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O narrador invisível

— Uma história que se conta a si mesma —, eis a frase de ordem que Lubbock formula em
1921 com a publicação do seu estudo sobre o foco narrativo. Ainda que dogmática, essa formulação
é árdua e foi conquistada depois de um longo processo que envolveu a análise de romances de
Tolstói, Flaubert, Thackeray, Dostoiévski, Richardson, Balzac, Dickens e, claro, a sua linha de chegada,
Henry James. O interesse de Lubbock pelo autor de Roderick Hudson vinha de longa data. Já em 1909
declarava num artigo escrito para o Times Literary Supplement que os prefácios jamesianos deveriam
ser considerados o primeiro grande acontecimento na história do romance. Tamanho entusiasmo
levará o crítico a ruminar suas ideias e relançá-las, aprofundadas, no livro de 1921.
Para acompanharmos o desenvolvimento das teorias propostas por Lubbock, devemos
considerar a distinção que ele faz entre contar (telling) e mostrar (showing). No primeiro caso, a
intervenção do narrador é evidente; no segundo, qualquer intervenção deve desaparecer para que
a história possa exercer sua autonomia. Tomemos como exemplo um velho sábio que, ao redor de
uma fogueira, divide suas experiências com ouvintes mais jovens. Por mais interessantes que sejam
as aventuras narradas, elas jamais sobreviverão independentes, sem a voz explicativa do narrador,
uma vez que há uma associação lógica entre quem conta e o que é contado. O romancista que
adota tal método, interferindo na trama para explicar, julgar e conduzir, está
(p.21)
fazendo uso do telling. Para Lubbock, Thackeray é um belo modelo dessa tendência porque, "longe
de tentar esconder-se, adianta-se, chama a atenção do leitor e faz-lhe mais sinais do que os
necessários. 15

Agora vamos tirar a plateia de perto do fogo e colocá-la num cinema qualquer. Na maioria
dos filmes, o narrador fica escondido atrás da câmera e das palavras dos personagens. O discurso
sobressai ao orador. E o público, principalmente quando mergulhado no "sonho ficcional", esquece-
se de quem conta a história para se concentrar no que está sendo contado. E o showing. Em termos
literários, o James de Lubbock, que nos seus melhores momentos proporciona um "espetáculo para
o leitor, sem nenhum intérprete intruso, nenhum transmissor de luz, nenhum condutor de
significados" 16, faz isso de modo exemplar.
Além da distinção entre contar e mostrar, Lubbock observa as diferentes formas de
apresentar o enredo. Nesse momento, ele se refere à CENA e ao PANORAMA17. É através da CENA
que o narrador, estrategicamente oculto, mostra a ação ao leitor. Tudo é relatado em detalhes, há

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largo uso do discurso direto e o tempo da narrativa, mesmo que ilusoriamente, aproxima-se
sobremaneira do tempo do leitor. Vejamos um exemplo extraído de Germinal. É válido observar que
a cena é conduzida pelo pretérito perfeito, o tempo narrativo por excelência, embora isso não seja
uma regra e haja inúmeras formas de variação:

A mulher, que ficara calada por algum tempo, falou como se estivesse saindo de um sonho.
— Se ao menos o que os padres dizem fosse verdade, os pobres deste mundo seriam os ricos do
outro...
Uma gargalhada interrompeu-a. Até as crianças davam de ombros, transformadas em incrédulas
pelas mudanças do mundo, rindo do céu vazio, ainda que cultivando sempre o secreto temor dos fantasmas
da mina.
— Ora, ora! os padres... — exclamou Maheu. — Se eles acreditassem nisso comeriam menos e
trabalhariam mais para terem garantido um bom lugar lá em cima... Nada disso. Quem morre acabou.
A mulher soltou suspiros enormes.
— Ah! Meu Deus, meu Deus... 18

(p.22)
No fragmento, como se pôde perceber, algumas ideias pertinentes à religião e à sociedade
foram lançadas de forma simplória, porém incisiva. Ao contrário da mulher que termina invocando
o seu Deus (e aqui também poderíamos avaliar uma questão de gênero), as crianças, em certa
medida, e a totalidade dos homens professam a descrença como uma válvula de escape para a sua
miserável condição. De quem são essas opiniões? Emile Zola, a pessoa física que compôs a obra,
pode ser de imediato descartada, embora sua postura no que toque religião e sociedade seja bem
conhecida. Entretanto a obra possui um outro autor, um autor ideal, feito de palavras, que mais
tarde, como veremos, Wayne Booth chamará de autor implícito. Esse autor, pelo menos na cena
apresentada, consegue ficar invisível. Os homens são descrentes, a mulher reluta, os padres não
prestam, mas nada disso é verdadeiro ou falso porque nada é defendido pela "autoridade onisciente"
que organiza o que foi narrado.
O contrário acontece no PANORAMA. Por mais discreto que seja, como é o caso do narrador
de Zola, ele acaba aparecendo a fim de resumir e contar os fatos para o leitor. Os detalhes ficam de
lado, predomina o discurso indireto e, em alguns casos, um longo período da narrativa se passa com
a leitura de poucos parágrafos. Se a CENA se caracteriza pelo pretérito perfeito, aqui teremos um
outro tempo norteador, o pretérito imperfeito, tempo dos hábitos e dos costumes:

No começo houvera muita rivalidade entre Zacharie e Etienne. Uma noite quase chegaram a vias de
fato, mas o primeiro, de boa índole e disposto apenas a gozar a vida, voltou logo às boas diante do
oferecimento de uma cerveja, vendo-se obrigado a reconhecer a superioridade do forasteiro. Até Levaque
desanuviara o semblante e conversava sobre política com o gradador, que, segundo ele, era cheio de ideias.

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Entre os homens da empreitada, o que Etienne não tragava era o latagão do Chaval, não que tivessem
discutido, ao contrário, eram até bons camaradas, mas quando brincavam com o outro notava-se a
divergência fundamental que os separava, seus olhos eram como labaredas. 19
Ao contrário do que ocorre no primeiro fragmento de Zola, neste o narrador se vê forçado a
mostrar o rosto e as opiniões sobre o que relata. Embora procure manter o esconderijo ao utilizar
expressões como
(p. 23)
“segundo ele", acaba se traindo no uso de adjetivos e locuções adjetivas (ótimo expediente, inclusive,
para perder a máscara também na confecção de cenas diretas). Quando diz que Zacharie era um
rapaz de "boa índole", não está mostrando, mas contando. Os olhos do narrador são privilegiados,
por isso pode se adiantar no tempo, mas aí, como quer Lubbock, já não temos uma visão dramatizada
em que a história se conta a si mesma.
Ainda avançando nas teorias de Lubbock, não devemos esquecer o tipo de tratamento dado
ao objeto ficcional, que pode ser dramático, quando a apresentação é feita pela CENA; pictórico,
quando predomina o PANORAMA; ou pictórico-dramático, uma mescla dos dois anteriores,
“sobretudo quando a 'pintura' dos acontecimentos se reflete na mente de uma personagem, através
da predominância do estilo indireto livre.” 20
A abordagem de Lubbock, como já vimos, é indispensável para as discussões que teremos
adiante, inclusive porque nega os pressupostos da crítica impressionista, calcada nas relações
históricas e autobiográficas entre autor, obra e sociedade, e procura analisar as possibilidades
estruturais do texto. Seu dogmatismo, entretanto, salta aos olhos quando, por exemplo, desqualifica
Thackeray21 e seu método pictórico para exaltar Henry James22 e seu método dramático. Frases como
"precisa ser contada do ponto de vista de Strether" ou "tudo no romance deve ser dramatizado"
atestam o caráter normativo da obra. Embora abra exceções para certos usos da primeira pessoa,
dando como modelo o estilo de Dickens em David Copperfield, A Técnica da ficção pode ser definida
como uma lenta viagem em busca do narrador invisível e da supremacia da narração em terceira
pessoa, com "personagens refletores", onde até mesmo as situações pictóricas, na medida do
possível, devem ser dramatizadas.
(p.24)

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Notas:
15
LUBBOCK, Percy. A técnica de ficção. São Paulo: Cultrix/EDUSP, 1976, p.76.
16
Idem, ibidem, p. 92.
17
Há quem prefira, em vez de PANORAMA, o vocábulo SUMÁRIO por acreditar que ele seria mais
representativo do significado de summary. Dada a natureza do que será exposto a seguir, optei por utilizar
PANORAMA, tal como aparece na tradução de Octávio Mendes Cajado.
18
ZOLA, Émile. Germinal. Rio de Janeiro: Abril Cultural, 1972, p. 178.
19
Idem, ibidem, p. 147-148.
20
LEITE, Ligia Chiappini Moraes. O foco narrativo. São Paulo: Ática, 1997, p.15.
21 “
Em Vanity Fair, Thackeray não é prudente; seu método, tão raras vezes rigorosamente dramático, tende,
pela própria natureza, a acentuar a autoridade do narrador, e ele se empenha em enfatizá-lo ainda mais. Ele
proclama o fato de que o ponto de vista é seu e não deve ser confundido com o de mais ninguém. E assim se
poderia dizer que seu livro não é completo por si mesmo, não se basta a si próprio; não enfrenta todas as
perguntas que sugere, nem responde a todas elas. Em todo um lado seu há um aspecto inconcludente,
qualquer coisa que afasta o olhar do próprio livro e o dirige para o espaço. É a questão do relacionamento
entre o narrador e a história.” LUBBOCK, Percy, op. cit., p. 77.
22
“Creio que Henry James foi o primeiro autor de ficção que usou todas as possibilidades do método com
sentido e profundidade, e a plena extensão da oportunidade que assim se revela é muito grande.” Idem, p.
109.

(p.86-87)

TENFEN, Maicon. Breve estudo sobre o foco narrativo. Blumenau: Edifurb, 2008, p.21-24.

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