.
O uso de sintagmas com formas definidas cumpre a função de explicitar
o compartilhamento de uma determinada visão de mundo entre autor e
leitor. Desse modo, a forma definida introduz o já sabido, o já comparti-
lhado entre os interlocutores, o que supõe uma construção sociocognitiva
da referência, com base em uma memória discursiva compartilhada.

Encerramos aqui a unidade que tratou sobre referenciação. A se-


guir, na última unidade deste livro-texto, faremos uma discussão sobre
o lugar do texto na sala de aula, pois os estudos da Linguística Textual
aqui explanados constituem-se em ferramentas teóricas que podem me-
diar a prática docente na disciplina de Língua Portuguesa.

157
Linguística Textual

Implicações para o processo de ensino e aprendizagem:

Os estudos sobre referenciação, principalmente, no que se refere


aos processos anafóricos, são conhecimentos relevantes para o
professor, tendo em vista que a partir de tais conceitos ele po-
derá compreender melhor os textos produzidos pelos alunos e
o percurso de leitura dos mesmos. Tendo uma maior compreen-
são de alguns procedimentos de ativação e de recategorização
de referentes por meios de processos anafóricos, o professor po-
derá orientar melhor os alunos na revisão de textos, bem como
na ampliação da construção de sentidos na prática de leitura.
Vejamos o exemplo de uma produção de texto em situação de
vestibular, que exemplifica o que afirmamos:

Proposta de produção textual: Em fevereiro de 2009, o mundo


ficou espantado com a violência sofrida por uma advogada brasi-
leira em Dübendorf, cidade da Suíça. Ela teria sido agredida e mui-
to machucada por neonazistas, num ataque brutal de xenofobia
(desconfiança, temor ou antipatia por estrangeiros). A jovem advo-
gada teria, inclusive, sofrido um aborto de gêmeos, sendo encami-
nhada para o hospital em estado de choque. Até o presidente Lula
declarou publicamente seu horror diante do acontecido. Poucos
dias depois, contudo, o mundo inteiro se revoltou, ao descobrir que
tudo era uma grande inverdade. Todos nós, certamente, conhece-
mos vários mentirosos. Por que eles existem? O que é, afinal, a men-
tira: doença, problema moral, necessidade irresistível, brincadeira?
Ou o ato de mentir é provocado por todas essas razões?

Produção textual de um candidato:

O fim da mentira

A mentira não pode ser qualificada como uma ação negativa ou


positiva por si só. Para julga-la é necessário analisar o contexto

158
Referenciação Capítulo 13

em que ela ocorre. Há vários motivos que podem levar uma pes-
soa a mentir, porém devemos analisar as circunstâncias que le-
vam a tal atitude e as consequências que dela advêm.

Existem situações em que a mentira se torna necessária e/ou con-


veniente, ganhando um aspecto positivado, seja para evitar o sofri-
mento das pessoas, seja para proteger-se em determinadas ocasi-
ões entre outros casos. Pode-se imaginar um policial, quando fora
de suas funções, abordado por bandidos e questionado sobre sua
profissão. Neste caso é uma questão até de sobrevivência.

Entretanto, sobre um enfoque contrário, muitos males podem


surgir pela prática de mentir.

A sociedade e o próprio indivíduo que mente podem ser preju-


dicados. Há condutas que pela gravidade são classificadas e pu-
nidas como crimes, dada sua repercussão. O falso testemunho, a
falsa denúncia, o estelionato são alguns dos exemplos de condu-
tas que a lei se preocupou em evitar.

Todavia, as relações individuais podem incentivar a mentira ou


manter seu hábito. Pode haver com seu uso uma ingênua brinca-
deira, apenas para descontrair como pode tornar-se compulsó-
ria em pessoas acostumadas a aferir vantagens com facilidade,
tornando-se uma doença.

Logo, a mentira não pode ser classificada sem se analisar cada


caso. Trata-se de um meio, e não um fim em si mesma.

Disponível em: http://educacao.uol.com.br/bancoderedacoes/redacao/ul-


t4657u426.jhtm. Acesso em: 04 de maio de 2009.

Podemos dizer que o texto escrito pelo candidato é coerente e apre-


senta razoável nível de informatividade. O que poderia ser retomado
com o candidato, se fosse uma situação de ensino e aprendizagem

159
Linguística Textual

(além de aspectos mais pontuais de concordância, pontuação,


acentuação etc.), inicialmente, é o título do texto: O fim da
mentira. Isso porque o título apresenta um duplo sentido, haja
vista que o termo fim remete tanto à ideia de finalidade como
à de término. Ao ler o texto, percebemos que o título tem mais
relação com a noção de finalidade, pois o candidato tece consi-
derações sobre os diversos motivos (finalidades) da prática de
mentira. Não descartamos a hipótese de que o duplo sentido
do título possa ter sido criado intencionalmente pelo autor do
texto, porém, se for o caso, ele precisaria ter sinalizado melhor
no texto tal intenção, já que no texto não é mencionada a ques-
tão do término da mentira, mas somente a questão das finali-
dades do ato de mentir.

O candidato introduz o objeto-de-discurso mentira já no título do


texto, uma vez que esse objeto-de-discurso já havia sido previa-
mente apresentado no contexto comunicativo por meio da propos-
ta de produção textual. No decorrer do texto, o objeto-de-discurso
é retomado: ato de mentir, atitude, prática de mentir, exemplos
de conduta, seu hábito etc. Nesse processo de referenciação, ob-
servamos o uso de anáforas co-referenciais sem recategorização,
mas por repetição: a mentira; anáforas lexicais: ela, la; e também
elementos responsáveis pela mudança do referente, as anáforas co-
-referenciais recategorizadoras (aquelas em que não há identidade
estrita com um antecedente textual), como o uso de descrição no-
minal: seu hábito, seu uso; uso de nomes genéricos: condutas; uso
de encapsulamento anafórico: exemplos de condutas.

Enfim, ao ser retomado pelo candidato, o objeto-de-discurso é


recategorizado e isso constitui o próprio ponto de vista do can-
didato, que se propõe a mostrar os diferentes tipos de mentira de
acordo com a finalidade da mesma, conforme podemos observar
em: A mentira não pode ser qualificada como uma ação nega-
tiva ou positiva por si só.

160
Referenciação Capítulo 13

Sobre a maneira como o candidato elabora seu texto, do ponto de


vista da referenciação, podemos dizer que, inicialmente, ele apresen-
ta o objeto-de-discurso como é qualificado pelo compartilhamento
sociocognitivo, na ordem do dado, destacando a ação negativa. Ao
passo que retoma e recategoriza, através de sua orientação argu-
mentativa, ele consegue ir apresentando novos olhares para esse
objeto-de-discurso. Contudo, esses novos olhares também têm uma
ancoragem na memória discursiva dos interlocutores daquela situa-
ção comunicativa. Para exemplificar nossa afirmação, tomemos como
exemplo a afirmação de que é possível mentir por questões de sobre-
vivência: Existem situações em que a mentira se torna necessária e/
ou conveniente, ganhando um aspecto positivado, seja para evitar
o sofrimento das pessoas, seja para proteger-se em determinadas
ocasiões entre outros casos. Pode-se imaginar um policial, quando
fora de suas funções, abordado por bandidos e questionado sobre
sua profissão. Neste caso é uma questão até de sobrevivência.

A partir dessa textualização do candidato, podemos observar o uso


do argumento de que a mentira é utilizada como uma estratégia
de sobrevivência. Esse argumento é compartilhado sociocognitiva-
mente por indivíduos que moram em centros urbanos, onde a vio-
lência leva à autodefesa e, portanto, a mentir por sobrevivência. Em
resumo, podemos dizer que as demais formas de se compreender a
mentira, propostas pelo candidato, são construtos sociocognitivos
e historicamente situados que são introduzidos e ressignificados na
discursivização do candidato. Por fim, observamos também que, ao
final de seu texto, ele retoma coerentemente seu ponto de vista:
Logo, a mentira não pode ser classificada sem se analisar cada
caso. Trata-se de um meio, e não um fim em si mesma.

Desse modo, ao seguir uma mesma proposta, cada candidato tex-


tualizou diferentemente o seu texto, fazendo isso a partir de suas
práticas sociocognitivas e historicamente situadas. Para cumprir
seus propósitos discursivos, os candidatos inseriram em seus textos

161
Linguística Textual

títulos que estabelecem relação intertextual com outros textos, já anco-


rados na memória discursiva dos interlocutores. Vejamos outros títulos
dados a seus textos pelos candidatos: Em Mentira tem perna curta, a in-
tertextualidade ocorre com o dito popular; já em Atire a primeira pedra,
aquele que nunca mentiu! observamos um intertexto com o texto bí-
blico; já o título Mentir ou não mentir? pode estar relacionado à famosa
fala de Hamlet, personagem criada por William Shakespeare: Ser ou não
ser, eis a questão; por fim, no título As mentiras: mais quatro anos, te-
mos uma referência à política com enfoque nas discussões ligadas a es-
cândalos financeiros, como, por exemplo, a chamada CPI do Mensalão.

Ressaltamos a importância de que o professor, nas práticas de pro-


dução textual escrita, chame a atenção dos alunos com relação ao
estabelecimento de títulos em seus textos, uma vez que o título não
é meramente ilustrativo, mas uma forma de materializar os sentidos
que se desejam produzir, pois é a “porta de entrada” do tema que será
tratado no texto. Não raras vezes, percebemos, nos textos de alunos e
tantos outros, que a expectativa que se estabelece a partir de deter-
minados títulos não se confirma com a leitura integral do texto. Sobre
isso, vale destacar também que frequentemente os títulos apresen-
tam informações que remetem a outros textos. Esse caráter intertex-
tual dos títulos pode ser observado nos exemplos de outros títulos de
textos escritos a partir da mesma proposta de texto: Mentira tem per-
na curta; Atire a primeira pedra, aquele que nunca mentiu! Mentir
ou não mentir? As mentiras: mais quatro anos.

Ao analisar juntamente com seus alunos a produção escrita destes,


o professor também pode chamar a atenção para os efeitos textuais
e discursivos obtidos pela retomada dos objetos-de-discurso me-
diante anáforas co-referenciais recategorizadoras. Tradicionalmente
visto apenas como uma forma de ‘enriquecer o texto’, o uso de sinô-
nimos, parassinônimos, nomes genéricos, encapsulamentos anafó-
ricos, na verdade, promove ressignificações dos referentes, além de
fazer o texto progredir.

162
Referenciação Capítulo 13

Leia mais!
Para aprofundamento dos estudos sobre gêneros do discurso/textuais,
recomendamos a leitura dos textos:

MARCUSCHI, L. A. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In:


DIONISIO, A. P.; MACHADO, A. R. BEZERRA, M. A. Gêneros textu-
ais e ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002, p. 19 – 36.

RODRIGUES, R. H. Os gêneros do discurso na perspectiva dialógica da


linguagem: a abordagem do Círculo de Bakhtin. In: Meurer, José Luiz;
Bonini, Adair, MOTTA-ROTH, Désirée (Org.). Gêneros: teorias, méto-
dos, debates. São Paulo: Parábola, 2005, 152-183.

Sobre hipertexto recomendamos a leitura do livro:

GOMES, Luiz Fernando Hipertexto no cotidiano escolar. São Paulo:


Cortez Editora, 2011.

Para ampliar o estudo da noção de multimodalidade, sugerimos a


leitura do artigo Enfrentando desafios no campo dos estudos do texto, de
autoria de Anna Christina Bentes, Paulo Ramos e Francisco Alves Fi-
lho, publicado no livro Linguística de texto e análise da conversação:
panorama das pesquisas no Brasil (2010).

Para um aprofundamento sobre o conceito de referenciação e de


fenômenos anafóricos, sugerimos o livro: KOCH, I. G. V. Desvendan-
do os segredos do texto. São Paulo: Cortez, 2002.

163
Unidade D
O texto na sala de aula

Garota escrevendo (Henriettie Prowne, séc XIX)


Nas três unidades anteriores, apresentamos a origem da Linguís-
tica Textual e seus desdobramentos teóricos e discutimos os diferentes
conceitos de texto; abordamos o conceito de texto à luz dos estudos da
textualidade e o conceito de texto à luz dos estudos enunciativos. Esses
tópicos são relevantes quando abordamos os estudos científicos do texto
nessa disciplina e quando pensamos na formação linguística dos alunos
do Curso de Letras.

Como esse curso é de formação de professores de Língua Portu-


guesa, outro ponto importante a ser discutido é o lugar e o papel do
texto nas aulas da disciplina Língua Portuguesa, questão que já fomos
discutindo ao longo das Unidades B e C, mais especificamente na parte
das implicações pedagógicas. Nesta Unidade, vamos ver que o texto não
era/é a unidade central de trabalho em sala de aula nessa disciplina e
que o lugar e o papel do texto na sala são norteados pelas concepções
de texto do professor, que balizam diferentes abordagens da disciplina
e, logo, diferentes abordagens de práticas de leitura/escuta e produção
textual. Tudo isso vai acabar se refletindo na concepção de texto que o
aluno vai construir durante seu processo de escolarização e que se tex-
tualiza em suas produções de texto.

Ao final do estudo desta Unidade esperamos que você seja capaz de:

ӲӲ - analisar qual o lugar e o papel do texto nas aulas de Língua


Portuguesa;

ӲӲ - analisar como a concepção de texto do aluno da Educação


Básica é decorrente das práticas pedagógicas da escola e qual
o efeito dessa concepção nos processos de leitura e produção
textual.

Assim sendo, a unidade se encontra dividida em dois Capítulos, em


que discutiremos cada um dos tópicos destacados no objetivo: o lugar
do texto na sala de aula e as concepcões de texto dos alunos.
O texto nas aulas de Língua Portuguesa Capítulo 14

14 O texto nas aulas de Língua


Portuguesa

Se tomarmos a definição de texto como unidade da comunica-


ção discursiva, como lugar e meio da interação, a sala de aula é espaço
de constituição de textos, pois os processos de ensino e aprendizagem
são mediados pela interação professor-aluno, aluno-professor e aluno-
-aluno. Na aula de História, por exemplo, professor e aluno constroem
textos nas interações em sala de aula, interagem com textos didáticos,
filmes etc. Em resumo, podemos dizer que toda a mediação dos conte-
údos/conhecimentos da disciplina e sua aprendizagem efetuam-se por
meio de textos. No dizer de Geraldi (1997, p.23),

[...] qualquer que seja a disciplina objeto de nosso ensino/aprendiza-


gem, ele [o texto] está sempre presente. No sentido que atribuímos
à sala de aula como espaço de interação verbal [e, por essa razão,
diálogo entre sujeitos, professores e alunos, ambos portadores de di-
ferentes saberes] aluno e professor confrontam-se por meio de seus
textos com saberes e conhecimentos. No sentido que atribuímos a
A história da constituição
sujeito, como herdeiro e produtor de herança cultural, alunos e pro- da disciplina de Língua Por-
fessores aprendem e ensinam um ao outro com textos, para os quais tuguesa na escola, suas fi-
nalidades, seus conteúdos
vão construindo novos contextos e situações reproduzindo e multi-
e o texto como unidade
plicando os sentidos em circulação na sociedade. de ensino serão aprofun-
dados nas disciplinas de
Relacionando esse conceito de texto às aulas de Língua Portuguesa Linguística Aplicada.
, hoje o texto assume (ou deveria assumir) ainda outra função, pois,
além de ser a unidade mediadora dos processos interacionais e de
construção do conhecimento, é também unidade de ensino e apren-
dizagem, ou seja, constitui-se também como conteúdo de ensino e
aprendizagem dessa disciplina.

A disciplina de Língua Portuguesa foi introduzida no sistema esco-


lar brasileiro no final do século XIX, época de declínio e saída do currí-
culo escolar das disciplinas de Gramática (do latim), Retórica e Poética.
Soares (2002) salienta que a criação dessa nova disciplina não possi-
bilitou a configuração de novos objetivos e conteúdos, pois houve um
processo de fusão dos conteúdos das disciplinas de Gramática, Retórica

167
Linguística textual

e Poética, que migraram para essa nova disciplina, e com a prevalência


dos estudos gramaticais sobre os de leitura e escrita. Desde as origens da
disciplina de Língua Portuguesa, a escuta, a leitura e a produção textual
(oral e escrita) não se constituíam como a base dos conteúdos de ensino
e aprendizagem; em decorrência, o texto não era a unidade central de
trabalho, uma vez que as práticas de linguagem não eram o foco central
e os estudos gramaticais operacionalizavam-se nos limites da frase.

Na década de 1980, começa a se delinear, inicialmente na acade-


mia, um movimento de análise da função da disciplina de Língua Por-
tuguesa, seus conteúdos e metodologias, alicerçado em “uma concepção
de linguagem e de ensino alternativa à tradicional” (BRITTO, 1997, p.
99). Como resultado dessa reflexão, consolida-se, pelo menos em nível
proposicional e oficial, uma nova proposta de ensino e aprendizagem:
de um ensino gramatical para um ensino operacional e reflexivo da lin-
guagem (BRITTO, 1997), alavancada pelos estudos de autores como
Franchi, Possenti e Geraldi. Nessa proposta, os dois grandes eixos nor-
Os livros O texto na sala teadores dos conteúdos da disciplina passam a ser:
de aula, organizado por
Geraldi (1984), e Portos de
Passagem (1991), de auto- 1) o uso da linguagem, concretizado por meio das práticas de escu-
ria de Geraldi, são obras ta/leitura e produção textual (oral e escrita);
basilares para essa nova
concepção de ensino e
aprendizagem da discipli- 2) a reflexão sobre a linguagem, concretizada por meio das práticas
na de Língua Portuguesa.
O primeiro livro atual- de análise linguística (GERALDI, 1984,1991). Logo, a unidade de
mente é reeditado pela trabalho na sala de aula passa a ser o texto, se, como já dito, tomar-
Editora Ática.
mos o texto na concepção de unidade de interação. Por isso, Ge-
raldi (1993 [1991], p. 105) salienta que “se quisermos traçar uma
especificidade para o ensino de língua portuguesa, é no trabalho
com textos que a encontraremos. Ou seja, o específico da aula de
português é o trabalho com textos”.

Geraldi (1993 [1991]) lembra que, mesmo o texto não tendo a cen-
tralidade nas aulas de Língua Portuguesa, nem por isso ele deixou de es-
tar presente, embora de modo mais marginal, como já dito, e com uma
forma de inserção muito particular, à qual se opõe essa nova proposta
de ensino da disciplina de Língua Portuguesa. Vejamos, então, como era
essa presença do texto na sala de aula.
168
O texto nas aulas de Língua Portuguesa Capítulo 14

Nas aulas de leitura, o texto aparecia como modelo para o aluno,


em vários sentidos:

a) objeto de leitura vozeada (oralização do texto escrito): A reco-


mendação era para que o professor lesse o texto em voz alta
para a classe e, em seguida, chamasse aluno por aluno para ler
trechos do texto. A melhor leitura era aquela que se aproximasse
mais do modelo, ou seja, da leitura do professor;

b) objeto de imitação: O texto era lido como modelo para a produ-


ção dos textos dos alunos ou para falar bem a língua. O objetivo
do texto lido, nesse caso, não era fornecer ao aluno conteúdos
para a produção textual, mas ser modelo de estilo. Os alunos
tinham de se aproximar do estilo dos autores desses textos;

c) objeto de fixação de um sentido: O significado de um texto era


aquele da leitura privilegiada do professor ou de um crítico lite-
rário por ele escolhido. A leitura não era concebida como pro-
dução de sentidos (no plural) com base nas pistas fornecidas
pelo texto e no estudo dessas pistas, mas como uma leitura do
texto. (GERALDI (1993 [1991]), p.106-108).

A análise dessa prática de leitura de textos (normalmente textos literá-


rios ou fragmentos destes) na escola mostra que a concepção de texto que a
sustenta é a de modelo ao qual se deve aderir. Ao interlocutor atribui-se pa-
pel passivo, pois ou o sentido está (somente) no autor, ou no texto produto,
ou em um leitor privilegiado (professor ou crítico literário); o conhecimen-
to e as experiências do leitor, fundantes no ato da interação mediada pela
leitura, são anuladas em favor de uma leitura modelar: de reconhecimento de
significados, de compreensão passiva, e não de produção de sentidos.

No entanto, partindo-se da concepção de linguagem como intera-


ção, consideramos que nem o autor é a fonte única do dizer, nem o leitor
é a fonte única dos sentidos de sua leitura, e nem o sentido está pron-
to e acabado no texto, pronto para ser decodificado. O texto é o lugar
onde o encontro do autor e do interlocutor se materializa e onde se dá a

169
Linguística textual

negociação dos sentidos. Além disso, textos de diferentes gêneros apre-


sentam-se ao leitor como possibilidades de interação diferentes, pois a
pessoas escutam/leem para aprender (textos didáticos), para se orientar
no espaço (textos de sinalização), para se informar (textos jornalísticos),
para se entreter (textos ficcionais), para ter notícias de amigos (cartas,
e-mails), para selar acordos (contratos) etc. Essas diferenças, também
marcadas na textualização, requerem práticas de ensino e aprendizagem
de leitura que levem em conta essa diversidade.

A análise das práticas escolares demonstrou que a descontextuali-


zação e a falta de sentido das atividades de leitura também norteava as
atividades de produção textual, além de ser, muitas vezes, uma atividade
bastante periférica em face dos outros conteúdos. Talvez se possa afir-
mar que foi nas atividades de escrita que o texto mais se distanciou da
concepção de lugar de interação para a compreensão de determinado
espaço a ser preenchido com palavras. Ainda nos falta um estudo mais
aprofundado para entender todas as razões do distanciamento do texto
como atividade de interação nas aulas de produção textual, mas algu-
mas hipóteses podem ser levantadas:

Embora, muitas vezes, a) a prevalência dos estudos gramaticais, que sempre foram vistos
o professor justifique
que ensina categorias como os “verdadeiros conteúdos da disciplina de Língua Por-
gramaticais para que o tuguesa”: Essa prevalência pôs o ensino da produção de textos
aluno aprenda a escre-
ver melhor. como uma atividade menos importante na escola, logo, muito
menos focada pelo professor;

Não estamos defendo a b) os limites dos estudos gramaticais: De modo resumido, podemos
desconsideração dessas dizer que as unidades de trabalho da gramática são a palavra e a
questões; o que que-
remos mostrar como oração. Esse limite imposto pelo objeto fez com que o olhar do
equivocada é a cen- professor também se voltasse para o limite da oração no texto
tralização do processo
ensino e aprendizagem do aluno, o que produziu certos modos de orientar e avaliar
de produção textual os textos, com enfoque prevalente para a correção da norma
nesses aspectos.
padrão, da concordância, da regência e da ortografia, e com a
quase desconsideração dos aspetos ligados à interação e à tex-
tualidade, como progressão temática, adequação do estilo e do
conteúdo do texto ao interlocutor etc.;

170
O texto nas aulas de Língua Portuguesa Capítulo 14

c) a produção e apresentação de modelos de textos: Como fomos


discutindo ao longo deste livro, as textualizações são bastan-
te diversas, resultado das atividades humanas e das condições
sociais e interativas, tipificadas historicamente nos gêneros do
discurso/textuais. Entretanto, na escola, sedimentou-se um
processo de produção escrita centrado em torno de uma ti-
pologia textual (narração, descrição e dissertação) totalmente
desvinculada das atividades efetivas de leitura e escrita fora da
esfera escolar. Essas atividades de redação desconsideram os pa-
râmetros de interação (salvo o aluno escrever esse texto para o
professor de Língua Portuguesa), pois o texto é produzido de
modo asséptico: Esses parâmetros de interação não têm qual-
quer efeito sobre o processo de produção do texto. Ainda, todo
o processo de ensino e aprendizagem volta-se para o produto e
não para o processo de interação e de textualização.

Por essas razões, Geraldi (1993[1991]) estabelece diferença entre


redação e produção textual, que, frise-se, não é uma distinção termi-
nológica, mas conceitual: Na redação, o aluno produz um texto para
a escola; na produção textual, o aluno produz um texto na escola. O
argumento do autor para essa distinção repousa no fundamento de que
como sempre se produz um texto para o outro, a partir de um lugar so-
cial, para dizer-lhe algo e obter sua resposta, na escola, esse parâmetros
devem ser os norteadores do processo de produção textual, cabendo ao
professor o papel de mediador e de leitor privilegiado (mas não único)
do texto do aluno. Já na redação escolar, como esses parâmetros não
são norteadores dos textos dos alunos, normalmente “há muita escrita
e pouco texto (ou discurso)” (1993 [1991, p.137). Nas palavras do autor,

Conceber o texto como unidade de ensino/aprendizagem é en-


tendê-lo como um lugar de entrada para este diálogo com outros
textos, que remetem a textos passados e que farão surgir textos
futuros. Conceber o aluno como produtor de textos é concebê-lo
como participante ativo deste diálogo contínuo: com textos e com
leitores. Substituir “redação” por produção de textos implica admitir
esse conjunto de correlações, que constitui as condições de produ-
ção de cada texto, cuja materialização não se dá sem “instrumentos

171
Linguística textual

de produção”, no caso, os recursos expressivos [recursos linguísticos]


mobilizados em sua construção. (GERALDI, 1993[1991], p. 22).

d) a escrita como treino: A escrita como treino prévio para o domí-


nio da produção escrita também norteou as atividades de ensi-
no, como uma espécie de estágio ordenado necessário para que
o aluno pudesse aprender a escrever: primeiro aprender e trei-
nar as letras, as sentenças, os parágrafos, como condição prévia
necessária, para depois aprender a produção textual. Essa mes-
ma visão baliza muitos professores de línguas estrangeiras, que
afirmam que não podem trabalhar com atividades de escuta,
leitura e produção nas fases iniciais, pois seus alunos ainda não
têm domínio da gramática da língua, que é necessária, segundo
visão deles, para aprender a falar e escrever. No entanto, Bakhtin
(2003 [1979) diz que nós não aprendemos uma língua por meio
de palavras e orações isoladas, mas por meio dos enunciados
(textos), nos processos interacionais. Dessa percepção equivo-
cada temos como decorrência muitos exercícios de aprender a
escrever (por exemplo, preencher lacunas com dadas palavras,
escrever frases ou parágrafos a partir de um dado comando) e
poucas atividades de produção de textos.

Essa visão de necessidade de etapas prévias para a aprendizagem da


produção escrita reflete-se também na leitura e na alfabetização. Como
consequência, apresentam-se ao aluno textos acessíveis (sejam livros de lite-
ratura, sejam livros didáticos), o que significa, na maioria das vezes: redu-
ção da riqueza lexical dos textos, redução da complexidade sintática, com
a prevalência de frases simples, redução da complexidade semântica e dos
processos de textualização de um modo geral. Todos esses processos de
Poderíamos dizer, em últi-
ma análise, que há uma redução da configuração composicional, semântica, sintática e lexical dos
redução dos princípios de textos têm como resultado a apresentação, ao aluno, de textos assépticos e
interação e dos princípios
de textualidade. Por essas sem relação com os textos efetivamente produzidos nas interações sociais.
razões, são modelos de
textos que não servem
para a interação. A exposição do aluno a esses textos para as atividades de leitura e
produção textual faz com que o discente construa uma concepção de
texto que não é a de meio, lugar de interação, mas de estruturas textuais
vazias a serem preenchidas com palavras, sem relação com a possibi-

172
O texto nas aulas de Língua Portuguesa Capítulo 14

lidade de interação. Por isso, Geraldi (1993[1991], p.137) afirma que


os textos produzidos por alunos expostos a esses modelos de textos têm
muita escrita e pouco texto. O autor, nos livros O texto na sala de aula
e Portos de passagem, analisa textos de alunos que claramente revelam
marcas dessa concepção de texto. Vamos ver um caso semelhante no
próximo capítulo.

173
O que é texto para o aluno? Capítulo 15

15 O que é texto para o aluno?


Para demonstrar a situação descrita no capítulo anterior, inicial-
mente, vamos analisar dois textos, retirados do artigo A produção textu-
al do aluno antes e depois do contato com a cartilha: um caminho de volta
(2003), de autoria de Noris Eunice Pureza Duarte.

Texto 22

Transcrição do texto:

um dia o rafael viu o amigo que se

cama Pedro Julho o Rafael

comvidou o Pedro Julho para

brimcar no parque de diverçoes

i ai o rafael dise sim vamos

na montainha rusa e depois

eles foram no trem fantasma depois

eles foram para a casa descansar

e depois éra ora de aumosar

e depois éra ora de ir para a

escola e os dois na escola o que

vose aicha de a gente brimcar no

recreio em rafael sim nos vamos

brimcar no recreio i chegou a

hora do recreio e a profefora deichou

eles irem pro recreio i ai eles

brimcaram no recreio e depois

eles foram para a casa!

175
Linguística Textual

Inicialmente, levantaremos algumas das condições de produção desse


texto, fornecidas pela autora do artigo: ele foi produzido por uma criança de
classe média na pré-escola, antes da aprendizagem formal da alfabetização,
e é resultado de processos de textualização de relatos de experiências vividas
e de histórias, que as crianças eram estimuladas a fazer. No texto o aluno en-
gaja-se em um projeto discursivo, como resposta à solicitação da professo-
ra, e relata aos colegas e à professora como foi o dia de duas crianças, Rafael
e Pedro Júlio. A história narrada pelo aluno focaliza três momentos do dia
das crianças: no período da manhã, no parque de diversões; no período do
almoço, em casa; e no período da tarde; na escola. Observamos que a crian-
ça produz um texto com uma história com bom grau de informatividade,
com progressão temática, com introdução, inclusive, do discurso das perso-
nagens. Do ponto de vista formal, falta-lhe ainda domínio da pontuação, da
acentuação, da paragrafação, do modo de introdução do discurso relatado
no texto escrito e de algumas relações fonema-grafema. Ainda percebemos
forte influência da oralidade no texto: Por exemplo, os mecanismos coesi-
Na disciplina de Psicologia vos e aí; e depois são próprios dos textos orais, onde estabelecem a sequen-
educacional: desenvolvi-
ciação temporal entre partes narradas de uma história.
mento e aprendizagem
será discutido o conceito
de Vygostky de mediação,
Certamente, há ainda um caminho de aprendizagem a ser percorri-
bem como seu papel nos
processos de ensino e do pela criança, que é o domínio dos aspectos ligados à modalidade es-
aprendizagem da criança.
crita dos textos. Há, portanto, o papel de mediação do professor, como
agente de aprendizagem daqueles aspectos da textualização escrita que o
aluno ainda não domina. Entretanto, percebemos que a criança efetiva-
mente engajou-se em um projeto discursivo proposto pela professora e
produziu um texto com um bom nível de legibilidade; relaciona-se com
o texto escrito como meio de interação com o outro e se responsabiliza
pelo seu dizer, o que faz emergir uma forte presença autoral no texto.

Comparemos, agora, esse texto com o que se segue:

Texto  23

 Transcrição do texto:

176
O que é texto para o aluno? Capítulo 15
O rato e o menino

O menino não gosta do rato.

O menino esmagou o rato.

O menino matou o rato.

O menino tropesou no pau e esmagou o rato.

O menino levou o rato pra rua.

O rato ficou triste.

O menino sentiu pena do rato.

O menino ficou amigo do rato.

O menino cuida do rato.

Passemos agora à apresentação das condições de produção do Tex-


to 23: Ele foi produzido por uma criança de classe média na primeira
série do Ensino Fundamental, na época do aprendizado formal da alfa-
betização. Observemos a textualização que o aluno produziu. Seguindo Os dados referem-se ao
o que reforça Beaugrande (2004 [1997]) a respeito dos princípios de período em que o Ensino
Fundamental era compos-
textualização, não podemos dizer que o que a criança produziu seja um to de quatro ciclos de dois
não-texto, pois esses princípios orientam quaisquer textualizações. No anos, totalizando oito anos
de escolaridade.
caso do texto em questão, o aluno dá uma resposta ao que lhe foi ende-
reçado: escrever um texto e tenta dar conta dessa demanda.

Apesar disso, há problemas de textualização, que afetam a legibili-


dade do texto. Por exemplo, o leitor da história do menino e do rato terá
dificuldades para construir coerência, pois há contradições no que ela
conta: Primeiramente, a criança apresenta a informação de que o meni- Como vimos na Unidade
B, a inferência é um dos
no não gosta do rato e que esmaga e mata o rato, o que levanta o leitor fatores responsáveis pela
à inferência de que o menino matou o rato por não gostar dele. Poste- coerência.
riormente, sem qualquer notificação ao leitor, há a informação de que a
criança tropeçou no pau e esmagou o rato. Essa informação, por sua vez,
pode levar o leitor a inferir que o menino esmagou o rato acidentalmen-
te, o que entra em choque com a hipótese anterior sobre a motivação do
menino. Na sequência, a criança fica amiga do rato e cuida dele, o que

177
Linguística Textual

leva o leitor a ter de inferir que o rato esteja vivo. Ou seja, a leitura do texto
não permite que o leitor construa um mundo textual coerente e o resulta-
do é cômico (ainda que não pareça ter sido essa a intenção do autor).

Segundo Charolles (1988[1978]), também um estudioso da coe-


rência, um texto é coerente quando satisfaz a quatro metarregras de
coerência:

ӲӲ a metarregra de repetição;

ӲӲ a metarregra de progressão;

ӲӲ a metarregra de não-contradição;

ӲӲ a metarregra de relação.

Assim, para que um texto seja coerente para o leitor, é preciso que,
no seu desenvolvimento, não se introduza nenhum elemento semântico
que contradiga um conteúdo posto ou pressuposto por uma ocorrência
anterior, ou dedutível desta por inferência (metarregra da não-contra-
dição). Se essa contradição não for intencional e não sinalizada para o
leitor, ela acarreta problemas de coerência interna no texto, como esta
que se apresenta no texto da criança, pois o rato está morto e vivo ao
mesmo tempo. Esse problema de contradição afeta o levantamento das
inferências no texto, bem como a focalização, que, como vimos na Uni-
dade B deste livro, são elementos importantes para que o interlocutor
construa a coerência do texto.

Quanto aos aspectos linguístico-textuais, observamos a repetição


da estrutura frasal, extremamente simples, e a retomada dos referentes
o menino e o rato pela repetição constante dos termos o rato e o meni-
no, que inicia todas as frases do texto, dispostas uma abaixo da outra.
No entanto, é preciso observar que a criança aprendeu o uso das letras
maiúsculas em início de frases e o uso do ponto para sinalizar o fim
da frase. Além disso, apresenta, no que textualizou, um bom domínio
das relações fonema-grafema (talvez justamente porque haja pouco

178
O que é texto para o aluno? Capítulo 15

texto, pouco discurso, como diz Geraldi (1993[1991)). Apesar disso, o


texto, como dito, apresenta problemas de legibilidade.

As perguntas que se pode e deve fazer são: A criança vê o texto


escrito como lugar de interação com o outro e de mediação de senti-
dos? Que concepção de texto escrito essa criança construiu? E, ainda,
de onde vem essa concepção de texto? Para responder a essas questões,
temos de analisar não apenas a situação imediata do texto, escrever
um texto a partir de uma gravura, mas analisar a situação mais ampla:
de modo especial, que textos estão mediando a aprendizagem da es-
crita dessa criança.

Segundo Duarte (2003), o processo de alfabetização desse aluno


foi mediado por uma cartilha elaborada pelas professoras da escola, que
privilegia: a gradação das dificuldades de aquisição da escrita – “pri-
meiro as vogais e depois as consoantes, distribuídas em 42 graus de di-
ficuldades (dentre eles os dígrafos, os encontros consonantais, os sons
do X)” (DUARTE, 2003) –; a exploração do aspecto visual, através de
propostas para que as crianças desenhem determinadas cenas, ilustrem
determinadas frases propostas para leitura ou escrevam palavras a par-
tir de gravuras; a segmentação de palavras em sílabas e recomposição
dessas sílabas em palavras. De modo geral, a unidade de trabalho para
essas atividades é a frase, com a inclusão de alguns textos para leitura,
como os que seguem:

Caio viu o cavalo. A horta


Ele dá comida ao cavalo.
O cavalo come, come. Helena mora no sítio
(apud DUARTE, 2003) Lá, ela cuida da sua horta
Helena cultiva legumes e
verduras
Sua horta é muito bonita
Helena só come legumes e
verduras
de sua horta
Como Helena é educada!
(apud DUARTE, 2003)
179
Linguística Textual

Mesmo uma leitura apressada mostra que esses textos foram


construídos para uma finalidade específica, que é o trabalho com
a relação entre fonemas e grafemas. São textos fabricados para esse
fim; não têm uma proposta interativa que não seja treinar uma dada
relação fonema-grafema. Além disso, são norteados pela concepção
Não negamos a neces- equivocada de que há necessidade de simplificação das complexi-
sidade e a importância dades linguístico-textuais para a criança aprender a escrever. Esses
de se trabalhar com as
relações fonema-grafe- textos não preenchem uma função interativa e se apresentam abso-
ma, que são constitutivas lutamente pobres no que se refere à informatividade, à intertextua-
do texto escrito; o que
questionamos é o modo lidade, à organização textual e frasal, à coesão e à referenciação, à
como esse trabalho é seleção vocabular etc.
conduzido.

Agora, podemos responder as questões levantadas anteriormente.


A criança se apropriou de uma concepção de texto dada pela escola: o
texto não como lugar de interação e mediação, mas como espaço em
branco para ser preenchido com frases soltas.

Queremos ressaltar que não culpamos o professor em particular


pela situação descrita neste capítulo, mas a concepção vigente de alfa-
betização e de texto da/na escola, que se encontra reproduzida em seu
trabalho. Por isso, por mais que ele tente inovar (no caso, criar uma car-
tilha apropriada para seus alunos), os resultados não são promissores do
ponto de vista de um trabalho de Língua Portuguesa centrado no texto.

Para terminar a discussão desses dois textos, apresentamos a últi-


ma informação sobre eles: Os textos 22 e 23 foram escritos pela mesma
criança. O Texto 22 foi produzido na fase pré-escolar e o Texto 23 no
ano seguinte, na primeira série do Ensino Fundamental. Agora, pode-
mos levantar outra pergunta: O que a criança perdeu acerca da noção de
texto durante seu curto processo de escolarização formal?

Objetivando complementar o que discutimos até aqui, apresentamos


parte dos resultados de pesquisa realizada por Silva (2008) sobre a concep-
ção de texto de alunos do Ensino Fundamental. A pesquisa foi realizada
no ano de 2006, com 21 alunos de uma sétima série do Ensino Funda-
mental de uma instituição de ensino da rede particular de um município

180
O que é texto para o aluno? Capítulo 15

do Estado de Santa Catarina. Um dos instrumentos de pesquisa foi a reali-


zação de entrevista escrita com esses alunos, com vistas à apreensão, entre
outros, do conceito de texto desses alunos. Uma das sete questões postas
para os alunos foi: O que você entende por texto? As respostas, após ana-
lisadas, foram agrupadas em três categorias, conforme quadro a seguir:

O que você entende por texto?

G1

“É uma redação. Uma forma de se comunicar e expressar.”

“É uma forma de se expressar em letras, expressar sentimentos, e


outros.”

“Texto para mim é uma opinião ou expressão de várias frases jun-


tas descrita em um papel.”

“Texto é aonde eu posso me expressar.”

“Explicações onde expresse sentimentos. Exemplo cartas e redações.”

“Uma redação.”

“Redações, onde você pode expressar seus sentimentos.”

“Forma de se expressar em letras.”

G2

“Histórias, poemas, redações etc... Qualquer coisa que tenha mui-


tas palavras.”

“Eu entendo que é um monte de letras que se unem e ficam pala-


vras que as palavras fazem um texto para nós lermos.”

“Um conjunto de frases que sempre trazem algo de bom para nós.”

“São palavras representando histórias reais ou não.”

“Uma redação... uma coisa que você lê ou escreve.”

181
Linguística Textual

Se nos textos 22 e 23 analisamos a concepção de texto do aluno a


partir do texto produzido pelo próprio aluno, agora vamos analisar a
concepção de texto por meio do que ele define como sendo texto.

A partir das respostas dos estudantes à questão O que você entende


por texto?, primeiramente, é possível perceber a incidência relevante da
utilização do termo redação, que reflete a concepção de produção textu-
al ainda vigente na escola.

Nas respostas do primeiro grupo (G1), percebemos a concepção de


texto como expressão do pensamento, uma vez que há um enfoque na
noção de linguagem como forma de expressão, centrando-se na pessoa
do produtor, como podemos verificar no segmento: Texto é aonde eu
posso me expressar. O segundo grupo (G2), por sua vez, materializa uma
perspectiva bastante fragmentada de texto, dividindo-o em unidades
como frases, palavras, revelando uma concepção de texto como partes
que se somam para formar um todo. A resposta a seguir é ilustrativa
dessa perspectiva: Eu entendo que [texto] é um monte de letras que se
unem e ficam palavras que as palavras fazem um texto para nos lermos.

Já o terceiro grupo (G3) de alunos revela uma concepção mais inte-


rativa de texto, uma vez que o texto não é visto como conjunto de pala-
vras e frases, mas como produto cultural que circula socialmente e como
meio, lugar de interação com o outro, como podemos perceber nas duas
respostas que seguem: Histórias e documentários de jornais e revistas;
e Uma história que conta alguma coisa que alguém contou ou a própria
história. Nesse caso, podemos nos perguntar se essa concepção de texto
foi construída pelos alunos a partir do ensino operacional e reflexivo
da linguagem pautando o trabalho de professores, ou se é resultado das
práticas de letramento nas quais se encontram inseridos esses alunos.

Ao contemplar a voz de alunos de Ensino Fundamental sobre a


concepção de texto na esfera escolar, consideramos que as concepções
(vozes) dos estudantes refletem (e refratam) as concepções de texto
que estão inseridas no âmbito da escola, e, mais precisamente, na dis-
ciplina de Língua Portuguesa.

182
O que é texto para o aluno? Capítulo 15

O retrato que apresentamos neste capítulo objetivou mostrar que


concepções de texto ainda medeiam as aulas de Língua Portuguesa. Espe-
ramos que esse capítulo sirva como ponto de partida e porto de passagem
para uma reflexão mais apurada sobre as práticas de ensino e aprendiza-
gem de escuta, leitura e produção textual (oral e escrita) na escola, que
será desenvolvida nas disciplinas de Linguística Aplicada. Fica o convite
para a construção de um novo caminho em sala de aula, com o texto
na sua condição de enunciado e como a unidade efetiva de trabalho do
professor, enfim, a disciplina escolar de Língua Portuguesa concebida a
partir da proposta do ensino operacional e reflexivo da linguagem, apre-
sentada no capítulo anterior.

Leia mais!
Para aprofundamento dos conteúdos tratados nesta Unidade, indica-
mos duas obras seminais que tratam das questões do texto nas aulas
de Língua Portuguesa,ambas de autoria de João Wanderley Geraldi.

GERALDI, J. W. Portos de passagem. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes,


1993[1991].

______. (Org.). O texto na sala de aula: leitura e produção. 3. ed. Cas-


cavel: Assoeste, 1985 [1984]. (Atenção: como já dito, esta obra hoje é
editada pela editora Ática.)

183
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo deste livro, aprofundamo-nos nos estudos da disciplina de
Linguística Textual: conhecemos o histórico da disciplina, os conceitos
de texto que emergiram em suas diferentes fases e vertentes, apropria-
mo-nos do conceito de textualidade, correlacionamo-no ao conceito de
gêneros do discurso e abordamos cada um dos princípios de textualidade
para entender o texto à luz desses princípios. Vimos o funcionamento
de todos esses conceitos por meio da análise de textos, momento em
que pudemos observar e apreender o modo de textualização de cada um
dos princípios. Além disso, pudemos compreender a importância desses
conceitos para a formação teórico-metodológica do professor de Língua
Portuguesa. A correlação entre conhecimento teórico e conhecimento
didático foi estabelecida na leitura e discussão das implicações pedagó-
gicas apresentadas ao final dos capítulos.

Também discutimos a noção de texto à luz dos estudos da enunciação,


por meio dos estudos acerca dos gêneros do discurso, do hipertexto, da
multimodalidade e da referenciação. Observamos como a noção de texto
torna-se diferente a partir da consideração desses aspectos constitutivos
dos textos.Tal qual na Unidade B, após a apresentação dos conceitos te-
óricos, exemplificados a partir de textos, tratamos da relação entre esses
conteúdos e a prática pedagógica.

Discutimos ainda o lugar e o papel do texto nas aulas de Língua Portu-


guesa: como o texto foi visto como (não-)conteúdo de ensino, como se esta-
beleceram as práticas de leitura/escuta e produção textual na escola, como
as concepções de texto com as quais a escola trabalha são apropriadas pelos
alunos conceitualmente (saber dizer o que é texto) e procedimentalmente (ler
e escrever textos). Assim sendo, se a escola trabalha com uma concepção de
texto dissociada dos processos interacionais, o aluno não se apropria da escri-
ta e do texto como meio e lugar de interação.

Finalmente, vimos uma nova proposta para a disciplina de Língua


Portuguesa, o ensino operacional e reflexivo da linguagem, que toma as
práticas de escuta, leitura e produção textual (oral e escrita) como efetivos
conteúdos de ensino e aprendizagem. E vimos que, nessa proposta,
o texto, tomado na sua condição de enunciado, é o ponto de partida e
chegada dos processos de ensino e aprendizagem.

Assim, esperamos que, por meio deste livro, tenhamos tido a opor-
tunidade de estabelecer uma interação prazerosa e proveitosa e que o
diálogo aqui iniciado tenha continuidade em muitos outros momentos.

Os autores
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