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RESUMO ABSTRACT
Este artigo propõe a teoria do ator-rede para This article proposes a theory of actors’
analisar a formação de políticas públicas, pois network to analyse public politics forma-
ao tratar conjuntamente o processo do orga- tion, as dealing the organization process
nizar em suas características estruturais e rela- in its structural together with the relation
cionais, esta abordagem propicia uma maior characteristics, this approach offers a more
compreensão da gestão como uma realização comprehensive understanding about the
coletiva que integra diferentes atores. Ele é management as a collective accomplish-
constituído fundamentalmente de duas par- ment integrating different actors. It is fun-
tes. A primeira, que é conceitual, apresenta a damentally composed by two parts. The first
abordagem de redes, situando-a na teoria or- is a conceptual one that presents a network
ganizacional e na Administração Pública, e dis- approach positioning it into the organiza-
cute a sua introdução no contexto da gestão tional theory and into the Public Adminis-
pública brasileira, que, em tempos de descen- tration and discuss its introduction in a Bra-
tralização e participação social, necessita de zilian Public Management concept, that, in
uma compreensão do processo de organizar, decentralization and social participation pe-
a partir de uma ótica das relações múltiplas de riod, needs comprehension of the organiza-
atores, aquilo que trata a teoria do ator-rede. tion process from the point of view of actors
A segunda, é de caráter empírico e inicia des- multiple relations, what the actor network
crevendo a metodologia de pesquisa utilizada theory mentions. The second part describes
na análise da formação da política de erradi- the research methodology used on Brazil’s
cação do trabalho infantil no Brasil, como a child labor eradication politics analysis as
ordenação de uma rede de atores, para então the ordering of a actors’ network for then
apresentar o dados como uma narrativa, uma presenting data as a narrative, since they
vez que eles foram analisados discursivamente were discursively analyzed, and in the end,
e, finalmente, tecer algumas conclusões. present some conclusions.
Palavras-chave: políticas públicas, gestão pú- Keywords: Public politics, public administra-
blica, redes. tion, network.
O processo de democratização no Brasil represen- Sob essas características mais plurais, aonde
tou a necessidade de estabelecer uma nova relação o poder é redistribuído e novos atores são incorpo-
entre o Estado e a sociedade, marcada fortemente rados, a gestão pública deve, em termos práticos,
por uma lógica de socialização do poder, traduzida vencer o insulamento burocrático, desatrelar os go-
na Constituição Cidadã, de 1988, como marco legal. A vernos estaduais e municipais do governo central e
partir dela foram definidos novos pressupostos para deixar contagiar-se pela dinâmica política produzida
a gestão pública, através dos pilares da descentrali- pela sociedade. Dentro desse novo contexto, o prin-
zação e da participação social como um claro indi- cípio de um planejamento centralizado tutelado pela
cativo de compartilhamento do poder entre esferas tecnocracia governamental que separa a formulação
de governo e a sociedade, para dar novos rumos à da implementação e, conseqüentemente, a admi-
governabilidade em direção ao desenvolvimento e à nistração da política, necessita ser revisto, pois esta
eqüidade social. é uma visão artificial e as políticas públicas sempre
se realizam na prática, nas ações concretas de atores
O Estado deve se transformar, através de uma dis- que lhes dão forma através de um jogo cotidiano de
tribuição de forças inerentes ao processo democráti- mediação de interesses para construir um projeto co-
co, alterando-se também a condução da gestão de letivo de bem comum.
políticas públicas, baseada em novas relações – des-
centralizadas e participativas –, de maneira a garantir Por isso, é importante refletir sobre novas formas
os preceitos éticos da universalização de direitos. Essa organizacionais ou de organizar a gestão pública no
nova “gestão pública necessária” (KLIKSBERG, 1989) Brasil. Certamente, não se quer aqui abordar a Nova
precisa assim assumir a democracia, o federalismo co- Administração Pública (NAP), que ao transpor princí-
operativo e a participação social como uma prática pios do gerencialismo privado para o setor público,
cotidiana na conquista de direitos, dentro de um pro- manteve a separação entre a administração e a po-
cesso contínuo de vir a ser para ordenar os interesses lítica. A gestão pública brasileira demanda mais por
em face de metas coletivas. um referencial que integre efetivamente essas duas
dimensões para compreender a formação de políti-
No entanto, somente o marco constitucional não cas públicas em suas características processuais de in-
pode por si só traduzir “o dramas cotidianos (indi- ter-relações organizacionais.
viduais e coletivos) numa linguagem dos direitos”
(TELLES, 1994, p. 45) que se efetive em políticas e Assim, este artigo propõe a teoria do ator-rede
práticas concretas. Como lembra essa mesma autora, para analisar a formação de políticas públicas, pois
não se pode negar o avanço na concepção de direitos ao tratar conjuntamente o processo do organizar em
incorporados tardiamente no Brasil, mas também é suas características estruturais e relacionais esta abor-
importante se posicionar criticamente e melhor com- dagem propicia uma maior compreensão da gestão
preender o horizonte de sua legitimidade, pois eles como uma realização coletiva que integra diferen-
ainda estão presos a uma retórica legal e a um dis- tes atores. Ele é constituído fundamentalmente de
curso humanitário e técnico totalmente distantes da duas partes. A primeira que é conceitual apresenta
realidade (TELLES, 1999). a abordagem de redes situando-a na teoria organi-
zacional e na Administração Pública e discute a sua
O desafio está em concretizar esses direitos no introdução no contexto da gestão pública brasileira,
‘espaço vivido’, no locus das relações e das práticas que em tempos de descentralização e participação
sociais. É ampliar a capacidade de ação dentro do es- social, necessita de uma compreensão do processo de
paço público o que exige uma maior reflexibilidade organizar a partir de uma ótica das relações múltiplas
da administração pública a partir do seu acoplamen- de atores aquilo que trata a teoria do ator-rede. A
to à sociedade para articular e dar forma a projetos segunda é de caráter empírico e inicia descrevendo a
mistos. Para isso, é preciso mobilizar nesse espaço os metodologia de pesquisa utilizada na análise da for-
princípios de igualdade, liberdade, solidariedade, mação da política de erradicação do trabalho infantil
participação e diversidade, aplicando-os àquilo que no Brasil como a ordenação de uma rede de atores
deve e pode ser universal como um exercício contí- para então apresentar o dados como uma narrativa
uma vez que eles foram analisados discursivamente, Contudo, como lembra Dias (1995), além de se-
e finalmente tecer algumas conclusões. rem consideradas como uma forma organizacional,
as redes têm sido abordadas também como instru-
Redes organizacionais: um prólogo mentos que viabilizam a comunicação e como meca-
nismos de poder. E, uma possível compreensão das
Nos últimos anos, a abordagem de redes tem sido redes como uma forma organizacional onde o poder
introduzida como uma metáfora norteadora para se realiza através da comunicação é particularmente
delinear a análise organizacional. De maneira geral, interessante para a análise organizacional contem-
na literatura afirma-se que as redes orientam rela- porânea quando se aventura pensar “a produção da
ções mais horizontais no processo de coordenação organização em vez da organização da produção”
facilitando à articulação de diferentes atores organi- (COOPER; BURRELL, 1988, p. 106).
zacionais empenhados no processo de gestão.
A abordagem das redes de política na administração
Por exemplo, Powell (1987, 1990) caracteriza as pública
redes como uma nova configuração organizacio-
nal constituindo um novo mecanismo na alocação Especificamente, na Administração Pública, o pro-
e controle de recursos diferente da hierarquia e do duzir da organização e da gestão através de redes
mercado. As redes seriam arranjos organizacionais também tem ganhado à atenção de diversos autores
híbridos e contribuiriam para a gestão na sua bus- nas últimas décadas. Nesta área, a abordagem de re-
ca por cooperação, aprendizagem, disseminação de des foi introduzida por estudos no campo da ciência
informações, conhecimento e inovação, por isso, a política, ainda nos anos 1980, através das denomina-
agenda de pesquisa em administração deveria ocu- das policy networks ou redes de políticas.
par-se dessas novas formas cooperativas e explicar
como elas se caracterizariam em formas organiza- Para autores como Kenis e Schneider (1991), as
cionais alternativas à burocracia e ao mercado (PO- redes de política permitem compreender o policy
WELL, 1990). making sob uma perspectiva de atores múltiplos in-
ter-relacionados privilegiando uma estrutura mais
Por sua vez, Loiola e Moura (1997) compreen- horizontal que se distancia da lógica da hierarquia
dem que a concepção de uma configuração orga- e da centralidade do Estado na condução do proces-
nizacional em rede surge como estratégia para as so de gestão de políticas públicas. Para eles, as redes
organizações públicas e privadas enfrentarem o de política são formas “relativamente estáveis e de
atual ambiente de turbulências e incertezas da con- avanço das relações em que recursos dispersos são
temporaneidade. Dentro dessa perspectiva, as redes mobilizados de modo a orquestrar a ação coletiva em
seriam formadas como uma malha de relações, por direção a solução de um problema comum.” (KENIS;
entre fluxos e nós, compondo um novo arranjo or- SCHNEIDER, 1991, p. 36).
ganizacional, que ao incorporar em si dimensões tais
como interdependência e integração, responderiam Já para O’Toole (1997), as redes de política são
à complexidade dos problemas de gestão e de coor- formadas pelo desenvolvimento de coalizões mais
denação das organizações neste início de século. fortes e pela localização de alianças-chave de manei-
ra a serem incorporadas pela administração pública
O que essas abordagens acima destacam, como como uma estrutura de coordenação essencial para
outras tantas, é a compreensão de que as redes ca- lidar com a complexidade crescente na gestão de
racterizam-se como novas formas organizacionais; políticas. Enquanto, Klijn (1996) compreende a rede
uma nova configuração organizacional, ou, como como uma estrutura de gestão na qual políticas são
sugere Gulati (1998), um ‘novo emaranhado estrutu- dispostas em cenários complexos de maneira que a
ral’. Todas elas trazem implicitamente em si a tradi- “mudança dos padrões de relação entre atores inter-
cional necessidade da administração e da teoria or- dependentes, tomam forma em torno de problemas
ganizacional de estabelecer e delimitar uma ordem políticos ou programas” (KLIJN, 1996, p. 111).
em face da incerteza à medida que padrões e regras
de comportamento precisam ser institucionalizados Por sua vez, Agranoff e McGuire (2001, p. 677) sa-
nas e para as organizações. lientam que as redes de política são estruturas nas
quais as políticas públicas e a governabilidade são uma homogeneidade que desconsidera diferentes
ordenadas cooperativamente a fim de dar conta possibilidades, naquilo que Latour (1997) denomina
dos problemas de interdependência e complexidade como circulação compulsória, ou seja, a compreen-
inerentes às relações intergovernamentais. A rede é são das redes como seqüências rigorosas de ligações
um modelo para a cooperação intergovernamental que descrevem apenas pequenos conjuntos de as-
sendo “constituída por vários atores e, nenhum deles sociações, e é incapaz de integrar a análise micro à
possuindo o poder de determinar a estratégia do ou- macro.
tro” (AGRANOFF E McGUIRE, 2001, p. 677).
As redes e a gestão pública no Brasil
Nesta perspectiva, as redes de política têm sido
compreendidas como uma estrutura organizacional Dar conta da complexidade e da inter-relação de
em que os serviços e os bens públicos são planejados, diferentes atores na gestão de política públicas, este
concebidos, produzidos e ofertados de maneira a tem sido o mote para a introdução da noção de redes
compartilhar objetivos, integrar estruturas, desenvol- na área de Administração Pública no Brasil. Essa pers-
ver compromissos e gerar interação (McGUIRE, 2002). pectiva possibilitaria a integração de múltiplos ato-
Ou, como propõe Fleury (2002, p. 243), “a complexi- res na ordenação de uma ação coletiva direcionada
dade dos problemas sociais, a diversidade de atores e ao bem comum, o que é extremamente pertinente,
os interesses conflitivos existentes [...] são fatores que pois as mudanças introduzidas pela Constituição Fe-
impulsionam e explicam o florescimento das redes de deral de 1988, baseadas nos pressupostos da descen-
políticas”. tralização e da participação social, delinearam novas
direções, mais complexas e múltiplas, na gestão de
Deve-se salientar, no entanto, que essas aborda- políticas.
gens buscam compreender as redes como um conjunto
de relações estáveis na integração de uma variedade A rede como representação de conectividade, de
de atores que ao compartilharem interesses comuns ligação, de simultaneidade e de interdependência
buscam alcançar cooperativamente metas, mas sem torna-se um atrativo para compreender a dinâmica
definir claramente como as relações de poder são pro- e a complexidade de uma gestão que deve associar
cessadas (BÖRZEL, 2002). Como também salienta esse atores – estatais e não-estatais – na resolução de
autor, na literatura, as redes de política são distinta- problemas comuns dentro do espaço público. Por
mente analisadas tanto como um modelo de formas exemplo, Inojosa (1999) faz uso dessa compreensão
não-hierárquicas de fazer o policy making como uma quando aborda as redes de compromisso social como
forma específica de governança (BÖRZEL, 1998). meio para articular e mobilizar ações e como alter-
nativa para os resultados e os impactos de políticas
Assim, sob essa concepção estrutural, mesmo que sociais. Junqueira (2004) também aborda as redes
em termos cooperativos, não se tem uma compreen- como um recurso no processo de gestão de políti-
são mais evidente de como as relações são efetiva- cas públicas das cidades uma vez que elas tornam-se
mente processadas nas redes. Isto é, um entendimen- auxiliares para compreender ações intersetoriais e a
to de como são formadas as estratégias nas e pelas sua execução. Para ele, as redes são “um meio para
redes, de como são definidas as preferências dos ato- intervir na realidade social [...] uma construção cole-
res e potencializados seus projetos, e de como se dá o tiva [...] construções solidárias que se organizam pos-
acesso a diferentes recursos de poder na articulação de sibilitando uma gestão participativa [...] e, através da
alianças; enfim de como se dá o processo de gestão. integração das políticas sociais, buscar soluções que
respondam [...] aos direitos dos cidadãos a uma vida
Ademais, a abordagem das redes políticas suben- com qualidade” (JUNQUEIRA, 2004, p.133) à medida
tende que o ‘emaranhado estrutural’ é por si só capaz que como estratégia de gestão as redes permitem os
de transpor os limites da hierarquia, e não considera diversos atores sociais serem sujeitos das soluções dos
como as relações do atores, através da sua prolifera- problemas que lhes afetam.
ção e do suporte de conexões ao longo do tempo,
podem criar e gerir essa nova ordem proposta. Como Essa perspectiva fortalece a idéia de que a rede ne-
salienta Law (1999), compreender as redes apenas cessita ser compreendida mais como um processo de
como uma forma impõe fortes restrições a partir de ordenação do que uma nova ordem, principalmente
quando se quer entender a formação de políticas pú- ção de políticas que entrelaça as dimensões – estru-
blicas pela associação de múltiplos atores que dispõe tural, processual e material – lhes situando tempo-
de diferentes estratégias e recursos para a pactuação ralmente (FREY, 2000), integrando as estruturas às
de projetos. As redes seriam mecanismos de poder práticas, vinculando-as ao jogo de poder que lhes é
uma vez que relações ordenam e dão forma a uma inerentes e que não separa “o mundo do governo
política pública, processando o interesse público por e da administração pública dos processos políticos”
meio da inter-relação de atores estatais e não-esta- (SOUZA, 2003, p.17).
tais em diferentes escalas – local, regional, nacional
e internacional – na busca por uma coordenação po- A abordagem do ator-rede e a formação de políticas
licêntrica que visa articular as mediações possíveis na públicas
definição da governabilidade, do desenvolvimento e
da eqüidade social. A compreensão das redes como um processo de
ordenação onde o jogo de interesses é negociado
A gestão de políticas públicas pode assim ser com- por diferentes atores para a coordenação de proje-
preendida no contínuo processo de associações; a tos auxilia visualizar as políticas públicas não apenas
formação de redes com o objetivo de materializar a como um resultado daquilo que uma cúpula gover-
legitimidade dos direitos não como uma simples ex- namental formula para ser implantado na realidade
pressão das leis, mas como a concretude da cidadania social. As políticas públicas brasileiras, não sendo
ativa sob novas linhas organizacionais. As relações in- mais atreladas exclusivamente à ação racional de um
terorganizações constituem essas teias diversas e sin- governo central, desde 1988, precisam ser também
gulares que geram uma forte multiplicação de proje- co-produzidas pela ação de outros atores, em tem-
tos e de jogos de poder cuja característica é a hibridi- pos de descentralização e participação social.
zação na conexão de organizações (FISCHER, 1997),
transpondo a tese dos governos como protagonistas O que desponta na agenda pública não pode ser
absolutos e centrais na resolução dos problemas pú- mais enquadrado exclusivamente pela formulação
blicos (KLISKBERG, 1997) de forma que não há o pre- de uma tecnocracia que trata essas políticas como o
domínio de um único ator, mas uma rede: desenho de um sistema artificial a ser implementado
na resolução de problemas. Na realidade, as políticas
[...] Na qual as diferenças se expressam e se públicas adquirem um sentido crítico dentro de um
representam numa interlocução possível; na contexto democrático e dinâmico que permite “ge-
qual valores circulam, argumentos se articulam rar, manter, reproduzir e ampliar espaços de poder
e as opiniões se formam; na qual parâmetros que sejam aptos para realizar transformações econô-
públicos podem ser construídos e reconstruí- micas, sociais e políticas que possibilitem à emancipa-
dos como balizas para o debate em torno de ção” (MEDINA, 2003, p. 29).
questões pertinentes; e na qual, enfim, a di-
mensão ética da vida social pode se constituir Trata-se de um sistema denso e capilar de ativida-
através da convivência democrática com as di- des e de gestão que exige a construção de correias
ferenças e os conflitos que elas carregam [...] de transmissão entre as proposta do governo central,
é uma trama que vai como que mapeando e as iniciativas diferenciadas das administrações mu-
explicando campos diversificados de conflito. nicipais, e as articulações das organizações da socie-
Fazendo circular a linguagem dos direitos, des- dade (DOWBOR, 2003a). As políticas formar-se-iam
privatizar carências e necessidades, demandas em um contexto amplo de forças materializado em
e aspirações, ao projetá-las no cenário público redes através do curso de ação dos atores – estatais e
como questões que interpelam (e questionam) não-estatais – que objetivariam estabelecer uma he-
a opinião pública no seu senso de justiça e gemonia na construção de um projeto coletivo para
eqüidade (TELLES. 1994, p. 48). a resolução de problemas comuns.
Essa perspectiva traz o entendimento de que as As políticas públicas podem então ser constitu-
políticas públicas são formadas a partir da dinâmica ída de forma processual e historicizada – o sentido
de relações e se concretizam através das práticas de efetivo de formação e não de formulação – a partir
diferentes atores. Um sentido prático para a forma- das posições dos atores que as constroem num jogo
de qualidade da força do Estado de forma que está a ências e mundos e as configurações de significado e
emergir uma organização política mais vasta que ele, vida institucional que informavam e moldavam a sua
que integra um conjunto híbrido de fluxos, redes que realidade, constituindo ação, fazendo atenção a um
combinam e interpenetram elementos estatais e não- processo de construção social que “ecoa o adágio de
estatais, nacionais, locais e globais. É neste contexto Karl Marx de que [atores] ativamente constroem seus
amplo que políticas públicas devem ser formadas pro- mundos, mas não completamente, sobre ou dentro
duzindo o organizar; uma estabilização parcial dos dos seus próprios termos” (GUBRIUM; HOLSTEIN,
interesses de atores pela sua disposição de porções e 2000, p. 488).
de peças técnicas e sociais em diferentes escalas para
construir uma materialidade também parcial como Para compreender a formação da política de erra-
uma resposta prática aos problemas públicos. dicação do trabalho infantil no Brasil, como a cons-
trução de uma rede através da qual diferentes atores
Metodologia da pesquisa – estatais e não-estatais – articulavam associações
para a sua gestão, adotou-se o que é proposto por
A fim de analisar a formação de políticas públicas Callon, Law e Rip (1986), isto é, segui-los em ação, por
a partir dessa disposição de porções e peças técnicas meio de suas translações. A coleta de dados foi então
e sociais em redes de atores foi selecionada a política direcionada para textos, pois, como salientam Callon,
de erradicação do trabalho infantil como objeto. O Law e Rip (1986), eles se constituem em operadores
objetivo foi compreender a gestão dessa política pú- formidáveis das translações e facilitam acompanhar a
blica não pelos atributos classicamente identificados jornada dos atores na formação de redes.
com a escolha racional numa lógica linear de idéias
formuladas e implementadas, mas sim, por elementos É importante entender aqui que o texto é tanto
referentes às relações dos atores – contatos, vínculos, uma peça do evento discursivo como uma instância
conexões, discordâncias, proximidades e distâncias das práticas discursivas e sociais (FAIRCLOUGH, 2001).
–, de forma a lhes seguir no processo de translação “Dessa dúplice do texto deduz-se sua significação
através de suas estratégias discursivas e acompanhar global emergente das relações [...] concebe-se assim
a sua trajetória para contabilizar uma longa lista de o texto ou discurso como uma ‘totalidade em funcio-
aliados e recursos transformando associações fracas namento’” (GUIMARAES, 2001, p. 15).
em fortes na construção de redes como realizações
práticas desta política. Na pesquisa, foram coletados três tipos de textos:
documentos escritos, falas proferidas em palestras,
A intenção era não apenas compreender o que os seminários, reuniões etc. e entrevistas abertas. Os
atores faziam, mas também como e por que eles fa- dados coletados sob um ‘caráter discursivo’ (SILVER-
ziam (LATOUR, 1999) de maneira a ter o sentido e con- MAN, 2000) para compreender ‘as negociações de
ceber o inteligível em referência a um projeto. Uma significados’ (SCHWANDT, 2000) caracterizaram-se
prática interpretativa com vistas a desvelar os ‘comos’ e como ‘elementos de interpretação dos fatos’ para
os ‘porquês’ da realidade social, para decifrar os signi- destacar traços comuns e também para fazer uma
ficados que os atores atribuem para as suas ações lhes análise dialética de como totalidades e partes são
posicionando no mundo. Um exercício hermenêutico, produzidas ao longo do tempo (BRUYNE; HERMAN;
no qual o processo complexo da interpretação clarifica SCHOUTHEETE, 1991), e transladadas em determina-
o que está subjacente e se projeta e se engendra no dos lugares e em conceitos operatórios.
mundo concreto constituindo uma de suas narrativas
possíveis (RICOUER, 1989; RORTY, 1994). A análise começou pelo significado do evento,
isto é, o próprio texto à procura de um sentido por
Trata-se de uma objetivação da realidade, pois trás de relações que ordenavam e construíam uma
“as ciências sociais são duplamente interpretativas” realidade significativa. Análise crítica de discurso foi
(SANTOS, 2000) e devem tomar “rigorosamente a técnica utilizada, pois ela “explora como os textos
consciência não do que é genérico, mas, muito pelo são feitos significativos por entre processos e tam-
contrário, do que é específico aos fenômenos” (WE- bém como eles contribuem para a constituição da
BER, 1998, p. 127). A pesquisa foi assim centrada em realidade social produzindo significados” (PHILIPS;
interpretar como os atores construíam suas experi- HARDY, 2002, p. 4).
Primeiramente, a análise crítica se ocupou de uma cia familiar e comunitária, colocando-os a salvo de
análise individual de textos – dos documentos escri- qualquer forma de negligência, discriminação, explo-
tos e das falas e entrevistas transcritas – e de seus cor- ração, violência, crueldade e opressão. Isso é o que
pus de forma a interpretar os processos discursivos, diz a Constituição!
identificar signos e descobrir relações que davam
abertura para a intertextualidade. Nessa fase, foram Assim, diferentes e novos atores são chamados a
utilizadas as seguintes categorias de análise defini- participar de um novo jeito de fazer política públi-
das por Fairclough (2001): coesão, criação, metáfora, ca no país, a fim de garantir os direitos das crianças
nominalização e significação. Na segunda fase, pro- e dos adolescentes à proteção integral e entre estes
curou-se compreender como o discurso construía as direitos está a garantia deles não serem explorados
redes por entre as translações dos atores formando no trabalho infantil. Mas, como traduzir esse direito
a política a partir da identificação de relações inter- numa prática concreta da sociedade brasileira? Como
textuais manifestas ou constitutivas (hegemônicas) transformar uma realidade em que crianças e ado-
com base nas seguintes categorias também definidas lescentes sempre constituíram a força de trabalho
por Fairclough (2001): ironia, metadiscurso, negação, desde os tempos coloniais? Como transformar uma
pressuposição e representação – intertextualidade moralidade social que valoriza o trabalho de crianças
manifesta – e interdiscursividade – intertextualidade e adolescentes como alternativa à marginalidade? A
constitutiva. realidade de crianças e de adolescentes trabalhando
sempre existiu no Brasil. Então o que mudou?
Assim, foi possível analisar a formação da políti-
ca de erradicação do trabalho infantil no Brasil, por Neves (1999, p. 09) diz que “o trabalho infantil é
meio da translação de diversos atores em diferentes termo genérico, mas rico em significados e referên-
escalas, numa construção prática e cotidiana no e cias”, pois o sentido dado ao trabalho infantil tem
para o mundo real. Essa trajetória foi interpretada uma relação direta com um valor ou, como afirma
a partir de um posicionamento crítico para acompa- Offe (1994), o trabalho é uma categoria socialmen-
nhar essa formação através de estados parciais de te construída e a sua valorização está intimamente
ordem onde os atores proclamavam estratégias dis- relacionada com o desenvolvimento de uma ‘socie-
cursas por eles estabilizadas em suas associações para dade baseada no trabalho’ dentro dos objetivos ca-
lhes congregar ainda mais na rede e se estender sob pitalismo.
novos aliados.
No Brasil, o trabalho infantil era proibido desde a
A rede de erradicação do trabalho infantil no Brasil promulgação da Consolidação das Leis do Trabalho
(CLT), ainda em 1943, com a determinação da idade
Desde 1988, constitucionalmente, o Estado, a so- mínima para o trabalho de doze anos. Letra morta!
ciedade e a família têm a obrigação de assegurar, Sim, pois, de lá para cá, as esparsas estatísticas na-
entre outras coisas, a dignidade para as crianças e os cionais sempre indicaram um aumento de crianças
adolescentes brasileiros. Ela não está na atividade la- e de adolescentes trabalhadores, principalmente no
boral, mas na capacidade deles viverem plenamente mercado informal de trabalho de forma a se caracte-
a sua infância e juventude em toda a riqueza lúdi- rizar acima de tudo como um fenômeno informal e,
ca e de desenvolvimento que lhe é pertinente. Esse portanto, distante da agenda pública. Mas por que
direito à vida deve ser assegurado através de polí- este fenômeno ganha distinção na agenda pública
ticas públicas especialmente dirigidas em proteger nacional e internacional, fundamentalmente a partir
com prioridade absoluta esses sujeitos dentro de um de 1990?
novo patamar de direitos que dá sentido à descen-
tralização, pela escolha da comunidade como o locus Porque porções e peças sociais e técnicas dessas
privilegiado para o acompanhamento do seu pleno duas escalas começam a movimentar forças vis-
desenvolvimento, e à participação social por meio lumbrando as diversas realidades locais onde
da co-responsabilidade da família, da sociedade e crianças e adolescentes trabalham. Como ob-
do Estado em tornar efetivas as ações de proteção servou o Diretor da Organização Internacional
integral. Estas são relativas à saúde, à educação, ao do Trabalho (OIT) no Brasil em uma fala profe-
lazer, à cultura, ao respeito, à liberdade e à convivên- rida no Seminário Nacional sobre as Piores For-
mas de Trabalho Infantil realizado em Brasília, mais perplexos com a reestruturação produtiva asso-
no ano de 2002: lando o país e os trabalhadores rurais ainda distantes
das propostas do comércio internacional.
Foi que a partir da década de 1990, se começaram
a desenvolver toda uma série de iniciativas interna- Entretanto, a zona rural brasileira é contagiada
cionais sobre as questões sociais da globalização e se pela onda de direitos transladada pelo campo dos di-
enfatizou muito mais a necessidade de ter um pata- reitos da criança e dos adolescentes no país. Em 1990,
mar mínimo de condições de trabalho, de regras de o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) é apro-
mercado de trabalho que pudessem viabilizar de for- vado depois de uma forte mobilização da sociedade e
ma continuada e sustentável o processo de unifica- o grito esquecido de sindicalistas rurais em denunciar
ção do comércio e da integração econômica. Ou seja, o trabalho infantil em carvoarias, pedreiras, canaviais
temos que criar um patamar mínimo de direitos e etc. começa a ser escutado. E, se a escala internacio-
princípios fundamentais do trabalho, temos que aca- nal não adentra a nacional, a local o faz para revelar
bar com certas formas inadmissíveis e intoleráveis de e publicizar a penúria e o sofrimento das crianças,
exploração de mão-de-obra para que não haja, va- dos adolescentes e de suas famílias, mobilizando di-
mos assim dizer, relações insustentáveis entre os pa- versos atores para lutar contra o trabalho infantil.
íses na parte comercial. [...] E, dentro desse patamar
mínimo, haveria que se acabar com certas questões O ECA é o ator-rede congregando uma associação
mais intolerantes de exploração de mão-de-obra. que mobiliza diversas organizações envolvidas com
os direitos de crianças e adolescente como, por exem-
Aí entra o trabalho infantil, reconhecido como plo, a Agência de Notícias dos Direitos da Infância
intolerável nos tempos de globalização, apesar de, (ANDI), a Pastoral da Criança, a Fundação Abriq pelos
ao longo de décadas, a OIT – uma organização tri- Direitos da Criança (FUNDABRINQ), o Conselho Na-
partite de empregadores, trabalhadores e governos cional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CO-
– estipular Convenções sobre a idade mínima para NANDA), o Fundo das Nações Unidas para a Infância
o trabalho. No entanto, é só no final da década de (UNICEF), entre outros. Todos mobilizados para de-
1980 que a interdição do trabalho infantil como um nunciar o trabalho infantil como um desrespeito ao
padrão mínimo para garantir explicitamente direitos direito de proteção integral.
humanos fundamentais e implicitamente para coibir
o dumping social ganha força no contexto interna- A essa rede quer se associar a OIT que, em 1992,
cional. É a rodada do Uruguai do Acordo Geral de Ta- firma memorando de entendimento com o governo
rifas e de Comércio (GATT) precursor da Organização brasileiro para operacionalizar o Programa Interna-
Mundial de Comércio (OMC), mas seguindo a fala do cional de Eliminação do Trabalho Infantil (IPEC) no
Diretor da OIT no Brasil: país e trabalhar em direção a progressiva eliminação
deste tipo de trabalho. Para transladar com os outros
Não é a OIT que vai colocar sanções diretamen- atores no contexto nacional, a OIT acaba por minimi-
te ao país. A OIT não tem papel de dar san- zar a sua postura mais normativa de padrões traba-
ções [...] é um papel nacional. [...] Nem a OMC, lhistas e se rende ao ativismo do campo da criança e
Organização Mundial do Comércio, nem a do adolescente associando-se a sua congênere inter-
OIT têm poderes, pelas suas próprias consti- nacional, o UNICEF, e os demais atores – organiza-
tuições, de examinar e sancionar questões de ções não-governamentais e sindicais – para chama-
trabalho vinculadas com comércio. rem atores governamentais a participar dessa luta e
se integrar no combate ao trabalho infantil.
Apesar das denúncias dos países desenvolvidos
no GATT, os padrões mínimos trabalhistas nesse en- Está aí uma estabilidade parcial, uma rede que
foque da globalização não conseguem adentrar o profere como estratégia discursiva para a sua orde-
contexto brasileiro. Os atores internacionais não têm nação: a luta contra o trabalho ao trabalho infantil
meios nem forças para gerar associações de forma a no Brasil. Mas, é preciso agregar novos aliados e,
transladar essa estratégia discursiva no âmbito nacio-
nal. Além disso, no início de 1990, os trabalhadores Em 1994, em novembro, exatamente, na sede
urbanos, empregadores e governos brasileiros estão da OIT, [há] a instalação do Fórum de Erradica-
ção do Trabalho Infantil e, naquele momento, Mas, chega a hora dos trabalhadores através dos
a sensação era de que o Brasil estava de fato sindicatos falarem novamente e eles denunciam a
inaugurando um jeito novo de fazer políti- exploração do trabalho infantil nas suas formas into-
ca.[...] Eu quero dizer não é aí uma questão de leráveis já conhecidas – carvoarias, pedreiras etc. – e
mérito, mas um jeito diferente, uma política também naquelas deixadas por um vácuo no texto
que nasce de uma forma interativa. [...] Socie- constitucional, isto é, a condição de aprendiz, e sa-
dade e governo juntos formulando uma políti- lientar que é preciso responsabilizar pela exploração
ca. (Fala, Diretora Departamento da Criança e do trabalho infantil aqueles que dele se beneficiam.
do Adolescente do Ministério da Justiça, 2002) Essa fala posicionada no campo do trabalho dá for-
ça aos atores normativos como a OIT e o MTE para
A rede quer ‘se estender por toda parte’, como diz transladar a aplicação de padrões trabalhista expres-
Latour, e a estratégia discursiva adotada passa a ser sos pela Convenção 138, que interdita o trabalho an-
integrar ações – de organizações governamentais e tes dos 15 anos de idade. Uma deixa para o tema do
não-governamentais – para combater o trabalho in- dumping social?
fantil e proteger integralmente os direitos de crian- Talvez. Entretanto, o Banco Mundial manifes-
ças e adolescentes. Através dela, os atores começam a ta a sua posição num documento preparatório ao
sua mobilização e associação. Mas, como? Relatório de Desenvolvimento Mundial de 1995:
“o perigo real do uso de sanções comerciais como
A partir do Fórum Nacional pela Erradicação do instrumento de promoção dos direitos humanos
Trabalho Infantil (FNPETI), os atores vislumbram os básicos é o de converter o vínculo comércio-norma
possíveis caminhos de extensão dessa rede. Antes de num eventual refém dos interesses protecionistas
tudo, é preciso conhecer melhor a situação do traba- [...] a condição do trabalho infantil pode ela mes-
lho infantil no país e definir mais claramente qual o ma ser usada como um mecanismo-alvo para ajudar
tipo de trabalho a ser prioritariamente combatido. as crianças com a escolarização, saúde, nutrição e
Porém, as ações urgem! Por um lado, o Ministério do outras intervenções” (WORLD BANK, 1995). Para
Trabalho e Emprego (MTE) prepara um diagnóstico combater o trabalho infantil, o Banco foca funda-
para apresentar um retrato do trabalho infantil nos mentalmente no aumento da cobertura escolar nos
termos técnicos da fiscalização, que tratam de risco países em desenvolvimento e dá a deixa para a fala
à segurança e à saúde do trabalhador, mas também do UNICEF sobre a questão, para esta organização
para revelar um quadro muito mais amplo e grave do é preciso mobilizar “um conjunto de recursos so-
problema. De outro, os atores procuram por novos ciais mais amplos” (UNICEF, 1995).
aliados a partir do estabelecimento de pactos pelo
combate ao trabalho infantil nas cadeias produtivas, A estratégia discursiva de responsabilização da
baseados numa ação mediadora exercida pela FUN- rede é translada sob dois contextos discursivos, o
DABRINQ junto aos empregadores. dos direitos da criança e do adolescente e o dos
padrões trabalhistas, que se deparam com um pro-
A rede passa então a transladar sua ordenação blema prático: retirar as crianças e adolescentes do
a partir de estratégia discursiva da responsabiliza- trabalho aplicando os padrões trabalhistas e lhes
ção. A idéia é responsabilizar a todos pela retirada encaminhar para a escola para garantir os seus di-
das crianças e dos adolescentes do trabalho e colo- reitos de proteção integral. Tudo bem. Mas o que
cá-los na escola. O slogan é ‘lugar de criança é na fazer com o círculo vicioso da pobreza em que essas
escola’, sustentado pela mobilização dos atores do crianças e adolescentes e suas famílias vivem?
campo das crianças e dos adolescentes. Para isso
é incentivado o compromisso empresarial que é É chegado o momento da Assistência Social re-
transladado numa certificação – muito própria ao solver pelo menos em parte o seu ser ou não ser
seu universo simbólico – o selo ‘empresa amiga da como política social e operacionalizar a sua Lei Or-
criança’. No entanto, a rede translada significados gânica, a LOAS. Nesta esperança, o FNPETI lança o
ainda distanciados da luta discursiva entre capital Programa de Ações Integradas (PAI) que insere o
e trabalho como se pudesse lhe transpor ao defen- problema do trabalho infantil dentro do problema
der a responsabilidade de todos pelo combate ao de combate à pobreza, através da garantia de mí-
trabalho infantil. nimos sociais definida pela LOAS, pois “o exercício
perverso do trabalho infantil está associado à forma vulneráveis, pois o trabalho infantil tem sua raiz na
como os adultos, por vezes em condição de pais, re- exploração da pobreza, e para a OIT, a pobreza é
alizam a produção social [...] os casos recaem sobre uma das maiores forças que cria o fluxo de crianças
o segmento empobrecido da população” (NEVES, no trabalho. O Banco Mundial também tem direi-
1999, 226) e, como lembra Demo (1997, p. 55), to à fala e afirma que o engajamento prematuro e
“se gerar renda é problema específico do mercado, extensivo de crianças no trabalho lhes impede de
redistribuí-la é conquista da cidadania”. acumular capital humano e isto se reflete nas taxas
de produtividade.
Ainda transladando a estratégia discursiva da
responsabilização, os PAIs iniciam, no ano de 1996, Nessa disposição entre um discurso mais econô-
em três áreas críticas a saber: nas carvoarias do mico, como o do Banco Mundial ou de um discur-
Mato Grosso do Sul, na região do sisal da Bahia e so mais social, como o do UNICEF, mesmo que com
nos canaviais de Pernambuco. A proposta é retirar seus trejeitos assistencialistas, e o meio termo da
as crianças e os adolescentes do trabalho, dar-lhes OIT, há uma estratégia discursiva que começam a
uma bolsa e oferecer uma jornada ampliada para ser fortemente transladada por esses atores: é pre-
lhes manter na escola durante dois períodos. Nos ciso enfrentar o trabalho infantil na suas piores for-
PAIs são envolvidas diversas organizações gover- mas. Este enfrentamento tem um alvo claro: são as
namentais e não-governamentais locais, estaduais, crianças sujeitas à exploração de sua pobreza nos
nacionais e internacionais e apesar da adoção de países em desenvolvimento. Assim, a estratégia dis-
uma significação para caracterizá-los como interse- cursiva do enfrentamento direciona-se ao combate
toriais, explicitada pela LOAS, o que predomina são e a eliminação das formas mais intoleráveis de tra-
ações minimalistas próprias de um assistencialismo balho infantil nesses países.
de benesses fundamentado numa concepção que
limita a pobreza ao limite da subsistência de seg- Dessa vez, os conteúdos transladados no contexto
mentos vulneráveis. internacional adentram facilmente o contexto nacio-
nal. O governo federal, que já havia transformado o
Conseqüentemente, os pressupostos interseto- PAI em PETI, isto é, Programa de Erradicação do Tra-
riais, definidos por Junqueira e Inojosa (1997), como balho Infantil, sobrepondo-se à autonomia dos mu-
a articulação de ações para dar conta de situações nicípios em gerir a sua política de assistencial social,
complexas para atender os objetivos de desenvol- expande este programa às áreas de pobreza direcio-
vimento e de superação da exclusão social, não se nando o combate ao trabalho infantil em bases cen-
realizam e refletem a incapacidade da política de tralizadas e seletivas, e confirmando a crítica de que
assistência social de se descentralizar e consolidar adota ações inócuas do ponto de vistas da redução
no país. E, sem poder contar com a LOAS como um de desigualdades sociais (ver BOSCHETTI, 2001).
forte aliado, principalmente no que concerne aos
recursos financeiros do Fundo de Assistência So- A translação do enfrentamento feita pelo gover-
cial, os PAIS não se ampliam uma vez que os cam- no federal é ainda fraca, pois falta uma associação
pos da criança e do adolescente e do trabalho não com as organizações da sociedade na construção
têm fonte direta para esse tipo de financiamento, e dessa estratégia discursiva para alistar aliados locais.
como diz Demo (1997, p. 53) “não adianta inventar Para as organizações da sociedade o enfrentamento
direitos sem base orçamentária”. do trabalho infantil deveria estar direcionado funda-
mentalmente na garantia de renda para as famílias
Porém, na escala internacional as coisas come- efetivando a política de assistência social dentro de
çam a ser movimentadas. Coordenada pela OIT e uma ótica de direitos mínimos na defesa da sobrevi-
pelo UNICEF é realizada a Conferência Internacional vência sob os padrões éticos de dignidade e cidada-
sobre o Trabalho Infantil em Oslo, no ano de 1997. nia e na garantia da amplitude da política de educa-
Nela, define-se a adoção de ações para erradicar o ção como meio de prevenção da entrada precoce no
trabalho infantil que existe em escala mundial em trabalho.
tempo definido e dentro de um programa concre-
to. Para o UNICEF, a ações em termos práticos de- As organizações internacionais associam-se a es-
vem ser direcionadas às crianças mais pobres, mais sas idéias das organizações da sociedade em transla-
fantil no Brasil, a partir das ações e das relações rentes escalas – do local ao global ou vice-ver-
dos atores oriundos e atuantes em diferentes es- sa. A teoria do ator-rede facilitou acompanhar
calas de interesse. A ação foi assim inscrita pela essa trajetória da produção de fatos por entre
translação desses atores que em suas associações conteúdos e contextos (LATOUR, 2000) das redes
geraram estratégias discursivas para produzir de atores e pode se constituir num recurso para
uma ordem sempre parcialmente estabilizada análise da formação e gestão de políticas públi-
na contínua construção de cadeias de mediação ca dentro de um caráter múltiplo de ordenação.
para persuadir e aliciar mais aliados e congregá- Falta, no entanto, trazer ainda mais próximo os
los no combate ao trabalho infantil. sujeitos, pois quando se pensa na continuação
da trajetória da rede de erradicação, por exem-
Nesse circuito de ordenação, a rede de erra- plo, deve ser lembrado que “para enfrentar a
dicação do trabalho infantil foi formada e ain- pobreza, é imprescindível contar com o pobre
da está sendo formada pela prática concreta de capaz de projeto próprio” (DEMO, 2003, p.15) e,
atores dispostos e posicionados por entre dife- também capaz de gerir projetos.
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