Você está na página 1de 70

FOME, CAPITALISMO, E

PROGRAMAS SOCIAIS
COMPENSATÓRIOS
Histórico e análise comparada da experiência brasileira
Osvaldo Coggiola1
Um fantasma percorre o mundo... o fantasma do Bolsa Família. Os programas sociais
compensatórios brasileiros são citados urbi et orbi como exemplo a ser seguido, seja para
remediar a praga do desemprego, que se abate sobre as economias mais desenvolvidas
em virtude da crise econômica mundial,2 seja para combater o “fantasma” (de carne e
osso, mais osso do que carne) da fome mundial, nunca superado no período áureo da
“economia da abundância”, e recrudescido com a alta dos preços dos gêneros de primeira
necessidade alimentar em 2007/2009: “A situação atual lembra mais o aumento lento e
impiedoso de uma maré, gradualmente arrastando mais e mais pessoas para as fileiras
dos desnutridos”, disse um editorial do Financial Times de abril de 2009, sem se
perguntar, no entanto, sobre as causas e a origem dessa “maré”.
Os chamados “programas sociais compensatórios” são mais que seculares, se incluídas a
histórica caridade pública e privada. A sua dimensão, funções e financiamento atuais, no
entanto, são diferenciadas em relação a períodos históricos precedentes. A sua
especificidade deve ser abordada, portanto, através da análise histórica e comparada, e
da consideração de seu contexto mundial.
Do ponto de vista da teoria econômica, eles em parte convergiram (e em parte colidiram)
com as teorias em defesa da “renda mínima universal”, defendidas por economistas como
o indiano Amartya K. Sen, Prêmio Nobel em 1998 (e responsável pelos programas de
combate à fome da ONU) ou o belga Philippe Van Parijs, professor de Economia e Ética
Social da Universidade Católica de Louvain (e um dos fundadores do BIEN, Basic Income
European Network que, a partir de 2004, passou a se chamar Basic Income Earth
Network, Rede Mundial da Renda Básica). Estas teorias foram popularizadas no Brasil
pelo senador petista, também economista, Eduardo M. Suplicy.
Para Amartya Sen, por exemplo, o desenvolvimento de um país estaria ligado às
oportunidades que oferece à população de fazer escolhas e “exercer sua cidadania”. Isso
incluiria a garantia dos direitos sociais básicos, como saúde e educação, e também
segurança, liberdade, habitação e cultura.
A "economia do desenvolvimento", surgida nos anos 1950, segundo o economista
indiano, preocupava-se só com os meios para promover o crescimento da renda per

1
Professor Titular de História Contemporânea da Universidade de São Paulo (USP), Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas (FFLCH).
2
Para Nancy Birdsall (presidente do “Centro para o Desenvolvimento Global”), por exemplo, com a crise da
economia mundial, os EUA (e o mundo) deveriam olhar para o Brasil, isto é, para o “modelo Lula” (sic): “uma
economia de mercado com programas sociais”, como única saída viável, diante das conseqüências da
débâcle financeira e produtiva do capitalismo, iniciada com a crise do subprime nos EUA em 2007.
Significativamente, definiu a proposta menos pela sua aptidão para combater a pobreza, e mais como um
“modelo de governança”, isto é, como uma salvaguarda para um regime social em crise.

1
capita, estabelecendo uma relação causal direta entre renda, consumo e satisfação. A
promoção do bem-estar, porém, deveria orientar-se também por estar livre de doenças
evitáveis, escapar da morte prematura, estar bem alimentado, ser capaz de agir como
membro de uma comunidade, agir livremente e não ser dominado pelas circunstâncias,
ter oportunidade para desenvolver suas potencialidades. Os males sociais (pobreza
extrema, fome coletiva, subnutrição, destituição e marginalização sociais, privação de
direitos básicos, carência de oportunidades, opressão e insegurança) são variedades de
privação de liberdade. O desenvolvimento deveria ser “um processo de expansão das
liberdades reais”, mas a sua noção de “subdesenvolvimento” não está vinculada à
exploração nacional (imperialismo), nem a pobreza à exploração de classe (capitalista).3
A “compensação social” foi sendo, nos últimos anos, associada à “transferência de
renda”, uma espécie de tributo tardio pago ao igualitarismo socialista. Um relatório do
Programa da ONU para o Desenvolvimento escandalizou o mundo quando afirmou que as
três pessoas mais ricas do planeta, juntas, tinham ativos superiores ao PIB dos 48 países
mais pobres, onde viviam 600 milhões de pessoas. E pouco mais de 250 pessoas, cada
uma delas com ativos maiores que US$ 1 bilhão, detinham mais renda que 40% da
humanidade abaixo da linha da pobreza, perto de 2,5 bilhões de pessoas.
Nesse escândalo, América Latina tinha (e continua tendo) um lugar privilegiado. Segundo
a ONU, em relatório de 2005, o Brasil estava ainda entre os três países mais desiguais do
mundo, detendo o recorde da região: os 10% mais abastados tinham uma renda
equivalente a 32 vezes o que recebem os 40% mais pobres. Isto num quadro histórico em
que a região também perdeu espaço na renda mundial. Em 1980, América Latina e o
Caribe tinham uma renda per capita média de 18% dos rendimentos dos países mais
ricos do mundo. Em 2001, os ganhos eram de só 12,8% dos obtidos nas nações centrais.
Os programas sociais do Brasil, pela sua dimensão, tiveram impacto alhures, sendo
propostos como exemplo mundial. Os países líderes do grupo dos “emergentes”, o BRIC
(Rússia, Índia, China, além do próprio Brasil), anunciaram sua intenção de adotar
programas semelhantes, com vistas a resolver os graves problemas de miséria e pobreza
suscitados em conseqüência de sua passagem para a “economia de mercado”, e
correlatas às suas altas taxas de crescimento econômico (que o Brasil esteve longe de
reproduzir).
Na conjuntura dramática em matéria alimentar, em especial nos países periféricos, os
“programas focalizados” contra a pobreza tenderam a ser uma alternativa dos governos,
encorajados pelos organismos financeiros internacionais. A ONU advertiu que o aumento
contínuo dos preços dos alimentos poderia causar instabilidade política em todo o mundo:
“Não se devem subestimar as conseqüências da crise alimentar para a segurança, em
todo o mundo acontecem motins provocados pela falta de alimentos” (grifo nosso), disse o
atual diretor-geral da FAO, Jacques Diouf.

3
Para José Martins, crítico marxista, a “contribuição” de Sen para o progresso da ciência econômica foi a
afirmação de que a fome existente no mundo não seria devida à produção capitalista, incapaz de produzir
alimentos suficientes para a população mundial, mas ao fato de que os famintos não conseguem ter acesso
aos alimentos: “Para Amartya, não existe nenhum problema nas condições capitalistas de produção. Como se
diz na linguagem vulgar da economia política, não existe o problema de 'escassez de alimentos'. Os
problemas localizam-se apenas nas esferas da distribuição, quer dizer, na dificuldade de acesso dos famintos
aos frutos da produção capitalista de alimentos. Enquanto se propagandeia que não existe problema com a
produção do capital, mas apenas com a má distribuição dos seus frutos, algumas poucas poderosas nações
capitalistas continuam aprofundando sua dominação sobre a produção e o mercado mundial. Do outro lado, a
grande maioria das nações - onde se concentram de 80% do território, das matérias primas e da população
mundial - continuam sendo cada vez mais dominadas e rebaixadas para a situação de meros territórios
econômicos, de campo de caça daquelas poucas áreas e nações dominantes”.

2
Capitalismo e Pobreza
As “epidemias de fome” foram uma constante ao longo da história humana. Nos regimes
pré-capitalistas, eram “crises de escassez” devidas a catástrofes naturais (estiagens,
alagamentos, incêndios, etc.) ou humanas (guerras e deslocamentos populacionais). Elas
poderiam indicar uma sobre-população em relação aos recursos produtivos existentes, ou
o declínio histórico de uma formação econômico-social. No regime capitalista, um novo
tipo de crise se fez presente, as “crises de abundância”, ou seja, a miséria (e sua
decorrência, a fome) devida à sobre-produção de mercadorias. O setor agrícola foi,
segundo Karl Kautsky, em trabalho clássico, o primeiro setor da economia capitalista a
conhecer uma crise crônica de sobre-produção.
Nos primórdios históricos dos programas sociais de combate à miséria, no fim do século
XVIII, surgiu na Inglaterra a “lei dos pobres”, uma ajuda às famílias mais necessitadas,
proporcional ao número de filhos. O dinheiro vinha de uma taxa paga pelos contribuintes
cujas posses ultrapassassem um determinado valor. Em 1795, uma legislação de
proteção ao trabalhador agrícola foi estabelecida no Sul da Inglaterra. O Speenhamland
System foi introduzido primeiramente na vila de Speen por juízes locais, ao perceberem
que “o estado atual dos pobres necessita de mais assistência do que a lei geralmente tem
dado a eles”. Tal estado se devia a uma série de más colheitas que reduziram a oferta de
trigo, com o conseqüente aumento do preço do pão, ao aumento da população e às
guerras napoleônicas, que impediam a importação de trigo da Europa. A “lei dos pobres”
suplementava os salários então pagos, proporcionalmente ao preço do trigo e ao número
de filhos da família. O dinheiro para o pagamento do subsídio vinha da “taxa dos pobres”,
paga pelos contribuintes “de posses”.
O objetivo do Estado inglês era evitar as revoltas da população faminta; em 1795 o
fantasma da Revolução Francesa de 1789-1793 rondava toda a Europa. Para os
proprietários de terras, por sua vez, o sistema era vantajoso, pois transferia a todos os
contribuintes os gastos com os trabalhadores na entressafra, quando o salário era cortado
e os trabalhadores eram mantidos com a suplementação garantida pela lei dos pobres.
Esta dupla vantagem fez com que o sistema se ampliasse a todo o Sul da Inglaterra,
pouco industrializado. Assim, o auxílio aos pobres representava mais um “subsídio da
sociedade” aos grandes proprietários, que reduziam seus gastos com salários, do que
uma transferência de renda do Estado aos trabalhadores do campo.
Nos primórdios da indústria, num quadro ainda marcado pelas crises de escassez, o
primeiro catedrático em economia da Inglaterra, Thomas Malthus, defendeu a idéia de
que a produção crescente não criaria automaticamente sua própria demanda,
sustentando que a classe trabalhadora seria sempre excessiva com relação aos meios de
subsistência. Em An Essay on the Principle of Population, de 1798, Malthus postulou que
a população tendia a crescer mais rapidamente que o suprimento de alimentos disponível
para atender as necessidades sociais. Toda vez que ocorressem ganhos relativos na
produção de alimentos, através do crescimento populacional, um alto crescimento
proporcional da população seria estimulado; por outro lado, se a população crescesse
mais rápido que a produção de alimentos, este crescimento resultaria em fome,
dificuldades sociais e guerra. Malthus acentuou o lastro pessimista dos economistas
clássicos, sustentando que a população crescia a uma progressão geométrica, e os meios
de subsistência segundo uma progressão aritmética.
Os salários da classe trabalhadora não poderiam adquirir a produção adicional resultante
de um processo de acumulação crescente. Os capitalistas, por causa da população sem
meios para consumir, teriam de vender os produtos aos trabalhadores a preços que
seriam apenas suficientes para sua própria sobrevivência, o que levaria a uma situação

3
de desproporção entre a oferta e a demanda. A forma de se evitar esta desproporção,
segundo Malthus, seria estimular o aumento do consumo dos segmentos localizados fora
do processo produtivo industrial, como os senhores de terra, por exemplo, através da
distribuição, por diversos meios, da riqueza dos capitalistas. Embora muito criticado (por
não levar em conta, entre outros, o aumento da produtividade, ou seja, a redução do valor
da força de trabalho), o malthusianismo reapareceu sistematicamente nos últimos dos
séculos nos debates acerca dos “limites do crescimento”, do esgotamento dos recursos
naturais, etc.
Em 1834, os custos crescentes do Speenhamland System levaram uma Comissão Real a
proibir qualquer suplementação salarial aos pobres. A prática foi condenada como “o
principal mal do atual sistema”, cujos efeitos maléficos eram tão convincentemente
expostos pelos comissários de 1834 que “nenhuma doutrina econômica ganhou tanta
vigência quanto que a assistência pública era um presente de auxílio aos salários e tendia
a reduzi-los”.4
No lugar do antigo sistema, a Poor Law Amendment Act passou a vigorar, prevendo a
construção de workhouses – casas de trabalho – para onde os desempregados eram
levados e obrigados a trabalhar, às vezes até por 14 horas diárias. A nova lei levou a uma
rápida redução dos custos assistenciais na maioria das áreas. A abolição do
Speenhamland System, com a criação de um mercado de força de trabalho totalmente
“livre”, foi considerada, por Karl Polanyi, a vitória definitiva do capital industrial sobre a
aristocracia fundiária, garantindo a vitória do capitalismo na Inglaterra.
Exército Industrial de Reserva
As casas de trabalho eram odiadas pelos trabalhadores e a luta contra sua implantação
levou a várias revoltas no norte da Inglaterra, sendo uma das causas do surgimento do
movimento cartista, e mereceram o seguinte comentário de Karl Marx: “É notório que na
Inglaterra, onde o domínio da burguesia é o mais extenso, até a beneficência pública
assumiu as formas mais nobres e ternas: as workhouses britânicas – hospícios nos quais
o excedente da população trabalhadora vegeta às custas da sociedade civil – unem do
modo mais refinado a filantropia com a vingança que a burguesia exerce sobre os
desgraçados que se vêem na necessidade de recorrer a seu magnânimo bolso. Não só se
nutre os pobres diabos com os alimentos mais miseráveis, escassos e insuficientes até
para a reprodução física, mas também sua atividade fica limitada a uma aparência de
trabalho, um trabalho improdutivo que obstrui a mente e encolhe o corpo”.
O papel que a lei dos pobres cumpria para os fazendeiros no Sul, as workhouses
deveriam cumprir para a burguesia industrial no norte: criar um “exército industrial de
reserva”, sustentado pelo Estado nas épocas de retração e desemprego em alta, e que
estivesse apto ao trabalho quando a atividade econômica voltasse a um ciclo de
expansão. N´O Capital, no sub-capítulo “produção progressiva de uma superpopulação ou
de um exército industrial de reserva”,5 Marx explicou como o processo de acumulação de
capital fazia surgir uma população excedente de trabalhadores à sua disposição,
chamada por ele de “exército industrial de reserva”: “A população trabalhadora, ao
produzir a acumulação de capital, produz, em proporções crescentes, os meios que fazem
dela, relativamente, uma população supérflua”.

4
ROSE, Michael E. The allowance system under the new poor law. In: Economic History Review, vol. 19, n° 3,
Londres, 1998.
5
No Livro I, capítulo XXIII, “A lei geral da acumulação capitalista”.

4
O exército industrial de reserva é especificamente capitalista. Com a acumulação de
capital e o aumento da sua composição orgânica, o capital variável (a remuneração da
força de trabalho, na forma do salário ou em outras formas) cresce numa proporção cada
vez menor como percentual da composição do capital global. Esta é uma lei específica
deste modo de produção; a população trabalhadora excedente é necessária à
acumulação capitalista, é a força de trabalho que estará disponível para ser explorada de
acordo com as necessidades variáveis da expansão do capital: “o movimento da indústria
moderna nasce da transformação constante de uma parte da população trabalhadora em
desempregados ou parcialmente empregados”.
Marx testemunhou diretamente a crise econômica de 1846-1848: predominantemente
agrária, seu epicentro se localizou nas dificuldades que a agricultura européia atravessou
a partir de 1844, tendo início com a cultura de batatas na Irlanda e Inglaterra, arruinada
pelas pragas, seguida de dois anos de péssimas colheitas de cereais, fazendo subir os
preços dos gêneros de subsistência, e refletindo numa queda brutal dos preços dos
tecidos. Os preços dos gêneros alimentícios se elevaram, o que fez com que as classes
populares despendessem uma parte cada vez maior de sua renda com despesas de
alimentação, o que causou convulsões sociais por toda a Europa, e esteve na base do
processo revolucionário de 1848.
No “exército industrial de reserva”, além de sua forma aguda, verificada nas crises, e sua
a forma crônica, Marx identificou também suas formas flutuante, latente, estagnada, e
também o pauperismo. Encontram-se na forma flutuante aqueles trabalhadores da
indústria que são excluídos em certos momentos, e em outros não. A dinâmica do capital
produz um aumento de trabalhadores empregados, mas em proporção cada vez menor
em relação à acumulação capitalista.
Na forma latente estão os trabalhadores rurais que foram expulsos do campo com a
penetração do capitalismo. Isto obriga estes trabalhadores a se transferirem para os
centros urbanos, onde recebem salários abaixo da média, mantendo um padrão de vida
que beira o pauperismo. Na forma estagnada estão os trabalhadores ativos de maneira
irregular ou informal, cuja condição de vida está abaixo do nível médio. Ela se reproduz
com o aumento do número de trabalhadores supérfluos. O pauperismo inclui indivíduos
aptos para o trabalho, e também os incapacitados. Constitui o peso morto do exército
industrial de reserva, faz parte das despesas extras da produção capitalista, porém logo
transferidas para a classe trabalhadora e para a classe média inferior. A produção do
exército industrial de reserva é uma lei geral, absoluta, da acumulação capitalista.6
Numa das primeiras resenhas d´O Capital, Engels, sublinhou que “como para produzir a
mesma quantidade de produtos, precisam-se cada vez menos operários, graças ao
progresso do maquinismo, à modernização da agricultura, e como este aperfeiçoamento,
isto é, este excedente de operários, aumenta mais rapidamente que o capital crescente, o
que é que se faz com este sempre crescente de operários? Formam um exército industrial
de reserva que, durante os momentos de maus ou medíocres negócios, é pago abaixo do
valor do seu trabalho e ocupado irregularmente ou cai ainda na assistência pública, mas é
absolutamente necessário à classe capitalista para os momentos de atividade
particularmente viva dos negócios, como se viu de modo tangível na Inglaterra, mas que,
de qualquer maneira, vale para desbaratar a resistência dos operários ocupados
6
"Quanto mais a riqueza social crescer, mais numerosa é a sobre-população comparativamente ao exército
de reserva industrial. Quanto mais este exército de reserva aumenta comparativamente ao exército ativo do
trabalho e mais massiva é a sobre-população permanente, mais estas camadas compartem a sorte de Lázaro
e quando o exército de reserva é mais crescente, mais grande é o pauperismo oficial. Esta é a lei geral,
absoluta da acumulação capitalista" (Marx).

5
regularmente e manter os seus salários a baixo nível”. As relações entre o capital e os
trabalhadores (os proletários que não têm outra mercadoria a vender para além da sua
força de trabalho) são determinadas pelo grau em que estes últimos conseguem limitar a
concorrência que o capital instaura entre eles.
Com a expansão mundial do capital, se produz o desenvolvimento à escala internacional
da concorrência entre os trabalhadores em torno do preço de venda da sua força de
trabalho. Marx já constatava a “concorrência cosmopolita na qual são lançados todos os
trabalhadores do mundo pelo desenvolvimento da produção capitalista”: “não se trata
somente de reduzir os salários ingleses ao nível dos do continente, mas de fazer descer,
num futuro mais ou menos próximo, o nível europeu ao nível chinês”.
Para François Chesnais, essa possibilidade antevista por Marx só viria a se realizar em
nossa etapa histórica, quando “as políticas de liberalização, desregulamentação e
privatização que os Estados capitalistas adotaram um após o outro, desde o advento dos
governos Thatcher em 1979 e Reagan em 1980, devolveram ao capital a liberdade, que
havia perdido desde 1914, para mover-se à vontade no plano internacional, entre países e
continentes”. A tendência para a “mundialização do exército industrial de reserva” se
verifica em sua plenitude na convergência do neoliberalismo com a “queda do
comunismo”. Com ela, se constata “um estado de não preparação dos assalariados dos
países avançados para o processo que começou a atingi-los. Eles haviam conhecido um
período relativamente longo durante o qual beneficiaram de relações políticas com o
capital e de certas instituições (Código de Trabalho, sistema de aposentadoria de
repartição, Segurança Social) que os protegeram das agressões mais graves. Hoje em
dia, os assalariados destes países são confrontados com problemas gigantescos, dos
quais nem os partidos que lhes pedem os votos, nem os sindicatos, lhes apresentam as
causas ou o fundo das questões que estão em jogo”. A internacionalização do exército
industrial de reserva seria favorecida pela deslocação do capital através do investimento
direto, ou pela subcontratação (terceirização) internacional, e a oferta de mercadorias de
baixo preço, permitidas pela liberalização das trocas, dos investimentos no estrangeiro, e
dos fluxos de "capitais móveis".
A centralização de grandes montantes de dinheiro nas mãos dos bancos e dos fundos de
pensão e de colocação financeira, bem como a re-emergência das Bolsas, reforçaram o
papel central do capital financeiro. A liberalização e a desregulamentação das trocas, dos
investimentos diretos no estrangeiro, dos fluxos de capital e de dinheiro líquido,
conjuntamente com as privatizações e o processo de concentração, criaram novas
exigências: “Liberto dos compromissos e das instituições que colocaram entraves ao seu
desdobramento (em conseqüência da crise de 1929, da grande depressão e dos efeitos
políticos da Segunda Guerra Mundial), o capital, sob a forma dos grupos industriais
transnacionais, dos fundos financeiros e dos grandes bancos, passou a poder deslocar-se
quase sem entraves à escala do planeta”. Uma “lei geral, absoluta da acumulação
capitalista" – a produção e reprodução de um crescente exército industrial de reserva –
passou a se expressar em escala mundial, mais do que em qualquer etapa histórica
precedente.7

7
Segundo Chesnais, “em graus diversos, os proletários dos países da Europa ocidental conseguiram, por
intermédio de fases sucessivas de avanços e recuos, entre o início do século XX e os anos 1967-68/1974-75,
reduzir fortemente esta concorrência no interior das fronteiras de cada Estado. Mas não tendo conseguido
"organizar-se em classe, logo em partido", no sentido posto pelo Manifesto, conseguiram apenas dar golpes
muito limitados e temporários à propriedade privada dos meios de produção. Assim sendo, permitiram às
burguesias "livrar-se de apuros" e reconstituir relações mais favoráveis ao capital, primeiro lentamente e
depois, a partir da "revolução conservadora", a um ritmo cada vez mais rápido. Hoje em dia, os assalariados

6
O crescimento do desemprego – e da miséria social decorrente – brasileiro e latino-
americano, portanto, é um fenômeno só compreensível em termos globais. Os países do
centro da acumulação capitalista, por concentrarem e centralizarem o capital financeiro,
concentram também os segmentos superiores do exército industrial de reserva (flutuante),
os trabalhadores que se reciclam e voltam ao mercado de trabalho. Os países periféricos
concentram as frações mais profundas do exército industrial de reserva, a parte “latente”,
a superpopulação estagnada que constitui parte do exército de trabalhadores em ação,
mas com ocupação totalmente irregular. O setor mais profundo é o que mais se
desenvolve, na periferia capitalista. Cresce em número de pessoas, e desenvolve o que
Marx chamou de “o mais profundo segmento da superpopulação relativa [que] vegeta no
inferno da indigência, do pauperismo. São os indivíduos que sucumbem em virtude de
sua incapacidade de adaptação, decorrente da divisão do trabalho”.
Capitalismo, Monopólios e Fome
Durante a crise econômica da década de 1930, no país mais rico (e mais capitalista) do
mundo, os EUA, surgiram verdadeiras favelas; as “sopas populares”, os abrigos para
sem-teto se enchiam; em Chicago, o lixo era “revisado” e reaproveitado por uma enorme
massa de pobres. Em 1932, estimava-se que um milhão e meio de jovens faziam parte de
“bandos de errantes”, sem destino. Na Califórnia, no centro-norte dos EUA e no oeste do
Canadá, grandes períodos de seca, invernos rigorosos e pestes agravaram a depressão
econômica. Muitos dos jovens das áreas rurais abandonaram suas fazendas e suas
famílias, buscando a sorte nas cidades: juntamente com os desempregados urbanos,
viajavam de cidade a cidade, “pegando carona” em trens de carga, em busca de
emprego.
A subalimentação produziu um surto de tuberculose; os matrimônios caíram 30%, os
nascimentos, 17%, com 10 milhões de crianças deficientes. A ofensiva contra os salários
foi mundial, os proventos dos trabalhadores experimentaram um retrocesso sem
precedentes na história do capitalismo. Grupos étnicos minoritários, imigrantes, dos
países mais atingidos passaram a ser discriminados por setores da população dos países
mais afetados: eram discriminados porque, supostamente, competiam com a "população
nativa" pelos empregos. A discriminação era alentada por grupos nacionalistas de direita.
Nos EUA, a renda total dos trabalhadores da indústria e da agricultura foi literalmente
amputada pela metade entre 1929 e 1932. De dois milhões, o número de desempregados
elevou-se para 18 ou 20 milhões.
Nos países “periféricos” a crise agrária capitalista combinou-se com a sobrevivência de
relações pré-capitalistas no campo, com sua seqüela de baixo investimento tecnológico e
baixa produtividade. Produziu-se então a pior combinação possível: a coexistência de
“crises de escassez”, antigas, com crises modernas de sobre-produção. Assim, a
constante elevação da produtividade agrária coexistiu com a criação de enormes bolsões
de miséria e de fome no continente africano, na China (até a revolução de 1949), no SE
asiático, em vastas regiões da América Latina.

encontram-se confrontados com uma situação em que o capital possui, em um grau desconhecido desde os
anos 1930, meios para obrigá-los a fazer concorrência entre si em torno de uma oferta de emprego limitada.
Melhor ainda, pode colocá-los em concorrência de país para país”. Assim, “estamos numa situação em que se
alarga incessantemente a concorrência criada pelo capital entre os assalariados por um número insuficiente
de empregos. A concorrência insinua-se por mil e um canais, entre os quais o da imigração e da situação de
profunda dependência dos trabalhadores imigrantes face ao capital, mas também o das condições que
conhecem os precários e os desempregados. Ela alimenta permanentemente o racismo e suporta uma gama
infinita de estratégias patronais. O único limite a estas estratégias é um limite político, uma estimativa sobre o
que os assalariados, os explorados e a juventude poderão suportar sem se revoltar”. É exatamente ai que
entram as “políticas sociais compensatórias”.

7
Em plena Segunda Guerra Mundial, a primeira conferência das Nações Unidas reuniu, em
maio e junho de 1943, em Hot Springs (EUA), delegados de 44 nações, para examinar as
possibilidades de uma ação internacional conjunta para a melhoria dos sistemas de
alimentação e da orientação da produção agrícola, e uma melhor distribuição dos
produtos. Um dos eixos foi a política de alimentação e o comércio internacional. A
conferência constatou a existência de grandes grupos em estado de subnutrição
permanente: populações inteiras, principalmente na Ásia, e vastos grupos sociais nas
próprias nações adiantadas, sendo aqui mais numerosos os grupos vulneráveis vítimas
da má-nutrição: crianças, adolescentes, mulheres grávidas.
O auxílio a ser dado aos grupos subnutridos situou-se no âmbito do comércio
internacional. A existência, no interior de cada nação, de grupos em estado de
"subnutrição" ou de "má nutrição", ao contrário, colocou o problema de uma política
nacional de alimentação. O historiador Marc Bloch observou a respeito, num dos seus
últimos trabalhos (membro da resistência francesa, e judeu, ele seria fuzilado pelos
nazistas) que “essa política supõe, antes de qualquer coisa, uma organização metódica
da produção e da distribuição de alimentos, seguida de uma adaptação da agricultura às
necessidades reais dos consumidores, mais que a seu poder de compra (...) É quase
supérfluo observar que políticas semelhantes exigem uma grande margem de dirigismo
na economia e que esta será, provavelmente, incompatível com uma grande liberdade do
comércio internacional”.8
Constatando, a partir da experiência da depressão da década de 1930, que os preços
agrícolas caiam mais rapidamente que os preços industriais, houve um esforço dos
países agrícolas para obter garantias para a manutenção dos preços de seus produtos,
criando organismos internacionais que velariam por isso, uma espécie de monopólio que
seria a contrapartida do monopólio dos países industrializados, complementado pelo
monopólio econômico dos trusts.
Os países industrializados, importadores de gêneros alimentícios, e os países agrícolas
ricos, exportadores, se enfrentaram por causa do problema dos estoques reguladores.

8
Bloch disse que “os países agrícolas pobres [China, as Índias ainda coloniais, Polônia etc.] são aqueles nos
quais as condições alimentares são as piores. Sua situação, através de todo o período do capitalismo liberal,
melhorou de maneira bastante tímida; a liberdade foi-lhes pouco proveitosa e hoje em dia parece certo que a
simples abolição das tarifas aduaneiras teria pouco efeito em sua economia. Eles necessitam um auxílio
concreto dos países industrializados e dos países agrícolas ricos. Os primeiros lhes forneceriam o capital de
que necessitam para melhorar suas técnicas agrícolas e, principalmente, lhes permitir a criação de indústrias
leves (transformação de produtos alimentícios, têxtil etc.), que reduziria sua população agrícola excedente. Os
países agrícolas ricos lhes forneceriam durante o período de transição os gêneros alimentícios necessários
para melhorar de imediato suas condições de vida. Por fim, os países industrializados e os países agrícolas
ricos, os quais têm freqüentemente uma população pouco numerosa, abririam suas fronteiras para migrantes
dos países agrícolas pobres. Os países agrícolas pobres apresentaram-se na Conferência de Hot Springs
como pleiteantes. Mas não eram os únicos em tal posição. Os países agrícolas ricos apresentaram, eles
mesmos, suas demandas. Sua principal queixa contra os países industrializados é que a relação de troca
entre produtos industriais e agrícolas era, antes da guerra, desfavorável aos países agrícolas, situação
causada essencialmente pela posição monopolista dos países industrializados. As regiões do mundo que, em
conseqüência de vantagens naturais ou de casualidades históricas, foram as primeiras em condições de
acumular o capital indispensável à produção industrial moderna e desenvolver uma indústria poderosa, podem
desfrutar de uma posição favorável em relação aos países agrícolas, e estão em condições de ditar seus
próprios termos para a venda de seus produtos. Os países agrícolas, ao contrário, viram seus mercados lhes
escapar desde que quiseram elevar os preços de seus produtos. A agricultura depende de um capital muito
mais frágil que o da indústria, e os países industrializados freqüentemente estão em condições de aumentar
sua produção agrícola. Os países agrícolas se queixam, também, de uma elasticidade insuficiente na
demanda de gêneros alimentícios. Um pequeno aumento de produção ou pequena redução da demanda
ocasionam baixas de preços catastróficas. É isto que acontece, quando as colheitas são boas ou uma
recessão, ainda que pequena, eclode nos países industrializados”.

8
Havendo um acordo unânime sobre a necessidade de constituírem-se organismos
encarregados de regulamentar o mercado e os preços dos principais produtos agrícolas, o
desacordo surgiu no momento de determinar as atribuições de tais organismos.
Os países importadores de produtos agrícolas aceitaram lhes dar os poderes necessários
para impedir as cotações despencarem em seguida a uma boa colheita ou de subirem
rapidamente em caso de uma colheita ruim. Mas os países exportadores propuseram que
os organismos gerentes dos estoques reguladores tivessem igualmente o poder de fazer
aquisições a qualquer momento, quando as cotações dos produtos agrícolas fossem
muito baixas em relação às dos produtos industrializados. Não se definiu qual deveria ser
a relação entre preços industriais e preços agrícolas, mas os produtores agrícolas
consideraram a relação existente antes da guerra como lhes sendo desfavorável.9 Não se
chegou a nenhuma decisão.
Esses debates dominaram as primeiras reuniões do GATT (Acordo Geral de Tarifas e
Comércio, depois transformado na atual Organização Mundial do Comércio, OMC ou
WTO, da sua sigla em inglês), criado depois da guerra, no âmbito da criação de órgãos de
regulação da economia mundial, com vistas a evitar crises como a que havia precedido à
guerra mundial. Nesse mesmo âmbito foi criada a FAO (Food and Agriculture
Organization), dentro da ONU, presidida inicialmente por Josué de Castro, para combater
situações de fome emergencial e, precipuamente, para dar uma solução estrutural aos
problemas da fome mundial.
O boom econômico de pós-guerra mudou (parcialmente) os termos do debate iniciado na
década de 1940. Produziu-se uma concentração da produção em alguns setores que
determinaram a fixação do nível geral dos preços dos produtos alimentares: trigo, milho,
substâncias protéicas. Entre 1961 e 1971 a produção mundial de trigo cresceu de 228
para 353 milhões de toneladas, a um ritmo dos 5% anual, bem acima da taxa de
crescimento demográfico dos países industrializados.
O aumento foi devido à intensificação da produção em terrenos já previamente cultivados
de trigo, e foi acompanhado por uma concentração crescente das fontes mundiais de
aprovisionamento. Europa ocidental, que em 1961 produzia 13% do total, passou para
16%. Os países da Europa oriental passaram de 35% para 37%; os EUA de 15,4% para
16,6%. Essas três grandes áreas, com 20% da população mundial, detinham 70% da
produção de trigo. Enquanto nos países socialistas o aumento servia para estabilizar uma
política de preços baixos no aprovisionamento interno, ficando disponível para a

9
Marc Bloch observou: “Os países que defenderam a tese do controle da produção são os exportadores de
gêneros alimentícios e de matérias-primas, principalmente das Américas Central e do Sul, Cuba, Domínios
Britânicos, à frente dos quais a Austrália. A Grã-Bretanha conduziu o combate contra as tendências restritivas.
Inglaterra teme uma coalizão dos países produtores de gêneros alimentícios e de matérias-primas, que
tivesse por resultado a elevação dos preços destas mercadorias, relativamente aos preços dos produtos
industrializados, a um nível bastante superior ao que prevalecia antes da guerra. O resultado seria que a
Inglaterra teria que despender, para obter a mesma quantidade de importações, um volume bastante maior de
mercadorias nacionais... No seio da comissão que se ocupou dos estoques reguladores, os líderes de cada
uma das tendências em conflito eram Inglaterra e Austrália. Os delegados americanos estavam naturalmente
tentados a encabeçar os países exportadores de produtos alimentícios. As razões desta atitude são fáceis de
compreender: em primeiro lugar, os EUA são um país exportador de gêneros alimentícios. Além disso, toda
sua política sul-americana exige que eles tomem para si a defesa econômica dos países da América do Sul.
Entretanto, em Hot Springs os norte-americanos cederam frente aos ingleses quase constantemente. Parece
que foi selado um acordo, pelo menos tácito, entre a Inglaterra e os EUA, para que algumas questões
delicadas, capazes de comprometer o futuro dos dois impérios, não fossem tocadas até o final da guerra”. Os
EUA eram “americanos” pour la gallerie, mas “ingleses” (isto é, herdeiros-continuadores do velho Empire) nas
questões decisivas.

9
exportação apenas 6-8%, nos EUA a quota mais substancial era a destinada ao mercado
externo, 40-50% da produção, e à formação de estoques.
Na Europa, a produção de trigo, entre 1961 e 1971 aumentou 50% (de 37 para 56 milhões
de toneladas), a exportação para o resto do mundo duplicou, passando dos 3,19 milhões
de toneladas anuais (1961) para 7,13 milhões de toneladas (1971). Coisa análoga
aconteceu com o milho, cuja produção mundial passou dos 206 milhões (1961) para 306
milhões de toneladas (1971), com os EUA detendo uma preeminência absoluta, 45% da
produção mundial, levando o país ao controle do comércio (a Europa Ocidental foi de
6,5% para 8,3%, a Europa oriental, ao contrário, caiu de 13,1% para 8%).
Consolidou-se também a posição monopolista dos EUA nos produtos necessários para a
alimentação do gado, em primeiro lugar a soja, produto estratégico de que se serviram os
EUA, decretando o embargo sobre a sua exportação para abrir uma autêntica guerra
comercial com a Europa (na década de 1960, a produção dos EUA passou de 18 para 32
milhões de toneladas, isto é, de 60% para 70% da produção mundial).
Houve, portanto, um processo de concentração da produção alimentar de base; uma
polarização das correntes comerciais; políticas públicas de sustentação de preços (1600
dólares per capita nos EUA, 700 dólares na Comunidade Econômica Européia), com
formação de excedentes (entre 1961 e 1965, em média, 52,6 milhões de toneladas de
trigo; 72,2 milhões de toneladas de cereais inferiores; 14,1 milhões de toneladas de
açúcar; 550 mil toneladas anuais de manteiga - 430 mil na CEE) com a consolidação de
grandes indústrias alimentares: Unilever, Nestlé, etc. Na década de 1960 se registrou uma
expansão crescente do comércio mundial, a um ritmo de 4,5% ao ano; o incremento
relativo dos países “em via de desenvolvimento”, no entanto, foi só de um terço desse
crescimento; os beneficiários dos outros dois terços foram os países capitalistas centrais.
A “revolução verde” significava a abertura de novos mercados para a produção industrial,
que vinha crescendo, entre 1960 e 1965, a um ritmo dos 5% na Europa e de 5,9% nos
EUA. A estratégia da CEE era estimular o desenvolvimento da indústria, pagando com
produtos industriais os bens alimentares de que necessitava, e obtendo a dupla vantagem
de dar uma saída à produção industrial e de adquirir produtos agrícolas a preços
mundiais, mais baixos que os internos.
Surgiu neste contexto o plano elaborado pela FAO para o desenvolvimento da agricultura
(“Plano indicativo mundial provisório para o desenvolvimento da agricultura”): nele, pôs-se
a hipótese de uma taxa de aumento da produção agrícola nos países “em via de
desenvolvimento” (Médio Oriente, Extremo Oriente, América Latina, África e sul do Saara)
de 3,5%, para uma taxa de crescimento demográfico de 2,6% anual.
A participação dos países capitalistas deveria realizar-se através do destino de 7 % do
PIB anual para «ajudas públicas»; e também através da fixação de tarifas preferenciais,
assim como da participação de capitais privados, sob forma de investimentos diretos e
créditos para a exportação. Enquanto se esperava que a «revolução verde» produzisse
seus frutos, haveria “ajudas de subsistência”, ajudas alimentares que escoariam os
excessos de produção dos países centrais (mediante pagamento).
Mas o «plano» foi abalado pela crise do desenvolvimento capitalista, em finais da década
de 1960 e, sobretudo, a partir do “choque do petróleo” de 1973, que destruiu o mito de um
desenvolvimento levado ao infinito, e com ele, segundo Giuseppe Vitale, “toda e qualquer
visão iluminista sobre os contatos de entendimento com o Terceiro Mundo; nos EUA, o
déficit da balança de pagamento tornou-se assustador (são os anos culminantes da
guerra do Vietnã), e advertiu-se a necessidade de não expandir, mas antes de reduzir, a

10
liquidez no mercado internacional. O «Plano indicativo mundial» estava destinado a um
fim miserável”. Ele seria só o primeiro de uma série de planos a serem jogados no lixo.
Segundo relatório da FAO, de 1973, sobre a situação alimentar mundial, em 1972 a ajuda
oficial dos estados europeus aos países “em desenvolvimento” tinha caído a menos de
3% do PIB; a dos EUA a menos de 2%; ao mesmo tempo aumentara o montante dos
investimentos das sociedades privadas: enquanto a parte pública, que representava
inicialmente 60% da ajuda financeira aos países “em vias de desenvolvimento”, descia em
1972 a 45% do total, a parte privada aumentava de 34 para 50%, sob forma de
investimentos diretos e créditos a breve prazo, com a conseqüente dependência dos
países «beneficiários».
A inflexão das taxas de juro destes créditos depois da desvalorização do dólar em 1971 e
a retirada de numerosos investimentos, no decurso dos anos sucessivos, agravaram a
situação dos países subdesenvolvidos, somada à contínua deterioração nos termos de
troca entre produtos agrícolas dos países metropolitanos e matérias-primas (incluindo as
agrícolas) dos países atrasados; entre produtos agrícolas e meios técnicos industriais; e
também às novas características dos processos de transformação, conservação e
distribuição dos produtos alimentares, que abriram o caminho para as multinacionais da
alimentação.
Com a crise econômica mundial se abriram as portas para a expansão das corporações
agro-alimentares transnacionais. A pequena agricultura, dita “familiar”, entrou em crise em
todo o mundo, para terminar dependendo da produção intensiva destinada à exportação.
Nos EUA e na UE a sobre-produção agrícola se agravou. Os fluxos comerciais da
produção agrícola mudaram: em 1980, mais de 50% das exportações de trigo se
destinava aos países “subdesenvolvidos”, agora gravemente dependentes em virtude da
especialização mundial, da política de preços, e também da padronização internacional
de hábitos dietéticos.
Uma vez superada a crise agrícola da década de 1980, o grau de monopolização da
produção atingiu níveis sem precedentes. Em 1994, 50% de Ia produção agrícola norte-
americana provinha de 2% de suas propriedades agrícolas. Três grandes corporações
produziam e processavam 80% da carne bovina; os EUA detinham 36% do comércio
mundial de trigo, 64% do milho, cevada, aveia e sorgo; 40% da soja; e 50% das
exportações norte-americanas de cereais estavam nas mãos de duas corporações (Cargill
e Continental). A indústria alimentar se transformou num dos principais setores industriais
dos EUA: 95% dos alimentos consumidos no país passaram a ser manufaturados,
distribuídos e vendidos por poucas firmas (como ConAgra).
Capitalismo e Crise Alimentar
No mundo inteiro, programas de combate à pobreza e à fome foram postos em prática,
com resultados bastante menores à propaganda feita em torno deles. O número de
pessoas que passam fome no mundo continua crescendo. Em 2009, duas décadas
depois, foram mais 40 milhões; desde 2007, mais 150 milhões, segundo a ONU.10 A linha
da pobreza (renda de menos de US$ 1,25 por dia/ pessoa) continuou a crescer, chegando
a 41,7% da população mundial (mais de 2,7 bilhões de pessoas): os Objetivos do Milênio
previam baixar essa porcentagem para 20,9% (1,4 bilhão), até 2015 (previsão já
10
Como quem mede as condições de um rebanho de suínos prontos para o abate, divide-se a fome dessa
multidão de miseráveis do exército industrial de reserva em diversas situações (categorias) abstratas:
"insegurança alimentar leve", "insegurança alimentar moderada" e "insegurança alimentar grave" (quem quer
que tenha passado fome alguma vez na vida, compreende que estas categorias beiram o ridículo). O social
vira estatística, a pessoa vira número (e os números engordam uma vasta burocracia).

11
abandonada). A chamada “concentração da renda” mundial continuou a crescer, com 1%
da população detendo 40% da riqueza total. Entre os privilegiados, quase 65%
concentram-se nos EUA e no Japão, 0,6% no Brasil.
Segundo cálculos da FAO, 854 milhões de pessoas sofriam de fome no mundo, no
período 2001-2003, registrando um aumento de 26 milhões em relação ao período 1995-
1997. Desse elenco, 820 milhões se encontravam nos países “subdesenvolvidos”, 25
milhões nos países “em transição” (ex “países socialistas”), e nove milhões nos países
industrializados. E um bilhão de pessoas sofre de sobrepeso (obesidade), devido à má
alimentação (incluídos os hábitos alimentares) com os riscos de saúde decorrentes.
Segundo estudos da FAO,11 do PNUD, do Banco Mundial, da Cúpula Mundial da
Alimentação e de outras organizações, a fome não tem diminuído, assim como não é
causada pelo aumento da população nem pela falta de alimentos. Calcula-se que,
anualmente, oito milhões de pessoas morram, no mundo, por causa da fome derivada da
miséria. Para essas organizações, o problema da fome é um problema de “acesso”, de
distribuição (ou seja, de má distribuição, devida à pobreza) de uma produção
superabundante. O problema estaria na esfera da distribuição, não na estrutura
(capitalista) da produção agrária.
A FAO calculou em 2500 calorias e 65 gramas de proteínas por dia o mínimo alimentar
vital para um individuo adulto. Nos países “desenvolvidos”, a disponibilidade é de 3500
calorias por dia, em média. No restante do mundo, essa disponibilidade situa-se abaixo de
2400 calorias por dia. E a ração alimentar cotidiana dos países “subdesenvolvidos”
contém só 56% das proteínas que se encontram na ração alimentar média dos países
“desenvolvidos”.12 No Brasil, mais de dez milhões de famílias (40 milhões de pessoas)
não dispõem de recursos suficientes para o acesso diário à quantidade de calorias
necessárias à sua sobrevivência (1900 calorias/dia/pessoa).13
A definição de fome obedece a critérios estabelecidos. A fome endêmica é resultante da
baixa ingestão prolongada de calorias: “Tem como manifestações clínicas ou formas mais
evidentes a desnutrição. A gravidade se expressa no déficit de peso e nas formas
clássicas do Kuashiokor e Marasmo. A cronicidade, no déficit estatural chamado nanismo

11
Em geral, da FAO só se podem citar seus estudos: sabidamente, seus padrões de eficiência são muito
baixos. A insatisfação com a performance da agência levou os países participantes da Conferência Mundial
de Alimentos, em 1974, a criar duas novas organizações para tentar fazer o trabalho “precípuo” da FAO: o
Fundo Internacional para o Desenvolvimento Agrícola e o Conselho Mundial de Alimentos (depois extinto, em
parte substituído pelo Programa Alimentar Mundial da ONU). É consenso que a FAO é uma estrutura
paquidérmica, cuja mediocridade técnica a tornou irrelevante em seu propósito de combater a fome.
Defendeu a utilização de biotecnologia no combate à fome, ao lado das grandes corporações capitalistas. Em
1991, um alto dirigente da organização tomou um pseudônimo, e escreveu críticas demolidoras: a agência
falhara "desastrosamente". Acusou-a de agir como propagandista de indústrias agro-alimentares. A pressão
foi tanta que a própria FAO se curvou e, em 2005, aceitou submeter-se a uma avaliação externa independente
(que não deu em nada). O orçamento da FAO (menos de US$ 1,5 bilhão) está longe daquele estimado
necessário (quase US$ 7 bilhões), e vem sofrendo reduções devido à queda das contribuições dos países
doadores, que vêm sofrendo quedas da sua arrecadação fiscal.
12
BESSIS, Sophie. La Faim dans le Monde. Paris, La Découverte, 1991.
13
Parte da imprensa brasileira explorou a informação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)
segundo a qual a população adulta (95 milhões de pessoas) do Brasil, país do Fome Zero, é formada mais por
pessoas acima do que abaixo do peso. São 10,5 milhões de obesos e 38,8 milhões com excesso de peso
contra 3,8 milhões com déficit. Mas a obesidade também é um produto da péssima alimentação, baseada na
carência de opções saudáveis: 43,4% da população adulta estão com excesso de peso, apenas 17,7% da
população atendem às recomendações da OMS de comer cinco porções semanais de frutas e hortaliças, o
consumo de carne com gorduras aparentes está no cotidiano de 32,8% da população e 29,2% dos adultos
são sedentários. Já a carne vermelha gordurosa, ou frango com pele sem remover a gordura do alimento,
está presente em 32,8% da população de todas as capitais.

12
nutricional, que é irreversível. Os principais problemas que ela causa são a baixa
resistência às infecções, atribuindo-se a ela 60% dos elevados índices de morbi-
mortalidade, além de peso significante na incidência de acidentes de trabalho e
internações hospitalares por causas mal definidas”.14
A tabela que segue, por sua vez, indica as regiões e países com déficit de suprimento
alimentar:
Demanda e suprimento de cereais e outros cultivos em 1990 (milhões de toneladas)

Região Cereais Outros Cultivos

Demanda Suprimento Razão S/D Demanda Suprimento Razão S/D

África 95 75 0,79 301 268 0,89

Ásia Central 364 401 1,10 407 369 0,91

América Latina 104 100 0,96 681 678 1,00

Oriente Médio 21 25 1,18 41 39 0,94

Ásia de S. e de SE 325 303 0,93 651 649 1,00

Total dos Países 909 904 0,99 2082 2002 0,96


Subdesenvolvidos

América do Norte 327 329 1,01 198 185 0,93

Europa Ocidental 213 228 1,07 367 348 0,95

Ex-URSS 156 199 1,28 230 235 1,02

Europa Oriental 72 75 1,03 107 106 1,00

Japão, Austrália e N. Zelândia 31 34 1,10 73 65 0,89

Total dos Países Desenvolvidos 799 866 1,08 976 939 0,96

Mundo 1709 1770 1,04 3057 2942 0,96


Notas: S/D= Suprimento/Demanda
Fonte: DÖÖS, Bo R.; SHAW, Roderick. Can we predict the future food production? A sensitive analysis. Global
Environmental Change nº 9, 1999.

No mercado mundial, nas décadas de 1980 e 1990, predominou a instabilidade de preços


de alimentos e matérias primas, assim como continuou o processo de deterioração dos
termos de troca entre produtos primários e produtos de alto valor agregado. Os recursos
destinados à agricultura pela “cooperação internacional” caíram de 17% para 3% entre
1980 e 2006 (com uma queda de renda de 60%, de US$ 8 bilhões para US$ 3,4 bilhões
anuais). E continuou a centralização e monopolização sem precedentes da produção
agropecuária. Nos países atrasados, e inclusive nos que depois seriam chamados de
“mercados emergentes”, a situação alimentar piorou. Quanto à “ajuda ao
desenvolvimento”, depois de sofrer um inchaço artificial, devido à inclusão de inúmeros
novos itens, ela oscila entre 6,6% (Holanda) e 3% (Japão), da parte dos 21 países
considerados “desenvolvidos”. Os cinco percentuais maiores correspondem a economias

14
QUIRINO ESCODA, Maria do Socorro. Entrevista sobre o Programa Fome Zero, Natal, novembro de 2002.

13
de menor dimensão dentro desse universo (Holanda, Dinamarca, Suécia, Noruega e Nova
Zelândia).15
Em 1996, os 186 países da FAO assinaram um documento propondo a redução da fome,
até 2015, a 412 milhões de pessoas. O crescimento da fome coexistiu com altas taxas de
crescimento econômico, fazendo falar numa “nova fome, que convive com a abundância,
na era da máxima produtividade da agricultura mundial. A nova fome cresce em
momentos em que as nações mais povoadas do planeta estão vencendo o desafio do
desenvolvimento”.16 A generalização das relações capitalistas de produção, inclusive nos
“países periféricos”, generalizou também as crises de sobre-produção. Elas foram
agravadas, e não mitigadas, pelo desenvolvimento da produtividade agrária devida aos
novos fertilizantes, agrotóxicos e, sobretudo, sementes transgênicas (sem falar nos danos
ecológicos múltiplos provocados por estes), a chamada agroindústria.17 De acordo com a
“Convenção das Nações Unidas para Combater a Desertificação”, o problema da
degradação de terras nas regiões áridas continuou a piorar durante as duas últimas
décadas do século XX; 70% das terras áridas usadas para a agricultura no mundo já
estão degradadas.
Aumento dos lucros de algumas das principais empresas de fertilizantes do mundo
Benefícios 2007 (em US$
Companhia Aumento em relação a 2006
milhões)
Potash Corp (Canadá) $1.100 72%
Yara (Noruega) $1.116 44%
Sinochem (China) $1.100 95%
Mosaic (EUA) $ 708 141%
ICL (Israel) $ 535 43%
K+ S (Alemanha) $ 420 2.8%
Fonte: http://www.biodiversidadla.org/content/view/full/40701

Foi a apoteose da “Revolução Verde”: grandes monoculturas em latifúndios, mecanização


pesada, uso intensivo da química, controle total da produção por grandes empresas
integradoras (multinacionais), preponderância dos grãos, padronização industrial dos
alimentos e redução da base genética. A soja ganhou um espaço muito grande, chamada
de “grão de ouro”, sendo produzida basicamente nos EUA, Brasil, Argentina e China
(nesta, para o mercado interno). A produção de grãos no Brasil pulou de 96,8 milhões de
toneladas (em 2001/2002) para 151 milhões de toneladas (2008/2009). Os grãos

15
Ranking the rich. Foreign Policy, Nova York, setembro-outubro 2006. No papel, existe a intenção de elevar
a ajuda oficial dos “desenvolvidos” para a agricultura de 3% da assistência total para 17%, ou seja, de US$
3,4 bilhões para US$ 17 bilhões anuais.
16
RAMPINI, Federico. Fame: complesso de culpa dell’Occidente. Diario di Repubblica. Roma, 3 de novembro
de 2006.
17
Os abalos sociais provocados por ela nada tem de historicamente progressivo ou, como pontuou Holt-
Giménez: “No existe nueva revolución industrial. No hay una nueva expansión del sector industrial que
pudiera recibir comunidades indígenas, pequeños propietarios y trabajadores rurales desplazados. No existen
avances en la producción esperando a inundar el mundo con comida barata. Esta vez, los combustibles no
subsidiarán la agricultura con energía de bajo costo. Al contrario, los combustibles competirán con los
alimentos por tierra, agua y recursos. Los agro-combustibles van a colapsar el vínculo entre alimentos y
combustibles. La inherente entropía de la agricultura industrial ha sido invisible todo el tiempo que el petróleo
ha sido abundante. Ahora, los sistemas alimentarios y de combustibles deben cambiar de una cuenta de
ahorros a una de cuenta corriente. Los agro-combustibles nos dirigen hacia un sobre giro. Renovable no
significa ilimitado. Mientras que los cultivos pueden ser re-plantados, la tierra, el agua y los nutrientes son
limitados. Pretender lo contrario sirve a los intereses de aquellos que monopolizan dichos recursos”.

14
tornaram-se commodities universais, padronizados e negociados internacionalmente, com
um valor comercial (e estratégico) grande (o trigo passou de alimento para ser também,
cada vez mais, base para tintas, cosméticos e biodiesel). Limpos e secos, podem ser
armazenados e conservados por longos períodos, manipulando estoques e especulando
com preços. O grão é o carro-chefe da hegemonia capitalista no campo, pois permite
planos de longo prazo para monopolizar mercados e obter lucros extraordinários com a
comercialização de alimentos.
A soja é extremamente polivalente, de múltiplos usos, industrial, na alimentação humana,
na nutrição animal, em outros produtos, como bio-plásticos, e inclusive energia “líquida”,
como o biodiesel. Mas os grãos sofrem a influência transgênica: uma hectare de cultura
de milho, com os métodos tradicionais, produz, no sul mexicano, quatro toneladas; a
mesma hectare “transgênica” produz, na Argentina, três vezes mais... Os transgênicos
dominam 70% da produção da soja, 46% do algodão, 24% do milho, 20% da colza. Em
hectares de produção transgênica, os EUA encabeçam a lista, com 62,5 milhões (contra
57,7 em 2007), seguidos pela Argentina, 21 milhões; Brasil, 15,8 milhões; Índia e Canadá,
7,6 milhões; China, 3,8 milhões.
Nesse quadro, a produção agrícola passou a ser controlada pelas firmas produtoras de
sementes e produtos químicos (Monsanto, Dupont, Syngenta, Bayer, Dow Chemical, e um
curto etc.) num processo de monopolização capitalista sem precedentes da produção
agrícola mundial.
Aumento dos lucros de alguns dos principais comerciantes mundiais de grãos
Benefícios 2007 (em US$
Companhia Aumento em relação a 2006
milhões)
Cargill (Canadá) $ 2.340 36%
ADM (EUA) $ 2.200 67%
ConAgra (EUA) $ 764 30%
Bunge (EUA) $ 738 49%
Noble Group (Singapura) $ 258 92%
Marubeni (Japão) $ 90 43%
Fonte: http://www.biodiversidadla.org/content/view/full/40701

A “ajuda ao desenvolvimento” se transformou em uma função dessa estrutura, ou seja,


virou um subsídio dos Estados metropolitanos às exportações de seus monopólios de
grãos, fertilizantes e agrotóxicos. Jeffrey Sachs calculou que a assistência oficial ao
desenvolvimento, em 2002, compreendeu uma ajuda externa total bruta de todos os
doadores a todos os países em desenvolvimento de US$ 76 bilhões (em dólares de
2003). Dessa quantia, US$ 6 bilhões foram doações para o alívio da dívida, não
correspondendo a nenhum fluxo concreto de recursos.
Além disso, os países “em desenvolvimento” enviaram perto de US$ 11 bilhões aos
países ricos em conceito de pagamento de empréstimos, deixando um fluxo líquido de
ajuda externa de US$ 59 bilhões. Dessa quantia, US$ 16 bilhões foram para os “países
de renda média”. Dos US$ 43 bilhões que foram para os “países de baixa renda”, US$ 12
bilhões foram destinados ao apoio direto aos governos (isto é, para ralos burocráticos). O
resto consistiu de assistência de emergência e cooperação técnica, pagando, em geral,
consultores estrangeiros caros, em vez de especialistas locais (a burocracia internacional
da fome padece de obesidade salarial crônica), com o “mapa da fome” piorando.

15
Em 2002, para todos os países “em desenvolvimento”, apenas US$ 15 bilhões dos US$
48 bilhões em fluxos líquidos de ajuda poderiam ser considerados de apoio para
investimentos de financiamento em necessidades básicas. Os restantes US$ 33 bilhões
financiaram outros custos, basicamente burocráticos. As agências bilaterais e multilaterais
responderam por US$ 9 bilhões: os custos do funcionamento do sistema internacional de
assistência quase equivalem à própria ajuda, sem contar quantias que “desaparecem”.
Nas últimas décadas, a ONU inchou seus efetivos, com base nos “programas sociais de
ajuda”, além do crescimento das ONGs (de um modo geral, do “terceiro setor” da
economia), encarregadas de administrá-los. Isto fez crescer uma burocracia
“humanitária”, hoje expandida em todos os países.
O boom dos “mercados emergentes” foi favorecido por uma alteração conjuntural na
distribuição das exportações, favorecida, por sua vez, por um ciclo comercial expansivo
na primeira década do século XXI (concluído em 2008). Rússia passou a ser um player
global do mercado de grãos: em 2000, sua participação no comércio mundial foi de 1 %;
em 2008, de quase 14%. A participação do trigo russo nas exportações mundiais subiu de
6% para 14%: em 2008/ 2009, o país exportou mais de 20 milhões de toneladas de grãos
(um recorde), com valor superior a US$ 4 bilhões, e passou a ser o 3° maior exportador
do mundo, depois dos EUA e da União Européia. A participação do Canadá neste período
reduziu-se de 17% para 14%; a da Austrália caiu de 16% para 13%, enquanto a dos EUA
reduziu-se de 28% para 20%.
Entre 2005 e 2008, o preço médio mundial dos alimentos aumentou um 85%. Em
conseqüência, em 2008, começou uma situação de catástrofe no continente africano: os
preços dos gêneros alimentícios de primeira necessidade aumentaram em poucos meses,
com aumentos dos preços do trigo, do arroz e do óleo nos mercados mundiais; más
colheitas locais; inexistência de qualquer controle dos preços. A explosão dos preços
também afetou à Ásia, motivando motins da fome: o preço médio de uma refeição básica

16
aumentou em 40% no espaço de um ano. Muitas pessoas passaram a não poder comer
mais do que uma refeição por dia. O impacto da alta dos preços foi diferenciado: nos
países “desenvolvidos” a cesta básica de alimentação representa 14% da renda média,
na África subsaariana, ela representa 60%.
Com a supressão dos direitos alfandegários e uma redução das taxas sobre produtos e
serviços, os governos “subdesenvolvidos” tentaram forçar uma redução dos preços,
acionando as raras alavancas que o Estado ainda controlava. O governo egípcio chegou
a proibir a exportação de arroz. Mas as medidas não produziram os efeitos esperados. As
políticas preconizadas pelas instituições financeiras internacionais haviam incentivado as
culturas de exportação (como algodão), em detrimento das culturas alimentícias, em
momentos em que os preços dos alimentos no mercado internacional estavam baixos,
além de favorecerem o desmantelamento das estruturas de controle dos preços.
O Banco Mundial reconheceu o “erro que havia cometido” (sic), e enfatizou que era
preciso priorizar o renascimento das culturas alimentícias.18 Houve um vácuo de US$ 500
milhões no programa da ONU para satisfazer as necessidades de emergência, com 37
países em estado de emergência pela falta de alimentos. A ONU declarou estado de
"calamidade mundial"; a situação se avizinhou da catástrofe, em especial na Ásia. De
janeiro a março de 2008, a tonelada de arroz passou de US$ 380 no mercado
internacional, para US$ 760, ultrapassando US$ 1000 em abril. Os estoques mundiais de
reservas de cereais passaram de uma cobertura de quase 140 dias de consumo mundial,
em meados da década de 1980, para menos de 60 dias, uma redução de mais de 100%
em duas décadas, graças a políticas que favoreceram a produção de insumos industriais
e de combustíveis. Os preços dos alimentos subiram 35% em 2007, mais de 70% em
2008. Só em 2007, o leite e seus derivados aumentaram 80%, os cereais em torno de
42%.

Fonte FAO- Food and Agriculture Organization of United Nations, Crop Prospects and Food Situation. Roma, abril de 2008.

O índice global dos preços alimentares passou, segundo a FAO, de 80 em 2000, para 210
(!) em 2008, caindo para 140 em 2009, depois do estouro da “bolha alimentar”. Em grande

18
O forte aumento da produção de biocombustíveis, nos EUA e na Europa, foi considerado também um fator
da disparada mundial dos preços dos alimentos, pela redução da oferta de alimentos. O preço do milho,
utilizado na produção de álcool, dobrou em dois anos devido à forte demanda. Lula, porém, afirmou que os
aumentos indicavam ser necessário produzir mais alimentos, sem culpar o investimento nos biocombustíveis.

17
medida (talvez mais de 30%) os aumentos foram determinados pelo deslocamento da
especulação financeira dos setores em crise para as commodities, levando a fome, em
especial na África e na Ásia, para níveis emergenciais.19 Para Guilherme Dias (da FEA-
USP), "a experiência de produtos agrícolas com tanto comércio internacional e estoques
tão baixos, que acontece pela primeira vez", determinou “grande insegurança nos
mercados”: "A instabilidade que se vive de 2007 para cá, essa enorme volatilidade de
preços, se explica porque assim se criou um ambiente atrativo para o especulador,
sempre à procura de liquidez”.

Fonte: O Estado de S. Paulo, 20 de abril de 2008.

A crise é de sobre-produção. O suprimento mundial de grãos passou de 2,6 bilhões de


toneladas (1999/2000) para 3,16 bilhões de toneladas (2007/2008), para um consumo de
1,95 e 2,34 bilhões de toneladas, respectivamente (o gap entre suprimento e consumo
passou, no período, de 0,65 para 0,82 bilhões de toneladas). O preço da terra (que é a
capitalização da renda agrária, absoluta ou diferencial), por sua vez, aumentou 1000% em
menos de uma década, mas a propriedade do solo é secundária diante do capital
financeiro aplicado à produção de fertilizantes e sementes, e também à comercialização
agrícola e o trading. Os grandes vencedores da alta dos preços alimentares não foram os
especuladores ocasionais, mas as grandes firmas fabricantes de insumos agrícolas, um
pequeno grupo de empresas concentrado nos EUA, Canadá e Rússia. O uso de novas
tecnologias explica só uma parte dos lucros extraordinários, pois estes proviriam menos
dos ganhos de produtividade e mais da alta especulativa dos preços.
Os ganhos em produtividade – contra toda a lenda montada em torno da agroindústria –
são decrescentes: Bob Zeigler, presidente do IRRI (International Rice Research Institute)
informou que o rendimento das superfícies plantadas com os grandes cereais, que

19
Cabe registrar a opinião que liga a inflação de commodities à baixa da taxa real de juros, produto da crise
econômica mundial, sobretudo nos EUA. O argumento é que ao produzir e vender um barril de petróleo, os
dólares auferidos passam a render a baixa taxa real de juros. Assim, seria mais vantajoso deixar o petróleo
debaixo da terra, e esperar pelo preço mais alto no futuro. À medida que mais petróleo é deixado debaixo da
terra, o preço à vista sobe. O mesmo valeria para as demais commodities que têm oferta limitada. No fundo,
trata-se de duas caras da mesma moeda, ou de duas variantes da especulação financeira.

18
cresceu entre 3% e 6% anuais entre 1960 e 1980, cresce atualmente só entre 1% e 2%.
O arroz IR8, variedade introduzida em 1966, rendia inicialmente 10 toneladas por hectare;
atualmente rende só sete. As causas dos rendimentos agrícolas decrescentes são
múltiplas, indo da erosão e destruição dos solos (devida à sua exploração irracional) até o
esgotamento da produtividade marginal das ”novas tecnologias”.
A crise do mercado financeiro norte-americano, como resultado do estouro da bolha
imobiliária, torceu o direcionamento da especulação para as commodities agrícolas e para
as matérias primas em geral. Uma pesquisa do Comitê de Segurança Interna do
Congresso dos EUA concluiu que a alta dos preços não obedeceu a uma "crise da oferta":
entre 2003 e 2008 o investimento em índices vinculados ao comércio de commodities
cresceu 20 vezes, de 13 para 260 bilhões de dólares anuais (o Comitê, porem, rejeitou
intervir ou regular os mercados especulativos com o argumento de que, se assim o
fizesse, as operações especulativas continuariam, mas no mercado paralelo).
A onda inflacionária alimentar acumulou uma alta de 85% em 36 meses, e reduziu os
estoques mundiais de alimentos ao seu menor nível em décadas. A rápida expansão dos
preços comprometeu as metas internacionais de erradicação da fome e da miséria. Em
2007, a conta com a importação de alimentos nos países “subdesenvolvidos” subiu 25%.
A explosão de preços foi explicada por: 1) Aumento da produção de biocombustíveis e
manutenção de subsídios nessa área entre os países ricos,20 como os EUA (o álcool
combustível implica no uso do milho para a fabricação de etanol, nos EUA, sendo um dos
principais responsáveis pela inflação alimentar, ao reduzir outros cultivos);21 2) Incremento
nos custos no setor agropecuário com alta do petróleo e dos fertilizantes; 3)
Enriquecimento e mudança na dieta em países “emergentes”, com os consumidores
passando a comer mais proteína (carnes), cuja produção exige carboidratos (grãos); 4)
Mau tempo e quebra de safra em vários países; 5) A crise nos mercados imobiliários e de
ações levou a especulação capitalista para Bolsas de mercadorias que negociam
contratos futuros, lastreados em preços de commodities, como alimentos e metais,
inchando os preços. Essa enumeração indica fatores conjunturais, sem relacioná-los
mutuamente.
Segundo a FAO, existem 82 países (o que, descontados os Estados minúsculos, perfaz
metade dos países do planeta) com déficits alimentares associados à pobreza das suas

20
Para se obter um litro de bioetanol se necessitam 4 000 litros de água. A OCDE afirmou que, para substituir
10% da demanda atual de combustíveis na UE, teria que se usar 70 % da superfície agrícola européia.
Alemanha é o maior produtor de agro-diesel na Europa, produzindo quase 2 bilhões de litros, cobrindo com
eles apenas 2 % do consumo de diesel do país, mas usando para isso 10 % da área total cultivada. Segundo
Holtz-Giménez: “Los combustibles renovables deberán proveer el 5,75% del combustible para transporte de
Europa hasta el 2010; y el 10% hasta el 2020. El objetivo de los Estados Unidos es alcanzar los 35 billones de
galones por año (aproximadamente 132 billones de litros por año). Estas metas sobrepasan significativamente
la capacidad agrícola del Norte industrializado. Bajo este contexto, Europa requeriría destinar 70% de sus
tierras agrícolas a la producción de cultivos para la producción de agro-combustibles. Toda la cosecha de
maíz y soya de los Estados Unidos necesitaría ser procesada como etanol y biodiesel. Los países del Norte
esperan que los países del Sur satisfagan sus requerimientos de combustibles, y sus gobiernos parecen estar
ansiosos por obedecer” (os “bilhões” do espanhol correspondem aos “trilhões” do português).
21
O Brasil tem 357 usinas de açúcar e álcool em operação, 43 em construção e outras 244 em fase de
planejamento. Os investidores externos dominam 35% do mercado. No Brasil, a indústria sucro-alcooleira foi
um setor tradicionalmente familiar. A maior multinacional do agronegócio, a Cargill, comprou uma usina em
2006. Empresários norte-americanos e alemães criaram o maior grupo produtor e exportador de álcool
combustível do país, com investimentos de US$ 8,4 bilhões na construção de 24 usinas de álcool, um
consórcio encabeçado pela norte-americana Sempra Energy, uma das maiores empresas de gás natural, e
pela alemã Manferrostal. Utilizariam 700 mil hectares de terra no Tocantins, outros 800 mil hectares no
Maranhão, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, se aproximando das áreas protegidas da Amazônia e do
Pantanal. O grupo inglês Infinity Bio-Energy, por sua vez, gastou US$ 700 milhões em aquisição de usinas.

19
populações. No agregado, esses países produzem um total de 906 milhões de toneladas
de cereais, mas necessitam de outros 83 milhões para cobrir as suas necessidades. Uma
parte da diferença é obtida com importações e outra com a ajuda internacional. Estima-se
que esse déficit deverá custar para o conjunto desses países um total de US$ 38,6
bilhões sendo US$ 22 bilhões só para o trigo. A situação mais crítica é a da África cujo
déficit alimentar em cereais chega a 25% do consumo, o que demandaria US$ 17,8
bilhões de importações.
Para Walter Belik (do Instituto de Economia da Unicamp), “pelas contas da ONU, seriam
necessários "apenas" US$ 30 bilhões para promover esse New Deal alimentar a cada
ano, o que parece pouco diante do que se está despejando para salvar o sistema
financeiro. O tema entrou na pauta na Conferência de Cúpula de Roma, realizada com a
participação de 180 países, mas não resultou em nada e nem consta na declaração final.
Aparentemente faz falta uma instituição mundial que possa passar o chapéu e coordenar
essa política” (grifo nosso). A expressão “passar o chapéu” (com todo seu humilhante
conteúdo) não está aí por acaso, ela expressa uma ideologia para a qual um quinto da
população mundial não passaria de pedintes (e precisaria de intermediários até para
exercer essa função mendicante).
Segundo Ariovaldo de Oliveira (da Geografia-USP), a crise alimentar tem sua base nos
processos monopolistas (capitalistas) que comandam a produção agrícola mundial: a
territorialização dos monopólios da indústria da alimentação, que atuam simultaneamente
no controle da propriedade privada da terra, do processo produtivo no campo e do
processamento industrial da produção agropecuária (o principal exemplo é o setor sucro-
alcooleiro), e a monopolização do território pelas empresas de comercialização e
processamento industrial da produção agropecuária, que controlam camponeses e
capitalistas produtores agrários. As empresas monopolistas do setor de grãos atuam no
mercado futuro das Bolsas de mercadorias do mundo, e têm também o controle
monopolista da produção dos agrotóxicos e dos fertilizantes.
A crise, nessa visão, teria dois fundamentos. O primeiro, de reflexo mais limitado, refere-
se à alta dos preços internacionais do petróleo e, conseqüentemente, à elevação dos
custos dos fertilizantes e agrotóxicos (de fato, entre 2008 e 2009 o preço do barril caiu em
50%, contrariando essa tendência). O segundo é conseqüência do aumento do consumo,
não do alimento, mas dos EUA para a produção do etanol a partir do milho. Esse caminho
levou à redução dos estoques internacionais do cereal, e à elevação de seus preços e
dos preços de outros grãos (trigo, arroz, soja). Assim, a "solução" norte-americana contra
o aquecimento global se tornou o paraíso dos ganhos fáceis dos monopólios
internacionais que sujeitam produtores e consumidores à sua lógica de acumulação.
Com a crise de outros setores (imobiliário e construção) o setor alimentar se transformou
em campo privilegiado da especulação, com alta das commodities provocada pela
especulação de fundos de investimento: o volume de transações de café no mercado de
commodities, por exemplo, é de 20 vezes o total produzido. Depois do pico da alta,
atingido em meados de 2008, porém, não se produziu um retorno aos níveis precedentes,
mas uma “estabilização” em altos patamares.
O preço das matérias primas alimentares subiu 150% entre 2002 e 2008 (50% somente
entre 2006 e 2008): os aumentos se aceleraram num ritmo crescente, desproporcional à
evolução da oferta e da demanda, num quadro de recordes históricos das colheitas
(aumento da oferta). Os salários sequer se aproximaram a esse ritmo, o que significa que
assistimos a um confisco absoluto da renda dos trabalhadores por parte do capital. Essa
expropriação dos salários para manter a taxa média mundial de lucro do capital é uma

20
das saídas capitalistas para a queda dessa taxa, ou seja, na origem da onda inflacionária
dos gêneros de primeira necessidade encontramos a própria crise do capital.
Prognósticos e Incertezas
Em 2009, o número de pessoas afetadas pela fome ultrapassou a cifra simbólica de um
bilhão (150 milhões a mais do que em 2003), ou seja, pouco menos de um sexto da
população mundial, encerrando um período de mais de 20 anos em que vinha caindo, em
parte como resultado dos projetos contra a pobreza em economias como a Índia, a China
e o Brasil. A crise mundial fez com que os países (entre 40 e 50) que elaboraram
programas de ampliação da produção alimentar por pequenos agricultores fossem
“imobilizados” devido à falta de financiamento (de “doadores”).
As previsões sombrias da FAO foram superadas: antes, previa-se que um bilhão e 300
milhões de pessoas passaria fome em 2020 (a cifra foi quase atingida uma década antes).
O percentual de desnutridos se situou em 16% da população mundial, retornando ao nível
do período de 1990-92 (entre 2003 e 2005, a população subnutrida, pessoas que
consomem menos de 1800 calorias ao dia, era de 13%, a diferença de 3% significa o
ingresso na categoria de subnutridos de aproximadamente 200 milhões de pessoas).
A concorrência internacional para garantir fontes de suprimentos se acirrou, com os
“países ricos importadores de alimentos” comprando vastas áreas nos países pobres, por
via estatal ou privada: o Estado chinês comprou mais de 2 milhões de hectares nas
Filipinas e em Moçambique; Arábia Saudita meio milhão na Indonésia, através do Saudi
Binladin Group;22 a Daewoo (Coréia do Sul), 1,3 milhão de hectares em Madagascar, por
exemplo.
O aumento nos preços dos alimentos básicos, nos últimos dois anos (apesar de terem
recuado em relação aos níveis recorde de meados de 2008), foi de 24%, não como
resultado de colheitas menores (redução da oferta) já que a produção de alimentos de
2009 foi só levemente inferior ao recorde atingido em 2008. O menor aumento no número
de subnutridos, 10,5%, ocorreu na região da Ásia e do Pacífico, que já abriga, porém, o
maior número de subnutridos, 642 milhões (a pobreza tem menos espaço para avançar),
e também conseqüência do crescimento das economias de China, Índia e Indonésia. Nos
países desenvolvidos a fome deve avançar mais: alta de 15%. O total, porém, é bastante
inferior ao das demais regiões: 15 milhões de pessoas.
Na América Latina e no Caribe, o número de subnutridos deve chegar a 53 milhões, 8
milhões a mais do que no período 2004-2006, com alta de 13%. Na África subsaariana,
com 265 milhões de subnutridos, a alta seria de 11,8%. As metas postas para 2015,
reduzir o número mundial de subnutridos a 420 milhões, não será atingida em absoluto.
Os preços dos cereais estão 70% acima da média de 2005.23

22
Sem erro, são os Bin Laden mesmo (cf. Buying farmland abroad: outsorcing´s third wave. The Economist,
23 de maio de 2009). Os negócios da família parecem abranger desde a especulação imobiliária e de
commodities até a explosão de prédios em Manhattan, seguindo técnicas algo heterodoxas. Um verdadeiro
trust horizontal. Business as usual...
23
Descartada a ineficiente FAO, resta o Programa Alimentar da ONU como principal arma internacional de
combate à fome. Ora, a meta da ONU era alimentar 105 milhões de pessoas em 2009, usando US$ 6,4
bilhões (pouco mais de 60 dólares por pessoa!). Até o presente, recebeu só US$ 1,3 bilhão. Tradicionais
doadores, como os EUA, Europa e Japão, efetuaram um corte drástico nas remessas. Programas em várias
partes do mundo se viram afetados: na Coréia do Norte, a meta era de alimentar 6 milhões de pessoas em
2009, mas os recursos só atenderam 1,8 milhão. As cotas também foram reduzidas na Etiópia e no Quênia.
Em Uganda, a ONU suspendeu a distribuição de alimentos para 600 mil pessoas. Em Ruanda, reduziu os
cereais distribuídos de 420 gramas por dia/ pessoa para 320 gramas. E por ai vai... No total, a “ajuda”, por
todo conceito, dos países “ricos” aos “pobres” limitou-se, em 2007-2008, a US$ 29 bilhões (compare-se isso

21
Num alentado estudo, Döös e Shaw tentaram estabelecer projeções futuras para a
demanda e produção de alimentos, mantidas as atuais condições econômicas (“de
mercado”, ou capitalistas), sociais e de degradação ambiental, concluindo: “Dada a
extensão atual das terras agrícolas, e as incertezas na produção de alimentos trazidas
aproximadamente por mudanças globais: em 2025, a razão global entre
suprimento/demanda para os cereais pode ser tão baixa quanto 0,40, ou tão alta quanto
1,5, dependendo de qual nível de incerteza foi considerado; é provável que será possível
atingir em 2025 a demanda por cereais nas regiões dos países desenvolvidos”.
Com um grau muito elevado de incerteza (de 0,40, que equivale a uma catástrofe
alimentar, até 1,5, ou seja, super-abundância!) está claro, no entanto, que os países
“subdesenvolvidos” padecerão, mantidas as atuais condições econômico-sociais, fome
nas próximas décadas, e que estimativas que levem todos os fatores em jogo (inclusive a
crise ecológica, nas suas diversas manifestações) para realizar predições com um grau
mínimo de certeza, estão fora do alcance em um sistema econômico-social dominado
pelo “mercado”.
População Projetada durante o período 1990-2050, e taxa anual de crescimento populacional (em
milhões)

Região População Projetada Taxa anual de crescimento

1990 2025 2050 1990-2025 2025-2050

África 640 1519 2204 25,1 27,4

Ásia Central 1234 1587 1867 10,1 11,2

América Latina 442 669 812 6,5 5,7

Oriente Médio 143 384 557 6,9 6,9

Ásia de S. e de SE 1553 2634 3214 30,9 23,2

Total dos “Países Subdesenvolvidos” 4012 6969 8674 79,5 68,2

América do Norte 276 330 322 1,54 -0,3

Europa Ocidental 456 489 477 0,9 -0,5

Ex-URSS 289 332 349 1,2 0,7

Europa Oriental 100 115 121 0,4 0,2

Japão, Austrália e Nova Zelândia 145 161 157 0,5 -0,2

Total dos “Países Desenvolvidos” 1265 1427 1426 4,6 0

Mundo 5277 8396 10.080 84,1 67,4


Fonte: DÖÖS, Bo R.; SHAW, Roderick. Can we predict the future food production? A sensitive analysis. Global
Environmental Change nº 9, 1999.
Segundo os autores, “é altamente improvável que a demanda por cereais possa ser
alcançada nas regiões dos países em desenvolvimento, especialmente quando as

com os mais de US$ 18 trilhões – declarados – de ajuda desses mesmos países aos bancos e empresas “em
dificuldades”, no mesmo período). As grandes corporações capitalistas receberam em um ano quase dez
vezes mais recursos do que todos os países pobres em quase meio século: US$ 2 trilhões em 49 anos para
os pobres e US$ 18 trilhões em um ano para os bancos.

22
incertezas ocasionadas por modificações globais são consideradas; uma adição de 10%
no potencial de terras cultivadas em 2025 não pode aumentar significantemente as
possibilidades de que a demanda por cereais seja atingida nas regiões dos países em
desenvolvimento”.
Demanda estimada de cereais e outros cultivos em 2025 para dietas de Nível 1 e Nível 2 (milhões de toneladas)

Região Cereais Outros Cultivos

Nível 1 Nível 2 Nível 1 Nível 2

África 317 376 779 912

Ásia Central 527 596 610 687

América Latina 189 209 1125 1188

Oriente Médio 143 148 2003 2083

Ásia de S. e de SE 631 742 1189 1392

Total dos “Países Subdesenvolvidos” 1808 2071 3902 4387

América do Norte 307 308 256 256

Europa Ocidental 262 262 516 516

Ex-URSS 268 261 368 360

Europa Oriental 91 91 149 149

Japão, Austrália e Nova Zelândia 65 58 116 104

Total dos “Países Desenvolvidos” 991 980 1404 1385

Mundo 2799 3051 5306 5772


Nível 1 – Suficiente para manter o consumo per capita atual, com ingestão diária de alimentos é de cerca de 2500
kcal/pessoa nos países subdesenvolvidos, e de 3400 Kcal/pessoa nos desenvolvidos.
Nível 2 – Suficiente para assegurar a segurança alimentar. Este nível de demanda por alimentos requer um aumento
na produção de alimentos para permitir o aumento do consumo diário, nos países subdesenvolvidos, de 2500 para
um mínimo de 3000 kcal/pessoa.
Fonte: DÖÖS, Bo R.; SHAW, Roderick. Can we predict the future food production? A sensitivy analysis. Global
Environmental Change nº 9, 1999.

A criação de estoques reguladores mundiais de alimentos voltou, como em 1943, à baila


(o debate sobre a questão fez parte da agenda do G8+5 reunido em julho de 2009, na
Itália). Mas a proposta encontra hoje muitas mais dificuldades que há seis décadas e
meia, ou seja, pouco (ou nada) resolve no imediato, e abre mais frentes de crise entre
países produtores (exportadores) e consumidores, ou entre países industrializados e
países exportadores de matérias primas. Parte-se da constatação de que seria preciso
dobrar a produção de cereais para alimentar a população global, que atingirá mais de dez
bilhões de pessoas em 2050.
O Japão, maior importador mundial, é o maior defensor dos estoques reguladores. Alguns
parlamentares nos EUA sugeriram até a localização regional de estoques. A proposta é
defendida como ajuda no combate a especuladores nos mercados de commodities. Por
trás dela, porém, esconde-se (mal) um aspecto da guerra alimentar (isto é, comercial)
mundial, entre os países metropolitanos e os “subdesenvolvidos”, e entre os próprios
países “desenvolvidos”, referida: a) ao controle dos estoques reguladores; b) à sua
própria localização. O controle (econômico, político e até geográfico, ou geopolítico)

23
desses estoques, daria ao país controlador uma arma de poder devastador na
concorrência mundial.
Para uma demanda estimada entre 2,8 e 3,05 bilhões de toneladas, a produção mundial
de grãos (milho, sorgo, cevada, aveia e centeio) foi de 2,12 bilhões de toneladas em
2007/2008, e de 2,21 bilhões de toneladas em 2008/2009, com um crescimento de 4,2%
(ela era de 1,77 bilhões de toneladas em 1990). Os estoques finais mal ultrapassam 7%
da produção total.
Brasil declarou sua desconfiança em relação aos estoques reguladores, achando que os
grandes produtores é que acabarão “pagando a conta” (pois deixariam de se beneficiar da
alta dos preços agrícolas), e pôs em questão os subsídios agrícolas praticados pelos EUA
e Europa. Não se trata só de uma disputa pela renda diferencial entre países
“desenvolvidos” e “subdesenvolvidos”, mas também dos interesses dos monopólios
produtores de fertilizantes, agrotóxicos e sementes transgênicas, ou seja, de uma disputa
entre monopólios, onde a questão “antiimperialista” e, sobretudo, a das populações
famintas, ocupa um lugar secundário. A fome só “aparece” quando ameaça se
transformar num terremoto social, em especial na África, e numa crise internacional.

24
Água, Biocombustíveis, Subsídios
A água é a outra face do drama alimentar. 1,3 bilhão de pessoas no mundo (mais de um
sexto da população mundial) não dispõe de água potável, e 2,6 bilhões não têm acesso
ao saneamento básico. No entanto, em 2050, pela projeção do SIWI (Instituto
Internacional da Água), a quantidade de água necessária para a fabricação de
biocombustíveis (que consomem 100 milhões de toneladas de cereais, 5% da produção
global) equivaleria à requerida pelo setor agrícola para alimentar o conjunto da população
mundial. No Brasil, os defensores dos biocombustíveis se apóiam em estudos que
afirmam que a cana de açúcar (para etanol) avança nas pastagens, sem reduzir a
produção de alimentos.
Resta a estabelecer a correlação existente entre esse avanço e o fato de que os estoques
públicos de alimentos caíram para níveis mínimos nos últimos anos, aumentando a
vulnerabilidade em relação a qualquer problema climático. Há 20 anos, os estoques
mensais de feijão eram de 113 mil toneladas (média, em 1987/88); em 1997/98, esses
estoques médios mensais se reduziram para 28 mil toneladas; finalmente, em 2007/08 as
médias mensais caíram para apenas 3 mil toneladas, representando apenas 8,4% da
demanda. O preço do feijão carioca aumentou 109% em um ano (maio 2007-maio 2008).
A produção dos três alimentos básicos no país - arroz, feijão e mandioca - não cresceu
desde a década de 1990, e o Brasil se tornou o maior país importador de trigo do mundo.
É no interior desse gargalo que a questão dos agro-combustíveis e da produção de
alimentos se vincularam diretamente. A área plantada de cana-de-açúcar na safra de
2007 chegou perto de 7 milhões de hectares e, em São Paulo, onde se concentra mais de
50% do total, ocupou a quase totalidade dos solos mais férteis existentes. As
conseqüências, para a produção de alimentos no Brasil, da expansão da cultura da cana,
ficaram claras: entre 1990 e 2006 houve redução da produção dos alimentos imposta pela
expansão da área plantada de cana-de-açúcar, que cresceu, nesse período, mais de 2,7
milhões de hectares.
Tomando-se os municípios que tiveram a expansão de mais de 500 hectares de cana no
período, verifica-se que, neles, ocorreu a redução de 261 mil hectares de feijão e 340 mil
hectares de arroz. Essa área reduzida poderia produzir 400 mil toneladas de feijão (12%
da produção nacional) e um milhão de toneladas de arroz, o que equivale a 9% do total do
país. Além disso, reduziram-se nesses municípios a produção de 460 milhões de litros de
leite e mais de 4,5 milhões de cabeças de gado bovino. A expansão da cana foi mais
concentrada em São Paulo, mas também no Paraná, em Mato Grosso do Sul, no
Triângulo Mineiro, em Goiás e em Mato Grosso. Nesses Estados, reduziu-se a área de
produção de alimentos agrícolas e se deslocou a pecuária na direção da Amazônia. A
expansão dos agro-combustíveis gerou redução da produção de alimentos.24
A força do biocombustível, no entanto, parece inabalável: o país tem cerca de 350
milhões de hectares de terras aráveis, as lavouras ocupam área em torno de 63 milhões

24
Certamente, o problema é mundial. Disse Miguel A. Altieri: “La agricultura mundial está en una encrucijada.
La economía global impone demandas conflictivas sobre las 1.500 millones de hectáreas cultivadas. No sólo
se le pide a la tierra agrícola que produzca suficientes alimentos para una población creciente, sino también
que produzca biocombustibles y que lo haga de una manera que sea ambientalmente sana, preservando la
biodiversidad y disminuyendo la emisión de gases de invernadero, mientras aun represente una actividad
económicamente viable para todos los agricultores”. O conflito só foi posto às claras através de uma crise
econômica mundial, que remete não apenas para a questão do “uso” da terra fértil, mas para a natureza social
do processo de produção.

25
de hectares, sendo 7,8 milhões de cana de açúcar.25 A produção de etanol no Brasil na
safra 2006/2007 foi de 21,30 bilhões de litros, 21,90% maior que a anterior. A área
ocupada com cana-de-açúcar no Brasil na safra 2007/2008 foi de 6,92 milhões de
hectares, superior em 12,30 % à safra anterior. Lula propôs o lançamento de uma
campanha internacional em defesa do biocombustível, sem relacionar a onda inflacionária
alimentar com as perspectivas dos programas sociais, nem com a falência do projeto de
acabar com a fome do mundo, espalhando a produção de biocombustível nos países
pobres.
Segundo o FMI, mais da metade do aumento da demanda por milho em todo o mundo,
em 2004-2007, teve como causa o crescimento da produção de álcool nos EUA. Os
países asiáticos com base na alimentação de arroz sofreram o seu aumento de quase
150% entre 2007 e 2008. Na Tailândia, com um excedente de 10 milhões de toneladas
em relação à demanda interna, e maior exportador mundial do produto, os supermercados
estipularam limites para a compra de arroz.
Em 33 países, mais da metade da renda das famílias é comprometida com alimentos.
Com a desregulamentação dos mercados financeiros, houve uma redução nos estoques
públicos voltados a mitigar desequilíbrios entre a oferta e a demanda. Os estoques
globais de comida estão no menor patamar do último quarto de século: a sua
disponibilidade é crucial para conter a alta de preços em um mercado sujeito aos efeitos
das mudanças climáticas. A isso se soma a política de subsídios agrícolas praticada pelos
países metropolitanos. Os elevados subsídios da Europa e dos EUA inibiram
investimentos em novas plantações ou em tecnologia para tornar as terras aráveis,
especialmente nos países periféricos. Nos EUA, novas leis agrícolas são aprovadas no
Congresso, com mais subsídios aos agricultores. Em 2001, culturas de cereais,
oleaginosas e algodão, além da produção de leite e açúcar, foram beneficiadas com
recursos públicos da ordem de US$ 73,5 bilhões em dez anos, ou seja, US$ 7,5 bilhões
de acréscimo anual aos subsídios de US$ 32 bilhões, já concedidos anualmente.26
A falta de água e saneamento afeta 15% e 40%, respectivamente, da população mundial.
1,8 milhão de crianças morre anualmente de diarréia. Até os países ricos já enfrentam

25
A tendência não é só brasileira, mas mundial, e afeta também o de pesquisa e inovação. Segundo Holt-
Giménez: “En Brasil – donde los cultivos destinados a la producción de agro-combustibles ya ocupan una
superficie similar a la extensión conjunta de los Países Bajos, Bélgica, Luxemburgo y Gran Bretaña – el
gobierno está planeando incrementar en cinco veces la extensión dedicada a la producción de caña de azúcar
con el fin de reemplazar el 10% de la gasolina del mundo hasta el 2025. La rápida capitalización y
concentración del poder dentro de la industria de los agro-combustibles es asombrosa. Del 2004 al 2007, el
capital invertido en agro-combustibles se ha incrementado ocho veces. La inversión privada está invadiendo
las instituciones públicas de investigación, como evidencia está el medio billón de dólares que la compañía
British Petroleum (BP) otorgó a la Universidad de California. En una abierto desafío a las leyes nacionales
anti-monopolio, gigantes corporaciones de petróleo, granos, vehículos e ingeniería genética están formando
poderosas alianzas: ADM con Monsanto; Chevron y Volkswagen; también BP con DuPont y Toyota. Estas
corporaciones están consolidando la investigación, producción, procesamiento y canales de distribución de
alimentos y sistemas de provisión de combustibles bajo un colosal techo industrial”.
26
Um trabalhador rural na Argentina, por exemplo, ganha US$ 300 por mês. O mesmo trabalhador ganha na
Espanha US$ 2000: qualquer produto agropecuário custa bem menos para ser produzido na Argentina do que
na Europa (fazendo abstração das diferenças de fertilidade natural do solo e de investimento tecnológico).
Mas, devido aos subsídios, a produção européia pode ser vendida por preços tão competitivos como a dos
países nos quais o salário é de US$ 300, ou menos. Além disso, os países ricos impõem barreiras tarifárias e
não-tarifárias para impedir importação dos produtos agrícolas. Desde a criação do GATT, há 50 anos, as
tarifas médias mundiais de importação de manufaturados caíram de 40% para 4%. Enquanto isso, as tarifas
sobre produtos agrícolas mantiveram-se em 40%. A produção de milho, nos EUA, 25% destinado para etanol,
se beneficia de dois tipos de subsídio, um na produção, e outro que barra as importações. O preço do bushel
(25,4 quilos) de milho, no país, já superou US$ 5, contra uma média de US$ 2 das últimas décadas.

26
graves problemas com os recursos hídricos. Métodos sofisticados de irrigação, que só
aplicam água na quantidade exigida pelas plantas, são utilizados em apenas 1% da área
irrigada mundial. O cultivo de arroz no Sudeste asiático, que concentra 90% dessa
cultura, sofre com escassez de água. Para um índice 100 em 1950, a disponibilidade de
água potável se situa atualmente entre pouco menos de 60 (para os países
“desenvolvidos”) e pouco menos de 20 (para os países “subdesenvolvidos áridos”).
Em 20 anos, segundo a ONU, 48 países deverão enfrentar escassez ou falta extrema de
água, o que afetaria uma população de 2,8 bilhões de pessoas. 25 % da população
mundial está em países que se aproximam da condição de falta extrema de água (menos
de 1.000 metros cúbicos por habitante/ano, considerado o mínimo necessário para a
sobrevivência). O Brasil, com aproximadamente 12% de toda a água doce superficial do
planeta, é um dos países mais ricos do mundo em disponibilidade de água, igualando-se
a países como Suécia e Finlândia.27 Do mais de um bilhão de pessoas que sofre com a
escassez de água, 660 milhões vivem abaixo da linha de pobreza, com um rendimento
inferior a US$ 2 por dia.
Renda Universal e Renda Mínima Focada
No século XX, o alcance geral da pobreza e da fome (não poupando às metrópoles
capitalistas) fez sistematicamente surgirem teorias e propostas para combatê-la,
inspiradas por preocupações humanitárias e, cada vez mais, como vimos, por “questões
de segurança” (social e política). A idéia da “renda mínima social” é antiga: o “Princípio de
Pigou-Dalton” (ideado pelo economista francês A.C. Pigou, em 1912) postulou que uma
transferência de renda de um indivíduo mais rico para um indivíduo mais pobre, desde
que essa transferência não invertesse a posição (social) entre os dois, resultaria em uma
maior igualdade social. Dalton propôs a teoria de uma relação funcional positiva entre
renda e bem estar social, concluindo que o bem estar social cresceria a uma razão
exponencialmente decrescente em relação ao crescimento da concentração da renda, o
que levaria à conclusão que o máximo bem estar social só seria atingido quando todas as
rendas fossem iguais.
A idéia de renda universal básica foi defendida por Ernest Mabel e Dennis Milner, em
1919; pelo trabalhista inglês George D. H. Cole, em 1935; pelo Prêmio Nobel de
Economia de 1977, o inglês James E. Meade (autor de Liberty, Equality and Efficiency);
por Oskar Lange (marxista polonês), em 1936; por Joan Robinson (economista
keynesiana), em 1937 e por Abba P. Lerner, em 1944. O liberal Friedrich A. Von Hayek,
em 1944, defendeu "a salvaguarda contra graves privações físicas, a certeza de que um
mínimo de meios de sustento será garantido a todos". George Stigler, em 1946, propôs
que o imposto de renda negativo seria a melhor maneira de proteger a remuneração dos
que, de outra forma, ganhariam muito pouco.
Milton Friedman popularizou a defesa do imposto de renda negativo, em 1962, como “o
mais eficaz instrumento para combater a pobreza”. Em 1968, John K. Galbraith, James
Tobin e Paul A. Samuelson (também Prêmio Nobel de Economia) lideraram um manifesto,
assinado por 1.200 economistas, solicitando ao Congresso dos EUA que aprovasse um

27
No país, 91% da população urbana está ligada a redes de água, percentual que cai para 22,7 % nos
domicílios rurais; 51,6 % dos domicílios urbanos dispõem de redes coletoras de esgotos; 23,3 %, de fossas
sépticas; e 18,1 %, de fossas rudimentares (o PNUD considera 75 % da população atendida com
"saneamento adequado"); nas zonas rurais, apenas 3,2 % dos domicílios se ligam a redes de esgotos; 32,9 %
não dispõem delas nem de fossas. Nas cidades, mais de 12 milhões de pessoas não têm redes de água, 70
milhões não contam com redes de esgotos. Dos esgotos coletados, 65 %, ou quase 10 milhões de metros
cúbicos por dia, não recebem tratamento, são despejados in natura, nos rios e no ar. A quase totalidade das
pessoas desprovidas de redes de água e de esgoto está nas faixas mais pobres da população.

27
sistema nacional de suplementação e de garantia de renda. Como se vê, trata-se de uma
proposta que abrangeu o mais amplo leque ideológico.
A partir de 1983, Philippe Van Parijs e Robert Van der Veen, economistas belgas,
começaram a defender um “subsídio universal”, apresentando-o explicitamente como
alternativa ao socialismo marxista (na medida em que este preconiza uma transição
socialista baseada na ditadura do proletariado), chamando-o até de “via capitalista ao
comunismo” e, sobretudo, questionando que “a classe operária, inclusive quando definida
amplamente, seja a força social com a qual a esquerda deveria identificar-se e se alinhar
sistematicamente”. O fundamento político da proposta tomava base no fracasso (embora
ainda não derrubada) do “socialismo real”, assim como nos fracassos (eleitorais ou
políticos) da socialdemocracia na Europa ocidental (especialmente na Inglaterra e na
França). Teoricamente, apontava que “o argumento teórico central em favor da
superioridade do socialismo para o desenvolvimento produtivo é defeituoso. Ademais, as
provas empíricas não são muito alentadoras”. Van Parijs e Van der Veen argumentavam
também contra as “rendas sociais compensatórias”, portadoras do estigma social dos
seus beneficiários e da “armadilha do desemprego”.
Como alternativa (ao socialismo e aos programas sociais compensatórios) propunham
“uma renda garantida sob a forma de um subsídio universal, concedido
incondicionalmente a todos os cidadãos... Uma vez que os cidadãos tenham um direito
absoluto a esse subsídio, quaisquer que fossem seus ingressos de outras fontes,
começariam a obter uma renda neta adicional tão logo quanto realizassem qualquer
trabalho, por pequeno e mal pago que fosse. Combinado com algum tipo de
desregulamentação do mercado de trabalho (ausência de obstáculos administrativos para
o trabalho de meio período, ausência de salário mínimo obrigatório, ausência de idade de
aposentadoria obrigatória, etc.), o subsídio universal permitiria que o emprego
remunerado crescesse muito mais do que na atualidade. Por conseguinte, se a renda
garantida adotasse esta forma, sua expansão não teria porque gerar fortes tensões entre
os que trabalham em excesso e se sentem explorados, e os que carecem de trabalho e
se sentem excluídos”.
Van Parijs e Van der Veen concluíam em que “se o objetivo é chegar ao comunismo
desde uma sociedade capitalista, isto será feito aumentando todo o possível a renda
garantida na forma de um subsídio universal, em termos absolutos o relativos... O
comunismo se atinge quando o produto social total se distribui sem levar em conta as
contribuições individuais, não quando a parte que recebe cada indivíduo,
independentemente de sua contribuição, atinge um limiar absoluto”.
Não deixa de ser paradoxal que se argumentasse pela desregulamentação do mercado
de trabalho, e até contra o piso (ou mínimo) salarial, em nome do comunismo, exatamente
no momento em que o “neoliberalismo” iniciava sua arremetida em favor desses
preceitos, certamente que não para “chegar ao comunismo”. Olin Wright criticou, nos
autores citados, a separação dos princípios distributivos do comunismo (que seriam
atingidos através do subsídio universal) da propriedade coletiva dos meios de produção e
do planejamento associado da vida social e econômica, assim como o caráter, no mínimo
duvidoso, dos critérios fiscais pelos quais o subsídio universal seria financiado.
Depois de argumentar, bastante solidamente, contra a viabilidade econômica e política de
uma transição ao comunismo no quadro das relações institucionais e sociais do
capitalismo, Olin Wright concluiu que “por uma combinação de razões econômicas e
políticas, a via capitalista ao comunismo é inverossímil e, por razões políticas, é mais
provável que uma via socialista tivesse mais sucesso que uma via mista. A via puramente
capitalista é impossível porque a evasão de capital socavaria imediatamente a base

28
econômica do modelo de subsídios universais indutores do comunismo, e inclusive no
caso de que se resolvesse este problema, o uso político do desinvestimento tornaria não
reprodutível o sistema. A via mista, que combina elementos das relações de propriedade
capitalistas e socialistas, é economicamente viável, mas seria politicamente precária. Só
em uma sociedade socialista seriam as condições políticas de um crescimento dos
subsídios universais bastante estáveis como para tornar provável o avanço para o
comunismo. Esta conclusão se baseia no suposto (de que) o socialismo é em si
inequivocamente compatível com o surgimento e desenvolvimento do comunismo, e que
a propriedade coletiva dos meios de produção pelos trabalhadores é compatível com um
crescimento gradual do «reino da liberdade», do predomínio da distribuição segundo as
necessidades”.
Ora, segundo o autor “o suposto de que o socialismo é compatível com o crescimento do
comunismo descansa sobre dois enunciados mais básicos: que a eliminação das relações
capitalistas de propriedade não produz necessariamente formas burocrático-autoritárias
de Estado e da política; que no socialismo democrático a produtividade seguirá crescendo
(sem esse crescimento da produtividade resulta problemática a expansão da distribuição
segundo as necessidades)”.
Alec Nove, por sua vez, além de questionar a estrutura teórica dos economistas belgas,
argumentou simplesmente a inviabilidade econômica (mantidas as relações capitalistas)
do subsídio universal por eles proposto (ele implicaria em 75 bilhões de libras anuais de
gastos sociais estatais na Inglaterra de 1987, por exemplo). Joseph Carens declarou,
também, que “a lógica interna do capitalismo torna impossível a transformação que
perseguem (os economistas belgas)”, chegando a questionar até a progressividade de um
“subsídio universal” sob o capitalismo.
Segundo Carens: “Van der Veen e Van Parijs sublinham a diferença entre uma «renda
compensatória garantida» e um «subsídio universal», mas há bastante menos
controvérsia a respeito do que eles admitem. Quase todos consideram indesejável que os
programas de assistência social criem desincentivos econômicos para que as pessoas
trabalhem meio período, ou em empregos mal pagos. Por outro lado, os custos de uma
renda garantida na forma de «subsídio universal» são muito maiores do que admitem Van
der Veen y Van Parijs. Eles afirmam que um programa de subsídios universais seria mais
barato que uma renda compensatória garantida, porque os subsídios universais
eliminariam os desincentivos ao trabalho da renda compensatória garantida. Mas há
diversos estudos teóricos e empíricos que não estão de acordo com isso (e) demonstram
que os subsídios universais levam a uma redução significativa da renda de muitas
famílias da classe operária”.
Por isso: “É possível usar a renda compensatória garantida para reduzir os desincentivos
ao trabalho (e muitos dos programas existentes de proteção às rendas baixas assim o
fazem). Assim, só pelos incentivos, os subsídios universais poderiam ser mais caros. Mais
importante é que os subsídios universais ofereceriam benefícios netos (o subsídio menos
os impostos pagos para financiar o programa) a muita mais gente da que receberia
benefícios com um programa de renda compensatória garantida. Provavelmente, toda a
classe operária ganharia com isso. Mas esse dinheiro tem que vir de alguma parte.
Afirmar que estes gastos poderiam ser sufragados totalmente com os impostos sobre a
renda das pessoas que não trabalhariam dentro do programa é pouco realista. Por
conseguinte, para qualquer nível de ajuda aos membros mais necessitados da sociedade
(os pobres sem trabalho) custaria muito mais um sistema de subsídios universais do que
uma renda compensatória garantida (especialmente se ela proporciona algum incentivo
ao trabalho). Ou seja, que para qualquer nível de gasto social em transferências de renda,

29
podemos conseguir um grau maior de ajuda aos mais necessitados mediante uma renda
compensatória garantida do que mediante subsídios universais”.
Para Adam Przeworski, a proposta de Van der Veen e Van Parijs expressaria “no máximo,
um desejo piedoso”. Calculando a subsistência como equivalente a metade da renda
média, concluiu que, nos países da OCDE, seria necessário elevar os impostos em perto
de 20% do PIB para financiar o subsídio universal, o que seria incompatível com um
“capitalismo democrático”. Jon Elster, por sua vez, declarou-se “completamente
incrédulo”, chegando a acusar os belgas de “darwinismo social”: “As experimentações são
úteis e inclusive necessárias se a idéia que as subjaz é considerada válida em geral (mas)
são inúteis se o seu objetivo for simplesmente proporcionar argumentos para alguma
analogia social da seleção natural. A sociedade não pode subscrever as idéias prediletas
de cada entusiasta que ofereça uma panacéia para nossos problemas”.
O aluvião destas e outras críticas, levou Van der Veen e Van Parijs a uma resposta em
que as questões econômicas e políticas postas pelo “subsídio universal” foram postas
num terreno tão hipotético e fantasioso que toda conexão com a sociedade e economia
reais tornou-se arbitrária, só apta para debates acadêmicos com um público restrito. O
mais significativo foi que, diante da objeção da inviabilidade prática de um subsídio
universal suficiente sob o capitalismo, Van der Veen e Van Parijs respondessem que
“essas medidas implicariam algum grau de controle social sobre o capital e, pelo menos,
um certo «socialismo». Por outro lado, não é em absoluto fantasioso imaginar que essas
medidas deflagrariam um processo que só poderia acabar na nacionalização em grande
escala dos meios de produção. Pois com restrições drásticas à exportação de capital é
provável não só que cessasse o investimento estrangeiro, mas também que os
investidores nacionais se unissem de forma concertada para conseguir a supressão
dessas medidas. Supondo que seja realmente correto que uma economia capitalista
aberta seria incapaz de proporcionar permanentemente um subsídio universal adequado
sem introduzir essas medidas, só o socialismo poderia dar cabida de forma viável a esse
subsídio”.
E os autores se perguntaram: “É tão evidente que a introdução de um subsídio universal
adequado afugentaria o capital? Nada nos obriga a gravar todas as rendas igualmente,
independentemente de sua procedência. Um subsídio universal adequado poderia
financiar-se mediante um elevado imposto sobre os salários, sem gravar os lucros em
absoluto. Ou, alternativamente, poderiam se taxar os lucros só na medida em que fossem
consumidos, por exemplo substituindo o imposto de renda por um imposto sobre o gasto,
o estabelecendo uma alta isenção fiscal para os novos investimentos”.
Em resumo, o “subsídio universal” poderia ser simplesmente uma transferência de renda
dos assalariados (ou dos assalariados melhor remunerados) para os desempregados,
eventualmente também para os assalariados super-explorados (de mais baixa
remuneração) sem tocar nos lucros do capital (o imposto sobre o gasto, ou consumo,
afeta todas as camadas sociais e, no caso brasileiro, afeta mais os assalariados de menor
renda), até estimulando, mediante renúncia fiscal, o investimento capitalista. O que
começara como uma “transição para o comunismo” por via capitalista, transformou-se
(graças ao debate, que é sempre bom) numa proposta de capitalismo neoliberal
selvagem, com liberdade de movimentos para o capital isento de taxação, e fortes taxas
sobre o salário para manter vivo o exército industrial de reserva (condição da acumulação
capitalista) e a segurança (dos negócios). Os produtos dos laboratórios da Université
Catholique de Louvain são decididamente audaciosos.
A ênfase na luta “focalizada” contra desigualdade, criticando as políticas públicas
universalistas, nasceu da consideração de que, em função da estrutura desigual da

30
distribuição da renda, os recursos não chegariam até os mais pobres, devendo, portanto,
serem distribuídos a partir de “políticas focadas”. Diversamente, a “Renda Básica de
Cidadania”, ou renda mínima, seria uma quantia paga em dinheiro incondicionalmente a
cada cidadão pertencente a uma determinada região ou país. O valor seria distribuído
pelo poder público de forma igualitária, não importando o nível social ou disposição para o
trabalho de quem recebe. A retribuição garantiria o direito inalienável de todos usufruírem
de uma parte das riquezas produzidas.28 Os recursos poderiam ser captados de diversas
formas: arrecadação de impostos, taxa sobre concessões de extração de recursos
naturais, supressão de outros mecanismos de transferência de renda, loterias. A sua
implantação visaria propiciar a todos a garantia de suas necessidades básicas.29
As políticas prevalecentes, no entanto, foram as “focadas”. Nos EUA foi implantado um
Programa de Ajuda Alimentar, que opera por meio do fornecimento de cupons ou cartões
eletrônicos que são utilizados para compras de alimentos em varejistas previamente
cadastrados. Em 2001, por exemplo, atendeu 7,3 milhões de domicílios e 17,2 milhões de
pessoas por mês, tendo custado US$ 1,25 bilhão/mês. Os cupons não podem ser usados
para comprar bebidas alcoólicas, cigarros, vitaminas, remédios, alimentos prontos,
alimentos para animais de estimação e itens não alimentares.30
Em 1969, o presidente Richard Nixon apresentou o Plano de Assistência à Família.
Segundo esse Family Assistance Plan, toda família cuja renda não atingisse pelo menos
US$ 3.900 por ano teria direito a um imposto de renda negativo equivalente a 50% da
28
Segundo seus defensores brasileiros, “a raiz de toda dificuldade de se encarar uma renda incondicional é
muito mais moral e cultural do que de natureza econômica - seus desafios são meramente políticos. Parte-se
de uma idéia amplamente discernida na sociedade que vê no trabalho uma obrigação do cidadão, que tem
como única finalidade o sustento. A relação entre trabalho, acesso à renda e riqueza, deve ser analisada, para
só então possamos desmitificar preceitos que se consolidaram em nossa herança histórica desde os tempos
da escravidão”.
29
A primeira experiência prática de renda básica universal foi a do estado norte-americano do Alasca. Desde
1982, todos os residentes do Alasca recebem do governo uma parcela sobre a exploração do petróleo no
estado. A experiência começou, no início dos anos 60 com o então prefeito de Bristol Bay (uma pequena vila
de pescadores), Jay Hammond. Este observou que apesar da riqueza proveniente da pesca local, seus
moradores continuavam pobres. Propôs um imposto de 3% sobre o valor da pesca para um fundo que
pertenceria a todos da comunidade, que seria distribuído de forma igualitária. A medida foi bem-sucedida ao
ponto de permitir a Hammond, em 1974, se tornar governador do Alasca. Nessa época o governo americano
havia descoberto reservas de petróleo no estado do Alasca, cujo governo determinou uma taxa sobre o lucro
da sua exploração: 50% dos royalties do petróleo foram destinados ao "Fundo Permanente do Alasca",
instituindo-se um pagamento anual igual a todos os habitantes do estado. O Fundo faz aplicações em títulos
de renda fixa, ações de empresas, além de investimentos imobiliários. O patrimônio do Fundo evoluiu de um
bilhão de dólares, no início dos anos ´80, para US$ 32 bilhões em 2005. Cada pessoa recebeu um dividendo
anual, igual para todos, que era de US$ 845, em 2005. O fato de Alasca ter distribuído 6% do seu PIB a todos
os seus habitantes, 300 mil em 1976 (quando a população aprovou aquele sistema por referendo popular), e
700 mil em 2005, fez com que ele se tornasse o mais “igualitário” dos 50 estados norte-americanos. De 1989
a 1999, nos EUA, as famílias 20% mais ricas tiveram um crescimento da sua renda média de 26%. As famílias
20% mais pobres, de 12%. Já no Alasca, na mesma década, as famílias 20% mais ricas tiveram um
crescimento da sua renda média de 7%, enquanto que as famílias 20% mais pobres, de 28% (quatro vezes
mais). Pode-se considerar a economia do Alasca, com sua população reduzida, como uma amostra
suficiente? O restante dos EUA, separados do Alasca pelo Oceano Pacífico e pelo imenso Canadá, não
tomaram nota do “sucesso” do gélido estado, governado nos últimos anos pela pitorescamente direitista Sarah
Palin, colega de chapa da mal sucedida tentativa presidencial do republicano John Mc Cain.
30
O ministro Graziano confirmou que o Cartão-Alimentação brasileiro se inspirou no Food Stamp, criado em
1964 nos EUA, que consome US$ 18 bilhões anuais. Nos EUA, como no Brasil, o dinheiro sacado por meio
de cartão magnético só pode ser usado na compra de certos alimentos: “O Food Stamp foi um modelo
analisado no desenvolvimento de uma das ações do Fome Zero, o Cartão-Alimentação. A proposta é vincular
o dinheiro à alimentação. As transferências de recursos do governo federal hoje são quase todas vinculadas.
No Bolsa-Escola, é preciso comprovar a freqüência escolar da criança. Os assentados da reforma agrária têm
de mostrar onde usam recursos do crédito rural”.

31
diferença entre aquele patamar e a sua renda. Por duas vezes o projeto foi rejeitado pelo
Senado, após ter sido aprovado na Câmara dos Deputados. Finalmente, foi criado o
Earned Income Tax Credit (Crédito Fiscal por Remuneração Recebida), uma forma de
imposto de renda negativo para famílias com renda anual inferior a US$ 26.673, que se
tornou lei em 1975, no governo de Gerald Ford.
O crédito foi aumentado por iniciativa dos presidentes Ronald Reagan, em 1986, George
Bush, em 1990, e por Bill Clinton, em 1993. Finalmente, a Municipalidade de Nova York
inaugurou, em 2007, um programa de transferência de renda com condicionalidades,
inspirado no programa Oportunidades, do México, e no Bolsa Família brasileiro. Chamado
de Opportunity NYC, o programa piloto atende cerca de cinco mil famílias de regiões de
baixa renda de Nova York, como o Harlem e o Bronx. Da mesma maneira que o Bolsa-
Família brasileiro, o programa nova-iorquino dá dinheiro para as famílias pobres que
mantêm seus filhos na escola ou fazem exames de saúde.
A França instituiu a Renda Mínima de Inserção (RMI), em 1988. A iniciativa foi do
presidente François Mitterrand (do Partido Socialista) e do primeiro ministro Michel
Rocard, e beneficiou toda pessoa de 25 anos ou mais cuja renda mensal não atingisse
2600 francos (aproximadamente 500 dólares, à época). Ao mesmo tempo foi instituído o
TUC (Trabalhos de Utilidade Comunitária), que deviam ser executados pelos beneficiários
da renda. Em junho de 2009, o governo de Nicolas Sarkozy substituiu o RMI pelo RSA
(Revenu de Solidarité Active), que também englobou outros programas, na mesma
tendência “unificadora” observada no Brasil, prevendo inclusive a remuneração de
trabalhadores de meio-período, o que permitiria tirar de baixo da linha de pobreza 700 mil
pessoas, um “programa imaginado pela esquerda e posto em prática pela direita”.31 O
“alto comissariado das solidariedades ativas”, exercido por Martin Hirsch, passou a ter
praticamente um rango ministerial.
Um dos maiores programas sociais setoriais é o que leva a cabo a Índia, depois do
retorno ao governo do Congresso Nacional Indiano (CNI) em 2004. O NREGP (National
Rural Employment Guarantee Programme) cancelou uma série de dívidas da população
rural e, segundo o governo do CNI, concedeu em média 48 dias de trabalho (em obras
públicas, basicamente) a 44,6 milhões de pessoas, ao todo 2,16 bilhões de dias de
trabalho anuais, dos quais 47% para mulheres. Foram postos em prática 2,7 milhões de
projetos público-privados, dos quais 1,2 milhão foram completados. Em maio de 2009, o
CNI obteve uma grande (e, para muitos, inesperada) vitória eleitoral, depois de quatro
anos de governo, ganhando uma significativa quantidade de votos em relação à eleição
precedente. Diversos observadores atribuíram ao NREGP o aumento do caudal de votos
do partido governamental.
Fome e Pobreza no Brasil
No Brasil, durante a transição da escravidão para as formas “modernas” (capitalistas) de
trabalho, a classe média realizou uma política parlamentar de proteção do trabalho e da
renda dos novos trabalhadores “livres”. Segundo Décio Saes, a luta parlamentar da classe
média a favor da proteção ao trabalhador prenunciava a ruptura ideológica, ocorrida na
década de 1920, de amplos contingentes da classe média com relação à "democracia
oligárquica" da Primeira República; ruptura essa que se manifestaria do modo mais agudo
no movimento tenentista.

31
Os sindicatos franceses denunciaram que o RSA encoraja o trabalho precário, pois os patrões podem
justificar o baixo salário ou a precariedade trabalhista pela existência de uma ajuda estatal. Planejado, por
outro lado, no meio de taxas altas de crescimento, o RSA tropeçou, logo de saída, com a recessão econômica
e o aumento do desemprego, o que limitou drasticamente seus supostos efeitos.

32
Todavia, a ação parlamentar da classe média em prol de um vasto leque de direitos
sociais não poderia ser bem sucedida, dado o isolamento político dessa classe social. As
massas do campo permaneciam desorganizadas e submetidas ao dever de lealdade
pessoal para com o seu "senhor" (isto é, o proprietário de terras), orientação essa
indicativa da vigência de formas econômicas pré-capitalistas na área rural. Os
trabalhadores rurais não tinham condições de apoiar politicamente o compromisso dos
parlamentares reformistas com a extensão de todas as leis sociais, eventualmente
aprovadas, ao campo. Os trabalhadores industriais, com lideranças de orientação
anarquista ou anarco-sindicalista, não se envolviam na luta pelo reconhecimento, por
parte do Estado, de direitos sociais “universais”.
Os baixos salários (incluída a ausência de direitos e a presença constante do trabalho dito
“informal”) - isto é,“ a queda do salário abaixo do valor da força de trabalho” - foram
historicamente um fator de entrave ao desenvolvimento econômico brasileiro, não pela
estreita noção sub-consumista do estreitamento do mercado interno, mas pela simples
relação apontada por Marx: “Considerada exclusivamente como meio de baratear o
produto, o limite para o uso da maquinaria está em que sua própria produção custe
menos trabalho do que o trabalho que sua aplicação substitui. Para o capital, no entanto,
esse limite se expressa de modo mais estreito. Como ele não paga o trabalho aplicado,
mas o valor da força de trabalho aplicada, o uso da máquina lhe é delimitado pela
diferença entre o valor da máquina e o valor da força de trabalho substituída por ela. (...).
A própria máquina produz, por sua aplicação em alguns ramos de atividade, tal excesso
de trabalho (redundancy of labour, diz Ricardo) em outros ramos, que aí a queda do
salário abaixo do valor da força de trabalho impede o uso da maquinaria e torna-o
supérfluo, freqüentemente impossível, do ponto de vista do capital, cujo lucro surge, de
qualquer modo, da diminuição não do trabalho aplicado, mas do trabalho pago”.
O desemprego e subemprego urbanos, no Brasil, foi característica histórica de sua
trajetória econômica, celebrizada nas favelas e na “marginalidade social” (da qual toda a
cultura popular brasileira é testemunha). A fome agrária e urbana foram uma constante da
trajetória histórica do país. O marco da primeira política de alimentação foi o Império.
Consistia na obrigatoriedade do plantio consorciado em cultura intensiva; para cada cova
plantada de cana de açúcar; uma de milho e outra de mandioca.
Nos anos trinta, Josué de Castro já denunciava a gravidade da situação nutricional das
classes trabalhadoras. Nesta época foi criada a comissão de merenda escolar e em 1938
a definição da cesta básica com 13 alimentos, cujo peso no valor de compra não poderia
ultrapassar 20% do salário mínimo do trabalhador. Essa cesta básica era, supostamente,
adequada à realidade das necessidades nutricionais da força de trabalho da época.
Jamais foi atualizada. Até 1958, o salário mínimo manteve o poder de compra fixado
nesse percentual de comprometimento com a aquisição da cesta básica. Nessa década
ainda, Josué de Castro produziu o mapa das regiões alimentares e de situação
nutricional, o chamado Mapa da Fome, e criou o primeiro curso de nutrição na UNIRIO.32

32
A figura de Josué de Castro adquiriu projeção mundial. Embora nunca superasse um ponto de vista
“humanista”, cabe dizer que a maioria das idéias expostas por Amartya Sen já se encontravam, e com maior
fundamento científico, nos trabalhos de Josué de Castro. Em Geopolítica da Fome, Castro sustentava que “os
enormes mercados potenciais de nossos dias esperam apenas, para entrarem em ação na economia mundial,
que os seus habitantes, bem alimentados, possam produzir o suficiente para atingir um nível de vida coerente
com as possibilidades técnicas do mundo moderno. Na melhoria das condições de vida dessas áreas, hoje de
fome e de miséria, repousam, pois, a segurança econômica e a prosperidade do mundo inteiro. Dentro de
uma economia de abundância, com os diferentes grupos humanos dispondo de recursos alimentares
adequados, processar-se-á, certamente, uma radical transformação na estrutura social do mundo. Com a
Geografia da Abundância, emergirão novas estruturas sociais, possuidoras de características gerais que

33
No Brasil, a questão da fome vinculou-se historicamente também com a evolução da
questão agrária. Em 1978, as grandes explorações, superiores a 1.000 hectares,
representando 1,8% do total, ocupavam 57% da área total, com 3.200 propriedades
gigantes que reuniam 102 milhões de hectares, três vezes más que a área de 2 milhões
de minifúndios. Em 1989, 6.700 latifúndios tinham o mesmo número de hectares (mais de
127 milhões) que 4.166.000 pequenas propriedades. Enquanto a produção per capita de
alimentos básicos diminuía, no período, em relação a 1964, aumentava a exportação de
produtos agro-industriais, e também a pobreza nas áreas rurais (73% da população sob a
linha de pobreza, em 1990).
Segundo o INCRA (Instituto Nacional da Colonização e Reforma Agrária), os minifúndios
representavam 72% das propriedades em 1972, mas ocupavam 12% da área total, e
eram responsáveis por quase 50% da área plantada com produtos básicos de
alimentação (arroz, feijão, favas, mandioca e milho). Enquanto o valor e volume da
produção agrária cresciam, o salário real caia junto com o nível de vida. Em 1968, o
consumo de arroz por habitante era de 49,5 quilos anuais, já em 1978 era de 47 quilos
anuais.
No mesmo período, o feijão caiu de quase 27 quilos a 21 quilos anuais, chegando a 18,3
quilos anuais em 1979. Em 1971, o salário médio mensal adquiria 46 quilos de carne
bovina, ou 69,3 quilos de carne de ave, ou 43 quilos de carne de porco; em 1979, 28,7;
50,2 y 28,6, respectivamente.33 Durante o período militar, em termos de disponibilidade
para o consumo humano, houve uma queda de 20% por habitante-dia, sendo as piores
quedas em feijão e mandioca.
Em 1965, a disponibilidade calórica por habitante-dia era de 3.148; em 1967 de 3.033; em
1979, de 2.986.34 Nesse quadro, surgiram as políticas nutricionais. Durante o governo
militar, no período de 1970 a 1986, formulou-se uma política na área através dos
programas contidos no PRONAN (Programa Nacional de Alimentação e Nutrição), em
decorrência dos PNDs - Planos Nacionais de Desenvolvimento.
Neoliberalismo, Desemprego e Focalização Social
Finda a ditadura militar, com o governo Collor (1989) assistiu-se a uma ruptura que impôs
uma virada na trajetória “desenvolvimentista”, quando, além de uma política de
estabilização, surgiu a proposta de um projeto de longo prazo, com a implementação de
reformas estruturais na economia, no Estado e na relação do país com a economia
mundial.35 Na década de 1990, no Brasil, deu-se uma inflexão ideológica, contrária ao

garantirão a conquista de uma nova etapa, na busca da felicidade e do bem-estar social. Há duas conquistas
fundamentais a serem postas em destaque que poderão ser alcançadas através da política da boa
alimentação para todos: a conquista da saúde e a conquista da segurança, expressões de vitórias coletivas
contra a doença e contra o medo. Doença e medo que constituem os dois fatores de maior degradação, um
físico e outro moral, de nossa civilização”.
33
PASSOS GUIMARÃES, Alberto. A estrutura produtiva da agricultura brasileira. Novos Rumos nº 6/7, São
Paulo, 1988; e IBGE. Anuário Estatístico, 1980.
34
HOMEM DE MELO, Fernando. O Problema Alimentar no Brasil. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1983.
35
O “programa” neoliberal nas metrópoles se resumia em: a) contrair a emissão monetária; b) elevar as taxas
de juros; c) diminuir os impostos sobre rendimentos altos; d) abolir os controles sobre fluxos financeiros; e)
criar desemprego massivo; e) acabar com as greves; f) elaborar legislação anti-social; g) cortar gastos
públicos e finalmente; h) praticar um amplo programa de privatização. Para a América Latina, no encontro
realizado em novembro de 1989 na capital dos EUA, conhecido como “Consenso de Washington”, se
elaboraram diretrizes de política econômica baseadas no princípio da abertura à importação de bens e
serviços e à entrada de capitais de risco.

34
“desenvolvimentismo” precedente, apresentada como resposta ao “esgotamento do
modelo de substituição de importações”.
Na verdade, tratou-se de uma resposta à crise mundial da economia capitalista, que criara
um “capital excedente” (e, portanto, uma forte tendência para a desvalorização de todos
os ativos), combatida com uma crescente desregulamentação dos mercados
internacionais (com o grande capital indo à procura de “super-lucros periféricos”,
basicamente através da agiotagem financeira, com transferências gigantescas de valores
para os “credores externos”), e com a “racionalização produtiva”, em que se elevou a taxa
de exploração através da produção de mais-valia relativa, graças ao aumento da
composição orgânica do capital, impulsionada pelo aumento relativo dos investimentos
em novas tecnologias.36
A reestruturação da economia brasileira foi parte desse processo mundial. A “abertura
econômica” (presente desde os anos 1970) intensificou-se a partir de 1990, influenciada
pela redução das tarifas de importação e eliminação de várias barreiras não-tarifárias. A
tarifa nominal média de importação, que era de cerca de 40%, em 1990, foi reduzida
gradualmente até atingir seu nível mais baixo em 1995, 13%. No governo Collor teve
início um radical processo de abertura comercial. As alíquotas médias passaram de
32,2% em 1990 para 25,3% em 1991, e reduziram-se para 20,8% em 1992, último ano
desse governo.
Com a ascensão de Fernando Henrique Cardoso (FHC) à presidência, o processo de
liberalização e privatização foi intensificado. A política econômica, com o Plano Real
baseado na âncora cambial no seu aspecto monetário, e na âncora salarial (via
desindexação) sua base produtiva, tornou a política econômica refém dos ingressos do
capital financeiro internacional. A abertura comercial indiscriminada, a sobrevalorização
do real e os elevados juros introduziram um freio ao crescimento da economia e uma
desvantagem da produção doméstica diante da concorrência internacional.
A reação das empresas brasileiras, dada a sua menor competitividade, foi a terceirização
de atividades, o abandono de linhas de produtos, o fechamento de unidades, a
racionalização da produção (com a importação de máquinas e equipamentos), as
“parcerias externas”, as fusões ou transferência de controle acionário, com o objetivo
central da redução de custos, sobretudo da mão-de-obra.
O setor agrário, por sua vez, sofreu as conseqüências da apreciação cambial, que se
somaram, como no restante do continente, à desvalorização crescente da produção
primária, que levara, em toda a América Latina, à crise das culturas tradicionais, ao êxodo
agrário (que incrementou o desemprego urbano),à crise social em todas suas
manifestações. Por isso, na América Latina, as iniciativas de ajuda social de caráter
setorial e emergencial remontam à década de 1990, quando o impacto da “globalização”
capitalista somou-se às conseqüências da “década perdida” (1980-1990), gerando um
panorama de desemprego e pobreza social generalizados.
Segundo cálculos aproximados, para uma população de 530 milhões de habitantes,
América Latina contava com 200 milhões de pobres, e 80 milhões de pessoas padecendo
fome.

36
O movimento do capital é informado permanentemente pelas respostas que é obrigado a encontrar para
contrariar a queda da taxa de lucro. Os sucessos são transitórios e geralmente circunscritos a grupos
capitalistas determinados. O poder do capital e dos gestores financeiros, as exigências dos acionistas e a
pressão das Bolsas acentuam a pressão sobre o capital industrial em busca de respostas a essa queda.

35
% da população com renda inferior a US$ 1,08 por dia (em paridade de poder de compra de
1993)
1987 1990 1993 1996 1998
África 46,6 47,7 49,7 48,5 46,3
Subsaariana
Ásia 44,9 44,0 42,4 42,3 40,0
Meridional
América 15,3 16,8 15,3 15,6 15,6
Latina
Ásia Oriental 26,6 27,6 25,2 14,9 15,3
Oriente Médio 11,5 8,3 8,4 7,8 7,3
e Norte da
África
Europa 0,2 1,6 4,0 5,1 5,1
Oriental e Ásia
Central
TOTAL 28,7 29,3 28,5 24,9 24,3
Fonte: Banco Mundial

A pobreza relativa no bloco latino-americano teve piora entre 1987 e 1998, com 0,3% a
mais de sua população vivendo sob a linha de pobreza absoluta (o que significa, levado
em conta o crescimento demográfico, o ingresso de milhões de pessoas na “zona de
miséria”). Certamente, houve piora mais acentuada ainda, de quase 5%, na Europa do
Leste e na Ásia central (ex URSS incluída), devido à passagem desses países para a
“economia de mercado”, com uma violenta destruição dos elementos ainda
remanescentes de igualdade e seguridade social do chamado “socialismo real”. O
percentual geral, mundial, de pobreza absoluta, porém, caiu, mundialmente, 4,4% nos
onze anos considerados, o que sublinha o péssimo desempenho latino-americano.
Nos dois blocos que apresentaram piora, houve aplicação do mesmo receituário de
políticas de ajuste. Os blocos onde o nível de pobreza é o mais acentuado do mundo -
África subsaariana e Ásia meridional - obtiveram evolução positiva em termos de redução
da pobreza absoluta, no período da chamada “globalização neoliberal”. Dentro do quadro
latino-americano, a situação brasileira era ainda pior, em termos percentuais, pois em
1995 o país tinha 23,6% da sua população vivendo abaixo da linha de pobreza absoluta
de menos de 1 dólar per capita/dia (em que pese o Brasil possuir uma das mais altas
rendas per capita do subcontinente).
Dessa realidade surgiram iniciativas como o Plan Trabajar da Argentina,37 o Bonosol da
Bolívia (desdobradas, no governo de Evo Morales, com o Bono Juancito Pinto,
especificamente dirigido à infância) ou os célebres programas brasileiros, que foram
adotadas por governos do mais diverso signo político. O irmão mais velho é o programa
Progresa (atualmente Oportunidades), iniciado pelo governo mexicano de Ernesto Zedillo,
em 1998 (que não impediu a derrota eleitoral do PRI, partido de Zedillo, dois anos
depois). As origens e modalidades políticas desses programas foram muito diversas em
cada país, mas é indubitável que se trata de um fenômeno geral. Esses programas têm
sido tidos como responsáveis pela estabilidade dos regimes políticos da região.

37
Cujo governo (Cristina Kirchner) foi acusado, em 2008, de “apagar” estatisticamente três milhões de pobres,
através de manipulações do INDEC (Instituto Nacional de Estatísticas e Censos), que estimaram a população
pobre de Argentina em 20,6% (na realidade, ela supera 30% de “pobreza absoluta”, atingindo 50% de pobreza
em geral).

36
Durante o período “neoliberal” (a década de 1990), que precedeu a implantação do
“modelo Lula”, o desemprego urbano no Brasil sofreu uma expansão qualitativa.38
Taxa de desemprego total
Regiões Metropolitanas – 1989 – 1999 (em %)
Regiões 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999
Metropolitanas
Belo Horizonte 12,9 13,4 15,9 17,9
Distrito 15,5 15,1 14,5 15,7 16,8 18,1 19,4 21,6
Federal
Porto Alegre 12,2 11,3 10,7 13,1 13,4 15,9 19,0
Recife 21,6 22,1
Salvador 21,6 24,9 27,7
São Paulo 8,7 10,3 11,7 15,2 14,6 14,2 13,2 15,1 16,0 18,2 19,3
Fonte: GENNARI, Adilson Marques. Globalização, Neoliberalismo e Superpopulação Relativa no Brasil nos
Anos 1990. Araraquara, Departamento de Economia da UNESP, 2005.
O desemprego percentual mais do que duplicou na principal região metropolitana e
industrial (onde, em 1999, nada menos que 1.715.000 pessoas estavam sem emprego), e
atingiu patamares vizinhos a 30% nas principais capitais do Nordeste. Levando-se em
conta o crescimento demográfico, as cifras absolutas são maiores do que as que parecem
indicadas pelos percentuais: o processo criou uma nova realidade social, em especial nas
regiões urbanas. A distância entre o número de pessoas aptas ao trabalho e o número de
trabalhadores que conseguiam emprego tendeu a crescer, criando um exército industrial
de reserva de novas dimensões. O gap entre a PEA e os efetivamente ocupados cresceu
na principal região metropolitana do Brasil ao longo da década de 1990.

Foi a essa nova realidade que se deu resposta através dos programas sociais setoriais
(ou “focalizados”), no quadro das políticas “neoliberais”, e da sua crise, que determinou a
ascensão dos governos “de esquerda”.39 Cabe frisar que a adoção dos programas sociais
38
Esse foi o conteúdo econômico da “democracia” brasileira, na verdade um regime bonapartista em que o
executivo governa através da edição de medidas provisórias, que se tornam depois permanentes por força de
manobras políticas, ou simplesmente porque não seria viável (do ponto de vista capitalista) voltar atrás após
terem sido postas em prática, com a abrangência, por exemplo, do Plano Real. O “modelo Lula” não quebrou,
mas acentuou, essa característica política do “neoliberalismo”.
39
A “onda” de esquerda na América Latina sucedeu ao fracasso econômico dos governos neoliberais,
seguidores da cartilha do FMI, sendo a bancarrota argentina de finais de 2001 seu exemplo acabado. O
processo combinou a crise econômica com a perda de base política dos partidos tradicionais, nacionalistas ou
“liberais”. O neoliberalismo, com as privatizações maciças, a pressão pela abertura profunda dos mercados,
em especial os do ex “bloco socialista”, a estratégia do "Consenso de Washington", foi expressão da procura
de uma saída para a massa de capital financeiro internacional acumulado desde antes da crise dos anos
1970. Não era uma “ofensiva”, mas uma política de crise, o que explica privatizações absolutamente

37
compensatórios coincidiu com a deturpação dos recursos historicamente destinados à
seguridade social, uma política neoliberal que a esquerda depois encampou. Em 1989, o
Fundo de Investimento Social foi utilizado para financiar os encargos previdenciários. Esta
disfunção se prolongou em 1990. A situação foi consolidada pela Lei 8212, que
regulamentou o Plano de Organização e Custeio da Seguridade Social; os recursos da
Contribuição Social sobre o Lucro Líquido das Pessoas Jurídicas foram usados para
integrar o orçamento fiscal, com destinação aos encargos previdenciários da União.
O segundo ato ocorreu em 1993, quando foi descumprida a lei de diretrizes
orçamentárias, que destinava o repasse de 15,5% da arrecadação das contribuições de
empregados e empregadores para a área da saúde. A receita dessas contribuições
destinou-se, exclusivamente, à área da previdência social com a promulgação da Emenda
Constitucional - EC 20. O efeito foi a alteração da regra constitucional que determinava a
não-vinculação de fontes às três diferentes áreas da seguridade social, tal como também
ocorreu por meio da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF) e a
EC 29, a “Emenda da Saúde”. Em 1994, via Emenda Constitucional, criou-se o Fundo
Social de Emergência - FSE, que reservou, no orçamento, 20% do produto da
arrecadação de todos os impostos e contribuições. O FSE iria viger nos anos de 1994 e
1995; a partir da EC 10 ele passou a vigorar no ano de 1996 até 1997, passando a ser
chamado de Fundo de Estabilização Fiscal - FEF, com o objetivo de saneamento
financeiro. Com a EC 17, seu prazo foi dilatado até dezembro de 1999, mantendo-se seu
objetivo. No ano 2000, com a EC 27, esse fundo passou a ser chamado de Desvinculação
de Receitas da União - DRU, abarcando o período de 2000 a 2003. E foi mantido até o
presente, em que pese a mudança de governo.
O Estado só retomou a intervenção formal na questão nutricional com o Programa Leite é
Saúde em 1996, e em 2000 formulou a Política Nacional de Alimentação e Nutrição com
destaque para o PCCN (Programa de Combate a Carências Específicas), além das
bolsas de complementação de renda. Em todos esses casos, não se assumia que se
tratava de combate à fome, mas à desnutrição.
As políticas de combate à pobreza entraram na agenda nacional nos anos 1990,
sobretudo pela influência da campanha nacional Ação da Cidadania Contra a Fome, a
Miséria e pela Vida, liderada pelo sociólogo Betinho, e a ONG Ibase.40 Essa campanha foi
um revelador do grau inédito atingido pela miséria social no Brasil. Partindo da afirmação
de que “o direito à alimentação deve ser assegurado pelo Estado”, apresentou-se como
principal objetivo a formulação de uma Política de Segurança Alimentar e Nutricional para

aventureiras, como as dos serviços de água de Peru e Bolívia, que desencadearam rebeliões populares
massivas. Foi o impasse histórico do capital a escala internacional o que deu a base para uma virada política
de grande amplidão, com a emergência de processos de autonomia nacional, incluindo (em especial nos
países andinos) o papel inédito das massas camponesas e indígenas. Na emergência desses processos
confluiu a derrubada dos partidos políticos tradicionais, que foram garantia da estabilidade política durante
décadas, com a crise mundial das relações econômicas capitalistas. A crise política dos governos neoliberais
(identificados com a estabilização monetária baseada na âncora cambial, ou na dolarização) remonta a, pelo
menos, uma década antes da ascensão da esquerda. As frágeis bases econômicas dos governos neoliberais,
que sucederam às ditaduras militares (e que faziam da democracia reconquistada sua bandeira de
sustentação política) não resistiram à turbulência econômica mundial da década de 1990, e à sua erosão
provocada pelo aguçamento da luta de classes em cada país.
40
Josué de Castro foi um dos primeiros a “desnaturalizar” o problema da fome no Brasil, ainda na década de
1930. Foi deputado federal e presidente da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentos
(FAO). Para Castro, a origem do problema estaria nos grupos humanos que se apoderam dos recursos
naturais e fazem uma divisão “injusta e ilegal”: “A miséria e a fome não são fenômenos naturais, são uma
criação humana, um produto da injustiça social, o produto de uma estrutura sócio-econômica que jamais
investiu no bem estar da coletividade”. Para Castro, hoje “quase canonizado” (a expressão é de Gilson
Dantas) a erradicação da fome era possível nos marcos do capitalismo.

38
a população brasileira. Inicialmente, a principal proposta (cupons de alimentação) previa
um custo anual de R$ 19,9 bilhões, "um montante de recursos relativamente pequeno",
conforme afirmava o projeto, para erradicar a fome, pois os gastos sociais (exceto a
Previdência) eram da ordem de R$ 45 bilhões ao ano, mais do que o dobro dos recursos
necessários à implantação do programa de cupons de alimentação proposto.
Nos anos 1980, a concessão de benefícios e ajuda era feita pontualmente e de forma
indireta, geralmente com a distribuição de cestas básicas em áreas carentes,
principalmente do norte e nordeste, algumas vezes seguidas de denúncias de corrupção
devido a centralização das compras em Brasília, além do desvio de mercadorias pela falta
de controle logístico. Durante o governo FHC os programas de distribuição de renda
foram implantados, alguns em parceria com ONGs. Todos esses programas estavam
agrupados na chamada Rede de Proteção Social, de abrangência nacional. Em 2002
havia no Brasil uma série de programas sociais que já beneficiava cerca de cinco milhões
de famílias, cada um gerido por administrações diferentes.
Houve expansão dos programas na área de nutrição nos anos 1990, com o Consea
(Conselho de Segurança Alimentar). A Conferência Nacional de Segurança Alimentar, em
1994, extinguiu o Consea e criou o Conselho do Comunidade Solidária. Acrescentou,
ainda, o Programa de Distribuição Emergencial de Alimentos, reativado com a seca do
Nordeste, que teve distribuição recorde de cestas em 1998. Nos dois últimos anos do
governo FHC, existia o Projeto Alvorada, um rearranjo dos programas anteriores, que
incorporou recursos do Fundo de Erradicação da Pobreza, o Bolsa-Escola e o Bolsa-
Alimentação (para crianças até seis anos e gestantes), substituindo o Leite é Saúde. No
século XXI tivemos a primeira pesquisa sobre Segurança Alimentar feita pelo IBGE, como
suplemento da PNAD 2004 (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio). Criou-se
também o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que até hoje atende quase
cinco milhões de crianças de 4 a 6 anos em todo o país, o que corresponde a 13% do seu
público total.
A Saga do Fome Zero
No Brasil, os programas sociais atenderam às orientações do Banco Mundial (BIRD)
acerca da "redução da pobreza eficaz em termos de custos", através de “programas
sociais focados e compensatórios”.41 Estes programas requerem, segundo o modelo
proposto pelo BIRD, cortes no orçamento social geral, inclusive em matéria de saúde e
educação. No início do mandato de Lula, a influente revista internacional da “comunidade
de negócios”, The Economist, afirmou que Lula deveria "cortar os direitos sociais
adquiridos dos que melhor estão e concentrar o gasto estatal nos pobres", mencionando
"as pensões (aposentadorias) dos empregados públicos", entre os que “estavam melhor”.
O programa Fome Zero foi o eixo do discurso de posse de Lula na presidência, em janeiro
de 2003, definido como seu objetivo que todos os brasileiros pudessem "tomar café da
manhã, almoçar e jantar". O programa “cativou o mundo”: consistia na entrega, às famílias
pobres, de vales-alimentação de 50 até 250 reais por mês, segundo a quantidade de

41
Segundo o Banco Mundial: "Transferências condicionais de renda fornecem dinheiro diretamente aos
pobres, via um "contrato social" com os beneficiários - por exemplo, manter as crianças na escola, ou levá-las
com regularidade a centros de saúde. Para os extremamente pobres esse dinheiro provê uma ajuda de
emergência, enquanto os condicionamentos promovem o investimento de longo prazo no capital humano". O
presidente do Banco Mundial, Paul Wolfowitz, disse que "o Bolsa Família se tornou um modelo altamente
elogiado de políticas sociais. Países, ao redor do mundo, estão aprendendo lições com a experiência
brasileira e estão tentando reproduzir os mesmos resultados para suas populações". O Bolsa Família Project
do Banco Mundial foi inaugurado em junho de 2005.

39
filhos. Um casal pobre receberia 100 reais; o mesmo casal, com 3 ou 5 filhos, receberia
250 reais (ou 110 dólares, à época).
A entrega de vales, no lugar de dinheiro vivo, tinha a função de direcionar o subsídio para
a compra de alimentos, que seriam listados. Em troca, as famílias beneficiadas deveriam
cumprir algumas exigências, participar em programas para a comunidade local, como a
construção de viadutos, ampliação da rede elétrica e coleta de lixo. Cada família se
comprometeria a construir um banheiro em sua casa, enquanto em outros casos deveriam
realizar tarefas agropecuárias, de turismo ou de serviços. Isto significava por à disposição
do Estado, ou de empresas privadas, uma massa enorme de trabalho subsidiada pelo
próprio Estado.
Com algo em torno de 50 milhões de pobres no Brasil, não faltavam candidatos ao
benefício. Para receber a ajuda concedida no mês seguinte sucessivo, as famílias
beneficiadas deveriam mostrar o ticket ou a fatura dos alimentos que compraram no mês
precedente. O sociólogo Francisco de Oliveira chegou a falar em “funcionalização da
miséria”: por ser extremamente focalizado em uma parcela da população, o Fome Zero se
constituiria em uma espécie de "ajuda humanitária" para garantir a sobrevivência dos
mais pobres sem alterar a condição social destes.42 O plano se implementaria de forma
gradual, e ficava também condicionado a recortes nos benefícios previdenciários.43
Também se previu que as grandes empresas pudessem fazer doações para financiar o
plano, para o qual seriam estimuladas através da criação de incentivos, como descontos
no imposto de renda (o benefício empresarial era, portanto, duplo: trabalho subsidiado e
isenção fiscal).
O número de pobres do Brasil varia conforme a metodologia adotada. O projeto Fome
Zero, ao utilizar o critério de linha de pobreza do Banco Mundial (U$ 1,08 por dia),

42
Brasil de Fato, São Paulo, 15 de janeiro de 2004. Negando o caráter assistencialista dos programas
focalizados, o ministro Patrus Ananias afirmou: "Estamos superando o assistencialismo, o clientelismo, os
"pobres de cada um" ou o "quem indica", colocando a questão social no campo das políticas públicas. As
pessoas entram e saem do programa segundo critérios legais. Cuidar das pessoas não é assistencialismo.
Organismos internacionais reconhecem o direito humano à alimentação com regularidade e qualidade.
Assegurar o direito à alimentação é assegurar o primeiro degrau do direito à vida. De barriga vazia ninguém
pensa, ninguém aspira coisas melhores. Ninguém vive. As políticas sociais se integram - uma criança na
escola não aprende se não tiver saúde; uma criança não tem saúde se não tiver assegurado o direito à
alimentação, água potável, saneamento básico. Da mesma forma, a criança não vai aprender se não tiver as
condições psicológicas e emocionais adequadas que a família e a comunidade asseguram. Se esses vínculos
estão fragilizados, são necessárias as políticas públicas de assistência social para fortalecer esses laços
sociais. Estamos colocando o Brasil em um novo patamar, ou seja, colocando a questão dos pobres junto às
políticas públicas. 14 milhões de pessoas já saíram da miséria para melhores e mais dignas condições de
vida. Foram gerados 7 milhões de empregos com carteira assinada. Damos um forte apoio à agricultura
familiar. Os recursos do Pronaf saíram de R$ 2 bilhões para R$ 12 bilhões. Estamos agindo através da
integração dessas políticas sociais exatamente nessa linha, que possibilite maior autonomia ao cidadão".
43
No final de 1994, no início do governo de Fernando Henrique Cardoso, que precedeu o governo Lula, o
saldo de caixa da Previdência Social brasileira era de R$ 1,8 bilhões, quando, no Brasil, havia cerca de 62
milhões de trabalhadores ativos para 8 milhões de aposentados, 8 para 1, uma proporção confortável (na
França, por exemplo, há 3 trabalhadores ativos para cada aposentado, nos EUA a proporção é de 4 para um).
O número de beneficiários tinha crescido como conseqüência da inclusão no sistema previdenciário de novos
setores, após a Constituição de 1988, a uma taxa situada entre 5% ou 6% ao ano, entre 1987 e 1994. Esse
crescimento, depois, tendeu a acompanhar o crescimento vegetativo da população. Quanto à taxa de
crescimento dos contribuintes, ela cresceu vagarosamente, 2,7% ao ano, para uma população
economicamente ativa crescente em cerca de 4% ao ano. Isto se explica pelo crescimento do mercado ilegal
(ou “informal”) de trabalho. A sonegação impositiva, a sonegação de contribuições previdenciárias em
especial, assim como a grande quantidade de pessoas trabalhando “sem carteira assinada”, são enormes, no
Brasil. Os gastos com a Previdência Social passaram, ainda assim, de 34% em 1995 para 31% em 2005, do
total do orçamento público, apesar da inclusão de novos benefícios sociais para a área rural e doméstica.

40
ajustando-o para os diferentes níveis regionais de custo de vida e pela existência ou não
de auto-consumo, estimava a população pobre em 44,043 milhões de pessoas, o que
envolveria 9,324 milhões de famílias. Já o Instituto Brasileiro de Economia (IBRE) da
FGV, ao analisar os dados do Censo Demográfico de 2000, e adotar o critério de R$
60,00 per capita como definidor da linha de pobreza, concluía que 57,7 milhões de
pessoas estariam vivendo abaixo da linha da pobreza. E outras metodologias chegaram a
outros números, inclusive mais baixos dos que os considerados no projeto Fome Zero.No
Brasil, segundo a PNAD, a formação histórica cunhou uma sociedade onde o tamanho da
pobreza nunca foi residual; incluídos o processo de empobrecimento e de precarização de
parcelas crescentes de seus trabalhadores. Em outras palavras, a ausência de pobreza
residual desautorizaria o uso do termo "focalização".44
Num balanço geral de seu primeiro mandato, o governo Lula apontou que os níveis de
distribuição de renda no país atingiram os melhores patamares desde 1992: os 50% mais
pobres, hoje, possuiriam 14,1% da renda nacional. Em 2002, a Fundação Getúlio Vargas
(FGV) estimava que o Brasil tinha 50 milhões de pessoas miseráveis. Dois anos depois,
esse número caíra para 48 milhões, a melhor marca da série histórica, equivalente a
25,1% da população do país. Dos 10 milhões de novos empregos prometidos, no entanto,
foram criados só 4,8 milhões (embora o governo apresentasse cifras maiores), com
carteira assinada, número, no entanto, cerca de seis vezes maior que o gerado no
governo FHC em oito anos.
Os gastos sociais no Brasil cresceram de R$ 1,3 bilhões em 1995 (primeiro ano do
governo FHC) para R$ 18,8 bilhões em 2005 (terceiro ano do governo Lula), um
crescimento superior a... 1.400%, em termos nominais. A diminuição da pobreza absoluta
foi acentuada: ela passou de 35,6%, em 2003, para 26,9%, em 2006. Os gastos sociais
per capita apresentaram igualmente uma trajetória de crescimento em breve período de
tempo, para as categorias mais pobres contabilizadas nas estatísticas sociais oficiais
(renda familiar per capita igual ou inferior a 40% da renda mais comum brasileira; quem
recebe 1/4 do salário mínimo; renda familiar per capita igual ou inferior a R$ 100).
Paralelamente ao crescimento do gasto social governamental, houve um decréscimo
acentuado dos investimentos sociais empresariais, que caíram de R$ 6,9 bilhões em
2000, para R$ 4,7 bilhões em 2004, bem que o percentual de empresas investidoras
aumentasse de 59% para 69%.
Lula ainda havia prometido, também, dobrar o poder de compra do salário mínimo. Antes
da sua posse, o salário mínimo comprava 1,4 cesta básica. Em 2007, ele já comprava 2,2
cestas básicas – um aumento real de 60%. Além disso, o governo federal também
intensificou a fiscalização contra o trabalho informal. No entanto, a implantação do
programa Primeiro Emprego fracassou (poucas empresas se interessaram). Lula
tampouco elevou o gasto em educação para 7% do PIB: nos três primeiros anos de seu
mandato, a proporção não saiu dos 4,2%.
E o Brasil cresceu abaixo da taxa média dos países da América Latina e do Caribe: 0,6%
contra 2,0% em 2003, 4,5% contra 5,9% em 2004, 2,3% contra 4,5% em 2005, e 3,7%
contra 4,6% em 2006. Mas o país foi aliviado das tensões financeiras (pelo menos até a
crise do subprime) que marcavam historicamente a política econômica. O resultado mais
notável disso foi a expansão das exportações, com a corrente de comércio (importações

44
Os cálculos de pobreza utilizados pelo Programa Fome Zero tiveram como base a Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios do IBGE, que contabilizava a existência de 46 milhões de pessoas abaixo da linha de
pobreza em 2001.

41
mais exportações) alcançando no mês de novembro de 2006 o recorde de US$ 226,7
bilhões.
A proposta do programa Fome Zero fora apresentada ao debate público em outubro de
2001, antes da vitória eleitoral de Lula, em documento elaborado pelo Instituto de
Cidadania, sob coordenação de José Graziano da Silva (designado depois titular do
Ministério Extraordinário da Segurança Alimentar e Combate à Fome), com a participação
de representantes de ONGs, institutos de pesquisa, sindicatos, organizações populares,
movimentos sociais. O Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à
Fome foi criado em 2003 por Medida Provisória, a partir do pressuposto de que os
programas de transferência de renda existentes (Peti – Programa de Erradicação do
Trabalho Infantil -, Agente Jovem, BPC, Bolsa-Alimentação, Bolsa-Renda, Bolsa-Escola,
Auxílio-Gás,45 etc.) deveriam ser unificados e expandidos, evitando a sua fragmentação e
pulverização.
Em 2004, dois anos após sua criação, porém, no Nordeste do país, três milhões e
novecentas mil famílias com insuficiência alimentar não receberam qualquer assistência.46
O Fome Zero teria, no entanto, tirado da fome milhões de pessoas,47 abrangendo diversas
frentes, criando canais alternativos de comercialização de alimentos, convênios com
supermercados e sacolões, criação de cooperativas de consumo, apoio à agricultura
alimentar, incentivo à produção para auto-consumo e combate ao desperdício.
Em seu primeiro ano, o Fome Zero dobrou seus objetivos iniciais. Até janeiro de 2004
houve o atendimento de 1.900.000 famílias, totalizando 11 milhões de pessoas, em 2369
municípios, prioritariamente localizados nas regiões semi-áridas do Nordeste. O projeto-
piloto fora iniciado nos municípios de Acauã e Guaribas, no Estado do Piauí (semi-árido
nordestino), em interligação com a necessidade de água e da construção de cisternas
para obtê-la. Essas ações foram desencadeadas pelo Programa Articulação do Semi-
Árido, que construiu 22.040 cisternas.48
Foi criada também uma linha de crédito destinada à construção de pequenas obras
hídricas dentro do Programa Nacional de Agricultura Familiar - Pronaf Semi-Árido, tendo
sido concluídas 205 obras.49 Os programas se financiaram com recursos públicos: os

45
O Vale-Gás foi o último dos programas sociais criados pelo governo FHC, e repassava R$ 15 a cada dois
meses a 8,5 milhões de pessoas. O Bolsa Renda dava R$ 30 por mês a 842 mil famílias que moravam em
municípios atingidos pela seca. No mesmo governo FHC, a bolsa-alimentação, no valor de R$ 15 mensais,
era dada a mulheres grávidas ou que estivessem amamentando, e a crianças de até seis anos de idade de
famílias carentes. O programa bolsa-alimentação complementava o Bolsa Escola, programa do Ministério da
Educação.
46
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Segurança Alimentar 2004. In: www.ibge.gov.br.
47
In: www.fomezero.gov.br: “Os benefícios financeiros estão classificados em dois tipos, de acordo com a
composição familiar: - básico: no valor de R$ 50,00, concedido às famílias com renda mensal de até R$ 60,00
por pessoa, independentemente da composição familiar; - variável: no valor de R$ 15,00, para cada criança
ou adolescente de até 15 anos, no limite financeiro de até R$ 45,00, equivalente a três filhos por família”.
Além disso, o Benefício Variável de Caráter Extraordinário (BVCE) foi concedido às famílias dos programas
remanescentes (Programas Bolsa Escola, Bolsa Alimentação, Cartão Alimentação e Auxílio-gás), cuja
migração para outros programas implicasse em perdas financeiras para a família. O valor concedido foi
calculado caso a caso, com prazo de prescrição.
48
Através de assinatura de Protocolo de Intenções entre o governo e a Articulação do Semi-Árido (ASA), se
propiciou a construção de 21 mil cisternas na região de expansão do Cartão de Alimentação. Desse total, 10
mil cisternas seriam provenientes do convênio firmado com a Federação Brasileira de Bancos (FEBRABAN).
As outras 11 mil seriam construídas com recursos do governo. Estava previsto um investimento de R$ 32,5
milhões. A ASA é uma organização não-governamental que reúne mais de 700 entidades.
49
O Projeto Crédito Fundiário e Combate à Pobreza Rural disponibiliza aos trabalhadores rurais
financiamentos, que variam conforme a região, com tetos entre 12 e 18 mil reais, prazo de amortização de até

42
contribuintes, através de impostos, subsidiaram a manutenção física dos trabalhadores
carentes de emprego, ou com renda insuficiente para garantir sua subsistência. Uma
sinopse do programa Fome Zero nos seus primeiros dois anos e meio demonstrou a
preeminência absoluta do Programa Bolsa Família (PBF) dentro do mesmo (o PBF foi
posto em prática desde 2004, a partir de junção de quatro programas já existentes):
Fome Zero – Janeiro de 2003 a Junho de 2005
R$
7 milhões
13
Bolsa Família de 70% gastos com alimentação 5542 municípios
bilhõ
famílias
es
R$
Programa de 150 mil 222 mil toneladas de produtos
494
Aquisição de agricultore diversos ao ano; 638 mil litros de Todos os estados
milhõ
Alimentos s leite por dia
es
R$
2 mil por Dois em funcionamento 32 em
Restaurantes 20
dia (cada construção, 78 em fase de pré- 95 municípios e 5 estados
populares milhõ
um) seleção
es
R$
100 295 mil
Cisternas 71,2 mil unidades 872 municípios
milhõ pessoas
es
R$
Comunidades indígenas,
Cestas 42 300 mil
650 mil cestas quilombolas e atingidos
Básicas milhõ famílias
por barragens
es
2.500
R$ 5
Banco de pessoas
milhõ 25 unidades 25 municípios
Alimentos por
es
unidade

As “ações contra a fome” envolveram o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate


à Fome (MDS), o Ministério do Desenvolvimento Agrário, o Ministério da Saúde, o
Ministério da Educação, do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, o
Ministério do Trabalho e Emprego, o Ministério da Ciência e Tecnologia, o Ministério da
Integração Nacional, o Ministério do Meio Ambiente, o Ministério da Justiça e a Secretaria
Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, além do Ministério da Fazenda:
foi uma política que subordinou todas as áreas do governo, como eixo da sua atividade.
A diminuição da taxa de crescimento demográfico, e o aumento da produtividade agrícola,
haviam mitigado o problema alimentar no país. Mas isso coexistiu com um aumento na
vulnerabilidade do setor. Houve uma produção, em 2005, de 113,507 milhões de
toneladas de grãos, um pouco inferior à safra de 2004, que foi de 119,370 milhões de
toneladas. O setor agrário apresentava um aumento na produção de grãos. As oscilações
no mercado mundial, no entanto, assim como a política econômica, afetaram a oferta de
alimentos. A safra 2006/2007 foi a segunda consecutiva de ajuste à política de juros
elevados e taxa de câmbio apreciada. Mas, as variáveis internacionais mudaram
rapidamente. Na safra 2005/2006 houve uma redução de 1812 mil hectares na área com
grãos (-3,7%). Na safra 2006/2007, a redução foi um pouco maior, de 1873 mil hectares (-
4,0%). O destaque foi a redução da área com soja, principalmente na região Centro-
Oeste. No total, a redução foi de 2485 mil hectares. Milho e trigo também tiveram
apreciáveis reduções. A rentabilidade do setor agrícola, entretanto, foi garantida por: a)
menores custos de produção, resultado da apreciação cambial; b) elevação dos preços

20 anos, com três anos de carência, juros fixos de 6% ao ano, sem correção monetária e com rebate de 50%
quando os pagamentos são feitos em dia. As famílias beneficiadas também recebem financiamento para a
infra-estrutura básica.

43
internacionais de grãos, milho, soja, trigo e arroz; c) drástica queda dos estoques
mundiais, principalmente de milho e trigo; d) expansão dos programas de bioenergia,
principalmente nos EUA. O aumento da rentabilidade do setor agrário pôde coexistir com
uma queda da oferta alimentaria para a população.
O PT, partido de governo, apoiou oficialmente o Fome Zero: “O Partido dos Trabalhadores
reconhece e apóia o esforço do Ministro José Graziano e de sua equipe para a
implementação do programa tão inovador e se propõe em ser o articulador dessa
mobilização, construindo um grande movimento nacional de luta contra a fome por
inclusão social e conscientização. Uma campanha educativa que não transforme as
famílias beneficiadas em dependentes de mendicância alimentar, mas que lhe garanta o
acesso à educação popular, alfabetização, saúde, emprego e renda. Esta campanha deve
incluir outros partidos, entidades assistenciais, de educação popular, ONGs, conselhos
comunitários, sindicatos”.50
Bolsa Família e Assistencialismo
A centralização crescente dos programas sociais coincidiu com seu incremento: os gastos
do governo federal com programas e ações sociais cresceram a partir de 1995 (em
algumas áreas, aumentaram dez vezes entre 1995 e 2005), uma tendência que precedeu
o governo Lula. Foi o caso do conjunto de programas englobados na assistência social: o
pagamento dos benefícios de prestação continuada (BPC), do PBF, dos serviços de ação
continuada (SAC) e do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil. Em 1995,
destinava-se 0,08% do PIB para esses benefícios; em 2005, eles já representavam
0,83%, ou seja, os benefícios mais que decuplicaram (levado em conta o crescimento do
PIB no mesmo período).
Os gastos sociais no Brasil se encorparam significativamente com a regulamentação de
direitos previstos na Constituição de 1988. O Benefício de Prestação Continuada (BPC) é
destinado a garantir uma renda aos indivíduos que, por velhice ou incapacidade, estão
fora do mercado de trabalho, sem renda familiar nem acesso aos benefícios da
Previdência Social. Pela Constituição, qualquer pessoa nessas condições, que
demonstrasse ter renda inferior a 1/4 do salário mínimo, poderia requerer o benefício,
passando a receber um salário mínimo por mês, quantia superior à do PBF. Em 1995, o
número de atendidos pela BPC era de 1,2 milhão. Em 2005, chegou a 2,8 milhões. São
pessoas localizadas no setor pobre da população idosa, a partir de 65 anos de idade.
Os cash transfer programs são chamados de “mecanismo condicional de transferência de
recursos”, pois agiriam contra a pobreza através de “transferências condicionadas de
renda”, visando a transmissão da miséria de geração a geração, buscando interromper o
“ciclo inter-geracional”. A idéia desses programas começou a ganhar força em 1997,
quando só existiam, limitadamente, em três países no mundo: Bangladesh, México e
Brasil. Dentro do Fome Zero, o PBF se transformou no principal programa de
“transferência de renda”. Destinado às famílias em situação de pobreza e extrema
pobreza, o PBF unificou os procedimentos de gestão e execução das ações de
transferência de renda e do cadastramento único. Estima-se que com o PBF houve uma
transferência média de recursos de R$ 73,00 por família. A sua origem esteve no
Programa Cartão-Alimentação,51 que fez parte das políticas específicas do Fome Zero,
sendo substituído pelo PBF. O intuito foi o de unir diversos programas de distribuição de

50
Declaração do Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores, São Paulo, 15 de março de 2003.
51
O Programa Cartão-Alimentação (PCA) foi regulamentado por decreto presidencial, definindo o valor e a
duração do benefício: R$ 50,00 para cada família com renda mensal per capita inferior a meio salário mínimo,
em até seis meses, prorrogáveis por mais dois períodos de seis meses.

44
renda, com a unificação dos programas Bolsa-Alimentação (Ministério da Saúde), Auxílio-
Gás (Ministério das Minas e Energias), Bolsa-Escola (Ministério da Educação) e o Cartão-
Alimentação (MESA).52 O quadro que segue informa as características iniciais ndo
programa:
Ocorrência de crianças
Critério de Elegibilidade / adolescentes 0-15 Quantidade e Tipo de Valores do Benefício
Renda Mensal per anos, gestantes e Benefícios (R$)
Situação das Famílias nutrizes
capita
1 Membro (1) Variável 15,00
De R$ 60,01 a
Situação de Pobreza 2 Membros (2) Variável 30,00
R$ 120,00
3 ou + Membros (3) Variável 45,00
Sem ocorrência Básico 50,00
Situação de Extrema 1 Membro Básico + (1) Variável 65,00
Até R$ 60,00
Pobreza 2 Membros Básico + (2) Variável 80,00
3 ou + Membros Básico + (3) Variável 95,00

Ao entrar no PBF a família se compromete a manter suas crianças e adolescentes em


idade escolar freqüentando a escola, e a cumprir os cuidados básicos em saúde. Em
2004, 6,5 milhões de famílias (59% das famílias pobres) foram beneficiadas pelo
programa, os recursos destinados somaram R$ 5,7 bilhões. Já em 2005, presente em
5542 municípios do país, o PBF atendeu mais de 8,7 milhões de famílias. Em 2006, esse
número cresceu para 10,9 milhões. Finalmente, no segundo semestre de 2007, o PBF
atingiu suas metas, atendendo 11,1 milhões de famílias, beneficiando um em cada quatro
brasileiros: um em cada dois nordestinos foi atendido pelo programa (no Nordeste, o PBF
repassa benefícios a mais de 5,7 milhões de famílias, ou 25 milhões de pessoas).
Foi argumentado que o PBF não seria mais do que uma continuação dos planos do
governo FHC: Lula simplesmente teria unificado planos precedentes - Bolsa Escola, Vale
Gás, entre outros - em um único benefício. Os defensores do governo FHC afirmaram
que, durante esse governo, entre os 10% mais pobres, ocorreu um aumento anual de
renda de 8%; entre os 20% mais pobres, de 5,9%; e, enfim, entre os 30%, de 4,9%, em
virtude de uma série de fatores (os avanços da educação, a diminuição da diferença de
renda entre campo e cidade, a redução do preço dos alimentos e o aumento do salário
mínimo).53
E é verdade que só uma parte dos programas sociais do governo Lula foi criação do
mesmo, em especial o Fome Zero: os outros já existiam antes que Lula assumisse a
presidência em 2003. Mas seria um consenso que os aproximadamente 75% dos votos
recebidos por Lula no Nordeste, em 2006, tiveram por base a concessão de benefícios do
Programa Fome Zero para cerca de 4 milhões de famílias em 2004, que ajudaram a
movimentar a economia local, com a injeção de R$ 200 milhões anuais.
Os críticos dos programas afirmaram que o governo Lula fez demagogia social com os
trabalhadores pauperizados, desorganizados e politicamente desinformados: “Esse novo

52
O ministro Graziano afirmou: “Já vimos que o Bolsa-Escola e o Bolsa-Alimentação apresentam resultados
positivos. Já o Vale-Gás e o Bolsa-Renda têm cadastros ruins e acabaram tendo uso eleitoral”, o que foi,
segundo o ministro, o motivo da sua unificação.
53
Segundo Augusto de Franco, funcionário do governo FHC no programa Comunidade Solidária: “Nos dois
últimos anos do governo FHC, preparou-se um plano para unificar todos os programas de renda mínima,
dispersos em diferentes ministérios, como o da Saúde, o da Educação e o da Assistência Social. Montava-se,
então, um cadastro único; imaginava-se que essa junção seria badalada publicitariamente para dar uma
marca social ao governo. Alguns ministros (José Serra, por exemplo) imaginaram que perderiam um
patrimônio eleitoral. O plano não saiu do papel - aliás, saiu, só que no governo do PT”.

45
populismo deve provocar deslocamentos na base social do próprio PT, cujas relações
com os trabalhadores organizados estão se deteriorando. Fernando Henrique Cardoso
multiplicou as bolsas e ajudas efêmeras, incertas e insuficientes, que vinham sendo
implementadas desde o governo Sarney: auxílio gás, auxílio leite, bolsa escola, renda de
emergência, etc. O governo Lula unificou tudo isso numa Bolsa Família e aumentou um
pouco a dotação orçamentária para esse fim. Não são direitos, são sobras de caixa que
dependem do humor do capital financeiro. O governo Lula está sabendo explorar
simbolicamente essa iniciativa: faz solenidades para distribuir bolsas, faz publicidade na
rádio e na TV. Os ministros da área social simulam resolver no varejo a desgraça que os
ministros da área econômica promovem no atacado. Não se trata de uma proposta de
organização política dos trabalhadores pauperizados pelo capitalismo neoliberal para
fazer deles uma força pela mudança do modelo econômico”.54
Já segundo Cristóvam Buarque, ao retirar a palavra "escola" do programa, o governo tirou
a ênfase dada a educação, princípio básico para o desenvolvimento econômico e social.
A transferência da gerência do programa da pasta da Educação para a do MDS, segundo
ele, foi uma evidência de assistencialismo: «Colaborou para isso o fato de o Lula ter tirado
o nome ‘escola’ do Bolsa Escola. Quando criei esse nome, havia um objetivo: colocar na
cabeça da população pobre que a escola era algo tão importante que ela ganharia
dinheiro para o filho estudar. O Lula chegou e disse: ‘A pobreza é uma coisa tão
preocupante que você vai ganhar um benefício por ser pobre’. Deixou de ser uma
contrapartida para a ida do filho à escola. Essa contrapartida não é cobrada com a devida
ênfase. A coisa amoleceu quando Lula tirou o programa do ministério da Educação, onde
o Fernando Henrique tinha colocado, e levou para o Ministério do Desenvolvimento
Social».
Finalmente, cabe assinalar o papel do PBF como amortecedor dos conflitos sociais. O
programa foi um fator determinante para o esvaziamento dos movimentos sem terra
durante o primeiro mandato do presidente Lula. O número de famílias que invadiram
terras no Brasil caiu de 65.552, em 2003, para 44.364, em 2006; uma queda de 32,3%.
Nesse mesmo período, a quantidade de famílias sem terra acampadas despencou de
59.082 para 10.259 - uma diminuição de 82,6%. O único número que se manteve estável
foi o de invasões, que oscilou de 391 em 2003 para 384 em 2006.55
O BPC é o outro programa social de grande abrangência, destinado a manutenção de
pessoas que não têm condições de prover o seu sustento por si ou por sua família, e não
são cobertas pela Previdência Social. Possui valor de um salário mínimo (varia, portanto,
com este, o que o diferencia dos outros programas de transferência de renda). Dos 2,4

54
BOITO, Armando. O Governo Lula e a reforma do neoliberalismo. Revista Adusp n° 34, São Paulo, maio de
2005.
55
Diante da inclusão de acampados no Bolsa Família, o MST assumiu a posição que segue, a 18 de maio de
2009: “1- Defendemos todas as políticas públicas que contribuam para resolver os problemas emergenciais
das famílias de trabalhadores pobres do campo e da cidade, como a cesta básica e o programa Bolsa Família.
2- No entanto, consideramos insuficientes essas políticas assistencialistas, que são limitadas e não resolvem
os problemas estruturais da sociedade brasileira, como a terra, educação, saúde e habitação. 3- Defendemos
o assentamento imediato de todos os acampados e a atualização dos índices de produtividade como medidas
emergenciais para resolver os problemas das famílias que vivem na beira de estradas em todo o país. 4-
Somos contrários às políticas do governo para ajudar os bancos e grandes empresas diante da crise
econômica mundial, que vai piorar as condições de vida de todos os trabalhadores e trabalhadoras do campo
e da cidade. 5- A solução para os trabalhadores rurais é a realização de uma Reforma Agrária Popular e um
programa de agroindústrias em todas as cooperativas de assentamentos, para garantir a produção de
alimentos para toda a população e a geração de renda para as famílias assentadas”. Vale notar que, dentre
as famílias acampadas (a grande maioria pelo MST) da Reforma Agrária, aproximadamente 226 mil estão
cadastradas no PBF.

46
milhões de pessoas que recebem o benefício, 1,27 milhão são idosos, e 1,16 milhão
pessoas com deficiência. Em 2006, foram incorporados 160 mil beneficiários ao
programa, perfazendo um aumento de mais de 40% entre 2002 e 2006. Os programas
referidos foram um dos principais temas da campanha de Lula à reeleição.56
Os partidos que sustentam o governo do PT e os partidos da oposição disputaram os
direitos autorais desta política – os petistas teriam se inspirado na experiência do governo
Cristóvam Buarque no Distrito Federal, então ainda no PT,57 e os “tucanos” no projeto da
prefeitura do PSDB em Campinas no Estado de São Paulo.58 Mas as políticas sociais
compensatórias “focadas” são um modelo defendido pelo Banco Mundial desde há, pelo
menos, duas décadas.
A crítica a esses programas afirma que as políticas sociais compensatórias criaram um
novo modelo de clientelismo político associado ao controle dos cadastros e à cooptação
dos movimentos sociais: o modelo “assistencialista” perpetuaria a dependência dos
beneficiados, e estabeleceria uma divisão na classe trabalhadora entre os que recebem e
os que não recebem sem trabalhar: “Focalizadas apenas nos indigentes, seletivas e
compensatórias, as políticas sociais vêm desenvolvendo estratégias fragmentadoras da
pobreza e se colocando em um movimento contrário à universalização de direitos sociais.
Sob esse ângulo de análise, o Fome Zero, apesar de seu grande apelo simbólico (tal
como o Programa Comunidade Solidária), não apresenta inovações”.59 Chegou-se a
afirmar que “a desproporção entre a Bolsa Família (R$ 10 bilhões) e o oceano de miséria
que há no país, que impede que esta política compensatória garanta, mesmo que em uma
longuíssima duração, uma redução significativa da desigualdade, ao contrário do que já
foi demonstrado pelo aumento do salário mínimo e da garantia do pleno emprego”.60
Aldaíza Sposati, ao contrário, sustentou que haveria “uma dupla interpretação de mínimos
sociais: uma que é restrita, minimalista, e outra que considero ampla e cidadã. A primeira
se funda na pobreza e no limiar da sobrevivência e a segunda em um padrão básico de
inclusão. Propor mínimos sociais é estabelecer o patamar de cobertura de riscos e de
garantias que uma sociedade quer garantir a todos seus cidadãos. Trata-se de definir o
padrão societário de civilidade. Neste sentido ele é universal e incompatível com a
seletividade e o focalismo”.61 Para Frei Betto e Patrus Ananias, “as ações desenvolvidas
no âmbito do Fome Zero não são assistencialistas. O objetivo desta política pública é a
inclusão social, através da universalização dos direitos da cidadania, a começar pelos

56
Na campanha pela reeleição, afirmou-se que o PBF deveria receber mais recursos no segundo governo
Lula, para aumentar os valores pagos, mesmo sem previsão orçamentária.
57
O governo do Distrito Federal implantou o programa Bolsa-Escola, que consistia no pagamento de um
salário mínimo mensal a cada família carente que mantivesse todos seus filhos entre sete e 14 anos
matriculados na rede escolar pública. A família requerente deveria residir cinco anos consecutivos no DF e ter
renda per capita de meio salário mínimo ou menos. Com o cadastramento na Bolsa-Escola, as famílias eram
automaticamente inscritas nos programas de emprego e renda da Secretaria de Trabalho/SINE. Com a
assinatura do convênio entre o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome e o Governo do
Distrito Federal, em 2004, essas famílias passaram a receber também os repasses do PBF.
58
Em 1995, o prefeito José Roberto Magalhães Teixeira (PSDB), em Campinas, iniciou um programa de
renda mínima relacionado à educação. Projetos de natureza semelhante foram sancionados em outros
municípios (Salvador, Ribeirão Preto, Sertãozinho, Londrina e Campo Grande).
59
YASBEK, Maria Carmelita. Fome Zero: uma política social em questão. Saúde e Sociedade, São Paulo,
Faculdade de Saúde Pública da USP e Associação Paulista de Saúde Pública, vol. 12, n° 1, janeiro 2003.
60
ARCARY, Valério. Um argumento crítico sobre o Bolsa Família. Correio da Cidadania, São Paulo, 28 de
outubro de 2006.
61
SPOSATI, Aldaiza. Mínimos sociais e seguridade social: uma revolução da consciência da cidadania.
Serviço Social e Sociedade, São Paulo, n° 55, 1997.

47
direitos sociais básicos (acesso a alimentação, saúde, educação, previdência e proteção
do emprego) visando à redução do déficit social do nosso país”.62
O Banco Mundial propôs um modelo semelhante para toda a assistência e previdência
social, propondo uma aposentadoria básica para os pobres, paga pelo Estado (quem
desejasse receber mais, teria de colocar dinheiro em um fundo complementar, “fundo de
pensão”, que seria aplicado no mercado financeiro, para render a aposentadoria no
futuro). Existe uma tendência geral mundial para reduzir a seguridade social a um
“benefício universal básico”:63 qualquer benefício acima desse valor seria coberto pelo
trabalhador, com contribuições obrigatórias ou voluntárias para fundos privados.
A imprensa conservadora, de modo geral, avaliou negativamente o PBF, como
assistencialista e clientelístico.64 Segundo O Globo: “O Bolsa Família precisa ser
reestruturado para ganhar uma dimensão social mais efetiva, perdendo seu caráter
assistencialista”. Outras avaliações assumiram suas dimensões “assistenciais” de
maneira positiva: aceita a necessidade de certo grau de assistencialismo e, com
dimensão “condicional”, se apostou em que seus beneficiários encontrariam saída no
crescimento econômico.
No Brasil, a lei n° 10.835/2004, de autoria de Eduardo Suplicy, instituiu a Renda Básica de
Cidadania, sendo sancionada no senado em 8 de janeiro de 2004 (em seu primeiro
mandato como senador, Suplicy já apresentara o projeto de lei 80/91, instituindo um
“Programa de Garantia de Renda Mínima”). A aplicação deveria ser feita de forma
gradual, começando pelos mais necessitados, com a evolução de programas de
transferência de renda. O PBF teria um papel distributivo de caráter emergencial,
condicionado ao poder aquisitivo do beneficiário que constitui família. Foi dito que “por ser
incondicional e universal, a Renda Básica supriria limitações e desvios dos programas de
transferência de renda”.65
No momento da instauração (só no papel) da Renda Básica de Cidadania, no Brasil, o
seu proponente Philippe Van Parijs saudou-a como complementar aos programas

62
Patrus Ananias foi ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Frei Betto foi assessor especial
da Presidência da República, no primeiro governo Lula.
63
Segundo Eduardo Suplicy, “programas de renda mínima resultam em redistribuição de renda e na melhoria
das condições de vida da população. Além disso, ajudam a enfraquecer práticas clientelistas”. O custo do
programa seria de cerca de 3% do PIB. A diferença entre os programas de garantia de renda mínima e a
renda básica de cidadania, seria que a segunda é “a melhor maneira de se contribuir para os objetivos de
erradicação da pobreza absoluta, de melhoria da distribuição da renda, de garantia de real dignidade e
liberdade às pessoas, é prover a todos o direito inalienável de participar da riqueza da através de uma renda
básica que, na medida do possível, seja suficiente para atender às suas necessidades vitais. Ao longo da
história foram sendo instituídos sistemas que guardam relação com as formas de garantia de renda mínima
que nós mesmos introduzimos no Brasil, sobretudo nos anos 90, como o Bolsa-Escola, o Bolsa-Alimentação,
o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil, o seguro-desemprego, até chegar ao Bolsa- Família”. Nessa
argumentação, os dois tipos de programa seriam praticamente a mesma coisa.
64
No extremo oposto do leque político, Francisco de Oliveira afirmou que “o Bolsa Família é algo que se pode
entender a partir da irrelevância da política. Não adianta dizer que é assistencialista. Isso é óbvio”. E
acrescentou: “Da mesma forma que as cotas [para minorias nas universidades], as ações afirmativas [são] um
dispositivo foucaultiano, uma clara regressão, uma anti-política na forma de uma política, uma biopolítica”.
65
Outra defesa da Renda Básica afirma que programas de renda condicional geram a "armadilha da pobreza
e do desemprego". Quem recebe do governo com a justificativa de que é pobre, pode ser desestimulado a
procurar um emprego e melhorar de vida, uma vez que ganhando mais, corre o risco de perder a garantia de
suas necessidades básicas. A busca do emprego formal é afetada, podendo estimular a inserção no mercado
informal e em “atividades ilícitas”. Também se aponta que o trabalhador é levado a aceitar condições
humilhantes de trabalho porque depende do que recebe pela mão de obra para garantir sua integridade física
e afastá-lo da mendicância, sendo a Renda Básica a forma de libertá-lo do emprego degradante e desumano.

48
focalizados já em andamento.66 Deixando de lado a questão do oportunismo político,
deixou claro que a diferença entre o assistencialismo focado e o universal é de grau, não
de qualidade. Porém, a “focalização”, contraposta a “universalismo”, estaria associada à
concepção de “justiça de mercado”: uma economia de mercado seria dotada de uma
capacidade integradora irresistível, pois seus benefícios materiais se transmitiriam à
quase totalidade da sociedade. As políticas sociais seriam residuais, incidindo sobre os
segmentos à margem dos processos econômicos integradores.
O remédio seria o aprofundamento da lógica do mercado, com focalização das políticas
sociais. A focalização seria um componente menor da racionalidade do sistema, de sua
eficiência global. A verdadeira política social seria a política econômica, que promoveria
as reformas de mercado (que no longo prazo seriam capazes de incluir todos). A
concepção “focalizada” rejeita a consideração das desigualdades sócio-econômicas como
motivadoras da intervenção pública: a política social seria a provisão de um seguro contra
as “agruras imprevisíveis”.
A defesa liberal da focalização a apresenta como o estilo "racional" de política social,
envolvendo uma escolha moral sobre o que deve e o que não deve ser objeto de
responsabilidade pública. A pobreza “imerecida” (resultante não de escolhas
"irresponsáveis", mas do acaso que ninguém poderia prever) seria a principal
circunstância a justificar a intervenção pública na forma de um “seguro social contra o
infortúnio”. De resto, a livre operação dos mercados promoveria a alocação ótima dos
recursos.67 A proposta de uma aposentadoria mínima para todos os cidadãos não seria
contrária a essa visão (a velhice seria uma “agrura universal”...).68

66
“No Brasil, mais do que em qualquer outro país, isso não é apenas um sonho nas mentes de um punhado
de ativistas e visionários. Está construído nos inúmeros esquemas de manutenção de renda que foram
integrados no PBF, nas lutas sociais que os tornaram possíveis e na experiência administrativa que eles
geraram. A Renda de Cidadania procurará atingir diversos objetivos ao mesmo tempo, como diversos outros
programas já o fizeram. Ela não é apenas um modo de atacar da forma mais direta a pobreza e a
desigualdade. Elevará o capital humano ao estimular a freqüência à escola, ao expandir os cuidados com a
saúde pública e ao encorajar a alfabetização dos adultos. Contribuirá para a distribuição mais equilibrada da
população do Brasil em seu território, diminuindo o êxodo rural para as cidades super-populosas. Uma renda
de cidadania não é uma alternativa de acesso ao emprego, mas um meio de permitir às pessoas realizar as
coisas para si e para a sociedade... será também um símbolo de solidariedade da nação brasileira inserida na
economia global. Devido aos seus recursos e à sua posição no mundo, o Brasil tem um imenso potencial para
se beneficiar de uma globalização justa, através de um aumento massivo daquilo que pode vender no
mercado mundial, atraindo investimentos diretos estrangeiros e também através de muitos outros efeitos
multiplicadores. Mas nenhum mecanismo de mercado espontâneo irá garantir que esses benefícios atingirão
todos os setores e todas as regiões do país. Alguns estão mesmo fadados a sofrer. Nesse contexto, uma
renda de cidadania pode ser vista como um dividendo federal. É uma maneira de distribuir para todos os
brasileiros uma retribuição por um esforço”, escreveu Van Parijs, no Valor Econômico.
67
KERSTENETZKY, Célia L. Políticas sociais: focalização ou universalização? Revista de Economia Política
26 (4), São Paulo, outubro/dezembro de 2006.
68
O Banco Mundial batizou sua proposta como a “previdência dos três patamares”. O primeiro seria estatal,
daria lugar a um benefício básico definido fixo ou com um piso e um teto, equivalente a uma cesta básica de
indigência, e. seria financiado com contribuições dos trabalhadores ou diretamente pelo Estado sobre a base
dos impostos gerais. Um segundo patamar seria privado (fundos ou companhias de seguros) com
contribuições obrigatórias dos trabalhadores acima do percentual de contribuição do primeiro. O terceiro
também seria privado, com contribuições voluntárias dos trabalhadores. O que se quer é reduzir a
aposentadoria estatal de modo a diminuir o gasto previdenciário. O Estado garantiria um “benefício universal”,
e qualquer excedente sobre essa soma proveria de contribuições a um fundo, com o trabalhador assumindo o
risco pelo investimento. A proposta consta do relatório Averting the old age: policies to protect the old and
promote growth, produzido pelo Banco Mundial em 1994, que apresenta os três patamares: o obrigatório, com
um sistema público de assistência, financiado por impostos, e encarregado de pagar uma quantia mínima pela
velhice; o segundo, também obrigatório, gerenciado pelo setor privado e capitalizado para fins de poupança; o

49
Bolsa Família e “Governança”
Analistas políticos e econômicos apontaram a ampliação do PBF como a principal causa
da alta na avaliação do governo Lula pela população: "Apenas o fato de que a economia
está estável não bastaria para alçar o Lula, porque às vezes isso não se reflete no bolso.
E aí entra o Bolsa Família, que aumenta diretamente a renda dos pobres. Essa
combinação é que faz a diferença" (Maria D' Alva Kinzo, de Ciências Políticas-USP):
"Nunca um programa atingiu tão fundo os estratos sociais mais pobres do país. Foi o
diferencial de Lula" (Carlos R. Melo, da UFMG).
No PBF, inicialmente, as famílias beneficiadas ganhavam até R$ 120, ou +/- US$ 67, por
mês: para receber a bolsa, os filhos precisavam manter freqüência de pelo menos 85% na
escola (a exigência legal média é de 75% de freqüência escolar), estar com o calendário
de vacinação em dia; as mães precisam seguir a agenda de exames pré e pós-natal (na
propaganda governamental afirmou-se que “o beneficio é pago à mãe, para fortalecer a
autoridade materna e os vínculos familiares”). O programa estabeleceu incentivos
econômicos para tarefas cumpridas pelas famílias. A família que descumprisse o
condicionamento por cinco vezes consecutivas teria seu benefício definitivamente
cancelado.69
Para entrar no PBF, as famílias com renda mensal por pessoa de até R$120 deveriam
procurar a prefeitura de seu município e se inscrever no Cadastro Único dos Programas
Sociais, de forma que a inclusão no programa fosse feita via sistema, de forma impessoal,
para minimizar influências políticas. Pesquisas indicaram que o dinheiro recebido é gasto,
pela ordem, em comida, material escolar, roupas e sapatos. Um estudo realizado pela
Universidade Federal de Pernambuco entre os beneficiários residentes na área rural,
concluiu que 87% do dinheiro recebido era utilizado para comprar comida.
Diversos analistas do PBF viram nele apenas uma espécie de "bolsa eleitoral", do tipo das
chamadas de pocket vote, que serviria para subornar as camadas mais vulneráveis da
população com transferências de dinheiro para obter eleitores cativos, sem erradicação
da pobreza pelo trabalho.70 Alguns críticos só se referem ao programa pelo seu apelido
pejorativo de "Bolsa Miséria". Em julho de 2009, o poeta (e “comunista histórico”) Ferreira
GuIlar publicou, na Folha de S. Paulo, um artigo afirmando que "governo populista enche
a barriga até dos que não precisam, com a famosa e desestimulante Bolsa Família”, que
provocou reprovação, mas também apoio, com diversas reações: “"O Bolsa Família vai
muito além de um modo fácil de aumentar a renda familiar. Ter filhos no Brasil do Lula é
garantir e perenizar os votos de cabresto que vão eleger os outros Lulas"; "Os planos
assistencialistas, especialmente o Bolsa Família, são instrumentos emergenciais, que
estão se tomando um fim em si mesmos. Ou seja, aqueles que menos têm condições de

terceiro, facultativo, a poupança individual como alternativa complementar aos níveis obrigatórios. O sistema
recomendado é parcialmente de contribuições definidas, capitalizado e gerenciado pelo setor privado.
69
Em setembro de 2007, por falharem reiteradamente na exigência dos filhos em idade escolar não faltarem a
mais do que 15% das aulas, 4.076 famílias tiveram cartões do PBF cancelados, e outras 81,2 mil tiveram o
benefício bloqueado ou suspenso. Esse foi o primeiro corte e suspensão em massa de benefícios, por não
cumprimento do programa. Em dezembro desse ano, o MDS advertiu 201.717 beneficiários que
descumpriram as condições de educação.
70
É claro que há, por parte dos políticos governantes, uma imensa capacidade de transmutar os benefícios da
política social promovida pelo Estado - paga por todos os contribuintes - em uma ajuda dada pelo governante
de turno, o que retira a política social do âmbito das relações sociais na esfera pública, e abre as portas para
seu uso clientelístico. O TSE (Tribunal Superior Eleitoral) aprovou, em novembro de 2008, a cassação dos
mandatos do governador da Paraíba, Cássio Cunha Lima (PSDB), e de seu vice José Lacerda Neto (DEM),
acusados de utilizar programas sociais para a distribuição irregular de dinheiro.

50
criar, educar e formar estão gerando mais filhos em busca de um benefício imediato. O
Brasil arma uma bomba-relógio social e fiscal".71
Os seus efeitos políticos teriam sido de permitir Lula vencer com folga (mais de 20
milhões de votos de vantagem) o segundo turno das eleições de 2006, abrindo-lhe o
caminho para um segundo mandato (2007-2010).72 Os pobres, basicamente, o teriam
reconduzido à presidência da República: só 11% de seus eleitores ganhavam mais de
cinco salários mínimos por mês (aproximadamente 800 dólares). Dos cidadãos que
recebem até dois salários mínimos, 56 % votaram nele em 2006. Desse contingente, em
1989 apenas 37 % deram seu voto ao candidato do PT. Em 2006, apenas 6% dos
eleitores de Lula tinham curso superior; em 1989, eles somavam 11%, o mesmo índice
dos que haviam atingido só a quarta série do ensino fundamental. Agora, estes somaram
35%. No final de 2007, Lula ditou Medida Provisória para garantir a expansão do beneficio
para jovens de 16 e 17 anos. Diversas avaliações apontaram que a base eleitoral e
política do PT deslocou-se da classe operária sindicalizada para os “pobres”
(desempregados ou trabalhadores “informais”), especialmente da região Norte-Nordeste.
No ano imediato anterior à reeleição de Lula, o índice de pobreza do país caiu de 30,5%
para 26,9%, uma redução de 3,5%, perfazendo o menor índice de pobreza desde 1997. O
PBF foi dado como um dos responsáveis pela redução do índice de miséria no Brasil, que
caiu 27,7% entre 2002 e 2006. Medido pelo nível de renda, a classe C passou de 33%
para 54% da população, entre 2003 e 2008, enquanto as classes D/E, as mais baixas,
passaram de 48% para 23%, no mesmo período. Mas os programas sociais foram vistos,
sobretudo, pelos seus efeitos políticos, pela sua potencialidade para definir um novo
“modelo de governança”. A estabilidade do governo, porém, em que pesem as repetidas
crises políticas, deveu-se a razões econômicas de ordem mais geral.73
O crescimento do PIB foi maior do que informado inicialmente. Pelos dados revistos do
IBGE, no primeiro governo Lula, ele foi de 3,3% ao ano (ao invés dos 2,6% ao ano da
série de dados original), um ponto superior ao governo anterior, de FHC. Em 2006, o PIB
cresceu 3,7%. Parte desse desempenho foi devido ao crescimento das exportações, que
quase duplicaram no período, passando de US$ 73 bilhões para US$ 137,5 bilhões.
Motivado pelo aquecimento da demanda mundial, esse boom exportador teve efeitos
eleitorais (além de alimentar o caixa destinado a financiar os programas sociais).
71
Essa “crítica” é bem semelhante ao argumento, de cunho racista, usado nos EUA contra as famílias negras
beneficiadas pelo welfare. Nesse ponto, Lula recebeu apoio do Banco Mundial: «À luz de uma série de
investigações no terreno, essa crítica revela ser amplamente infundada. A quantia média recebida por uma
família pobre é três ou quatro vezes mais reduzida do que o salário mínimo. Portanto, de qualquer maneira,
mais vale descolar um emprego, mesmo que este seja pouco qualificado. Longe de serem indolentes, as
famílias interessadas trabalham muito mais do que as outras». Outra crítica afirmou a possível geração de um
estado de dependência que o Bolsa Família criaria entre a população beneficiada: o programa não traria
soluções a médio e longo prazo para eliminar a situação de pobreza; essa tese é defendida e divulgada
inclusive pela Igreja Católica. Para esses críticos, o PBF não resolveria o problema da pobreza e não seria
suficiente para transformar a vida dos pobres. O Banco Mundial, novamente, se opôs a essas críticas,
afirmando que os efeitos de desincentivo na oferta de mão de obra parecem ser pequenos. A “Terceira
Conferência Internacional de Transferências Condicionadas”, patrocinada pelo Banco Mundial, concluiu:
"Existem provas de que em certos ambientes, a 'condicionalidade' transforma a 'assistência social' em
'investimento social'".
72
Versão contestada por: SHIKIDA, Cláudio; FRANCISCO, Ari; CARRARO, André. Desconstruindo mitos: não
foi o Bolsa Família. Valor Econômico, São Paulo, 5 de junho de 2007.
73
Embora não se possa ignorar o uso eleitoral dos programas sociais. No projeto “Territórios de Cidadania”, o
governo Lula destinou R$ 9,3 bilhões para 958 municípios (pouco menos de 20% da totalidade dos municípios
do Brasil) para o repasse de verbas em crédito agrário e Bolsa Família. Os governos do PT concentram 2/3
das verbas, 75% dos municípios estão em mãos de partidos da base política governamental, 70,4% (675
municípios) em estados governados por aliados do governo Lula.

51
O candidato Lula foi mais votado nos municípios menos desenvolvidos do Brasil. A
análise sugere que sua votação esteve inversamente relacionada com a renda per capita
do município e diretamente com a taxa de mortalidade infantil, analfabetismo e
desigualdade. Essas características estão presentes nos municípios potencialmente mais
favorecidos pelo PBF. Surgiu a hipótese de que os ganhos de bem-estar dos mais pobres
teriam sido responsáveis pela reeleição de Lula. Tomando-se, por exemplo, a variação
dos índices de preço, são notáveis as diferenças de acordo com as faixas de rendas.
Observando o período entre a posse de Lula, em janeiro de 2003, e as eleições ocorridas
em 2006, o Índice de Preços ao Consumidor Ampliado (IPCA), que considera as rendas
das famílias até 40 salários mínimos, aumentou 24%. No mesmo intervalo, o preço da
cesta básica teve aumentos bem menores: nas capitais do Rio Grande do Sul e de São
Paulo teve uma elevação de 8,5% e 10,4%. Em Recife e Fortaleza, a cesta básica só
aumentou nesse período em 4% e 3% (no segundo turno de 2006, Lula recebeu em
Pernambuco 82% dos votos, e no Ceará, 75%).
Concluiu-se disso que teve mais peso no eleitor a estabilização dos preços para o
consumo de baixa renda (os eleitores optaram por votar no candidato que lhes pareceu
mais comprometido com a sua continuação). As mudanças que supostamente
amenizaram a concentração de renda já teriam estado em curso quando Lula chegou ao
governo, sendo ampliadas graças à conjuntura favorável da economia mundial. Segundo
o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), existiriam evidências de que a
desigualdade de renda caiu, com a renda média dos pobres aumentando
proporcionalmente mais do que a dos ricos. Isto explicaria a popularidade do governo
Lula: “A queda da desigualdade é suficiente para que os mais pobres percebam um nível
de desenvolvimento no país e um aquecimento da economia que outros grupos de renda
não estão percebendo”. Analisando a curva de redução da desigualdade no ano de 2004,
o Ipea observou que 75% do aumento da renda dos 20% mais pobres resultou da
diminuição do grau de desigualdade: “O crescimento econômico (de 2004) foi responsável
por menos de 1/3 da queda observada na extrema pobreza e, portanto, para os pobres, a
redução no grau de desigualdade foi três vezes mais importante do que o crescimento
econômico”.
Frei Betto, membro do governo Lula na sua fase inicial considerou que “graças ao Bolsa
Família, há mais recursos circulando no interior do país e nas periferias, bem como maior
freqüência de crianças à escola. Porém, lamento que o projeto original do Fome Zero
tenha sido abandonado. Previa-se que cada família beneficiária ficaria, no máximo, um
ano e meio com direito de receber a renda da União. Tempo suficiente para que ela se
emancipasse do programa e passasse a gerar a própria renda. Previa-se ainda uma
ampla participação da sociedade civil, sobretudo através dos Comitês Gestores. Estes
foram erradicados pelo próprio governo e, por sua vez, o Fome Zero ficou praticamente
reduzido a um dos seus 60 programas de políticas públicas: o Bolsa-Família”. A
“emergência” se transformou em política permanente.74
Depois de quase seis anos de sua adoção, o PBF atendia (julho de 2009) 11.333.308
famílias (entre 45 e 50 milhões de pessoas), em 5.564 municípios (quase a totalidade do
Brasil), concedendo benefícios de R$ 20 a R$ 182 a famílias miseráveis (com renda
mensal até R$ 69), que recebem o benefício básico de R$ 62, mais R$ 20 por filho (limite
de três) e R$ 30 por adolescente (limite de dois); e pobres (com renda entre R$ 69 e R$
182). Com o reajuste previsto para o segundo semestre de 2009, ele terá tido três
aumentos: em agosto de 2007 houve uma recomposição de 18,25%, referente às perdas
74
O PSDB, principal oposição ao governo de Lula, já declarou que defenderia o PBF na sua campanha
eleitoral presidencial de 2010.

52
entre outubro de 2003 (quando o programa foi criado) e maio de 2007. Em junho de 2008
houve um reajuste médio de 8%.75
A Universidade Federal Fluminense realizou uma pesquisa sobre o PBF. Para 85,6% das
famílias atendidas pelo programa, a qualidade da alimentação melhorou depois que
passaram a receber a Bolsa. A quantidade de alimentos também aumentou na avaliação
de 59,2% dos entrevistados.76 Os impactos dos programas “focalizados”, setoriais, no
entanto, tendem a se reduzir em processos inflacionários, pela alta dos alimentos e dos
produtos da cesta básica.77 Até o final de 2010, a meta do governo é atender 13 milhões
de famílias.
Em 2008, o PBF demandou R$ 11,1 bilhões do orçamento público, ou 0,4% do PIB (o
pagamento dos juros da dívida pública equivaleu a 3,8% do PIB, quase dez vezes mais).
Estudos do Banco Mundial avaliaram que já foram registrados resultados mensuráveis
positivos no consumo de alimentos, na qualidade da dieta e no crescimento das crianças.
Kathy Lindert, chefe do Bolsa Familia Project listou desafios: definição clara de objetivos,
monitoramento e avaliação, para assegurar que o programa não se torne uma ilha
isolada, mas seja complementado por investimentos na educação, saúde e na infra-
estrutura, ajudando as famílias a saírem do programa, etc. Julia Sant´Anna definiu o PBF
como um programa de “baixo custo fiscal e alto benefício político”: "um esquema anti-
pobreza inventado na América Latina (que) está ganhando adeptos mundo afora",
segundo The Economist. O PBF tem sido recomendado pela ONU para adoção em outros
países “em desenvolvimento”. Um relatório da OIT ressaltou a importância da
manutenção e da ampliação do PBF no contexto da crise econômica internacional: tratar-
se-ia de uma medida anticíclica que promoveria benefícios para a economia como um
todo, ao fomentar a demanda de alimentos e produtos de primeira necessidade.
Os problemas de administração e corrupção não foram nem são pequenos. Alguns
estudos apontaram que o cumprimento dos condicionamentos não estaria sendo
satisfatoriamente fiscalizado. Em 2006 não foram monitorados os condicionamentos de
68% das famílias beneficiadas. Tais falhas fizeram com que os índices de vacinação e de
nutrição entre famílias beneficiadas e não beneficiadas fossem equivalentes.78 Existem
também cálculos de que 195.330 famílias (quase 2% do total) teriam renda acima do
limite; 299.832 beneficiários já teriam morrido (o que perfaz, somado à cifra anterior,

75
Foi previsto um reajuste do valor do PBF em 2009, juntando a inflação acumulada desde 2008, mais a
previsão de inflação para 2010. O valor médio do benefício, de R$ 85, foi reajustado para R$ 95. Outra
possibilidade seria seu reajuste atrelado a outro indicador econômico, como o salário mínimo; o PBF não
ficaria vinculado ao indicador de inflação, que tem apresentado tendência de queda (deflação).
76
Foram ouvidas na pesquisa 3.000 famílias beneficiadas pelo programa há pelo menos um ano. O
levantamento foi realizado em março de 2006, nos 26 Estados e no Distrito Federal.
77
Segundo Lula, a elevação mundial do preço dos alimentos seria uma "inflação boa", que convocaria os
países a produzir mais e atender à demanda por alimentos no mundo, contrariando os alertas de organismos
como a FAO: "A inflação sobre os alimentos é decorrente do fato de que as pessoas estão comendo mais.
Ora, na medida em que mais gente começa a comer carne, produtos de soja, trigo... se a produção de
alimentos não aumentar, obviamente que nós vamos ter inflação. Os sinais de inflação nos alimentos,
demonstrando que o povo está comendo mais, são uma boa provocação e ao mesmo tempo uma convocação
ao mundo de que se precisa produzir mais alimentos", sendo possível, para ele, combater a alta com um
aumento equivalente na produção de alimentos. Paul Krugman referiu-se à alta dos alimentos como ”a outra
crise”. Com a inflação chinesa, a importação de produtos chineses teve elevação do custo, provocando
inflação nos países que usam os produtos chineses para contê-la. Na China, o preço médio dos alimentos
subiu 21% em 2008.
78
O governo Lula assinou em junho de 2005 um “convênio de apoio analítico e de orientação técnica” com o
Banco Mundial, que forneceu 572 milhões de dólares para sua implantação, para estabelecer “mecanismos de
controle mais eficientes”.

53
quase 5% de benefícios irregulares); entre os políticos eleitos em 2004 e 2006 há 20.601
famílias que receberam ou recebem benefícios.79
Desde a criação do programa, só 60.165 famílias (pouco mais de 0,5% das beneficiárias)
pediram voluntariamente seu desligamento. Há 2,2 milhões de famílias inscritas no
cadastro-fila para o PBF (enquanto outras 5 milhões de pessoas podem estar excluídas...
por falta de documentos de identidade!). Ao todo, 15.160.000 famílias brasileiras (60
milhões de pessoas, ou um terço da população do país) tem renda inferior a R$ 120:
destas, 4,03 milhões de famílias não recebem o PBF, segundo o Ibase.
As críticas ao PBF misturam argumentos oriundos de diversos horizontes ideológicos e
políticos: 1. Não ofereceria uma perspectiva real de um emprego e a independência
gradativa do benefício;80 2. Não chegaria a muitos que precisam; e beneficiaria muitos
que não precisam, por fiscalização ainda ineficiente e fraudes;81 3. Não garantiria a
permanência das crianças e dos jovens nas escolas, por não existirem ferramentas de
controle amplas o bastante; 4. Desestimularia pobres a buscar trabalho formal para
receber o benefício; 5. Acostumaria uma massa de pobres a encarar o benefício como um
“direito adquirido”. Não existem tampouco ainda avaliações sobre o impacto do PBF no
chamado “ciclo inter-geracional de pobreza”, ou seja, estimações acerca de se os filhos
das famílias beneficiadas estão melhor posicionados no mercado de trabalho que seus
pais, ou que as famílias que não receberam os benefícios do PBF.82
Programas Compensatórios e Trabalho
Comparados com o PIB e, sobretudo, com os lucros gerais do capital, os programas
sociais constituem um percentual baixo. O PBF custou ao governo, em 2005, R$ 5,5
bilhões (aproximadamente US$ 2,3 bilhões), que pagaram benefícios a 8,7 milhões de
famílias, ou seja, aproximadamente 35 milhões de pessoas. Mas, em 2006, o setor
financeiro recebeu R$ 272 bilhões, em conceito de pagamento dos juros das dívidas,
quase 50 vezes o que se gastou com o PBF. A dívida pública consome, por outro lado,
42% do orçamento federal:83 os serviços da dívida passaram de 16% do orçamento
federal, em 1995, para 42%, em 2005, ou de R$ 26 bilhões para R$ 257 bilhões anuais.
Com isso, a dívida pública caiu de 57,2% do PIB, em 2003, para 49,5%, em 2007. Em
2005, o governo federal aplicou 26,49% do orçamento em áreas sociais, frente a 42,45%
em serviços da dívida pública. A verba restante, 31,06%, foi destinada para a Previdência
Social. A carga tributária teria crescido, portanto, no Brasil, basicamente para cobrir o

79
A chamada “corrupção endêmica” cobra também aqui, portanto, seu tributo. No geral, o Brasil perderia o
equivalente a 32% de sua arrecadação tributária com corrupção e ineficiência na administração da máquina
pública. Considerando o valor total desembolsado pelos contribuintes em 2006, que atingiu quase R$ 733
bilhões, o desperdício com a corrupção chegou a R$ 234,5 bilhões, segundo um estudo do Instituto Brasileiro
de Planejamento Tributário (IBPT).
80
O plano para qualificar profissionalmente beneficiários do PBF não decolou.
81
Contra a lenda que afirma que isto favoreceria o Nordeste “folgado”, já foi comprovado que é justamente o
Nordeste quem melhor fiscaliza o PBF (Valor Econômico, 1º de setembro de 2008).
82
Em setembro de 2007, um pesquisa encomendada pelo MDS revelou que o incentivo do Bolsa Família não
significou melhora no aproveitamento escolar de dez milhões de alunos de famílias beneficiadas. As faltas às
aulas foram reduzidas em 37%, mas sem impacto no desempenho geral dos alunos. Para especialistas em
educação, o problema estaria “na alfabetização deficiente, ocasionada pela má formação dos professores e
por materiais didáticos de má qualidade".
83
A concentração de renda provocada pela política econômica de juros altos faz com que cerca de 20 mil
famílias brasileiras fiquem com 4,25% do PIB só por emprestar dinheiro ao governo, segundo estudo do
economista Marcio Pochmann, da Unicamp. Com o projeto de déficit nominal zero esse percentual subiria até
7% do PIB.

54
aumento dos encargos da dívida pública. Se fosse extirpada essa rubrica do orçamento, a
carga tributária cairia dos atuais 38% para 26% do PIB. A dívida contraída pelo governo
com a emissão de títulos públicos cresceu R$ 470 bilhões no primeiro mandato do
governo Lula, chegando a R$ 1,094 trilhão no final de 2006. O aumento de 75% se
explica pelos elevados juros praticados no país, e pela estratégia de substituir o
endividamento externo por dívida interna.84
Com relação à situação dos assalariados “formais”, o reajuste do salário mínimo, em
2006, atingiu 13%, o que significou um gasto a mais de R$ 5,6 bilhões, quase o mesmo
montante do PBF. Para assegurar o salário mínimo de 1536 reais, definido pelo Dieese
(Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos), seriam
necessários R$ 132 bilhões anuais a mais. A defasagem do poder de compra do salário
mínimo para garantir a cesta básica oficial da família era de 227% em novembro de
2002.85
A renda média mensal dos trabalhadores caiu de R$ 850 mensais (1996), para pouco
menos de R$ 700 (2003). A Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios (PNAD) de 2003
mostrou que entre os anos 2002 e 2003 (último ano do governo FHC) ocorreu a maior
redução no rendimento médio mensal, com uma queda de 7,4%. Em 2003, os 10% com
os maiores salários ficaram com 45,3% do total dos rendimentos no país, enquanto que
os 10% com menores salários ficaram com apenas 1%: quase um terço da população, em
torno de 60 milhões de pessoas, sobrevivia com dois salários mínimos.
Em 2006, pesquisa do Dieese mostrou que crescia o número de trabalhadores que
ganhava até 1,5 salário mínimo: 68,7% dos pisos salariais pagos pelas empresas aos
trabalhadores correspondiam a até 1,5 salário mínimo. Também crescia o percentual de
trabalhadores que ganhavam até 1,25 mínimo (de 23,4% para 43,6%) e até um mínimo
(de 1,7% para 2,8%). Por outro lado, os pisos salariais acima de três salários caíram de
4,6% em 2005 para 3,8% em 2006. Na média, os pisos salariais pagos pelas empresas
caíram de 1,69 salário mínimo em 2005 para 1,52 mínimo. Em 2005, o mínimo subiu de
R$ 260 para R$ 300 e, em abril de 2006, a alta foi de R$ 300 para R$ 350. O reajuste real
(descontada a inflação) do mínimo, nesses dois anos, alcançou 22%.
Durante o governo Lula, no entanto, não regrediu a regressão tributária. As pessoas com
renda até dois salários mínimos (R$ 930, e lembremos que se trata de quase 33% da
PEA) levam mais dois meses que os demais - um total de 197 dias - para quitar as
obrigações tributárias. Os que ganham mais de 30 salários mínimos mensais (R$13.950)
trabalham três meses a menos - um total de 106 dias - do que os de renda até dois
salários mínimos para quitar tributos. A carga tributária bruta para as pessoas que
ganham até dois salários é de em 53,9%, enquanto que para os que ganham mais de 30
mínimos é de 29%. A carga impositiva para quem recebe até dois salários mínimos é,
portanto, 85,8% maior do que para quem recebe acima de R$ 13.950 mensais, o que
contraria, obviamente, o princípio de capacidade contributiva.
O PBF, no entanto, foi usado como argumento contra a elevação do salário mínimo.
Durante o debate sobre o valor do salário mínimo, o Ipea elaborou um estudo defendendo
o valor menor. Argumentou que só 29% da elevação da renda das famílias proporcionada

84
Durante o governo FHC (1995-2002), os títulos públicos em circulação no mercado interno representavam
42% do PIB. Entre janeiro de 2000 e dezembro de 2002, a dívida cresceu R$ 182 bilhões. Só em 2006, a
carga de juros que incidiu sobre os títulos públicos em circulação no mercado foi de R$ 142 bilhões, 17 vezes
mais do que o valor destinado, no mesmo período, aos beneficiários do Bolsa Família.
85
Entre os beneficiários dos programas sociais com emprego formal, 896.247 estão no Programa Bolsa
Família. Deles, 609.448 se incluem no critério de renda de até R$ 100 per capita por família.

55
pelos R$ 15 a mais no mínimo iria para famílias efetivamente pobres. A soma da renda
anual das famílias subiria R$ 2,4 bilhões com o mínimo maior. Disso, R$ 1,8 bilhão viria
de benefícios previdenciários, e R$ 600 milhões, de aumento de salários. Mas só R$ 700
milhões do total iriam para as famílias mais pobres. O mesmo efeito, dizia o Ipea, poderia
ser conseguido com a elevação do valor do benefício básico do PBF em R$ 10,90 por
mês. O custo seria de R$ 700 milhões, supondo que todo o dinheiro destinado à elevação
do benefício chegasse até os pobres.
A questão do desemprego, provocado por mudanças na estrutura produtiva e na posição
mundial do país no comércio internacional, vincula-se com a questão da fome e da
miséria. Fernando Henrique Cardoso assumiu a presidência com o desemprego em 6,7%
da população economicamente ativa. Entregou-o a Lula com 9,9%. Sob o governo Lula, o
desemprego elevou-se um pouco acima dos 10%. Entre os jovens de 15 a 24 anos o
desemprego pulou de 35% para 40% a partir de 2001, ficando estável desde então. Mais
da metade dos trabalhadores brasileiros não tem emprego formal (51,2% em 2004): "O
setor informal gera empregos de baixa qualidade e remuneração, constituindo um atraso,
uma distorção a ser combatida. Tem efeitos deletérios no longo prazo, na medida em que
cerceia a expansão de companhias mais eficientes e que respeitam a legislação".86
Segundo o Ipea, quase 80% dos trabalhadores carece de proteção social. A urgência
para conquistar o sustento individual, faz com que muitos desistam de buscar empregos
com carteira assinada. Associada ao “mercado informal” está a baixa escolaridade e
profissionalização.
Os dados do IBGE mostram que o “setor informal” gira riquezas equivalentes a R$ 248
bilhões anuais; segundo o Banco Mundial, essa parcela da economia brasileira chegaria a
3,8% do PIB. Para cerca de 32 milhões de trabalhadores no mercado formal, há 48
milhões no “informal”, incluindo empregados e quem trabalha por conta própria, mas sem
declarar rendimentos: “A existência de uma grande parcela de cidadãos que não possuem
trabalho fixo ou que trabalham no setor informal da economia, sinônimo de exclusão dos
direitos trabalhistas, não permite ao Estado tomar conhecimento preciso da situação real
e do montante de famílias em situação de fome e pobreza. Tentativas de identificação dos
pobres através de critérios técnicos dificilmente são capazes de diferenciar os pobres do
restante da população de baixa renda”.87
Para o período 2003-2006 (primeiro mandato), o governo Lula deu a conhecer um
balanço econômico que lhe era favorável. A “transferência de renda” foi apresentada de
modo demasiadamente geral como para ser analisada. Outros índices (como o aumento
da carga tributária, inclusive sobre os salários) foram simplesmente ignorados.88 No
entanto, a questão tributária e fiscal não é alheia à questão da alimentação.89

86
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Brasil: Estado de uma Nação. São Paulo, 2006.
87
Um primeiro olhar sobre o Programa Fome Zero. Valor Econômico, São Paulo, 26 de junho de 2006.
88
As contas do setor público (União, Estados, municípios e estatais), excluindo despesas financeiras,
registraram saldo positivo, superávit primário, durante quase todo o governo Lula. Ao incluir a fatura com os
juros da dívida estatal, desse resultado primário positivo se chega a um déficit, dito nominal, do PIB. Apesar
da poupança que vem fazendo desde 1998, o setor público ainda não conseguiu baixar substancialmente a
sua dívida líquida. A carga tributária já ultrapassa, no entanto, 37% do PIB. Em 1995, os gastos públicos em
investimentos representavam 2,54% do PIB, relação que caiu para 1,9%, em 2000, e para 0,9%, em 2005, ou
seja, em 2005, o Estado absorveu 37,4% de toda a riqueza produzida, mas investiu apenas 0,9% dela.
89
No Brasil, historicamente, o crescimento da carga fiscal coincidiu com a acentuação das desigualdades
regionais e, principalmente, das desigualdades sociais. Entre 1920 e 1958, a carga passou de 7% a 19% do
PIB. Entre essa última data e hoje, ela subiu para 37%.

56
O Brasil tem um dos mais altos tributos do mundo para a comida. A camada de renda
mais baixa da população brasileira paga, proporcionalmente, a maior carga tributária
sobre alimentos, em relação às classes mais abastadas. Os que recebem até R$ 350
pagam tributo na comida quatro vezes maior (3,94%) do que os com renda superior a 20
salários mínimos (1,05%). A carga tributária sobre a comida é de 15,29% no país, mais do
que o dobro da média dos países (7,11%) da Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento a Econômico (OCDE). A diferença é maior quando os números são
comparados com os dos EUA: dos 50 estados norte-americanos, 34 têm alíquota zero
sobre os produtos alimentícios. O tributo médio sobre a venda de alimentos naquele país
é de 0,66%.
O argumento liberal afirma que, se fosse feita uma desoneração total (federal e estadual)
sobre os alimentos, seria possível reduzir em 2,5 milhões o número de pobres, e em 960
mil o de indigentes existentes no país. Caso a isenção fosse realizada em apenas dez
estados (Pernambuco, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Pará, Rio de Janeiro, Paraná,
Mato Grosso do Sul, Goiás, São Paulo e Bahia) haveria redução de 6,6% da pobreza e de
18,08% da indigência (respectivamente 1,75 milhão e 684 mil indivíduos).90
Claro que essa desoneração provocaria queda na arrecadação fiscal, afetando os
programas sociais. Mas os impostos indiretos (os que incidem sobre os produtos
alimentícios) incidem em um percentual muito maior no orçamento da população
trabalhadora e pobre, do que no orçamento das classes abastadas. E o grosso da
arrecadação fiscal não é destinado a programas sociais, mas ao pagamento da dívida
pública. Ainda que este fosse um dado conjuntural, é evidente que a única solução seria a
de reduzir os impostos indiretos, ou eliminá-los (no caso dos gêneros de primeira
necessidade), substituindo-os por uma taxação progressiva sobre o grande capital e seus
lucros.
Desde a adoção do Plano Real, vem se verificando uma tendência para a queda da
pobreza absoluta.91 Em relatório conjunto da ONU e do governo, estabeleceu-se uma
redução pela metade da extrema pobreza no país, entre 1990 e 2005: nesse período, 4,7
milhões de pessoas deixaram essa condição, o que fez cair o índice respectivo de 9,5%,
em 1992, para 4,2%, em 2005.92 O índice de Gini, que mede a desigualdade de renda,

90
CAVALCANTI, Simone. Pobre paga o maior imposto em alimentos. Gazeta Mercantil. São Paulo, 15 de
janeiro de 2007.
91
Mas essas tendências verificaram-se paralelas a outra queda: a do rendimento médio das famílias. E
algumas coisas permanecem basicamente inalteradas: os 10% mais ricos da população são donos de 46% do
total da renda nacional, enquanto os 50% mais pobres, ou seja, 87 milhões de pessoas ficam com apenas
13,3% do total da renda nacional. O Brasil tem 14,6 milhões de analfabetos, e pelo menos 30 milhões de
analfabetos funcionais. Da população de 7 a 14 anos que freqüenta a escola, menos de 70% concluem o
ensino fundamental. Na faixa entre 18 e 25 anos, apenas 22% terminaram o ensino médio. Os negros são
47,3% da população, mas correspondem a 66% do total de pobres. A renda das mulheres corresponde a 60%
da renda dos homens. A tendência histórica de concentração de renda e de propriedade no Brasil é enorme:
países com renda per capita similar à brasileira têm 10% de pobres em sua população, enquanto o Brasil se
situa na casa dos 30%: ainda hoje, cerca de 55 milhões de brasileiros vivem em situação de pobreza. Destes,
cerca de 22 milhões em indigência. No Brasil, a renda dos 20% mais ricos é quase 22 vezes maior que a dos
20% mais pobres (na China, 12,2 vezes, na Rússia, 7,6, na Índia, 5,6), e os 10% mais ricos ostentam renda
51,3 vezes maior que os 10% mais pobres (5 mil famílias se apropriam de 45% da renda nacional).
92
Cabe questionar também os índices que se usam para estabelecer a “pobreza absoluta”, tanto quanto a
pobreza em geral. Segundo Pablo Rieznik, economista da Universidade de Buenos Aires: “La pobreza ha
caído vertiginosamente en el último cuarto de siglo en todo el mundo y en China en particular, de acuerdo con
las cifras del Banco Mundial. No se aclara, sin embargo, que bajo la lupa del capital, para situarse por arriba
de la pobreza hay que ganar más de un dólar por día. En China alcanzaría para obtener el status de afluente
con ganar 0,20 dólares, no uno entero, porque ése sería su poder adquisitivo en el país... Si el piso de la
pobreza fuera ubicado no en un dólar sino en algo más de dos dólares diarios, la cosa cambiaría

57
caiu de 0,595 para 0,566. Na última divulgação do índice de Desenvolvimento Humano
(IDH) da ONU, pela primeira vez, o Brasil entrou no rol de países considerados de alto
IDH. O índice do Brasil de 2005 subiu de 0,792 para 0,800, marco do PNUD para o alto
desenvolvimento. Mas o país caiu do 69º para o 70º, último lugar entre os países com IDH
alto, sendo ultrapassado por Albânia e Arábia Saudita. A entrada no grupo do alto IDH foi
estimulada pelo crescimento econômico e pelos programas sociais, segundo o PNUD.
A isenção fiscal, durante o governo Lula, criou também problemas para programas sociais
de antiga data, gerenciados pelo setor privado, como o fim da contribuição das micro e
pequenas empresas para o Sistema S: Sesc, Senac, Sesi, Senai e Sebrae. Essas
entidades privadas desenvolvem “políticas sociais” voltadas para a “aprendizagem e
cultura dos trabalhadores”. Os recursos são obtidos a partir de um percentual recolhido
sobre a folha de pagamento de todas as empresas que atuam no “mercado formal”. Uma
nova lei promoveu renúncia fiscal, isentando as micro e pequenas empresas. O Sesc
estimou que a mudança implicou perda de 20% de sua receita.93
Para a burguesia industrial, com a promoção de novos programas sociais “focados”,
estaríamos assistindo, no Brasil, a uma substituição dos eixos dos programas sociais
vigentes, deslocando-os da capacitação profissional para o trabalho, em direção da
assistência à fome e à penúria material em geral. Caberia pensar, no entanto, que o que
preocupa este setor é que os programas sociais fixariam um patamar de remuneração
mínimo da força de trabalho assalariada, do que não faltam, como veremos, exemplos
históricos.
As estatísticas oficiais confirmam que a renda que vem do trabalho é uma proporção cada
vez menor dos rendimentos das famílias brasileiras, em especial nas muito pobres. Em
2006, a fatia de "outras fontes" de renda que não as do trabalho ou de aposentadorias e
pensões subiu. Nas famílias do “fundo do poço social”, as 10% mais pobres, o trabalho
era 54% do rendimento total, contra 65% em 2004 e 76% em 2001. "Outras fontes"
passaram de 18% em 2001 para 37% em 2006 (números calculados a partir de dados da
PNAD de 2006). De 2001 a 2006, a renda dos 10% mais pobres foi a que mais cresceu:
56% em termos reais. A renda média dessas famílias era de R$ 131,38 mensais em 2006,
ou R$ 34,77 per capita. Exatamente 1.468.142 famílias, ou 3.485.305 pessoas,
declararam renda zero.
A renda média declarada de "outras fontes" cresceu para todas as faixas de renda até
80% das famílias. No caso dos 20% ou 30% mais pobres, é possível atribuir tal
incremento a "rendas mínimas", entre elas o PBF. Há disparidade entre o crescimento da
renda do trabalho e a de "outras fontes" entre as famílias mais pobres. No décimo mais
pobre, o trabalho rendeu mais 18% entre 2001 e 2006; a renda de "outras fontes" subiu

radicalmente: de 2549 millones de personas "pobres" en 1987, se pasa a 2812 millones en 1998. Excluyendo
a China del cómputo, el crecimiento de la pobreza sería aún mayor - de 1797 millones de personas en 1987 a
2178 millones en 1998. Pero en China, la mayor parte de la reducción de la pobreza se produjo antes de que
se iniciara la apertura comercial y financiera, con lo que no puede ser esta última el principal motor de la caída
de los niveles de pobreza de ingreso en este país. El progreso económico del capital supone el incremento de
la explotación del trabajo y la miseria social - que no se reduce a la pobreza en términos de ingresos sino que
tiene que ver con el envilecimiento de la existencia social. Una reciente encuesta revela que en Estados
Unidos el ingreso disponible de los hogares aumentó, desde mediados de los '70, como consecuencia de la
incorporación de la mujer al "mundo del trabajo" (doble explotación y reducción del salario por persona en las
familias) y de la prolongación de la jornada laboral, que creció en dos semanas por año. A esto hay que sumar
el endeudamiento para el consumo, que por un lado compele a aceptar una mayor explotación y por el otro
lado prepara la bancarrota de la economía familiar”.
93
O chamado Super Simples, além de diminuir a carga de impostos das micro-empresas, flexibilizou os
direitos trabalhistas de seus empregados.

58
226%. No Nordeste, a renda do trabalho subiu 7,7%; "outras fontes", 245%. O trabalho
constituiu 74% da renda em 2001 e 48,9% em 2006; "outras fontes", 23% e 49,2%,
respectivamente. No Sudeste, a rubrica "outras fontes" também cresceu, de 6,3% para
13,8%, da renda familiar. Falha, portanto, a inclusão dos “excluídos”,94 isto é, cresce o
exército industrial de reserva.
ONGs e “Populismo”
Cabe também mencionar a atuação das ONGs, central, no Brasil, nos últimos anos.95 A
CGU (Controladoria Geral da União) estima que as parcerias do governo federal com
entidades não-governamentais tenham consumido R$ 33,8 bilhões desde 1999. Em
valores corrigidos pela inflação, os anos de mais intensa parceria da União com entidades
foram 2000 e 2001. Não existe, no orçamento brasileiro, uma classificação exclusiva para
os repasses feitos a ONGs (Organizações Não Governamentais) e Oscips (Organizações
da Sociedade Civil de Interesse Público). Eles aparecem em meio a pagamentos feitos a
“entidades privadas sem fins lucrativos”. Não há estimativa nem de quantas entidades
desse tipo prestam serviços ao Estado. Existem apenas estimativas, que revelam grande
crescimento desses repasses durante o governo Lula. As ONGs foram especialmente
ativas na administração do PETI e na questão do trabalho infantil, desde bem antes do
governo Lula.

94
TORRES FREIRE, Vinícius. Renda zero. Folha de S. Paulo, 2 de dezembro de 2007.
95
Para o Programa Fome Zero, foi criada a “Ação Fome Zero”, ONG formada “por empresas comprometidas
com o desenvolvimento humano e social do país com a missão de apoiar técnica e financeiramente ações que
pretendam reduzir os níveis de pobreza do Brasil”.

59
No Brasil, a aproximação entre ONGs e o governo começou nos anos 1980. Era o
momento em que questões sociais, de direitos humanos, e ambientais, passaram a fazer
parte da agenda política oficial. Na década de 1990, a denominação passou a ser usada
por várias entidades. As Oscips, diferentemente das ONGs comuns, podem remunerar a
diretoria. Em outros países, as entidades não-governamentais não recebem recursos
públicos e vivem de doações. Por outro lado, um estudo do Ipea apontou que o montante
investido todo ano pelo setor privado em “projetos sociais” atinge cerca de R$ 4,7 bilhões,
destinados a “ações sociais” por empresas (dedutíveis, em geral do Imposto de Renda, o
que provoca queda da arrecadação fiscal).96
O campo das entidades de “assistência social”, o segmento mais antigo do "terceiro
setor", carece de legislação, o que se vincula à força dos lobbies articulados em relação à
questão da assistência social. O segmento goza de imunidade tributária, com base no art.
50 da Constituição. Nele estão não só entidades sem fins lucrativos que atuam na área da
assistência social, mas também muitas que atuam na área da saúde e da educação, que
não deveriam ser consideradas como entidades privadas sem fins lucrativos. É o caso,
por exemplo, de escolas e hospitais particulares que, muitas vezes, só secundariamente
realizam ações gratuitas no campo da saúde e da educação, e que, no entanto são
entidades contempladas com o estatuto filantrópico (ou “pilantrópico”, na piada popular).
Muitas entidades têm o Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social (Cebas)
e estão se beneficiando de imunidade tributária. O debate aponta para a atuação das
empresas propriamente ditas e das fundações empresariais que têm finalidades
específicas nesse campo.97
A legislação existente é uma colcha de retalhos, amparada sob a LOAS (Lei Orgânica da
Assistência Social). Um núcleo de interesses enorme, que ultrapassa a conjuntura do
governo Lula, se constituiu em torno de ONGs, 98 cujo número ultrapassa a casa dos
milhares. O valor dos repasses do Estado às ONGs (que atingiu 1,3% do PIB em 2006,
depois de um forte crescimento) se estabilizou a partir de 2007.

96
A Fundação Bradesco, por exemplo, movimentou em 2005 um orçamento de R$ 167 milhões para manter
funcionando seus projetos. No mesmo ano, a Secretaria Especial de Direitos Humanos, ligada à Presidência
da República, gastou pouco mais de R$ 46 milhões; a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da
Igualdade Racial, R$ 14 milhões.
97
As fundações mereceriam um capitulo à parte. Freqüentemente não encaminham dados de sua atuação ao
ministério público. O volume de dinheiro público repassado a essas entidades é grande: pelo menos, 113
fundações brasileiras foram beneficiadas com recursos federais, cujos fins vão desde bolsas de pesquisa a
promoção de eventos. Promotores públicos lutam pela extinção dessas entidades.
98
Sobre o papel internacional das ONGs já foi dito que: “O mercado da expertise (consulta e avaliação)
internacional é elitista e protegido. Para aceder a ele, é necessário possuir competências lingüísticas e
culturais… As organizações não-governamentais recrutam entre os melhor diplomados dentre os profissionais
jovens dos campi… Porém, o acesso para esta elite educacional está reservado, no essencial, para os
herdeiros de um establishment liberal que sempre cultivou certa forma de idealismo e universalismo. Graças a
tal recrutamento, algumas organizações ‘militantes’, algumas ONGs, têm um viveiro constantemente renovado
de competências. Tão incentivado quanto reconhecido, eles se transformam em sócios ‘críticos’ das
multinacionais e dos Estados. Estas colaborações, mal remuneradas, mas ricas de experiência, não excluem,
ou até mesmo encorajam, carreiras ulteriores nas instituições de Estado, nos grandes estudos de consulting
ou de avaliação, até nas multinacionais. Os profissionais da ‘combatividade’ re-encontrarão os velhos colegas
de escola, e muitas vezes os ultrapassarão. Os treinamentos ‘militantes’ deste tipo permitem adquirir algumas
das chaves da "internacionalização", realmente essenciais: um carnê de endereços, mas também uma
experiência política que combina a visibilidade da mídia e a discrição da intriga, do lobbying, sem esquecer de
uma reputação muito útil no caso de reconversão ulterior como "empresário moral"” (DEZALAY, Yves;
GARTH, Bryant. Connivence des élites internationalisées. Le Monde Diplomatique, Paris, junho 2005).

60
Conseguindo fazer um governo que agradasse ao capital em geral, especialmente o setor
financeiro, e que mantivesse, ao mesmo tempo, o apóio das camadas mais pobres da
população, a experiência brasileira 2003-2010 propõe de fato um novo “modelo de
governabilidade” (ou “governança”), de alcance universal? Ou estaríamos diante da
reedição das clássicas políticas clientelistas do populismo (nacionalismo) latino-
americano? A oposição é simplista. Por um lado, as “políticas sociais focalizadas” levam
visivelmente a marca da crise social das décadas de 1980-1990 na sua ata de nascimento
(ou seja, são políticas de crise).
Por outro lado, as diferenças com o populismo “histórico” (peronismo ou varguismo, por
exemplo) são gritantes: a marca principal dos regimes nacionalistas de meados do século
XX na América Latina foram as concessões feitas em matéria salarial e de cobertura
social (incluídos o salário mínimo, e o salário diferido na forma de legislação social e
previdenciária) e também sindical, com vistas a criar estruturas sindicais atreladas ao
Estado (a chamada “integração da classe operária”). A “assistência social” aos pobres
não trabalhadores, ou trabalhadores informais e/ou ocasionais (“biscateiros” no Brasil, ou
“changuistas”, na Argentina) ocupou, nesses regimes, um lugar secundário, quando não
simplesmente inexistente. A sua função histórica foi, portanto, diversa.
O governo do PT buscou, por sua vez, evitar a acusação de “reedição do populismo”. Os
programas sociais atuais se encontrariam "no fio da navalha, essa estreita fronteira entre
direitos e carências na qual transitam programas como esse (e que) diz respeito às
mediações políticas entre o mundo social e o universo público dos direitos e da cidadania.
Essas mediações, a serem construídas e reinventadas, circunscrevem um campo de
conflito que é também de disputa pelos sentidos de modernidade, cidadania e
democracia. Disputa que diz respeito também ao sentido político e desdobramentos

61
possíveis de programas de enfrentamento à pobreza. Pois, no fio da navalha em que
transitam, suas promessas de cidadania dependem grandemente da refundação da
política como espaço de criação e generalização de direitos".99
No segundo mandato de Lula, a “segunda geração” da reforma da previdência propôs um
programa de Renda Básica do Idoso, em substituição da Lei Orgânica da Assistência
Social - LOAS (de dezembro de 1993, que regulamentou os artigos 203 e 204 da
Constituição federal de 1988) que estabelece, em seu artigo primeiro: "A assistência
social, direito do cidadão e dever do Estado, é política de Seguridade Social não
contributiva, que provê os mínimos sociais, realizada através de um conjunto integrado de
ações de iniciativa pública e da sociedade, para garantir o atendimento às necessidades
básicas". A lei vem sendo gradativamente substituída pelo “programa”, a garantia do
direito pela precariedade da concessão, subordinada à vigilância do condicionamento (é
isto que é proposto como “modelo mundial”, nos chamados behavior-based income
transfers).
Conclusões
Os programas sociais compensatórios foram classificados dentro dos “estabilizadores
automáticos” da economia capitalista, com vistas a evitar que as políticas anticíclicas
viessem a depender de ações aleatórias, dependentes dos humores políticos. Segundo
Paulo Haddad, “desde a crise de 1929 se vem buscando implantar mecanismos legais,
constitucionais (seguro desemprego, Previdência Social) ou infraconstitucionais
(programas sociais compensatórios) que possam defender o nível de renda da economia,
atenuando os impactos da insuficiência de demanda agregada (mas) se a atual crise
econômico - financeira mundial se prolongar e se aprofundar haverá uma perda de
eficácia relativa desses estabilizadores, que estão totalmente ancorados na receita federal
e na sua expansão”.
A unificação e ampliação dos programas sociais compensatórios, efetuada pelo governo
Lula, teve essa função econômica como eixo essencial. Significou também uma mudança
na orientação política do Estado, fazendo da política de assistência social um dos eixos
principais da estabilidade política (nos governos precedentes, aquela ocupava um lugar
econômica e politicamente secundário). O orçamento do MDS aumentou 150% entre
2003 e 2008 (passando de R$ 11,4 bilhões para R$ 28,6 bilhões). A unificação não foi,
portanto, meramente administrativa, mas (macro) econômica e política. O debate acerca
da “renda básica” que o precedeu foi seu solo ideológico.
A mudança afetou os métodos de governo (ou “governança”). Na etapa política
precedente, os direitos sociais eram postos como universais; em 1988 implantou-se uma
"Constituição Cidadã", em momentos em que, como aponta Julia Sant´Anna, muitos dos
países vizinhos do Brasil “já se adaptavam às restrições das reformas de mercado”.
Aquela Constituição implantou o Sistema Único de Saúde, assim como um benefício
assistencial a adultos maiores de baixa renda.
A mesma autora nota que “seis anos de governo de um partido diretamente envolvido
nessas conquistas permitem ver que sua principal estratégia social é a concessão de
benefícios que não são direitos garantidos por lei”, supostamente porque a suspensão do
benefício funcionaria como castigo aos que não cumprem com as regras estabelecidas,
no que é caracterizado como “contradição histórica entre o que perseguia o PT nos anos

99
TELLES, Vera Silva. No fio da navalha: entre carências e direitos. Notas a propósito dos programas de
Renda Mínima no Brasil. Programas de Renda Mínima no Brasil. Impactos e potencialidades. São Paulo,
Polis, 1998.

62
1980, e o que pôs em prática já no governo”, pois o PBF “não substituiu os direitos ainda
inacessíveis para os que no estão cobertos pelo sistema de proteção social”.

O próprio tratamento da “questão social” mudou de eixo. Os programas sociais


“focalizados” permitiram uma diminuição significativa da pobreza absoluta, coexistente, no
entanto, com uma trajetória pouco alterada da concentração de renda e, ao mesmo
tempo, com uma diminuição da renda média das famílias, uma diminuição significativa da
remuneração média do trabalho assalariado, e um grande incremento das fontes de renda
não vinculadas ao trabalho, nas camadas mais pobres. Isto indicaria que os programas
sociais foram financiados, basicamente, com uma transferência de renda dos
assalariados para os setores mais pobres.
Cabe, portanto, questionar a própria noção de “transferência de renda”, que provoca a
impressão de um imposto pago pelos setores mais abastados para financiar a
sobrevivência dos mais pobres, e que classifica as classes sociais, não pela sua relação
com os meios de produção e de troca, mas pelo seu “nível de renda”. Os programas
sociais compensatórios são financiados, basicamente, não pela taxação do capital, mas
pela taxação do salário, na forma de impostos ou contribuições, por isso a diminuição da
pobreza absoluta coexiste com a diminuição real da média do piso salarial (e da própria
massa salarial, quando medida em relação ao PIB).
Pois, do lado oposto da estrutura social, o faturamento real (descontada a inflação) das
empresas brasileiras cresceu 41% de 2000 para 2007. As empresas da Bolsa de Valores
dobraram seu lucro desde 2003: o lucro total das 257 companhias que fazem parte da
Bolsa de São Paulo dobrou do início do governo Lula até o final de 2007, passando de R$
61,6 bilhões para R$ 123,7 bilhões (um aumento de 100,76%).
A Petrobrás e a Vale do Rio Doce juntas lucraram R$ 41,5 bilhões, o que corresponde a
metade da soma dos ganhos de todas as outras 255 empresas listadas. Mas o capital
financeiro foi o grande beneficiário da política econômica: os bancos lideraram, em
lucratividade, em todos os anos do governo Lula. O lucro total do setor passou de R$ 12,7
bilhões em 2003 para R$ 28,7 bilhões em 2006, um aumento de 225%. Em 2007, o setor
bancário teve um lucro de R$ 45,4 bilhões, batendo os recordes precedentes.
Os assalariados, ao serem os principais financiadores do caixa do Estado (em um país
em que a sonegação fiscal do empresariado é a regra) e, portanto, dos programas sociais
compensatórios, financiam: a) A estabilidade econômica, ou seja, a própria reprodução
capitalista, que se beneficia dos programas sociais como “estabilizadores automáticos”,
via consumo das camadas sociais beneficiadas; b) A estabilidade social, ao financiar uma

63
renda paliativa da miséria social; c) A estabilidade política, ao dotar o governo de uma
base político/eleitoral refém do pocket vote, ou seja, de subsídios precários que
dependem da renovação de seu mandato político; d) A recuperação do capital, ao
estabelecer um mecanismo de financiamento do exército industrial de reserva na
“entressafra” da recessão ou da crise, criando uma massa de força de trabalho disponível.
Sua plena disposição depende, no entanto, da supressão ou redução (por qualquer
mecanismo) dos subsídios compensatórios.
Os recursos consagrados aos “direitos universais” estabelecidos constitucionalmente
experimentaram, ao contrário dos programas sociais, um retrocesso relativo durante o
governo Lula: os gastos com saúde e educação, embora crescessem em termos
absolutos, decresceram em termos percentuais, passando de 1,79% para 1,59% do PIB,
e de 0,95% para 0,77% do PIB, respectivamente (de 1995 até 2005). Uma diferença de
0,4% do PIB, enquanto os “gastos sociais” foram incrementados, em prazo semelhante,
em 0,7% do PIB. A diferença de 0,3% foi coberta, em principio, pela maior taxação (direta
e indireta) dos salários.
Desde os primórdios da sua formulação, ainda sob os governos “neoliberais”, os
programas sociais compensatórios coexistiram com a redução dos gastos sociais nas
áreas prioritárias que atingem a maioria da população - saúde, educação, transporte
urbano e moradia - em função do ajuste dos gastos públicos para a “modernização” do
parque produtivo como necessidade da nova “agenda internacional competitiva”, ou
simplesmente para atender às necessidades de remuneração do capital financeiro, como
na recomendação explicita do FMI.
A política geral do governo Lula não provocou uma inflexão na tendência histórica de
queda relativa do rendimento do trabalho, considerando tanto o salário direto quanto o
indireto (saúde, previdência e educação pública): a remuneração do trabalho tem um peso
na renda nacional, em 2008, de 39,1%; em inícios da década de 1980, ela superava 50%.
As condições criadas, de retrocesso relativo da pobreza mais acentuada, se encontram
vinculadas ao desempenho econômico da conjuntura prevalecente até 2008, sem
mudanças de natureza estrutural na produção de renda (e na sua distribuição, que é
conseqüência daquela).
Os “programas sociais focalizados” se revelaram complemento necessário do
“neoliberalismo”, que assim se revela como não contraditório com o “Estado interventor”
(ou “desenvolvimentista”), mas como seu desdobramento necessário em condições de
crise do capital, e da ampliação – como via de saída para essa mesma crise, pelo
incremento da taxa de mais-valia e da taxa de exploração – do exército industrial de
reserva. Na medida em que são financiados por fundos estatais, as ações do Estado se
ampliam, no sentido da regulação do mercado de trabalho com a transferência do fundo
público, em proporção crescente, para o financiamento do setor privado, assumindo os
custos da reprodução da força de trabalho: o Estado (como “depositário” do fundo público)
transforma-se, mais do que nunca, em pressuposto geral da acumulação de capital.
A questão da pobreza no Brasil continua em trajetória precária. O quadro da porcentagem
de pobres nas grandes cidades é de mais de 40%, no Recife e em Fortaleza, mais de
30% em Belém e Salvador, mais de 20% em Belo Horizonte, mais de 15% em Porto
Alegre, Rio de Janeiro e São Paulo, mais de 10% em Curitiba. Na média das metrópoles
brasileiras, 21,01%, ou 4,9% a mais do que em 2000, 2,4% a mais do que em 2006.
O papel das ONGs na execução dos programas sociais as caracteriza como a principal
articulação entre o governo e a sua base social-eleitoral. O “modelo Lula” de
governabilidade consistiu, basicamente, na estruturação, como base política (e

64
organizadora da base social) de seu governo, as ONGs e os funcionários públicos
encarregados de gerenciar os “programas sociais” (em especial o PBF), cuja extensão
propõe ampliar, precisamente no mesmo momento em que a redução dos ingressos
fiscais mina suas bases econômicas.
A constituição de uma população cuja sobrevivência depende de programas de ajuda
social, não incorporados à estrutura institucional do país, se configurou como um paliativo
dependente de fatores principalmente externos e conjunturais. A partir de 2002, a
retomada do comercio externo e da produção local, junto com o crescimento dos recursos
fiscais (graças ao ciclo comercial mundial, favorável às matérias primas latino-
americanas) serviu ao conjunto dos governos da região (inclusive os neoliberais) para
lubrificar os antagonismos sociais, ou para a promoção das camadas mais
desfavorecidas: Venezuela e Bolívia impulsionaram importantes campanhas de saúde e
de educação (que nunca seriam feitas pelas velhas oligarquias desses países), mas não
avançaram em sentar as bases econômicas de uma autonomia nacional que sustentasse
a longo prazo os programas sociais.
América Latina viveu cinco anos com altas taxas de crescimento, inflação reduzida aos
menores patamares históricos e orçamentos equilibrados ou até com superávits. Ao
mesmo tempo, 40 milhões de pessoas deixaram a linha da pobreza (pelo menos
estatisticamente) durante esses anos. O retrocesso relativo da pobreza mais acentuada
esteve vinculado ao desempenho econômico da conjuntura, não a mudanças de natureza
estrutural. A crise econômica mundial afeta as economias latino-americanas, muito
dependentes da venda de matérias-primas (que representam mais de 60% das
exportações do subcontinente); todos os países se vêem afetados negativamente pelas
baixas do petróleo, do cobre ou da soja. As contas nacionais paulatinamente se
ressentem de arrecadações menores. A situação do mercado mundial consente cada vez
menos uma saída baseada num novo ciclo de endividamento. Os fluxos de remessas,
aplicações e investimentos diretos estão em queda. No Brasil, em 2009, a arrecadação
fiscal experimentou sua primeira queda desde 2003, que questiona a expansão (no
entanto anunciada) dos programas sociais compensatórios.
O “modelo Lula” terá sido o de dotar, temporariamente, de certa estabilidade, e até de
certa identidade política (via ONGs e uma parte da esquerda) ao financiamento da
“reserva de mão de obra”, e do próprio consumo, pela população assalariada, com
programas condicionados que não tocam o lucro capitalista. Valorizado
internacionalmente pela crise em que mergulhou a economia mundial a partir de meados
de 2007, o “modelo”, no entanto, leva a marca da precariedade e da condicionalidade que
ele próprio imprimiu ao seu principal instrumento, devido à sua dependência umbilical de
uma situação econômica conjuntural. Os programas sociais, por outro lado, parecem estar
atingindo seu limite em termos de erradicação da miséria absoluta. A natureza capitalista
(governada pela extração de mais-valia e pela anarquia da produção, a “cegueira“ do
mercado) da produção alimentar, e a própria crise do capital, impõem um limite
intransponível à ação do Estado.

65
A sua implantação, no entanto, abalou completamente as estruturas políticas
precedentes, ao ponto destas não poderem ser re-implantadas simplesmente como no
passado, em caso de crise do “modelo”. Política de crise, ela amplia as bases da crise
que a originou, mas pode (como fez a aparentemente “inocente” Comissão de
Luxemburgo, durante a revolução parisiense de 1848, que, nas palavras de Marx,
“revelou o segredo da revolução social do século XIX”) aproximar as mais amplas
camadas de trabalhadores do debate acerca dos meios para erradicar definitiva e
estruturalmente a miséria social (com métodos anti-capitalistas e socialistas) que foi a
marca da formação social brasileira desde seu nascedouro. Caso isso aconteça, o
impacto internacional da questão social do Brasil será mais profundo ainda, mas por
razões diversas e até opostas às que motivaram os “programas sociais compensatórios”.

Bibliografia
ABRAMOVAY, Ricardo. O que é Fome. São Paulo, Brasiliense, 1995.
ABREU, M.M. O controle social e a mediação da política de assistência social na sociedade brasileira na atualidade.
Revista de Políticas Públicas. São Luis, UFAMA, vol. 6 n° 1, 2002.
ADAS, Melhem. A Fome. Crise ou escândalo? São Paulo, Moderna, 1988.
AGUILAR, Luis et al. Alza de Precios; ¿Escasez o Especulación? Cochabamba, CEDIB, 2008.
ALTAMIRA, Jorge. Alimentos y materias primas: una gigantesca confiscación capitalista mundial. Prensa Obrera n°
1040, Buenos Aires, 5 de junho de 2008.
ANANIAS, Patrus. Investimento social contra a crise. Perfil Econômico, São Paulo, 26 de março de 2009.
ANANIAS, Patrus. Política social tira 14 milhões de pessoas da miséria e gera sete milhões de empregos. Em
Questão n° 625, Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, Brasília, 27 de março de 2008.
ANDRIOLI, Antonio A. et al. Transgênicos: as Sementes do Mal. São Paulo, Expressão Popular, 2008.
ANGUS, Ian. Food crisis. The Bullet nº 107, Ottawa, 12 de maio de 2008.
ARCARY, Valério. Um argumento crítico sobre o Bolsa Família. Correio da Cidadania, São Paulo, 28 de outubro de
2006.
BAILLARD, Dominique. Comment le marché mondial dês céráles s´est emballé. Le Monde Diplomatique, Paris, maio
de 2008.
BARTOLINI, Alessandro. L´inedia e i recenti aumenti dei prezzi alimentari. La Contraddizione nº 124, Roma,
setembro de 2008.
BELIK, Walter. O esforço internacional para conter a alta dos alimentos. Valor Econômico, São Paulo, 7 de julho de
2008.
BELIK, Walter. O novo pacto mundial dos alimentos. Valor Econômico, São Paulo, 14 de novembro de 2008.
BELIK, Walter; MALUF, Renato S. Abastecimento e Segurança Alimentar. Os limites da liberalização. Campinas,
Unicamp, 2000.
BELLO, Walden. Manufacturing a food crisis. The Nation, Nova York, 2 de junho de 2008.
BESSIS, Sophie. La Faim dans le Monde. Paris, La Découverte, 1991.
BETTO, Frei (entrevista). Fome Zero original foi abandonado. O Estado de S. Paulo, 19 de agosto de 2007.

66
BIRDSALL, Nancy. Todo poder à classe média. Exame CEO, São Paulo, abril de 2008.
BLOCH, Marc. Alimentação e intercâmbio mundial. Entre Passado & Futuro nº 3, São Paulo, GTHC-CNPq, abril de
2003 (1ª. edição em novembro de 1943, em Les Cahiers Politiques).
BOITO, Armando. O Governo Lula e a reforma do neoliberalismo. Revista Adusp n° 34, São Paulo, maio de 2005.
BONINO, Emma. L’agricoltura Ue è drogata dai sussidi. La Repubblica, Roma, 14 de abril de 2008.
BRANDÃO, Nilson; ARAGÃO, Marianna. Miséria no Brasil cai 27,7% no 1º mandato de Lula. O Estado de S. Paulo,
20 de setembro de 2007.
BRAVO, Ernesto. Biocombustibles, Cultivos Energéticos y Soberanía Alimentaria. Quito, Acción Ecológica, 2006.
BRITTO, Tatiana F. Conditional Cash Tranfers. Why have they become so prominent in recent poverty reduction
strategies in Latin America. Washington, Institute of Social Studies 390(2004).
BUI, Doan. La spirale de la faim. Le Nouvel Observateur, Paris, 8 de maio de 2008.
BURKE, Vincent J. Nixon's Good Deed. Nova York, Columbia University Press, 1974.
CANUTO, Otaviano. Food and oil prices in Latin America and the Caribbean. Informações FIPE, São Paulo, junho de
2008.
CANUTO, Otaviano. Global agflation, energy security and biofuels. Informações FIPE, São Paulo, março de 2008.
CÁRDENAS, Esmeralda. Crisis mundial: el problema del hambre en el mundo. In: http://www.alainet.org, 15 de abril
de 2008.
CARENS, Joseph H. The virtues of socialism. Theory and Society nº 15, Nova York, 1987.
CARFANTAN, Jean-Yves; CONDAMINES, Charles. Vaincre la Faim c´est Possible. Paris, Seuil, 1983.
CASTRO, Josué de. El Libro Negro del Hambre. Buenos Aires, Eudeba, 1964.
CASTRO, Josué de. Geografia da Fome. São Paulo, Civilização Brasileira, 2001 (1ª edição de 1946).
CASTRO, Josué de. Geopolítica da Fome. Ensaio sobre os problemas de alimentação e de população no mundo.
São Paulo, Brasiliense, 1957.
CAVALCANTI, Simone. Pobre paga o maior imposto em alimentos. Gazeta Mercantil. São Paulo, 15 de janeiro de
2007.
CÉPÈDE, Michel; LENGELLÉ, Maurice. L´Économie de l´Alimentation. Paris, Presses Universitaires de France,
1970.
CERQUEIRA LEITE, Rogério Cézar. O biocombustível no Brasil. Novos Estudos nº 78, São Paulo, Cebrap, julho de
2007.
CESARANO, Antonio. Il trend alzista delle materie prime. Affari & Finanza, Roma, 14 de abril de 2008.
CHALMIN, Philippe. A qui profite la hausse? Le Nouvel Observateur, Paris, 22 de maio de 2008.
CHESNAIS, François. La mondialisation de l´amée industrielle de reserve. Carré Rouge nº 35, Paris, março de 2006.
CHIARELLI, Carlos Alberto G. Introdução aos direitos sociais. In: Trabalho na Constituição. São Paulo, Editora LTr,
1989.
CHOSSUDOVSKY, Michel. La famine mondiale. Économie, Montréal, 18 de maio de 2008.
CIPOLLA, Carlo M. The Economic History of World Population. Londres, Penguin Books, 1974.
CLERC, François. Le Marché Commun Agricole. Paris, Presses Universitaires de France, 1981.
COLLIER, Paul. La política del hambre. Foreign Affairs Latinoamérica vol. 9 nº 2, México, 2009.
CORREIA DE ANDRADE, Manuel et al. Josué de Castro e o Brasil. São Paulo, Fundação Perseu Abramo, 2003.
COSTA, Christiane; TAKASHI, Ruth; MOREIRA, Tereza. Segurança Alimentar e Inclusão Social. São Paulo, Instituto
Polis, 2002.
DAMAGGIO, Jean Paul. La fonction du stockage dans la guerre alimentaire. www.investigaction.org, 3 de junho de
2008.
DANTAS, Gilson. Estatística da miséria e miséria da estatística. Estratégia Internacional nº 4, São Paulo, 2009.
Declaração do Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores, São Paulo, 15 de março de 2003.
DEL GROSSI, Mauro Eduardo; SILVA, José Graziano; TAKAGI, Maya. Evolução da Pobreza no Brasil. Campinas,
Instituto de Economia da Unicamp, 2001.
DESAI, Ashok. Beginning of change. The Telegraph, Mumbai, 19 de maio de 2009.
DEZALAY, Yves; GARTH, Bryant. Connivence des élites internationalisées. Le Monde Diplomatique, Paris, junho
2005.
DI GIOACCHINO, Roberto. As multinacionais no sector alimentar. In: Maria Teresa Prasca e Carlo Fredduzzi. A
Fome no Mundo. Lisboa, Iniciativas, 1975.
DJABALI, Nadia. Les fonds spéculatifs s´attaquent à l´agriculture. BastaMag, Paris, 13 de março de 2009.
DÖÖS, Bo R.; SHAW, Roderick. Can we predict the future food production? A sensitivy analysis. Global
Environmental Change nº 9, Nova York, 1999.
DRAIBE, Sônia M. As políticas sociais brasileiras: diagnóstico e perspectivas. In: A Década de 90: Prioridades e
Perspectivas de Políticas Públicas. Brasília, v. 4, março de 1990.
DUMONT, René. La Croissance de la Famine. Paris, Seuil, 1980.

67
ELSTER, Jon. Comentario sobre Van der Veen y Van Parijs. Zona Abierta nº 46-47, Madri, janeiro-junho de 1988.
ENGELS, Friedrich. A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra. São Paulo, Global, 1998.
FAO - Food and Agriculture Organization of United Nations, Crop Prospects and Food Situation. abril de 2008
FAO - Food and Agriculture Organization of United Nations. The State of Food Insecurity in the World. 2001.
FARIA PINHEIRO, Luci. A esquerda e as políticas sociais emergenciais: alternativas e paradoxos. Estudos de
Política e Teoria Social nº 14/15, Rio de Janeiro, UFRJ, 2006.
FRANCO, Augusto de. Neoliberalismo, Estatismo e Desenvolvimento Social. Documento, 7 de outubro de 2003.
GARCIA, Marcio. A inflação de commodities e os mercados financeiros. Valor Econômico, São Paulo, 4 de julho de
2008.
GENNARI, Adilson Marques. Globalização, Neoliberalismo e Superpopulação Relativa no Brasil nos Anos 1990.
Araraquara, Departamento de Economia da UNESP, 2005.
GOODSPEED, Peter. Food crisis being felt around the world. National Post, Nova York, 1° de abril de 2008.
GUADAGNI, Alieto A. La trampa de la desigualdad. La Nación, Buenos Aires, 20 de março de 2008.
HADDAD, Paulo R. Estabilizadores automáticos, até quando? O Estado de S. Paulo, 4 de julho de 2009.
HODDINOT, J.; SKOUFIAS, E. The impact of Progresa on food consumption. FCND Discussion Paper 150,
Washington, International Food Policy Research Institute, 2003.
HOFFMAN, Rodolfo. Pobreza, insegurança alimentar e desnutrição no Brasil. Estudos Avançados. São Paulo, 1995,
vol. 9, n° 24.
HOLT-GIMÉNEZ, Eric. Bio-combustibles: mitos de la transición de los agro-combustibles. América Latina en
Movimiento, 16 de abril de 2008.
HOMEM DE MELO, Fernando. O Problema Alimentar no Brasil. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1983.
HURET, Marie. RSA commence pas fort. L´Express, Paris, 4 de junho de 2009.
IBRAMATTI, Daniel. Banco Mundial vê Bolsa Família como modelo. Terra Magazine, São Paulo, 17 de setembro de
2007.
IPEA - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. A Segurança Alimentar e Nutricional e o Direito Humano à
Alimentação no Brasil. Brasília, 1998.
IPEA - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Boletim de Políticas Sociais. Brasília, Edição Especial nº 13, 2007.
IPEA - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Brasil: Estado de uma Nação. Brasília, 2006.
IPEA - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Receita Pública. Quem paga e como se gasta no Brasil. Brasília,
2009.
JOYA, Angela. Egyptian protests|: falling wages, hogh prices and the failure of an export-oriented economy. The
Bullet nº 111, Ottawa, 2 de junho de 2008.
KAUTSKY, Karl. A Questão Agrária. São Paulo, Abril Cultural, 1983.
KERSTENETZKY, Célia L. Políticas sociais: focalização ou universalização? Revista de Economia Política 26 (4),
São Paulo, outubro/dezembro de 2006.
KRUGMAN, Paul. Il grano è impazzito e il mondo ha fame. La Repubblica/New York Times, Roma, 9 de abril de
2008.
KUCINSKI, Bernardo; LEDOGAR, Robert. Fome de Lucros. Atuação das multinacionais de alimentos e remédios na
América Latina. São Paulo, Brasiliense, 1977.
LANTIER, Alex. A crise mundial dos alimentos e o mercado capitalista, World Socialist Web Site, 30 de abril 2008,
www.wsws.org.
LAVINAS, Lena. Transferências de renda: o quase tudo do sistema de proteção social brasileiro. In; SICSÚ, João.
Arrecadação de Onde Vem? E Gastos Públicos para Onde Vão? São Paulo, Boitempo, 2007.
LEACH, G. Global land and food in the 21st century. Stockholm Environment Institute, Polestar Series Report nº 5,
1995.
LEGOVINI, Arianna; REGALIA, Ferdinado. Targeted Human Development Programs. Washington, Inter-American
Development Bank, 2001.
LINDERT, Kathy. Bolsa Familia program – scaling-up cash transfers for the poor. In: MfDR Principles in Action:
Sourcebook on Emerging Good Practices. Washington, World Bank, 2007.
LINDSTEDT, Gunnar. Un salario social mínimo garantizado para todos. Zona Abierta nº 46-47, Madri, janeiro-junho
de 1988.
LÓPEZ BLANCH, Hedelberto. Biocombustible: biohambre o biodestrucción. In: http://www.alainet.org, 15 de abril de
2008.
MARTINS, José. A crise dos alimentos. Críticas da Economia Política n° 940, São Paulo, agosto de 2008.
MARTINS, José. Os Limites do Irracional. Globalização e crise econômica mundial. São Paulo, Fio do Tempo, 1999.
MARX, Karl. O Capital. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1981.
MATTOSO, Jorge. O Brasil Desempregado, São Paulo, Fundação Perseu Abramo, 2001.

68
MEIRELES, Monika. Do Endividamento Externo ao Novo Desenvolvimentismo. Trajetórias do capitalismo e da
dependência na América Latina. Dissertação de Mestrado, São Paulo, Prolam-USP, 2008.
MENDE, Euclides S. O novo trigo. Mais! São Paulo, 17 de maio de 2009.
MING, Celso. Etanol, questão moral. O Estado de S. Paulo, 20 de abril de 2008.
MONTEIRO, Carlos Augusto et al. Melhoria em indicadores de saúde associados à pobreza no Brasil dos anos 90.
São Paulo, Nupens/USP, 1997, Série A Trajetória do Desenvolvimento Social no Brasil, n° 1/97.
MONTEIRO, Carlos Augusto. A dimensão da pobreza, da fome e da desnutrição no Brasil. Estudos Avançados. São
Paulo, Universidade de São Paulo – Instituto de Estudos Avançados, 1995, vol. 9, nº 24.
MORGAN, Dan. Los Traficantes de Granos. Buenos Aires, Editora Abril, 1984.
NAMORADO ROSA, Rui. El complejo agroindustrial y la enajenación de la relación del hombre con la tierra. Futuro
nº 8, Montevidéu, 2005.
NETTO, Antonio Delfim. A política social de Lula. Carta Capital, São Paulo, 20 de maio de 2009.
NOVAES, Washington. O drama da água, a pior das pobrezas. O Estado de S. Paulo, 17 de novembro de 2006.
NOVAES, Washington. Onde se conseguirão recursos para os pobres? O Estado de S. Paulo, 12 de junho de 2009.
NOVE, Alec. Una vía capitalista al comunismo? Zona Abierta nº 46-47, Madri, janeiro-junho de 1988.
OLIN WRIGHT, Erik. Why something like socialism is necessary for the transition to something like communism.
Theory and Society nº 15, Nova York, 1987.
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino. Agro-combustíveis e produção de alimentos. Folha de S. Paulo, 17 de abril de 2008
OLIVEIRA, Francisco de. Aula Inaugural do Curso de Ciências Sociais USP. São Paulo, 2003, mimeografado.
ORNELIAS MAURIEL, Ana Paula. Combate à pobreza e (des)proteção social: dilemas teóricos das "novas" políticas
sociais. Estudos de Política e Teoria Social nº 14/15, Rio de Janeiro, UFRJ, 2006.
PASSOS GUIMARÃES, Alberto. A estrutura produtiva da agricultura brasileira. Novos Rumos nº 6/7, São Paulo,
1988.
PASTORINI, Alejandra; GALIZIA, Silvina. A redefinição do padrão de proteção social brasileiro. Estudos de Política e
Teoria Social nº 14/15, Rio de Janeiro, UFRJ, 2006.
PATEL, Raj. Obesos y Famélicos. Globalización, hambre y negocios en el nuevo sistema alimentario mundial.
Buenos Aires, Marea, 2008.
PESSANHA, Lavínia; WILKINSON, John. Transgênicos, Recursos Genéticos e Segurança Alimentar. Campinas,
Armazém do Ipê, 2005.
PETERSEN, William. Malthus. Paris, Dunod, 1980.
POCHMANN, Marcio; AMORIM, Ricardo. O Desafio da Inclusão Social no Brasil. São Paulo, Publisher, 2004.
POLANYI, Karl. A Grande Transformação. Rio de Janeiro, Campus, 1982.
PRZEWORSKI, Adam. La viabilidad de los subsidios universales en el capitalismo democrático. Zona Abierta nº 46-
47, Madri, janeiro-junho de 1988.
QUIRINO ESCODA, Maria do Socorro. Entrevista sobre o Programa Fome Zero, Natal, novembro de 2002.
RAMPINI, Federico. Fame: complesso de culpa dell’Occidente. Diario di Repubblica. Roma, 3 de novembro de 2006.
RAWLINGS, Laura; RUBIO, Gloria M. Evaluating the impact of conditional cash transfer programs - lessons from
Latin America. World Bank Policy Research Working Paper 3119, Washingtn, The World Bank, 2003.
REGO, José Márcio; MARQUES, Rosa Maria. Economia Brasileira. São Paulo, Saraiva, 2000.
RIDDELL, John. Farmers seek defenses against the giants of agrobusiness. The Bullet n° 96, Toronto, 4 de abril de
2008.
RIEZNIK, Pablo. Catastrofismo, forma y contenido. En Defensa del Marxismo nº 35, Buenos Aires, março de 2008.
RODRIGUES, Hélio. O direito social à assistência social e o todo único dos direitos sociais. Contra a Corrente nº 1,
Brasília, Centro de Estudos e Pesquisas Sociais, 2009.
ROGERS, F. H. The Measurement and Decomposition of Achievement Equity. Columbus, Ohio State University,
2004.
ROSE, Michael E. The allowance system under the new poor law. In: Economic History Review, vol. 19, n° 3,
Londres, 1998.
ROSSI, Clóvis. Viagem ao país do Bolsa Família. Folha de S. Paulo, 15 de agosto de 2008.
SACHS, Jeffrey. Ação decisiva contra fome. Valor Econômico, São Paulo, 22 de janeiro de 2009.
SACHS, Jeffrey. The End of Poverty. How we can make it happen in our lifetime. Nova York – Londres, Penguin
Press & Allen Lane, 2005.
SAES, Décio Azevedo M. Direitos sociais e transição para o capitalismo. Documentos do Instituto de Estudos
Avançados. São Paulo, Universidade de São Paulo, nº 39, dezembro de 2001.
SANT´ANNA, Julia. El programa Bolsa Familia: un éxito entre el público y la crítica. Foreign Affairs Latinoamérica
vol. 9 nº 2, México, 2009.
SANTOS, Eduardo A. La Internacionalización de la Producción Agro-alimentaria y el Comercio Agrícola Mundial.
Buenos Aires, Grupo Editor Latinoamericano, 1992.

69
SCHUMAN, Michael. Commodities Conundrum. Time, Nova York, 18 de maio de 2009.
SCHWARTSMAN, Hélio. A FAO é um desastre. Folha de S. Paulo, 20 de junho de 2009.
SCOLESE, Eduardo. Bolsa Família sustenta novo voto de cabresto no Nordeste. Folha de S. Paulo, 24 de setembro
de 2008.
SEN, Amartya K. Desenvolvimento como Liberdade. São Paulo, Companhia das Letras, 2000.
SEN, Amartya K. Food and Freedom. Nova York, Harvard Institute of Economic Research, 1998.
SEN, Amartya K. On Economic Inequality. London, Oxford University Press, 1973.
SHIKIDA, Cláudio; FRANCISCO, Ari; CARRARO, André. Desconstruindo mitos: não foi o Bolsa Família. Valor
Econômico, São Paulo, 5 de junho de 2007.
SHONFIELD, Andrew. The Attack on World Poverty. Nova York, Vintage Books, 1962.
SILVA E SILVA, M.O. O Comunidade Solidária. O não enfrentamento da pobreza no Brasil. São Paulo, Cortez, 2001.
SILVA, José Graziano; BELIK, Walter; TAKAGI, Maya. Combate à Fome e à Pobreza Rural. São Paulo, Instituto da
Cidadania, 2002.
SILVA, José Graziano; BELIK, Walter; TAKAGI, Maya. Projeto Fome Zero. São Paulo, Instituto da Cidadania, 2001.
SMITH, Pamela Ann. Gulf food security. The Middle East, Londres, julo de 2008.
SMITH, Sharon. The revolt over rising food prices. International Socialist Review nº 59, Nova York, maio-junho de
2008.
SPOSATI, Aldaiza. Mínimos sociais e seguridade social: uma revolução da consciência da cidadania. Serviço Social
e Sociedade, n° 55, São Paulo, 1997.
SUPLICY, Eduardo M. As políticas sociais e o crescimento. Folha de S. Paulo, 28 de janeiro de 2007.
SUPLICY, Eduardo M. Renda Básica de Cidadania: a Resposta Dada Pelo Vento. Porto Alegre, L&PM, 2005.
TAVARES, Luiza. O Programa Fome Zero. Rio de Janeiro, UERJ, 2003.
TELLES, Vera S. No fio da navalha: entre carências e direitos. Notas a propósito dos programas de Renda Mínima
no Brasil. Programas de Renda Mínima no Brasil. Impactos e potencialidades. São Paulo, Instituto Polis, 1998.
TONG, Jai Dai et al. Crise alimentaire: comment s´en sortir. Courrier International nº 911, Bruxelas, 17 de abril de
2008.
TORRES FREIRE, Vinícius. Renda zero. Folha de S. Paulo, 2 de dezembro de 2007.
TREVISAN, Antoninho M. O Combate à Corrupção. São Paulo, Ateliê Editorial, 2003.
URANI, André. Desigualdade e pobreza no Brasil. In: Adriana Carranca et al. Políticas Públicas Sociais. São Paulo,
Cortez-ANDI, 2008.
VAN DER VEEN, Robert J.; VAN PARIJS, Philippe. A capitalist road to communism. Theory and Society nº 15, Nova
York, 1987.
VAN DER VEEN, Robert J.; VAN PARIJS, Philippe. Subsidios universales frente a socialismo. Zona Abierta nº 46-
47, Madri, janeiro-junho de 1988.
VAN PARIJS, Philippe. Real Freedom For All. Nova York, Oxford University Press, 1985.
VAN PARIJS, Philippe. Vontade e sabedoria do Brasil. Valor Econômico, São Paulo, 27 de janeiro de 2004.
VAN PARIJS, Philippe; VILLÉ, Philippe de. Du salaire minimum garanti à l´allocation universelle. La Revue Nouvelle
nº 81, Bruxelas, 1985.
VANDERBORGHT, Yannick; VAN PARIJS, Philippe. Renda Básica de Cidadania. Argumentos éticos e econômicos,
Rio de Janeiro, Record, 2006.
VITALE, Griuseppe. A «revolução verde» e a crise mundial do capitalismo. In: Maria Teresa Prasca e Carlo
Fredduzzi. A Fome no Mundo. Lisboa, Iniciativas, 1975.
VIVAS, Esther. El tsunami del hambre. Corriente Alterna nº 58, Buenos Aires, junho de 2008
WEISSHEIMER, Marco Aurélio. Bolsa Família. Avanços, limites e possibilidades do programa que está
transformando a vida de milhões de famílias no Brasil. São Paulo, Fundação Perseu Abramo, 2006.
WFP (United Nations World Food Program). World Hunger Series 2006. Hunger and learning. Stanford, Stanford
University Press, 2006.
WORLD BANK. Brazil: An Assessment of the Bolsa Escola Programs. Washington, Human Development
Department, Latin America and Caribbean Region, The World Bank, 2006.
YAP, Yoon-Tien, et al. Limiting Child Labor Through Behavior-Based Income Transfers. An experimental evaluation
of the PETI program in rural Brazil. Washington, World Bank, 2001.
YASBEK, Maria Carmelita. Classes Subalternas e Assistência Social. São Paulo, Cortez, 2003.
YASBEK, Maria Carmelita. Fome Zero: uma política social em questão. Saúde e Sociedade. São Paulo, Faculdade
de Saúde Pública da USP e Associação Paulista de Saúde Pública, vol. 12, n° 1, janeiro 2003.
ZIEGLER, Jean. A Fome no Mundo Explicada a meu Filho. Petrópolis, Vozes, 1999.
ZIEGLER, Jean. Réfugiés de la faim. Le Monde Diplomatique, Paris, março de 2008.

70

Você também pode gostar