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René Lourau
Este texto, sob a forma de um manifesto, indica o que está por construir e o que se
precisa realizar: “um descentramento radical”. Neste capítulo, trataremos de apontar como se
efetuará tal descentramento e quais são os “centros” deslocados pelo movimento.
A ANÁLISE
Antes de mais nada, que significa o termo análise? Começaremos pela definição de
Yves Barel.
Objeto y método del análisis institucional. Em El Análisis Institucional. Madri: Campo Abierto, 1977
versão a partir da qual foi efetuada a presente tradução. Publicado anteriormente em francês (Pour n° 32, 1973).
Tradução: Patrícia Jacques Fernandes e Heliana de Barros Conde Rodrigues.
1
Liminaire de Recherches, Março, 1973.
1
demais variam. Desta forma, procedendo elemento por elemento ou relação por
relação, podemos chegar a uma compreensão do conjunto.2”
Eis a definição “clássica” de análise. Ao falar de análise nas ciências humanas
(psicanálise, análise institucional, socioanálise) também se tem por alvo a decomposição de
um todo em seus elementos. A isto se acrescenta a idéia de interpretação: interpretar um
sonho ou uma fala de grupo é passar do desconhecido ao conhecido; é uma operação de
deciframento. Freud compara o descobrimento do inconsciente ao deciframento de
hieróglifos. Aqui, a análise se transforma em hermenêutica 3. Procede-se trazendo à luz o que
está escondido e só se revela pela operação que consiste em estabelecer relações entre
elementos aparentemente disjuntos. Trata-se de reconstruir uma totalidade que se havia
rompido.
As instituições formam a trama social que une e atravessa os indivíduos, os quais, por
meio de sua práxis, mantêm ditas instituições e criam outras novas (instituintes).
2
YVES BAREL. A análise dos sistemas: problemas e possibilidades, mimeo, 1973. Do mesmo autor “A
reprodução social: sistemas viventes, invariância e mudança”, Paris: Anthropos, 1973. Y. Barel acrescenta:
“Nenhuma investigação científica, incluindo a abordagem sistêmica, pode prescindir do método analítico. Tudo
o que dizem os grandes teóricos do sistema é que o método analítico, perfeitamente adaptado ao estudo dos
sistemas simples (na prática, alguns sistemas físicos), torna-se inadequado para o estudo dos sistemas mais
complicados”.
3
Hermenêutica: ciência da interpretação do que está oculto.
2
Descobrir o não-dito, o censurado, foi a obra de Marx e Freud, os dois grandes
desmascaradores.
OS ANALISADORES
3
então se mantinha a dominação analítica. Passa-se, portanto, da noção de análise à de
analisador.
Mais adiante veremos como a contra-sociologia utiliza o mesmo termo. Mas antes é
necessário dizer algumas palavras acerca das instituições.
AS INSTITUIÇÕES
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R. LOURAU: L’Analyse Institutionnelle, 1969 (A Análise Institucional, Vozes, 1975). GEORGES
LAPASSADE: Groups, organisations, institutions. Gauther Villars, 1967 (Grupos, organizações e instituições,
Francisco Alves, 1977).
4
Primeiro, as instituições são normas. Mas elas incluem também a maneira como os
indivíduos concordam, ou não, em participar dessas mesmas normas. As relações sociais
reais, bem como as normas sociais, fazem parte do conceito de instituição. Seu conteúdo é
formado pela articulação entre a ação histórica de indivíduos, grupos, coletividades, por um
lado, e as normas sociais já existentes, por outro.
Segundo, a instituição não é um nível da organização social (regras, leis) que atua a
partir do exterior para regular a vida dos grupos ou as condutas dos indivíduos; atravessa
todos os níveis dos conjuntos humanos e faz parte da estrutura simbólica do grupo, do
indivíduo.
UM SISTEMA DE REGRAS
Assim, um “estabelecimento” seria uma instituição, da mesma forma que uma lei
estabelecida.
Todas essas regras, normas, costumes, tradições etc., que o indivíduo encontra na
sociedade, são o que está instituído e que o sociólogo pode estudar de maneira objetiva. Esta
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ordem do instituído foi privilegiada tanto por aqueles que têm uma concepção objetiva do
direito quanto pela sociologia positivista.
Em uma postura contrária a esses sistemas objetivos, exteriores ao homem, que não
estudam a instituição senão como regras de funcionamento social, alguns autores elaboraram
uma concepção a partir da psicologia. Para Monnerot, por exemplo, as instituições são objetos
imaginários. São sistemas de defesa contra a angústia que se projetam no exterior. A
compreensão das instituições passa pela compreensão do plano individual. É por empatia com
uma pessoa que se poderá compreender o papel das instituições. Aqui, voltamo-nos para a
questão da implicação. A ela retornaremos posteriormente.
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Desde suas origens, a corrente institucionalista pôs ênfase na relação antagonista entre
o instituinte e o instituído e nos processos ativos da institucionalização. A alienação social
significa a autonomização institucional, a dominação do instituído fundada no esquecimento
de suas origens, na naturalização das instituições. Produzidas pela história, elas acabam por
aparecer como fixas e eternas, como algo dado, condição necessária e trans-histórica da vida
das sociedades.
NÍVEIS E INSTÂNCIAS
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Tal descrição deve ser modificada. Com efeito, se admitimos que a instituição é,
fundamentalmente, aquilo que mantém a existência dos indivíduos, grupos e organizações (“a
instituição faz o homem”, escrevia Rousseau) e que os atravessa (por exemplo, é a divisão
instituída do trabalho que determina a organização da empresa), é necessário apresentar a
instituição e a análise institucional em outros termos.
Ora, a base econômica da sociedade se define por meio das relações de produção que
estão institucionalizadas: a venda da força de trabalho, por exemplo, se articula em um
sistema institucional5. Não se trata de descrever as instituições econômicas (o crédito, o
banco, o mercado) como faz atualmente a ciência econômica clássica6. Tampouco de analisar
a “institucionalização da vida econômica”7.
Hoje em dia já não é possível conceber as instituições como um estrato, uma instância
ou um nível de uma formação social determinada. Pelo contrário, é necessário definir a
5
Cf. PAUL CARDAN: Marxismo y teoria revolucionaria. Socialisme ou Barbarie, n° 39, marzo-abril, 1965, n° 40,
junio-agosto, 1965 (Retomado em “A instituição imaginária da Sociedade”, Paz e Terra, 1986).
6
Cf. La economia institucional.
7
TALCOTT PARSONS: La institucionalización de los valores e las motivaciones de la actividad ecnomica, en:
“Psychologie sociale”. Levy-Dunod, Paris, 1965.
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instituição como um “cruzamento de instâncias” (econômica, política e ideológica) e afirmar,
além do mais, empregando a linguagem da análise institucional: se é certo que toda instituição
é atravessada por todos os “níveis” de uma formação social, a instituição deve ser definida
necessariamente pela transversalidade8.
Sendo assim, não podemos considerar a instituição como um nível, porque se encontra
presente também em todos os outros. Trata-se de uma dimensão fundamental que atravessa e
funde todos os níveis da estrutura social.
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mantenha, para a estabilidade das relações sociais dominantes, produzida e reproduzida pelas
instituições.
O Estado centralizado tanto funciona tanto como fonte de repressões quanto, além
disso, mediante todos os seus mecanismos e aparelhos ideológicos, como produtor
permanente do desconhecimento institucional.
Daremos um exemplo. Nas atuais lutas das minorias nacionais, o programa consiste
em destruir a hegemonia instituída das linguagens dominantes, sua tirania. Estas lutas são os
analisadores da dominação do Estado centralizado, as fontes diretas de sua destruição. As
minorias etnolingüísticas põem em suspenso o estatismo. Lançam-se contra o centralismo
cultural, contra a colonização e a repressão das línguas e das culturas dominadas.
Eis como funcionam esta dominação e esta repressão: em nome das línguas
dominantes, os idiomas invalidados são taxados de bárbaros, da mesma maneira que as
religiões decaídas são rebaixadas à categoria de bruxaria e de magia.
Estes signos foram dispersados, esquecidos e reprimidos, a base material da língua foi
destruída; o cultural reprimido só aparece em fragmentos disjuntos – signos materiais agora
separados de seu sentido.
A EXPERIMENTAÇÃO
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Vale assinalar que os processos de possessão da Idade Média eram também os processos da Ocitânea.
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O objetivo da análise institucional em situação de intervenção é validar o conceito de
analisador. Esta proposição dá imediatamente a impressão de ter uma finalidade
experimentalista. Conquanto não se trate de ratos e macacos, decerto o aspecto experiencial
ou experimental está sempre presente na intervenção socioanalítica. Quando os alunos
submetidos à pedagogia institucional se recusam a ser cobaias de seu professor; quando os
enfermos de um hospital psiquiátrico afirmam que se os médicos aparecem como os
“capitalistas”, eles, os enfermos, são os “proletários”; quando, após haverem lido os resumos
das intervenções socioanalíticas10, os católicos dizem que nada têm a ver com as amostras de
população de Lévi-Strauss, fica claro que a relação de dominação geralmente existente na
experimentação é trazida à luz, independentemente do que pensem dela o pedagogo, o
psiquiatra, o socioanalista.
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menos acrescentar algo à sociologia crítica (anti-sociologia) do que propor uma alternativa
aos modelos de análise e de intervenção social.
Aqui, “propor” deve ser entendido da seguinte maneira: em tempo “normal” (ou seja,
durante um período “frio”), a teoria da análise social, produto de práticas sociais de
intervenção, é somente uma atividade de intelectual. Este último tem por tarefa, portanto,
enunciar proposições (e não ditar dogmas científicos) extraídos das relações que estabelece
entre as práticas sociais e sua própria prática social, sempre menos rica que a das categorias
ou dos grupos confrontados diretamente (originariamente) à exploração. Fica claro, assim,
que tais proposições não são produtos de seu espírito mais, ou menos brilhante, tampouco
puros “reflexos” de lutas levadas a cabo pelos outros. Mais precisamente, trata-se do
resultante teórico, ou debilmente prático-teórico, dos efeitos da prática social dos outros sobre
a do intelectual, a qual compreende principalmente, e às vezes unicamente, a prática da
escritura e da fala. O intelectual não é o analisador e sim o analista, com possibilidade de
tomar consciência dos efeitos dos analisadores que desencadeiam sua intervenção (analista
tanto no sentido mais amplo do termo quanto no sentido técnico da palavra em certas ciências
sociais). Não tem apenas de reconhecer e legitimar, ou inclusive exaltar, a existência dos
analisadores; deve compreender que somente os analisadores o constituem como analista.
Lutero ou Calvino não existem como dirigente teóricos de um movimento protestante, mas
sim como produtos intelectuais do movimento, que acaba por negá-los como efeitos. Não há
de um lado Robespierre como dirigente teórico do movimento jacobino e, de outro, as seções,
clubes ou massas jacobinas. Existe um movimento jacobino, analisador das contradições da
revolução burguesa, que acaba por negar seus dirigentes teóricos e derrubá-los.
A primazia do analisador sobre o analista, ainda que este último seja simultaneamente
um analisador extraordinário como é o caso dos grandes dirigentes acima mencionados
, não vale apenas para as relações entre massas e dirigentes. Aplica-se igualmente às
relações entre dirigentes opostos, mesmo se, na maior parte dos casos, a história não canoniza
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os verdadeiros rivais dos heróis: o analisador de Lutero também é Müntzer, dirigente da
guerra dos camponeses, da “primeira revolução social alemã” (Engels). Calvino tem seu
Miguel Servet, Robespierre tem seus contrários, Lenin tem Makhno e Stalin tem Trotsky. É
negando e sendo negados por esses opositores ou desviantes radicais que os dirigentes
triunfantes se constituem positivamente, criam seu campo teórico e o campo de ação de seu
poder. Neste sentido, o que existe para nós na qualidade de proposições do protestantismo, do
jacobismo e do bolchevismo é a produção de gêneses sociais dramáticas e trágicas, e não uma
série de etapas mais ou menos capitais ou medíocres de uma gênese teórica integrável em uma
história das idéias religiosas e políticas. Melhor ainda que nos casos de Lutero, de
Robespierre ou de Lenin, através de Calvino se percebe como vinte anos de lutas
compuseram, aumentaram desmesuradamente, transformaram e orientaram definitivamente
uma obra teórica. A instituição cristã – obra muito mais analisadora das contradições
calvinistas que o livro teórico do analista Calvino – é atravessada, de um extremo a outro,
pelas correntes e alvoroços sociais: cada página está teoricamente determinada pela
necessidade de manter ou de reafirmar as débeis relações de força estabelecidas entre o
ditador de Genebra e seu clique. Trata-se de uma obra contra-teológica e contra-sociológica,
pulsando no mesmo ritmo que a contra-instituição genebrina, e não de uma obra de crítica
teológica, como poderia ser a de Erasmo, na mesma época. Erasmo, Adorno ou Marcuse,
atuando sobre a elite intelectual mas não chegando a ser, eles mesmos, influenciados pelas
massas, diferem de Lutero, de Calvino e de tantos outros dirigentes locais da reforma.
IMPLICAÇÃO METÓDICA
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seu estatuto de ‘observador exterior’” etc... Portanto, a análise organizacional define a posição
do sociólogo-especialista em termos que significam distanciamento em relação ao objeto. A
análise institucional, ao contrário, contrapõe a implicação do analista a tal distanciamento.
Deste modo, superando a contradição entre a concepção da instituição que dela faz
uma coisa exterior ao homem (sociologia positivista) e a que faz dela um puro objeto interior
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imaginário (fenomenologia social), orientamo-nos em direção a uma concepção da instituição
que sintetiza as instâncias objetiva e imaginária.
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religioso. Aquilo que habitualmente se considera escória da ciência os inconvenientes e
limites ao ponto de vista neutralista deve ser, pelo contrário, colocado no centro da
investigação. O importante para o investigador não é, essencialmente, o objeto que “ele
mesmo se dá” (segundo a fórmula do idealismo matemático), mas sim tudo aquilo que lhe é
dado por sua posição nas relações sociais, na rede institucional. A partir desta perspectiva,
fica evidente que a maior parte dos artigos que aparecem nas revistas acadêmicas – de
sociologia ou de psicologia, por exemplo – são quase tão “sérios” como as seções de
horóscopo dos jornais.
IMATURIDADE DA TEORIA
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construção de tal discurso. Deve-se frisar que os problemas ditos técnicos estão muito menos
explorados.11
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Les analyseurs de l’église. A obra contém monografias de intervenções realizadas em sessões de curta
duração (4 ou 5 dias em média). Inclui também uma teoria da intervenção socioanalítica, bem como uma análise
da relação das intervenções com o sistema de instituições religiosas (o aparelho ideológico da religião, a igreja e
“instituições” com a missa, a reza, o batismo, etc.).
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