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1º ATO

PATRÃO: Filial 77 560.320 almas.

SECRETARIA: Confere.

PATRÃO: Filial 78 ...

(Toca o telefone)

PATRÃO: Ah, mas será possível?!!

SECRETARIA: Eu atendo. Alô, pode falar.

VOZ: O anjo 653 deseja falar com o Patrão com urgência.

PATRÃO: Diga ao anjo 653 que eu estou muito ocupado.

SECRETARIA: Peça ao anjo 653 que espere. O Patrão esta conferindo o balanço.

VOZ: O anjo 653 insiste em ser atendido imediatamente.

PATRÃO: Diga que não é possível, e dê ordem para não ligarem novamente até segunda ordem.

SECRETÁRIA : O Patrão manda dizer que não é possível e pede para que não liguem novamente, até segunda ordem.

PATRÃO: Precisamos acabar com esse excesso de democracia aqui dentro, todo mundo se acha no direito de uma
audiência comigo, em qualquer lugar e a qualquer momento.

SECRETARIA: O Patrão está em toda parte.

PATRÃO: Mas não é possível continuar assim, por qualquer coisa eles vem a mim! Quando o mundo ainda existia era um
inferno!

SECRETÁRIA: O Patrão está sempre com a razão.

PATRÃO: Além de termos que fazer essa liquidação forçada? Também demitirei todo o Departamento de Contabilidade!
Não faço bem?

SECRETÁRIA: O Patrão age certo por meios ilícitos.

PATRÃO: Obrigado.

SECRETÁRIA: Continuamos?

PATRÃO: Sim, continuemos. Filial 78. Um milhão, quinhentos e trinta almas.

SECRETÁRIA: Confere.

PATRÃO: Filial 79. Cento e vinte mil, trezentos e trinta e cinco almas.

SECRETÁRIA: Filial 79. Cento e vinte mil, trezentos e quarenta almas. O erro é dessa filial.

PATRÃO: E quem é o responsável pela filial 79?

SECRETÁRIA: O anjo 653. Ela está a sua espera na ante-sala.

PATRÃO: Sim, é verdade. Alô.

VOZ: Alô.

PATRÃO: Faça entrar o anjo 653.

VOZ: Sim senhor.

PATRÃO: Se não me engano é uma de péssimos antecedentes.


SECRETÁRIA: Foi o anjo da guarda de Hitler.

(Houve-se o som de Harpa na entrada do Anjo)

ANJO: O Patrão seja louvado!

PATRÃO: Anjo 653, vejo-me obrigado a retorná-lo para sua antiga função de anjo da guarda.

ANJO: Não! O senhor não pode fazer isso! Não tenho vocação para anjo da guarda!

PATRÃO: E nem para anjo fiscal. Sua filial deixou de entregar cinco almas, sabe onde estão?

ANJO: Não senhor.

PATRÃO: Não sabe.

ANJO: Não compareceram ao Juízo Final. Vim perguntá-lo o que devo fazer, estou morta de tanto andar a procurá-los!

PATRÃO: Andar? E suas asas?

ANJO: Estão na oficina.

PATRÃO: Um anjo sem asas, que audácia! Quase nu!

ANJO: Que o Patrão me perdoe...

PATRÃO: E mesmo se os encontrasse, como poderia impor-lhes respeito? Ainda mais sem asas!

ANJO: Não sei o que fazer! De acordo com a lei...

PATRÃO: A lei prevê o comparecimento de todos os mortais no dia do Juízo, mas não prevê qualquer conseqüência pro
caso de isso não acontecer! Em todo caso senhorita, faça-nos o favor de consultar o Código de Penalidades. Isso só pode
ser resultado de péssima atuação nesse ultimo mundo! Gente pouco habilidosa e menos honesta ainda, esquecendo-se
sempre da ética.

ANJO: Todos os lucros devem ser para o Patrão.

PATRÂO: É, mas o Patrão era em quem eles menos pensavam. Esse segundo mundo foi um desastre!

ANJO: O senhor podia ter forjado um acidente, como da primeira vez, com a tal inundação.

PATRÃO: Eu fiz aquilo para receber o seguro.

ANJO: Pois então, podia ter arranjado um incêndio dessa vez!

PATRÃO: Não, esse segundo mundo nem segurado estava! E então senhorita?

SECRETÁRIA: O código não prevê esse caso.

PATRÃO: Eu já esperava.

ANJO: Mas o que faremos agora? Não há meios de fazê-los comparecer contra vontade.

PATRÃO: E o estado dessas almas?

ANJO: Péssimas, apenas um negro não seria condenado.

PATRÃO: Então não é possível perdoá-las.

ANJO: Mas nesse caso, o que faremos?

PATRÃO: Consultarei o Departamento Jurídico.

SECRETÁRIA: O Departamento Jurídico está reunido, quer que mande interromper a reunião?

PATRÃO: Não, eu já volto.


(O Patrão sai de cena)

ANJO: A vontade senhor. Pois então, enfim sós, há seiscentos anos espero por esse momento! (MÚSICA ROMANTICA)

SECRETÁRIA: Cuidado, o Patrão está em toda parte!

ANJO: Sei! Há seiscentos anos ele está em toda parte! Obstinadamente se interpõe entre nós, procurando me afastar de
você!

SECRETÁRIA: É vergonhoso atribuir procedimento tão mesquinho ao Patrão! Lembre-se: o Patrão age certo por meios
ilícitos!

ANJO: Estou farta dessas suas frases de propaganda!

SECRETÁRIA: Anjo 653, qual o seu problema?

ANJO: Meu problema é você, bonitinha.

SECRETÁRIA: Já tomou seu sucedâneo do amor?

ANJO: Já, mas sabes que não sou muito chegada a remédios, e que eles não fazem mais efeito contigo por perto, tudo
por causa dessa paixão que me consome há seiscentos anos!

SECRETÁRIA: É paixão carnal?

ANJO: Sim bonitinha.

SECRETÁRIA: Tome depressa! Dose dupla!

ANJO: Não adianta bonitinha!

SECRETÁRIA: Vai se sentir melhor em breve, não se preocupe.

ANJO: Imagine que estava até fazendo projetos bonitinha...

SECRETÁRIA: Que projetos?

ANJO: Tenho uma licença prêmio a receber, e estava pensando em convidá-la para gozarmos juntos dela.

SECRETÁRIA: Por que me toma anjo 653? Saiba que sou uma das onze mil virgens!

ANJO: Sim, e agora é secretária do Patrão.

SECRETÁRIA: Graças a igualdade de direitos conquistadas pelas mulheres em relação aos homens, quase todas as onze
mil virgens foram empregadas.

ANJO: Eram onze mil, agora são todas secretarias.

SECRETRIA: O que não lhe dá direito de me fazer propostas.

ANJO: Não faço mais, estou a ponto de perder a licença.

(Houve-se a voz do Patrão do além)

PATRÃO: Que desperdício de luz é esse?

SECRETÁRIA: É a luz da inocência Patrão.

PATRÃO: E pra que tanta inocência? Aqui esse desperdício, lá embaixo, completo racionamento. Por isso tivemos que
fechar as portas!

ANJO: E então, conseguiu alguma coisa com os juristas?

PATRÃO: Nada, os juristas nada resolveram. Com esse déficit de cinco almas não podemos encerrar o balanço!

SECRETÁRIA: Se o Patrão me permite lembrar, na penúltima liquidação forçada deixou-se um casal de cada espécie.
PATRÃO: Um grande erro! Só sei que é preciso acabar o mundo por inteiro e começar do zero, não se pode aproveitar
nada!

ANJO: Nesse caso, acho que não há outra alternativa se não acabar com o mundo novamente.

PATRÃO: Impossível acabar com algo que já não existe!

ANJO: Seria um paradoxo.

PATRÃO: Um contrassenso!

ANJO: A situação atual também é um contrassenso!

PATRÃO: O que quer dizer?

ANJO: O mundo se acabou e cinco almas permaneceram dentro dele. É uma contradição.

PATRÃO: No próximo mundo que eu criar, ninguém mais terá esse desrespeito, por isso devemos legalizar a situação
agora mesmo.

ANJO: Devo então voltar?

PATRÃO: Imediatamente.

ANJO: E suponhamos que elas se recusem a comparecer, não posso trazê-las a força!

PATRÃO: Se isso acontecer, elas irão se arrepender amargamente.

ANJO: Que pretende fazer?

PATRÃO: Não te interessa, trate de cumprir sua missão, e se falhar mais uma vez...

ANJO: Já sei, anjo da guarda.

PATRÃO: Exatamente. Senhorita.

SECRETÁRIA: Senhor.

PATRÃO: Prepare-o para voltar.

SECRETÁRIA: Mesmo sem asas?

PATRÃO: Sem asas, e sem paraquedas.

2º ATO

(SOM DE VENTANIA)

(O Negro entra apavorado, passos incertos, olha em torno, fisionomia angustiada. Lança um olhar para o céu. Ouve-se o
som das trombetas. Assustado o negro foge. Segundos após entra o Ladrão)

Rei: Olá

Ladrão: Olá colega.

Rei: O senhor também é rei?

Ladrão: Não, estou mais para desertor.

Rei: As trombetas chamaram para o Juízo Final, todos os mortais devem comparecer para serem julgados.

Ladrão: Vossa majestade então se atrasou, e isso não fica bem para um rei.

Rei: E que horas seriam?


Ladrão: Bom, no meu relógio... Sim, é verdade, o mundo se acabou, o tempo já não existe e como o tempo não existe não
há como vossa majestade estar atrasado.

Rei: Mesmo assim, não comparecerei.

Ladrão: Um rei não deve sentar-se no banco dos réus.

Rei: E não é só isso.

Ladrão: O que mais?

Rei: Como se acaba com o mundo assim? Sem mais nem menos, sem nos consultar, sem qualquer explicação a nós,
seus donos?

Ladrão: Vossa majestade não foi avisada?

Rei: Nem um bilhete sequer, quando menos esperava, o mundo se acabou.

Ladrão: Isso se chama desapropriação sem aviso prévio, é contra a lei.

Rei: Um desrespeito à propriedade privada. Nunca um rei foi deposto de maneira tão estúpida!

Ladrão: Não lhe deram tempo nem de trocar de roupa.

Rei: Exatamente! Estava participando de uma cerimônia tradicional, quando de repente, (PUFF) , aconteceu aquilo.

Ladrão: Sim, tão de repente que não deu tempo nem do Juiz ler minha sentença de absolvição por desvio de verbas.

Rei: Entendo, foi acusado injustamente.

Ladrão: Não, com toda a justiça.

Rei: Então devia ter comparecido ao julgamento.

Ladrão: Ah claro, onde já se viu ladrão que se preze, se entregar sem uma perseguição básica? Está ficando louco?

Rei: Não fale assim comigo! Mas você disse de desvio de verbas, o que significa que não era um simples ladrãozinho de
rua.

Ladrão: Claro que não! Eu fiz carreira! Fiquei famoso por ser “honesto”, e fui subindo cada vez mais, até ser entregado por
aquele bando de invejosos que não chegaram ao meu nível!

Rei: É, pelo jeito as coisas não estão muito boas para o seu lado.

Ladrão: E como foi. Se soubesse que o mundo iria acabar, não teria gastado tanto dinheiro com aquela sentença de
absolvição!

Rei: Esqueça isso, veja... um anjo!

Ladrão: Você bateu a cabeça mesmo não foi? Quando era criança, me vestiram de anjo, e não era nada disso.

(Entra a prostituta)

Prostituta: Que vão fazer de mim? Não podem castigar a mim pelo que fiz, não sabia o que estava fazendo! E se
soubesse que viria aqui, não teria feito nada disso!

Rei: Também não me avisaram.

Prostituta: Como eu podia resistir se não sabia? Se não tinha certeza de nada... sei que estou cheia de lama, imersa em
culpa, mas ninguém me ajudou! Apenas me jogaram de um lado para outro como um objeto! Não podem me castigar por
isso!

Ladrão: Um cigarro? Parece precisar relaxar.

Prostituta: Estou melhor sem.


Ladrão: Majestade?

Rei: Não, obrigado.

Ladrão: Estão certos o mundo se acabou, deve-se acabar com os vícios, dos outros.

Prostituta: Que vão fazer comigo? Não acham que não é justo?

Ladrão: Claro que não é justo, uma pena que nossa opinião não lhe vá ajudar.

Prostituta: São fugitivos como eu?

Rei: Não sou fugitivo, me recusei a comparecer!

Prostituta: Ah, que ótimo! Estou me lamentando para dois inúteis! Afinal, quem são vocês?

Ladrão: Ele era rei.

Prostituta: Rei? De onde?

Rei: Já não importa... Mas o meu império se expandia por vários continentes, meu domínio se exercia por milhões de
criaturas.

Prostituta: E o senhor?

Ladrão: Talvez estivesse entre essas criaturas.

Prostituta: Mas e se vierem nos buscar? Não tem medo?

Ladrão: Ele é muito orgulhoso para dizer, e eu, cínico demais para admitir.

Prostituta: E o que esperam que aconteça?

Ladrão: Ele espera uma carruagem com quatro cavalos brancos para levá-lo, eu apenas espero um guarda mau
humorado, mas provavelmente não teremos nada disso.

Prostituta: Talvez dupliquem nossa pena por tanta rebeldia! Não há duvidas de que seremos punidos, e eu, ainda mais!

Ladrão: Convencimento seu, não creio que o castigo de nenhum de nós é pior que o dele.

Prostituta: Porque o dele?

Ladrão: Ele se dizia rei pela graça divina.

Prostituta: E não era?

Ladrão: Ah se fosse, não estaria aqui agora!

Rei: Que bonito trabalho fizeram acabando com o mundo, eu um rei, entre um ladrão, e uma prostituta.

Prostituta: O senhor, que foi um rei, deve ter alguma ideia do que vão fazer conosco, certo?

Rei: Me incomoda mais saber o que vão fazer comigo, prostituta.

Prostituta: Rude. E se vierem nos buscar?

Rei: Eu resistirei.

Prostituta: Sonha. E se nos levarem a força?

Ladrão: Há uma esperança, quem sabe não fomos esquecidos? De mim pelo menos.

Rei: Coitado, só se destruíram os arquivos da polícia!

Ladrão: É, se pegaram os arquivos da polícia, estou ferrado! Mas será que acabaram com o mundo e não acabaram com
a policia?
Prostituta: Vejam, vem alguém!

Sra Honesta: Os senhores podem me informar onde se realiza o Juízo Final?

Ladrão: É pra lá, mas agora não faz mais diferença.

Rei: Será que ninguém compareceu ao juízo?

Sra Honesta: Os senhores também?

Ladrão: Visivelmente.

Sra Honesta: Eu me atrasei.

Ladrão: É o horário de verão.

Sra Honesta: Estava jogando pif-paf, aprendendo uma nova modalidade.

Prostituta: A senhora deve ter perdido muito...

Sra Honesta: Não, isso foi na confusão... estava escuro...

Ladrão: Aah! Pifpaf no escuro...

Sra Honesta: Sim, é muito interessante.

Rei: Imagino...

Ladrão: É, aposta-se no escuro e sai-se sem roupa.

Sra Honesta: Não, isso foi porque o mundo acabou tão de repente... Nós estávamos na melhor parte do jogo.

Ladrão: A senhora estava pela boa?

Sra Honesta: Oh não, não cheguei a bater. De repente... o mundo acabou.

Rei: Ai a senhora procurou a roupa e...

Sra Honesta: E o hotel, o quarto, a cama, tudo havia desaparecido. Quer dizer... Mas o que é que os senhores estão
imaginando? Quem pensam que eu sou?

Todos: Uma grande jogadora de pifpaf

Sra Honesta: Meu marido era gerente de um banco, ele não podia jogar, fazia hora extra todas as quintas feiras por isso
eu saia pra jogar, era ele que mandava, ficava com pena de me deixar sozinha, mandava que eu saísse pra me distrair.

Ladrão: Ninguém está duvidando.

Sra Honesta: Eu sou uma mulher de posição!

Ladrão: Está mais para mulher de posições não?

Prostituta: Opa, de posições eu entendo!

Sra Honesta: Ah, mas não foi por isso que não compareci ao juízo.

Rei: E por que foi?

Sra Honesta: Era uma humilhação! Uma fila enorme, maior que a do ingresso do Jorge e Matheus!

Prostituta: Mas para o show acredito que a senhora foi.

Sra Honesta: Ora, e o que pensa que sou? Sou uma Senhora Honesta, uma senhora de posição, não posso entrar numa
fila com minha cozinheira!

Ladrão: E como é humilde.


Sra Honesta: Os senhores não acham que isso está muito mal organizado?

Rei: Completamente.

Ladrão: Acho que deveria ter duas filhas: senhoras honestas, senhoras desonestas...

Sra Honesta: O mais importante seria a separação de classes! Como posso eu me misturar com essa gentinha?

Rei: Muito menos eu, que fui rei, devo ficar entre essas criaturas.

Sra Honesta: Rei, o senhor foi rei?

Rei: Para servi-la minha senhora.

Sra Honesta: Mas rei completamente?

Rei: Completamente minha senhora.

Negro: Até que fim encontrei pessoas por aqui.

Anjo: Ei! Vocês aí! Parados! 1,2,3,4 e 5, é estão todos aqui! Será que vou ter que correr mais atrás de vocês? Tenho
andado que nem é vida! Logo agora que estou sem condução?

Rei: Sem condução?

Anjo: É, estão na oficina, mandei trocar os amortecedores.

Sra Honesta: Do carro?

Anjo: Não, das asas.

Sra Honesta: você é um anjo?

Anjo: Há novecentos e noventa e nove anos.

Prostituta: Eu sabia que viriam nos buscar! Vamos todos ser castigados!

Anjo: Isso de castigar não é comigo, minha missão é levá-los até o juízo, todos serão julgados! E não posso falhar.

Prostituta: E o que vão fazer conosco?

Anjo: Não sei.

Prostituta: Vamos todos ser castigados!

Negro: não, não quero ser linchado!

Anjo: Já falei que minha missão é apenas levá-los até lá, não consegue entender? Ande logo, vamos!

Sra Honesta: E por que temos que ir?

Anjo: Porque o mundo acabou, e vocês estão fazendo hora aqui! Andem logo!

Prostituta: Eu não tenho a mínima chance de absolvição, como posso? Não tenho culpa, sei disso, mas também sei que
vou ser castigada!

Anjo: Se não tem culpa, será absolvida, a justiça final é a justiça completa.

Prostituta: Não me venha com isso! A justiça sempre está contra os fracos.

Ladrão: Vamos fazer assim: te acompanhamos, em troca de sermos todos perdoados!

Anjo: Impossível! Isso vai desmoralizar o estabelecimento!

Ladrão: Então, estamos de greve.


Anjo: É o que?

Ladrão: Sim, se não formos perdoados, exigimos um mundo novo especialmente para nós. Se quiser até vou lá negociar
com o Patrão.

Prostituta: Não! Nem pense nisso! Não confio em políticos!

Anjo: Ótimo! Adeus licença prêmio!

Sra Honesta: Vejam, ela sumiu!

Prostituta: E agora?

Ladrão: Agora é esperar. Creio que não deve demorar muito, aqui não deve haver burocracia.

Patrão: Ladrão, assassino, mistificador!

Ladrão: Quem me insultou?

Patrão: Não estou insultando. Estou apenas lendo a sua folha de serviço.

Ladrão: Quem é o Senhor?

Patrão: Sou o seu Patrão.

Ladrão: O senhor deve ter se equivocado. Eu roubei, é verdade, fiz demagogia, mas nunca matei ninguém.

Patrão: Mandou matar.

Ladrão: Bem, não é a mesma coisa. E, se fiz isso... bem, foi porque não sabia que vinha me encontrar com o senhor um
dia. O senhor compreende... a gente não pode adivinhar. Se o senhor tivesse me avisado que pretendia acabar com o
mundo, eu não teria feito nada do que fiz. A culpa foi sua. Eu até que fui um bom rapaz, temente a Deus... Pensei até em
ser padre!

Patrão: Verdade?

Ladrão: Juro! Mas porque o senhor não fala também com os outros? Eles são piores do que eu.

Patrão: Mas você no é o líder da greve?

Ladrão: Líder? O senhor sabe que eu nuca fui líder de coisa nenhuma. Sou apenas um oportunista. È claro que alguém
precisava tomar a frente do movimento. E isso é bom para o senhor. Eu estou sempre disposto a fazer concessões... Aqui
entre nós eles são fáceis de manobrar... Posso levá-los para onde quiser. Naturalmente que as concessões precisam ser
mútuas... Eu posso mudar de partido, desde que o senhor me ofereça alguma vantagem.

Patrão: A justiça final não faz concessões meu velho.

Ladrão: O senhor é intransigente. Eu não estou impondo nada. Estou apenas querendo fazer um acordo. Não me diga que
o senhor não vai querer fazer acordo de espécie alguma. Que pretende castigar-me por todos os erros, todos os crimes
que cometi. Isso seria cruel. E não seria justo. Eu vivi num mundo foi feito pelo senhor! Disseram-me também que bastava
arrepender-me de tudo na hora da morte, para ser perdoado. Juro que estou arrependido. Mas com certeza era tudo
mentira. Fui enganado, miseravelmente. O senhor tem que levar isso em consideração. Eu fui iludido. Não sou réu, sou
vitima. Que é isso? Que está fazendo?

Patrão: Um mundo novinho em folha, como vocês pediram...

3º ATO

(Voz do Patrão)

(MÚSICA DO PARANGOLÉ)

Patrão: 653!

Anjo: (assusta-se e levanta em um salto)


Anjo: Pronto Patrão, desculpe-me..

Patrão: Anjo 653, pelo que parece você não está levando muito a sério a sua tarefa neste novo mundo.

Anjo: Como não? Pois não tenho feito outra coisa se não preocupar-me com a nova filial.

Patrão: Todas as providencias foram tomadas?

Anjo: O senhor compreende, depois que o senhor dissolveu a guarda, a profissão ficou muito desmoralizada. Não
encontro Ninguém que queira ser anjo da guarda. Com muito custo, eu consegui contratar quatro e estou esperando o
quinto. Tive que buscar até no coro dos anjos onde ninguém tem a menor experiência com almas. Mas ensinarei a eles
como ser um bom anjo da guarda.

Patrão: Tome cuidado 653! Olhe a responsabilidade da filial é inteiramente sua! Aliás, ai vem um anjo, deve ser um
candidato, vou me retirar, mas muito cuidado 653!

Anjo da Guarda: Com licença senhora.

Anjo: Aproxime-se

Anjo da Guarda: Vim apresentar-me, sou a nova anjo da guarda.

Anjo: Sim, pois bem, sente vocação para a profissão?

Anjo da Guarda: Acho que sim

Anjo: Sabe o quanto é grande a responsabilidade que vai assumir?

Anjo da Guarda: Sim, e isso me deixa receosa.

Anjo: Isso deve mudar, uma das principais características dos anjos da guarda é não recear coisa alguma. Não se pode
ter escrúpulos ou qualquer vergonha nesse trabalho! Deve perder também essa inocência e candura.

Anjo da Guarda: Acredito que não devo, afinal, a candura e a inocência são virtudes mais que essenciais para um anjo.

Anjo: E como pretende impedir seu protegido de ser pego nos braços da amante se for inocente?

Anjo da Guarda: Mas nesse mundo...

Anjo: Sim, mas no outro mundo, seria necessário. Espero que perca isso tudo logo, não se lembra do anjo 1001?

Anjo da Guarda: Sim, o anjo da Cleópatra. Aquela moça que se suicidou com duas cobrinhas.

Anjo: Sim, nos seios. Ele fechou os olhos na hora. Ficou com vergonha.

Anjo da Guarda: Bom, vou fazer meu melhor nesse novo mundo. Mal posso esperar para descer para o novo mundo.

Anjo: Ansioso?

Anjo da Guarda: Sofro de vertigens aqui em cima, tenho pressão alta.

Anjo: E pra que esses óculos?

Anjo da Guarda: Sou daltônica...

Anjo: Ah, que maravilha! Pressão alta, vertigens, daltonismo... No outro mundo você estaria perdida! Você é a maior
negação profissional que já vi!

Anjo de Guarda: O que isso significa? Por favor, eu preciso desse emprego!

Anjo: O que significa é que você está contratada!

Anjo da Guarda: Muito obrigada!

Anjo: Anjo da guarda. Letra F. Salário mínimo.


Anjo da Guarda: Muito obrigada senhora!

4º ATO

Sra Honesta: Nossa, como você é trabalhador!

Negro: Alguém tem que trabalhar né?!

Sra Honesta: Nesse novo mundo eu me sinto tão sozinha e com fome.. Preciso de alguém que me dê carinho, atenção,
que cuide de mim, que me alimente...

Negro: Tá, mas e os outros dois?

Sra Honesta: Eles são inúteis, realmente não me interessam! Eu precisava de um homem forte, trabalhador, responsável..
Ah você sabe do que uma mulher precisa não é?!

Negro: Venha, vou cuidar de você

(Música: Humilde residência -refrão)

Ladrão: Olá companheiro. Calma, sou seu amigo.

Negro: Que quer?

Ladrão: Apenas cumprimentá-lo, não o tenho visto, por acaso esteve caçando?

Negro: Cacei só pra mim.

Ladrão: Mas amigo, será que não podíamos dividir? Amanhã pretendo sair para caçar e...

Negro: Não.

Rei: Amigo... tenho fome!

Negro: Há muita comida por aí.

Rei: Mas você podia... só um pouco de carne...

Negro: Não.

Rei: Troco por essa coroa.

Negro: E de que isso vale?

Rei: São pedras preciosas! Ouro! Diamantes! Vê, fica muito bem com ela!

Negro: É muito incômoda, vai me impedir de trabalhar.

Rei: Que posso lhe dar em troca então? Posso ser de grande ajuda.

Negro: Com o que?

Rei: Você está sempre trabalhando, a deixa sozinha, eu poderia cuidar dela, afinal, ele é perigoso, capaz de tudo!

Negro: Como se você fosse um santo.

Prostituta: Entre, sei que não vai se arrepender!

Ladrão: Ela pode convencê-lo de um jeito que não podemos.

Negro: Que quer?


Prostituta: Seja mais delicado, é tão pouco o que lhe peço, e tão bom o que posso lhe dar em troca.

Negro: Ela não me pede nada em troca.

Prostituta: Claro, ela é honesta, mas não acho que seja muito confiável.

Negro: O que quer dizer? Sabe de alguma coisa? Fale!

Prostituta: Não, não sei de nada, só quero lhe prevenir.

Negro: Tenho vontade de apertar-lhe o pescoço!

Prostituta: Não ouse!

Sra Honesta: Que está fazendo aqui? Ela não sabe que você é meu, que deve manter distância?

Negro: Ela me chamou.

Prostituta: Fique com seu lindo negro, não me faz falta alguma. Queria outra coisa.

Sra Honesta: Quer que a sustente?

Prostituta: Eles sempre me sustentaram.

Sra Honesta: Vá procurar outro.

Prostituta: Ah claro, como se tivesse muito o que escolher!

Ladrão: Ela também não conseguiu nada.

Rei: Ele deve ter comida guardadas lá.

Negro: Vá embora, estou cansado.

Sra Honesta: Não posso ficar?

Negro: Trabalhei o dia todo, quero dormir.

Sra Honesta: Mas você sempre me deixa sozinha...

Negro: Pois venha comigo então.

Sra Honesta: Para o campo?

Negro: Sim

Sra Honesta: Tenho alergia a poeira.

Negro: Aham.

Sra Honesta: Verdade!

Negro: Saia logo daqui.

Sra Honesta: Tudo bem, trouxe um copo d’água pra você!

Rei: Ele vai dormir...

Ladrão: Podíamos lhe preparar um bom sono.

Prostituta: Negro sujo.

Ladrão: E pensar que todos nós dependemos dele.

Rei: No outro mundo, teria mandado açoitá-lo. De que está rindo?

Prostituta: Nervosismo.
Rei: Ah, mas você podia... ele está dormindo, e deve ter um sono profundo... você deveria estar acostumado a essas
coisas, afinal fazia parte da sua profissão, ou você não é um bandido?

Ladrão: Claro que sou!

Rei: Começo a pensar que queria apenas se valorizar aos nossos olhos.

Prostituta: Bandido? Só se for de história em quadrinhos.

Ladrão: Vocês verão!

Prostituta: Tem algo errado... Ou é esse mundo ou somos nós.

Rei: É este mundo e quem o fez.

Prostituta: É mais provável que seja nós.

Rei: Fique quieta, ele chegou lá. ( SOM DE ASSASINATO)

(O Ladrão aproxima-se do Negro, e em um movimento cauteloso, o assassina com um punhal e fere-o repetidas vezes)

Prostituta: Ele o matou!

Rei: Ele deve estar louco.

Prostituta: E algum de nós está longe disso?

Rei: E nós fomos cúmplices...

Ladrão: Que foi? Por que essa cara? Nunca viram um homem matar? É a primeira vez aqui, mas no outro mundo era
completamente normal. Ou não se lembram?

Prostituta: Como não lembrar? Uma vez um homem foi esfaqueado na minha frente, ele chorava feito uma criança,
sangrando sem parar, minutos depois de estar em meus braços... Mas não era tão horrível!

Ladrão: E por que?

Prostituta: Antes era comum! Agora...

Rei: Agora eu tenho medo.

Ladrão: Mas vossa majestade, que foi rei, participou de guerras e comandou exércitos, foi causador da morte de milhares!
Agora está com medinho por ter sido testemunha de um assassinato?

Rei: Ela tem razão! Agora é diferente!

Ladrão: Diferente por que?

Prostituta: Ele não era mau! Trabalhava, caçava, sustentava a mulher... E você o matou!

Rei: Precisávamos dele!

Ladrão: Como, se ele não queria trabalhar para nós?

Rei: O obrigaríamos a isso!

Ladrão: Sim, claro. Ele acabaria por nos escravizar, isso sim!

Prostituta: Isso não pode ficar assim...

Rei: Seria bom esconder o corpo...

Ladrão: De quem? Da Sra Honesta? Que ela pode fazer contra mim?

Rei: Nada...
Ladrão: E não sendo ela, não há nada a temer.

Prostituta: Vejam!

Ladrão: O anjo!

Rei: É ela mesma!

Anjo: Salve!

Prostituta: Mas o que ela está fazendo aqui?

Rei: Seria pelo negro?

Ladrão: Até parece....

Anjo: Olá

Prostituta: A senhora aqui de novo, o que significa?

Anjo: Não significa nada.

Ladrão: Mas o mundo não foi criado novamente?

Anjo: Sim, o Patrão preferiu criar outro mundo do que ter que perdoá-los e desmoralizar o estabelecimento, mas eu estou
aqui, para comunicar o resultado da minha missão.

Prostituta: Então nada de juízo final por enquanto?

Anjo: Claro que não. Bom, o resultado dessa teimosia toda de vocês foi essa, além de me fazer perder a licença prêmio.

Ladrão: Sinto muito.

Anjo: E o perigo de voltar a ser anjo da guarda.

Rei: Sim, e nesse mundo já existem anjos da guarda?

Anjo: Claro que sim! Cada um tem o seu!

Ladrão: A senhora tem certeza?

Anjo: Absoluta!

Ladrão: Devem ser como os funcionários públicos, só vem pra assinar o ponto.

Anjo: Mesmo com a desmoralização da guarda em tempos anteriores, agora foi toda reformada e moralizada.

Ladrão: Mas eu pensei que para ser anjo da guarda se precisasse ser a honestidade e pureza em pessoa, digo, anjo!

Anjo: Não, só exigem atestado de ideologia. Mas enfim, aonde estão os outros? Só tenho meia hora aqui, vim ver como
estão.

Ladrão: A Sra Honesta deve estar passeando, ela gosta muito de passear.

Anjo: E o negro?

Prostituta: Está dormindo.

Anjo: Ah, como deve ser bom dormir e sonhar!

Ladrão: Não dorme? Sofre de insônia?

Anjo:Graças a um tal de Freud fomos proibidos de dormir! Esse cretino saiu espalhando por ai que sonhos são realizações
de desejos!

Prostituta: E anjos não tem desejos?


Anjo: Não devem ter.

Prostituta: Isso é uma pena não?

Anjo: E como...

Prostituta: O que é isso?

Anjo: sucedâneo do amor

Prostituta: Para que?

Anjo: Distúrbios glandulares.

Ladrão: Não sabia que isso dava em anjos, vivendo e aprendendo.

Rei: Minha senhora, por acaso anjos não comem também?

Anjo: Não, mas agradeço o amável convite. É hora do almoço?

Rei: Não comemos há dois dias.

Anjo: Mas por que? Há tanta comida por ai...

Prostituta: É que não nos acostumamos a comida do mundo novo!

Ladrão: Mas a senhora não deve se preocupar com isso, deve tomar cuidado para não expirar o prazo.

Anjo: Ainda tenho certo tempo, queria aproveitar para ver os outros dois.

Prostituta: Não sabemos para onde a Sra Honesta foi, e é melhor não acordar o negro, ele fica furioso quando o acorda!

Rei: É capaz de matá-la!

Anjo: Bom, é melhor não me arriscar, nesse caso, me despeço!

Sra Honesta: O Anjo! A senhora agora é inspetora?

Anjo: Mais ou menos.

Sra Honesta: E que belas asas! Voa mesmo com elas?

Anjo: Voava, mas me doía as costelas, então comprei um helicóptero que não sou trouxa!

Ladrão: Cuidado para não se atrasar...

Anjo: Ainda tenho alguns minutos, mas se o negro acordasse antes disso...

Sra Honesta: Eu vou acordá-lo.

Ladrão, Rei, Prostituta: Não!

Sra Honesta: Por que?

Prostituta: Ele não gosta que o acordem.

Sra Honesta: E como você sabe?

Prostituta: E como você não sabe? Os homens não gostam!

Rei: Ele está cansado, tem trabalhado muito. Nada é tão respeitável quanto o sono de uma pessoa.

Ladrão: Não permita que ela o acorde!

Anjo: Talvez ele esteja tendo pesadelos. Que aconteceu?


Sra Honesta: Não foi minha intenção! Juro que não foi! Fiz um veneno para ele, mas me arrependi! Ele provavelmente o
tomou... Eu não queria que ele morresse! Pensava que tinha outra mas não, ele era fiel!

Anjo: O Patrão vai ficar muito decepcionado! Este deveria ser um mundo bom!

Ladrão: E como poderia? O mundo se torna o que seus habitantes são, e nós não podemos ser bons! Por acaso ele não
sabe o que faz?

Anjo: O Patrão sabe o que faz.

Ladrão: Mas ele não viu que não podemos continuar sendo o que somos?

Prostituta: Não cabemos nesse mundo!

Rei: E o que faríamos nesse mundo tão grande e completamente deserto?/

Anjo: Vocês que são os donos.

Rei: E de que isso adianta se temos que trabalhar?

Anjo: Vossa majestade talvez o fizesse melhor.

Rei: Claro, um mundo onde tudo ainda está por fazer.

Anjo: Isso não lhe agrada?

Rei: Como poderia? O seu Patrão que tem obrigação de criar mundos, eu não.

Anjo: Mas vossa majestade não realizou seu grande sonho de dominar todos os continentes?

Rei: Sim, mas dominar a quem?

Sra Honesta: Ele nos dizia que precisávamos lavrar a terra... fazer brotar nova vida...

Ladrão: Vamos acabar por nos matar!

Anjo: Mas não foram vocês que escolheram isso?

Rei: Você é a culpada!

Anjo: Vocês exigiram isso!

Rei: Se soubéssemos que acabaria assim, teríamos comparecido ao Juízo!

Ladrão: Sim! Mil vezes o Juízo.

( Som das trombetas)

Prostituta: Que é isso?

Anjo: Outra liquidação forçada! Vamos, organizem a fila!

Ladrão: Vamos lá, quem sabe não tomamos o céu agora?

(barulho martelo)

Voz Patrão: Eu os declaro culpados!!

Patrão: Filial 79. 120,336, sete... oito... nove... quarenta almas.

Secretária: Confere.

Patrão: Está fechado o balanço.

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