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Cegueira e grito –

Uma linguagem de resistência


e de vocação em Marcos 10,46-52.

Ms. Hilda Turpo Hancco

Resumo Abstract
O presente artigo faz uma análise This present article does a liter-
literária do texto bíblico de Marcos 10, ary analysis of the text Biblical text
46-52 do Novo Testamento. O texto of Mark 10, 46-52 of the New Testa-
relata a cura de Bartimeu e descreve ment. The text narratives the cure of
a atuação da pessoa de Bartimeu e Barthimaeus and describes the action
de Jesus na passagem por Jericó. of the person of Barthimaeus and
Estes sujeitos sociais desempenharam of Jesus’ passage through Jericho.
papeis importantes que deram origem These social subjects exert important
à construção da história de milagre. role that give origin to the construction
Fazendo uso dos métodos exegéticos of the history of the miracle. Making
e hermenêuticos quer-se evidenciar as use of the exegetic and hermeneutic
experiências de Bartimeu que reflete methods which are evident in the ex-
uma história de exclusão, de grito, de perience of Barthimaeus that reflects
resistência e de esperança em relação a history of exclusion, cry, resistance
ao exercício de sua autodeterminação and the hope in relation to the exer-
e seu testemunho de fé. cises of self- determination and the
testimony of his faith.
Palaras-chave: Jesus, esperan­ Key-word: Jesus, hope, cure.
ça, cura.

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Introdução

A mensagem de Marcos entrelaça esferas da realidade para verbalizar


aspectos profundos da experiência humana e ao mesmo tempo, se interessa
e interpretar os fatos que são descritos e por fazê-lo de maneira que se
estabelecem os vínculos de relação, poder, contexto econômico-social en-
tre os atores principais. O texto nos servirá de exemplo de uma linguagem
construída do contexto social-econômico para resistir às dificuldades surgidas
e oferecer alternativas novas.
Esta profundidade esta expressa, basicamente, em quatro eixos temá-
ticos que estão em tensão ao longo do texto. Após da tradução, o primeiro
eixo atualiza a linguagem do contexto; o segundo eixo põe em cena a Bar-
timeu, suas características peculiares e seu grande apelo mediante o grito;
o terceiro, mostra o pedido de Bartimeu; e o quarto, revela a concretização
do pedido mediante Jesus. Este eixo aponta para a história o processo de
salvação. Vejamos.

1. Tradução do texto

Esta tradução não pretende substituir a original, mas quando se traduz


se fazem opções e interpretações que podem, é claro, serem modificadas.
Sirvimo-nos, pois, do texto bíblico tal como está na 27ª edição do Novum
Testamentum Graece. Apresentamos aqui a tradução, na medida do possível,
literal do texto Mc 10, 46-52.
46
a) E chegaram a Jericó.
b) E ao sair ele de Jericó
c) com seus discípulos
d) e uma multidão considerável,
e) Bartimeu, o filho de Timeu, um mendigo, cego, estava
sentado junto do caminho,
47
a) E, quando ouviu
b) que era Jesus, o Nazareno,
c) começou a gritar e a dizer:
d) filho de Davi, Jesus, tem misericórdia de mim!

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a) E muitos o repreendiam
b) para que se calasse;
c) mas ele gritava muito mais:
d) filho de Davi tem misericórdia de mim!
49
a) Parou Jesus e disse:
b) chamai-o!
c) E chamaram o cego,
d) dizendo-lhe:
e) Tem bom ânimo;
f) levanta-te,
g) ele te chama.
50
a) E ele lançou seu manto,
b) saltou e põe-se de pé
c) e foi ter com Jesus.
51
a) E dirigindo-se a ele Jesus disse:
b) que queres que te faça?
c) o cego respondeu-lhe:
d) Mestre, que eu recupere a vista.
52
a) Jesus lhe disse:
b) vai,
c) a tua fé te salvou.
d) E imediatamente recuperou a vista
e) e seguia-o pelo caminho.

2. O tempo de Bartimeu

O livro de Marcos reflete o ambiente social de três quartos do primeiro


século. Há bastante concordância sobre a data de sua redação final, que
deve ter acontecido depois do ano 70 d.C., o ano da destruição do Templo
e de Jerusalém.
No ano 6 d.C., a Judéia passou a ser uma província da procuradoria
de Roma, administrada, na época, pelo prefeito Arquelau. Um pouco mais

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tarde, no tempo do segundo imperador romano, Tibério, que governou de 14


a 37 d.C., o ano de sua morte, as províncias da Síria e da Judéia pediram
diminuição dos tributos, porque o sistema de “leiturgia” ia conduzi-las a uma
situação de escravidão. Dada a indiferença das autoridades, surge então a
revolta dos judeus contra o domínio romano com três metas: suspensão do
pagamento dos tributos, suspensão dos sacrifícios pelo povo romano e seu
César, e ereção da soberania política.
Segundo o relato evangélico, Bartimeu viveu neste período, nos dias
do imperador Tibério César, de Pôncio Pilatos, procurador da Judéia, de
Herodes Antipas, tetrarca da Galiléia, do sumo-sacerdote Caifás.
Qual era a situação de um mendigo cego nesta época e nos quarenta
anos seguintes para abrangermos os três quartos do primeiro século? Quais
são os dados que temos deste período e que podem nos ajudar a compreen-
der a situação em que vivia Bartimeu? Tendo em vista a base econômica:
A formação social de Israel na época de Jesus apresentou um
sistema relativamente complexo, constituído por um sistema de
classes sociais típico do modo de produção tributário, além das
classes sociais e sua estratificação interna e a persistência de
formas de relação tribais.
Ekkehard W. Stegemann e Wolfgang Stegemann, ao tratar do “enqua-
dramento social dos seguidores de Jesus” colocam Bartimeu no grupo das
pessoas absolutamente pobres. Bartimeu é descrito como cego e mendigo
(tüflós e prosáites), o que significa que pertencia ao grupo dos “ptochoi”,
sobrevivendo com recursos abaixo do mínimo vital. Estes autores descre-
vem os “ptochoi” como os absolutamente pobres, aos quais faltava tudo.
Necessitavam da ajuda dos outros para o indispensável, por isso eram
obrigados a mendigar. Aos mendigos cegos (Mt 9,27; 12,22; 20,30; 21,14)
incapacitados para trabalho, restava-lhes pedir esmolas. Um cego não era
necessariamente um mendigo, mas Bartimeu era cego e mendigava, o que
o colocava na categoria inferior da sociedade.
Devido à sua condição, Bartimeu não era registrado e não interessava
a todo esse sistema porque se encontrava totalmente fora do sistema tribu-


HOUTART, F. Religião e modo de produção pré-capitalista, p.200.

STEGEMANN W. E, Storia sociale del Cristianesimo primitivo, p. 342.

Ib. p. 161.

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tário. Estando entre os mais carentes da sociedade, Bartimeu sobrevivia da


bondade dos transeuntes que passavam no caminho para Jericó. Pouca ou
nenhuma perspectiva tinha de sair de tal situação.
No Novo Testamento, o livro de Marcos é o primeiro a introduzir o ter-
mo óchlos para mostrar as classes mais baixas da sociedade e designar os
excluídos dentro do sistema econômico, social e religioso. No séc. I d.C., o
termo designava as pessoas humildes que exerciam trabalhos desprezíveis
e mais tarde todos aqueles que não conheciam a Lei. O Talmud define esta
categoria como “aqueles que não comem o pão em estado de pureza”.
Portanto, Bartimeu é um cego em Israel, mas também mendigo, o que
o colocava na categoria dos mais necessitados, que dependiam da ajuda
de outros para sobreviver.

3. Bartimeu, um ser humano muito especial

Baritmeu é descrito no texto como cego e mendigo. Vejamos o que


significa ser cego na literatura bíblica. Em primeiro lugar, a cegueira na
sociedade de Israel era considerada um castigo divino do pecado, porque
impedia o estudo da Lei (Torá). Ao ver um cego, a bênção pronunciada era:
“Bendito seja o Juiz verdadeiro!”, dando a entender que a cegueira era um
julgamento justo de Deus contra os pecados da pessoa cega ou contra os
pecados de seus pais, que se revelavam nos filhos. Por isso, o mudo, o
cego, o bêbado e o contaminado internamente eram dispensados de oferecer
uma oferenda. Esta doença estava associada à impureza ritual que excluía
do templo, da sinagoga e do culto, marginalizando as pessoas. Desta for-
ma, o “sistema de pureza e impureza penetrará todos os níveis da vida da
sociedade e ali estribará suas forças”.


O termo ochlós é caracterizado como aqueles que formam o pano de fundo onipresente do
ministério de Jesus; como pecadores e marginalizados sociais; membros da comunidade de
Jesus; sem direito a liderança judaica e são temidos. Cf. MYERS, Ch. O evangelho de São
Marcos, p. 198-9.

MORIN, E. Jesus e a estrutura de seu tempo, p. 137.

Cf. BROWN, C., COENEN, L. Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, v.
I, p. 396.

TERUMOT, Orden Primero, c. I, 6, p. 138.

Cf. SCHIAVO, L., VALMOR, S. Jesus, milagreiro e exorcista, p. 43-5.

ANDERSON, A. F., GORGULHO, G. Jesus e seu tempo, p. 10.

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Cabe afirmar, também, que os textos bíblicos do Antigo Testamento


(AT) conhecem a situação de um cego:
Ficarás tateando ao meio-dia, como o cego que tateia na
escuridão e nada será bem sucedido em teus caminhos (Dt
28,29); como cegos que andam a apalpar em muro, sim, como
os que não têm olhos, andamos às apalpadelas. Tropeçamos
ao meio-dia como se fosse no crepúsculo; somos como mortos
entre pessoas sadias (Is 59,10); erram como cegos pelas ruas
(Lm 4,14).
Apesar das interpretações a partir do sistema de pureza e impureza, os
cegos, entre os mais fracos e necessitados no meio do povo, estavam sob a
proteção especial da Lei Mosaica, que continha artigos muito humanitários a
favor deles: “Não amaldiçoarás o mudo e não porás obstáculo diante de um
cego; mas temerás o teu Deus. Eu sou Iahweh (YHWH)” (Lv 19,14). Uma
das maldições que o povo deveria proferir no monte Ebal era: “maldito seja
aquele que extravia um cego no caminho! E todo o povo dirá: Amém!” (Dt
27,18). Nota-se a prática da piedade de pessoas que ajudavam os cegos,
Jó 29,15 lembra aos seus amigos que cuidara dos desvalidos e servira de
“olhos para o cego”.
As enfermidades dos olhos era extremamente freqüente no AT (30
vezes). A Bíblia conhece a cegueira na forma de oftalmia, uma doença
altamente contagiosa (Gn 29,17), e de senil (Gn 27,1; 1Sm 3,2; 1Rs 14,4).
As causas principais que podiam causar a inflamação dos olhos e levar à
cegueira seriam o brilho do sol, a poeira e a sujeira10. Contudo, há vários
fatores que contribuíam para isso, desde os hereditários até os climáticos,
higiênicos ou psicossomáticos11.
Na Septuaginta (LXX), a cegueira é empregada metaforicamente. As
propinas podem cegar as pessoas de tal modo que elas não enxergam a
injustiça (cf. Ex.23,8; Dt 16,19). Deus permite que o desobediente não acabe
vendo o que é reto e verdadeiro (cf. Is 6,9). Os profetas no AT falam do
estado de cegueira do povo de Israel, que, deixando a proteção de YHWH,
se voltava para os ídolos (cf. Is 42,17.18.43,8.10-13). A lei prescreve gen-

10
Cf. BROWN, C., COENEN, L. Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, v.
I, p. 396.
11
Cf. DISEASE H. R.K. The Interpreter’s Dictionary of the Bible, v. I, p. 851-4.

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tileza e ajuda em relação aos cegos, proibindo de se colocar obstáculos à


sua frente (Lv 19,14; Dt 27,18).
No Novo Testamento (NT), a cegueira também é empregada metafori-
camente. Jesus chama os fariseus de ‘guias cegos’ que conduzem outros
cegos (Mt 15,14; Lc 6,39). Paulo (Rm 2,18.19) menciona que os judeus,
treinados na lei, consideravam-se ‘guias cegos’ em relação aos pagãos que
não conheciam a lei. Achava que somente eles, judeus, poderiam trazer
luz e oferecer a verdade e o entendimento aos ‘cegos’ pagãos. Jesus não
mostrou simpatia pela cegueira dos fariseus. Pelo contrário, condenou-os,
pois a cegueira não reconhece os sinais do Reino e da chegada do Messias,
tornava-os endurecidos.
Para a sociedade do tempo, ser cego implicava ser incapaz e ser um
defeito cúltico, pois os cegos não podiam atuar como sacerdotes (cf. Lv
21,18). A cegueira era vista como um castigo divino ao pecado humano (cf.
Jo 9,1-2), tanto é que na comunidade de Qumran12 as pessoas não eram
admitidas. Mas, para Jesus os cegos eram acolhidos e curados no caminho:
em Betsaida (8,22s); Jericó (10,46s); e o cego de nascença de Jerusalém
(Jo 9,24s). O cego e mudo de Mt 12,22s provavelmente é o mesmo mudo
de Lc 11,14.
Marcos coloca a cura do cego Bartimeu, que conseguiu ver, no sentido
físico e espiritual, como o contraste entre a atitude deste cego, que vê em
Jesus o Messias e a atitude dos líderes que estavam cegos para a pessoa
de Jesus. Salvo alguns, como Nicodemos (Jo 3,2), Zaqueu (Lc 19,1-10),
o centurião, junto à cruz (Lc 23,47), as autoridades permaneceram cegas
quanto ao fato de ser Jesus de Nazaré o enviado de Deus, “apesar de ter
realizado tantos sinais diante deles, não crerem nele” (Jo 12,37).
Mas, o mesmo estado de cegueira não se limitava só às autoridades.
Os próprios discípulos eram tardios em compreender a natureza de mes-
sianismo de Jesus. Mesmo após sua ressurreição, Jesus teve que dizer a
dois deles, no caminho para Emaús “insensatos e lentos de coração para
crer tudo o que os profetas anunciaram” (Lc 24,25).
Neste sentido, o cego representa o grupo de discípulos na condição de
‘incompreensão ou cegueira’, demonstrada pelos irmãos Zebedeus ao expor

12
Cf. BROWN, C, COENEN, L. Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento. v.
I, p. 396.

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seu pedido ainda depois do terceiro anúncio da Paixão e morte (10,33s)13. A


cegueira aparece aqui como a incompreensão do messianismo de Jesus, por
isso o mantêm “sentado junto do caminho” (10,46 cf. 4,1s); e ao mesmo tempo,
esta cegueira é revertida por Bartimeu ao mostrar todo o contrário (cf. 10,52).
Somando a cegueira, a mendicância era a outra característica de Bartimeu.
Em segundo lugar, a mendicância de Bartimeu. No AT é raramente
mencionado mendigo (prosaítes). Entretanto as inúmeras menções aos
pobres, aos estrangeiros, às viúvas e aos órfãos e as recomendações de
generosidade fazem pensar que havia muita gente que devia sobreviver
mendigando. Eclo 40,28s afirma que era melhor morrer do que mendigar; a
vida do mendigo não pode ser chamada de ‘vida’ pois somente um homem
sem dignidade pode mendigar. Já no judaísmo tardio e no NT a mendicância
era muito comum. Nos sinóticos, há cenas onde pedem esmolas ao longo
das estradas ou nas portas do templo14.
Bartimeu, além de ser “cego” (tüflós) era, também, “mendigo” (prosaí-
tes). Como cego dificilmente lhe restaria outra opção, a não ser a de pedir
esmolas. Dessa maneira, estava na mesma classe social dos degradados,
impuros e pródigos, dos pendentes, das prostitutas, dos pobres trabalha-
dores diaristas e dos curtidores As condições de vida das pessoas dessa
classe social eram aterradoras e suas oportunidades estavam virtualmente
reduzidas a zero.
Deveras deplorável era a situação deste cego de Jericó: era cego e
mendigo, duas circunstâncias que, freqüentemente, vão lado a lado. Para
sobreviver, ele dependia da misericórdia alheia, de alguém que saiba escutar
o seu grito.

4. O Grito por ajuda

Foi Bartimeu que “ouviu” (akúsas) passar Jesus pelo caminho e sem
duvidar começou a gritar (v.47c). O ouvido foi essencial para Bartimeu. Na
perspectiva da sabedoria o “ouvir” tem um significado importante para o
judeu, pois por ele todo o corpo se mobiliza (cf. Jô 4,12-13)15.

13
Cf. MATEOS, J. Marcos 13: p. 63-6.
14
Cf. MCKENZIE, J. L. Dicionário Bíblico, p. 601.
15
WOLFF, H. W. Antropologia do Antigo testamento, p. 109.

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No AT o vocábulo hebraico’ŏzen16 (ouvido, orelha) raramente designa


o membro corporal sem fazer a referência à ação de ouvir. A comunicação
de assuntos importantes indica-se por médio da expressão de ‘descobrir o
ouvido de alguém’ (1Sm 20,2.2s; 22,8.17; Rt 4,4).
Daquilo que se ouve espera-se por sua vez uma resposta. A boca ex-
pressa o que percebe do ouvido17. Tanto o ‘ouvir’ (Sl 38, 14a-14a) como ‘poder
abrir a boca para responder’ (Sl 38, 14b -14b) constituem, basicamente, a
essência de todo ser humano18. Certamente, é por isso, que o verbo grego
‘ouvir’ (akúo) é preservado nos evangelhos sinóticos e com maior razão o
redator usa este verbo no verso 47a.
Assim, o surgimento do grito, após de ouvir, é uma iniciativa própria do
cego Bartimeu. O grito (krádzéin) humano era forte e com muita determina-
ção/segurança. O grito insistente (vv. 47-48) evidencia, primeiro, no campo
teológico, o significado da fé de Bartimeu; segundo, no campo econômico-
político e social, constata-se que o estado de situação em que se encontra
o solicitante era precária e sofrida.
Pr 18,21 nos lembra que “morte e vida estão em poder da língua”.
Bartimeu, certamente, escolheu a vida. Usou os ouvidos para informar-se
sobre a passagem de Jesus e a língua para “gritar”.
No AT o termo hebraico za’aká (gritar) designa sempre uma manifestação
sonora, emotiva. A sua raiz expressa a ação do grito humano de angústia
que é, ao mesmo tempo, grito de dor e chamada de auxílio. Freqüentemente
os casos da raiz se dirigem explícita ou implicitamente a Deus19.
Na LXX o verbo grego “gritar” (krádzo) ocorre freqüentemente. O grito
que se retrata nos Salmos pulsa com certeza-fé que Deus responderá (4,4;
21,24; 54,17); a idéia de relacionamento com o onipotente é muito forte,
neste ponto é diferente do uso helenístico20.

16
Cf. JENNI, E., WESTERMANN, C. Diccionario Teológico Manual del Antiguo Testamento, v.
II, p. 162-3.
17
WOLFF, H. W. Antropologia do Antigo testamento, p. 109.
18
Ib. p. 108.
19
Cf. JENNI, E., WESTERMANN, C. Diccionario Teológico Manual del Antiguo Testamento, v.
II, p.720-1.
20
Cf. BALZ, H.; SCHNEIDER, G. Diccionario exegético del Nuevo Testamento, v. II, p. 2391.

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No NT, de modo especial, nos sinóticos21 percebe-se que na maioria dos


casos se relaciona com a pessoa de Jesus. Há gritos de terror dos discípulos
(Mt 14,16); gritos possuídos pelos demônios (Mc 5,5; 9,26; Lc 9,39); gritos
fanáticos da multidão (Mc 15,13.14; Mt 27,23). No sentido figurado, Jesus
fala do clamor das pedras (Lc 19,40). Com o grito os demônios reconhecem
que Jesus é Filho de Deus (Mc 5,7); tanto a mulher Cananéia (Mt 15,22)
como o cego ou dois cegos (Mt 20,31; 9,27; Mc 10,47; Lc 18,39) invocam
a Jesus chamando-o de “Filho de Davi”.
Especificamente, em Marcos 10,46-52 o grito de Bartimeu é um grito
humano cheio de angústia e dor que sai do ventre com uma potente força.
Este grito provê um quadro perfeito de como alguém vai ao Filho de Deus,
Jesus: “Jesus, Filho de Davi, tem misericórdia de mim” (v.47d e v.48.d) an-
siando por uma vida plena e cônscio de sua atitude miserável, grita por ajuda.
Bartimeu é o eterno quadro de alguém em necessidade. Seu grito é um grito
de protesto revolucionário, pois surgiu uma voz dentre os excluídos.
O grito de Bartimeu se constitui no Evangelho de Marcos como primeiro
nível de confissão fé em Jesus e em seu envio (cf. 8,29). Ao Messias, Filho
de Davi, atribuía-se não só a libertação de Israel, senão também solicitude e
compaixão22. Então, Bartimeu implora a “compaixão/misericórdia” de Jesus.
Normalmente o termo grego eléeos é representado no hebraico por
hesed23. O uso lingüístico do judaísmo tardio é o mesmo do AT. O conceito
hebraico representa um fundo histórico de pensamento totalmente diferente da
base predominantemente psicológica dos intérpretes gregos. Em geral, hesed
significa “comportamento correto segundo a aliança, a solidariedade que os
participantes da aliança devem um ao outro. Então, eléeos pode-se traduzir
como lealdade a uma aliança, até a bondade, a misericórdia, a dó”24.
Por causa da superioridade de YHWH como o parceiro na aliança que
permanece fiel, sua eléeos era entendida, de modo geral, como dávida
generosa. Prometeu sua eléeos ao fazer a aliança, e constantemente a

21
Apresenta-se 12 vezes em Mateus, 10 em Marcos e 04 em Lucas, cf. BALZ, H.; SCHNEIDER,
G. Diccionario exegético del Nuevo Testamento, v. II., p. 2391.
22
Cf. LENTZEN-DEIS, F. Comentario al Evangelio de Marcos, p. 331.
23
A raiz aparece em hebraico e aramaico 245 vezes no AT. Em hebraico domina o sentido
positivo (bondade, graça). Cf. JENNI, E., WESTERMANN, C. Diccionario Teológico Manual del
Antiguo Testamento, v. I, p. 832-3.
24
BROWN, C., COENEN, L. Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, p. 1294.

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renovava. Logo, Israel podia pedir da parte dele a eléeos, que incluía a
misericórdia de perdão quando a nação quebrasse a aliança (Ex 34,9; Nm
14,19; Jr 3,12).
Quando YHWH age assim, é também, quando o homem age de modo
semelhante, ressalta-se, não a atitude básica de eléeos, mas sim, sua ma-
nifestação nos atos25. Dessa mesma forma, a atitude de Bartimeu perante
a misericórdia de Jesus se manifesta no seguimento.
A forma verbal eléeson que coloca em relevo “a irrupção da misericór-
dia divina encontra-se nos lábios dos que se acercam a Jesus pedindo-lhe
salvação e invocando sua messianidade”26, eles são: os cegos, um deles
Bartimeu (10,47s e paralelos), o endemoninhado (Mt 20,30s), a mulher Ca-
nanéia (Mt 15,22 a diferencia de Mc 7,25) e o endemoninhado epilético (Mt
17,15, a diferencia de Mc 9,17).
Jesus, o nazareno, ‘irrompe da misericórdia divina’ no meio da realidade,
da desgraça humana. Mediante sua obra de libertação, anúncio, ensinamen-
tos, curas e outros demonstrava sua autoridade.
Bartimeu, no entanto, investe totalmente na sua fé. Ao destacar o
verbo “gritar” mais o discurso direto “Filho de Davi, Jesus tem misericórdia
de mim” (v. 47d), Egger o traduz na expressão de oração confiante, pois
ela exprime tanto a confiança em Jesus enquanto Filho de Davi como a
invocação à misericórdia27.
Jesus atendia o grito de auxílio, de ajuda, de socorro da parte dos
doentes, dos endemoninhados, dos cegos como no caso de Bartimeu. Esta
resposta de Jesus provocou uma atitude súbita em Bartimeu que somente
Marcos o narra.

5. A reação de Bartimeu

A reação de Bartimeu (v.50) foi imediata e expressada por gestos: ele


lançou o seu manto – apobalón to himátion (v. 50a). Em sua condição de
cego e mendigo, Bartimeu devia usar um velho e surrado manto. Seu modo

25
Ib. p. 1294.
26
BALZ H., SCHNEIDER, G. (Org.) Diccionario exegético del Nuevo Testamento, v. I, p. 1310-4.
27
Cf. EGGER, W. Metodologia do Novo Testamento, p. 127.

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de trajar mostrava a todos sua condição miserável. Esse manto devia servir-
lhe, também, de esteira, onde dormia. “Atirá-la longe, sugere que o homem
acreditava que não precisaria mais dele, que ficaria curado”28.
Diversos intérpretes vêm aqui um colorido oriental29. A roupa, no AT,
junto com o alimento constitui uma necessidade vital e básica (Is 4,1)30.
Parece que o manto representava um estorvo, pois lhe servia como leito de
repouso e como capa para cobrir-se31. Como a roupa identifica a condição
social e a situação da pessoa, deixar o manto, além de desembaraçar-lhe
os movimentos, sugere também mudança de vida: ele estava deixando as
dificuldades, as trevas da cegueira e o opróbrio da mendicância, para tornar-
se um discípulo de Jesus.
O ato de Bartimeu, em desfazer-se do manto indica à comunidade que,
no seguimento de Jesus, deve desfazer-se de tudo o que atrapalha esse
seguimento. Deve lançar fora toda indiferença, descrença e des-compromisso.
Deve, audazmente, seguir o salvador, testemunhando dele em palavra e ação,
como fez o cego curado, mas antes tinha que ir ao encontro com Jesus.
Logo após, vêm, no v.50b, o verbo “saltou e põe-se de pé” (anapedésas).
Foi “um salto da alma, e não apenas das pernas”32. Quando “Ele lançou o
seu manto, saltou e põe-se de pé e foi ter com Jesus” (v. 50) destaca-se
a imensa emoção do momento. Antes, o cego se mantinha imóvel, sentado
por causa de sua cegueira, agora, sabendo que Jesus estava passando,
ele está em movimento ativo. A saída triunfal de Jericó, por parte de Jesus,
não teria sido triunfal para Bartimeu, se Jesus tivesse passado por ele, e
ele continuasse cego. Bartimeu sabia que Jesus era capaz de curá-lo, mas
ele sabia, também, que era por causa de sua fé.

Mestre, que eu recupere a vista

Esta frase dita por Bartimeu é o centro do texto, vejamos a sua importân-
cia. O AT, como já foi dito, destaca a importância do ouvido e da linguagem

28
HURTADO, L.W. Novo comentário bíblico contemporâneo – Marcos, p.192.
29
Cf. LOHMEYER, E. Das Evangelium des Markus, p. 225.
30
JENNI, E., WESTERMANN, C. Diccionario Teológico Manual del Antiguo Testamento, v. I,
p. 1186.
31
Cf. PESCH, R. Das Markusevangelium II Teil, p. 173.
32
CHAMPLIN, R.N. O Novo Testamento interpretado versículo por versículo. v. I, p. 754.

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para a compreensão verdadeiramente humana e, também, destaca da vista,


pois “para perceber as ações de YHWH são necessários tanto ver como
ouvir (Ex 14,13; Dt 29,1-3; Is 43,8). Abrir os alhos deve-se à palavra”33.
Na perícope de Marcos, no v. 51d, Bartimeu dirigiu-se a Jesus chamando-
o de “Meu Senhor”, “Meu mestre” (rabbuni) – expressão de profundo respeito
– e pediu-lhe uma cura/milagre: “que eu recupere a vista”(hina anablépso).
Duas características a serem notadas nesta frase e que me parecem
importantes de explicitá-las porque elas se complementam. Primeiro, o
substantivo feminino anablésis significa “recuperção da visão”34 e a pre-
posição ana, que além de significar “acima, para cima”, pode significar
também “de novo”. Isso daria entender que o uso do verbo anablépo não
era, propriamente, a indicação de um cego de nascença35, como o cego
que foi curado por Jesus, mencionado no evangelho de João (cap. 9). Este
possível significado do verbo que já enxergava anteriormente e que por
alguma razão acabara ficando cego é reforçado pelo fato de se acercar a
Jesus sem ajuda de ninguém36. Segundo, olhando para o AT, o verbo “Re-
cuperar a vista” (anablépo) relaciona freqüentemente o significado teológico
e hermenêutico em que se requer a profunda percepção da fé. O fato de
‘recuperar a vista’ é sinal de que está alvorecendo a era escatológica-
messiânica da salvação (Mc 8,24; 10,51 e paralelos): Então, “o ato crente
de ver é conseqüência do encontro com a oferta escatológica de Salvação
que Deus faz em Jesus”37.
A cura acontece. Isto é um fato claro no texto. A cura evidência, por
um lado, que Jesus atende o apelo de ajuda e, por outro lado, da maneira
como Bartimeu manifesta o seu pedido. Toda cura pressupõe fé.

6. Fé e cura

O AT entendia que a cura não se trata, apenas de curação, senão de


constatar se o doente era impuro ou puro, isto é, se o doente pode partici-

33
WOLFF, H. W. Antropologia do Antigo testamento, p. 109.
34
GRINGRICH, F. W. Léxico do Novo Testamento grego/português, p. 19.
35
NOLLI, G. Evangelo secondo Marco, p. 272.
36
Cf. TAYLOR, V. Evangelio según San Marcos. p. 534-8.
37
BALZ, H.; SCHNEIDER, G. Diccionario exegético del Nuevo Testamento, v. I, p. 224-5.

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Cegueira e grito – Uma linguagem de resistência e de vocação em Marcos 10,46-52

par na comunidade cultual ou teria que ser separado38. Para Israel é YHWH
quem tem a exclusividade no trato com a enfermidade.
Unicamente Yahvé é Senhor da enfermidade e da curação.
Essa é a constante certeza bíblica. No AT normalmente não se
distingue entre curas naturais e milagrosas. Intervem ou não
prescrições e remédios humanos, é essencial sempre que o
doente na sua enfermidade e aquele que se está curando na
sua cura encontre a Deus. [...] Vai por conta do interessado
se manter a experiência de Yahvé e o incorpora a toda sua
vida39.
A função da cura no AT não era o caráter extraordinário da instrução
divina que impressionava, mas antes a própria intervenção em si. Essa
intervenção em si era o sinal de misericórdia e benevolência divina de oni-
potência e glória. “Os sinais de Jesus, no NT, faziam parte se sua missão
messiânica”40 (11,5; Lc 7,22).
A cura acontece por causa da fé: “Va, a tua fé te salvou” (v. 52b-c).
O elogio que Jesus faz a Bartimeu é o mesmo elogio feito à mulher que
tinha fluxo de sangue (Mc 5,34). A fé é uma qualidade que Bartimeu e dos
amigos do paralítico demonstraram (Mc 2,5). Estas são as únicas pessoas
cuja fé é elogiada em Marcos41, embora poder-se-ia incluir, também, a fé
que demonstrou a mulher siro-fenícia (Mc 7,29).
De fato, Bartimeu tinha fé porque ele imediatamente recuperou a vista
– euthús avéblepsen (v. 52c). A fé dos evangelhos como a fé42 do AT, não
é simplesmente crença e confiança; a crença e confiança surgem da fé,
que, por sua vez, é aceitação de uma pessoa e de suas exigências. Nessa
aceitação está implícita a adesão ao poder que Jesus mostra possuir; fé
no poder e na pessoa de Jesus foi necessária para que Bartimeu fosse
curado. No evangelho de Marcos, a fé é o meio, pelo qual o homem tem
poder mediante a ‘entrega’.

38
Cf. WOLFF, H. W. Antropologia do Antigo testamento, p. 198.
39
WOLFF, H. W. Antropologia do Antigo testamento, p. 200-1.
40
BORN, A. van den et al. Dicionário Enciclopédico da Bíblia, p. 989.
41
Cf. HURTADO, L.W. Novo comentário bíblico contemporâneo – Marcos, p. 192.
42
No AT fé significa “ser firme ou sólido”, e daí, “fiel”. Cf. MCKENZIE, J. L. Dicionário Bíblico,
p. 341-2.

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De preferência, emprega-se –fé- no caso em que pessoas vêm


a Jesus em busca de ajuda; aí a fé consiste na certeza de
que Jesus pode ajudar, porque tem poder sobre as doenças.
Esta certeza, porém, é mais do que mera fé de milagres, pois
envolve uma tomada de posição para com a missão e a pessoa
de Jesus, que se expressa, por exemplo, nas interpelações
de rabbi, mari, rabbunai, filho de Davi, que são mais do que
títulos de cortesia43.
Muitos outros entraram em contato com Jesus, mas nem todos experi-
mentavam a vida restaurada do Reino. Um desses era o cego de Betsaida.
É interessante fazer o confronto entre a cura do cego Betsaida (8,22-26) e
a de Bartimeu. A cura de Betsaida foi progressiva, em duas etapas: Jesus
cuspiu nos olhos cegos e, depois colocou as mãos sobre eles. O cego de
Betsaida vê “as pessoas como se fossem árvores andando” (8,24), para
depois “ver tudo nitidamente e de longe” (8,25). A seguir, o ex-cego recebe
de Jesus a ordem para voltar para casa e não entrar no povoado (8,26). A
cura de Bartimeu, no entanto, é caracterizada por um diálogo que coloca,
explicitamente, em relevo a fé que faz saltar e ir ter com Jesus. Após a
cura executada num instante, Jesus não ordena nada e Bartimeu segue o
Mestre “no caminho” (10,52).
As diferenças entre essas duas curas, relatadas por Marcos, não podem
ser fruto do acaso. Entre as duas narrativas, está a confissão de Pedro e a
subida de Jesus e seus discípulos a Jerusalém (8,27; 10,17.32.34). Como
progressiva foi a cura de Betsaida, assim, também foi a fé dos discípulos,
a qual deveria chegar ao nível da fé confiante e comprometida de Bartimeu
–que é indispensável para que a gratuidade da salvação seja manifestada
pela solicitude de Jesus. Marcos sabe que, no grupo assustado de discípulos,
a comunidade eclesial da fé está gradualmente se formando.
Os dois episódios nos quais Jesus curou homens cegos desempenham
um papel importante no Evangelho de Marcos. Esses episódios agrupam
uma seção pivot, na qual os discípulos, depois de Jesus lhes ter revelado
seu destino como Filho do Homem sofredor, que devia morrer e ressuscitar,
falharam em compreendê-lo (8,31-32; 9,31-32; 10,35-45). Na verdade, o
episódio de Betsaida (8,22-26) é agrupado à cena característica da incom-

43
JEREMIAS, J. Teologia do Novo Testamento, p. 250-1.

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preensão dos discípulos (8,14-21.27-33). Claramente, a imagem da cegueira


e restauração da vista tem um papel simbólico aqui, servindo como comen-
tário à falta de percepção espiritual. Como o homem cego de Betsaida, os
discípulos irão ver plenamente somente em estágios, com o evento divisório
(cruz e ressurreição) ainda por vir. A confirmação da conexão é feita entre
“cegueira”, “visão” e “discipulado”.
A fé não foi o foco central na cura do cego Betsaida devido ao contexto
do relato, mas isso não impede afirmar que a fé é o ponto de partida para
que ocorra a cura, a salvação (sozo – sesóken). A salvação física exigia a
resposta da fé. Ela não entrava em função ex opere operato. Era necessária
uma resposta espiritual para receber a bênção física. Semelhante fé não
somente salva, mas impele ao seguimento.

7. Conclusão

Perante a cegueira nos textos bíblicos em geral e na perócope em


estudo quer-se mostrar que há um discurso, no nível religioso, por um lado,
de condicionamento e controle sobre os corpos doentes, e, por outro lado,
de incorporação em movimentos de subversão e transformação, na luta
pela sobrevivência diária, fazendo a diferença dos processos de libertação.
Evidencia-se, também, que o controle dos corpos se dá segundo a atuação
comunitária, a condição social e econômica. Bartimeu é um claro exemplo
nesse sentido.
Marcos retrata o cego Bartimeu, como aquele que, imediatamente depois
da restauração de sua visão, tornou-se um ‘discípulo de Jesus’44 e, como
aquele que, sabe reconhecer a autoridade de Jesus, o Nazareno, e por isso
o chama de Mestre e Filho de Davi.
O texto nos mostra que as limitações físicas não são impedimentos
para iniciar e realizar o Projeto de Vida, o projeto que precisou de cora-
gem, perseverança, procura e de muita fé para seguir aquilo que se deseja
na vida: A Vida. A criação se fez pela Palavra, a Palavra se fez Verbo e o
Verbo é Vida.

Esta afirmação deve-se ao fato de que o redator do texto lembrou o nome de Bartimeu, cf.
44

CRANFIELD, C. The gospel according to St. Mark, p. 346.

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Ms. Hilda Turpo Hancco

Ms. Hilda D. Turpo Hancco


Teóloga e Mestre em Teologia Bíblica pela Pontifícia Faculdade de Teologia
Nossa Senhora da Assunção.

Referências Bibliográficas
BROWN, Colin, COENEN, Lothar. Dicionário Internacional de Teologia do Novo
Testamento. v.I-II. 2. ed. São Paulo: Vida Nova, 2000
CHAMPLIN, Russell Norman. O Novo Testamento interpretado versículo por
versículo. v.I-II. São Paulo: Milenium, 1982.
HOUTART, François. Religião e modo de produção pré-capitalista. São Paulo:
Paulinas, 1982
HURTADO, L.W. Novo comentário bíblico contemporâneo – Marcos. Florida:
Vida, 1995.
JENNI, Ernst, WESTERMANN, Claus Diccionario Teológico Manual del Antiguo
Testamento. v. I-II. Madrid: Cristiandad, 1978.
MCKENZIE, John L. Dicionário Bíblico. São Paulo: Paulinas, 1983
LENTZEN-DEIS, Fritzleo s.j. Comentario al Evangelio de Marcos: modelo de
nueva evangelización. Navarra-España: Verbo Divino, 1998.
LOHMEYER, Ernst. Das Evangelium des Markus. Gottingen: Dandehoed &
Ruprecht, 1967.
STEGEMANN, W. Ekkehard, STEGEMANN, Wolfgang. Storia sociale del Cris-
tianesimo primitivo. Bologna: EDB, 1998. (Or. Al. 1995).
WOLFF, Hans Walter. Antropologia do Antigo testamento. São Paulo: Paulinas,
1993.

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