Psicogênese das
Linguagens Oral e Escrita:
Subsídios para Alfabetização e Letramento
Psicogênese das
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Linguagens Oral e Escrita:
Subsídios para Alfabetização e Letramento
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
B427p
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-387-0810-0
Alexandre Bergamo
Gêneros do discurso...............................................................155
O que são os gêneros discursivos?....................................................................................155
O que são gêneros discursivos?..........................................................................................156
Como se caracterizam os gêneros discursivos e quais
são suas implicações para a aquisição das linguagens oral e escrita?..................159
Gabarito......................................................................................201
Referências.................................................................................209
Anotações..................................................................................215
Bom curso!
O que é a linguagem?
Conforme as pessoas crescem, elas passam, de uma maneira geral, a
falar e a escrever sem se indagarem acerca do que a linguagem signifi-
ca. Se uma reflexão mais sistemática em torno dessa questão não é pré-
-requisito para que as pessoas adquiram a fala e a escrita, tal indagação é
imprescindível para quem atua, direta ou indiretamente, com o processo
de ensino e de aprendizagem dessas modalidades de linguagem.
Código
Uma vez que a linguagem é tomada apenas como um instrumento, ela muda
apenas porque mudam as necessidades humanas, ou seja, mudam os códigos
usados entre as pessoas na sua comunicação.
Domínio público.
Mas, se vemos um cachimbo, por que dizer que não se trata de um cachimbo?
Pelo simples fato de que a pintura é uma “representação”. Dessa forma, não
se trata de um cachimbo, mas da “representação de um cachimbo”. Assim como
a palavra cachimbo não é um cachimbo, mas uma “palavra que representa um
cachimbo”. A pintura foi elaborada justamente com a intenção de criticar a ideia
de que, no caso, tanto a pintura quanto a linguagem são “naturais”, ou seja, têm
existência própria independente do ser humano. Não pode, portanto, ser redu-
zida a um “código”, a um mero “instrumento”.
Metáfora
Uma lata existe para conter algo
Mas quando o poeta diz: “Lata”
Pode estar querendo dizer o incontível
Uma meta existe para ser um alvo
animal. Por esse termo eu entendo que o mundo não é visto simplesmente em cor e forma,
mas também como um mundo com sentido e significado. Não vemos simplesmente algo
redondo e preto com dois ponteiros; vemos um relógio e podemos distinguir um ponteiro
do outro. Alguns pacientes com lesão cerebral dizem, quando veem um relógio, que estão
vendo alguma coisa redonda e branca com duas pequenas tiras de aço, mas são incapazes
de reconhecê-lo como um relógio; tais pessoas perderam seu relacionamento real com os
objetos. Essas observações sugerem que toda percepção humana consiste em percepções
categorizadas ao invés de isoladas.
A música abaixo, de Chico Buarque, é um belo exemplo disso que estamos fa-
lando. Conta a história de dois amantes, portanto, a relação entre duas pessoas.
Mas conta também da relação deles com algo, o cinema, que fazia parte de suas
vidas e, dessa forma, de sua história de amor. As frases ditas em inglês ou francês
não podem ser tomadas na sua tradução literal. Isso porque elas traduzem outra
coisa: a relação entre eles. Quando essa relação tem um fim, tem um fim também
a relação que eles tinham tanto entre si quanto com o cinema e com os filmes de
amor que gostavam de ver. Sem essa ligação, as frases perderam seu significado,
perderam a possibilidade de traduzir seu amor, “saíram de cartaz”. E uma palavra,
que antes não tinha qualquer significado para eles, passou a ter:
Tantas palavras
Tantas palavras
Que eu conhecia
Só por ouvir falar, falar
Tantas palavras
Que ela gostava
E repetia
Só por gostar
Tantas palavras
Que eu conhecia
E já não falo mais, jamais
Quantas palavras
Que ela adorava
Saíram de cartaz
Nós aprendemos
Palavras duras
Como dizer “perdi”, “perdi”
Palavras tontas
Nossas palavras
Quem falou não está mais aqui
Texto complementar
[...]
[...]
[...]
[...]
Em função disso, na sequência dos trabalhos, uma das tarefas que essa
escola vai realizar é, por exemplo, a apresentação descontextualizada das
letras, uma a uma, a fim de que a criança atente para sua forma, discriminan-
do-as posteriormente, o que nos leva a supor que a simples apresentação
das letras e sua constante retomada seriam, de algum modo, consideradas
suficientes para futuros reconhecimentos.
O texto, por sua vez, quando chega a ser utilizado nessas circunstâncias,
oferece-se como um objeto a partir do qual se retiram os fragmentos – as
letras, as sílabas, as palavras – para que estes e a própria escrita se tornem
passíveis de um trabalho pedagógico. Com isso, deixa-se de lado, justamente,
[...]
Dicas de estudo
Filme O Enigma de Kaspar Hauser, de Werner Herzog.
Atividades
1. Por que a reflexão e o estudo em torno do que é a linguagem oral e escrita
são imprescindíveis para todos os profissionais que atuam com os seus pro-
cessos de apropriação e aprendizagem?
Comportamentalismo
A teoria comportamental (behaviorismo), que exerce uma grande in-
fluência nas práticas clínicas e educacionais, tem como um dos seus pre-
cursores B. F. Skinner. Segundo o autor, a linguagem deve ser entendida
como qualquer outra função comportamental, o que significa que ela
é ensinada às crianças a partir daquilo que é designado, em sua teoria,
como sendo um “condicionamento”.
Inatismo
A abordagem inatista tem como o seu principal representante Noam Chomsky.
Ao considerar a linguagem como uma estrutura inata ao ser humano,
Chomsky representa uma forte oposição aos princípios behavioristas, con-
forme podemos acompanhar na citação a seguir:
Simplesmente não é verdade que as crianças possam aprender a linguagem apenas através de
“cuidado meticuloso” por parte dos adultos que modelam seu repertório verbal, através de um
meticuloso reforçamento diferencial... É comum observar que uma criança pequena, filha
de pais imigrantes, pode aprender uma segunda língua nas ruas, com outras crianças, numa
rapidez espantosa e que sua fala pode ser inteiramente fluente e correta... Uma criança pode
aprender boa parte de seu vocabulário e “sensibilidade” para as estruturas da sentença a
partir da televisão, da leitura, da fala dos adultos etc. Até mesmo uma criança pequena... pode
imitar bastante bem uma palavra, numa primeira tentativa, sem qualquer esforço por parte
de seus pais para ensiná-la. Também é absolutamente óbvio que, em estágios posteriores,
uma criança será capaz de construir e entender vocalizações totalmente novas que, ao mesmo
tempo, sejam sentenças aceitáveis em sua língua... Deve haver processos fundamentais,
operando independentemente do feedback de seu ambiente. Não há qualquer tipo de apoio
para a doutrina de Skinner e outros, segundo a qual uma lenta e cautelosa modelagem
do comportamento verbal, através de reforçamento diferencial, é uma verdade absoluta.
(CHOMSKY apud MUSSEN et al., 1977, p. 204)
De acordo com a ideia de que as crianças adquirem a sua língua materna com
uma rapidez e fluência extraordinárias, Chomsky considera que os eventos que
ocorrem após o nascimento da criança não são essenciais para o seu desenvol-
vimento. Para esse autor, no caso da linguagem, a criança deve estar (biologi-
camente) preparada para processar a fala que ela ouve, e formar as estruturas
que são características da língua humana. O papel da experiência é o de ativar
uma estrutura interna que a criança possui. Tal autor, por considerar a linguagem
como uma estrutura cognitiva inata, herdada geneticamente, propõe o seguinte
desafio aos estudiosos da corrente comportamentalista:
No caso da linguagem, deve-se explicar como um indivíduo, a partir de dados muito limitados,
desenvolve um saber extremamente rico: a criança, imersa numa comunidade linguística,
confronta-se com um conjunto muito limitado de frases, na maioria das vezes imperfeitas,
inacabadas etc...; entretanto, ela chega, num tempo relativamente curto a “construir”, a
interiorizar a gramática de sua língua, a desenvolver um saber bastante complexo, e que
não pode ser induzido só dos dados e de sua experiência. Concluímos, disso, que o saber
interiorizado deve ser estreitamente limitado por uma propriedade biológica; e sempre que
um saber é constituído a partir de dados muito limitados e imperfeitos (e isto de maneira
homogênea entre os indivíduos), poderemos concluir que um conjunto de coerções
apriorísticas determina o saber (o sistema cognitivo) obtido. (CHOMSKY, 1977, p. 69)
Construtivismo
O construtivismo foi elaborado por Jean Piaget e influenciou diversas aborda-
gens posteriores, as quais ficaram conhecidas como cognitivismo. Vamos tentar
compreender, no momento, como se deu a formulação inicial dessa corrente te-
órica, nos termos de Piaget. Seu objetivo prioritário foi o de entender a natureza
do conhecimento humano, sendo suas análises sobre a linguagem secundárias
e decorrentes dos estudos em torno da questão de como a criança desenvolve a
sua cognição, de como ela aprende. De acordo com o autor:
A linguagem não constitui a origem da lógica mas, pelo contrário, é estruturada por ela. Em
outros termos, as raízes da lógica terão de ser buscadas na coordenação geral das ações
(incluindo condutas verbais) a partir do nível sensório-motor cujos esquemas parecem ter
importância fundamental desde o princípio. (PIAGET, 1993, p. 78)
Piaget, assim como toda a geração de intelectuais da qual ele fazia parte, foi
fortemente influenciado pela dialética hegeliana. Podemos esquematizar a dia-
lética hegeliana da seguinte forma: a transformação dos homens e do mundo
depende do conflito que podemos observar entre um certo estado de coisas e
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oposições que se lhes impõem. Podemos definir esse estado “inicial” como sendo
a “tese”. As oposições que lhe são feitas pelo mundo são chamadas de “antítese”.
Esse conflito encontra, em algum momento, uma solução, a que se dá o nome de
“síntese”. A “síntese”, portanto, contém elementos tanto da “tese” quanto da “an-
títese”, mas não pode ser tomada como equivalente a nenhuma delas. Uma vez
que as coisas não estão paradas no tempo, podemos supor que essa dialética
também continuará avançando. A “síntese” é uma “nova tese” que irá encontrar,
em algum momento, um novo conflito, ou seja, uma “nova antítese”, gerando
uma “nova síntese”, e assim indefinidamente.
com algo que representa um objeto, mas que não pode ser confundido com ele:
o objeto e sua representação não são a mesma coisa.
É por isso, portanto, que Piaget (1993, p. 78) afirma que “A linguagem não
constitui a origem da lógica mas, pelo contrário, é estruturada por ela”. A lingua-
gem, para ele, deve ser entendida como parte desse desenvolvimento cogniti-
vo mais amplo. Ela só pode surgir num estágio posterior: primeiro é necessário
saber que um objeto é um objeto, ou seja, que a criança possa pensar em termos
de objetos reais, só depois é que se pode substituir o objeto por sua represen-
tação, ou seja, pensar o mundo em termos, também, de representação, além de
pensar o mundo em termos de objeto.
Mas como esse é um processo dialético que não tem um fim, embora seja a
cognição que estruture a linguagem, Piaget também afirmou que, a partir da
sua aquisição, as estruturas cognitivas passam a ser transformadas também pela
linguagem, ou seja, pelas formas simbólicas de representação e interpretação
do mundo.
Sociointeracionismo
Entre os autores sociointeracionistas adotados como referência, é importante
destacar L. S. Vygotsky, psicólogo soviético. Sob a influência de suas elabora-
ções teóricas, uma série de estudiosos passaram a analisar o alcance social da
aquisição da linguagem. O sociointeracionismo proposto por Vygotsky parte do
princípio de que pensamento e linguagem não existem separadamente, uma
vez que a atividade simbólica, viabilizada pela linguagem, organiza o próprio
pensamento.
diálogo, de conduta, de trabalho etc. Nossa inserção no mundo, com isso, con-
siste numa “apropriação” dessas várias relações e mediações. No entanto, a partir
do momento que nos apropriamos delas, elas passam a fazer parte constitutiva
de nós mesmos, ou seja, o que antes era externo ao indivíduo – o mundo e suas
formas de relações e de mediações – vai gradativamente sendo internalizado por
ele. De tal forma que, uma vez tendo internalizado todas essas formas de relações e
de mediações com o mundo, passamos a pensar que essas formas de conduta são
nossas, e não do mundo, como se elas sempre tivessem feito parte de nós mesmos,
e não como se fôssemos nos apropriando pouco a pouco de todas elas, nem como
se não tivéssemos sido, pouco a pouco, “formados” por elas:
Ao internalizar instruções, as crianças modificam suas funções psicológicas: percepção, aten-
ção, memória, capacidade para solucionar problemas. É dessa maneira que formas histori-
camente determinadas e socialmente organizadas de operar com informação influenciam o
conhecimento individual, a consciência de si e do mundo. [...] A forma como a fala é utilizada
na interação social e com adultos e colegas mais velhos desempenha um papel importante
na formação e organização do pensamento complexo e abstrato individual. O pensamento
infantil, amplamente guiado pela fala e pelo comportamento dos mais experientes, gradativa-
mente adquire a capacidade de se autorregular. (DAVIS; OLIVEIRA, 1993, p. 50)
Podemos dizer que o diálogo passa a ser o lugar de inserção da criança na lin-
guagem e, portanto, é a partir dele, e apenas dele, que o desenvolvimento da
linguagem pode se efetivar. A atividade interpretativa do interlocutor – no caso,
do adulto – é determinante na apropriação da linguagem, uma vez que, quando
uma criança produz um som, uma palavra, esse interlocutor os interpreta. Com
isso, a criança e o som ou a palavra produzidos por ela são inseridos numa zona
simbólica e de significação, ou seja, de “interpretação”. Segundo Oliveira (1993,
p. 48), “são os significados que vão propiciar a mediação simbólica entre o in-
divíduo e o mundo real, constituindo-se no ‘filtro’ através do qual o indivíduo é
capaz de compreender o mundo e a agir sobre ele”.
[...] nem seria possível supor, a partir de Vygotsky, um papel de receptor passivo para o educando.
Vygotsky trabalha explícita e constantemente com a ideia de reconstrução, de reelaboração, por
parte do indivíduo, dos significados que lhe são transmitidos pelo grupo cultural. A consciência
individual e os aspectos subjetivos que constituem cada pessoa são, para Vygotsky, elementos
essenciais no desenvolvimento da psicologia humana, dos processos psicológicos superiores.
A constante recriação da cultura por parte de cada um dos seus membros é a base do processo
histórico, sempre em transformação, das sociedades humanas.
Uma vez que, para Vygotsky, a linguagem tem papel preponderante na aqui-
sição dos conhecimentos, estabelece-se uma interdependência entre os indiví-
duos – criança e adulto, ou criança e educador – no seu processo de ensino-
-aprendizagem.
Texto complementar
Implicações pedagógicas das teorias de Vygotsky
e Bakhtin: conversas ao longo do caminho
(FREITAS, 1994, p. 83-89)
Walter Benjamin
(X) – Eu acho que a teoria de Vygotsky pode alimentar uma teoria peda-
gógica nova, mas eu não a tomo como uma teoria pedagógica. Ela traz uma
série de elementos para você pensar uma pedagogia. A meu ver é uma peda-
gogia que está, neste momento, sendo começada a pensar, está em constru-
ção, mas que não está fechada, pronta. Essa proposta pedagógica é fácil de
configurar a partir dos pressupostos psicológicos dessa teoria. Eu acho que
é um esforço necessário para quem se interessa pela Educação, pelo ensino
que está sendo oferecido aí. Essa teoria tem muito a dizer, mas não pode
gerar por si mesma uma proposta pedagógica, nem é em si mesma uma pro-
posta pedagógica.
(E) – Mas, de qualquer maneira, acho que eles mudam a prática pedagó-
gica completamente, porque ela sempre foi muito marcada pela Psicologia.
A Psicologia sempre teve muito peso no curso de formação de professores...
é uma quantidade de Psicologia! Na minha pesquisa “O estado do conheci-
mento da alfabetização” o grande referencial teórico predominante é a Psi-
cologia. Daí dá para dizer que a Psicologia determina muito a prática peda-
gógica. Esta acaba sendo o que a Psicologia é. Isso a gente viu aí: quando a
psicologia behaviorista foi dominante, imediatamente a prática pedagógica
se tornou tecnicista. Quando a Psicologia rejeitou o behaviorismo e se cen-
trou na pessoa, aquela fase do Rogers, a prática pedagógica mudou intei-
ramente em função disto. Houve um momento do Piaget, que está ainda
muito presente, mas que agora vai sendo substituído, de certa forma, pelos
psicólogos russos e que acaba atuando na prática pedagógica. Eu quase diria
que isso é uma mudança de paradigma que está se dando na Psicologia e,
mais amplamente, nas ciências que olham o ensino.
(S) – Na academia achamos que Vygotsky é altamente promissor para a
prática pedagógica, que ele tem grandes diretrizes. Mas como tornar essas
diretrizes concretas? Para mim, os conceitos-chave dele (relação pensamen-
to-linguagem, consciência semiótica, fala interior, internalização, zona de de-
senvolvimento proximal) não estão a serviço da prática pedagógica porque
não chegam à escola. Vygotsky não está na escola, a não ser na questão que
ele valoriza o papel do professor, que ele resgata esse papel. Portanto, as
suas grandes diretrizes ainda estão longe de chegar lá.
(P) – É preciso ter cuidado para não fazer uma transposição imedia-
ta para a prática e para não desvirtuar a teoria. Ela é inspiradora no senti-
do de contribuir para a reflexão do educador sobre o que é a Educação, a
aprendizagem.
[...]
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Teorias de aquisição da linguagem
Dica de estudo
O Voo da Gaivota, de Emmanuelle Laborit, Editora Best Seller.
A atriz francesa surda conta como era sua vida antes e depois de aprender
a língua de sinais. Depoimento fundamental para quem quer entender
melhor o significado da aquisição da linguagem para a vida das pessoas.
Atividades
1. Quais são as principais teorias de aquisição da linguagem e os seus princi-
pais representantes?
“O português é difícil”;
“Odeio escrever”;
Para encaminhar nossa reflexão, vamos eleger alguns dos aspectos pertinen-
tes ao tema em discussão.
Tudo aquilo que escrevemos ou dizemos carrega sentidos a partir de sua ins-
crição histórico-social, e é na trama do seu contexto de produção que a significa-
ção se constrói e ganha forma. Com isso, queremos dizer que os sentidos que a
fala e a escrita carregam não são configurados apenas pelas suas formas linguís-
ticas, mas pelos contextos em que são realizados. Os aspectos que caracterizam
os infinitos contextos nos quais a fala e a escrita ganham sentido, embora incon-
troláveis, podem ser identificados e dizem respeito à idade, ao sexo, ao país, ao
grupo social, ao grau de escolaridade, ao período histórico, à cultura, à profissão,
à religião, à intenção etc.
A palavra “honra”, por exemplo, pode ser usada por qualquer pessoa, inde-
pendente de sua classe social ou sua formação cultural, ou seja, tomada isolada-
mente, essa palavra é um signo neutro. Mas não podemos isolar a palavra dos
contextos sociais em que ela é utilizada. Dessa forma, diferenças sociais e cultu-
rais estão, forçosamente, presentes em seu uso. “Honra”, portanto, é uma palavra
que tem significados diferentes para as pessoas em função de sua classe social
e de sua formação cultural. Como as classes sociais e as formações culturais são
diferentes (ou seja, desiguais) em nossa sociedade, é impossível que a palavra
tenha o mesmo significado para todas as pessoas. Em função disso, a linguagem
é uma “arena de conflitos sociais” porque vem carregada desses diferentes valo-
res sociais.
Apesar das evidências que apontam para os fatos acima analisados, ou seja,
de que os sentidos das falas e das escritas não são únicos nem transparentes,
ainda impera uma tendência do educador de tratar os enunciados como porta-
dores de um único sentido, solicitando, muitas vezes, a partir dos exercícios de
compreensão de texto, que as crianças respondam o que entenderam do texto,
esperando uma única resposta.
Para tanto, é importante ter claro que o reconhecimento das variedades lin-
guísticas, caracterizando a natureza de toda e qualquer língua, vem sendo discu-
tido por linguistas, implicando, conforme Faraco, um rompimento com a imagem
da língua cultivada pela tradição gramatical veiculada pela escola, imagem que
padroniza a realidade linguística, cristaliza certa variedade como a única correta,
identificando-a com a língua e excluindo todas as outras como “incorretas”. Tal
autor oferece elementos para compreender que
[...] cada variedade é resultado das peculiaridades das experiências históricas e socioculturais do
grupo que a usa: como ele se constitui, como é sua posição na estrutura socioeconômica, como
ele se organiza socialmente, quais seus valores e visão de mundo, quais suas possibilidades de
acesso à escola, aos meios de informação, e assim por diante. (FARACO, 1991, p. 18)
Talvez nunca tenhamos parado para pensar como esses processos ocorreram
por considerá-los uma decorrência natural do fato de o Brasil ter sido, de 1500
a 1822, colônia de Portugal. Contudo, estudos revelam que a oficialização da
língua portuguesa não ocorreu de forma natural, mas foi resultado de conflitos
de interesses.
Domínio público.
A Igreja, tendo entendido a pintura como uma grave ofensa a seus princípios,
pediu que ele refizesse a tela. Um novo São Mateus foi pintado, dessa vez sendo
representado com vestes mais “apropriadas” à importância que a Igreja lhe atri-
buía, não mais com a aparência de um pescador que traz consigo as marcas e o
cansaço do difícil trabalho diário, mas com a aparência de um homem culto e
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distante do trabalho manual. Até mesmo uma aura foi incluída de forma a deixar
clara a santidade do personagem que estava sendo representado. O anjo não
mais guia sua mão, agora apenas lhe dita o que deve ser escrito. O livro, antes
apoiado sobre o joelho de um pescador, agora é apoiado sobre uma apropriada
mesa de trabalho que todo homem culto ou de melhor condição social tem em
sua casa para escrever e trabalhar.
Domínio público.
[...] o português, transplantado, sofreu um rude abalo. Passou por vicissitudes mil, decorrentes
das condições históricas, sociais e geográficas da formação brasileira, sofreu concorrência do
tupi, foi altamente deturpado na boca de índios e mamelucos, e na boca dos pretos, ficou
ilhado em muitos pontos do território nacional, que se imunizaram do bofejo civilizador.
Mesmo depois que reagiu e se adaptou às novas condições de vida, mesmo depois que
foi tonificado pelas injeções de sangue novo, as levas de emigrantes lusos que, sucessivas,
buscavam a Colônia, mesmo depois que se pôde acastelar na língua escrita, teve de ser usado
por um povo que já tinha outra afetividade que não a portuguesa, outro espírito nacional,
outra maneira de sentir e interpretar a vida. (MELLO, 1971, p. 18)
Contudo, análises que apontam para outra direção vêm sendo formuladas
para explicar – ou, melhor dizendo, questionar – a “vitória do português” e “a
superioridade da norma culta”. Os próprios Parâmetros Curriculares Nacionais
reconhecem que
[...] existe muito preconceito decorrente do valor atribuído às variedades padrão e ao estigma
associados às variedades não padrão, consideradas inferiores ou erradas pela gramática. Essas
diferenças não são imediatamente reconhecidas e, quando são, são objeto de avaliação negativa.
Para cumprir bem a função de ensinar a escrita e a língua padrão, a escola precisa livrar-se
de vários mitos: o de que existe uma forma “correta” de falar, o de que a fala de uma região é
melhor, de que é preciso “consertar” a fala do aluno para evitar que ele escreva errado.
Essas crenças insustentáveis produziram uma prática de mutilação cultural [...]. (BRASIL, 1998,
p. 31)
O que foi exposto nesta aula oferece elementos para entender como, histo-
ricamente, as representações construídas acerca da linguagem estão ligadas a
imagens opostas: aqueles que falam/escrevem o português considerado padrão
são considerados brasileiros, patriotas, inteligentes, ricos, cultos, socialmente su-
periores; aqueles que não falam/escrevem o português ou não falam/escrevem
a sua variante padrão carregam o estigma de subversivos, traidores da nação,
ignorantes marginais e, até mesmo, portadores de distúrbios.
Texto complementar
[...]
ceptuais e/ou motoras, uma vez consideradas de alto risco para desenvolver
distúrbios de leitura e escrita, devem resignar-se diante de tal destino.
[...]
[...]
trata, pois, de uma problemática que se resolve, aos moldes de uma lógica
individualista e organicista. Com base na detecção e descrição de deficiên-
cias individuais e na elaboração de programas de estimulação. Antes, a reso-
lução dessa problemática passa por uma mudança no olhar dos envolvidos –
pais, educadores, fonoaudiólogos, pedagogos, psicólogos, psicopedagogos,
sob dois aspectos: o processo de construção da linguagem escrita e a relação
dessa modalidade de linguagem com a oralidade.
[...]
Quando essas crianças chegam à escola, já dominam boa parte dos co-
nhecimentos necessários ao aprendizado formal. Utilizam-se da chamada
variedade linguística padrão ou “norma culta”; (re)conhecem os portadores
de textos, seus usos e funções; detêm as competências básicas para as práti-
cas de escuta de textos orais e escritos e, por conhecerem ou mesmo domi-
narem a fala letrada, acedem à linguagem escrita de maneira “natural”, sem
problemas ou dificuldades.
[...]
crianças vão para a escola para aprender tudo, incluindo “falar”, mas quando
lá chegam são marginalizadas e discriminadas porque não dominam a va-
riedade linguística esperada. Como não a dominam, não compreendem o
que o professor explica, não interpretam os textos que leem, não escrevem
“corretamente”, posto que escrevem como falam e, então, são consideradas
incapazes; crianças problemáticas que não têm as condições cognitivas e lin-
guísticas necessárias para aprender. A escola as expulsa sempre. O que varia,
apenas, é a quantidade de anos que resistem à miríade de discriminações de
que são vítimas. Uma vez fora da escola, tendem a viver relações de trabalho
de exploração e de expropriação material e simbólica como seus pais.
[...]
[...]
[...]
Dicas de estudo
Filme Amador, de Krzysztof Kieslowski.
Num mundo vigiado por câmeras, onde ninguém dispõe de qualquer tipo
de privacidade, o governo, na figura do Grande Irmão (Big Brother), decide
o que e como as pessoas devem pensar e agir, para isso, a “linguagem” é
um de seus principais instrumentos de dominação.
Atividades
1. Partindo do pressuposto de que a linguagem comporta dimensões sociocul-
turais e políticas entende-se que linguagem não é neutra, nem seus sentidos
transparentes. Explique tal posição.
3. Por que todos os cidadãos deveriam ter acesso à variedade linguística padrão?
Esse ajuste mútuo nas conversações é aquilo que pode ser chamado de “jogo
dialógico”. Segundo Bakhtin, “a fala é prenhe de resposta”, ou seja, toda vez que
falamos algo, ou mesmo quando apenas gesticulamos, nossos gestos e nossa
fala são dirigidos a outra pessoa. Mesmo quando não estamos diante de nin-
guém, isso quer dizer que nunca falamos por falar, mas que sempre falamos
algo para “significar”. Esse significado é a “resposta” a qual Bakhtin se refere, e
a resposta sempre vem de um outro, de um interlocutor, mesmo que ele esteja
ausente. Essa atribuição de respostas, portanto de significados, é o que faz com
que a fala seja um “jogo dialógico”. Quando falamos, aquilo que falamos tem
um significado que foi construído nas minhas relações com um outro, com um
interlocutor, com a sociedade na qual estou inserido. É por meio do diálogo que
esses significados são construídos.
Nossa vida em sociedade, seja qual for ela, tem uma “lógica”. Por meio da inte-
ração com o outro, por meio do diálogo, é que temos acesso a essa lógica e nela
nos inserimos. Essa inserção num mundo de significados por meio da linguagem
é aquilo que se pode chamar de “jogo dialógico”.
Se, nos primeiros anos de vida, a criança é interpretada pelos adultos, com o
passar do tempo ela, imersa no jogo dialógico, ou seja, cada vez mais imersa na
“lógica de significados” de nossa sociedade, começa a se lançar em tentativas de
enunciações diferenciadas e direcionadas.
Para explicar que operações a criança realiza para efetivar esse processo,
Lemos (1989) identifica três processos dialógicos: o de especularidade, o de
complementaridade e o de reciprocidade.
por sua vez, a espelhar a forma produzida pelo adulto. Fruto desse mecanismo
de recíproco espelhamento, no qual os interlocutores – a criança e o adulto –
ocupam seus turnos incorporando pelo menos parte do enunciado produzido
pelo outro, são produzidas as primeiras emissões linguísticas da criança, reco-
nhecidas como palavras.
Diante de uma criança que emite sons como a, i ou que, o adulto que
compartilha dessa situação passa a dizer: “você quer ‘a?’, é água que você
quer?”; “’i?’, você quer fazer xixi?”; ou “quer a bolacha?”. O adulto incorpora
os enunciados da criança e os complementa por meio de um jogo interpre-
tativo. A partir daí, respondendo às perguntas feitas pelo adulto, a criança
elabora respostas como: “qué á-ua”, ou “xixi”, “qué lacha”.
Nesse jogo dialógico, a criança, embora ainda dependa do adulto para in-
terpretar sua fala, ocupa nessa interação um lugar de interlocutor que passa
a introduzir novos elementos no diálogo e é complementar à fala do adulto.
Essa atitude por parte do adulto, fundamental para que o processo de aqui-
sição da linguagem se efetive, só é possível quando o adulto deixa de ocupar
o lugar daquele de quem a criança depende para dizer o que deseja e passa a
esperar que esta assuma, de maneira cada vez mais sistemática, o lugar de um
sujeito ativo nesse processo. Ou seja, a criança passa da condição de “interpreta-
da” para a condição de “intérprete”.
É importante esclarecer que dialogar não quer dizer apenas emissão e re-
cepção de palavras e frases por dois sujeitos. O diálogo tem um papel determi-
nante na aquisição da linguagem por parte da criança. Por exemplo, o ato de
contar histórias – de conto de fadas, de medo, de aventura, de amor, pessoais
ou de outras pessoas – vivenciadas num passado distante ou próximo é uma
atividade determinante para que a criança passe a organizar linguisticamente
experiências vivenciadas ou não por ela e, portanto, a elaborar seu discurso. Ou
seja, essas narrativas são base fundamental para que, depois, a criança elabore
as suas próprias.
Linguagem e pensamento
Está claro, portanto, o papel do interlocutor no processo de aquisição da lin-
guagem. Está claro, também, o papel “estruturante” que a linguagem tem sobre
o pensamento. Contudo, há outro aspecto ligado a esse processo que merece
uma certa atenção: qual a diferença entre língua e linguagem? Quando dizemos
oralidade e escrita, estamos nos referindo a duas “modalidades” de linguagem.
A “linguagem artística”, por exemplo, não tem nada a ver com a linguagem
oral ou escrita, ou seja, com uma “modalidade” de linguagem. A mesma coisa
pode ser dita da “linguagem musical”, da “linguagem publicitária” ou da “lingua-
gem computacional”. Quando vemos uma “pomba branca” pintada, sabemos
que ela é uma representação da paz. Assim como uma “boca amordaçada” re-
presenta censura. E assim por diante. Todos esses símbolos, embora façam parte
de “linguagens” específicas, como a pintura, por exemplo, não se estruturam
com base em uma “língua”. São conjuntos de símbolos que podem ser utilizados
das mais diversas formas e na combinação com muitos outros. Não existe uma
maneira “certa” ou “errada” de se usar uma “pomba branca” num quadro, mesmo
quando não sabemos interpretar a intenção estética do artista, ou seja, a ideia
que ele quis passar com a pintura.
Muito diferente disso são as linguagens oral e escrita. Quando a criança diz
“qué á-ua”, não estamos diante, tão somente, de um símbolo ou de uma repre-
sentação, mas diante de uma frase com uma estrutura sintática, ou seja, diante de
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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Subsídios para Alfabetização e Letramento
uma “língua”. “Á-ua” não é um símbolo isolado, mas articulado com outro, “qué”,
segundo uma lógica estrutural própria. Se compreendemos a frase “qué á-ua” é
porque somos capazes de compreender duas coisas ao mesmo tempo: as pala-
vras e a estrutura da frase. Estamos diante da combinação de duas dimensões
particulares, a semântica (palavras) e a sintática (a estrutura das frases) numa só.
É isso que marca a diferença entre uma língua, e, com isso, entre as linguagens
oral e escrita, e as demais “linguagens”, como a pintura, por exemplo. A combina-
ção dessas duas dimensões confere um caráter às linguagens oral e escrita que
é impossível de encontrar nas demais linguagens: todas as dimensões e aconte-
cimentos relativos ao nosso dia a dia e ao nosso mundo podem ser “pensados” e
expressos por meio da língua. As demais linguagens, como a pintura e a música,
por exemplo, podem tão somente “expressar” ou “representar” certas ideias, mas
elas não nos permitem “pensar” todas as dimensões da nossa vida.
língua, significa que só podemos pensar aquilo que essa mesma “estrutura”, que
essa sintaxe, nos permite pensar. Se não há possibilidade de pensamento fora
da linguagem (após sua aquisição, evidentemente, uma vez que o ser humano
“pensa” mesmo quando não possui linguagem), então nosso pensamento passa
a ser “determinado” por ela.
O que significa que quanto mais próximo o aluno estiver da “linguagem” utiliza-
da no ensino, mais ele terá chances de aprender, e quanto mais distante ele estiver
dessa “linguagem”, mais difícil será aprender. As dificuldades que esses alunos têm
são muito semelhantes às que nós temos quando vamos aprender uma segunda
língua. A sintaxe e os termos utilizados na escola, muitas vezes, estão tão distantes
da sintaxe e dos termos que fizeram parte da origem e da infância dos alunos, por-
tanto da sua “língua do pensamento”, que o aprendizado é equivalente à aquisição
de uma segunda língua. Muitos têm dificuldade para aprender, portanto, porque
as diferenças de sintaxe, de “línguas do pensamento”, tornam certos conteúdos
incompreensíveis para eles.
Texto complementar
Linguagem e paralisia cerebral: um estudo
de caso do desenvolvimento da narrativa
(MASSI, 2001, p. 53-61)
[...]
[...]
Porém, esses critérios têm sido utilizados para identificar textos narrati-
vos de adultos e não podem ser levados à risca no início do processo de
desenvolvimento linguístico da criança, momento em que ela ainda não é
capaz de narrar. [...]
[...]
Neste exemplo, observamos que o papel do adulto é mais ativo nessa fase
inicial. Ele pergunta e a criança responde. Assim, os interlocutores constroem,
juntos, um verdadeiro “jogo de contar”, no qual a criança mostra-se capaz de
perceber os turnos conversacionais e de assumir seu papel no diálogo. Além do
jogo de contar que se instaura por perguntas e respostas, num processo em que
não existe uma situação completa a ser narrada, a criança também tem acesso
à estrutura da narrativa através de “estórias” que o adulto lhe conta. Nesse caso,
embora se coloque como espectadora, ao contrário do jogo a criança se vê
diante de uma situação completa previamente construída. Assim, desde a sua
fase embrionária, a narrativa se desenvolve a partir da ação conjunta na qual
estão envolvidos a criança e o adulto, interlocutor básico. Depois dos três anos
de idade, a criança vai apresentar, já na fase das narrativas primitivas, formas
distintas de narrar identificadas como “estórias”, “relatos” e “casos”.
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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Subsídios para Alfabetização e Letramento
[...]
Depois dos quatro anos de idade a criança começa a tomar iniciativa para
relatar eventos passados. Nessa fase, Perroni reconhece o último estágio do
desenvolvimento do discurso narrativo, no qual ocorrerão transformações
nos papéis dos interlocutores do diálogo. A criança vai se tornando mais
independente nas suas produções discursivas à medida que se utiliza de
pontos de referência para ordenar eventos que já aconteceram. Esses pontos
de referência surgem através das eliciações de suas lembranças, provocadas
pelo adulto ao usar expressões como “lembra” e “sabe”.
A partir daí, o adulto, que assumia uma posição mais ativa, passa a se
colocar como um interlocutor que estabelece uma relação de simetria com
a criança. Porém, conforme relata Perroni (1992), ao contrário do que pode-
ríamos supor, essa situação simétrica não é alcançada de forma suave, pois
ao mesmo tempo que a criança adquire uma certa autonomia discursiva, o
adulto passa a lhe cobrar mais plausibilidade, limitando suas criações livres e
provocando uma situação de tensão na interação verbal.
O interlocutor adulto, que nas fases iniciais aceitava e até mesmo incen-
tivava as criações livres da criança, passa a rejeitar aquelas produções lin-
guísticas que não refletem a plausibilidade do relato ou a invariabilidade das
estórias. A criança, por sua vez, mantém-se em um papel ativo, pois enfrenta
o adulto mantenedor de conflito.
[...]
[...]
Dica de estudo
Filme O Garoto Selvagem, de François Truffaut.
Atividades
1. Com base na perspectiva sociointeracionista, para que o processo de apro-
priação da linguagem oral ocorra de forma adequada, é necessário que o
adulto medie esse processo de que forma?
na faixa etária de quatro a seis anos que, embora se apresentem como capazes
de ter um domínio significativo da oralidade, apresentam uma fala limitada em
todos os seus aspectos.
a criança é um interlocutor e, como tal, diz coisas, mesmo que não oral-
mente, para serem escutadas, interpretadas e, portanto, para provocarem
“respostas” por meio do comportamento das pessoas que as cercam;
a fala do(s) adulto(s) gera efeitos sobre as crianças, tanto no que se refere
a aspectos de seu desenvolvimento global quanto na aquisição de sua
linguagem;
Para que o diálogo entre criança e adulto caminhe em direção a uma maior
“simetria” de papéis, é fundamental que o adulto vá sucessivamente deixando de
se satisfazer com balbucios, choros, gestos, frases incompletas produzidos pela
criança e, ao esperar dela manifestações mais elaboradas, possibilita que ela seja
colocada no lugar de alguém que pode modificar suas formas de dizer. Caso
contrário, se essas formas de manifestação forem “suficientes” para que o diálogo
entre o adulto e a criança ocorra sem rupturas, conflitos ou tensões, e eficientes
para que, de alguma forma, as necessidades da criança sejam atendidas, a crian-
ça pode manter uma linguagem considerada aquém de suas possibilidades.
Primeira situação
Uma criança de quatro anos aponta para o armário e diz “dá”. Seus pais,
prontamente, passam a elaborar hipóteses para adivinhar o que ela de-
seja. A partir desse gesto e desse enunciado, os pais passam a indagar à
criança se o que ela deseja é uma bolacha, um chocolate, um copo etc.
Uma vez apresentada a alternativa correta, a criança acena positivamente,
diz “é” e obtém aquilo que deseja.
Segunda situação
Diante dessas simulações e supondo que é esse tipo de diálogo que essa
criança está acostumada a compartilhar com seus interlocutores principais,
não precisaríamos do parecer de um especialista para saber que essa criança,
embora potencialmente capaz de dizer aos pais o que deseja e de contar outras
coisas acerca de sua visita na casa de seu tio, apresenta uma fala limitada. Essa
contradição, ou melhor, essa incompatibilidade entre aquilo que potencialmen-
te a criança pode realizar oralmente e o que efetivamente produz, nos leva a
questionar:
O que neles poderia indicar para as formas restritas e limitadas que carac-
terizam a fala da criança nessas situações?
Por que a criança não se constitui como alguém que tem o que dizer?
Por que ela não se constitui como um interlocutor com uma autonomia
compatível à sua idade e às suas necessidades?
que a criança seja tratada como sujeito e ocupe o “lugar” de sujeito em seu
contexto de vida, especialmente, no familiar e no escolar;
que a criança seja considerada como alguém capaz de expressar que tem
algo a dizer; que os adultos escutem, interpretem e considerem aquilo
que ela diz;
Omissões: á-ua para água; u-ia para Júlia, pó-ta para porta, bincá para brincar.
Trocas: tato para gato, tasa para casa, napis para lápis.
Os sons que compõem a língua são adquiridos pela criança por volta dos
quatro anos de idade. Chamamos atenção para o fato de que essa idade deve
ser tomada apenas como uma referência, pois várias crianças, mesmo sem apre-
sentar qualquer problema, podem concluir tal aquisição por volta dos cinco ou
seis anos.
O processo de aquisição dos sons ocorre da mesma forma que outros aspec-
tos da fala, a partir das relações dialógicas que a criança estabelece com seus
interlocutores privilegiados. As alterações fonológicas podem estar associadas
ao quadro dos retardos de linguagem e podem representar uma das marcas da
fala infantilizada, característica de tal quadro. Assim como as crianças com atra-
sos no desenvolvimento da sua fala não se encontram motivadas para operar
mudanças no seu discurso, insistindo em manter estruturas sintáticas primárias
e vocabulário restrito, elas também podem “estacionar”, ficar “paradas” no pro-
cesso de aquisição dos sons.
Para tornar mais clara essa relação, algumas considerações em torno dos as-
pectos estruturais e funcionais que envolvem os órgãos fonoarticulatórios se
fazem necessárias.
De uma maneira simplificada, podemos dizer que os sons da nossa língua são
produzidos a partir da passagem de corrente de ar no momento em que expira-
mos. Nesse momento, mecanismos e movimentos são realizados pelos órgãos
fonoarticulatórios, criando resistências e bloqueios para a corrente do ar, o que
resulta na produção de sons. Conforme esses órgãos se encontrem, estrutural e
funcionalmente, executarão movimentos e mecanismos que resultarão em dife-
rentes sons e na sua qualidade.
crianças que respiram pela boca, evitam mastigar alimentos sólidos, projetam a
cabeça para trás na deglutição de alimentos e na ingestão de líquidos, babam
ao dormir etc. Podendo acompanhar esse quadro, temos, ainda, problemas orto-
dônticos, em geral, caracterizados por alterações no posicionamento dos dentes
e/ou na oclusão das maxilas.
Podemos constatar que crianças na faixa etária de dois a cinco anos, ao narrar,
tendem a gaguejar, realizar hesitações, pausas excessivas em sua fala, quebran-
do parcialmente a fluência de seu discurso. Embora em menor frequência e
em situações e contextos específicos, jovens e adultos também realizam esses
mesmos mecanismos.
Observe que quando desejamos contar algo para alguém, por exemplo, uma
viagem realizada, muitas vezes não iniciamos nosso discurso pelo primeiro dia
da viagem, nem seguimos, obrigatoriamente, uma linearidade no encadeamen-
to dos fatos subsequentes. Essa descontinuidade pode ou não nos incomodar e,
quando isso acontece, sentimos necessidade de parar e começar novamente, ou
seja, de operar uma nova organização de nosso discurso para garantir, a quem
nos ouve, a possibilidade de apreensão da experiência que desejamos partilhar.
O que essa explicação tem a ver com a explicação do por que “gaguejar pode
fazer parte do processo de aquisição da linguagem e de seu funcionamento”?
Primeira situação
Ao narrar algo, a pessoa tem consciência de que precisa reorganizar o seu dis-
curso e diz: “opa!, espera, preciso começar de novo, está confuso, deixe-me
organizar o que estava falando”.
Segunda situação
Feitas as colocações que visam deixar claro que a simples constatação do ato
de gaguejar, em crianças, não deve ser indicativo de que estamos diante de um
quadro patológico, é importante esclarecer que, para denominar a situação em
que gaguejar não é um problema, tem-se privilegiado dizer que a criança apre-
senta uma “disfluência”, e não uma gagueira.
Pelo exposto, percebe-se que o fato de gaguejar deve ser analisado com cui-
dado. Cuidado esse que deve recair, também, na utilização desse termo.
A fluência das pessoas que passam a ser consideradas gagas foi, provavelmen-
te, em algum momento, menor do que a de outros. Tal fato pode ter ocorrido por
causa dos recursos que tal sujeito dispunha para a organização de seu discur-
so, ou ainda pela forma menos tranquila de lidar com seus desejos e medos. Se
nesses momentos as suas hesitações foram tomadas e tratadas como sinais de
um quadro de gagueira, provavelmente essa pessoa passou a perceber-se como
sendo gaga e, finalmente, acostumada com essa imagem, convenceu-se dela,
tornou-se uma. Nesse contexto, ser gago passou a ser um dado de sua identida-
de, a partir do qual decorre o estigma social e pessoal.
Por último, é importante esclarecer aos educadores que atuam com crianças
que, embora não sejam gagas, podem ser assim consideradas pelos seus fami-
liares e/ou podem apresentar atos de gaguejar frequentes:
Texto complementar
Conclusão
Este trabalho impulsionado por um grande descontentamento com o
modo como os procedimentos de avaliação e acompanhamento de lingua-
gem vêm sendo conduzidos junto a crianças portadoras de paralisia cere-
bral, procurou demonstrar o papel que a linguística pode desempenhar,
tanto para a análise de dados, como para a iluminação do encaminhamento
terapêutico.
que ela dispõe, as hipóteses que ela lança sobre o objeto linguístico que está
construindo; enfim, as operações epilinguísticas através das quais a criança
se relaciona com a linguagem, com o outro e com a própria situação em que
opera.
Dica de estudo
Filme A Maçã, de Samira Makhmalbaf.
Mulher cega e seu marido mantêm as filhas gêmeas presas, seguindo va-
gos preceitos do Alcorão. As meninas são soltas, após 11 anos em cativeiro,
e têm que descobrir o mundo com olhos infantis que nunca conheceram
nada além de sua alcova. Em função da prisão em que viviam, mal conse-
guiram desenvolver a fala.
Atividades
1. Como se caracteriza o quadro denominado retardo de aquisição da lingua-
gem?
Tais estudos analisam, entre outras questões, de que modo tipos de estrutu-
ras e interações sociais estabelecem relações com os fatos envolvidos no proces-
so de aquisição da leitura e escrita. Assim, desafiam-nos a pensar de que maneira
práticas constituídas e intermediadas pela escrita e oralidade, vivenciadas social
e individualmente, assumem um peso decisivo nas possibilidades ou impossi-
bilidades de domínio da escrita pela criança. Desafiam-nos também a pensar
sobre as consequências decorrentes das diferentes experiências com a lingua-
gem escrita, vivenciadas pelos diferentes grupos sociais.
Nesse último caso, o prazer e o hábito da leitura e escrita devem ser ensina-
dos à criança. Como é possível mostrar à criança que é possível que a escrita e
Como pode formar leitores aquele que não é, ele mesmo, um leitor?
Como se ensina a escrever textos aquele que não os escreve junto com a
criança?
Assim como Rojo et al. (1998, p. 111), discutindo o papel do adulto no proces-
so de aquisição da escrita, atribuem a ele um lugar além de um facilitador e/ou
informante: o de um intérprete e de coconstrutor desse processo.
É ele quem atribui intenções e interesses à criança, orienta sua atenção para os aspectos da
escrita, recortando-a com o seu gesto e sua fala, tornando-a significativa. O modo de falar
sobre a escrita, as práticas discursivas do adulto, recortadas e incorporadas pela criança, são,
por sua vez, retomadas e incorporadas pelo adulto, num jogo muito mais dinâmico que supõe
o elemento letrado como “informante sobre a escrita” e o elemento não letrado como aquele
que, a partir da informação recebida, vai construir sozinho, dependendo apenas do seu sistema
assimilatório já construído, um conhecimento sobre a escrita.
uma vez que determinam a forma como a criança se constitui enquanto sujeito
do discurso (condição para o domínio da oralidade e da escrita). É também a
partir dela que a escrita se constitui enquanto processo de significação e, como
tal, objeto de interesse pela criança.
Podemos, agora, perguntar: mas afinal o que demarca a distinção entre ser
autor e não ser autor?
Para responder a essa pergunta vamos recorrer mais uma vez a Bakhtin (1992),
quando afirma que o autor é aquele que vai à busca da interpretação do texto
de forma ativa e que, além de estruturar ativamente o texto, procura produzir no
leitor efeitos de sentido, ou seja, procura colocar o leitor em posições específicas
de leituras daquele texto. Para Tfouni (2000, p. 54):
Assim enquanto o autor tece o fio do discurso procurando construir para o leitor/ouvinte a
ilusão de um produto linear, coerente e coeso, que tem começo, meio e fim, o sujeito está
preso à dupla ilusão: de imaginar que é a origem do seu dizer e também de pretender que
o que diz (escreve) seja a tradução literal de seu pensamento. Existe no processo de criação
de um texto, um movimento de deriva e dispersão de sentidos que a função-autor pretende
controlar. O autor, então, é aquele que estrutura seu discurso (oral e escrito) de acordo com um
princípio organizador contraditório, porém necessário e desejável.
ser autor é ser capaz de, para além do domínio de regras e normas, produ-
zir efeitos de sentido pretendidos numa dada situação;
Permitir à criança o acesso imediato aos efeitos que seus textos provocam
no leitor pode contribuir para que, com o tempo, ela passe a antecipar possíveis
efeitos causados pelas suas produções e, portanto, a operar modificações, de
forma mais consciente, sobre elas. Podemos notar que, a partir da prática de re-
estruturação textual, a criança passa a construir suas produções escritas preven-
do formulações imaginárias sobre as necessidades do(s) seu(s) interlocutor(es);
a incorporar características específicas da escrita, bem como a atuar de forma
ativa sobre a estrutura linguístico-discursiva.
Texto complementar
O fato de os episódios terem sido relatados sem seguir uma ordem cro-
nológica nos revela que a condição atual de tais sujeitos com a linguagem
escrita só pode ser significada e reconhecida na medida em que é visada
pelo passado. Ou seja: as consciências de tais sujeitos são objeto de uma
construção cujo tempo não é homogêneo e linear, mas um tempo em que a
história se faz presente, permanentemente.
Dica de estudo
A Língua Absolvida, de Elias Canetti, Editora Companhia das Letras.
Prêmio Nobel de Literatura de 1981, Elias Canetti narra sua infância e ado-
lescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa
para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas
vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um sim-
ples livro de memórias, A Língua Absolvida é a descrição do descobrimen-
to do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores
escritores contemporâneos.
Atividades
1. A partir dos referenciais abordados na aula, destaque pelo menos dois prin-
cípios norteadores do conceito de “autoria” do texto escrito.
A escrita tem usos distintos na escola e fora dela: alguns profissionais têm
maior domínio da escrita que outros; o acesso à escrita é diferenciado em rela-
ção aos grupos sociais, os contratos e acordos sociais são firmados não mais a
partir da fala, mas pela escrita; a fala pode ser informal e contemplar variedades
linguísticas, já a escrita, por sua vez, deve seguir uma norma e deve ser praticada
apenas por quem tem o domínio dessa norma.
que uma mesma letra pode ser articulada a partir de sons distintos: a letra
s pode ser representada pelo fonema /s/ em sapato e /z/ em casa;
que um mesmo som pode ser grafado por diferentes letras, como o fone-
ma /g/ pelas letras g e j. Exemplo dessa natureza pode ser verificado no
caso das palavras jeito e geladeira, ambas articuladas inicialmente por um
único som que é grafado por duas letras distintas;
Se transcrevermos a fala, vamos notar uma perda considerável de informação, porque não
temos mais o contexto em que foi dita e nem as marcas da prosódia. Não temos mais os gestos,
nem a postura da pessoa. Onde recuperar o que foi perdido? É aí que o aprendiz de escrita tem
que sentir que não pode simplesmente transpor a fala para a escrita. Ele tem que perceber que
o que ele usa na fala não funciona na escrita, ele precisa usar outros recursos.
Como Abaurre (1997, s.p.), concordamos com o fato de que se variações, num
movimento descontínuo, ocorrem “[...] em qualquer situação de uso significativo
da língua oral e escrita”, existem momentos em que elas acontecem de maneira
mais dramática. Tal fato decorre de fatores relativos às próprias características
linguísticas ou às interlocuções instauradas entre os participantes nas situações
da produção.
Por essa razão, consideramos que a aquisição dos aspectos que constituem
um texto, os formais e os referentes a sua significação, só pode ocorrer a partir
da produção espontânea. Abaurre (1991, p. 22) afirma ser “[...] exemplar, nesse
sentido, a flagrante diversidade manifesta nos textos espontâneos”, uma vez que
eles evidenciam os aspectos singulares que fazem parte desse processo.
Ao elaborar esse tipo de produção, as crianças vão ter que lidar, a partir dos
recursos de que dispõem, com os aspectos relativos ao tipo de texto, à coerên-
cia, à coesão, ao tema, ou seja, com os aspectos que conferem a sua “autoria”,
pois são esses os responsáveis por uma produção significativa.
Eventos particulares de uma micro-história da escrita individual, esses momentos constituem-se,
na sua singularidade, em indícios que estão a nos revelar movimentos espontâneos do sujeito
ao longo do seu processo de constituição e da aquisição da linguagem. Acreditamos, assim,
que cada texto espontaneamente produzido por uma criança pode sempre ser visto como
fonte riquíssima de indícios sobre a relação sujeito/linguagem. (ABAURRE, 1991, p. 22)
Adotar como proposta a produção espontânea não significa uma falta de con-
dução pedagógica a partir da qual o aluno produz o que quer, quando dese-
jar. Pelo contrário, as produções textuais serão decorrentes de discussões, de
pesquisas, para atender necessidades, como parte de projetos, de experiências
compartilhadas pelo aprendiz e pelo educador. Nessa medida, as produções
deverão ser motivadas e solicitadas pelo educador e estar articuladas a ex-
periências que garantam ao aprendiz, para que as realize, a possibilidade de
compreender suas razões. Além disso, cabe ao educador garantir a leitura e
as interpretações das produções espontâneas elaboradas pelas crianças, bem
como possíveis reestruturações, quando necessárias.
Esperamos ter ficado claro que o educador tem um papel determinante nas
produções espontâneas da criança. Como já mencionamos, tal importância de-
corre de, no mínimo, dois fatos:
Apesar da crença de que com a criança bem treinada os saltos irão ocorrer
podemos notar que, embora muitos de nossos adolescentes sejam capazes de
codificar e de decodificar a escrita, poucos conseguem fazer uso efetivo dela e,
portanto, interpretar e elaborar textos de forma adequada.
uma noção de que é na escrita espontânea que a criança pode ter uma ex-
periência significativa, condição necessária para exercer a autoria de seus
textos.
Texto complementar
[...]
É esse, pois, o sentido que tem letramento, palavra que criamos traduzin-
do “ao pé da letra” o inglês literacy: letra-, do latim littera, e o sufixo -mento,
que denota o resultado de uma ação (como, por exemplo, em ferimento, re-
sultado da ação de ferir). Letramento é, pois, o resultado da ação de ensinar ou
de aprender a ler e escrever: o testado ou a condição que adquire um grupo
social ou um indivíduo como consequência de ter-se apropriado da escrita.
[...]
Como foi dito inicialmente, novas palavras são criadas, ou a velhas pa-
lavras dá-se um novo sentido, quando emergem novos fatos, novas ideias,
novas maneiras de compreender os fenômenos. Conhecemos bem, e há
muito, o “estado ou condição de analfabeto”, que não é apenas o estado ou
condição de quem não dispõe da “tecnologia” do ler e do escrever: o anal-
fabeto é aquele que não pode exercer em toda a sua plenitude os seus di-
reitos de cidadão, é aquele que a sociedade marginaliza, é aquele que não
tem acesso aos bens culturais de sociedades letradas e, mais que isso, grafo-
cêntricas; porque conhecemos bem, e há muito, esse “estado de analfabeto”,
sempre nos foi necessária uma palavra para designá-lo, a conhecida e cor-
rente analfabetismo. Já o estado ou condição de quem sabe ler e escrever,
isto é, o estado ou condição de quem responde adequadamente às intensas
demandas sociais pelo uso amplo e diferenciado da leitura e da escrita, esse
fenômeno só recentemente se configurou como uma realidade em nosso
contexto social. Antes, nosso problema era apenas o do “estado ou condição
de analfabeto” a enorme dimensão desse problema não nos permitia perce-
ber esta outra realidade, o “estado ou condição de quem sabe ler e escrever”,
e, por isso, o termo analfabetismo nos bastava, o seu oposto – alfabetismo ou
letramento – não nos era necessário. Só recentemente esse oposto tornou-
se necessário, porque só recentemente passamos a enfrentar essa nova reali-
dade social em que não basta apenas saber ler e escrever, é preciso também
saber fazer uso do ler e do escrever, saber responder às exigências de leitura
e de escrita que a sociedade faz continuamente – daí o recente surgimento
do termo letramento (que, como já foi dito, vem-se tornando de uso corren-
te, em detrimento do termo alfabetismo).
[...]
[...]
[...]
Dica de estudo
Filme Meu Pé Esquerdo, de Jim Sheridan.
Atividades
1. Com base na perspectiva sociointeracionista, o entendimento das relações
estabelecidas entre a linguagem oral e escrita, parte de que pressupostos?
Para tanto, é interessante ressaltar a ideia de que não existe uma cor-
respondência entre som e letra. Tal interesse se justifica para o entendi-
mento de um dos pressupostos que norteará as análises desenvolvidas ao
longo desta aula:
Para tornar clara essa situação, articule, por exemplo, os sons referentes às
letras t e d. Perceba que os movimentos de seus lábios e de sua língua são iguais
e que a única coisa que muda é o fato de um ser vibrante (sonoro) e o outro
não (surdo). O traço de sonoridade distingue-se, portanto, pela existência ou
não de vibração das pregas vocais (cordas vocais) no momento da produção
do som. Caso queira tentar, coloque a mão na sua garganta, verifique como os
seus lábios e língua se movimentam quando produz os sons correspondentes
às letras t/d – p/b; c/g – f/v – x, ch/j, g. Note que na articulação do d, b, g, v, j, g
ocorre a vibração das pregas vocais, o que não acontece no caso de t, p, f, x, ch.
124 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A.,
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Problemas relativos à aquisição da linguagem escrita: aspectos formais
Uma vez entendida que a forma de articular esses sons é muito semelhantes,
imagine a dificuldade que a criança encontra quando busca na fala pistas que
lhe indiquem como devem ser escritas palavras que apresentam letras corres-
pondentes, na fala, aos pares mínimos. Nesses momentos, a criança vê-se diante
de um impasse sem solução, pois ao recorrer à fala para solucioná-lo, não en-
contrará pistas e permanecerá com as dúvidas entre as seguintes possibilidades:
jantar ou xantar? cavalo ou cafalo? vaca ou faca? porta ou porda?
Tal perspectiva pode ser apreendida a partir de orientações dadas por educa-
dores às crianças, tais como: “preste atenção no modo como fala e assim saberá
a forma de escrever”, “fale devagar e escute com cuidado, assim você vai saber
como escrever essa palavra”.
que essa correlação que ela busca estabelecer entre som e letra pode lhe
criar vários problemas, pois, em muitos casos, não é viável;
Até que ponto, e de que forma, a escrita se constitui como foco de atenção
e interesse para tais crianças?
A superação desses problemas, dos quais decorrem grande parte das dificul-
dades enfrentadas pelas crianças na leitura e na escrita, coloca-se como um dos
principais desafios para aqueles que atuam com crianças no seu processo de
aquisição.
Com certeza não existem receitas nem soluções simplistas ou mágicas para a
mudança desse quadro, que tem acompanhado a sociedade brasileira ao longo
da sua história. Contudo, existem respostas. Para idealizarmos tais respostas,
basta nos inspirarmos no entusiasmo das crianças pequenas, ainda não inseridas
no ensino fundamental, em aprender a ler e a escrever. Esse entusiasmo revela
que o desejo de se tornar leitor e escritor ainda persiste em muitas de nossas
crianças. Trata-se, inicialmente, de não deixar morrer esse entusiasmo, mas, pelo
contrário, extrair dele a motivação e a inspiração para, como educadores, contri-
buirmos para que as crianças se apropriem efetivamente da escrita.
Texto complementar
[...]
A fragilidade descritiva
[...] para alguns estudos não mais convém defender a existência da disle-
xia como uma patologia única, resultante de uma mesma origem e determi-
nante de um grupo único de manifestações sintomáticas.
feitas por Hout (2001, p. 7): “[...] os dados exploratórios da dislexia revelam-nos
sua diversificação, tanto em suas causas e manifestações quanto no agrupa-
mento dos sintomas: assim, a partir de agora, devemos falar de dislexias, no
plural”.
[...]
Os ”sintomas disléxicos”
Ianhez e Nico (2002) e Cuba dos Santos (1987) listam vários “sinais” e “sin-
tomas” como decorrentes do que tomam por dislexia. [...] centramos nossa
atenção em itens descritivos relacionados à linguagem, os quais apresenta-
mos e discutimos a seguir [...]:
confusão entre letras de formas vizinhas, como “moite” por “noite” [...];
adição de letras e/ou sílabas: “muimto” por “muito”, “fiaque” por “fique”,
[...];
[...]
Dica de estudo
Filme Central do Brasil, de Walter Salles Jr.
Mulher que escreve cartas para analfabetos na Central do Brasil ajuda me-
nino, após sua mãe ser atropelada, a tentar encontrar o pai que nunca
conheceu, no interior do Nordeste. Retratando a história de uma profes-
sora aposentada que ganha a vida escrevendo cartas para analfabetos, na
maior estação de trens do Rio de Janeiro e de um garoto pobre filho de
nordestinos, o filme evidencia, no contexto de sofrimento próprio de gru-
pos de migrantes em busca de melhores condições de vida nas grandes
cidades, como as práticas de leitura e escrita estão inseridas.
Atividades
1. Dentre as relações cruzadas que existem entre sons e letras, das quais decor-
rem produções ortográficas fora do padrão, destaque as principais.
Diante desse tipo de leitura, que é comum, surgem novamente questões que
evidenciam a complexidade da distinção entre o que é normal ou patológico no
campo da linguagem:
Para que a criança assuma essa atitude diante dos textos e venha a se cons-
tituir como leitora, é necessário que compartilhe com adultos, desde o início de
seu processo de aquisição da linguagem escrita, experiências em que este realize
interpretações por e para ela, instigue-a a estabelecer relações entre o texto lido e
suas experiências de vida. Caso isso não ocorra, ou seja, caso a criança não tenha
alguém que lhe ensine o que significa ler, ela não se tornará um leitor de fato.
leitor. Enfatizamos, ainda, que isso não se consegue escolhendo um livro obri-
gatório por bimestre para a criança ler em casa, nem realizando provas sobre o
conteúdo, as personagens ou sobre a compreensão do texto. Não se consegue
desenvolver o hábito e o prazer da leitura cobrando fichas de leitura, ou dizendo
a ela que ler é muito importante. Assim como os adultos, uma criança ou um
adolescente não tem motivação para se aperfeiçoar em algo por estar sendo
avaliado, esse procedimento só causa tormentos.
Da mesma maneira, pedir à criança que leia em voz alta para testar suas habi-
lidades perceptivas a afasta do aspecto semântico do texto e de sua constituição
dialógica. Tal distanciamento impossibilita a compreensão de que o texto escrito
faz parte de uma interação com um outro sujeito e com aquilo que ele tem a
dizer. Anulam-se, portanto, o sujeito que escreve e o sujeito que lê o texto, fican-
do esse último reduzido à sua habilidade de decodificação do código escrito.
Nessa medida, percebemos que muitas das dificuldades que as crianças apre-
sentam em relação à leitura decorrem de práticas que utilizam textos ou pseu-
dotextos para a avaliação e treino das habilidades relativas à percepção visual,
bem como para o ensino do léxico e de normas gramaticais. Tais práticas, além
de desconsiderar o trabalho com os sentidos do texto e, portanto, de interpreta-
ção, efetivamente, não o adotam por compreender que é nele que a linguagem
se realiza, mas o utilizam como pretexto para extrair formas e regras. Conforme
alerta Lajolo (1991, p. 51), essa maneira de apresentar o texto deve ser superada,
uma vez que
[...] o texto não é pretexto para nada. Ou melhor, não deve ser. Um texto existe apenas na
medida em que se constitui ponto de encontro entre dois sujeitos: o que escreve e o que lê;
escritor e leitor, reunidos pelo mesmo ato radicalmente solitário de leitura, contrapartida do
igualmente solitário de escrita.
Na quarta não há uma única palavra escrita. Nem por isso os sentidos cono-
tativos e denotativos deixam de ser explorados. No caso, o de que não são os
bandidos que estão “presos”, e sim as famílias comuns. Essa, no entanto, é uma
prisão “voluntária”: são as próprias famílias que levantam grades em torno de si.
Quanto mais presas elas estão, mais livres podem se sentir os bandidos. A charge
questiona, com isso, a ideia de “liberdade vigiada”. Esta, no entanto, embora, em
termos legais, diga respeito àqueles que cumprem pena, passa a ser mais ex-
pressiva da condição em que passaram a viver essas famílias: são os bandidos
que “vigiam” a liberdade dessas famílias no interior da prisão que armaram para
si mesmas, mas que, no entanto, acreditam ser a sua “liberdade”.
Outro fator relevante a ser considerado é que não há apenas uma leitura
possível, pois cada sujeito impõe o seu conhecimento, os seus valores, a sua
experiência à leitura, seja de uma charge, seja de um texto. A partir desse pres-
suposto, é importante considerar que a pouca familiaridade com o assunto
pode causar dificuldades na sua leitura. O conhecimento prévio sobre o as-
sunto tratado num texto, embora não esteja nele explícito, interfere no seu
entendimento. Dessa maneira, há que se considerar os tipos de textos traba-
lhados com as crianças. É fundamental que o adulto crie situações de leitura
de textos de interesse e que tratem de questões que façam parte do universo
das crianças.
Tais dificuldades ocorrem por causa da experiência restrita que grande parte
das crianças possui de elaboração de textos, uma vez que os métodos tradicio-
nais de ensino privilegiam, nos primeiros anos de escolaridade, atividades de
codificação e de decodifição da escrita, passando a solicitar produções textuais
apenas em séries mais avançadas. A recorrência dos problemas de produção tex-
tual evidencia que as crianças, em geral, não conseguem estabelecer esse salto
esperado pela escola, ou seja, atender à expectativa de que, uma vez dominada
a técnica da escrita e da leitura, passem a elaborar textos significativos.
b. que se tenha uma razão para dizer o que se tem para dizer;
d. que o locutor se constitua como tal, enquanto sujeito que diz o que diz
para quem diz;
A partir das colocações acima, podemos verificar que a forma como os adul-
tos participam do processo de elaboração textual realizado pela criança é decisi-
va para a constituição desta como autora de textos.
Texto complementar
Considerações finais
(MASSI, 2007, p. 233-239)
singular. Por meio dessa relação singular, cada um pode percorrer diferentes
caminhos até a apropriação do objeto escrito, manifestando maneiras diver-
sas de manipular a linguagem. [...]
Dica de estudo
Filme Sociedade dos Poetas Mortos, de Peter Wier.
Atividades
1. Descreva os sintomas mais frequentes e de maior gravidade que afetam
crianças consideradas portadoras de dificuldades de leitura e escrita.
Para tornar mais clara a ideia de estabilidade, podemos recorrer a alguns exem-
plos. Imaginemos uma carta escrita num idioma que não conhecemos. De qualquer
forma, podemos saber que se constitui numa carta por ter incorporado marcas lin-
guísticas que, regularmente, caracterizam esse tipo de texto. Se pensarmos num
texto acadêmico, sabemos que o mesmo pode ser reconhecível e de maior pos-
sibilidade de entendimento por grupos que integram esse universo. Um outro
exemplo: ao solicitarmos a uma criança que invente uma receita de bolo, ela
provavelmente irá remeter-se ao estilo próprio em que as receitas de bolo cos-
tumam ser escritas.
A relativa estabilidade desses gêneros fez com que Bakhtin concluísse que se
tratavam não apenas de gêneros específicos, mas, principalmente, de “contextos
discursivos”. Segundo Bakhtin, sempre é bom lembrar, a linguagem é uma arena
da luta de classes. Uma mesma palavra pode ser utilizada por pessoas de classes
sociais diferentes e, por isso mesmo, vir carregada dos sentidos que atribuem
a ela tais classes sociais. Ou seja, a palavra sempre vem acompanhada de um
“valor social”.
Contudo, ainda que haja diferenças sociais, há uma certa estabilidade, uma
ordem que a mantém. Sendo assim, essa ordem deve também estar expressa na
linguagem. Isso fez com que Bakhtin buscasse na linguagem essa regularidade
que ele acreditava ser expressiva da própria ordem social. O “contexto discursi-
vo” é aquilo que, ele acreditava, pode explicar essa regularidade. E o “gênero” é
aquilo que traduz tanto esse contexto quanto essa regularidade.
Por que a distinção do que vem a ser gênero primário e gênero secundário é
importante?
que não se pode falar de “dominação política”. Justamente essa dominação polí-
tica é o que marca aquilo que ele chama de gênero secundário. E, para Bakhtin,
a regularidade observada nesses gêneros é a prova de que eles traduzem uma
situação de dominação. O discurso científico é um excelente exemplo disso: por
mais inventivo que possa ser um pesquisador, é esperado dele que, ao falar ou
escrever, corresponda a um certo “modelo discursivo”, de tal forma que reco-
nheçamos, naquilo que ele fala, um “discurso científico”. Se o que ele disser não
corresponder a esse modelo esperado de discurso científico, então ele correrá
o risco de não ser reconhecido enquanto uma “autoridade científica”. Ou seja, o
cientista precisa se submeter a um determinado modelo de conduta e de formas
de dizer. Trata-se, portanto, de um contexto em que ele precisa se submeter a
uma certa “dominação” que se expressa na linguagem utilizada por ele. Embora
ele possa variar e tentar expressar questões de caráter mais subjetivo, essa va-
riação sempre tem um limite. E o limite está em deixar de elaborar um discurso
científico e passar a elaborar outro, de caráter bem diferente. Ou seja, se esse
cientista fizer um discurso muito diferente do discurso científico, será dito dele
que “não se trata de um cientista”, ou que “esse não é um cientista sério”, ou que
“se trata de alguém incompetente”.
Texto complementar
Os gêneros do discurso
(BAKHTIN, 2003, p. 261-265)
[...]
Dica de estudo
Filme O Caçador de Pipas, de Marc Forster.
Atividades
1. Como Bakhtin conceitua os gêneros discursivos?
Isso nos remete a um outro equívoco, esse gerado pelo próprio Bakhtin:
supor que as diferenças entre os gêneros possa ser pensada em termos de
“ausência” ou “presença de poder”. A presença de poder é inquestionável.
Questionável é supor a ausência dele. Ou seja, supor que as relações co-
tidianas, mesmo as familiares, não sejam marcadas por relações de poder
específicas. Isso é a mesma coisa que supor que as relações cotidianas,
principalmente as familiares, são de tal forma “igualitárias” que elas podem
ser tomadas como “simétricas”, como se não houvesse qualquer “assime-
tria” entre elas.
Não existe uma única sociedade no mundo onde as relações sejam simé-
tricas. Sempre há alguma assimetria e, com isso, alguma relação de poder
implícita.
O outro equívoco que pode ser gerado é aquele que considera a distin-
ção entre os gêneros primário e secundário como se fossem expressivos
de “ausência” ou “presença de forma”. O equívoco que alguns cometem
entre supor que um seja oral e o outro escrito colabora para isso. Forma,
Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A.,
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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Subsídios para Alfabetização e Letramento
Esse episódio mostra o quão pouco significado pode ter a escrita e, mais es-
pecificamente, o ensino escolar, para as pessoas. Em determinados contextos,
portanto, a escrita e o ensino têm restrito poder ou significado. Com isso, volta-
mos à concepção de Bakhtin de que a linguagem tem um “valor social”. As dife-
renças entre os gêneros expressam também, portanto, diferenças entre valores
e, com isso, entre “significados” sociais.
Por quê?
Sérgio Vaz, com 42 anos, tem quatro livros publicados e ficou conhecido
pelos saraus que organiza na Zona Sul da cidade. Sacolinha, pseudônimo de
Ademiro Alves, tem 23 anos e criou, em 2002, o projeto Literatura no Brasil,
que veio a tornar-se uma Associação Cultural. Além de produzir uma revista
especializada com o mesmo nome, a Literatura no Brasil realiza fanzines e
concursos literários. “Quando criou o projeto, Sacolinha acreditava que quem
faz literatura de verdade no país são os rappers e os escritores da periferia,
porque eles abordam a dura realidade brasileira”, conta Érica. O escritor, que
é de Suzano (município da região metropolitana), foi importante por chamar
a atenção para os autores que estão fora da cidade de São Paulo, acredita a
pesquisadora.
Pensamento crítico
Além da denúncia, o objetivo desses escritores é formar pensamento crí-
tico. “Eles se assemelham muito ao rap e ao hip hop ideológico nesse sen-
tido”, diz Érica. “Por isso, é importante não dissociar a literatura da atuação
cultural que eles desenvolvem”. Enquanto Sacolinha criou a Associação Cul-
tural, Sérgio Vaz organiza a Cooperifa, que reúne, semanalmente, cerca de
200 pessoas num boteco da Zona Sul de São Paulo para apresentações de
literatura, música e teatro. Já Ferréz faz parte do projeto 1daSul, que, entre
outras atividades, criou uma biblioteca comunitária e distribui livros e revis-
tas gratuitamente em escolas, Febems, presídios, favelas etc.
Érica lembra que a academia começa a voltar-se sobre o tema, que já virou
linha de pesquisa de alguns professores. “A análise dessa literatura marginal
exige que alguns parâmetros críticos sejam revistos, porque os textos desto-
am do padrão tido como culto, abusando do uso de gírias da periferia e com
regras próprias de concordância, plural e ortografia”, recomenda.
Textos dos escritores estudados podem ser encontrados nos seguintes blogs: <ferrez.
blogspot.com>, <sacolagraduado.blogspot.com> e <colecionadordepedras.blogspot.
com>, de Ferréz, Sacolinha e Sérgio Vaz, respectivamente.
tipo de leitura e de escrita, só pode ter resultado se for capaz de explorar esses
diferentes “significados sociais”.
O que ocorre, muito frequentemente, é que se faz uma confusão entre rigor e
rigidez, como se ambos fossem a mesma coisa. Todos os gêneros têm um limite
definido, e esse limite se mostra quando o discurso de um gênero é reconhe-
cido como sendo de outro. Esse limite comporta, com isso, uma certa – e, às
vezes, grande – flexibilidade. Obriga-se, muitas vezes, os alunos a corresponde-
rem a certos “modelos” de escrita, como se a correspondência a um determinado
gênero fosse a “reprodução de um modelo” de discurso. Essa rigidez é imposta
muito mais pelo professor do que pelos próprios contextos e seus respectivos
gêneros. Quando faz isso, o professor supõe estar sendo “rigoroso” quando está
sendo, na verdade, “rígido”. E quanto maior a rigidez, mais “vazia de significado”
é a “prática”.
Mas isso não significa tomar essas “leis” como se elas fossem um imperativo, ou
seja, como se fôssemos “obrigados” a reproduzir certos modelos de discurso. Essa
postura “rígida” transforma a escrita, por exemplo, muito mais numa condenação
do que numa possibilidade de expressão. As grandes “revoluções” feitas na li-
teratura, por exemplo, foram aquelas em que os escritores souberam deixar de
lado a rigidez do estilo. Exemplo bastante conhecido pela história é o livro Os So-
frimentos do Jovem Werther, de Goethe. Foi o primeiro romance escrito na forma
de cartas. O impacto social do livro foi de proporções inusitadas. A identificação
dos jovens alemães daquele período com os sofrimentos do personagem princi-
pal, que se mata ao final, promoveu uma onda de suicídios na Alemanha.
Se ele não tivesse sido escrito na forma de cartas, tão comum naquele perío-
do, será que a identificação das pessoas teria sido na mesma proporção?
Em 1865, Manet exibiu no Salão de Paris a tela Olympia. A referência que ele
havia utilizado era bastante explícita, a Venus de Urbino, de Ticiano. Embora a re-
ferência a uma obra já clássica fosse clara, sua Olympia foi altamente condenada.
A seguir estão as duas pinturas:
Domínio público.
Domínio público.
Venus de Urbino, 1538. Ticiano. Óleo sobre tela.
No meio do caminho
No meio do caminho tinha uma pedra
Texto complementar
Os gêneros do discurso
(BAKHTIN, 2003, p. 265-269)
[...]
Dica de estudo
Filme 8 Miles – Rua das Ilusões, de Curtis Hanson.
Atividades
1. Por que propostas de elaboração de textos desarticulados de função social
não são adequados para a apropriação da leitura e da escrita?
noções de lateralidade;
práxis orofaciais;
postura.
Uma vez que a norma considerada padrão não equivale ao modo de falar de
grande parte da população brasileira, sua função principal é impor a autoridade
pedagógica, representando um parâmetro para a seleção daqueles grupos cujos
modos de fala e escrita, articulados aos seus modos e valores de vida, não aten-
dem às exigências da escola.
No entanto, convencida por todos ao seu redor de que “não tem jeito”, de
que “é burra, mesmo”, essa que é uma etapa normal do processo de aquisi-
ção da escrita passa a ser uma etapa decisiva no seu processo de rejeição à escri-
ta. Ao invés de ser conduzida a “descobrir a escrita”, ela é conduzida a “manter-se
cada vez mais distante dela” e, com isso, do próprio sistema de ensino que tem
nela a sua base. A criança, dessa forma, fica convencida, pela própria escola, de
que o que está em jogo não é sua “relação com a escrita”, mas sim sua “relação
com o fracasso”.
ação que envolve não só professores, diretores e supervisores, mas também di-
ferentes profissionais que atuam, direta ou indiretamente, com os processos de
aquisição das linguagens oral e escrita e com problemas que podem ocorrer ao
longo desse processo. Tal ação deve objetivar, para além da identificação e clas-
sificação dos chamados distúrbios de fala, de leitura e da escrita, a promoção de
tais modalidades de linguagem. Para tanto, conforme colocam Kramer e Souza
(1996, p. 18), é necessário
[...] agir na escola com linguagem e na linguagem, rompendo com uma concepção de
linguagem como “meio de”, como instrumento vazio, passando a entendê-la e exercê-la como
expressão viva de experiências vivas, do presente e do passado... Ora, a linguagem é produção
humana acontecida na história; produção que – construída nas interações sociais, nos diálogos
vivos – permite pensar as demais ações e a si própria, constituindo a consciência. E mais, se o
homem se faz fazendo o mundo e se faz como homem se fazendo na linguagem, esse processo
só é possível graças a nós, ao auditório social fora e dentro de cada um. Para tanto nada mais
urgente do que uma política cultural e uma política de língua.
Crianças, quando não cerceadas, falam para aprender, falam enquanto estão
buscando soluções para seus problemas, falam para entender o mundo à sua
volta, falam para organizar seu pensamento e suas ações, falam para poder
aprender com o outro. Afinal de contas, é assim que o processo de aquisição
das linguagens oral e escrita se efetiva. De qualquer modo, prevalecem, ainda,
práticas educacionais e clínicas em que a linguagem oral não se constitui como
elemento da constituição do sujeito, ou seja, práticas que estabelecem a seguin-
te oposição: “fala” diferente de “aprendizado”.
Texto complementar
Não é difícil perceber que a norma culta – por diversas razões de ordem
política, econômica, social, cultural – é um bem reservado a poucas pessoas
no Brasil. [...] É o mesmo que acontece com a alimentação, a saúde, a educa-
ção, a habitação, o transporte, o acesso às novas tecnologias etc. Uns poucos
privilegiados se locomovem em carros importados, enquanto a grande
maioria usa um transporte público deficiente, precário e, se não bastasse,
caro demais – conheço muitas pessoas humildes que vão a pé para o traba-
lho, despertando no meio da madrugada e caminhando durante horas da
periferia até os bairros centrais, porque seu salário não lhes permite tomar
ônibus, trem nem metrô.
Numa lista de 175 países elaborada pela ONU, o Brasil ocupa o 93.º lugar
em índice de escolarização, ficando atrás até mesmo de países como a Etió-
pia e a Índia, exemplos clássicos de subdesenvolvimento crônico. Só que o
Brasil é uma das dez maiores economias do planeta. Ocupamos também o
80.° lugar em investimentos na educação. E ninguém pode alegar que isso se
deve ao tamanho do país ou da população: a China, bem maior que o Brasil
e com uma população de 1,2 bilhão de habitantes, tem 6% de analfabetos,
enquanto o Brasil tem 18,4%, segundo o Banco Mundial. E na China esses
analfabetos vivem em áreas muito remotas, nas montanhas ou nos desertos,
enquanto os nossos estão na periferia das grandes cidades e até mesmo tra-
balhando dentro de nossas casas. Tudo isso num país cuja Constituição diz
que a educação é “dever do Estado”.
Terceiro dilema relativo à norma culta se prende ao fato de que esse termo é
usado pela tradição gramatical conservadora para designar uma modalidade
de língua que, como já vimos na primeira parte deste livro, não corresponde à
língua efetivamente usada pelas pessoa cultas do Brasil nos dias de hoje, mas
sim a um ideal linguístico inspirado no português de Portugal, nas opções
estilísticas dos grandes escritores do passado, nas regras sintáticas que mais
se aproximem dos modelos da gramática latina, ou simplesmente no gosto
pessoal do gramático – para Napoleão Mendes de Almeida, por exemplo, o
“certo” é dizer eu odio e não EU ODEIO...
[...]
A distância entre norma culta real e norma culta ideal pode ser medida
em afirmações como esta, de Rocha Lima, em sua Gramática Normativa da
Língua Portuguesa (p. 15):
Em extensas faixas do Brasil, e especialmente no Rio de Janeiro, a consoante /l/, quando
em final de sílaba, apresenta uma pronúncia “relaxada”, que a aproxima da semivogal /w/.
Este fato faz que desapareçam oposições como as de mal e mau, alto e auto, servil e serviu
– oposições que a língua culta procura cuidadosamente observar (grifo meu).
[...]
Dica de estudo
Filme Fama, de Alan Parker.
Atividades
1. Descreva princípios e posições que devem nortear ações que, direta ou indi-
retamente, estejam ligadas à promoção da linguagem no âmbito escolar.
Concepções de linguagem
1. Porque existem diferentes formas de se conceber a linguagem e, por-
tanto, dependendo da posição teórica assumida adotaremos proce-
dimentos diferentes para intermediar os processos de apropriação e
aprendizagem de tais modalidades de linguagem vivenciados pelas
crianças.
3. B, A, D, C
Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A.,
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Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Subsídios para Alfabetização e Letramento
Ser autor é ser capaz de, para além do domínio de regras e normas, produ-
zir efeitos de sentido pretendidos numa dada situação.
2.
2.
Gêneros do discurso
1. Conforme as colocações de Bakhtin:
_____. Estética da Criação Verbal. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
_____. Violência simbólica nas práticas de letramento. In: BERBERIAN A. P.; DE-
ANGELIS, C. C. M; MASSI, G. Letramento: referenciais em saúde e educação. São
Paulo: Plexus, 2006. p. 15-32.
BOSCO, Z. Por que refletir sobre o tema “linguagem” na escola? In: BRASIL. Minis-
tério da Educação. A Criança na Linguagem. Brasília: 2005. p. 7-13.
DAVIS, C.; OLIVEIRA, Z. de. Psicologia na Educação. São Paulo: Revinter, 1993.
_____. Considerações finais. In: _____. A Dislexia em Questão. São Paulo: Plexus,
2007. p. 233-239.
PRETI, Dino. Estudos da Língua Falada: variações e confrontos. São Paulo: Hu-
manitas: FFLCH: USP, 1998.
Psicogênese das
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Linguagens Oral e Escrita:
Subsídios para Alfabetização e Letramento