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Valores, Heurística e Política do Conhecimento1

Helen E. Longino

I. Que tipos de valores?


Muitos filósofos empiristas argumentaram que a escolha da teoria científica é guiada
pelos assim chamados “valores superempíricos” [superempirical values], tais como a
simplicidade, a abrangência, a unificação. Enquanto apoiam a aceitação de hipóteses
que vão para além dos meros resumos ou generalizações dos dados, elas são
consideradas, apesar disso, epistêmicas, ou porque são indicativas da verdade ou porque
elas são conhecimento científico definitivo. Críticos da ciência partindo de diferentes
posições disputam a afirmação de que a ciência moderna Ocidental é livre em relação
aos valores [value-free] e direcionada à verdade [truty-driven]. Nos Estados Unidos, a
crítica mais sustentada foi articulada por cientistas feministas, e pelos historiadores e
filósofos da ciência. Destas reflexões, eu lançarei mão do trabalho feminista. Mas, eu
considero que os pontos mais gerais possuem uma aplicabilidade mais ampla e que
podem nos ajudar a pensar sobre o engajamento crítico com as ciências a partir de
outras posições.
A maior parte dos escritos feministas sobre o conteúdo e sobre os métodos das
ciências exibiu dois temas comuns: um tipo de anti-reducionismo básico e uma ênfase
sobre as dimensões práticas da investigação, sobre as expansões da ciência no mundo
social e material. Tais temas ressoaram com a rubrica já em uso na filosofia da ciência: a
rubrica do “superempírico”, valores cognitivos, epistêmicos, científicos, ou teóricos
(cujo rótulo é usado a depender da afirmação que está sendo feita por eles). Os temas
feministas podem ser lidos não apenas como uma crítica, mas também como versões de
valores positivamente expressos, que contrastam com aqueles tradicionalmente
invocados. O termo “virtudes” pode ser o mais apto, indicando que nós estamos falando
aqui de propriedades ou qualidades da teoria, do modelo ou da hipótese. Eu sugerirei
mais tarde que o termo “heurística” é ainda melhor.
Por enquanto, apegar-me-ei às virtudes e aos valores. As virtudes ou os valores
teóricos são aquelas qualidades ou propriedades de uma teoria, de um modelo ou de
uma hipótese, que o qualificam como minimamente dignos de apreciação, mas também
plausíveis e até mesmo merecedores de aceitação, ou cuja ausência qualifica a teoria

1
Publicado orginalmente em The Challenge of Social and the Pressure of Practice, editado por Don
Howard, Jenet Kourany e Martin Carrier (University of Pittsburgh Press, 2008).
como suspeita ou como passível de rejeição. Abordarei inicialmente um conjunto de tais
virtudes, explicando o que elas recomendam e como elas diferem das virtudes ortodoxas
ou mainstream. Então, quero levantar a questão: o que há nessas virtudes que as
qualificariam como específicas da investigação feminista? Surpreendentemente, é a
resposta a essa questão que fornece o material para reflexões mais gerais. Alcançarei
tais reflexões pela integração da resposta sobre a investigação feminista com a minha
própria perspectiva sobre o conhecimento e a investigação. Isso comporá o pano de
fundo para algumas reflexões finais sobre a política do conhecimento.
As virtudes que encontrei endossadas ou advogadas nos estudos feministas da
ciência incluem a adequação empírica, a novidade, a heterogeneidade ontológica, a
complexidade ou a mutualidade da interação, a aplicabilidade às necessidades humanas,
e a descentralização do poder ou o empoderamento universal. Enquanto a adequação
empírica é defendida em comum por pesquisadores feministas e não feministas, as cinco
restantes contrastam de modo intrigante com os valores mais comumente agenciados da
consistência das teorias com outros domínios, da simplicidade, do poder explicativo e
da generalidade, da fecundidade ou da refutabilidade. Muitos filósofos da ciência
invocaram essas virtudes mais tradicionais ou ortodoxas, apesar de suas invocações
serem acompanhadas dos críticos correntes.2 Antes de prosseguir, abordarei brevemente
cada um das virtudes feministas.

II. As alternativas feministas


Adequação empírica significa concordância entre as afirmações observacionais
da teoria com os dados. Esse traço é valorizado pelas críticas feministas das más
representações do gênero ou das relações de gênero nas teorias e nos modelos
tradicionais. É valorizada igualmente pelas feministas e pelos cientistas mainstream.
Adequação empírica, no entanto, não é um critério suficiente para a escolha da teoria,
mesmo quando suplementado pelo requisito de que devem existir efetivamente
consequências empíricas e observacionais para comparar com os dados.
O motivo é situação referida pelos filósofos como subdeterminação da teoria
pelos dados. A subdeterminação com a qual estou preocupada é produzida pela lacuna
semântica [semantic gap] entre a maioria das hipóteses e os dados observacionais
aduzidos como evidência para eles. Por exemplo, os dados relevantes para as hipóteses
sobre as interações entre partículas elementares, as colisões e as desintegrações são
2
Para defensores, ver Kuhn (1977) e McMullin (1983); para críticos, ver Fraassen (1980).
descritos em linguagem diferente da linguagem utilizada para representar as interações
putativas – nós não observamos diretamente pions, muons e neutrinos – nós observamos
o que nós assumimos como sendo seus traços ou seus efeitos nos detectores (sejam eles
os traços de bolhas em um gás comprimido, as sequências numéricas em fitas de dados
ou as irrupções temporárias em corrente elétrica em líquidos densos protegidos). Podem
não existir relações formais de derivação ou afirmações a priori especificáveis de
relevância como evidência entre as afirmações hipotéticas e as descrições dos dados. A
lacuna é preenchida por várias teorias – seja a teoria sobre as partículas, ou a teoria
sobre os detectores, possivelmente outras mais – nas quais os físicos se apoiam na
afirmação da relevância como evidência daquilo que eles podem observar da hipótese
em particular sobre as interações de partículas. Os dados sozinhos podem ser
compatíveis com várias hipóteses, bem diferentes entre si; os dados não carregam a sua
relevância como evidência nas suas “mangas”, por assim dizer. Se eles são evidência
para uma hipótese ou um modelo em particular, essa é uma questão empírica, julgada
contra o pano de fundo das pressuposições sobre os instrumentos, sobre o modo como o
mundo é, e sobre os modos segundo os quais ele pode ser conhecido.
O fato bruto formal da subdeterminação é dirigido de diferentes modos por
diferentes filósofos (e também descritos diferentemente do faço aqui). Uma solução é
apelar para qualidades adicionais da teoria, as virtudes teóricas, cognitivas ou
“superempíricas”. Seguiremos a respeito das virtudes, então.3
As feministas apoiam a novidade dos princípios teóricos e explicativos como
proteção contra a perpetuação inconsciente do sexismo e do androcentrismo de
teorizações tradicionais ou de teorizações presas pelo desejo de consistência com os
modelos explicativos aceitos. A novidade visada não é a novidade da descoberta de
novas entidades (como o top quark) preditas pela teoria, mas antes a novidade em
relação às estruturas de entendimento. Por exemplo, certas acadêmicas feministas
(Haraway, 1986; Sperling, 1991), criticaram a articulação de modelos de evolução
centrados no feminino pelas primatologistas feministas, tais como Adrienne Zihlmann,
(1978) e Sarah Blaffer Hrdy (1981), como permanecendo ainda muito na estrutura da
sociobiologia, e, desse modo, perpetuando (o que elas assumem como sendo) outros
valores nocivos daquela abordagem teórica. A novidade, assim compreendida, é
contrária ao valor da consistência com as teorias de outros domínios, como descrito por

3
Os parágrafos a seguir foram extraídos de materiais previamente publicados (Longino, 1996).
Kuhn (1977) ou suas variantes, como o conservacionismo proposto por Quine e Ullian
(1978), isto é, maior preservação possível do conjunto de crenças anteriores.
A novidade e a adequação empírica são, de certa forma, requisitos formais. Os
dois seguintes concernem aspectos substantivos das teorias ou dos modelos, e diferentes
aspectos do tema antirreducionista. Toda teoria estipula uma ontologia, isto é, ela
especifica o que conta como entidade causal efetiva no seu domínio. Um domínio que é
ontologicamente heterogêneo é aquele com diferentes tipos de entidades, enquanto um
domínio ontologicamente homogêneo contém apenas um tipo de entidade. Tal domínio
é mais simples que um domínio heterogêneo, no sentido de que apenas as propriedades
e o comportamento de um tipo precisam ser abarcados nos modelos do domínio.
Qualquer membro pode representar qualquer outro (ao menos em aspectos essenciais).
As feministas que endossam heterogeneidade como virtude, indicam a preferência por
teorias e por modelos que preservam a heterogeneidade no domínio sob investigação, ou
que, ao menos, não a eliminam em princípio. Uma abordagem de investigação que
requer espécimes uniformes, isto é, a homogeneidade ontológica, pode facilitar a
generalização, mas ela corre o risco de perder diferenças importantes; e, então, o macho
da espécie vem a ser considerado como paradigmático para a espécie (como em
“Gorilas são animais solitários; um indivíduo típico viaja apenas com a fêmea e sua
prole”). Ou, por meio do conceito de dominação masculina, os machos são tratados
como os únicos agentes causalmente efetivos em dada população. As acadêmicas
feministas, ao contrário, insistiram na observação, no registro e na preservação analítica
das diferenças nas populações sob seu estudo (Altmann, 1974). No entanto, sua adoção
da heterogeneidade se estende para além do comportamento humano e animal, sendo
também é invocado no contexto de processos genéticos e bioquímicos. As pesquisadoras
feministas resistem às abordagens de causalidade unidirecionais do desenvolvimento,
em favor de abordagens nas quais fatores bem diversos representam papéis causais.
Elas, desse modo, enfatizam a multiplicidade de tipos de fatores em todos os níveis de
desenvolvimento, desde internos às células até o organismo como um todo (Keller,
1983, 1995). A heterogeneidade, em sua oposição à homogeneidade ou uniformidade, é
então oposta à simplicidade ontológica e à virtude explicativa associada de unificação.
Sob o direcionamento dessas últimas virtudes, as similaridades entre os fenômenos, ao
invés das diferenças entre eles, são ressaltadas.
A mutualidade e a reciprocidade da interação, e por vezes, de modo mais geral, a
complexidade da interação, é algo como a companhia processual da virtude da
heterogeneidade ontológica. Enquanto a heterogeneidade da ontologia diz respeito à
existência de diferentes tipos de coisas, a complexidade, a mutualidade e a
reciprocidade caracterizam as suas interações. As feministas que endossam essa virtude
expressam a preferência por teorias que representam interações complexas e envolvendo
não apenas relações simultâneas, mas também relações mútuas e recíprocas entre os
fatores em dado processo. Elas explicitamente rejeitam as teorias ou os modelos
explicativos que tentam identificar um fator causal em determinado processo, quer ele
seja um animal dominante ou a “molécula mestre”, como o DNA. O trabalho da
geneticista Barbara McClintock, como popularizado por Evelyn Keller (1983), é
frequentemente referido como modelo pelas feministas que advogam em favor da
heterogeneidade e da complexidade. Atenta às diferenças individuais das amostras de
milho por ela estudadas, ela representou as relações causais como envolvendo
interações complexas. Diversas feministas são levadas para a Teoria dos Sistemas em
Desenvolvimento [Developmental Systems Theory] (Oyama, 2000), por suas virtudes
similares.
Finalmente, várias feministas endossam também a ideia de que a ciência deveria
ser “para as pessoas”, que a pesquisa que promete aliviar as necessidades humanas,
especialmente aquelas tradicionalmente atendidas pelas mulheres, tais como, os
cuidados dos mais jovens, com os fracos, ou com os enfermos ou de alimentar os
famintos, deveriam ser preferidas em relação à pesquisa para propósitos militares, ou
em prol do conhecimento. Embora não rejeitem a completamente a curiosidade como
um motivo apropriado para a pesquisa, tais feministas colocam mais ênfase na dimensão
pragmática do conhecimento, mas apenas em conexão com a virtude final desse
conjunto: a descentralização do poder.
Assim, as formas de conhecimento e as suas aplicações em tecnologias que
empoderam os seus beneficiários são preferidas em relação àquelas que produzem ou
reproduzem relações de dependência. Então, a pesquisa médica direcionada para
medidas preventivas, ou de baixo custo, os medicamentos facilmente (ou auto-)
administrados são preferidos em relação aos de tecnologia avançada, às medidas de alta
manutenção. E, a pesquisa em agricultura, que assiste e empodera os pequenos
agricultores, é preferida em relação àquelas que assistem ao agronegócio de capital
intensivo (Sen & Grown, 1987). Ambas as virtudes feministas pragmáticas, e as suas
contrárias tracionais, ou seja, a fecundidade e a refutabilidade, estão relacionadas à
expansão da abordagem teórica na direção empírica. Mas, a relevância do empírico na
visão tradicional pertence ao contexto da pesquisa isolada em si mesma. A
aplicabilidade e o empoderamento, por contraste, são direcionados para o meio social e
prático, externos ao contexto de pesquisa.

III. Valores cognitivos feministas e tradicionais


Alguém poderia questionar porque as virtudes que acabei de delinear deveriam
receber o mesmo status dos valores epistêmicos mais tradicionais com as quais elas
contrastam. Mas esta questão pede outra: qual o status dos valores cognitivos
tradicionais?4 Na medida em que eles são frequentemente invocados como fatores que
fecham a lacuna entre a evidência e a hipótese revelada pelos argumentos de
subdeterminação, não é completamente evidente que eles sejam capazes de discriminar
entre mais ou menos provável, sem falar entre verdadeiro e falso. A consistência das
teorias com outros domínios, por exemplo, apenas apresenta valor epistêmico se nós
supusermos que as outras teorias são verdadeiras. Enquanto elas são presumivelmente
adequadas empiricamente, as considerações adicionais em favor de sua verdade terão
que consistir em outras pressuposições ou virtudes teóricas. O valor de prova da
consistência, então, é relativo à verdade das teorias com as quais a consistência é
recomendada.
A simplicidade e o poder explicativo não se saem melhor. Na medida em que
existe uma preferência compreensível por teorias mais simples quando contrastadas com
as teorias ou os modelos carregados de entidades, e com os processos e as relações que
não contribuem para a capacidade preditiva da teoria, não está claro que a simplicidade
em geral possa apresentar peso epistêmico. Como bem conhecido, a simplicidade pode
ser interpretada de diferentes maneiras. A interpretação contrastante com a virtude
alternativa da heterogeneidade é ontológica: quanto menos entidades, melhor, ou não
mais entidades do que as que são requeridas para explicar o fenômeno. Como medida de
prudência ela tem muito a recomendar, e pode ser que em alguns contextos venha a ser
uma heurística útil. Mas o tratamento da simplicidade como um padrão epistemológico
enfrenta pelo menos três problemas:
i. Essa formulação levanta a questão de o que conta como uma explicação
adequada. É uma explicação adequada a consideração suficiente, que gera predições ou
que abarca os processos subjacentes, e, mesmo se a explicação é apenas uma predição
retrospectiva, então ela deve ser bem sucedida nos níveis individual e populacional? Ou
4
Os parágrafos a seguir foram extraídos de Longino, 1997.
o significado da simplicidade será relativo à consideração sobre a explicação, então
subdeterminando a capacidade da simplicidade para funcionar como um valor
epistêmico independente, ou a insistência na simplicidade vai ditar o que será explicado
e como. As feministas criticaram a representação da economia como certo tipo de
abordagem, de um tipo que explica os fenômenos como resultados de indivíduos auto-
interessados fazendo escolhas que maximizem sua utilidade, parcialmente porque essa
definição limita o que os economistas pensam que eles devem explicar (assim como, é
claro, limitando o tipo de explicação que serão dadas).
ii. Nós não temos razão a priori para pensar que o universo seja simples, isto é,
composto de pouquíssimos tipos de coisas (tão poucos quanto os tipos elementares de
partículas, por exemplo), em vez de muitos tipos diferentes de coisas. Ou, como Kant
nos ensinou, nós podemos oferecer argumentos a priori para ambas as teses, anulando o
significado como provas das mesmas. Não existe, e tampouco poderia existir evidência
empírica para tal perspectiva.
iii. O grau de simplicidade ou variedade da ontologia teórica de alguém pode ser
dependente do grau de variedade que se admite na sua descrição dos fenômenos. Se se
impõem uniformidade com base nos dados pela rejeição das anomalias ou das
diferenças, então se está fazendo a opção por certo tipo de consideração. Se a visão de
que as fronteiras de nossas categorias descritivas são convencionais está correta, então
não existe falha epistemológica, e tampouco existe virtude.
O poder explicativo e a generalidade também perdem sua atratividade epistêmica
sob exame cuidadoso. De fato, quanto maior o poder explicativo e a generalidade de
uma teoria, isto é, quanto maior o número de fenômenos trazidos para baixo do guarda-
chuva explicativo, menos provável que ela seja (literalmente) verdadeira. Essa força
explicativa é adquirida ao custo da verdade, que permanece nos detalhes que podem ser
capturados através do preenchimento de séries infinitas de orações ceteris paribus
(Cartwright, 1983). O poder explicativo e a generalidade podem constituir boas razões
para a aceitação de um modelo ou de uma teoria caso se atribua valor às estruturas
teóricas unificadoras, mas esse é um valor distinto da verdade e deve ser defendido em
outras bases. A mutualidade ou a reciprocidade da influência no modelo explicativo é
menos passível de ser generalizada do que um modelo linear ou unicausal, que permite
a incorporação da explicação de um efeito na explicação de sua causa. As explicações
de fatores causais múltiplos em interação expandem-se ao invés de unirem-se. Em vez
de uma hierarquia verticalmente ordenada culminando em uma teoria mestra ou na
ciência mestra, o conhecimento científico consistiria em redes horizontalmente
ordenadas de modelos.
As virtudes feministas e as virtudes tradicionais são equivalentes
epistemologicamente. Ambas possuem poder heurístico, mas não poder probatório.
Como heurísticas, elas auxiliam o investigador a identificar um padrão ou uma ordem
no mundo empírico. Elas são frequentemente transmitidas como parte do treinamento
do investigador, como parte do pano de fundo comum assumido como certo. Se nós
aceitarmos que possam existir múltiplos conjuntos heurísticos, apontando para
diferentes direções, então nós devemos estar aptos a apresentar algumas razões para
escolha ou para o apoio de determinado conjunto ao invés de outro. Apenas argumentei
que a maior probabilidade na seleção da verdade não pode ser a justificativa ou a base
racional para apoiar-se nas virtudes tradicionais, ou no que nós poderíamos chamar de
heurística da pesquisa. Assim, o alcance de outros objetivos deve constituir a base
racional. Alguns exemplos vão tornar isso mais claro.
Em contextos particulares de pesquisa, a heurística contrastante favorece teorias
diferentes e em alguns desses contextos esse diferencial positivo apresenta diferentes
consequências políticas. Considere a pesquisa médica. A uniformidade de todos os
sujeitos permite uma fácil identificação da efetividade dos fármacos, mas não permite o
conhecimento de sua efetividade em relação àqueles sujeitos diferentes dos tipos
escolhidos. Nos Estados Unidos, isso significa que, até o direcionamento diverso pelo
Diretor da NIH (National Institutes of Health) e o Ato do Congresso no começo dos
anos 90, praticamente nada era conhecido sobre a efetividade ou a dosagem apropriada
de medicamentos para mulheres de qualquer raça e homens não brancos. Na medida em
que a simplicidade heurística é invocada em defesa da prática prévia, a simplicidade
possui um valor político. Pode-se argumentar que a situação descrita foi uma falha
empírica, mas só aparece como tal no contexto em que a vida e o bem-estar das
mulheres de qualquer raça e dos homens não brancos são considerados menos
importantes do que a dia e o bem-estar dos homens brancos. A adequação empírica
convida para o acordo com os dados, mas não especifica quais dados ou mesmo o que
conta como todos os dados. A simplicidade pode ser utilizada para justificar a ênfase nas
similaridades sobre as diferenças, tratando o anômalo ou mesmo as diferenças
sistemáticas, como insignificantes.
As teorias feministas da economia doméstica, tais como as defendidas pelas
economistas Nancy Folbre (2003) ou Bina Agarwal (1997), tratam-na como composta
de indivíduos com interesses em competição e em conflito, que devem negociar e
barganhar entre eles. Os padrões de consumo doméstico são compreendidos como o
resultado das interações entre atores heterogêneos. Esse modelo torna visíveis os
interesses independentes e frequentemente conflituosos dos diferentes membros
familiares – esposas, bem como as crianças e parentes idosos –, ao invés de assumir que
as escolhas domésticas refletem interesses comuns de todos os membros. Ao contrário, a
“nova economia da família” defendida pela economia neoclássica, por exemplo, por
Gary Becker, trata os interesses domésticos como homogêneos e representados pelas
escolhas do “patriarca benevolente”, o ator no mundo cujas escolhas determinam os
padrões de consumo domésticos. Esse último modelo, é claro, exibe a virtude
tradicional da simplicidade, na medida em que assume único e uniformemente
caracterizado, ator econômico – o maximizador da utilidade racional –, mas ele apaga
da visão analítica as relações de gênero da economia doméstica. Esses modelos
claramente apresentam diferentes implicações políticas e sociais, na medida em que um
está em conformidade com a estrutura familiar nuclear tradicional, embora mítica, que a
política pública continua a privilegiar, e não a outra.
Outro exemplo vergonhoso advém da biologia da reprodução. A visão
tradicional do processo chamado de fertilização em organismos sexualmente
reprodutivos defende que os dois pares celulares para a fertilização, o ovo e o esperma,
um como passivo, o ovo, e o outro como ativo, o esperma. O esperma repetidamente é
representado como precisando lutar para alcançar e penetrar o óvulo. Outra
representação do mesmo processo ressalta o papel ativo do óvulo tanto na estabilização
dos espermatozoides altamente móveis e liberando substâncias químicas que permitem a
passagem através da zona pelúcida. Esse modelo, que exibe as virtudes alternativas de
heterogeneidade e de complexidade na interação causal, está presente de algum modo
desde pelo menos os anos 30, mas foi rejeitado pela maior parte dos biólogos na
investigação da reprodução sexual. Algumas fontes me informaram que ninguém
atualmente engajado na pesquisa de reprodução sexual realmente acredita na primeira
história. Preciso conduzir uma conferência dos artigos de pesquisa para confirmar se
isso está correto. Mas enquetes com os meus alunos indicam que a primeira história
ainda está presente em muitos dos livros didáticos e no ensino. Enquanto se assume
seriamente essa história na pesquisa, continuamos a privilegiar abordagem que repete, e
indiretamente valida, os estereótipos sociais de atividade masculina e da passividade
feminina; sua relegação aos livros didáticos não é menos traiçoeira. Isso ajuda a
selecionar para o estudo da biologia aqueles que estão encantados pelo drama do
esperma heroico e a excluir aqueles indiferentes ou convencidos do seu papel auxiliar
na natureza e na sociedade (Martin 1991).
Finalmente, o que Kuhn (1977) chamou de fecundidade e as virtudes feministas
pragmáticas não são realmente contrários na sua relevância epistêmica, na medida em
que ambos efetivamente apelam para as consequências empíricas, mas apresentam
diferentes valências pragmáticas. A fecundidade de uma teoria é a sua habilidade de
gerar problemas para a pesquisa. O que não argumenta em favor da verdade da teoria,
mas por sua flexibilidade [tractability], que é a sua capacidade de ter dados empíricos
trazidos para suporte dela. Entendida dessa maneira a produtividade pode ser uma
característica menos intrínseca de um modelo ou de uma teoria, do que uma questão de
instrumentos materiais e intelectuais disponíveis para a produção de dados relevantes,
assim como outros desenvolvimentos teóricos e empíricos em campos associados, que
tornam a articulação da teoria possível. Um modelo, uma teoria ou um conceito podem
ser infecundos em um século e fecundos no outro (basta pensar no heliocentrismo de
Aritacus e para Copérnico, ou a relatividade para Leibniz ou para Einstein). Ao invés
disso, as virtudes feministas pragmáticas buscam a importância das consequências
empíricas em certas áreas: no mundo da vida humano, assim como no laboratório. E,
como ressaltado, a mais explicitamente política das virtudes feministas requer em
adição que o modo de aplicabilidade envolva empoderamento de vários, ao invés de
concentração de poder entre poucos.
Alguns pensadores sobre as ciências rejeitaram todas as distinções entre a
ciência pura e a aplicada, que permanecem por trás do tratamento padrão da
refutabilidade ou da fecundidade como virtudes, isto é, como um critério para a
avaliação ou a seleção de teorias. A ciência contemporânea, a partir desta perspectiva, é
mais bem compreendida como tecnociência, ou seja, como investigação da natureza que
é inseparável das suas infraestruturas e de seus resultados tecnológicos (Latour, 1987).
Dentro dessa estrutura, as virtudes pragmáticas feministas poderiam ser entendidas não
como uma rejeição da “ciência pura”, mas como reconhecimento da natureza
tecnologicamente direcionada da ciência e que demanda certas infraestruturas
tecnológicas e resultados adicionais. A recusa da distinção convencional entre a ciência
pura e a aplicada, facilita a rejeição da ideia de que os cientistas não possuem
responsabilidade sobre o modo como o seu trabalho é utilizado. Assumindo-se ou não a
distinção puro/aplicada, as virtudes feministas pragmáticas podem ser um veículo para
levar considerações de responsabilidade social de volta ao centro da investigação
científica.
Embora todos esses pontos pudessem ser mais desenvolvidos, tenho indicado
para cada valor epistêmico da corrente hegemônica porque seu status epistêmico não é
maior do que aquele das alternativas advogadas pelas pesquisadoras e pelas filósofas
feministas. Nenhum deles conduz mais à verdade do que o outro. Ao invés disso, esses
valores podem ser compreendidos como heuristicamente valiosos para guiar a
investigação e para produzir conhecimento do tipo que é requerido em dado contexto de
investigação. Ambos os conjuntos heurísticos apresentam valência política em contextos
particulares de aplicação (os exemplos da medicina, da economia, da biologia celular
poderiam ser multiplicados). Em geral, no entanto, apenas as comunidades de pesquisa
pretenciosas ou opositoras vão reconhecer a relação de sua pesquisa heurística com seus
valores e seus objetivos sócio-políticos.
Pode-se ainda perguntar sobre as virtudes/heurística alternativas que descrevi o
que as torna feministas. Várias respostas foram oferecidas, mas eu considero que a
pergunta está errada. Afinal, existem alternativas não advogadas exclusivamente por
feministas, mas também por outros cientistas de oposição, por exemplo, a biologia
dialética imaginada pelos dois Richards (Levins & Lwontin, 1985). E eles retratam o
trabalho dos cientistas que rejeitariam o rótulo “opositor”. Eles servem como alternativa
para uma comunidade científica mais ampla (ou diferente) da feminista.
Ao invés disso, a pergunta deveria ser: o que indica a heurística alternativa como
feminista? Como sugeri em outros trabalhos, o que deve indicá-las como feministas é
que elas servem (ou poderiam servir) aos objetivos cognitivos feministas. O que torna as
feministas feministas é o desejo de desmantelar (eliminar, finalizar) a opressão e a
subordinação das mulheres. O que requer a identificação dos mecanismos e das
instituições de opressão e de subordinação feminina, ou seja, os mecanismos e as
instituições de gênero. O objetivo cognitivo das pesquisadoras feministas, desse modo, é
o de revelar a operação de gênero, tornando visível tanto as atividades do gênero
feminino e dos processos pelos quais eles são tornados invisíveis, e pela identificação
dos mecanismos simbólicos e institucionais por meio dos quais as agentes do gênero
feminismo são subordinadas. O que deve indicar tais virtudes como feministas, então, é
que a investigação guiada por essa heurística e as teorias caracterizadas por essas
virtudes são mais indicadas para revelar questões de gênero do que a investigação
guiada pelas virtudes hegemônicas. Os exemplos que eu delineei são exemplos da
relação entre a posse dessas virtudes e a revelação ou o ocultamento de gênero. A
pesquisa considerada problemática pelas feministas é a que envolve a naturalização pelo
desaparecimento das relações de dominação. A análise feminista demonstra que certas
relações são relações de dominação. A resistência a tais ocultamentos é a base feminista
de resistência ao reducionismo. Existe indubitavelmente mais para ser dito sobre esse
ponto também, inclusive considerações sobre outras virtudes teóricas possíveis, outros
objetivos cognitivos, e as relações entre essas virtudes com outros valores (não
cognitivas) endossados pelas feministas e sobre valores endossados por outras
comunidades de investigação. O que fiz até o momento foi propor a estrutura, um tipo
de estrutura pragmática ou teleológica. Eu gostaria de transitar para a discussão de
algumas das consequências de assumir seriamente tal estrutura.

IV. Reflexões epistemológicas


O que podem essas virtudes e as suas relações nos dizer sobre os prospectos para
uma prática científica feminista, ou não reducionista ou alternativa, baseada nelas?
Antes de tudo, apesar de as virtudes terem sido endossadas pelas feministas (mesmo que
não por todas elas) e poderem ser discernidas no trabalho da avaliação feminista, sua
subordinação a objetivos cognitivos mais amplos significa que eles não estão dentre ou
são em si mesmos virtudes teóricas feministas, ou para dizer de outro modo, tal
subordinação significa que essas virtudes alternativas não necessariamente são parte de
um pacote epistemológico feminista.
Elas não apresentam posição intrínseca como virtudes teóricas feministas ou
virtudes para as feministas, mas apenas uma posição provisória. Pois, na medida e na
extensão em que o seu papel regulativo ou heurístico pode promover o objetivo de
revelar o gênero, e na medida em que revelar questões de gênero permanece o objetivo
primário da investigação feminista, elas podem servir como normas, padrões ou guias
na investigação feminista. É possível, no entanto, que em diferentes contextos eles
possam não promover os objetivos cognitivos feministas, ou que os objetivos possam –
eles mesmos – mudar, de tal modo que outras normas cognitivas regulativas possam ser
requeridas. De fato, na medida em que as feministas discordam das virtudes, elas podem
mesmo desejar uma mudança nos objetivos cognitivos feministas ou reivindicando que
os objetivos não estão servidos pelas virtudes discutidas aqui. Podem existir múltiplos
conjuntos de virtudes cognitivas feministas, correspondentes a diferentes concepções de
quais são seus objetivos cognitivos, ou quais eles deveriam ser. O conceito de gênero,
em si mesmo, mudou como consequência da investigação feminista. Reconhecer a falta
de unidade tanto do gênero, quanto das formas de subordinação de gênero, pode
requerer mudança na finalidade ou nas virtudes. Não apenas isso, a ciência hegemônica
pode ultrapassar ou cooptar temas da ciência dissidente: muitos cientistas estão agora
aceitando a heterogeneidade e a complexidade (por exemplo, pensamento de rede na
sociologia, o trabalho recente sobre a transcrição do RNA na biologia molecular), mas
eles podem fazê-lo de modo a tornar o gênero novamente invisível. Se for dessa forma,
as feministas precisarão de uma heurística diversa daquela advogada por elas no auge da
ciência reducionista. Isso sugere uma imagem do conjunto da heurística, neutra em si
mesma, mas que pode servir a diferentes valores sociais em diferentes situações
intelectuais ou políticas.
Em segundo lugar, a alegação normativa desses valores/virtudes/heurísticas é
limitada à comunidade que compartilha um objetivo primário; as que não o
compartilham, não a apresentam. Para expandir esse ponto, os valores alternativos só
estão ligados a essas comunidades que compartilham um objetivo cognitivo que é
estimulado por esses valores. Seu alcance normativo é, desse modo, local. Ao enfatizar
a provisoriedade e a localidade das virtudes alternativas, tal abordagem contrasta de
modo consideravelmente agudo em relação às abordagens oferecidas ou implicadas
pelos defensores das virtudes tradicionais, que são apresentadas como (puramente)
epistêmicas, ou como Kuhn propôs, como constitutivas da ciência, como obrigações
universais. Afirmei que esses argumentos em favor das virtudes alternativas devem
apelar para, e argumentar em favor, dos objetivos cognitivos aos quais servem. O que
mostra a aplicação dessa estrutura pragmático-teleológica às virtudes tradicionais? O
que está faltando para a maior parte da defesa em seu favor é a articulação com os
objetivos cognitivos que poderiam fundamentá-los, ou aos quais eles poderiam servir.
Se existirem múltiplos conjuntos possíveis de heurística/virtudes, então nenhum
conjunto é auto anunciado, e a estrutura da sua justificação deve ser a mesma daquele
conjunto particular de heurística alternativa que eu discuti. O objetivo cognitivo a ser
alcançado pela confiança no conjunto tradicional ainda está por ser identificado (por
razões que se tornarão claras, a verdade não é suficiente). Qualquer conjunto, então,
será apenas provisório e localmente relacionado.
Existe uma consequência adicional de tratar dessas virtudes como heurísticas. 5
Tipicamente, a discussão sobre valores ou virtudes abarcou considerações de apoio
quando diante de duas teorias igualmente bem desenvolvidas e adequadas de modo
equivalente empiricamente. A heurística entra em jogo antes disso na pesquisa, quando
se está tentando formular modelos ou escolher entre as direções nas quais seguir. A
suposição de que havia apenas um conjunto de valores científicos permitiu que os
valores tradicionais representassem um papel de guia para o desenvolvimento dos
modelos, assim como um papel na decisão entre teorias. Isso pode, de fato, ser o seu
efeito mais pernicioso – aquele de impedir a investigação de alternativas, pois elas não
exemplificam as virtudes tradicionais. Argumentei que os conjuntos tradicionais e
alternativos estão, epistemologicamente falando, em pé de igualdade. À luz dos
comentários anteriores, isso significa que eu encorajo o tratamento de membros de
ambas as heurísticas, empregadas nos contextos do desenvolvimento das teorias e dos
modelos, ao invés de designá-las status probatório operativo ao final da investigação.
Elas não funcionam como árbitros para os quais apelar quando em face de uma situação
de subdeterminação. Como muitos filósofos argumentaram, os próprios cientistas
raramente encaram as decisões como representadas nas situações idealizadas de
subdeterminação. Argumento que isso ocorre porque a heurística, assim como outras
pressuposições que fecham a lacuna da subdeterminação, representaram um papel desde
o começo: elas formataram perguntas, guiaram a seleção e a representação dos dados e a
escolha dos métodos, garantiram prima facie a plausibilidade para certos modelos e
hipóteses, para outros.
Para levar tais considerações para dar suporte à política do conhecimento,
permita-me colocar isso no todo da crítica contextual empirista [critical contextual
empiricism], que eu defendo.6 Os dados, ou seja, as medições, as observações, os
resultados experimentais, adquirem relevância como evidência para uma hipótese
apenas no contexto dos pressupostos de fundo. Eles adquirem estabilidade e
legitimidade através da sobrevivência à crítica. As práticas de justificação devem,
portanto, incluir não apenas o teste das hipóteses em relação aos dados, mas a sujeição
aos pressupostos de fundo (e raciocínio e dados) à crítica a partir de uma variedade de
perspectivas. Desse modo, a interação discursiva intersubjetiva é adicionada à interação

5
Agradeço aos participantes do Nodre Dame Bielefeld Conference on Science and Values, por
pressionarem esse ponto.
6
Sua expressão mais recente encontra-se em Longino (2002).
com o mundo material sob investigação como componentes da metodologia. A partir de
uma perspectiva normativa isso significa a articulação de condições para a crítica
efetiva, tipicamente especificando as características estruturais da comunidade
discursiva, que garante a efetividade da crítica discursiva que ocorre dentro dela. Eu
sugeri quatro dessas condições: a) o provimento do foro para a articulação da crítica; b)
a compreensão (ao invés de mera tolerância) da crítica; c) os padrões públicos de nos
quais as interações discursivas são referenciadas; d) a igualdade (ou igualdade
moderada) de autoridade intelectual para todos os membros da comunidade.
Os padrões públicos que regulam as interações discursivas e materiais da
comunidade são tanto provisionais quanto subordinadas ao objetivo geral da
investigação para a comunidade. A verdade simpliciter não pode ser esse objetivo, uma
vez que ele não é suficiente para direcionar a investigação. Ao contrário, as
comunidades buscam tipos particulares de verdades. Elas buscam representações,
explicações, métodos tecnológicos etc. Os investigadores nas comunidades de biólogos
buscam a verdade sobre o desenvolvimento de organismos individuais, sobre a história
das linhagens, sobre o funcionamento fisiológico dos organismos, sobre o mecanismo
das partes dos organismos, sobre interações moleculares etc. A pesquisa em outras áreas
são organizadas de modo semelhante em torno de questões específicas. Quais tipos de
verdades serão buscados no projeto de pesquisa particular é determinado pelos tipos de
questões que os pesquisadores estão fazendo e os propósitos para os quais eles as estão
fazendo, isto é, os usos para os quais as respostas serão colocadas. Conjuntos diferentes
de heurísticas (consistindo em regras para a coleta de dados – inclusive os padrões de
relevância e de precisão –, os princípios de inferência e os valores epistêmicos ou
cognitivos) satisfazem diferentes objetivos cognitivos. A verdade não está em oposição
em relação aos valores sociais, de fato a verdade é um valor social, no sentido de que
ela é uma demanda social da investigação científica, que fornece verdades ao invés de
falsidades, mas a sua função regulatória é dirigida/mediada por outros valores sociais
operativos no contexto de investigação.7
Uma consequência de assumir a perspectiva epistemológica é o pluralismo.
Outros filósofos desenvolveram o pluralismo como uma visão sobre o mundo, isto é,
como a consequência da complexidade natural tão profunda que nenhuma teoria
particular ou modelo pode capturar plenamente todas as interações causais envolvidas

7
Para uma discussão mais extensa sobre a verdade (ou sucesso semântico) de afirmações teóricas, ver
Longino (2002).
em qualquer processo dado. Na medida em que esse pode ser o caso, a posição
epistemológica que estou advogando é meramente aberta ao pluralismo, no sentido de
que não pressupõe o monismo. Pode ser apropriado falar sobre o conhecimento mesmo
quando existem formas de conhecer o fenômeno que não pode ser simultaneamente
assumidas. Se isso é ou não apropriado em todos os casos depende da satisfação de
condições sociais do conhecimento acima mencionados. Quando essas condições são
satisfeitas, a confiança em qualquer conjunto particular de pressuposições deve ser
defendida em relação aos objetivos cognitivos da pesquisa. Essas não são apenas
questões das motivações individuais dos pesquisadores, mas dos objetivos e dos
interesses das comunidades que apoiam e sustentam a pesquisa. Da perspectiva social
todos eles devem ser publicamente sustentados através da sobrevivência ao escrutínio
crítico. Assim, os valores sociais exercem um papel imprescindível em certos contextos
de julgamento científico.
Eu já indiquei porque as feministas, ou qualquer conjunto alternativo de virtudes
teóricas, não poderiam ser suprimidos pelas virtudes tradicionais. Duas objeções a mais
precisam ser tratadas. Pode-se questionar se não existe conjunto de valores cognitivos
diferentes da heurística identificada como tradicional e das alternativas, que poderiam
constituir normas universais. Talvez os vereditos de provisoriedade e de parcialidade
sejam consequência de observar os valores errados. Mas, essa objeção deve prover
exemplos de valores que poderiam ser universalmente obrigatórios. As únicas
características das teorias ou das hipóteses que poderiam estar qualificadas são a
verdade ou a adequação empírica. Mas, a verdade no contexto da adjudicação de uma
teoria reduz-se à adequação empírica, a verdade de declarações observacionais de uma
teoria. E a adequação empírica não é suficiente para eliminar todas, mas apenas um
conjunto de teorias em competição. Esse é o porquê de o puramente epistêmico não ser
rico o suficiente para guiar a investigação e a avaliação da teoria que a heurística
discutida mais cedo entra em jogo (para argumentos sobre a insuficiência da verdade
simpliciter, ver Anderson, 1995 e Grandy, 1987). Pode-se, alternativamente, especificar
as qualidades das investigações que contam como virtudes, por exemplo, a abertura da
mente e a perspicácia sensorial e lógica, mas essas virtudes não são teóricas, mas apenas
virtudes pessoais, não são padrões públicos de discurso crítico, mas qualidades
requeridas para participar construtivamente de tal discurso.
Em segundo lugar, pode-se resistir à identificação de conjuntos conflitantes de
virtudes e sugerir a integração desses dois conjuntos de virtudes. Existem duas
dificuldades com essa sugestão. Em contextos particulares de investigação, as virtudes
de dois conjuntos recomendam teorias irreconciliáveis (Longino, 1996). Além disso, a
integração pode ser compreendida ao menos duas maneiras, cada qual envolvendo
pressuposições bem distintas. Por um lado, poder-se-ia pressupor como satisfatório um
comprometimento de unificação da ciência, mas tal comprometimento precisa ser
sustentado. Por outro lado, poder-se-ia propor a integração como modo de realização do
pluralismo teórico em dada comunidade particular. Isso pressupõe o valor da
diversidade (particular) de modelos que a inclusão de ambos os conjuntos nos padrões
de uma comunidade pode produzir. Se for assim, o que é necessário nesse caso não é a
integração de virtudes por uma comunidade de pesquisa, mas a tolerância e a interação
com a pesquisa guiada por diferentes virtudes teóricas, a construção de comunidades
mais amplas ou meta-comunidades caracterizadas pelo respeito mútuo por pontos de
vista divergentes, isto é, pelo pluralismo.8

V. A política do conhecimento
Nesse esquema, então, a heurística/virtude tradicional e a alternativa constituem
conjuntos parcialmente sobrepostos, mas conjuntos característicos de padrões públicos
comunitários. Ou seja, eles servem tanto para guiar o desenvolvimento dos modelos e
das hipóteses relevantes para a situação empírica sob investigação quanto, quando
geralmente aceitos, para regular o discurso em suas respectivas comunidades. Eles não
são fixos, mas podem ser criticados ou modificados relativamente aos objetivos
cognitivos para os quais são escolhidos para desenvolver, ou em relação a outros valores
designados de alta prioridade, e eles podem, ao contrário, servir como base para a
crítica. Tampouco essa crítica é limitada ao discurso interno à comunidade. As áreas de
sobreposição ou de interseção tornam possível a interação crítica entre as comunidades,
assim como dentro das mesmas. Generalizando a partir daquilo que argumentei antes, os
padrões públicos que discuto devem ser traços componentes aos quais a comunidade
científica objetiva, ou confiável, deve estar ligada apenas àqueles que compartilham o
objetivo cognitivo geral que baseia esses padrões, e que concordam com o padrão de
realmente fazer avançar aquele objetivo cognitivo. Tal acordo deve ser em si mesmo o
resultado das interações discursivas críticas no contexto de satisfação das condições de
8
Claro que, pode-se objetar que o que resulta não é em absoluto ciência, propriamente compreendida,
mas uma tentativa frustrada de ciência. Mas se por “ciência” designa-se uma prática racional idealizada,
talvez sim. Porém, se por “ciência” designa-se a tentativa de descrever e compreender os mundos naturais
e sociais através do tipo limitado que são os agentes cognitivos humanos, então o pluralismo é inevitável.
crítica efetiva. Como as virtudes são entendidas como padrões públicos, elas estão
subordinadas ao avanço de um objetivo cognitivo específico que pode mudar, devendo
ser entendidas como provisórias. Como elas estão ligadas apenas àqueles que
compartilham aquele objetivo, elas devem ser entendidas como parciais.
Esse modo de pensar sobre o conhecimento e a investigação envolve uma
mudança na atenção para além dos resultados ou produtos da investigação, sejam eles
teorias ou crenças, para os processos ou a dinâmica na produção de conhecimento. O
estado ideal de um ponto de vista epistemológico não é o de ter a melhor abordagem
particular, mas a existência de uma pluralidade de orientações teóricas, que possam
tornar possível a elaboração de modelos particulares do mundo fenomênico e servir
como fonte para a crítica recíproca. Pragmaticamente, é claro, a seleção deve ser feita
de um modelo que guie a ação, mas se nós arbitrariamente limitamos aqueles em
disputa, pela exclusão arbitrária de heurísticas alternativas, corremos o risco de ação ou
de política sub ou mal informada.
Por outro lado, desenvolver suficientemente o modelo ou a hipótese, de modo a
que ele possa contribuir para a interação crítica e possa ser aplicado para os problemas
empíricos requer recursos: tempo, espaço intelectual, fontes materiais.
Aqui é onde entra a política. Para propor que os modelos de processos naturais
desenvolvidos segundo certa abordagem que assume um dado conjunto de virtudes
superiores são parte de uma pluralidade de representações adequadas que respondem a
diferentes objetivos cognitivos, desobrigam as feministas, de fato qualquer cientista, do
fardo de completude ou de finalização. Isso requer ver o conhecimento como
simultaneamente dinâmico e parcial. Essa pluralidade não é meramente a existência de
modelos alternativos e de comunidades científicas constituídas diferentemente. Quando
as minorias religiosas lutam pelo pluralismo, elas lutam pela tolerância. O pluralismo
que eu advogo para a filosofia da ciência, e por extensão para a ciência, não requer a
mera tolerância. O pluralismo científico envolve a interação entre diferentes
abordagens: um mútuo considerar seriamente, isto é, entendimento. Nem toda ideia
excêntrica precisa estar de acordo com a mesma seriedade, mas o reconhecimento da
pluralidade requer cuidado ainda maior na dispensa de perspectivas alternativas. A
condição de igualdade de autoridade intelectual chama a atenção para a presente
distribuição desigual da autoridade intelectual. Igualdade de autoridade intelectual não
vem a ser por causa do conteúdo do argumento filosófico, é uma condição necessária da
produção de conhecimento genuína e plenamente confiável. Deve-se lutar por ela:
- Pela contestação de práticas de marginalização que tornam membros de certas
categorias sociais, mulheres ou membros de minorias étnicas, invisíveis, mesmo quando
as suas contribuições para um dado empreendimento é igual ou maior do que aquelas
dos seus colegas masculinos ou brancos. Para aqueles que pensam que essa
marginalidade não é mais um problema, deve-se notar os padrões de citação nas
publicações, para quem as ideias divulgadas em um encontro tendem a ser atribuídas,
etc (Fricker, 2003).
- Pelo acompanhamento das condições materiais que dão a algumas vozes e
perspectivas mais autoridade do que para outras, e trabalhar para modificá-los.
- Pelo acompanhamento das consequências materiais e sociais de adoção de um
modelo particular ou representação de um dado processo, e ativamente buscar
alternativas (e investigar as ferramentas requeridas para a sua produção), quando
necessário.
- Por ser vigilante em relação às possibilidades de cooptação. Por exemplo, as
virtudes da heterogeneidade e da complexidade, quando desconectadas do interesse
cognitivo nas relações de dominação, podem ser usadas de modo a reforçar a
desigualdade.
Esses diferentes caminhos para a ação são individualmente importantes. Os
críticos das ciências devem estar certos sobre o conteúdo e os métodos das ciências
atuais, mas estar certo não é suficiente. Para desafiar efetivamente as pressuposições
correntes e hostis, as investigadoras feministas devem se unir a outros marginalizados
pelas estruturas atuais de poder e interessadas em reivindicar e criar seus próprios
espaços para a produção de conhecimento científico; conhecimento que não neutraliza
as relações de dominação, mas oferece outros caminhos de interação com o mundo
natural pela extensão do outro. Eles e nós devemos também encontrar modos de
comunicar essas visões alternativas para fazê-los serem tomados seriamente pelo
público científico, bem como pela “ciência estabelecida”. Conhecimento melhor, por si
mesmo, não vai mudar o mundo social, parcialmente porque o mundo social deve
mudar para que outro conhecimento emerja. No entanto, no mundo social tão
dependente do conhecimento, da ciência, nós não podemos proporcionar mudanças em
um deles apenas, mas devemos continuamente trabalhar para a mudança dos dois.

Traduzido do original em inglês por Débora Aymoré.


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