João Manuel Pereira da Silva foi o autor de uma História da fundação do Império e outra do
Primeiro Reinado e da Regência.
Seu sucessor, o barão do Rio Branco, praticou o gênero de história dominante na Europa da
segunda metade do século XIX e começos do XX, a qual buscava a rigorosa reconstrução
dos acontecimentos (donde a designação de 'histoire événementielle' que lhe dão os
franceses), ou seja, os episódios de feição política, militar e diplomática. D. Francisco de
Aquino Correia, sacerdote, poeta e orador sacro, ademais de arcebispo de Cuiabá, dedicou
os ócios prelatícios à história do seu bispado, redigindo também uma memória sobre os
limites do Mato Grosso. A atividade de Raimundo Magalhães Júnior estendeu-se ao teatro,
ao jornalismo e à biografia. Carlos Castello Branco foi na sua época o mais influente
jornalista político do país, tornando-se fonte incontornável para o estudo do regime militar.
Por fim, a prosa de ficção de João Ubaldo Ribeiro é um diálogo afetivo com o passado da
Bahia, o qual em Viva o povo brasileiro alcança os quase trezentos anos que vão desde a
ocupação de Itaparica pelos holandeses até as vésperas da Segunda Guerra Mundial.
Se é certo que enquanto o ficcionista inventa e imagina, o historiador apenas imagina mas
o faz sob o controle das regras precisas de um ofício que nasceu na Grécia clássica. Nem
por isso deve-se ignorar a relação entre ficção e história. Mesmo um romance de trama
puramente novelesca pode conter uma dose substancial de realismo histórico, como em
Balzac, que se intitulou certa vez 'historiador de costumes'. E, contudo, a fronteira entre
ficção e história não é menos nítida. Em última análise o historiador tem de atender ao
critério de veracidade, condição básica do seu trabalho, com o que a história se torna aquele
"roman vrai", de que falavam os irmãos Goncourt.
O próprio êxito da cooperação entre a história e as ciências humanas incita a indagar se ela
não se teria transformado em orgia. A despeito do enriquecimento da explicação e da
compreensão históricas, a colaboração interdisciplinar pode acarretar efeitos colaterais
quando praticada sem espírito suficientemente crítico. A diferença entre a história e as
ciências humanas é inclusive de recursos expressivos, ou de retórica, para empregar no
bom sentido o termo nobre que o uso prolongado perverteu. Registros fundamentais da
experiência humana, a narratividade e a diacronia constituem o núcleo irredutível do
discurso historiográfico. Por maior que venha a ser o progresso das ciências humanas,
sempre haverá a necessidade incoercível de tratar o passado em função do que se passou
e não em função de leis ou de teorias gerais ou de grandes conceitos teóricos.
Raymond Aron comentou ironicamente tal situação ao exprimir suas "dúvidas acerca
respeito dos historiadores que pensam tornar-se doutos quando fazem abstração dos
detalhes dos acontecimentos e que creem que a história da série dos preços do bife [ ... ] é
singularmente mais interessante que a narrativa das revoluções". Tratava-se, na sua
opinião, de "mera questão de gosto", não logrando entender "por que uma destas
investigações seria científica e a outra, não, e por que uma seria interessante e a outra,
não." O perigo que ronda o emprego indiscriminado pela história dos métodos sincrônicos
desenvolvidos pela antropologia não reside apenas em tornar a investigação vulnerável aos
anacronismos, este pecado capital do historiador, mas em estabelecer relações estruturais
que não resistem ao rigor do exame diacrônico.
Quanto à antropologia, recorde-se que a história não precisou dela para descobrir o valor do
sincrônico. Aí estão as obras de Burckhardt e de Huizinga. Por sua vez, a antropologia, que
no século XIX dedicara-se, como a sociologia, a formular as grandes leis do
desenvolvimento humano, só adotou a sincronia quando o antropólogo trocou seu projeto
original pelo estudo das sociedades primitivas, frente às quais ele não dispõe da riqueza e
da variedade das fontes historiográficas.
Bem que o antropólogo gostaria que os pataxós possuíssem um arquivo, mas, diante de tal
impossibilidade, só lhe resta munir-se dos seus cadernos de campo e observar atentamente
o que se passa no quotidiano da tribo. Aliás, mesmo entre antropólogos, já se começa a
desconfiar de que muitas vezes eles vêm imputando às culturas primitivas a imobilidade
exagerada decorrente das limitações do modo de compreensão sincrônico.
Por outro lado, qual é o historiador que não sonha em regressar no tempo afim de assistir ao
assassinato de César ou de espiar a corte na Inglaterra elisabetana? Como isto tampouco é
viável, ele se vê na contingência de reconstrui-los laboriosamente mediante o conhecimento
inferencial dos correspondentes vestígios. Cumpre, porém, duvidar de que o historiador
fosse capaz de tirar maior partido daquilo que veria com os próprios olhos do que faria se
pusesse a contemplar a sociedade em que vive. Certamente, lhe ocorreria o que ocorreu a
Fabrizio dei Dongo na batalha de Waterloo.
Sem subordinar o sincrônico ao diacrônico, que constitui, por excelência, sua reserva de
mercado, o historiador não logrará compreender o passado, que é sequência. Sabe-se que
os moinhos de vento apenas povoavam a paisagem manchega quando Cervantes fez D.
Quixote desafiá-los para o combate. Que na Mancha anterior ao século XVI não houvesse
moinhos de vento (que são hoje o símbolo por excelência desta região castelhana), é
circunstância que aponta para o cerne do conhecimento histórico, vale dizer, para a
datação, consideremo-Ia operação pedestre ou não.
Nas suas aulas de Salamanca, Unamuno costumava ridicularizar certo professor de direito
romano de Coimbra, o qual, ao iniciar sua descrição do sistema fiscal do Império romano,
costumava advertir os alunos: "Em Roma, os impostos começaram por não existir". Como
objetou Ortega, escapava a Unamuno que esta advertência preliminar era plenamente
justificada pelo fato de que o mundo não é dado feito à humanidade e que as coisas
começam sempre a existir e a desaparecer em dado momento e não em outro, e o mundo
tivesse sido feito de uma vez por todas, não haveria necessidade nem de história nem de
historiadores; e estes já não entediariam seus leitores, como eu estou fazendo agora com
meus ouvintes. Georges Duby tanto mais insuspeito quanto foi dos primeiros a compreender
a utilidade de alguns métodos antropológicos para sua especialidade, a história medieval,
afirmava: "o que faz a história é a referência, a mais precisa possível, a uma duração".
Afinal de contas, o objeto da história não é um objeto real como o das ciências naturais ou
como o das ciências humanas. Ele é um objeto ausente que se apresenta sob a forma de
vestígios de um objeto outrora real. Nesta idealidade da história, origina-se a diferença,
formulada por Michael Oakeshott, entre passado prático e passado histórico.
A existência diária comporta referências aos mais diversos tempos, a começar pelo passado
individual, que pode até independer da rememoração, como na herança genética. O
passado prático também pode ser o passado lembrado, como na memória involuntária de
Proust; ou o passado consultado, trazido à tona da consciência mediante esforço
deliberado, como na psicanálise.
Co-existem assim dois gêneros de história, a que versa o passado do presente; e a que
versa o passado do passado. O passado ... do presente é o tempo do imperfeito, da história
que flui, que continua aberta ao futuro e que, portanto, é relevante para a ação humana; ele
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