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ISSN 0054-7612 Contribuicdo a um projeto de reforma democratica do Estado* Frederico Lustosa da Costa** Sumario: 1, Introdugao; 2. Pressupostos; 3. Crise: inflexdo, ruptura e oportuni- dade; 4. Referéncias e aproximagGes & reforma democratica; 5. A peculiaridade brasileira; 6. Contribuigéo ao delineamento da reforma democratica; 7. Flexibiliza- 40, universalizacéo, isonomia e equanimidade; 8. Gesto publica empreendedora; 9. Consideragées finais. RAIL El edna yore meer Summary: 1. Introduction; 2. Assumption; 3. Crisis: inflection, rupture and oppor- tunity; 4. References to and approximations of the democratic reform; 5. Brazilian specificity; 6. Contribution to the layout of the democratic reform; 7. Flexibilization, universalization, isonomy and equanimity; 8. Entrepreneurial public management; 9. Final remarks. Paavras-cuave: reforma democratica; administracao e desenvolvimento; univer- salidade e participacao. Key worps: democratic reform; management and development; universality and participation, A critica progressista & reforma do Estado dos anos 1990 tem se contentado em apontar as fragilidades politicas, teéricas, téenicas e operacionais do modelo predominante, sem conseguir construir uma alternativa que constitua, ao mesmo tempo, uma bandeira politica sedutora (utopia), um corpo teérico consistente ¢ um repertério de medidas vidveis. As propostas que se oferecem & discusséo so, na maioria das vezes, pontuais e fragmentérias, centrando-se em aspectos valorativos da democracia, da participacao e da incluso social. A escassez de criatividade no campo progressista estimula os adeptos do mainstream a sustentarem a ideia de que no existem alternativas ao paradigma gerencialista. Este artigo apresenta de forma muito breve algumas dessas abordagens para tracar pelo menos parte do quadro de referéncias de modelo alternativo. Esses subsidios estéo colocados tanto em pres- * Artigo recebido em maio e aceito em dez. 2009. * Professor da Fundagao Getulio Vargas. Endereco: Praia de Botafogo, 190, sala 1506 — CEP 2250-900, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. e-mail: frederico.lustosa@fgv.br. RAP — RIO DE JANEIRO 44(2):239-70, MAR/ABR, 2010 240 FREDERICO LUSTOSA DA COSTA supostos teéricos ¢ interpretagdes mais abrangentes da crise do Estado quanto em anélises de processos de mudanca institucional, de transformacao organizacional e de adogao de novas praticas de gestao publica, Para esse conjunto de ideias propostas © experiéncias orientadas para a reinvengao do Estado, adota-se aqui a designacao da reforma democratica do Estado. A contribution to the democratic reform of the state project ‘The progressive critique of state reform of the 1990s seems content with merely pointing out the political, theoretical, technical and operational frailties of the pre- dominant model. This critique also fails to construct an alternative that is at once politically seductive (a utopia), theoretically consistent and capable of presenting repertoire of feasible measures. The proposals are mostly limited to certain points and are fragmented, focusing mainly on normative dimensions of democracy, parti- cipation, and social inclusion. The lack of creativity in the progressive field prompts mainstream claims that there is no alternative to the managerialist paradigm. This article provides a brief overview of some of the progressive approaches in order to outline at least partially the framework of an alternative model. This contribution is presented as theoretical assumptions and broader interpretations of the state cri- sis, as well as the analysis of institutional transformation processes, organizational transformation and the adoption of new practices in public administration. This set of proposed ideas and experiences oriented towards the reinvention of the state is called here the democratic reform of the state. 1. Introdugao Os meios de comunicacio, j4 foi dito em outros contextos, cumprem uma fungao de agenda, dizendo-nos 0 que pensar, quer dizer, eles estabelecem os temas que devem ser discutidos pela sociedade. Alguns criticos lembram que, na verdade, eles cumprem uma fungio de nao agenda (ou contra-agen- da), dizendo-nos 0 que nao pensar, excluindo os temas que nao podem ser discutidos. Um terceiro ponto de vista assegura que as duas perspectivas se complementam. Ao estabelecermos uma agenda de discussio, estamos, de fato, censurando uma série de temas que nao queremos debater (Lustosa da Costa, 2005:267) ‘facil reconhecer que 0 mesmo raciocinio pode ser aplicado a outros ramos do conhecimento. Com relagio A reforma do Estado, a agenda que tem sido proposta pelos organismos internacionais exclui alguns temas fundamen- tais nunca discutidos em profundidade nos féruns por eles animados. Pois as reformas realizadas nos iiltimos anos obedecem, sobretudo, ao imperativo orcamentario, ou seja, sdo feitas principalmente para reduzir gastos publicos. RAP — RIO DE JANEIRO 44(2):239-70, MAR/ABR, 2010 CONTRIBUIGAO A UM PROJETO DE REFORMA DEMOCRATICA DO ESTADO. 241 Balizadas por esse paradigma, elas se traduzem em trés estratégias principais, a sabe y a reforma patrimonial, que se faz principalmente através de processos de privatizacdo e terceirizacao; ¥ a reforma fiscal (ou ajuste fiscal), voltada para a redugao de despesas e, eventualmente, para o aumento das receitas; y a reforma gerencial, orientada para o aumento da eficiéncia dos servigos publicos. Esse repertério deixa de lado uma série de questdes relativas ao alcance da intervencao legitima do Estado, ao exercicio dos direitos de cidadania, As formas de representacao de interesses e de participacao (politica e cidada) e ao cardter redistributivo do sistema tributario e das politicas piiblicas. Assim, 0 primeiro passo na constituicéo de uma agenda alternativa a reforma gerencia- lista é 0 preenchimento dessas lacunas. Para tanto, é necessario identificar e discutir os varios aspectos dos temas que esto excluidos da pauta da reforma do Estado que tem sido realizada no Brasil e no mundo. Pois, em muitos casos, a critica progressista ao padrao de reforma do Estado tem se contentado em apontar as fragilidades politicas, teéricas, tée- nicas operacionais do modelo predominante, sem conseguir construir uma alternativa que constitua, ao mesmo tempo, uma bandeira politica sedutora (utopia), um corpo teérico consistente e um repertério de medidas vidveis. As propostas que se oferecem discussio so, na maioria das vezes, pontuais e fragmentérias, centrando-se em aspectos valorativos da democracia, da parti- cipacdo ¢ da incluso social. ‘A escassez de criatividade no campo progressista estimula os adeptos do mainstream a sustentarem a ideia de que nao existem alternativas ao pa- radigma gerencialista. A new public management apresenta-se como o fim da histéria da administragao publica. Economia de mercado, sufrdgio universal, Estado regulador e nova geréncia publica s4o partes complementares de um todo interdependente — a sociedade (auténoma e competitiva) do mundo globalizado. Por outro lado, muitos dos defensores do Estado nacional e de um papel ativo na promocao do desenvolvimento e na reducao das desigualdades, sobre- tudo no Brasil, t8m adotado uma posigéo defensiva que, muitas vezes, rejeita a prépria ideia de reforma. No plano politico, setores corporativos organizados, ignorando manifestagées mais agudas de crise fiscal, exercem pressio sobre © Legislativo e sobre Executivo para que nada seja feito. Frequentemente, RAP — RIO DE JANEIRO 44(2):239-70, MAR/ABR, 2010

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