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FÉ HOJE

N0 39 - Mar/2013 - R$10

pa r a

Comprometida com a Fé que foi entregue aos santos

Criação
Ø Queda
Redenção Ø
Consumação
Faç a a as s inat ura an ual da r e v ista
Fé para H o j e p or ap enas R $ 15,00*
Ligue 12 3919.9999 ou acesse www.editorafiel.com.br/feparahoje
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Amado Leitor,

É nosso desejo que, através da leitura dessas páginas, você


possa ser desafiado e encorajado a perseverar em seu propósito
de crescer no conhecimento e amor do glorioso evangelho de
Jesus Cristo.

Conquanto as palavras e artigos desta revista tenham o


propósito de provocar sua mais séria reflexão e apreender
às coisas da mente, sem o amor a Deus, nosso zelo e labor
são vãos. É preciso aliar mente e coração na obra de Deus.
Primeiro, ame ao Senhor e depois, ame a noiva de Cristo, a
igreja.

Todos nós, no Ministério Fiel, reconhecemos com gratidão ao


Senhor o privilégio que temos em poder servi-lo.

J. Richard Denham III


Diretor, Editora Fiel

editor-chefe Tiago J. Santos Filho tradução Francisco Wellington Ferreira

revisão Marilene Paschoal diagramação Rubner Durais diretor James Richard Denham III
presidente emérito James Richard Denham Jr. realização Editora Fiel | Março de 2013 | no 39
Sumário
Editorial
Tiago Santos.......................................... 3

1. A Majestade de Deus na Criação


e a Ecologia (Sl 8.1-9)
Hermisten Maia Pereira da Costa........... 5

2. Deus, o Criador
Stephen L. Wellum. . .............................. 13

3. A Importância Teológica
da Historicidade de Adão
Bruce A. Ware....................................... 19

4. O Homem e o Pecado
John Piper............................................. 23

5. A Justificação Ainda É Importante?


Michael S. Horton................................ 31

6. Vivendo “Já” com Vistas


ao “Ainda Não”
Heber Carlos de Campos Júnior. . ........... 47

7. Milênio – Breves Considerações


Hermenêuticas
Gilson Santos....................................... 53
Editorial

Quatro Grandes
Realidades da Teologia
Tiago Santos

Nesta nova edição da revista Fé eterno, santo e perfeito em todos os


para Hoje, lançada na esteira do Cur- seus atributos, criando todas as coi-
so Fiel de Liderança do ano de 2013, sas que existem, desde as mais remo-
trabalharemos os quatro grande pila- tas e distantes galáxias até a terra e
res da teologia sistemática: Criação, tudo o que nela há. Vemos a criação
Queda, Redenção e Consumação. do homem imago Dei, segundo a ima-
Esses temas sumariam o grande gem do próprio Deus, em estado de
esquema da teologia e têm o propósi- inocência e liberdade, debaixo do go-
to de levar o estudioso a compreender verno moral de Deus, ordenado a ser
o plano e as ações de Deus na história responsável e obediente e a governar
da humanidade, conforme revelado sobre todas as coisas criadas, para a
nas Escrituras Sagradas. glória do criador.
Nesse esquema, vemos como Na queda, vemos o homem trans-
Deus condescendeu revelar-se ao gredindo a lei de Deus e se afastando
homem, dando-se a conhecer e des- dele, caindo de seu estado de ino-
cortinando seu projeto para a huma- cência e felicidade e legando para a
nidade. humanidade esta condição de con-
Na criação, vemos o Deus trino denação, aprisionando sua liberdade
todo-poderoso, transcendente, au- às inclinações do pecado, sendo tanto
toexistente, suficiente em si mesmo, responsável por ele como vítima de
sua poluição. Vemos o efeito da que- que os regenera, em arrependimento
da na criação, trazendo maldição para e fé, sendo reconciliados com Deus e
este mundo e resultando na grande adotados em sua família.
tragédia da história do homem. Vemos finalmente a consumação
Na redenção, vemos ainda que de todas as coisas – como o cristão é
Deus resolveu oferecer salvação ao preparado nesta vida para a vida por-
homem – e o fez de modo que sua vir; sendo santificado e perseverando
justiça, ofendida pela transgressão da em sua peregrinação. Vemos o que
lei causada pelo pecado do homem, acontece após a morte do homem,
fosse satisfeita. Em amor, desde os seja do justo ou do injusto, sobre o
tempos eternos, Deus o Pai resolveu céu e o inferno, o julgamento final, a
salvar pecadores em seu Filho, Jesus ressurreição do corpo e a redenção fi-
Cristo, o qual, sendo um com Deus nal e definitiva da criação: novos céus
o Pai, entrou na história, assumiu a e nova terra – todas essas coisas ope-
natureza humana e viveu como ho- rando segundo o propósito e decretos
mem, obedecendo toda a lei e cum- de Deus e para glória dele.
prindo toda a justiça de Deus o Pai, Na seleção de artigos desta edi-
a ponto de oferecer-se a si mesmo ção, somos instados a refletir esses
como sacrifício e propiciação a Deus grandiosos temas e levados a consi-
em favor dos homens, justificando os derar o grande amor e glória do Deus
pecadores que se achegam a ele, mo- trino. Que ele possa abençoar sua
vidos pela ação do Espírito de Deus leitura
A Majestade de Deus na
Criação e a Ecologia (Sl 8.1-9)
Hermisten Maia Pereira da Costa
A Criação de Deus
não tem poder em si mesma para
auto-existir; sem a sustentação
de Deus o universo inteiro, toda
criação deixaria de existir".

Introdução A preservação é compreendida


como aquela contínua operação do
Um dos conceitos predominantes poder de Deus, pela qual ele sustenta
da filosofia grega clássica se referia ao e mantém todas as coisas contingentes
dualismo entre matéria e espírito. Den- – a Criação – a fim de que esta possa
tro desta compreensão da superiorida- cumprir ordenadamente o propósito
de do espiritual, a matéria é má. Este para a qual foi criada. Isto significa que
dualismo influenciou até mesmo de- a Criação de Deus não tem poder em
terminado grupo dentro da história do si mesma para auto-existir; sem a sus-
Cristianismo, denominado de Gnóstico, tentação de Deus o universo inteiro,
quanto à sua compreensão da Criação toda criação deixaria de existir. “Ele,
divina e da encarnação de Jesus Cristo. que é o resplendor da glória e a expres-
No entanto, a fé cristã sustenta que são exata do seu ser, sustentando todas as
tudo o que existe tem Deus como au- cousas pela palavra do seu poder....” (Hb
tor, que não somente cria algo externo 1.3). A ideia de “sustentação” no texto,
a si mesmo (ele não se confunde com a ( = “levar”, “carregar”), além de
matéria, nem é a matéria mera exten- preservação, é a de fazer com que as
são sua), como também preserva por coisas sigam o seu rumo, o seu propó-
meio do seu poder. sito determinado por Deus.

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Isto nos conduz à nossa responsa- nossa vontade, como agente de nosso
bilidade como agentes de Deus no cui- intelecto, agora, é oposta à vontade de
dado e preservação do que ele mesmo Deus. A imagem que agora refletimos
nos confiou. A natureza tem o seu va- estampa mais propriamente o caráter
lor porque foi criada por Deus. Eu não de Satanás.
preciso idealizar a natureza, humanizá No Éden só havia um livro: o livro
-la ou divinizá-la; ela tem o seu próprio da natureza; todavia, com o pecado
valor: O Deus sábio, soberano e bon- humano, a natureza também sofreu as
doso a criou. Isto, por si só nos basta. consequências, ficando obscurecida,
perdendo parte da sua eloquência pri-
1. O Mundo Físico meva em apontar para o seu Criador
(Gn 3.17-19) e, como parte do castigo
O pecado, que consiste na quebra pelo pecado, o homem perdeu o dis-
de relacionamento com Deus, trouxe cernimento espiritual para poder ver
ao ser humano diversas consequências. a glória de Deus manifesta na Criação
Entre elas a perda da sensibilidade es- (Sl 19.1; Rm 1.18-23). A Revelação
piritual. O ser humano perdeu a capa- Geral que fora adequada para as neces-
cidade de reconhecer a Deus em seus sidades do homem no Éden – embora
atos manifestos em toda a Criação, saibamos que ali também se deu a Re-
na Palavra, e plenamente revelado em velação Especial (Gn 2.15-17,19,22;
Cristo Jesus. A quebra desta comu- 3.8ss) – tornou-se, agora, incompleta
nhão com Deus vai interferir direta- e ineficiente para conduzir o homem a
mente em todas as demais relações, in- um relacionamento pessoal e conscien-
clusive em nossa maneira de ver e atuar te com Deus.
no mundo. Todavia, mesmo a Criação sendo
O pecado alienou-nos de Deus, obscurecida pelo pecado humano, con-
do nosso semelhante e da nature- tinua a revelar aspectos da natureza e
za. Assim, o pecado, de certa forma, do caráter de Deus.
desumanizou-nos. A Queda trouxe A fé cristã fundamenta-se, porque
consequências desastrosas à imagem foi por isso que ela se tornou possível,
de Deus refletida no homem. Após a na existência de um Deus transcen-
queda, mesmo o homem não regene- dente e pessoal que se revela, se comu-
rado continua sendo imagem e seme- nica conosco. Sem a comunicação di-
lhança de Deus (aspecto metafísico): vina não haveria teísmo nem ateísmo,
Apesar de o pecado ter sido devastador simplesmente jamais chegaríamos ao
para o homem, Deus não apagou a sua conceito de Deus ou à sua negação.
“imagem”, ainda que a tenha corrom- O Salmo 8 exalta a majestade do
pido, alienando-o de Deus. O pecado nome de Deus manifesta na Criação
trouxe como implicação a perda do (1). É um hino que por meio do ho-
aspecto ético da imagem de Deus. A mem dignifica a majestade de Deus.

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É possível que Davi tenha compos- A Criação, portanto, nos fala de
to este Salmo na juventude, quando era Deus, de sua majestade e poder. É ne-
apenas um pastor de ovelhas, quando cessário que tenhamos nossos olhos
as suas lutas eram bastante complexas abertos para contemplar a Deus por
na simplicidade de sua vida. Nesta fase intermédio de suas obras. A confiança
de sua vida, certamente passava mui- do salmista passava pela criação e re-
tas noites dormindo ao relento, con- pousava em Deus (Sl 121.1-3).
templando as estrelas no firmamento e
refletindo sobre o poder de Deus. Esta 2. No Ser Humano
mesma fé amadurecida pelas experiên-
cias com o Senhor o acompanhará. Argumentando de forma espacial-
Outra ocasião provável é quando, um mente dedutiva, faz uma pergunta re-
pouco mais maduro, já ungido rei, é tórica: “Que é o homem, que dele te lem-
foragido de Saul que queria matá-lo. bres E o filho do homem, que o visites?”
Neste período teve oportunidade, (Sl 8.4).
ainda que com o coração angustiado, A sensação é de pequenez diante do
de experimentar a mesma sensação de vasto universo, do qual posso contem-
ver e refletir sobre a imensidão do céu plar, ainda hoje, uma minúscula parte.
diante dos seus olhos (Sl 8.1,3). O sistema solar é apenas um pequeno
O salmista contemplando parte da ponto no universo que conhecemos li-
criação exulta demonstrando que em mitadamente.
toda a terra o nome de Deus é exalta- Séculos depois, encontramos ad-
do. Ele ultrapassa a visão apenas local miração semelhante entre os gregos.
de Israel, para reconhecer que o teste- Todavia, a admiração dos gregos ao
munho de Deus na Criação se estende contemplar o universo, os conduziu
a toda a terra (1). em outra direção. Eles diziam que a
O salmista percebe que este reco- admiração conduz o homem à filoso-
nhecimento da majestade de Deus só fia. Platão (427-347 a.C.) e Aristóte-
se tornou possível pela revelação de les (384-322 a.C.) estão acordes neste
Deus na Criação: “Pois expuseste nos ponto.1
céus a tua majestade” (Sl 8.1). Nestas reflexões surgem as explica-
No entanto, ele não se detém na ções a respeito da origem da vida:
criação, antes, vai além, reconhecendo
a glória de Deus nela. No Salmo 19, a) Tales de Mileto (c. 640-547 a.C.):
Davi faz uma referência semelhante, Por meio do estudo doxográfico,
de modo mais amplo (Sl 19.1-4).
Contudo, os homens, insensíveis 1  Vejam-se:Platão, Teeteto, 155d: In: Teeteto-
-Crátilo, 2. ed. Belém: Universidade Federal
à majestade de Deus, corrompidos em do Pará, 1988, p. 20; Aristóteles, Metafísica,
seus pecados, entregaram-se à idolatria São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores,
(Rm 1.20-25). Vol. IV ), 1973, I.2. p. 214.

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sabemos que Tales, considerando a Diferentemente, a admiração de
necessidade da água para a sobrevi- Davi o conduziu a glorificar a Deus e,
vência de tudo, afirmava ser a água num ato subsequente, a indagar sobre o
a origem de homem nesta vas-
todas as coisas tidão da criação.
(por rarefação A sua pergunta
e condensa-
Mesmo a Criação sendo assume também
ção), e a Terra obscurecida pelo pecado humano, uma conotação
flutuava como continua a revelar aspectos da metafísica, não
um navio so- natureza e do caráter de Deus. podendo ser res-
bre as águas2. pondida apenas a
Os terremotos partir de um refe-
são explicados rencial material.
pelo movimento das águas (Dox., O salmista argumenta que na pró-
1). Deus criou todas as coisas da pria existência de uma criança sendo
água (Dox., 9). Plutarco atribuiu ainda amamentada, temos um teste-
esta concepção aos egípcios. No munho da majestade de Deus que a ge-
que talvez ele tenha razão. rou e que produz no seio materno o lei-
te para que ela possa ser alimentada (Sl
b) Anaximandro (c. 610-547 a.C.): 8.2). O mesmo ocorre em sua sincera
Foi o primeiro a usar a palavra sensibilidade espiritual (Mt 21.15-16).
“princípio” ( /). (Dox., 1). O Davi entende que só isso seria suficien-
princípio ( ) de todas as coi- te para calar os adversários ateus.
sas é o “Ápeiron” ( = “sem Ele reverentemente se admira do
fim”, “ilimitado”, “indeterminado”, fato de Deus se lembrar de nós (Sl 8.4).
“indefinido”). (Dox., 1,2,6). Tendo o sentido de “prestar atenção”,
sustentar, cuidar. Admira-se também
c) Anaxímenes (c. 585-528/525 a.C.): de Deus nos visitar. Que pode ter o
O Ar é o princípio de todas as coi- sentido de passar em revista, observar
sas (Dox., 1-2); inclusive dos deuses (Êx 3.16), vir ao encontro. O signifi-
e das coisas divinas; sendo o ar um cado no texto é de uma visita abençoa-
deus (Dox., 3). O homem é ar, bem dora e salvadora (Gn 21.1; 50.24-25/
como a sua alma; esta nos sustenta e Êx 13.19; Êx 4.31; Sl 17.3; 65.9; 80.15;
governa (Frag., 1; Dox., 5-6). 106.4).

Fizeste-o, no entanto, por um pou-
d) Heráclito de Éfeso (c. 540-480 a.C.): co, menor do que Deus ( ) e de gló-
Todas as coisas provêm do fogo – ria e de honra o coroaste” (Sl 8.5). Mais
que é eterno – e para lá retornarão do que a imensidão do universo, o que
(Frags., 30,31,90, Dox., 2). realmente conta é o valor e a dignida-
2  Doxografia, 1-4. de atribuída ao homem: Deus o criou

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à sua imagem. Ele tem características o Senhor; os anjos terão cumprido o seu
espirituais, intelectuais e morais se- papel (Hb 1.14). Todas as coisas estarão
melhantes às de Deus, apenas em grau sujeitas ao Senhor (1Co 15.26-28).
adequado à criatura finita. No entanto, O profeta Jeremias descreve a
isto se torna mais difícil de perceber Criação como uma manifestação da
devido ao pecado que ainda que não sabedoria e inteligência de Deus ( Jr
tenha aniquilado esta imagem, a defor- 10.12/ Jó 36.22/Sl 139.14).
mou gravemente. Se por um lado o homem partilha
O nome aplicado a Deus ( ) com os outros animais de uma identi-
pode referir-se, conforme interpreta dade de criação (Ec 3.19,20), por ou-
Hebreus, aos seres angelicais (Hb 2.6- tro, estabelece-se biblicamente uma
8). “Por um pouco” (5) parece significar grande distância entre o homem e o
“por pouco tempo”,3 ainda que não ne- resto da criação porque fomos criados
cessariamente. 4
à imagem de Deus, por isso, somos se-
A ideia básica, res pessoais como
então, é que o ho- Deus é, temos
mem após a queda uma personali-
foi colocado numa Somente a partir de uma visão dade que permite
posição tempora- correta de Deus podemos perceber não nos limitar-
riamente abaixo a beleza da Criação como uma mos ao nosso cor-
dos anjos. Contu- manifestação de sua bondade e poder. po, embora este
do, em Jesus Cris- faça parte de nós
to temos a verda- e não lhe seja algo
deira restauração mau, inferior ou
de nossa humanidade. Na ressurreição desprezível: a alma e o corpo são cria-
teremos novamente a imortalidade (Mt ções de Deus e, ele mesmo pelo seu po-
22.30); participaremos efetivamente do der ressuscitará o nosso corpo na vin-
juízo final (Mt 12.41-42; 19.28; 1Co 6.2- da gloriosamente triunfante de Jesus
3; Ap 20.4). Estaremos para sempre com Cristo. A ressurreição do corpo, por si
3  Cf. Derek Kidner, Salmos 1-72: introdução e só, é um indicativo relevante acerca da
comentário, (Sl 8.5-6), p. 84. Do mesmo modo: condição não desprezível da matéria.
Simon Kistemaker, Hebreus, São Paulo: Cul-
tura Cristã, 2003, (Hb 2.7-8), p. 94-95; Henry
O ser humano como criação secun-
M. Morris, Amostra de Salmos, Miami: Editora dária (em termos de ordem, não de im-
Vida, 1986, p. 22-23 e Betty Bacon, Estudos na portância), foi formado com maestria
Bíblia Hebraica, São Paulo: Vida Nova, 1991,
e habilidade de matéria previamente
p. 105. Veja-se: W.S. Plumer, Psalms, Carlisle,
Pennsylvania: The Banner of Truth Trust, © criada por Deus (Gn 3.19); entretan-
1867, 1975 (Reprinted), (Sl 8), p. 126-127. to, ele recebeu diretamente de Deus o
4 Veja-se, entre outros: Victor P. Hamilton, fôlego da vida (Gn 2.7), passando ao
Ma’at: In: R. Laird Harris, et. al., eds. Dicio-
nário Internacional de Teologia do Antigo Testa- mesmo tempo a ter uma origem terre-
mento, São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 862-863. na e celestial.

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Ao ser humano foi conferido o Desde a criação o homem foi co-
poder de ir além da matéria, podendo locado numa posição acima das ou-
raciocinar, estabelecer conexão e visua- tras criaturas, cabendo-lhe o domínio
lizar o invisível. sobre os outros seres criados, sendo
Ao homem, portanto, foi conce- abençoado por Deus com a capacidade
dido o privilégio responsabilizador de de procriar-se (Gn 1.22).
raciocinar, escolher livremente o seu ca- Como indicativo da posição ele-
minho de vida, verbalizar os seus pen- vada em que o homem foi colocado, o
samentos e emoções, podendo, assim, Criador compartilha com ele – aben-
dialogar com o seu próximo (Gn 3.6) e çoando e capacitando-o – do poder de
com Deus (Gn 3.9-13), sendo entendi- nomear os animais – envolvendo neste
do por ele e entendendo a sua vontade. processo inteligência e não arbitrarie-
O ser humano tem autoconsciên- dade – e também de dar nome à sua
cia: ele não se limita ao seu corpo; ele mulher (Gn 2.19,20,23; 3.20).
tem um corpo, mas não é simplesmen- E mais: Deus delega-lhe poderes
te o seu corpo, como os animais infe- para cultivar ( ) (‘abãr) (lavrar, ser-
riores o são. Curiosamente, o homem vir) e guardar ( ) (shamãr) (proteger,
é o único ser que tem consciência da vigiar) o jardim do Éden (Gn 2.15), de-
sua nudez. Paralelamente a isso, en- monstrando a sua relação de domínio,
contramos o homem no momento do não de exploração e destruição, antes,
nascimento, com certas desvantagens um cuidado consciente, responsável e
em relação aos outros animais, os quais preservador da natureza (Sl 8.6-8).
já desde bem cedo aprendem a sobre- Todavia, todas estas atividades en-
viver sem a intervenção necessária de volvem o trabalho compartilhado por
suas mães... Entretanto, estes animais Deus com o ser humano. O nomear,
não evoluem, não transformam, não procriar, dominar, guardar e cultivar re-
modificam as suas “culturas”. fletem a graça providente e capacitante
Somente o ser humano tem a devi- de Deus. É neste particular – domínio
da consciência da majestade de Deus – que o homem foi bastante aproximado
revelada na Criação. de Deus pelo poder que lhe foi conferido.
No entanto, ainda que isto seja de-
3. No Compartilhar de Seu Poder monstrado, especialmente pelo avanço
da ciência, novos e novos desafios sur-
“Deste-lhe domínio sobre as obras da gem. A plenitude deste domínio temos
tua mão e sob seus pés tudo lhe puseste” em Cristo Jesus, verdadeiro Deus e
(Sl 8.6). verdadeiro homem.
Deus compartilha com as suas cria- Algo admirável neste salmo, é que
turas o seu poder, ainda que não abrin- o salmista em seu hino começa com
do mão de sua soberania. O nosso do- Deus, glorificando o nome de Jeová
mínio está sob o domínio de Deus. ( ) e conclui tornando a ele, teste-

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munhando com júbilo a magnificência trazer à tona o verdadeiro sentido da
de seu nome em toda a terra (Sl 8.1,9). genuína humanidade (Hb 2.9).
A pergunta a respeito do que é o
Algumas aplicações homem, encontra a resposta plena em
Jesus Cristo, o verdadeiro e perfeito
Somente partindo de Deus podere- modelo de nossa humanidade.
mos ter uma visão correta da natureza Quando usamos adequadamente
e de nós mesmos. A visão significati- dos recursos que Deus nos confiou para
va de nossa horizontalidade, depende dominar a terra, estamos cumprindo o
fundamentalmente de uma compreen- papel da criação glorificando a Deus.
são correta de nossa verticalidade. A É necessário, portanto, que glorifique-
pergunta sobre o homem começa em mos a Deus em nosso trabalho pela
Deus e termina em Deus. Somente a forma legítima como o executamos.
partir de uma visão correta de Deus A natureza como a Criação em geral
podemos perceber a beleza da Criação não pode ser considerada separadamen-
como uma manifestação de sua bonda- te de Deus, pois deste modo ou ela tor-
de e poder. Deste modo, adquirimos na-se o centro de todas as coisas (ido-
uma ótica correta para enxergar a vida latria) ou, é menosprezada, tornando-se
e o dinamismo necessário para agir de apenas um detalhe cósmico o qual o
modo coerente com a nossa fé. homem pode usar a seu bel-prazer com
Cultivemos a sensibilidade para objetivos egoístas e, portanto, destrui-
com Deus que nos permita enxergar dores. Por isso, partilho do conceito de
a sua glória nas pequenas e grandes que é impossível uma genuína ecologia
coisas criadas. Não nos detenhamos – “o estudo do equilíbrio das coisas vivas
na natureza; toda natureza é um tes- na natureza”5 – divorciada da teologia
temunho sobrenatural da majestade de bíblica. A questão “ecológica” é, antes
Deus. Glorifiquemos a Deus tratando de tudo, uma questão teológica.
com honra e dignidade aquilo que ele A natureza tem valor não simples-
nos confiou para guardar. mente por uma questão pragmática – a
Temos de reconhecer a nossa inti- nossa sobrevivência –, mas, porque foi
midade e compromisso de obediência a criada pelo mesmo Deus que nos criou
este Deus majestoso: ele é o nosso Se- e nos incumbiu de amar e preservá-la.
nhor (Sl 8.1,9). Não ousemos menosprezar o que Deus
O modelo do que Deus tem para criou. A nossa humanidade é também
nós encontra a sua perfeição em Cristo, demonstrada na forma como lidamos
Aquele que por causa de nosso pecado, com a Criação. O valor de toda a rea-
motivado por sua graça inefável, se hu- lidade é-nos comunicado pelo Deus
milhou, assumindo a forma de servo, Criador, o nosso majestoso Senhor
inferior aos anjos, para que, vencendo 5  Francis A. Schaeffer, Poluição e a Morte do
a morte, o pecado e satanás, pudesse Homem, São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p. 12.

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Deus, o Criador
Stephen L. Wellum

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A Escritura deixa claro que
o Deus eterno e transcendente não
será reduzido à sua ordem criada
e que a distinção entre a criatura e
o Criador, negada pelo panteísmo,
é fundamental para um ponto de
vista cristão sobre o mundo".

É difícil superestimar a importân- A doutrina da criação, juntamente


cia da doutrina da criação. Nas Es- com a providência, deve ser vista como
crituras, Deus se identifica, primei- o resultado e a execução do plano e do
ramente, como o soberano Criador e, decreto eterno de Deus. A Escritu-
por isso, o Senhor do universo. Mui- ra mostra com clareza que o plano de
tos cristãos são naturalmente interes- Deus é o seu plano eterno pelo qual,
sados na doutrina da salvação, mas, antes da criação do mundo, ele preorde-
sem o Deus de criação e providência, nou fazer acontecer todas as coisas que
não há cristianismo como a Bíblia o chegam a acontecer (ver, por exemplo,
descreve. Na verdade, as bases teoló- Sl 139.16; Is 14.24-27; 37.26; 46.10-11;
gicas para a doutrina da salvação estão At 2.23; 4.27-28; 17.26; Rm 8.28-29;
arraigadas no fato de que o Deus que 9.1-33; Gl 4.4-5; Ef 1.4, 11-12; 2.10).
existe – o Senhor pessoal, soberano e A criação é a realização desse plano
trino que existe desde toda a eternida- eterno no que diz respeito à origem do
de – em um momento, falou e trouxe universo e de tudo que existe, incluindo
este universo à existência, a partir do os seres angelicais e humanos. A pro-
nada. E, como tal, tudo e todos são vidência, por outro lado, é a realização
completamente dependentes dele e do eterno plano de Deus, no tempo,
responsáveis a ele. em relação ao mundo que ele criou, em

14 | Revista f é pa r a h o je
termos de sua preservação e governo de gum tipo de necessidade que havia fora
todas as coisas para cumprirem os pro- ou dentro dele mesmo. Em vez disso,
pósitos a que foram designadas, para a ele, como o Deus trino, que é autoexis-
sua própria glória (ver, por exemplo, Sl tente e autossuficiente, decidiu espon-
103.19; 136.25; 145.15; Dn 4.34-35; At taneamente criar todas as coisas. Neste
17.28; Rm 11.36; Ef 1.11; Cl 1.17; Hb sentido importante, Deus não teve de
1.3). Deus, ao identificar-se a si mes- criar o universo; pelo contrário, devido
mo como o Deus soberano de criação à sua soberana e livre escolha e para seu
e providência, deixa bastante claro que próprio prazer, Deus se propôs a criar.
somente ele é Deus e que nenhum outro Essa é a razão por que a Escritura afir-
é Deus, que ele não compartilhará sua ma que Deus não precisa do mundo,
glória com nenhuma coisa criada e que e sim que o mundo e tudo que há nele
merece toda a nossa adoração, louvor e são total e completamente dependentes
obediência (ver, por exemplo, Is 40-48; de Deus. Terceira, dizer que Deus é o
Jr 10.1-16; Jo 17.3; 1 Tm 1.17). Criador significa que a criação é um ato
Além disso, quando afirmamos que do Deus trino. A criação é não somente
Deus é o Criador, estamos enfatizando, a obra do Pai (Gn 1.1; Sl 19.1-2; 33.6,
pelo menos, três verdades. Primeira, es- 9; Is 40.28; At 17.24-25; Ap 4.11), ela é
tamos ressaltando o fato de que Deus também a obra do Filho ( Jo 1.1-3; 1 Co
criou o universo a partir do nada (creatio 8.6: Cl 1.15-17; Hb 1.2) e a atividade
ex nihilo). As Escrituras começam com do Espírito Santo (Gn 1.2; Jó 33.4; Sl
a afirmação de que, “no princípio, criou 104.30). E, como um ato do Deus trino,
Deus os céus e a terra” (Gn 1.1). Antes a razão para a existência do universo é,
de o universo ser criado, nada existia, em última análise, a glória de Deus.
exceto o Deus trino. Entretanto, em um Assim como é importante afirmar o
momento, o Deus eterno falou e trouxe que queremos dizer positivamente com a
este universo de espaço e tempo à exis- doutrina da criação, também é necessá-
tência, “a partir do nada”, ou seja, sem o rio enfatizar o que não queremos dizer.
uso de quaisquer materiais previamente A definição bíblica da criação é contrá-
existentes. É por causa deste fato que ria tanto às opiniões antigas quanto às
a Escritura e a teologia cristã afirmam contemporâneas sobre as origens. Em
que a matéria não é eterna, mas apenas específico, a Bíblia rejeita os seguintes
uma realidade criada. Em outras pala- pontos de vista falsos referentes à origem
vras, somente Deus é o Deus autoexis- do universo e dos seres humanos.
tente, e tudo mais é dependente dele. • Primeiramente, a Bíblia rejeita
Segunda, estamos afirmando que Deus todos os pontos de vista naturalistas e
criou o universo espontaneamente. A evolucionistas quanto às origens. Em
Escritura não diz, em nenhuma de suas seu âmago, o naturalismo tenta ver as
passagens, que Deus teve necessidade origens apenas à luz de processos na-
de criar todas as coisas motivado por al- turalistas que envolvem a evolução da

Revista fé pa r a h oje | 15
matéria, por acaso, durante um perío- sobre esta situação infeliz em Romanos
do de tempo. É por meio desta ideia 1.8-32, argumentando que a existência
que as pessoas tentam explicar toda a do Deus da criação é manifestada clara-
complexidade e ordem do universo, in- mente para todas as pessoas, mas, devi-
cluindo os seres humanos. Neste ponto do à rebeldia do coração humano, a ver-
de vista, a matéria é entendida como dade de Deus tem sido voluntariamente
eterna ou, pelo menos, geradora de suprimida e distorcida por nós. Em vez
si mesma, independente da soberana de glorificarmos a Deus, que nos criou,
vontade de Deus. A Escritura rejeita e dar-lhe graças, temos mudado a gló-
francamente esta ideia. ria de Deus pelas realidades criadas. O
• Em segundo, a Escritura rejei- resultado final é, correta e tristemente,
ta todos os pontos de vista panteístas a ira justa, santa e perfeita de Deus que
sobre a criação. Neste ponto de vista, nos sobrevém devido ao nosso pecado e
não há uma distinção crucial entre o depravação. Nesta situação, a única es-
Criador e a criação; Deus e o mundo perança para nós é a soberania de Deus
são, essencialmente, um. Além disso, em graça e redenção.
o mundo é frequentemente explicado
como uma emanação ou efusão neces- A Importância Prática e Teológica
sária de toda a realidade – o Único. A da D outrina da C riação
Escritura deixa claro que o Deus eter-
no e transcendente não será reduzido à Qual é a importância prática e teo-
sua ordem criada e que a distinção en- lógica da doutrina da criação? Há mui-
tre a criatura e o Criador, negada pelo tos pontos que poderiam ser desenvol-
panteísmo, é fundamental para um vidos, mas pelo menos três reflexões
ponto de vista cristão sobre o mundo. são apropriadas.
• Em terceiro, a Escritura rejeita to- Primeira, a doutrina da criação
dos os entendimentos dualistas quanto identifica para nós o nosso Deus glo-
ao universo. No dualismo, há duas rioso. A criação nos lembra que o Deus
substâncias ou princípios distintos e que criou não é uma deidade pequena
coeternos dos quais tudo mais é deri- e insignificante. Não, ele é o Senhor
vado e que são frequentemente vistos sobre tudo, a fonte de tudo que existe
como duas forças antagonistas – o bem e aquele que é o único soberano. Além
e o mal. Outra vez, a Escritura mostra disso, a criação nos lembra que ele não
com clareza que somente Deus é Deus, é uma deidade distante. Antes, Deus é
que ele não tem rivais e não comparti- o “Senhor da aliança”, aquele que é o
lhará a sua glória com ninguém. Deus vivo e ativo, envolvido intima-
O que cada um destes três pontos mente em e com a sua criação, susten-
de vista falsos têm em comum é o fato tando, mantendo e governando cons-
de que tentam negar o glorioso Deus tantemente a sua criação e entrando
da criação. O apóstolo Paulo refletiu num relacionamento de aliança com

16 | Revista f é pa r a h o je
seu povo. O nosso Deus é verdadeira- uma redenção que somente Deus pode
mente grande, cheio de majestade, gló- realizar e consumar soberanamente.
ria, sabedoria, força e poder, devido ao Terceira, a doutrina da criação nos
fato de que ele é o Deus criador. diz algo sobre o nosso mundo em pelo
Segunda, a doutrina da criação nos menos duas áreas importantes. A pri-
diz algo sobre nós mesmos, como cria- meira área está relacionada a como de-
turas de Deus. É precisamente porque vemos ver este mundo em termos de va-
somos criaturas de Deus, feitos à sua lores. Visto que Deus criou este mundo,
imagem, que os seres humanos desfru- é importante enfatizar que ele tem valor.
tam de um papel singular na criação. Isto é evidenciado em Gênesis 1 pelo jul-
Ironicamente, quando as pessoas ten- gamento de valor “era bom” (vv. 4, 10, 12,
tam viver à parte de Deus e negam seu 18, 21, 25), da parte de Deus, e pela sua
Criador tanto em sua vida como em seu avaliação conclusiva “era muito bom” (v.
pensamento, elas descobrem que não 31). Neste contexto, “bom” indica que o
podem entender a si mesmas correta- mundo era não somente o que Deus pla-
mente. Assim, acabam vendo a si mes- nejara e tencionara, mas também que ele
mas como menos tinha grande valor.
do que são, ou Deus falou “Sim!”
seja, como ani- A teologia cristã rejeita para o que havia
mais ou máquinas criado. Uma impli-
qualquer noção ou de um
humanas, que têm cação importante
pouca ou nenhu-
universo “aberto” ou de um disto para a teolo-
ma importância e universo “fechado”. gia cristã é não ele-
valor. Mas o pon- varmos, em nosso
to de vista cristão pensamento e em
sobre os seres humanos, vinculado à nossa prática, o “espiritual” acima do “fí-
doutrina da criação, nos diz que Deus sico”. Isto foi um problema no passado e
nos fez com dignidade e valor e que isto, produziu vários entendimentos errados
em última análise, é a única base para na igreja. Ao criar este mundo, Deus
um entendimento apropriado dos se- valoriza tanto a realidade física como a
res humanos. Além disso, o fato de que espiritual. Infelizmente, como resultado
fomos criados por Deus também serve da Queda, ambas estão agora corrom-
como fundamento para toda a ética, pidas. Mas, na redenção, Deus fez uma
para a responsabilidade humana e para obra em Cristo que salva não somente a
um entendimento correto de nosso lu- nossa alma, mas também o nosso corpo.
gar, em sujeição a Deus, na sua criação. Por isso, há nas Escrituras a ênfase sobre
Mas, outra vez, devido à nossa rejeição a ressurreição de nosso corpo, para viver-
intencional de nosso Senhor e Criador, mos em novos céus e uma nova terra, na
temos nos posicionado contra ele e, as- presença de Deus, para sempre (ver 1 Co
sim, somos necessitados de redenção, 15; Ap 21-22).

Revista fé pa r a h oje | 17
A segunda área está relacionada ao losas e extraordinárias. Por conseguinte,
entendimento cristão da relação e en- o ponto de vista cristão sobre o mundo,
volvimento contínuo de Deus com seu unido à nossa doutrina de criação, nos
universo e das implicações disto para um permite ver o mundo em um padrão or-
ponto de vista cristão quanto à ciência. deiro e previsível, possibilitando assim a
É claro que muito poderia ser dito neste ciência. Enquanto o problema de mila-
assunto. Entretanto, basta dizer que, uma gres não é realmente um problema de-
vez que a ordem criada é o resultado da vido ao fato de que o Deus de criação é
decisão espontânea do Senhor soberano também o Deus de providência que sus-
e pessoal, ela é também planejada, orde- tenta o mundo continuamente e age nele.
nada, estruturada e governada por leis. Com base nesta breve considera-
Mas, em sua estrutura, a criação nunca ção, não é difícil perceber que a dou-
deve ser vista meramente em termos me- trina da criação e a afirmação de que
cânicos. A teologia cristã rejeita qualquer Deus é o Criador têm importância cru-
noção ou de um universo “aberto” ou de cial para a teologia cristã. Como já dis-
um universo “fechado”. Um universo se, sem o Deus de criação e providên-
“aberto” é o ponto de vista representado cia não há cristianismo como a Bíblia
pelo animismo. O animismo não enten- o descreve. Todas as outras doutrinas,
de o universo como que estando sob o incluindo a doutrina da salvação, estão
controle soberano de Deus, mas, em vez arraigadas e alicerçadas no fato de que
disso, ele é controlado por forças e espí- Deus é o criador soberano e Senhor de
ritos caprichosos. Um ponto de vista de seu universo. Na verdade, a doutrina
universo “fechado” é aquele representado da criação é também fundamental à
pela ciência moderna. Neste ponto de teologia cristã em outro sentido – ela é
vista, o universo é concebido como que o começo da história que leva à reden-
estando unicamente sob o controle de leis ção. Ao insistir no fato de que a criação
mecânicas, independentes da vontade e original de Deus era boa, a Bíblia pre-
do plano de Deus; e, por isso, este ponto para o cenário para o que sai errado – o
de vista concebe aquilo que é miraculoso pecado, a morte, a destruição – e para
como impossível. As Escrituras, porém, o desenvolvimento da linha histórica
rejeitam esses dois pontos de vista. Em da Escritura que culmina na vinda de
vez disso, as Escrituras nos apresentam um Redentor para corrigir as coisas.
um universo “controlado”. O ponto de Em última análise, todo o drama da
vista bíblico vê este mundo como ordei- história de redenção prenuncia a res-
ro e previsível devido à sua relação com o tauração – a transformação numa gló-
Deus de criação e providencia. Mas tam- ria ainda maior (Rm 8.1-27) – daquela
bém afirma que este mundo não é inde- bondade do universo que se tornou
pendente de Deus e que, se Deus quiser, corrompido e chega por fim ao alvore-
pode agir neste mundo e realizar seus cer de um novo céu e uma nova terra
planos e propósitos de maneiras miracu- (Ap 21-22), o lar da justiça (2 Pe 3.13)

18 | Revista f é pa r a h o je
A Importância Teológica da
Historicidade de Adão
Bruce A. Ware

Revista fé pa r a h oje | 19
Não somente a nossa
identidade biológica remonta
ao Adão histórico, mas também
o nosso estado como seres criados
à imagem de Deus remonta ao
primeiro homem".

A historicidade literal de Adão de resposta que tencionam abordar


como o primeiro ser humano, criado estas três perguntas.
por Deus, do pó da terra, é teologica- Primeiramente, a historicidade de
mente importante? Ou seja, alguém Adão como o primeiro ser humano li-
poderia negar a historicidade de Adão teral é ensinada e admitida em toda a
como o primeiro ser humano criado e, Bíblia. A linguagem e as descrições de
ainda assim, sustentar todos os ensinos Adão em Gênesis 5.3-5 – número de
essenciais da teologia evangélica? anos que ele viveu depois do nascimen-
As respostas para estas pergun- to de Sete, o fato de que ele teve outros
tas centralizam-se em (1) se a Bíblia filhos e o número total de anos que ele
apresenta Adão como o primeiro ser viveu – são idênticos à linguagem e as
humano histórico e literal, (2) se há descrições usadas a respeito de outros
uma conexão bíblica entre o Adão personagens históricos em Gênesis e
histórico, em sua criação e queda, e em outras partes da Bíblia (cf. o resto
certas doutrinas associadas normal- de Gn 5; Gn 11.10-26; Gn 25.7-11; 1
mente com o Adão histórico, e, (3) Cr 1-9). O cronista inicia a sua exten-
se isso é verdade, quais seriam estas sa genealogia de Israel com “Adão”,
doutrinas e qual seria a natureza da que dá início a toda a raça humana. Jó
conexão. Quero sugerir duas linhas contrasta a sua fraqueza diante de Deus

20 | Revista f é pa r a h o je
com Adão, que encobriu a suas trans- e impossível de ser explicada sem essa
gressões ( Jo 31.33). Oseias compara a história. Ou seja, há claramente uma
desobediência de Israel com Adão, que conexão bíblica entre o Adão histórico
transgrediu a aliança com Deus (Os e a teologia associada com ele, e a cone-
6.7). Lucas alicerça a genealogia de Je- xão é tal que a teologia depende dessa
sus no primeiro homem, Adão, o filho história e não existiria sem ela. Ou, di-
de Deus (Lc 3.38). Jesus entendeu Adão zendo-o em outras palavras, essa his-
e Eva como pessoas humanas literais, tória gera a teologia. Como você não
criadas por Deus e, depois, unidas no pode ter um filho sem uma mãe, tam-
primeiro casamento de um homem com bém não pode ter esta teologia sem a
uma mulher (Mt 19.4-6; Mc 19.6-9). história que a traz à existência.
As referências de Paulo a Adão como Considere, por exemplo, algumas
o primeiro ser humano em Romanos áreas cruciais da teologia associadas
5.12-18, 1 Coríntios 11.7-9. 1 Corín- com a historicidade verdadeira e literal
tios 15.21-22 e 2 Timóteo 2.13-14 são, de Adão. Primeira, a criação do homem
inconfundivelmen- à imagem de
te, a respeito desta Deus envolve a
pessoa histórica A teologia e a história criação literal do
que foi criada à estão entretecidas de tal modo primeiro ser hu-
imagem de Deus mano à imagem
(1 Co 11.7), antes
que a historicidade de Adão é de Deus, o ser
da mulher, que pro- essencial à esta teologia humano que se
cedeu dele (1 Co torna, por assim
11.8; 1 Tm 2.13), e dizer, a fonte de
que pecou, trazendo o pecado e a mor- todos os outros seres humanos que são,
te para todos os seus descendentes (Rm igualmente, à imagem de Deus. Gêne-
5.12-18; 1 Co 15.21-22). Por último, sis 5.3 faz a notável observação de que
Judas 14 se refere à pessoa histórica de Adão, aos 130 anos de idade, “gerou um
Enoque, o sétimo depois de Adão, que filho à sua semelhança, conforme a sua
também seria entendido como histó- imagem, e lhe chamou Sete” (Gn 5.3). A
rico. Uma leitura atenta destes textos linguagem neste versículo é, inconfun-
apoia a conclusão de que a própria Bí- divelmente, a mesma de Gênesis 1.26.
blia trata, repetidas vezes e sem exceção, Embora a ordem das palavras “imagem”
Adão como uma pessoa histórica literal, e “semelhança” esteja invertida, pare-
o primeiro humano criado por Deus. ce que tudo que se diz antes a respeito
Em segundo lugar, a historicidade de o homem ser criado à imagem e se-
de Adão é teologicamente importan- melhança de Deus é dito aqui, quando
te? Sim, ela é importante pela simples Sete é gerado à imagem e à semelhança
razão de que a teologia conectada com de Adão (Gn 5.3). O paralelismo desta
Adão é teologia arraigada na história linguagem nos leva a concluir que Sete

Revista fé pa r a h oje | 21
nasceu à imagem de Deus (o que ele em Adão. A linha histórica não pode ser
realmente era, cf. Gn 9.6) somente por- cortada sem eliminar a teologia corres-
que nasceu à imagem e à semelhança de pondente. O pecado original em Adão
Adão. Sem a conexão histórica e literal, e a vida eterna em Cristo estão ligados
de fato, biológica, entre Adão e Sete, o intrínseca e necessariamente à história.
status de imagem de Deus em relação a Terceira, nossa teologia de gênero e
Sete não existiria. E, se isso era verdade sexualidade está intrinsecamente liga-
quanto a Sete, é verdade também quan- da à criação do primeiro casal humano
to a nós. Não somente a nossa identida- e à natureza da união conjugal desig-
de biológica remonta ao Adão histórico, nada por Deus para eles. Quando Jesus
mas também o nosso estado como seres se referiu a Gênesis 2, e quando Pau-
criados à imagem de Deus remonta ao lo aludiu a aspectos de Gênesis 2 e 3,
primeiro homem, o primeiro ser huma- ambos entenderam Adão e Eva como
no histórico, Adão. pessoas históricas reais que exemplifi-
Segunda, a queda do homem no cavam a união vitalícia, em uma só car-
pecado é um ensino teológico central ne, de macho e fêmea que Deus plane-
fundamentado precisamente no que jou e trouxe à existência. Por sua queda
aconteceu na história. Paulo resumiu o histórica, Adão e Eva apartaram-se do
argumento nestes termos: “Visto que desígnio de Deus e produziram distor-
a morte veio por um homem, também ções pecaminosas tanto das relações de
por um homem veio a ressurreição dos gênero como da sexualidade humana.
mortos. Porque, assim como em Adão Nossa teologia de gênero e sexualida-
todos morrem, assim também todos de não é dissociada da história. Pelo
serão vivificados em Cristo” (1 Co contrário, o desígnio criado por Deus
15.21-22). Considere quatro observa- foi exemplificado, inicialmente, no pri-
ções: (1) Adão trouxe a morte ao mun- meiro homem e na primeira mulher
do (15.21a). (2) Todos os humanos que originais. E tanto Jesus como Paulo
procedem de Adão estão sujeitos à mor- se referiram a este desígnio trazido à
te (15.22a). (3) A reversão do pecado e existência por Deus e vivenciado real-
da morte de Adão acontece na realidade mente no Éden. De modo semelhante,
histórica do triunfo de Cristo por meio as perversões do bom desígnio de Deus
de sua ressurreição dos mortos (15.21a). estão arraigadas na rebelião histórica
(4) Todos os humanos unidos a Cristo contra Deus e contra seus caminhos
serão vivificados (15.22b). A realida- que aconteceu na história, registrada
de histórica da ressurreição de Cristo, para nós em Gênesis 3. Tanto neste
pela qual os que estão em Cristo são como em outros assuntos, a teologia e a
ressuscitados para viverem para sempre, história estão entretecidas de tal modo
é correspondente, nesta passagem, à que a historicidade de Adão é essencial
realidade histórica do pecado de Adão, à esta teologia. Esta teologia depende
que trouxe pecado e morte para todos dessa história e não existiria sem ela

22 | Revista f é pa r a h o je
O Homem e o Pecado
A desobediência fatal de Adão e a obediência
triunfante de Cristo
John Piper

Revista fé pa r a h oje | 23
A sublime superioridade
de Cristo é que ele não é
apenas bem-sucedido em obedecer
perfeitamente, mas o faz de tal
forma que milhões de pessoas são
consideradas justas pela
sua obediência".

"Portanto, assim como por um só ho- de uma só ofensa, para a condenação; mas
mem entrou o pecado no mundo, e pelo a graça transcorre de muitas ofensas, para
pecado, a morte, assim também a morte a justificação. Se, pela ofensa de um e por
passou a todos os homens, porque todos meio de um só, reinou a morte, muito mais
pecaram. Porque até ao regime da lei ha- os que recebem a abundância da graça e o
via pecado no mundo, mas o pecado não é dom da justiça reinarão em vida por meio
levado em conta quando não há lei. En- de um só, a saber, Jesus Cristo.  Pois as-
tretanto, reinou a morte desde Adão até sim como, por uma só ofensa, veio o juízo
Moisés, mesmo sobre aqueles que não sobre todos os homens para condenação,
pecaram, à semelhança da transgressão assim também, por um só ato de justiça,
de Adão, o qual prefigurava aquele que veio a graça sobre todos os homens para
havia de vir. Todavia, não é assim o dom a justificação que dá vida. Porque, como,
gratuito como a ofensa, porque, se, pela pela desobediência de um só homem, mui-
ofensa de um só, morreram muitos, muito tos se tornaram pecadores, assim também,
mais a graça de Deus e o dom pela gra- por meio da obediência de um só, muitos se
ça de um só homem, Jesus Cristo, foram tornarão justos. Sobreveio a lei para que
abundantes sobre muitos. O dom, entre- avultasse a ofensa, mas, onde abundou o
tanto, não é como no caso em que somente pecado, superabundou a graça,  a fim de
um pecou; porque o julgamento derivou que, como o pecado reinou pela morte, as-

24 | Revista f é pa r a h o je
sim também reinasse a graça pela justiça “para o dia da calamidade”. E, naquele
para a vida eterna, mediante Jesus Cris- dia, o poder, a justiça, a ira e o amor de
to, nosso Senhor." (Romanos 5.12–21) Cristo foram manifestos. Mais cedo ou
mais tarde, toda rebelião contra Cristo
Jesus é supremo resulta em ruína.

Jesus Cristo é a pessoa mais im- O Deus que está presente


portante no universo — não mais im-
portante que Deus, o Pai, ou Deus, o Tenho a convicção de que o cristia-
Espírito. Com eles, Cristo é igual em nismo não é meramente um conjunto
dignidade, perfeição, sabedoria, justi- de ideias, práticas e sentimentos desig-
ça, amor e poder. Mas ele é mais im- nados para nosso bem-estar psicológi-
portante que todas as outras pessoas co — seja ele designado por Deus ou
— sejam anjos ou demônios; reis ou pelo homem. Isso não é Cristianismo.
comandantes; cientistas ou artistas; fi- Ele começa com a convicção de que
lósofos ou atletas; músicos ou atores — Deus é uma realidade objetiva fora de
aqueles que vivem agora ou que sempre nós mesmos. Não o tornamos o que ele
viveram ou viverão continuamente. Je- é por pensar de certa forma com res-
sus Cristo é supremo. peito a ele. Conforme Francis Schae-
fer disse: “O Deus Presente”. Não o
Todas as coisas são para Jesus — até criamos. Ele é quem nos cria. Não
mesmo o mal decidimos como ele será. Ele decide
que seremos. Deus criou o universo e
Tudo o que existe — incluindo o o universo tem o propósito que Deus
mal — é ordenado por um Deus infini- concede a ele, não o propósito que nós
tamente santo e totalmente sábio para conferimos a ele. Se lhe dermos um
fazer a glória de Cristo brilhar com propósito diferente do divino, somos
mais esplendor. O texto de Provérbios insensatos. E nossas vidas serão trá-
16.4 diz: “O Senhor fez todas as coisas gicas no fim. Cristianismo não é um
para determinados fins, até o perverso jogo; não é uma terapia. Todas as suas
para o dia da calamidade”. Deus faz doutrinas fluem do que Deus é e do que
isso a seu próprio modo misterioso que ele faz na história. Elas correspondem
preserva a responsabilidade do perver- aos fatos rigorosos. O cristianismo é
so e a impecabilidade de seu próprio mais que fatos. Há a fé, a esperança e o
coração. As coisas foram feitas por amor. Mas eles não flutuam no ar; cres-
meio de Cristo e  para  Cristo (Colos- cem como grandes cedros na rocha da
senses 1.16). E isso inclui, Paulo afir- verdade de Deus.
ma, os “tronos, soberanias, principados Estou profundamente convencido
e potestades”, que foram derrotados pela Bíblia que nossa alegria, força e
por Cristo na cruz. Eles foram feitos santidade eternas dependem da soli-

Revista fé pa r a h oje | 25
dez dessa visão de mundo que é colocar Portanto, o pecado de Adão e a queda
fibra forte na espinha dorsal de sua fé. da raça humana com ele no pecado e
Tímidas visões de mundo produzem miséria não encontraram Deus despre-
cristãos tímidos. E cristãos tímidos não venido e é parte de seu plano abrangen-
sobreviverão aos dias à frente. Emocio- te para manifestar a plenitude da glória
nalismo sem raiz que trata o cristianis- de Jesus Cristo.
mo como uma opção terapêutica será Uma das formas mais claras de de-
eliminado nos Últimos Dias. Aqueles monstrar isso na Bíblia — e não vamos
que permanecerão firmes serão os que entrar em detalhes sobre esse assunto
construíram suas casas sobre a rocha aqui — é examinar aquelas passagens
da grande verdade objetiva com Jesus onde o sacrifício de Cristo que ven-
Cristo como a origem, o centro, e o ce o pecado é exposto como estando
propósito de tudo isso. na mente de Deus antes da criação do
mundo. Por exemplo, em Apocalipse
A glória de Jesus planejada no 13.8, João escreve sobre “aqueles cujos
pecado de A dão nomes não foram escritos no Livro da
Vida do Cordeiro que foi morto desde a
Nosso foco é no pecado extraor- fundação do mundo”. Assim, havia um
dinário do primeiro homem, Adão, e livro antes da fundação do mundo cha-
como esse pecado preparou o cenário mado  O Livro da Vida do Cordeiro que
mais extraordinário: a contrainserção foi morto. Antes que o mundo fosse cria-
de Jesus Cristo. Vamos voltar para Ro- do, Deus já havia planejado que seu Fi-
manos 5.12-21. lho seria morto como um cordeiro para
Quero focar na glória de Cristo salvar todos aqueles que estão escritos
como o principal propósito que Deus no livro. Poderíamos examinar mui-
teve em mente quando planejou e per- tos outros textos como estes (Ef 1.4-5;
mitiu o pecado de Adão e com ele a 2Tm 1.9; Tt 1.1-2; 1Pd 1.20) para per-
queda de toda a humanidade no pecado. ceber a visão bíblica de que os sofri-
A Palavra diz: “Seja o que Deus per- mentos e a morte de Cristo pelo pecado
mitir, ele o faz por uma razão”. E suas não são planejados depois do pecado
razões são sempre infinitamente sábias de Adão, mas antes. Portanto, quando
e propositais. Ele não tinha obrigação o pecado de Adão acontece, Deus não
de permitir que a Queda ocorresse. Ele é surpreendido por ele, mas já o tornou
poderia tê-la impedido, assim como te- parte de seu plano, o plano de mani-
ria evitado a queda de Satanás. O fato festar sua paciência, graça, justiça e ira
de que Deus não a impediu significa que maravilhosas na história da redenção,
ele tem uma razão, um propósito para e, então, em um clímax, revelar a mag-
ela. E ele não faz seus planos enquanto nificência de seu Filho como o segundo
acontece alguma atividade. Ele sabe o Adão, superior por todos os modos ao
que é sábio, sempre sabe o que é sábio. primeiro Adão.

26 | Revista f é pa r a h o je
Assim, examinamos Romanos 5.12- O versículo 14 apresenta o modo
21 desta vez tendo em mente que o pe- como Paulo reflete o restante da pas-
cado extraordinário de Adão não frus- sagem. Adão é chamado um “tipo” da-
trou os propósitos de Deus de exaltar a quele que viria, isto é, um tipo de Cristo.
Cristo, mas, pelo contrário, os serviu. Note o fato mais óbvio primeiramente:
Aqui está o modo como examinaremos Cristo “viria”. Desde o princípio, Cristo
esses versículos. Há cinco referências era “aquele que viria”. Paulo mostra que
explícitas a Cristo. Uma delas estabele- Cristo não é uma ideia tardia. Paulo não
ce o modo como Paulo pensa no que se diz que Cristo foi concebido como uma
refere a Cristo e Adão. E o restante mos- cópia de Adão. Ele afirma que Adão foi
tra como Cristo é superior a Adão. Dois um tipo de Cristo. Deus tratou Adão de
desses versículos são tão similares que osuma maneira que faria dele um tipo da
uniremos. Significa que examinaremos forma que ele planejou para glorificar
três aspectos da superioridade de Cristo. seu Filho. Um tipo é uma prefiguração
de algo que viria mais tarde e seria seme-
Jesus, “aquele que vem” lhante ao tipo — somente superior. Por
conseguinte, Deus tratou com Adão
Assim, vamos examinar a forma de uma maneira que o faria um tipo de
como Cristo é referido no versículo Cristo.
14 e vamos ler os versículos 12 e 13 Agora, observe com mais rigor,
para o contexto: “ 12  Portanto, assim exatamente onde, na fluência de seu
como por um pensamento,
só homem en- Paulo decide di-
trou o pecado no zer que Adão é
Não o tornamos o que um tipo de Cris-
mundo, e pelo
pecado, a morte, ele é por pensar de certa forma to. O versículo
assim também a com respeito a ele. 14: “Entretanto,
morte passou a reinou a morte
todos os homens, desde Adão até
porque todos pe- Moisés, mesmo
caram.  13 Porque até ao regime da lei sobre aqueles que não pecaram, à se-
havia pecado no mundo, mas o peca- melhança da transgressão de Adão, o
do não é levado em conta quando não qual prefigurava aquele que havia de
há lei.    Entretanto, reinou a morte
14
vir”. Ele decide nos dizer que Adão é
desde Adão até Moisés, mesmo so- um tipo de Cristo no momento após
bre aqueles que não pecaram, à se- afirmar que as pessoas que não peca-
melhança da transgressão de Adão, o ram como Adão o fez ainda sofrem
qual prefigurava aquele que havia de a punição que Adão sofreu. Por que
vir”. Há a referência a Cristo: “Aque- Paulo, justamente nesse ponto, decla-
le que havia de vir”. ra que Adão foi um tipo de Cristo?

Revista fé pa r a h oje | 27
Jesus, nosso representante inclusos no texto porque Adão foi o
pai de todos. Portanto, toda pessoa
O argumento de Paulo demonstra que você encontrar na América ou
a essência de como Cristo e Adão são em qualquer país de qualquer etnia
semelhantes e diferentes. Eis o parale- se defronta com o que esse texto fala.
lo: as pessoas cujas transgressões não Morte em Adão ou vida em Cristo.
foram iguais as de Adão morreram É um texto universal. Não perca isso
como Adão. Por quê? Porque estavam de vista. Ele é a realidade definido-
ligados a Adão. Ele foi o representante ra para cada pessoa que você sempre
da humanidade e seu pecado é consi- encontrará. Tímidas visões de mundo
derado deles devido à conexão deles produzem cristãos tímidos. Essa não
com Adão. Essa é a essência do porquê é uma visão de mundo tímida. Ela se
Adão é chamado um tipo de Cristo estende por toda a história e por toda
— pois nossa obediência não é igual à a terra. Ela influencia cada pessoa no
obediência de Cristo e, contudo, temos mundo e a cada manchete na internet.
vida eterna com Cristo. Por quê? Por-
que somos unidos a Cristo pela fé. Ele A celebração da superioridade
é o representante da nova humanidade de J esus
e sua justiça é considerada nossa justi-
ça pela nossa união com ele (Confira Vamos agora examinar três modos
Romanos 6.5). como Paulo celebra a superioridade de
Há um paralelo inferido em cha- Cristo e a obra dele sobre Adão e sua
mar Adão de um tipo de Cristo: obra. Eles podem ser resumidos sob três
frases: 1) a abundância da graça, 2) a per-
Adão > pecado de Adão > humani- feição da obediência, e 3) o reino da vida.
dade condenada nele > morte 1) A abundância da graça
eterna Primeiro, o versículo 15 e a abun-
dância da graça. “Todavia, não é assim
Cristo > justiça de Cristo > nova hu- o dom gratuito [a saber, o dom gratuito
manidade justificada nele > da justiça v. 17] como a ofensa, porque,
vida eterna se, pela ofensa de um só, morreram
muitos, muito mais a graça de Deus
O restante da passagem revela o e o dom pela graça de um só homem,
quanto Cristo e sua obra redentora Jesus Cristo, foram abundantes sobre
são superiores a Adão e sua obra des- muitos”. O ponto aqui é que a graça
trutiva. Tenha em mente o que disse de Deus é mais poderosa que a ofensa
no princípio. O que vemos aqui é a de Adão. É isso que as palavras “muito
revelação das realidades que definem mais” significam: “muito mais a graça
o mundo onde toda pessoa neste pla- de Deus… foram abundantes sobre
neta vive. Todos neste planeta estão muitos”. Se a ofensa do homem trou-

28 | Revista f é pa r a h o je
xe morte, muito mais a graça de Deus [isto é, a de Cristo] de um só, muitos se
trará vida. tornarão justos”. Assim, a graça de um
Mas Paulo é mais específico que só homem, Jesus Cristo, o impede de
isso. A graça de Deus é especifica- pecar — ela o mantém obediente até à
mente “a graça de um só homem, Jesus morte e morte de cruz (Fp 2.8) — de
Cristo”. “Muito mais a graça de Deus e modo que ele oferece uma obediência
o dom pela graça de um só homem, Jesus perfeita e completa ao Pai em nome
Cristo, foram abundantes sobre mui- daqueles que estão unidos com ele pela
tos”. Essas graças não são duas graças fé. Adão fracassou em sua obediência.
diferentes. “A graça de um só homem, Cristo procedeu perfeitamente. Adão
Jesus Cristo” é a encarnação da graça de foi a fonte de pecado e morte. Cristo
Deus. Essa é a forma com a qual Pau- foi a fonte de obediência e vida.
lo fala sobre ela, por exemplo em Tito Cristo é como Adão, que foi um
2.11: “A graça de Deus se manifestou tipo de Cristo — ambos são repre-
[a saber em Jesus] salvadora...”. E em sentantes de uma velha e uma nova
2 Timóteo 1.9: “Sua própria... graça, humanidade. Deus imputa o fracasso
que nos foi dada em Cristo Jesus”. Por de Adão à sua humanidade e o suces-
conseguinte, a graça que está em Jesus so de Cristo à sua humanidade, devido
é a graça de Deus. a como essas duas humanidades estão
Essa graça é a soberana graça. Ela unidas às suas respectivas cabeças. A
conquista tudo em seu caminho. Ve- sublime superioridade de Cristo é que
remos em um momento que ela tem ele não é apenas bem-sucedido em
o poder do rei do universo. É a graça obedecer perfeitamente, mas o faz de
imperial. Essa é a primeira celebração tal forma que milhões de pessoas são
da superioridade de Cristo sobre Adão. consideradas justas pela sua obediên-
Quando a ofensa de um só homem, cia. Você está unido somente a Adão?
Adão, e a graça de um só homem, Jesus Você está unido à parte da primeira
Cristo, se encontram, Adão e a ofensa humanidade destinada à morte? Ou
perdem. Cristo e a graça vencem. São você também está unido a Cristo e à
as boas-novas para aqueles que perten- parte da nova humanidade destinada à
cem a Cristo. vida eterna?
2) A perfeição da obediência 3) O reino da vida
Segundo, Paulo celebra a forma Terceiro, Paulo celebra não apenas
pela qual a graça de Cristo vence a a graça abundante de Cristo e a obe-
ofensa de Adão e a morte, a saber, a diência perfeita de Cristo, mas final-
perfeição da obediência de Cristo. O mente, o reino da vida. A graça con-
versículo 19: “Porque, como, pela deso- duz à obediência de Cristo rumo ao
bediência [a saber, de Adão] de um só triunfo da vida eterna. O versículo 21:
homem, muitos se tornaram pecadores, “A fim de que, como o pecado reinou
assim também, por meio da obediência pela morte, assim também reinasse a

Revista fé pa r a h oje | 29
graça pela justiça para a vida eterna, maior quanto a graça e a obediência
mediante Jesus Cristo, nosso Senhor”. extraordinárias de Cristo e o dom da
A graça reina por meio da justiça (isto vida eterna. De fato, o plano de Deus,
é, mediante a justiça perfeita de Cris- desde o princípio, em sua justiça per-
to) para o grande clímax da vida eterna feita, foi que Adão, como o represen-
— e tudo isso é “mediante Jesus Cris- tante da humanidade, seria um tipo de
to, nosso Senhor”. Cristo como o representante de uma
Ou, uma vez mais no versículo 17, nova humanidade. Seu plano foi por
a mesma mensagem: “Se, pela ofensa comparação e contraste que a glória de
de um e por meio de um só, reinou a Cristo brilharia com mais esplendor.
morte, muito mais os que recebem a O versículo 17 expressa o assunto
abundância da graça e o dom da justiça para você de uma forma muito pes-
reinarão em vida por meio de um só, a soal e muito urgente. Onde você se
saber, Jesus Cristo”. O mesmo padrão: situa? “Se, pela ofensa de um e por
graça por meio do dom gratuito de jus- meio de um só, reinou a morte, mui-
tiça conduz ao triunfo da vida e tudo to mais os que recebem a abundância
isso acontece mediante Jesus Cristo. da graça e o dom da justiça reinarão em
Mencionei anteriormente que a vida por meio de um só, a saber, Je-
graça de Deus em Cristo, a que Paulo sus Cristo”. Note as palavras muito
faz alusão nesses versículos, é a sobe- cuidadosamente e pessoalmente: “Os
rana graça. Eis o termo onde se perce- que recebem a abundância da graça e
be esse fato, a saber, na palavra reinar. o dom da justiça”.
A morte tem um tipo de soberania so-
bre o homem e reina sobre tudo. Todos Palavras preciosas para pecadores
morrem. Mas a graça vence o pecado e
a morte. Ela reina em vida mesmo so- Estas são palavras preciosas para
bre aqueles que outrora estavam mor- pecadores: a graça é gratuita, o dom é
tos. É graça soberana. gratuito, a justiça de Cristo é gratuita.
Vocês receberão tudo isso como a es-
A obediência extraordinária de Jesus perança e o tesouro de suas vidas? Se
receberem, vocês “reinarão em vida
Esta é a grande glória de Cris- por meio de um só, a saber, Jesus Cris-
to — ele ultrapassa imensamente em to”. Recebam isso agora. Testemu-
excelência o primeiro Adão. O peca- nhem isso no batismo. E tornem-se
do extraordinário de Adão não é tão uma parte viva do povo de Cristo

30 | Revista f é pa r a h o je
A Justificação Ainda
É Importante?
Michael S. Horton

Revista fé pa r a h oje | 31
A doutrina da
justificação foi definida como
o 'artigo pelo qual a igreja
se mantém de pé ou cai'”.

Há muito tempo, o nome evangéli- Admiravelmente, em um novo


co identificava aqueles que eram com- livro que contém ensaios sobre a jus-
prometidos não somente com o cris- tificação escritos por protestantes de
tianismo histórico, mas também com a igrejas históricas (luteranos e refor-
doutrina da justificação somente pela mados) e por católicos romanos, os
graça por meio da fé somente em Cris- protestantes rejeitam a doutrina da
to. Em nossos dias, porém, isso pode Reforma (por apelarem à Nova Pers-
não ser verdade. Cada vez mais, a eru- pectiva sobre Paulo), ao passo que Jo-
dição evangélica é desafiada por ten- seph Fitzmeyer, proeminente erudito
dências nos estudos bíblicos (em espe- católico romano de Novo Testamento,
cial, a Nova Perspectiva sobre Paulo) demonstra a exatidão técnica da exe-
para abandonarem o entendimento gese da Reforma quanto às passagens
da justificação sustentado pela Refor- importantes. Mark Noll, o grande
ma. Reconciliações recentes (como a erudito evangélico, em seu livro Is The
Declaração Conjunta de Luteranos e Reformation Over? (A Reforma Aca-
Católicos Romanos e “Evangélicos e bou?) parece falar em nome de muitos
Católicos Juntos”) têm revisado e re-
About?: The Status of the Justification De-
lativizado esta doutrina fundamental.1 bate”, Modern Reformation 11, no. 2 (March/
1  Ver Michael Horton, “What’s All the Fuss April 2002), pp. 17-21.

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protestantes conservadores quando de igreja e discipulado. No entanto,
responde sim. é muitíssimo claro que a justificação
O criticismo franco da doutrina permanece fora de cogitação. Quando
da justificação conforme definida em a justificação não é abertamente rejei-
nossas confissões e catecismos refor- tada, ela é frequentemente ignorada.
mados se tornou comum até em igrejas Talvez o perdão de pecados e a justifi-
conservadoras. Embora as cortes ecle- cação são apropriados para “ser salvo”,
siásticas destas denominações irmãs mas depois vem a essência do negócio
tenham exibido solidariedade estimu- – o viver cristão, como se pudesse ha-
lante em sustentar a posição confes- ver qualquer santidade de vida genuína
sional e instaurar processo contra os que não resulte de uma confiança per-
ministros que se opõem a ela, é trágico pétua em que “agora... nenhuma con-
que controvérsias sobre esta doutrina denação há para os que estão em Cristo
cardeal surjam em nossos círculos. Jesus” (Rm 8.1).
A maioria das pessoas nas igrejas É impossível especificarmos todas
não estão familiarizadas com a doutri- as razões para tal atitude em relação a
na da justificação. Frequentemente, ela esta doutrina que constitui o âmago do
não é uma parte da dieta de pregação e próprio evangelho. No entanto, neste
da vida da igreja, nem um tema predo- artigo comentarei duas das principais
minante na subcultura cristã. Ou com fontes.
rigor austero, ou com boas sugestões
para o viver melhor, “fundamentalistas” Cultura Cristã como Moralismo de
e “progressistas” sufocam, igualmente, Autoajuda
o evangelho em moralismo, por meio
de exortações constantes à transforma- Embora os reformadores tenham
ção social e/ou pessoal que mantém as dito isso de maneiras diferentes, foi o
ovelhas olhando para si mesmas e não teólogo reformado J. H. Alsted que,
para fora de si mesmas, para Cristo. no início do século XVII, identificou a
Mesmo em muitas igrejas formalmen- doutrina da justificação como o “artigo
te comprometidas com o ensino da Re- pelo qual a igreja se mantém de pé ou
forma, pessoas podem achar a doutrina cai”. Contudo, no século seguinte, de-
da justificação na parte de trás de seu nominações protestantes que haviam
hinário (na seção de confissões), mas selado esta confissão com o sangue de
ela é levada realmente a sério no ensi- mártires foram sujeitando-a, gradual-
no, na pregação, na adoração e na vida mente, a várias formas de moralismo
da congregação? Em média, o artigo de que predominavam na época do Ilu-
destaque mais publicado em revistas minismo – e, em muitos casos, piores
ou em best-sellers cristãos diz respeito do que as distorções que haviam pro-
a “boas obras” – tendências em espiri- vocado a Reforma. Até nos círculos
tualidade, ativismo social, crescimento pietistas, onde a fé vital em Cristo era

Revista fé pa r a h oje | 33
preservada, a balança se inclinou cada Os críticos de Finney o acusaram
vez mais em favor de obediência e pie- de pelagianismo – a antiga heresia que
dade subjetivas, e, assim, a justificação ensinava, em essência, que não nas-
foi subordinada à santificação. cemos inerentemente pecaminosos e
Quando o arminianismo ganhou que somos salvos por seguir o exemplo
forças, um novo legalismo (identificado moral de Cristo. Indo além dos erros
pelos círculos reformados como “neo- da Igreja de Roma, a Teologia Sistemá-
nomianismo”) entrou nas igrejas com- tica de Finney negava explicitamente
prometido formalmente com a doutrina o pecado original e insistia em que o
evangélica e produziu uma suspeita da poder da regeneração está nas mãos
pregação de eleição e justificação como do próprio pecador, rejeitava qualquer
motivações para o “antinomianismo”. noção de uma expiação vicária, em fa-
Depois de ler a obra A Serious Call to a vor da influência moral e de teorias de
Devout and Holy Life (Uma Chamada governo morais, e considerava a dou-
Solene a uma Vida Piedosa e Santa), de trina da justificação pela justiça impu-
William Law, John Wesley se conven- tada como “impossível e absurda”.2
ceu de que o calvinismo remanescente No que diz respeito ao complexo de
na Igreja da Inglaterra impedia um avi- doutrinas que ele associava com o cal-
vamento genuíno da piedade interior e vinismo (incluindo o pecado original, a
o discipulado comprometido. Embora expiação vicária, a justificação e o cará-
Wesley viesse, por fim, a abraçar a dou- ter sobrenatural do novo nascimento),
trina da justificação, ele ficou preocu- Finney concluiu: “Nenhuma doutri-
pado com que a justificação levaria à li- na é mais perigosa do que esta para a
cenciosidade, se não fosse subordinada prosperidade da igreja, e nada é mais
à santificação. absurdo”. “Um avivamento não é um
Nas colônias americanas, o Gran- milagre”, ele declarou. De fato, “Não
de Despertamento, sob a liderança de há nada na religião que esteja além dos
Jonathan Edwards e George White- poderes comuns da natureza”.3 Ache os
field, proclamaram as boas novas da métodos mais proveitosos (“estímulos”,
graça justificadora de Deus em Cris- ele os chamou), e haverá conversão.
to. Entretanto, na época do Segundo “Um avivamento declinará e cessará”,
Grande Despertamento, uma teologia Finney alertou, “se os cristãos não forem
contrária se tornou a teologia operan- frequentemente reconvertidos”.4 No final
te de muitos grupos protestantes na de seu ministério, quando Finney con-
nova república. A igreja é uma socie- siderou a situação de muitos que ha-
dade de reformadores morais, disse 2  Charles G. Finney, Systematic Theology
o seu principal evangelista, Charles (Minneapolis: Bethany, 1976), p. 320.
Finney. Se o calvinismo era verdade, 3  Charles G. Finney, Revivals of Religion
(Old Tappan, NJ: Revell, n. d.), pp. 4-5.
como poderia haver qualquer trans- 4  Finney, Revivals of Religion, p. 321. Ênfase
formação genuína da sociedade? no original.

34 | Revista f é pa r a h o je
viam experimentado seus avivamentos, recebe a palavra de Cristo e descansa
ele temia que a fome interminável por somente nela (vv. 5-8). “Como, porém,
experiências cada vez maiores pudesse invocarão aquele em quem não cre-
levar à exaustão espiritual.5 De fato, ram? E como crerão naquele de quem
suas preocupações eram justificáveis. nada ouviram? E como ouvirão, se não
A região em que predominaram os há quem pregue?... E, assim, a fé vem
avivamentos de Finney é agora referi- pela pregação, e a pregação, pela pala-
da pelo historiadores como o “distrito vra de Cristo” (vv. 14, 17).
queimado”, um canteiro tanto de de- Não parece incorreto considerar as
silusão como de proliferação de várias alegações teológicas de Finney como
seitas.6 Desde então, o evangelicalismo pelagianas. E sua influência perma-
tem se caracterizado por uma sucessão nece conosco hoje, tanto no protes-
de movimentos entusiastas aclamados tantismo ecumênico como no evan-
como “avivamentos”, que se extinguem gélico. Dietrich Bonhoeffer viu isto
tão rapidamente quanto se espalham. claramente em sua visita aos Estados
Paulo poderia dizer hoje sobre o pro- Unidos, ao descrever o cristianismo
testantismo americano o que ele disse americano como “protestantismo sem
sobre os seus irmãos segundo a carne: a Reforma”.7 Em vez da influência
de um testemunho verdadeiramente
Porquanto, desconhecendo a justi- evangélico, foi a propagação rápida do
ça de Deus e procurando estabele- avivalismo arminiano, especialmen-
cer a sua própria, não se sujeitaram te no próspero Oeste, que se mostrou
à que vem de Deus. Porque o fim mais eficaz em produzir “resultados”.
da lei é Cristo, para justiça de todo A doutrina em geral, e o calvinismo
aquele que crê (Rm 10.3-4). em específico, impediu o surgimento
de uma América cristã. “Obras e não
Há duas religiões, disse Paulo: “a credos” têm uma linhagem extensa na
justiça decorrente das obras” e “a justiça história do movimento.
decorrente da fé”. Enquanto a primeira Em geral, os americanos são o tipo
segue fervorosamente seus esquemas de pessoas “prospere por seus próprios
de autossalvação, como que tentando esforços”. Isto é o que, em parte, justi-
trazer Cristo para baixo ou levantando fica a enorme validade dos negócios e
-o dentre os mortos, a segunda apenas da indústria americana. Mas também
se tornou uma religião. Aqueles que
5  Ver Keith J. Hardman, Charles Grandison
saíram da miséria para a riqueza difi-
Finney: Revivalist and Reformer (Grand Rap-
ids: baker, 1990) pp. 380, 394. 7  Dietrich Bonhoeffer, “Protestantism with-
6  Ver, por exemplo, Whitney R. Cross, The out the Reformation, em No Rusty Swords:
Burned Over District: The Social and Intellec- Letters, Lectures and Notes, 1928-1936, ed. Ed-
tual History of Enthusiastic Religion in Western win H. Robertson, trans. Edwin H. Robert-
New York, 1800-1850 (Ithaca, N.Y.: Cornell son e John Bowden (London: Collins, 1965),
University Press, 1982). pp. 92-118.

Revista fé pa r a h oje | 35
cilmente aceitarão o fato de que, pelo luteranos petulantes. De acordo com
menos diante de Deus, eram pecado- o bispo William Willimon, da Igreja
res desamparados que precisavam ser Metodista Unida, “a autossalvação é
resgatados. o alvo de muito da nossa pregação”.8
No contexto contemporâneo, o Willimon percebe que muito da pre-
protestantismo americano, da esquer- gação contemporânea presume que a
da ou da direita, está comprometido conversão é algo que nós produzimos
com o legado de Finney, quer saiba, por meio de nossas próprias palavras
quer não. Isso pode ser reconhecido no e ordenanças. “Neste respeito, somos
“evangelho social” da esquerda e nas herdeiros de Charles G. Finney”, o
lamentações moralistas da direita; no qual pensávamos que a conversão não é
pragmatismo de “como” do movimen- um milagre, e sim um “resultado pura-
to de crescimento de igreja e na vasta mente filosófico [ou seja, científico] do
literatura e pregação de autoajuda que uso correto dos meios constituídos”.
se tornou a dieta da subcultura cristã; e
na obsessão terapêutica por espiritua- Esquecemos que houve um tempo
lidade interior e ativismo social que em que os evangelistas eram obri-
pode ser vista no movimento Igreja gados a defender suas “novas medi-
Emergente. Mesmo quando o evan- das” de avivamentos, que houve um
gelho é formalmente afirmado, ele se tempo em que os pregadores tinham
torna um instrumento para motivar de defender sua preocupação com a
a vida pessoal e pública (salvação por reação dos ouvintes aos seus detra-
obras), e não um anúncio de que a ira tores calvinistas, os quais pensavam
justa de Deus foi satisfeita e de que seu que o evangelho era mais importan-
favor imerecido foi dado gratuitamen- te do que seus ouvintes. Estou aqui
te em Jesus Cristo. argumentando que avivamentos são
Digo tudo isto com profunda tris- miraculosos, que o evangelho é tão
teza por ter de dizê-lo, porque é a pior estranho, tão contrário às nossas in-
coisa que pode ser dita sobre uma igre- clinações naturais e às enfatuações
ja. Paulo falou severamente com os de nossa cultura, que nada menos
coríntios por causa de sua imoralida- do que um milagre é exigido a fim
de, mas nunca questionou se eles eram de que haja um verdadeiro ouvir.
realmente uma igreja. Mas, quando a Minha posição é, portanto, mais
igreja da Galácia estava confundindo próxima da posição do calvinista Jo-
o evangelho da justificação gratuita de nathan Edwards do que da posição
Deus por meio da fé, Paulo os advertiu de Finney.9
de que estavam em risco de serem ex-
cluídos – excomungados, “anátemas”. 8  William H. Willimon, The Intrusive Word:
Preaching to the Unbaptized (Eugene, Ore.:
E a preocupação que expressei não Wipf & Stock, 2002), p. 53.
se limita a alguns poucos calvinistas e 9  Willimon, p. 20.

36 | Revista f é pa r a h o je
Apesar disso, “o futuro homilético, lística que conheço é um esforço para
infelizmente, está com Finney e não aprofundar pessoas cada vez mais em
com Edwards”, levando ao guru de sua subjetividade, e não uma tentativa
marketing evangélico George Barna, de resgatá-las de tal subjetividade”.11
que escreve: Nossa verdadeira necessidade, sinta-
mos ou não, é que distorcemos siste-
Jesus Cristo era um especialista maticamente e ignoramos a verdade.
em comunicação. Ele comunicou Esta é a razão por que precisamos de
sua mensagem em diversas ma- “uma palavra externa”.12 “Portanto,
neiras e com resultados que seria em um sentido, não descobrimos o
um crédito para as agências mo- evangelho; ele nos descobre. ‘Não fos-
dernas de marketing e propagan- tes vós que me escolhestes a mim; pelo
da. Ele promoveu seu produto da contrário, eu vos escolhi a vós outros’
maneira mais eficiente possível: ( Jo 15.16).”13 “A história é euangelion,
por comunicá-lo com as “melhores boas novas, porque ela é a respeito da
perspectivas”... Ele entendia com- graça. Mas é também novas porque
pletamente o não é conheci-
seu produto, mento comum,
desenvolveu não é o que nove
um incompa- A fé e a prática evangélica entre dez ameri-
rável sistema proclamadas nas Escrituras é canos já sabem.
de distribui- sempre não natural para nós. O evangelho não
ção, fomentou vem naturalmen-
um método de te. Ele vem como
promoção que Jesus.”14
penetrou cada continente e ofe- A fé e a prática evangélica procla-
receu seu produto a um preço que madas nas Escrituras é sempre não
está ao alcance de todo consumidor natural para nós. Nascidos em pe-
(sem tornar o produto tão acessível cado, corrompidos em nós mesmos,
a ponto de perder seu valor). 10
supomos instintivamente que somos
pessoas boas que poderiam ser me-
A pergunta que surge naturalmen- lhores, se tivéssemos um bom plano,
te diante de tais observações é esta: ambiente e exemplos. Quando visi-
É possível dizer que Jesus fez alguma tamos pessoas em seu leito de morte,
coisa nova? “Infelizmente”, diz Willi- ficamos desconcertados quando en-
mon, “a maioria da pregação evange- contramos velhos membros de igrejas

10  Willimon, p. 21, citando George Barna, 11  Willimon, p. 38.


Marketing the Church: What They Never Taught 12  Willimon, p. 38.
You about Church Growth (Colorado Springs, 13  Willimon, p. 43.
NavPress, 1988), p. 50. 14  Willimon, p. 52.

Revista fé pa r a h oje | 37
de confissão reformada expressando co”. Quando o entrevistamos recente-
sua esperança de terem sido suficien- mente para o ministério White Horse
temente bons para que Deus os aceite. Inn e para a revista Modern Reforma-
Nascemos pelagianos, confiando em tion, ele disse que não há nenhuma di-
nós mesmos e não em Deus; e esta é ferença entre os que não frequentam
a nossa condição padrão mesmo como a igreja e os jovens criados em igrejas
cristãos. Essa é a razão por que nun- evangélicas hoje.
ca admitimos o evangelho; ele tem
de ser a dieta principal não somente Quem Precisa da Justificação?
para o começo da peregrinação cristã,
mas também para o meio e para o fim. Deus justifica o ímpio. Isso é mui-
Quando as coisas se deterioram em to radical. É mais radical do que a afir-
nossa fé pessoal ou coletiva, a direção mação de que Deus cura o moralmente
é sempre a mesma: caímos de novo na enfermo e dá graça àqueles que estão
justiça de obras. dispostos a cooperar para isso ou que
Períodos de vitalidade e saúde ge- ele recompensa aqueles que tentam
nuínas são sempre a consequência de fazer o seu melhor. Nem precisamos
redescobrirmos o evangelho da graça; negar abertamente a justificação. Ela
épocas de declínio estão sempre asso- é relevante apenas quando paramos
ciados com o eclipse do evangelho de de fazer a pergunta mais importante.
um resgate totalmente divino, na pes- Você tem problemas no casamento e
soa e obra de Jesus Cristo. Visto que com os filhos? Com certeza. Não vive
Satanás perdeu a guerra no Gólgota de acordo com suas expectativas? To-
e no sepulcro, ele tem voltado os seus dos não vivem assim também? Não
ataques para a fé dos crentes no evan- está conseguindo o máximo da vida e
gelho e para o progresso do evangelho precisa de algum conselho legal? Sou
até aos confins da terra. Ele conhece o todo ouvidos. Mas não nos importa-
nosso ponto fraco e o explora. Se não mos com o fato de que somos “peca-
pode destruir a igreja por perseguição, dores nas mãos de um Deus irado”, se
Satanás a enfraquecerá por meio de nunca nos deparamos com um Deus
heresia. E o “pelagianismo” – a autos- santo. E, se não sentimos uma grande
salvação em todas as suas formas – é necessidade, não clamamos por um
seu melhor best-seller. grande Salvador.
Depois de realizar, com sua equi- Os católicos romanos e os pro-
pe, inúmeros estudos nos últimos testantes costumavam debater sobre
anos, o sociólogo Christian Smith, da como os nascidos em pecado original
Universidade da Carolina do Norte, são salvos pela graça. No entanto, es-
concluiu que a religião da juventu- sas categorias teológicas estão sendo
de americana pode ser caracterizada substituídas, entre os divisores cató-
como “deísmo moralista e terapêuti- lico/protestante e liberal/evangélico,

38 | Revista f é pa r a h o je
por categorias terapêuticas, pragmáti- mais realizadora. Por fim, a dimensão
cas e consumistas que parecem tornar vertical é quase perdida. O que torna o
irrelevante o próprio discurso sobre o pecado pecaminoso é o fato de que ele é,
evangelho. A pergunta “Como pos- antes de tudo, uma ofensa contra Deus
so ser aceito por um Deus santo?” é (Sl 51.3-5). Todavia, o resultado dessa
substituída por uma busca por autor- mentalidade que obscurece a santidade
realização, autorrespeito, autoestima de Deus, é que não é mais concebível
e esforço próprio. E há abundância de que Deus tenha se tornado carne para
pregadores que fomentarão o nosso sofrer a sua própria ira. O propósito
narcisismo, tratando de nossa ferida da cruz é levar-nos ao arrependimen-
como se não fosse tão grave e dizendo- to por mostrar-nos quanto Deus nos
nos como podemos ter nossa melhor ama (a teoria de influência moral da
vida agora mesmo. expiação), para demonstrar a justiça
A justificação se torna um símbo- de Deus (a teoria de governo moral)
lo vazio quando Deus não é mais um ou para libertar os oprimidos de estru-
problema para a humanidade, e sim turas sociais injustas (Christus Victor).
um ícone controlável ou de uma trans- Mas uma coisa que a cruz não pode ser
cendência irrelevante ou de uma fonte é o meio pelo qual somos “justificados
imanente e proveitosa de bem-estar por seu [de Cristo] sangue”, “somos
terapêutico e causas morais. Não sen- por ele salvos da ira” (Rm 5.9).
do mais perdidos, agora somos mais De fato, o teólogo luterano Geor-
semelhantes a vítimas disfuncionais, ge Lindbeck explorou recentemente a
mas bem intencionadas, que apenas relação inseparável entre a justificação
precisam de “capacitação” e melhores e a expiação, concluindo que, mesmo
instruções. Nossa experiência é remo- onde aquela é formalmente afirmada,
ta daquela dos israelitas reunidos ao a ampla falta de interesse em nossa re-
pé do monte Sinai, quando ouviram a jeição franca da linguagem tradicional
terrível voz de Deus e imploraram por da expiação deixa-a sem especificidade
um mediador. suficiente. Pelo menos na prática, a vi-
Quando a santidade de Deus é obs- são de salvação de Abelardo, a salva-
curecida, a condição pecaminosa do ção por seguir o exemplo de Cristo (e
homem é ajustada, primeiramente, ao a cruz como a demonstração do amor
nível de pecados – ou seja, a atos ou há- de Deus que motiva o arrependimen-
bitos específicos que exigem repreen- to) agora parece ter uma distinção
são e melhora. Cansados de intimida- clara em relação à teoria de satisfação
ções que realmente trivializam a con- de Anselmo sobre a expiação. “A ex-
dição pecaminosa, a próxima geração piação não está no topo das agendas
adota uma abordagem mais positiva, contemporâneas de católicos ou de
oferecendo “dicas para viver” que tor- protestantes”, Lindbeck conjectura.
narão a vida mais feliz, mais saudável e “Mais especificamente, as versões pe-

Revista fé pa r a h oje | 39
nal e vicária da teoria de satisfação de religiosa e, por conseguinte, era mais
Anselmo que predominaram entre o ofensiva, seus críticos pensavam, do que
povo durante centenas de anos estão a justiça própria basicamente moral dos
desaparecendo.15 Isso é tão verdadei- liberais abelardianos. Avançando em
ro para os protestantes evangélicos nossa história: os liberais cessaram pro-
quanto para os protestantes liberais. 16
gressivamente de ser abelardianos.17
Aqueles que continuaram a usar “Nossa cultura terapêutica de sen-
a linguagem sola fide presumiam estar tir-nos cada vez melhor é contrária à
em concordância com os reformadores, pregação da cruz” e nossa “sociedade
não importando quanto; mas, sob a consumista” fez da doutrina um pária.18
influência do pietismo e do avivalismo “Uma característica mais desconcer-
norteado por conversões, eles transfor- tante deste desenvolvimento, que tem
maram a fé que salva em uma boa obra afetado igrejas professamente confes-
meritória do livre-arbítrio, uma deci- sionais, é o silêncio a seu respeito. Tem
são voluntária de crer que Cristo sofreu havido poucos protestos audíveis.”19
a punição do pecado na cruz em meu Até teologias mais contemporâneas a
favor, em favor de cada pessoa indivi- respeito da cruz promovem o padrão
dualmente. Embora pareça muito im- de Jesus como Modelo, mas a própria
provável, devido justificação é rara-
à metáfora usada mente descrita
na Bíblia (e à pas- em harmonia com
sagem joanina da Deus justifica o ímpio. o padrão da Re-
qual ela vem), to- forma, mesmo
dos são, portanto, Isso é muito radical. por evangélicos
capazes de “nas- conser vadores,
cer de novo”, se Lindbeck sugere.
apenas tentarem A maioria deles,
o máximo que puderem. Assim, com como já indicamos, são conversionistas
a perda do entendimento da Reforma apegados a versões arminianas da ordo
quanto à fé que justifica como um dom salutis, que estão muito mais distantes
do próprio Deus, a teoria de expiação da teologia da Reforma do que esteve
sustentada por Anselmo se tornou cul- o Concílio de Trento.20 “Onde a cruz
turalmente associada com uma justiça estava, agora há um vácuo.”21 Hoje, o
própria que era tanto moral quanto evangelicalismo parece mais com Eras-
mo do que com Lutero.
15  George Lindbeck. “Justification and
Atonement: An Ecumenical Trajectory”, em
Joseph A. Burgess e Marc Kolden, eds., By 17  Lindbeck, pp. 207.
Faith Alone: Essays on Justification in Honor of 18  Lindbeck, pp. 207.
Gerhard O. Forde (Grand Rapids: Eerdmans, 19  Lindbeck, pp. 208.
2004), p. 205. 20  Lindbeck, pp. 209.
16  Lindbeck, pp. 205, 206. 21  Lindbeck, pp. 211.

40 | Revista f é pa r a h o je
A Justificação Promove a Paixão pela santificação, bem como o vínculo
Renovação Genuína entre a fé e a santificação.22

Hoje, um número cada vez maior Paulo relaciona tudo, inclusive a


de teólogos e líderes evangélicos re- santificação, os problemas de ética e
petem a acusação de Pelágio contra harmonia eclesiástica, à cruz e à res-
Agostinho, de Roma contra os refor- surreição de Cristo.
madores e do liberalismo protestante Outro dia, um pastor me contou
contra o evangelicalismo, ou seja, nas que alguns de seus colegas expressaram
palavras de Albert Schweitzer: “Não a preocupação de que pregar muito a
há lugar para ética na doutrina da jus- graça, especialmente a justificação, era
tificação sustentada pela Reforma”. perigoso – se não fosse logo acompa-
Seguindo teólogos evangélicos como nhada por advertências à obediência.
Stanley Grenz, Brian McLaren e ou- Conhecendo bem este pastor, fiquei
tros líderes da “Igreja Emergente” de- surpreso com o fato de que estivessem
safiam explicitamente sola fide como apontando para ele esta preocupação.
um obstáculo ao principal ponto do Afinal de contas, ele é correto em sua
cristianismo: seguir o exemplo de Je- teologia. Afirma e prega o terceiro uso
sus. Embora o viver autêntico traga da lei (como um guia para a obediência
valor ao evangelho, o seguir o exemplo cristã). Às vezes, esquecemos que Pau-
de Jesus está se tornando cada vez mais lo foi acusado de ser antinomiano – ou
o evangelho. seja, de convidar as pessoas a pecar para
A observação de G. C. Berkouwer que a graça fosse mais abundante. Mas,
ainda é relevante em nossos próprios em vez de evitar a doutrina da justifi-
dias, quando ele escreveu que “o pro- cação (Rm 3-5) que ele sabia haveria
blema da renovação de vida é atrair a de provocar essa questão de novo, o
atenção dos moralistas”. apóstolo explicou como o evangelho
é a resposta para a tirania do pecado,
Entre inúmeras forças caóticas e bem como da sua condenação (Rm 6).
desmoralizantes, está ressoando, O evangelho da justificação gratuita é a
como pela última vez, o clamor fonte de santificação genuína e não seu
por ajuda e ensino, pela reorgani- inimigo. No entanto, isso é contrário
zação de um mundo desordenado. ao que o nosso senso comum sugeriria.
A terapia prescrita talvez varie, a É a lógica do evangelho e não a lógica
chamada por rearmamento moral de justiça de obras.
e espiritual é uniformemente in- Como uma cultura nativa, o evan-
sistente... Estas são as questões que gelicalismo americano é ativista. So-
temos de responder. Pois, implícita mos acostumados a ser produtores e
nelas, está a intenção de destruir 22  G. C. Berkouwer, Studies in Dogmatics:
a conexão entre a justificação e a Faith and Sanctification (Grand Rapids: Ee-
rdmans, 1952), pp. 11-12.

Revista fé pa r a h oje | 41
consumidores, mas não recebedores – gregações principalmente como uma
pelo menos, pecadores desamparados comunhão crentes.”25 Compartilhamos
e ímpios que têm de reconhecer que nossas jornadas (nosso “testemunho”)
sua salvação é um dom gratuito, inde- de transformação pessoal.26 Portanto,
pendente de sua decisão e esforço (Rm “uma mudança fundamental de auto-
9.16). Obcecados com o que acontece consciência pode estar em andamento”
conosco, a espiritualidade evangélica no evangelicalismo, “uma mudança
tem por muito tempo – pelo menos de identidade baseada em credo para
na prática – obscurecido as boas novas uma identidade baseada em espiritua-
daquilo que aconteceu de uma vez por lidade” que é mais semelhante ao mis-
todas fora de nós. A justificação pode ticismo medieval do que à ortodoxia
ser relevante para evitar a ira de Deus protestante.27 Consequentemente, a
(pelo menos onde ela ainda é afirma- espiritualidade é interior e quietista”,28
da), mas ela é realmente tão importan- preocupada com combater “a nature-
te para a vida cristã? Não seria mais za inferior e o mundo”,29 por meio de
proveitoso e prático aprender passos “um compromisso pessoal que se torna
que conduzem à vitória sobre o pecado o foco crucial das afeições do crente”.30
em nossa vida e nossa cultura? Portanto, a origem da fé não é atribuída
No livro Revisioning Evangelical a um evangelho externo, mas surge de
Theology (Revisando a Teologia Evan- uma experiência interior. “Visto que a
gélica), Stanley Grenz argumenta que espiritualidade é gerada a partir do in-
o evangelicalismo é mais uma “espiri- terior do indivíduo, motivação interior
tualidade” do que uma “teologia”, mais é crucial” – mais importante, de fato, do
interessado na piedade individual do que “grandes afirmações teológicas”.31
que em credos, confissões e liturgias.23
A experiência dá origem a – na verda- A vida espiritual é, antes de tudo, a
de, ele diz, “determina” – doutrina, e imitação de Cristo... Em geral, evi-
não vice-versa.24 O principal ponto da tamos rituais religiosos. Rejeita-
Bíblia é como as histórias podem ser mos a aderência servil a ritos, mas
usadas no viver diário – por isso, a ên- o fazer o que Jesus faria é o nosso
fase em devoções diárias. “Embora al- conceito de verdadeiro discipula-
guns evangélicos pertençam a tradições do. Consequentemente, a maio-
eclesiásticas que entendem, em algum ria dos evangélicos não aceitam o
sentido, a igreja como um despenseiro sacramentalismo de muitas igre-
de graça, em geral vemos nossas con-
25  Grenz, p. 32.
26  Grenz, p. 33.
23  Stanley Grenz, Revisioning Evangelical 27  Grenz, pp. 38, 41.
Theology: A Fresh Agenda for the 21st Centu- 28  Grenz, pp. 41-42.
ry (Downers Grove, Ill.: InterVarsity Press, 29  Grenz, p. 44.
1993), pp. 17, 31 e em todo o volume. 30  Grenz, p. 45.
24  Grenz, pp. 30, 34. 31  Grenz, p. 46.

42 | Revista f é pa r a h o je
jas tradicionais, nem se unem aos e formal” – em outras palavras, solo
quacres que eliminam completa- Christo e solo Scriptura.37
mente os sacramentos. Praticamos Quando a transformação pessoal e
o batismo e a Ceia do Senhor, mas social se torna o principal ponto de fé
entendemos o significado destes e prática, não devemos admirar que a
ritos de maneira prudente.32 linha distintiva entre catolicismo roma-
no e evangelicalismo se obscurece. Para
Ele diz que estes ritos são pratica- Roma, é claro, a justificação é simples-
dos como estímulos para a experiência mente santificação: a transformação
pessoal e não por obediência à ordem moral do crente. A graça é oferecida,
divina.33 mas temos de cooperar com ela, se te-
mos finalmente de ser aceitos e renova-
Prossiga no dever; coloque sua vida dos. De fato, com sua história mais lon-
em ordem, para que, pela uso dos ga e mais sofisticada de influência cul-
meios de ajuda, você cresça e veja tural, a superioridade de Roma na arena
se não amadurece espiritualmen- de transformação do mundo é aparente.
te”, nós exortamos. De fato, se um De fato, uma vez que nosso interesse
crente chega ao ponto em que sen- em melhorarmos a nós mesmos e ao
te que a estagnação se estabeleceu, mundo tenha tornado irrelevante (ou
o conselho evangélico é redobrar mesmo problemática) a justificação so-
os seus esforços no dever de pra- mente pela fé, por que os mórmons e
ticar as disciplinas. “Examine a si os evangélicos devem continuar dividi-
mesmo”, o conselheiro espiritual dos? Não mais divididos por doutrina, a
evangélico admoesta.34 “cultura de protestantismo” da América
ameaça submergir totalmente o evan-
Vamos à igreja, ele diz, mas não gelicalismo, como o fez nas principais
para recebermos “os meios de graça”, denominações ecumênicas. As únicas
e sim para que tenhamos comunhão, denominações que ficarão com alguma
recebamos “instrução e encorajamen- identidade serão, talvez, os partidos Re-
to”.35 A ênfase no crente individual é publicano e Democrata.
evidente, ele diz, na expectativa de De acordo com o que já conside-
“achar um ministério” na comunhão ramos, a justificação não é o primeiro
local.36 Tudo isso é contrário a uma ên- estágio da vida cristã, e sim a fonte per-
fase em doutrina e, Grenz acrescenta, manente de santificação e boas obras.
uma ênfase em “um princípio material Lutero resume: “‘Porque você crê em
mim’, diz Deus, ‘e sua fé se apropria de
32  Grenz, p. 48. Cristo, que eu lhe dei gratuitamente
33  Grenz, p. 48. como Justificador e Salvador, portanto,
34  Grenz, p. 52.
35  Grenz, p. 54. seja justo’. Assim, Deus aceita você e o
36  Grenz, p. 55. 37  Grenz, p. 62.

Revista fé pa r a h oje | 43
considera justo tão somente por causa não cumprirem a medida exata de
de Cristo, em quem você crê”.38 Não seus deveres. Mas filhos, que são
importando qualquer outra boa nova tratados mais generosa e branda-
(concernente ao novo nascimento, à vi- mente por seus pais, não hesitam
tória de Cristo sobre a tirania do peca- em oferecer-lhes obras incomple-
do e à promessa de nos renovar duran- tas, feitas pela metade e até defi-
te toda a nossa vida, à ressurreição de cientes, crendo que sua obediência
nosso corpo e ao livramento da presen- e prontidão de mente será aceita
ça do pecado) ou quaisquer exortações por seus pais, embora não tenham
úteis que possamos oferecer, o anúncio realizado o que seus pais tenciona-
que Lutero resume nestas palavras cria vam. Devemos ser esse tipo de filho,
sozinho e sustenta a fé que não somen- crendo firmemente que nossos ser-
te justifica, mas também santifica. viços serão aprovados por nosso Pai
As boas obras podem ser realizadas muitíssimo misericordioso, ainda
agora livremente para Deus e o nosso que esses serviços sejam insignifi-
próximo sem qualquer temor de puni- cantes, rudes e imperfeitos... E pre-
ção ou de agonia quanto aos motivos cisamos desta segurança em grau
confusos de cada ato. Por causa da jus- profundo, pois, sem ela, tentaremos
tificação em Cristo, até as nossas boas fazer tudo em vão.39
obras podem ser “salvas”, para apri-
morar não a parte de Deus, nem mes- “Por causa da justificação”, acres-
mo a nossa, e sim a do nosso próximo. centa Ames, “a corrupção das boas
Como Calvino explica, obras não impede que elas sejam acei-
tas e recompensadas por Deus”.40
Mas se, libertos desta exigência Este ponto de vista não somente
severa da lei ou, melhor, de todo o fundamenta as boas obras na fé, mas
rigor da lei, eles ouvem a si mesmos também liberta os crentes para ama-
sendo chamados com cordialidade rem e servirem seu próximo sem o
paternal por Deus, eles responde- motivo de obterem alguma coisa ou
rão com alegria e grande ardor e se- o temor de perderem o favor divino.
guirão esta orientação. Resumindo: Ele nos libera para um ativismo que
aqueles que estão presos ao jugo da abrange o mundo e é profundamente
lei são, igualmente, servos que rece- consciente de que, embora nosso amor
bem certas tarefas de seus senhores, e serviço nada contribuam para Deus e
cada dia. Estes servos pensam que sua avaliação de nossa pessoa, eles são,
não fizeram nada e não ousam com- apesar de realizados com fragilidade,
parecer diante de seus senhores, se
39  John Calvin, Institutes of Christian Reli-
38  Martin Luther, Lectures on Galatians gion, 3.19.5.
1535, vol. 26, Luther’s Works, eds. Jaroslav Pe- 40  William Ames, Marrow of Theology (Grand
likan e Walter A. Hansen (St. Louis: Concor- Rapids: Baker Academic, 1997), p. 171.
dia Publishing House, 1963), p. 132.

44 | Revista f é pa r a h o je
indiferença e imperfeição, meios pelos É o começo que tem sua base uni-
quais Deus cuida da criação. camente na justificação pela fé...
Mesmo com a terminologia me- Não é verdade que a santificação
dieval, a teologia reformada pode apenas sucede a justificação. O Dia
manter o seguinte: do Senhor, pergunta 31, que discu-
te as chaves do reino, ensina que o
A renovação não é um mero suple- reino é aberto e fechado pela pro-
mento, um acréscimo, à salvação clamação “aos crentes, um e todos,
dado na justificação. O âmago da de que, quando eles recebem a pro-
santificação é a vida que se desen- messa do evangelho por meio da fé
volve da justificação. Não há con- verdadeira, todos os seus pecados
traste entre a justificação como o lhes são realmente perdoados”.
ato de Deus e a santificação como Este “quando” ilustra a relevância
o ato do ho- permanente da
mem. O fato correlação entre a
de que Cristo é fé e a justificação...
a nossa santifi-
Nossa cultura terapêutica de O propósito da
cação não é ex- sentir-nos cada vez melhor é pregação dos Dez
clusivo, e sim contrária à pregação da cruz. Mandamentos
inclusivo, de é que os crentes
uma fé que se possam “tornar-
apega tão so- se mais fervorosos
mente a ele em toda a vida. A fé é o em buscar a remissão dos pecados e
eixo sobre o qual tudo gira. Embora a justiça em Cristo” [Catecismo de
a própria fé não crie a santificação, Heidelberg, Pergunta 115]... Por
ela nos preserva de autossantifica- conseguinte, nunca há progresso
ção e de moralismo.41 no caminho da salvação onde a jus-
tificação é tirada de vista.42
A questão real, disse Berkouwer,
é se a justificação é suficiente para “A santificação genuína – seja repe-
fundamentar toda as bênçãos comu- tido – permanece firme ou decai com
nicadas em nossa união com Cristo. esta orientação permanente direcio-
“O mesmo catecismo [Heidelberg, Dia nada para a justificação e a remissão
do Senhor, pergunta 24] que nos nega dos pecados.”43 Quando falamos sobre
até uma justiça parcial de nós mesmos santificação, não deixamos a justifica-
menciona o propósito solene com o ção para trás. “Não estamos aqui preo-
qual os crentes começam a viver” de cupados com a transição da teoria para
acordo com todos os mandamentos. a prática; como se devêssemos proceder
42  Berkouwer, p. 77.
41  Berkouwer, p. 93. 43  Berkouwer, p. 78.

Revista fé pa r a h oje | 45
de uma fé na justificação para as rea- te cientes de que, em mudarmos da
lidades da santificação, porque pode- justificação para a santificação, não
mos, da mesma maneira, falar sobre a estamos nos retirando da esfera da
realidade da justificação e da nossa fé fé. Não estamos aqui preocupados
na santificação.”44 Paulo ensina que os com a transição da teoria para a prá-
crentes são “santificados em Cristo Je- tica; como se devêssemos proceder
sus” (1 Co 1.2, 30; 6.11; 6.11; 1 Ts 5.23; de uma fé na justificação para as
cf. At 20.32; 26.18). Como Bavinck o realidades da santificação, porque
diz: “Muitos reconhecem, de fato, que podemos, da mesma maneira, falar
somos justificados pela justiça de Cris- sobre a realidade da justificação e da
to, mas parecem pensar que – pelo me- nossa fé na santificação.46
nos, agem como se pensassem – têm de
ser santificados por uma santidade que Isso significa que Berkouwer acha-
eles mesmos adquiriram”.45 va “incompreensível” que o ponto de
“O apóstolo Paulo”, Berkouwer vista da Reforma tenha sido criticado
escreve, “prega santidade com repeti- como algo que não exercia qualquer
do fervor, mas de maneira nenhuma influência na santificação ou na vida
ele compromete sua declaração ine- de santidade. Ela tem tudo a ver com
quívoca: ‘Porque decidi nada saber a santificação, porque ela leva tudo de
entre vós, senão a Jesus Cristo e este volta à fé em Cristo.47
crucificado’ (1 Co 2.2)”. Portanto, a santificação não é um
projeto humano que suplementa o
Nem por um momento ele afron- projeto divino de justificação, nem
taria as implicações dessa con- um processo de negociar as relações
fissão. Por conseguinte, em cada causais entre o livre-arbítrio e a graça
exortação ele devia estar relacio- infundida; é, antes, o impacto da Pa-
nando seu ensino à cruz de Cris- lavra justificadora de Deus em cada
to. Deste centro, todos os raios aspecto da vida humana. É tempo de
brilham em direção ao exterior – colocarmos os bois na frente do carro
atingindo a vida de cidades e vilas, novamente, para que, primeiramente,
de homens e mulheres, de judeus e a igreja seja, outra vez, um lugar onde
gentios; atingindo famílias, jovens a obra salvadora de Deus será conhe-
e idosos, conflitos e desafetos, cida e experimentada e, também, para
imoralidade e bebedeira. que aquela genuína renovação pes-
Se queremos manter em perspec- soal e coletiva possa surgir a partir da
tiva este centro, bem como os raios contínua maravilha do evangelho: a
mais suaves e mais intensos que justificação gratuita de Deus para os
fluem dele, temos de ser plenamen- ímpios – até mesmos cristãos
44  Berkouwer, p. 20. 46  Berkouwer, p. 20.
45  Citado em Berkouwer, p. 22. 47  Berkouwer, p. 20.

46 | Revista f é pa r a h o je
Vivendo “Já” com Vistas
ao “Ainda Não”
Heber Carlos de Campos Júnior

Revista fé pa r a h oje | 47
Viver à luz da redenção
envolve a noção de uma redenção
tão abrangente que afeta pessoas
não só em sua espiritualidade,
mas em todas as áreas de sua vida,
inclusive o seu habitat".

O cenário brasileiro tem experi- que qualquer outro segmento da cris-


mentado um influxo impressionante tandade (com nomes como James Orr,
de livros que abordam o tema da cos- Abraham Kuyper, Herman Dooyewe-
movisão. Simplificando um assunto erd, Francis Schaeffer, etc.), os auto-
bastante complexo, cosmovisão diz res modernos tratam de certos marcos
respeito a pressuposições que todo o históricos do cristianismo como fun-
ser humano possui (esteja ele cons- damentos da cosmovisão reformada:
ciente ou não) que residem em nosso criação, queda e redenção. Esse tripé
mais interior (coração) formando as- tem sido uma das características mais
sim uma orientação de vida, um com- comuns entre os livros que tratam de
prometimento com verdades pelas cosmovisão. Não que outros cristãos
quais você vive e morre. Trata-se de não afirmem tais acontecimentos na
um conjunto de motivações, crenças, história da humanidade, mas são os
certezas, valores e ideais que formam reformados que costumam enfatizar
o instrumento interpretativo da re- com maior frequência a importância de
alidade, além de ser a base de nossas considerar a praticidade desses eventos
ações e decisões. para o nosso dia a dia.
Devido à tradição reformada refle- Esses pilares históricos não de-
tir sobre esse assunto há mais tempo do vem ser vistos como meros conceitos

48 | Revista f é pa r a h o je
ou categorias intelectuais. Não se patamar acima da vida comum, nem
tratam de proposições atemporais. A mantém a fé e a vida comum em cons-
cosmovisão é uma história, a história tante tensão. Eles se colocam como
da humanidade, a nossa história. Esse agentes transformadores da cultura.
elemento existencial não pode ser es- Autores modernos têm perpetuado
quecido no estudo de cosmovisões. essa leitura de Niebuhr e falado da im-
Sendo assim, é quando encarnamos portância de uma fé holítisca no en-
as verdades dessa história, e vivemos gajamento cultural. Os proponentes
conscientes dessa história, que nossa dessa visão falam de ir além de envol-
cosmovisão se coaduna com a revela- vimento cultural.1 Os cristãos devem
ção bíblica. Viver à luz da criação sig- trazer os efeitos da obra redentora de
nifica, por exemplo, relacionar-se com Cristo para as várias esferas da vida.
as pessoas mais complicadas à luz do Precisamos de cautela para não
fato de ainda serem imagem e seme- sermos nem pessimistas demais, nem
lhança de Deus. Viver à luz da queda otimistas demais. Aos cristãos cabe o
implica em não nutrir sonhos utópi- redirecionamento da cultura numa di-
cos resultantes do esforço humano reção redentiva que a restaure, o máxi-
para construir uma sociedade melhor. mo possível, dos efeitos do pecado. Isto
Viver à luz da redenção envolve a no- não significa que nossa postura é de
ção de uma redenção tão abrangente “transformação”, uma palavra otimista
que afeta pessoas não só em sua espi- demais. Nossa atitude é de Reforma,
ritualidade, mas em todas as áreas de participando dos movimentos de Deus
sua vida, inclusive o seu habitat. em restaurar certas áreas da sociedade
Na área da redenção é que calvi- inclinada ao mal. Podemos ser instru-
nistas têm o perigo de comunicar uma mentos de Deus para frear a derrocada
mensagem indevida. Se por um lado, moral e espiritual como foram os reis
atacam corretamente o pessimismo do de Judá que operaram Reforma após
mundo evangélico em não integrar a períodos de grande incredulidade e
fé às várias áreas de nossa atuação se- vileza (Ex: Asa, Ezequias, Josias). A
cular, por outro lado, correm o risco de Reforma Protestante do século 16, o
criarem uma falsa expectativa de nos- Grande Despertamento na América
sa atuação no reino de Deus. Desde a colonial e Inglaterra do século 18, fo-
célebre obra de H. Richard Niebuhr, 1  “De vez em quando os cristãos dizem que
Cristo e Cultura, os calvinistas têm nosso alvo principal é mudar o indivíduo,
não o sistema. O dualismo persiste: de algum
sido descritos como possuindo uma
modo nossa vida espiritual pode ser separa-
visão transformacionista da cultura. da de nossa vida cultural, e isso significa que
De acordo com Niebuhr, os calvinis- podemos trabalhar no sistema aceito.” Walsh
tas não são essencialmente contra a e Middleton, A Visão Transformadora, p. 89.
Essa forma de colocar o problema demonstra
cultura, nem a recebem indiscrimi- o espírito revolucionário de subverter o siste-
nadamente, não colocam a fé em um ma, o qual é próprio dos autores.

Revista fé pa r a h oje | 49
ram movimentos em que Deus freou vida (como é o anseio de muitos seres
a decadência de um povo e permitiu humanos).
que certas áreas da sociedade fossem David VanDrunnen faz uma res-
reformuladas segundo o padrão bíbli- salva à visão transformacionista de
co. A linguagem de Reforma impede representantes modernos como Hen-
que sejamos pessimistas quanto ao que ry R. Van Til (O Conceito Calvinista
Deus pode fazer neste mundo antes da de Cultura), Cornelius Plantinga (O
segunda vinda de Jesus. Crente no Mundo de Deus) e Albert M.
Todavia, para que não sejamos Wolters (A Criação Restaurada). Ele
otimistas demais, faz-se necessário chama atenção para um elemento pre-
acrescentar ao tripé reformado um ocupante da escatologia dos transfor-
quarto pilar: o da consumação. Tal macionistas:

Cristo não irá só completar o que começou.


Ele irá mudar tudo radicalmente.

inclusão ajuda-nos a separar o “já” e o “Os autores transformacionistas


“ainda-não” da história da redenção. tendem a colocar muita ênfase no
Isto é, a consumação é o completar da caráter já manifesto do reino esca-
redenção, mas não é para esta vida e tológico. Embora eles obviamente
não é operada pela igreja. Se, por um reconheçam que Cristo está vol-
lado, somos e devemos ser “sal da ter- tando e que somente então é que
ra” (Mt 5.13) no sentido de contribuir todas as coisas serão perfeitamente
para o retardamento da putrefação de restauradas, é curioso que a sua co-
nossa sociedade – esse aspecto está mum divisão tripartida da história
de acordo com a visão transforma- em criação, queda, e redenção não
cionista –, por outro lado, a parábola inclua a quarta categoria de con-
do joio (Mt 13.24-30, 36-43) é uma sumação. Lendo nas entrelinhas,
demonstração de que a construção de eu sugiro que o relacionamento
uma sociedade com a consequente re- muito solto entre a transformação
tirada do mal no mundo será uma re- da cultura agora e a transformação
alização de Deus por intermédio dos final a ser realizada no retorno de
seus anjos (isto é, sem a participação Cristo contribua substancialmen-
do ser humano) e não ocorrerá nesta te para a ausência dessa quarta ca-

50 | Revista f é pa r a h o je
tegoria... [Para eles] A obra de tra- tinção das culturas pecaminosas e a
zer a realização perfeita do reino santificação dos costumes e do conhe-
escatológico na presente terra co- cimento humano. Só Deus conseguirá
meça já nos esforços culturais do plena redenção da cultura.
cristão aqui e agora. Consumação Kevin DeYoung, avaliando a pers-
parece ser o clímax de um processo pectiva missiológica da igreja moder-
de redenção que já está a caminho na, afirma que o que
ao invés de um evento único e ra-
dical na história.”2 “está faltando na maioria das
conversas sobre o reino é alguma
VanDrunnen acertadamente nos doutrina de conversão ou rege-
lembra do aspecto radical e único da neração. O reino de Deus não é
consumação. Cristo não irá só com- essencialmente uma nova ordem
pletar o que começou. Ele irá mu- da sociedade. Isso era o que pen-
dar tudo radicalmente. Após o amor savam os judeus nos dias de Je-
esfriar, a apostasia se alastrar, e este sus... Creio que entendo o que as
mundo ser permeado por um governo pessoas querem dizer quando fa-
maligno, Deus irá eliminar todo o mal lam sobre redimir a cultura ou ser
com fogo (2 Pe 3.10-13) e para o fogo parceiras de Deus na redenção do
(Ap 21.10) a fim de criar Novo Céu e mundo, mas o fato é que precisa-
Nova Terra. mos encontrar outra palavra. A
A ênfase no envolvimento com a redenção já foi realizada na cruz.
cultura, por parte dos transformacio- Não somos parceiros na redenção
nistas, é positiva. Afinal, não fomos de nada. Somos chamados a servir,
remidos para vivermos em um gueto dar testemunho, proclamar, amar,
cristão, nos relacionando somente fazer o bem a todos e embelezar
com crentes, realizando tarefas ecle- o evangelho com boas obras, mas
siásticas, criando uma cultura sepa- não somos parceiros de Deus na
ratista. Porém, nós não fomos cha- obra da redenção. De modo simi-
mados para remir a cultura que, de lar, não há um texto nas Escrituras
acordo com a Escritura, tende a piorar que fale que os cristãos constroem
devido à apostasia. Somos instrumen- o reino. Ao falar sobre o reino,
tos para remir pessoas, isso sim. A o Novo Testamento usa verbos
mensagem de Paulo no Areópago não como entrar, buscar, anunciar, ver,
transformou a cultura de Atenas, mas receber, olhar e herdar... no Novo
alcançou pessoas. Só Deus, e isto na Testamento nunca somos aqueles
consumação, é que promoverá a ex- que trazem o reino.”3
2  David Vandrunnen. “The Two Kindgoms: 3  Kevin DeYoung e Tedd Kluck, Por que
A Reassessment of the Transformationist amamos a igreja (São Paulo: Mundo Cristão,
Calvin”, Calvin Theological Journal 40, no. 2 2010), p. 50, 51.
(nov 2005), p. 252.

Revista fé pa r a h oje | 51
Essa observação é muito pers- 13.31-33) que falam do crescimen-
picaz. O problema fundamental to e da influência dos princípios do
dessa tendência, de acordo com reino na sociedade. Não podemos ser
DeYoung, é que eles “estão repletos extremados em nosso entendimento
de ‘já’ e carentes de ‘ainda não’ em sua escatológico. Toda escatologia que
escatologia.”4 enfatiza só o que Deus já fez, e está
Creio que o equilíbrio foi estabe- fazendo, produz uma cosmovisão
lecido pelo nosso Salvador nas pará- ufanista demais. Toda escatologia
bolas do reino em Mateus 13. Se por que destaca o que Deus irá fazer na
um lado a parábola do joio nos apre- segunda vinda de seu Filho, sem levar
senta uma redenção completada pelo em conta a redenção que se iniciou
Salvador sem a nossa participação, na primeira vinda, gera uma visão
por outro lado temos as parábolas do pessimista do crente no mundo. Pre-
grão de mostarda e do fermento (Mt cisamos de equilíbrio em nossa cos-
4  DeYoung e Kluck, Por que amamos a igre- movisão. Precisamos viver o “já” com
ja, p. 40. vistas ao “ainda não”

52 | Revista f é pa r a h o je
Milênio – Breves
Considerações Hermenêuticas
Gilson Santos

Revista fé pa r a h oje | 53
Para o estudo proveitoso
das Escrituras necessita-se,
ao menos da prudência de
saber iniciar a leitura pelo
mais simples e prosseguir
para o mais difícil".

“E vi descer do céu um anjo, que tinha Mas os outros mortos não reviveram,
a chave do abismo, e uma grande ca- até que os mil anos se acabaram. Esta
deia na sua mão. Ele prendeu o dra- é a primeira ressurreição. Bem-aven-
gão, a antiga serpente, que é o Diabo e turado e santo é aquele que tem parte
Satanás, e o amarrou por mil anos. E na primeira ressurreição; sobre estes
lançou-o no abismo, e ali o encerrou, não tem poder a segunda morte; mas
e pôs selo sobre ele, para que não mais serão sacerdotes de Deus e de Cristo, e
engane nações, até que os mil anos se reinarão com ele mil anos.
acabem. E depois importa que seja E, acabando-se os mil anos, Sata-
solto por um pouco de tempo. nás será solto da sua prisão, e sairá a
E vi tronos; e assentaram-se sobre enganar as nações que estão sobre os
eles, e foi-lhes dado o poder de julgar; quatro cantos da terra, Gogue e Ma-
e vi as almas daqueles que foram de- gogue, cujo número é como a areia do
golados pelo testemunho de Jesus, e mar, para as ajuntar em batalha. E
pela palavra de Deus, e que não ado- subiram sobre a largura da terra, e
raram a besta, nem a sua imagem, e cercaram o arraial dos santos e a ci-
não receberam o sinal em suas testas dade amada; e desceu fogo, do céu, e os
nem em suas mãos; e viveram, e rei- devorou. E o diabo, que os enganava,
naram com Cristo durante mil anos. foi lançado no lago de fogo e enxofre,

54 | Revista f é pa r a h o je
onde está a besta e o falso profeta; e conhecimento de Deus. O nosso an-
de dia e de noite serão atormentados seio e obrigação, como cristãos, deve
para todo o sempre”. (Ap 20.1-10) ser o de encaixar-se no propósito pleno
de Deus para nós.
Este é o trecho mais debatido do "Ele não ficará satisfeito com nada
Apocalipse de João. É, de fato, um menos do que isto; nós também não
dos mais disputados de toda a Bíblia. devemos nos satisfazer com algo que
A palavra millennium vem do latim esteja aquém disto. Todos nós que di-
mille e annus que significa mil anos. zemos seguir a Cristo devemos buscar
O termo grego usado na Bíblia é chi- uma compreensão mais clara do pro-
liasm (quiliasmo). Agostinho, e muitos pósito de Deus para o seu povo”.1
outros ao longo da história da Igreja, Este propósito de Deus nós deve-
têm entendido que este “milênio” é de mos descobrir na Bíblia. A vontade de
natureza espiritual, tendo relação com Deus para as pessoas está na Palavra
o intervalo entre a primeira vinda de dele. Nela devemos tomar conheci-
Cristo até o fim do mundo, quando Ele mento da vontade divina, e não prefe-
virá outra vez. Todavia, muitos têm re- rencialmente da experiência particular
jeitado esta interpretação, entendendo dos indivíduos ou grupos, por mais
estas palavras como descrevendo um reais e válidas que estas experiências
milênio terreno, literal, físico e visível. possam ser.
Estes, por esta razão, encontram nesta Um pilar que baseou a Reforma foi
passagem uma prova para um reinado Sola Scriptura. O cristão fiel considera a
milenar de Cristo na terra, após sua se- Bíblia como o seu supremo tribunal de
gunda vinda. recursos, sua única regra de fé e prática.
Sugerimos a todo aquele que se
propuser a examinar esta passagem 2. A verdade é objetiva
mais profundamente que considere
alguns princípios fundamentais para Vivemos em um tempo quando
uma boa interpretação. são usados critérios completamente
subjetivos para se determinar o que é
1. A Bíblia tem autoridade autêntico. A Escritura tem somente
um sentido. Em princípio, nenhu-
Alguém já disse que o cristianis- ma afirmação da Escritura deve ser
mo é peculiarmente religião de um só considerada como tendo mais de um
livro. Desconsidere a Bíblia, e você sentido.
terá desconsiderado o meio pelo qual Os cristãos evangélicos estão con-
Deus decidiu apresentar sua revelação victos de que Deus falou histórica e
ao homem através de sucessivas eras.
1  John R. W. Stott. Batismo e Plenitude do
Segue-se, pois, que o conhecimento da Espírito Santo. 2a. edição, Edições Vida Nova,
Bíblia é requisito fundamental para o 1986, SP, p. 12.

Revista fé pa r a h oje | 55
objetivamente, que sua Palavra cul- 3. A Bíblia é seu intérprete:
minou em Cristo e no testemunho a E scritura explica melhor a
apostólico a respeito dele, e que a Escritura
Escritura é exatamente a Palavra de
Deus escrita para nosso aprendiza- Este é um princípio fundamental
do. Portanto, todas as nossas tradi- para a correta interpretação bíblica. A
ções, todas as nossas opiniões e todas Escritura explicada pela Escritura, ou
as nossas experiências precisam ser seja, a Bíblia é sua própria intérprete. O
submetidas ao exame independente perigo de um falso método é mais real
e objetivo da verdade bíblica. Perma- do que a particular questão relacionada
neça fiel às suas convicções, mas as- ao milênio. É muito perigoso isolar um
segure-se de que são verdadeiras. No texto ou uma ideia e construir um siste-
fim, quem vai triunfar é a verdade. A ma em torno dessa ideia ou desse texto.
verdade é sempre forte, não impor- Agir assim é tomar um atalho perigoso.
ta quão fraca pareça, e a falsidade é Por outro lado, a melhor maneira de se li-
sempre fraca, não importa quão forte dar com textos mais difíceis é comparar a
pareça. Escritura com a Escritura. Enfatizamos
As interpretações de quem quer que este princípio não é só conveniente
que seja têm autoridade divina so- e muito factível, mas absolutamente ne-
mente enquanto estão em harmonia cessário e indispensável. A história nos
com os ensinos da Bíblia como um adverte que muitos erros e heresias resul-
todo. Cada indivíduo, conquanto taram de uma interpretação particular e
deva reconhecer o valor da interpre- atomizada das Escrituras. Erros funestos
tação partilhada comunitariamente, teriam sido evitados se houvesse a sensa-
tem também o direito de julgá-las tez de permitir à Bíblia que se explicasse
por si mesmo. a si mesma.
Sacrifiquem-se, pois, as preocu- Por exemplo: Sob a luz deste prin-
pações, as opiniões preconcebidas cípio, é bom examinar a expressão “mil
e ideias favoritas e empreenda-se o anos” que aparece nos primeiros versos
estudo no espírito de dócil discípulo de Apocalipse capítulo 20. Ela aparece
e tome-se por Mestre a Cristo. Sem- apenas nove vezes na Bíblia; destas nove
pre deve ter-se presente que a obs- ocorrências, seis se encontram neste ca-
curidade e aparente contradição que pítulo 20 de Apocalipse. Nunca aparece
se possam encontrar não residem no na Bíblia a expressão mil semanas, nem
Mestre, nem em seu infalível livro de mil meses. O numeral mil ou seus múl-
texto, mas no pouco alcance do dis- tiplos aparecem num sentido figurado,
cípulo.2 denotando um grande espaço de tempo.
(Cf. Sl 90.4; Ec 6.6; 2 Pe 3.8; cf. também
2  E. Lund. Hermenêutica: Regras de
Interpretação das Sagradas Escrituras. 2 a. Sl 84.10; Dt 7.9; 1 Cr 16.15; Sl 105.8).
edição, Editora Vida, 1981, Miami (EUA), pp. 14,15.

56 | Revista f é pa r a h o je
Quando se procede a uma análise das no tempo em que estas visões foram
ocorrências do numeral mil em muitos vistas e registradas.3
outros textos da Bíblia, mesmo quando
não se refere a tempo, constata-se que O Apocalipse culmina os muitos
a ideia não é definir ou especificar uma pensamentos e ideias do Antigo Tes-
quantidade rigorosamente delimitada, tamento. Wescott e Hort “apresentam
mas transmitir enfaticamente a ideia de aproximadamente quatrocentas re-
um grande número. ferências ou alusões ao Antigo Tes-
tamento, e um estudo intensivo de
4. O simbolismo do Apocalipse qualquer capítulo do Apocalipse logo
deve ser interpretado à luz de seus revelará que esta lista de quatrocentas
antecedentes bíblicos referências ainda está incompleta.” 4
É sobre a base das Escrituras Sa-
William Hendriksen propôs assim gradas que devemos interpretar o
este princípio: Apocalipse. Este livro é, no Novo
Testamento, o mais difícil de ser inter-
Devemos interpretar este livro à luz pretado, basicamente por causa do uso
de seus antecedentes (....). O Apo- elaborado e extensivo de simbolismo.
calipse está firmemente arraigado O último livro da Bíblia integra um gê-
neste subsolo. nero de literatura
Referimo-nos bíblica que faz uso
às Sagradas de símbolos, utili-
Escrituras! A Alguém já disse que o zado para conso-
mente do pro- cristianismo é peculiarmente lação aos ouvintes
feta estava, por religião de um só livro. imediatos e tam-
assim dizer, bém posteriores,
imersa nestas e nutrir-lhes es-
Escrituras. Ele perança escato-
as conhecia lógica. Um bom
a fundo. Ele as vivia. Elas estavam princípio hermenêutico é interpretar
plenificadas no âmago de seu cora- literalmente aquilo que é literal, e sim-
ção. Sustentamos, pois, que o Apo- bolicamente aquilo que é simbólico. Se
calipse tem suas raízes não somente por um lado o intérprete das Escritu-
no solo superficial de eventos con- ras deverá acautelar-se da tendência
temporâneos, mas também, e espe-
3  William Hendriksen. Mais Que Vencedores;
cialmente, no subsolo das Sagradas interpretação do livro de Apocalipse. São Paulo,
Escrituras (...). Devemos explicar Casa Ed. Presbiteriana, 1987, p. 62.
este livro à luz (...) também de toda a 4  B. F. Westcott & F. J. A. Hort - The
New Testament in the Original Greek (O
herança religiosa, considerada com Novo Testamento no Grego Original) apud
reverência pelos crentes que viviam Hendriksen, Op. cit. pp. 64-65.

Revista fé pa r a h oje | 57
alegorizante da escola alexandrina tentemente simbólico de muito do seu
(influenciada pela tradição platônica), conteúdo.
por outro, e especificamente no que diz
respeito às interpretações quiliastas, o 6. Na análise do contexto, deve-se
Novo Testamento não favorece a lite- buscar o tema central e distinguir ,
ralismos extravagantes e absurdos. no simbolismo , entre o principal e o
detalhe
5. É necessário considerar o livro de
Apocalipse no seu todo Ao lermos o texto devemos nos
perguntar: Qual é o significado des-
O objetivo ou desígnio de um livro te símbolo como um todo? Que lição
ou passagem se adquire, sobretudo, central ensina? Ao encararmos os sím-
lendo-o e estudando-o com atenção bolos do Apocalipse não devemos en-
e repetidas vezes, tendo em conta em fatizar com demasia os detalhes. “Não
que ocasião e a que pessoas original- devemos dissecar o símbolo e perder a
mente foi escrito. Isto oferece auxílio sua unidade.”5 Os detalhes pertencem
admirável para a ao quadro todo.
explicação de pon- Deve-se pergun-
tos obscuros, para Este é um princípio tar primeiro: O
a aclaração de tex- fundamental para a correta que significa o
tos que parecem quadro como um
interpretação bíblica. A Escritura
contraditórios e todo? Os detalhes
para conseguir explicada pela Escritura. que pertencem
um conhecimento ao quadro devem
mais profundo de ser interpretados
passagens em si claras. em harmonia com o seu pensamento
O livro de Apocalipse é essencial- central. Formulamos duas perguntas:
mente simbólico e está repleto de nú- Qual é o quadro inteiro? E: Qual é a
meros simbólicos. E, naturalmente, sua ideia predominante?
nenhuma análise deve prescindir de Como regra, os detalhes perten-
considerá-los. Por exemplo, em todo cem ao quadro, ao símbolo. Não de-
o livro o vocábulo mil aparece vinte e vemos tentar dar uma interpretação
sete vezes, incluindo as seis ocorrên- “mais profunda” dos detalhes, senão
cias em Apocalipse 20, o texto em pau- até onde a interpretação deles seja ne-
ta. É recomendável analisar as demais cessária para que se descubra o pleno
vinte e uma ocorrências. Nos demais significado da idéia central do símbo-
textos onde o vocábulo mil (ou múlti- lo (...). O que queremos é a impressão
plos) aparece no livro de Apocalipse, as total, a ideia central de cada símbolo
tentativas de uma interpretação literal completo. Como nas parábolas, tam-
soçobram no rochedo do caráter pa- 5  Ibid. p. 55

58 | Revista f é pa r a h o je
bém aqui: o contexto nos ajuda a en- seção compreendida pelos dois últimos
tender o significado do quadro. Um capítulos será, então, a sétima.
estudo criterioso de todos os detalhes
é também necessário para poder deter- 7. A prudência de passar do didático
minar qual é o pensamento central.6 para o descritivo , do explicado para
Uma leitura e análise de Apocalip- o simbólico , do mais claro para o
se 20.1-10, inclusive com consulta ao mais obscuro e do simples para o
texto original, sugere que o contexto difícil
imediato abrange também os versos de
11 a 15. O contexto mais amplo inclui Este é um princípio hermenêutico
também os capítulos 21 e 22. Assim, que recomenda a prudência. Para o
uma leitura cuidadosa do contexto estudo proveitoso das Escrituras ne-
deve ser empreendida. cessita-se, ao menos da prudência de
O que o Apocalipse apresenta é o saber iniciar a leitura pelo mais sim-
grande drama do conflito entre Cristo ples e prosseguir para o mais difícil.
e o seu povo de um lado, e Satanás e O contrário parece ser a tendência da
seus seguidores do outro. Compreende imaturidade, e alguns têm feito justa-
o desenrolar de toda a história do reino mente isso.
de Cristo do princípio da era cristã ao Esta prudência revelou-se de forma
grandioso clímax da segunda vinda. E característica nos discípulos de Jesus
se o livro for interpretado como consis- nos momentos em que não compreen-
tindo de sete seções que se desenrolam deram suas palavras: Perguntaram-lhe
paralelamente entre si, cada uma delas pelo significado, pediram explicação. E
retratando a Igreja e o mundo desde a lemos: “Tudo, porém, explicava em par-
época da primeira vinda de Cristo até ticular aos seus próprios discípulos” (Mc
o tempo de sua segunda vinda7, esta 4.34).
“Toda Escritura é inspirada por Deus
6  Ibidem. e útil” (2 Tm 3.16). Todavia, o descriti-
7  Este sistema é denominado de paralelismo
progressivo. A divisão do Apocalipse em vo tem valor somente até o ponto em
sete seções é favorecida por muitos autores, que é interpretado pelo que é didático.
não havendo, contudo, unanimidade acerca É certo que alguns textos simbólicos e
das delimitações de cada seção. Entre os
comentaristas que adotam sistemas de
algumas narrativas bíblicas que descre-
divisões em sete seções serão encontrados L. vem acontecimentos interpretam a si
Berkhof, H. B. Swete, P. Mauro, W. Milligan, mesmas, porque incluem um conteúdo
S. L. Morris, M. F. Sadler, C. F. Wishart,
explicativo. No entanto, outras já não
B. B. Warfield e W. Hendriksen. Veja-se
Hendriksen, Op. cit. ; e Anthony A. Hoekema
- A Bíblia e o Futuro. São Paulo: Casa Editora vinda de Cristo, cada seção avançando em
Presbiteriana, 1989, 461 pp. Hendriksen é do profundidade ou intensidade do conflito
ponto de vista que estas sete seções descrevem, espiritual, revelando um certo progresso
sob aspectos diferentes e complementares, gradual em ênfase escatológica. A última
este período entre a primeira e a segunda seção, por exemplo, nos leva mais longe, no
futuro, do que as outras seções.

Revista fé pa r a h oje | 59
podem ser interpretadas isoladamente, base para o ápice, do terreno para o ce-
mas somente à luz do ensino doutriná- leste, do material para o espiritual, da
rio ou ético oferecido em outras passa- sombra para a realidade. É assim que
gens. Por exemplo, podemos aprender nós lidamos com os nossos filhos. Este
da história de Ananias e Safira em Atos é o processo do amadurecimento. Pas-
5 que mentir desagrada muito a Deus, sa-se da simplicidade da infância, da
porque Pedro o diz. Mas não podemos estreiteza e particularidade da menini-
concluir que todos os mentirosos cai- ce, da descoberta da juventude, para a
rão mortos ao chão como eles. amplitude e abrangência da maturida-
No que diz respeito ao texto de de. Deus parece lidar da mesma forma
Apocalipse 20.1-10 este princípio é com o homem ao longo da história.
frequentemente abandonado. Tem O Novo Testamento indica que
havido quem interprete muito do con- Cristo e os apóstolos são os intérpre-
teúdo aparente- tes autorizados do
mente difícil dos Antigo Testamen-
Evangelhos e das to. O livro de He-
Epístolas à luz O livro de Apocalipse é breus dá a chave
do simbolismo essencialmente simbólico e está deste princípio da
apocalíptico. E repleto de números simbólicos. revelação: “Ha-
não apenas isso. vendo Deus, outro-
Criam a partir ra, falado muitas
disso toda uma fi- vezes, e de muitas
losofia da História, e todo um crivo maneiras, aos pais, pelos profetas, nestes
rigoroso de interpretação bíblica. Isto últimos dias nos falou pelo filho” (Hb 1.1).
é avesso à prudência. O caminho deve Salientamos a necessidade de que a Bí-
ser ao contrário. Leia-se o conteúdo blia seja interpretada como um todo,
didático dos sermões de Jesus, bem e que o Antigo e o Novo Testamento
como do ensino apostólico às igrejas, constituem uma unidade. Salientamos
e submeta-se o simbolismo do Apoca- ainda que o conteúdo do Novo Testa-
lipse aos mesmos. Esta é a regra. mento é o fruto de longo e prévio desen-
Uma leitura histórica dos atos de volvimento. O conhecimento do Anti-
Deus em toda Bíblia revela que o Se- go Testamento é pré-requisito essencial
nhor da História, num plano perfei- para a correta interpretação do Novo.
to e que se revelou gradualmente, fez Entretanto, as realidades espirituais que
da pessoa de Cristo como que a parte o Antigo Testamento introduz, o Novo
mais estreita de um funil. E a partir de as apresenta à perfeita luz. Um contém
Cristo, o seu plano é revelado de forma tipos; o outro, antítipos. Um contém
final e abrangente. É preciso, portan- profecia; o outro, cumprimento. A mais
to, que se esteja fundamentado numa perfeita revelação do Novo Testamento
filosofia cristã da História que parta da ilumina as páginas do Antigo.

60 | Revista f é pa r a h o je
8. Uma compreensão salvo pela redenção de Cristo. Assim,
bíblico - teológica acerca das as profecias do Antigo Testamento que
dispensações da aliança não foram cumpridas no passado bíbli-
co, se cumprirão somente na nova reali-
As grandes doutrinas e princípios dade que é a Igreja, também conhecida
do cristianismo estão expostos com como o “Israel de Deus” e “Raça Eleita”
clareza nas Escrituras. E estas só são bí- e “Sacerdócio Real” e “Nação Santa” e
blicas e exatas quando expressam tudo “Povo Adquirido”. A barreira da sepa-
quanto dizem as Escrituras em relação ração foi quebrada, e hoje, quer judeus,
a elas. Para a aclaração e correta inter- quer gentios, são um em Cristo.
pretação de determinadas passagens, os Os elementos condicionais e transi-
paralelos de palavras e ideias são funda- tórios da antiga dispensação da aliança
mentais. Todavia, é preciso recorrer ao foram alterados. Na nova dispensação
teor geral, ou seja, os favores outor-
aos ensinos gerais gados são pree-
das Escrituras. É, minentemente
de fato, importan- As grandes doutrinas e princípios espirituais e, além
te consultar o teor do cristianismo estão expostos disso, são concedi-
ou doutrina geral com clareza nas Escrituras. dos de acordo com
da Escritura que a graça de Deus,
trata do assunto. não presumindo
Se a interpretação privilégios funda-
contraria por inteiro o espírito ou desíg- mentados em relacionamentos físicos
nio do Evangelho, observa-se que essa ou étnicos. A bênção virá aos judeus
interpretação está equivocada. É um apenas por uma forma: através da fé em
erro chegar a conclusões a respeito de Cristo (Rm 11.23). Eles só poderão ser
determinada doutrina antes de estudar salvos por meio do evangelho da gra-
tudo que a Bíblia diz sobre o assunto. É ça soberana (Rm 11.32; At 4.12). Não
aqui onde um estudo tópico da Bíblia se existe esperança alguma para um judeu
mostra útil. E isto inclui tópicos sobre simplesmente por ser judeu. Ele precisa,
as grandes doutrinas da Bíblia. Os estu- como o pecador gentio, se arrepender e
dos doutrinários constituem a espinha ser convertido, para que seus pecados
dorsal das convicções espirituais, e, por possam ser apagados (At 3.19). Não
sua vez, só se pode chegar a estas estu- há distinção entre judeu e grego (Rm
dando tudo o que a Bíblia diz sobre um 10-12). Ambos têm de ser salvos pelo
determinado assunto. sacrifício expiatório de Cristo. Também
A teologia reformada vê na aliança a os filhos dos judeus e dos cristãos são
chave hermenêutica da Bíblia. As pro- iguais neste aspecto: precisam ser salvos
messas outorgadas aos filhos raciais de mediante arrependimento e fé. Não há
Abraão passaram a ser herança do povo outro evangelho do reino (Gl 1.8).

Revista fé pa r a h oje | 61
Já mesmo o profeta Ezequiel liber- conhecimento pessoal no seu Reden-
tou-nos deste medo: “Veio a mim a pa- tor, um povo regenerado e perdoado.
lavra do Senhor, dizendo: Que tendes vós, Graça divina não é hereditária, nem
vós que, acerca da terra de Israel, proferis se subordina a sacerdotes, clérigos,
este provérbio, dizendo: Os pais comeram pais ou governos. O apóstolo Paulo,
uvas verdes, e os dentes dos filhos é que que “bem poderia confiar na carne...
embotaram? Tão certo como eu vivo, diz o circuncidado ao oitavo dia, da linha-
Senhor Deus, jamais direis este provérbio gem de Israel... hebreu de hebreus” (Fp
em Israel. Eis que todas as almas são mi- 3.4-11), expressou isto em termos bem
nhas; como a alma do pai, também a alma claros em suas epístolas (Rm 2.28- 29;
do filho é minha; a alma que pecar, essa Fp 3.3; Gl 6.15-16; Rm 9.6-8). Este é
morrerá” (Ez 18.1-4). Assim, a alma do um tempo de graça tanto para judeus
filho, no terreno de religião, é proprie- e gentios. É tempo da oportunida-
dade divina, não patrimônio do pai, ou de para ação missionária da igreja em
da pátria, ou da família, ou da casta sa- todo o mundo.
cerdotal, ou da sociedade humana em “Porquanto a Escritura diz: Todo
qualquer aspecto. Deus reserva para aquele que nele crê não será confundido.
si todos os direitos na alma imortal Pois não há distinção entre judeu e gre-
de cada uma de suas criaturas. Esta go, uma vez que o mesmo é o Senhor de
foi uma das notas mais elevadas a que todos, rico para com todos os que o invo-
chegou a mente profética até os dias de cam. Porque: Todo aquele que invocar o
João Batista. Nenhuma alma está presa nome do Senhor será salvo. Como, porém,
a uma religião falsa por conta de casta, invocarão aquele em quem não creram?
família, estado, hereditariedade ou sis- E como crerão naquele de quem nada ou-
tema sacerdotal ou eclesiástico. viram? E como ouvirão, se não há quem
A nova aliança declara com clareza pregue? E como pregarão, se não forem
que o povo de Deus é, assim, um povo enviados? Como está escrito: Quão for-
sobrenaturalmente constituído, de co- mosos são os pés dos que anunciam cousas
rações iluminados e transformados, de boas!” (Rm 10.11-15)

62 | Revista f é pa r a h o je
Aprofunde seu
conhecimento teológico

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muito maior. Em 6 mensagens de
30 minutos cada, John Piper defen-
de biblicamente a supremacia de
Deus em todas as coisas, demons-
trando aos ouvintes um sólida base
teológica para missões.
pa s to r e s & l í d e r e s

o Deus presente
7 a 11 de outubro de 2013 | Majestic - Águas de Lindóia - SP

D.A. Carson Michael Horton Augustus Heber Carlos


Nicodemus de Campos

Dave Harvey Clodoaldo Heber Campos Jr.


Machado

www.editorafiel.com.br/pastores

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