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CLÁSSICOS

Tículo original: Ema

Tradução de José Parreira Alves


Tradução portuguesa© de Editorial Inquérito, 2011

Capa: estúdios P. E. A.

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Edição n. 0 151120/9400
Maio de 2011
Dcpósiro legal n.° .126524111

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JANE AUSTEN
CAP Í TULO 1

Ema Woodhouse, bonita, inteligente e rica, com um


lar confortável e uma índole optimista, parecia reunir
algumas das melhores bênçãos da existência. Além
disso, tinha vivido quase vinte e um anos neste mundo,
com muito pouco que a afligisse ou enfadasse. Era a
mais nova das duas filhas de um pai extremamente
afectuoso e condescendente e, em consequência do
casamento da irmã, tornara-se dona de casa muito
cedo. A mãe tinha morrido há demasiado tempo, para
que ela pudesse ter mais do que uma vaga recordação
dos seus carinhos , e o lugar fora preenchido por uma
excelente senhora que , exercendo as funções de
preceptora, na afeição pouco menos havia sido que
mãe .
Miss Taylor passara dezasseis anos com a família
de Mr. Woodhouse, mais como amiga que como pre­
ceptora; gostava muito de ambas as filhas, mas so­
bretudo de Ema: entre elas havia como que uma
intimidade de irmãs . Antes mesmo de Miss Taylor
haver deixado de exercer o cargo nominal de pre­
ceptora, a doçura do seu temperamento nunca lhe
permitira impor-se demasiado; e agora, dissipada há
muito a sombra de autoridade, elas tinham passado a
viver como amigas e amigas muito unidas ; Ema fazia
simplesmente o que queria: embora tivesse em grande
consideração a opinião de Miss Taylor, governava-se
principalmente pela própria cabeça.
Os reais males da situação de Ema eram , na
verdade, a possibilidade de levar em demasia a sua
avante e certa propensão, para pensar um pouco bem
de mais de si própria; tais inconvenientes ameaçavam

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JA NEA USTEN

estragar algumas das suas alegrias . Todavia, o perigo,


nessa altura, era tão imperceptível que, de maneira
alguma, se poderia dizer que fosse para ela uma
desgraça.
Surgiu o desgosto - desgosto suave, por isso que
não surgiu na forma de uma sensação nitidamente
dolorosa: - Miss Taylor casou-se. Foi a perda de Miss
Taylor a principal causa da mágoa. Foi no dia do
casamento desta amiga tão querida que Ema, pela
primeira vez , se entregou a pensamentos tristes de
uma certa continuidade. Terminada a boda e retirados
os convidados, pai e filha ficaram sozinhos a j antar,
sem qualquer perspectiva de um terceiro que fosse
animar a longa noite . O p a i , depois do j antar,
preparava-se para dormir, como de costume, e Ema
nada mais podia fazer que ficar meditando na perda
que sofrera.
O acontecimento encerrava todas as promessas de
felicidade para a sua amiga . Mr. Weston era um
homem de carácter irrepreensível, idade aceitável e
maneiras agradáveis; Ema sentia, pois, uma certa
satisfação em pensar com que desinteressada e gene­
rosa amizade desej ara e favorecera sempre o casa­
mento, embora esse fosse motivo de tristeza para ela.
A falta de Miss Taylor far-se-ia sentir todos os dias
e a todas as horas . Ela evocava a sua bondade, - a
bondade e o afecto de dezasseis anos - como a
ensinara e com ela brincara desde os cinco anos, como
empenhara todos os seus esforços para a entreter,
quando ela tinha saúde, e como dela cuidara nas várias
doenças da infância. Havia nisto uma grande dívida
de gratidão; mas as relações dos últimos sete anos, o
pé de igualdade, a perfeita franqueza mútua que se
haviam imediatamente seguido ao cas amento de
Isabella, quer dizer, desde que as tinham deixado sós,
uma com a outra, constituíam uma recordação ainda
mais grata e mais terna. Havia sido uma amiga e uma
companheira como poucos possuíam : inteligente ,
prestável, meiga, conhecedora de todos os hábitos da
família, mostrando interesse por tudo , quanto lhe
respeitava e, particularmente, por ela, Ema, por todos

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EMA

os seus prazeres, por todos os seus planos - alguém


a quem podia transmitir todos os seus pensamentos e
que tinha por ela um afecto j amais desmentido.
Como havia ela de suportar a mudança? Era certo
que a sua amiga ficava a residir apenas a meia milha
de distância; mas Ema bem sabia a diferença que
haveria entre uma Mrs . Weston apenas a meia milha
de distância e uma Miss Taylor ali, em casa. Assim,
apesar dos seus dons naturais e dos encantos do seu
lar, ela corria o grande perigo de se sentir espiri­
tualmente só. Amava profundamente o pai, mas este
não representava para ela um companheiro; não podia
satisfazê-la nem como conversador a sério, nem a
brincar.
O inconveniente da real desproporção de idades
(Mr. Woodhouse não havia casado cedo) era grande­
mente acentuado ainda pelo temperamento e hábitos
que o caracterizavam; tendo sido toda a vida um
doente, sem qualquer actividade física ou espiritual,
ele era muito mais velho pela maneira de ser do que
pelos anos; e, se bem que estimado em toda a parte
pelo seu coração bondoso e índole afável, os seus dotes
de inteligência não o honravam muito .
A irmã de Ema, ainda que relativamente pouco
afastada pelo cas amento - residia em Londre s ,
apenas a dezasseis milhas d e distância -, estava
muito longe de manter com ela contacto diário, e
quantas longas tardes de Outubro e Novembro se
passariam ainda em Hartfield, antes que o Natal
trouxesse a próxima visita de Isabella, do marido e
dos pequenos, para encherem a casa e lhe darem de
novo o prazer de uma companhia agradável!
Highbury, a grande e populosa vila, j á quase uma
cidade, de que Hartfield - apesar do seu nome
diferente e dos seus relvados e parques próprios -
fazia, na realidade, parte, não proporcionava a Ema
relações íntimas . Os Woodhouse, ali , eram os pri­
meiros em categoria. Toda a gente os venerava. Ema
tinha lá muitos conhecimentos , porque o pai era
amável com todos, mas nenhum deles poderia subs-

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JA NEA USTEN

tituir Miss Taylor meio dia sequer. A transição era


triste ; e Ema não fazia senão suspirar e desej ar coisas
impossíveis , até que o pai acordava e se tornava
necessário aparentar alegria.
O temperamento dele precisava de amparo . Era
um homem nervoso, facilmente deprimível; amigo de
todos aqueles com quem estava habituado, detestava
separar-se deles, por ódio a toda a mudança, fosse no
que fosse . O matrimónio, como fonte de alterações na
vida, fora-lhe sempre desagradável; assim, ainda ele
não se tinha conformado de todo com o casamento da
filha, nem sequer podia falar dela sem mágoa - se
bem que se tratasse absolutamente de um casamento
de amor -, e já era obrigado a separar-se também de
Miss Taylor; e com os seus hábitos de leve egoísmo
e a sua incapacidade de conceber que os outros
pudessem sentir de maneira diferente, ele dispunha-se
a crer que o enlace fora um passo tão triste para Miss
Taylor como para ele e para a filha, e que a preceptora
teria sido bem mais feliz se houvesse passado todo o
resto da vida em Hartfield. Ema sorria e tagarelava o
mais alegremente que podia, no intuito de afastar do
pai tais pensamentos; mas , quando serviram o chá,
ele não pôde deixar de dizer, exactamente como dissera
ao j antar:
- Pobre Miss Taylor! Quem me dera que ela
estivesse aqui de novo! Que pena que Mr. Weston se
tenha lembrado dela !
- Não posso concordar consigo, papá; bem sabe
que não posso. Mr. Weston é uma pessoa tão afável,
tão delicada, tão bondosa, que bem merece uma boa
esposa. E o papá certamente não quereria que Miss
Taylor ficasse toda a vida connosco, a aturar-me os
caprichos , quando podia ter casa própria . . .
- Casa própria? . . . Mas qual é a vantagem de ter
casa própria? Esta é três vezes maior . . . E tu, minha
filha, nunca tiveste caprichos .
- Quantas vezes havemos de os ir ver e eles hão-de
cá vir! Havemos de nos ver com frequência. Cabe a
nós começar: temos de lhes fazer, sem demora, a visita
de casamento.

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EMA

- Ó minha filha, como queres que eu vá tão longe?


Randalls fica tão distante ! Não posso fazer nem
metade do caminho a pé . . .
- Mas , papá, ninguém diz que vá a pé. Iremos de
carruagem, naturalmente .
- De carruagem? . . . Mas o James é que não deve
gostar de ir atrelar os cavalos para um trajecto tão
curto . . . E onde é que hão-de ficar os pobres cavalos
enquanto durar a visita?
- Ficam na cavalariça de Mr. Weston, papá. Já
combinámos isso tudo. Falámos a esse respeito com
Mr. Weston, ontem à noite. E quanto ao James, pode
ter a certeza de que ele sempre há-de gostar de ir a
Randalls, visto que a filha está lá a servir. Do que
duvido é que ele nos leve de boa vontade a qualquer
outro lado . . . Foi obra sua, papá . . . ter arranj ado esse
bom lugar para a Hannah. Ninguém se lembrava de
Hannah antes de o papá falar nela . . . O James está­
-lhe tão grato por isso!
- Estou bem contente por me ter lembrado dela.
Foi uma sorte, porque me desgostaria que o pobre
James se sentisse magoado, fosse no que fosse; tenho
a certeza de que a rapariga há-de vir a ser uma boa
criada; é bem educada e bem falante, a pequena.
Tenho-a em muito bom conceito ; sempre que me
encontra, cumprimenta-me e pergunta-me como vou
indo, com uns modos tão insinuantes . . . E todas as vezes
que a tens tido cá para a costura, tenho notado que
fecha sempre a porta como deve e nunca bate com ela.
E stou certo de que virá a ser uma esplêndida criada;
há-de ser de grande conforto para Miss Taylor, que
terá assim perto de si alguém com quem já estava
habituada. Todas as vezes que o James lá for ver a
filha, certamente falará de nós . Há-de dizer-lhe como
nós todos estamos.
Ema não se poupava a esforços para manter esta
feliz corrente de ideias e, com a aj uda do gamão,
esperava conservar o pai toleravelmente disposto todo
o serão e que nada mais a assediasse senão as suas
próprias mágoas . Tinha-se acabado de preparar a

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JA NEA USTEN

mesa do gamão, mas no mesmo instante entrou uma


visita que a tornou desnecessária.
Mr. Knightley, homem dos seus trinta e sete ou
trinta e oito anos e um espírito inteligente, era não,
só um velho amigo da família, mas estava intimamente
ligado a ela, como irmão mais velho do marido de
Isabella. Vivia a cerca de uma milha de Highbury;
era uma visita frequente e sempre bem-vinda, e, nesta
altura, ainda mais bem-vinda que de costume, pois
vinha directamente de Londres, de j unto da família.
Chegara tarde para o j antar, depois de alguns dias de
ausência, e percorrera a pé o caminho até Hartfield,
para dar boas notícias de todos os da Praça Brunswick.
Isto representava uma circunstância agradável, que
animou Mr. Woodho u s e por algum tempo . M r .
Knightley tinha u m feitio alegre, o que era d e muita
vantagem para o velho ; e as respostas às várias
perguntas a respeito da «pobre I s abella» e dos
pequenos deram-lhe muita satisfação . Depois disto,
Mr. Woodhouse observou, cheio de gratidão:
- Foi muita amabilidade da sua parte ter vindo
cá, a esta hora, Mr. Knightley; o pior é que deve ter
sido uma caminhada bem aborrecida . . .
- D e maneira alguma! Está uma linda noite de
luar e tão tépida que tenho de me afastar um pouco
da sua lareira.
- Mas deve ter achado o caminho muito enla­
meado . . . Oxalá não se constipe!
- Enlameado? . . . Repare nos meus sapatos: não têm
o menor vestígio de lama.
- Pois olhe que é de admirar, porque temos tido
por cá verdadeiras bátegas de água! Choveu torren­
cialmente durante meia hora, enquanto estávamos a
tomar o pequeno almoço . Eu bem queria que tivessem
adiado o casamento . . .
- A propósito . . . ainda não lhes dei o s parabéns .
Como tenho certas dúvidas sobre a espécie de alegria
que ambos sintam, não me apressei muito a felicitá-los;
mas espero que tudo tenha corrido bem. Como se
portaram todos? Quem chorou mais?

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EMA

- Ah ! coitada da Miss Taylor! É uma história bem


triste !
- Coitados mas é do senhor e de Miss Woodhouse,
se me dá licença: não posso dizer o mesmo de Miss
Taylor. Tenho uma grande consideração por si e por
Ema, mas quando se trata de questões de dependência
ou independência . . . Em todo o caso, deve ser melhor
ter de agradar só a um do que a dois.
- S obretudo , quando um desses dois é uma
criatura tão capricho,sa e impertinente . . . - disse Ema,
de bri,ncadeira. - E isto o que está a pensar, bem
sei . . . E o que com certeza diria, se não estivesse aqui
meu pai .
- Creio que , realmente , isso é b e m verdade ,
minha filha - disse Mr. Woodhouse, suspirando. -
Parece-me que , às vezes, sou muito caprichoso e
impertinente . . .
- Oh! meu querido papá! Não j ulgue que e u ou
Mr. Knightley nos referíamos a si ! Que triste ideia!
Oh! não . . . Eu apenas me referia a mim própria. Mr.
Knightley gosta muito de me criticar, não sabe? . . . de
brincadeira . . . é tudo de brincadeira. Andamos sempre
a dizer um ao outro tudo o que nos apetece.
Mr. Knightley, de facto, era uma das pessoas mais
capazes de descobrir defeitos em Ema Woodhouse e a
única que lhe falava deles ; e, embora isto não fosse
particularmente agradável a Ema, ela sabia que o
seria ainda muito menos a seu pai, que não podia
admitir que ela não fosse considerada perfeita por toda
a gente.
- A Ema sabe que eu nunca a adulo - disse
Mr. Knightley. - Mas agora não pretendi criticar
ninguém . Miss Taylor estava habituada a ter de
agradar a duas p e s s o a s : agora, apenas terá de
agradar a uma. Há probabilidades de que esteja a
ganhar.
- Bem, - disse Ema, mudando de conversa -
deve querer saber como decorreu o casamento, e eu
tenho o maior prazer em lho contar, visto que todos
nos portámos lindamente. Foram todos pontuais. Nem

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JA NEA USTEN

uma lágrima, e quase se não viam caras pesarosas. É


que nós sabíamos que íamos ficar separados apenas
por uma milha, e tínhamos a certeza de que nos
havíamos de ver todos os dias .
- A minha querida Ema suporta tudo com uma
corage m ! - disse o pai . - Mas a verdad e , Mr.
Knightley, é que ela tem muitas saudades de Miss
Taylor e eu tenho a certeza de que há-de sentir a falta
da amiga, mais do que pensa . . .
� ma voltou a cabeça para o lado, meio sorridente,
me10 pesarosa.
- Era impossível que Ema não viesse a sentir a
falta de tão boa companheira - disse Mr. Knightley.
- Não faríamos dela a ideia que fazemos, se pudés­
semos supor uma coisa dessas . Mas ela sabe que esse
casamento representa um bem para Miss Taylor; sabe
quão agradável deve ser, na idade da amiga, ver-se
instalada na sua casa, e quão importante é para ela
ter a certeza de uma vida de conforto; é por isso que
o desgosto de Ema é para ela a certeza de uma vida de
conforto e o seu pesar menor que a alegria dela. Todos
os amigos de Miss Taylor devem estar satisfeitos por
vê-la assim tão bem casada.
- Esqueceu-se de mencionar um dos motivos da
minha alegria - disse Ema - e muito importante:
fui eu própria que fiz este casamento. Sabe? . . . Fiz este
casamento há quatro anos . E o facto de ele se ter
realizado com tanto êxito, quando tanta gente dizia
que M r . Weston nunca m a i s tornaria a c a s a r ,
compensa-me d e tudo .
Mr. Knightley abanou a cabeça. O pai replicou
afectuosamen te :
- Ó minha filha - quem me dera que tu não
fizesses mais casamentos, nem predissesses mais
coisas ! . . . porque, afinal, o que tu dizes acaba sempre
por acontecer . . . Por favor, não faças mais casamentos .
- Prometo não arranj ar nenhum para mim, papá_.
Mas, para outras pessoas, não desisto, com certeza! E
a coisa mais divertida deste mundo . . . E depois de um
tal êxito! Sabe : toda a gente dizia que Mr. Weston

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EMA

nunca mais casari a . Que ideia tão absurda! Mr.


Weston, viúvo há tanto tempo e que parecia sentir-se
tão bem sem esposa, sempre ocupado com os seus
negócios, na cidade ou aqui, entre amigos, sempre bem
recebido em toda a parte . . . Mr. Weston não passaria
os serões sozinho se não fosse essa a sua vontade,
diziam todos . Mrs . Weston, com certeza, nunca mais
casaria! Algumas pessoas até já falavam de uma
promessa feita à mulher, à hora da morte, e outras
afirmavam que eram o filho e o tio que o não
permitiam. Não houve solene disparate que não se
dissesse acerca do assunto, mas eu nunca acreditei
em nada disso. Desde o dia - há uns quatro anos -
em que Miss Taylor e eu o encontrámos na Rua Larga,
e ele, como começasse a chuviscar, corresse como uma
seta, cheio de amabilidade, a pedir, para nós , dois
chapéus de chuva emprestados no Farmer Mitchel,
decidi o caso . Planeei o casamento a partir desse
momento; e não é na altura em que tal êxito me
consagra que o meu querido papá deve pensar que eu
vá deixar de ser casamenteira . . .
- Não percebo o que é que a Ema �ntende por
«êxito» - observou Mr. Knightley. - «Exito» pres­
supõe «esforço». O seu tempo terá sido muito bem
gasto, se o ocupou, durante estes últimos quatro anos,
em preparar tal casamento . A ocupação é digna do
espírito de uma rapariga. Mas se, como suponho, isso
de fazer o casamento, como a Ema diz, significa apenas
tê-lo planeado e haver dito de si para si, num dia em
que não tinha mais nada em que pensar: «Acho que
seria excelente para Miss Taylor que Mr. Weston
casasse com ela» , e depois ter repetido isto de vez em
quando, porque fala de êxito? Onde está o seu mérito?
Foi apenas uma previsão feliz! Eis tudo quanto se pode
dizer a respeito do assunto.
- Nunca conheceu a alegria e o triunfo de uma
previsão feliz? Lastimo-o . . . julgava-o mais atilado . . .
pois pode ter a certeza d e que uma previsão feliz não
depende meramente da sorte - sempre é precisa
alguma habilidade . Quanto à minha pobre palavra

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JA NEA USTEN

«êxito», com que está a implicar, não sei se não terei


alguma reivindicação a fazer. O senhor pintou dois
lindos quadros, mas julgo que ainda há lugar para
um terceiro . . . qualquer coisa entre «não-fazer-nada»
e «fazer-tudo» . Se eu não tivesse favorecido as visitas
de Mr. Weston a nossa casa e dado tantos pequenos
incitamentos e aplanado tantas coisas , talvez isto, no
fim de contas , não tivesse dado nada. Parece-me que
deve conhecer Hartfield suficientemente para com­
preender isso . . .
- Ora! um homem leal e franco, como Mr. Weston,
e uma mulher sensata e simples, como Miss Taylor,
podem sempre, sem perigo, tratar, por si sós, do que
lhes diz respeito . Era mais provável que se prej u­
dicasse a si mesma do que lhes fizesse algum bem,
com a sua interferência.
- A Ema nunca pensa em si, quando pode fazer
bem aos outros - obs ervou Mr. Woodhouse , só
percebendo parte do que se dizia. - Mas, minha filha,
por favor, não faças mais casamentos: são sempre
tolice e concorrem cruelmente para desfazer uma casa.
- Só mais um, papá, em benefício de Mr. Elton.
Pobre Mr. Elton ! O papá estima-o . . . e eu tenho de lhe
arranj ar uma esposa. Não há ninguém em Highbury
que o mereça . . . e ele levou o ano inteiro a arranj ar tão
cuidadosamente a casa onde reside que seria uma
vergonha deixá-lo solteiro por mais tempo. Quando
hoj e o vi unir as mãos dos noivos, notei que tinha
mesmo o ar de quem havia de gostar que se passasse
coisa idêntica com ele . Formo muito boa opinião de
Mr. Elton e esta é a única maneira que tenho de lhe
prestar um serviço.
- Mr. Elton é realmente um belo rapaz e eu tenho
por ele a maior consideração; mas, se lhe queres ser
agradável, minha filh�, convida-o para vir j antar
connosco qualquer dia. E preferível isso. Suponho que
Mr. Knightley terá a bondade de o procurar . . .
- Com todo o prazer . . . quando quiser - disse Mr.
Knightley, rindo . - Concordo inteiramente consigo :
é muito mais prático. Convide-o para j antar, Ema.

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EMA

Sirva-lhe peixe e frango do melhor, mas deixe-o a ele


escolher a esposa que entender. Pode ter a certeza de
que um homem de vinte e seis ou vinte e sete anos
sabe perfeitamente governar-se sozinho.

CAP Í TULO II

Mr. Weston era natural de Highbury e pertencia a


uma família respeitável, que, duas ou três gerações
antes, granj eara prestígio e fortuna. Tinha recebido
uma boa educação e, havendo conseguido cedo, na vida,
uma certa independência, desprezara as ocupações
mais modestas a que se dedicavam os irmãos e
satisfizera as aspirações do seu espírito activo e alegre
e do seu feitio sociável entrando na milícia do seu
condado, naquela altura incorporada.
O capitão Weston era uma pessoa de quem toda a
gente gostava e, quando os acasos da carreira militar
lhe ofereceram oportunidade de ser apresentado a
Miss Churchill , que pertencia a uma importante
família do Yorkshire, e esta se apaixonou por ele ,
ninguém ficou surpreendido com tal casamento, a não
ser o irmão dela e a mulher, que nunca o tinham visto
e se sentiram ofendidos no seu orgulho e na sua
prosápia.
Miss Churchill , contudo, como já era maior e
dispunha totalmente da sua fortuna - se bem que
essa fortuna fosse uma mínima parte dos bens da
família -, não desistiu do casamento e este reali­
zou-se, para infinita mortificação de Mr. e de Mrs .
Churchill, que a obrigaram, discretamente, a sair de
casa.
Foi uma união desigual e de que não resultou muita
felicidade . Mrs . Weston devia ter sabido apreciar
melhor o marido que tinha, pois este era uma pessoa
cuj a índole afectuosa e meiga o fazia pensar em tudo
que lhe pudesse ser agradável, como paga daquela

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JA NEA USTEN

imensa bondade de ela estar apaixonada por ele; mas,


se bem que ela tivesse um certo espírito, não era dos
melhores .
E r a suficientemente resoluta para fazer a sua
vontade, a despeito do irmão, mas não para reprimir
excessivos lamentos acerca da injusta cólera daquele
irmão, nem pela falta que sentia dos esplendores da
sua antiga existência.
Levavam uma vida excessivamente dispendiosa
para os seus rendimentos, mas, ainda assim, nada
era em proporção com a vida de Enscombe; não que
ela tivesse deixado de amar o marido, mas queria ser,
ao mesmo tempo, a esposa do capitão Weston e Miss
Churchill de Enscombe .
O capitão W e s to n , que todos c o n s i d erav am ,
sobretudo o s Churchills, como tendo feito um esplên­
dido casamento, tinha, no fim de contas, ficado com a
pior parte do negócio; com efeito, quando a mulher
morreu, ao fim de três anos de casados, estava ele muito
mais pobre do que antes e com um filho a seu cargo .
C ontudo , das d e s p e s a s respeitantes ao filho
depressa se viu aliviado. O pequeno, aj udado pela
circunstância apaziguante da demorada doença da
mãe, tinha sido a ponte de passagem para uma espécie
de reconciliação ; e Mr. e Mrs . Churchill , que não
tinham filhos , nem outra criança na família de quem
cuidassem, ofereceram-se, pouco depois da morte de
Mrs . Weston, para tomar inteiramente a seu cargo o
pequeno Frank.
Pode supor-se que o pai, viúvo, tenha sentido cer­
tos escrúpulos e alguma relutância, mas , como havia
outras considerações que se lhes sobrepusessem, a
criança foi entregue aos cuidados e à fortuna dos
Churchills e Mr. Weston apenas teve que pensar em
garantir o seu próprio bem-estar e em melhorar, tanto
quanto possível, a sua situação .
Impunha-se uma total mudança de vida. Deixou a
milícia e dedicou-se ao comércio, pois tinha irmãos j á
bem estabelecidos e m Londres, o que o favoreceu logo
de início.

18
EMA

O negoc10 ocupava-o b astante . Continuava a


manter uma casinha em Highbury, onde passava a
maior parte dos seus dias de lazer, e os seguintes
dez oito ou vinte anos da s u a vida p a s s aram-se
alegremente, entre ocupações úteis e prazeres da
sociedade. Tinha nesse tempo alcançado uma relativa
abastança - o bastante para assegurar a compra de
uma propriedade próximo de Highbury, porque
sempre havia almej ado casar com uma mulher sem
dote, como Miss Taylor, e viver de acordo com as
aspirações do seu feitio cordial e sociável.
Havia já algum tempo que Miss Taylor exercia
influência nos seus planos ; mas , como não era a
tirânica influência da juventude sobre a j uventude,
ela não tinha abalado a sua determinação de não tomar
uma resolução e n quanto não pude s s e comprar
Randalls , de cuj a venda estava há muito tempo à
espera, e foi perseverante bastante para não desistir
dos seus propósitos e realizá-los.
Tinha feito fortuna, comprado a propriedade e
conseguido casar; e agora entrava numa nova fase da
existência, com todas as probabilidades de uma maior
felicidade do que a do passado. Nunca fora infeliz: o
próprio feitio o garantira contra isso, mesmo quando
do primeiro casamento; mas o segundo havia de lhe
fazer ver a delícia que pode constituir uma mulher
sensata e amorável , além de lhe provar, por uma
maneira extremamente agradável, quão melhor não
é escolher que ser escolhido e inspirar gratidão em
vez de a sentir.
Apenas tinha que se regozij ar com a escolha que
fizera: a fortuna era unicamente sua; com efeito, Frank
não só fora tacitamente educado como herdeiro do tio,
mas a adopção tinha sido tão manifesta que ia até
ao ponto de ele tomar, na maioridade , o nome de
Churchill. Portanto, era muito pouco provável que viesse
a precisar do auxílio do pai. Este não tinha a menor
apreensão a esse respeito . A tia era uma mulher
caprichosa, que mandava inteiramente no marido,
mas não estava no ânimo de Mr. Weston imaginar que
houvesse caprichos tão fortes que fossem prej udicar

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JA NEA USTEN

alguém tão estimado e, na opinião dele, tão digno de


estima. Via o filho todos os anos, em Londres, e tinha
orgulho nele; e, como falava dele, enternecido, dizendo
que era um excelente moço, fizera com que Highbury
também sentisse uma espécie de orgulho a respeito
do rapaz . Consideravam-no como pertencendo sufi­
cientemente àquela terra, para que os seus méritos e
faculdades fossem como que uma honra comum.
Mr. Frank Churchill era uma das glóri as de
Highbury, que tinha uma viva curiosidade de o ver,
se bem que tal interesse fosse tão pouco compreendido
por ele que nunca na sua vida lá tinha ido. Falava-se
muita vez de ele ir visitar o pai, mas isso j amais
acontecera.
Agora que o pai tinha casado, todos diziam que o
iria visitar, por isso que lhe devia essa atenção. Não
havia duas opiniões a tal respeito, nem quando Mrs .
Perry ia tomar chá com Mrs. e Miss Bates, nem quando
Mrs . e Miss Bates retribuíam a visita. Era agora o
momento de Mr. Frank Churchill aparecer; e esta
esperança fortaleceu-se quando se soube que ele havia
escrito a sua madrasta por ocasião do casamento.
Durante alguns dias , em todas as visitas matinais de
Highbury, se fazia qualquer referência à amável carta
que Mrs . Weston havia recebido:
- Com certeza já ouviu falar da linda carta que
Mr. Frank Churchill escreveu a Mrs . Weston . . . Foi
realmente uma carta encantadora! Mr. Woodhouse é
que me contou. Ele leu-a e diz que nunca, na sua vida,
viu uma carta tão bonita.
Foi, na verdade, uma carta altamente apreciada.
Mrs . Weston havia, evidentemente, formado óptima
ideia do rapaz; tão gentil atenção era uma prova
inegável do seu bom senso e mais um motivo de
satisfação a acrescentar a todas as fontes de felicidade
que o cas amento já lhe havia proporcionado. Ela
sentia-se felicíssima; j á tinha vivido o suficiente para
saber até que ponto se podia julgar feliz, quando a
única mágoa era a de estar separada de amigos cujo
afecto por ela j amais tinha esfriado e a quem tanto
custava a sua ausência.

20
EMA

Sabia que, de vez em quando, haviam de sentir a


sua falta; e não podia pensar sem tristeza que Ema,
estivesse privada do mais pequeno prazer ou tivesse
uma hora de aborrecimento, por falta da sua com­
panhia; mas a querida Ema não era um carácter fraco;
ela saberia pôr-se, mais do que a maior parte das
raparigas, à altura da situação, e o seu bom senso,
en ergi a e inteligência aj udá-la-iam a s uportar
alegremente certas contrariedades e privações de
menor monta.
E depoi s , era uma grande consol ação que a
distância entre Randalls e Hartfield fosse tão curta, o
que era da máxima conveniência, pois assim até uma
senhora podia fazer o caminho sozinha, além de, dadas
as circunstâncias e a índole de Mr. Weston , não
impedir que a estação que se aproximava constituísse
obstáculo a que elas passassem j untas três ou quatro
serões por semana.
A sua situação ora era origem de ímpetos de gra­
tidão, ora de momentos de saudade; e a sua satisfação
- mais do que satisfação -, o seu real contentamento,
era tão compreensível e tão patente que Ema, não
obstante conhecer bem o feitio do pai, era, às vezes ,
tomada de surpresa ao ouvi-lo ainda lastimar a «pobre
Miss Taylor» , quando acabavam , de a deixar em
Randalls, no meio de todo o seu conforto caseiro, ou a
viam à noite, ao despedir-se, dirigir-se, pelo braço solí­
cito do marido, para a carruagem, que era exclusi­
vamente sua. Mas o facto é que ela nunca se ia embora
sem que Mr. Woodhouse soltasse um leve suspiro e
dissesse:
- Pobre Miss Taylor! Ela havia de gostar de ficar.
Não havia possibilidade de recuperar Miss Taylor;
poucas probabilidades havia de deixar de a lastimar;
mas passaram-se algumas semanas que trouxeram
um certo alívio a Mr. Woodhouse. As felicitações dos
vizinhos acabaram - s e ; j á não o importunavam
desejando-lhe alegria por um acontecimento tão triste;
e o bolo nupcial, que havia sido para ele um motivo de
aflição, estava todo comido. O seu estômago não

21
JA NEA USTEN

suportava nada de suculento e ele não podia acreditar


que as outras pessoas fossem diferentes. O que era
prejudicial para si, considerava-o ele impróprio para
os outros; em consequência disso, havia tentado, a todo
o transe, impedir que se fizesse o bolo nupcial, e
quando essa tentativa se demonstrou inútil, procurou
evitar que os outros o comessem. Dera-se ao trabalho
de consultar Mr. Perry, o boticário, sobre o caso. Mr.
Perry era um homem inteligente e educado e as suas
frequentes visitas eram um dos confortos espirituais
da vida de Mr. Woodhouse; em face da consulta, não
pode deixar de reconhecer (se bem que isso parecesse
estar em antagonismo com todas as probabilidades)
que o bolo de noiva devia fazer mal a muita gente -
talvez à maioria das pessoas -, a não ser que fosse
comido com moderação. Perante esta opinião, que
vinha confirmar a sua, Mr. Woodhouse esperava
convencer todos os convidados , mas, apesar disso, o
bolo comeu-se, e para o seu espírito preocupado não
houve sossego enquanto ele não se acabou.
Correu em Highbury o estranho boato de que os
filhos de Mr. Perry haviam sido vistos cada um com a
sua fatia do bolo nupcial de Mrs . Weston na mão; mas
Mr. Woodhouse j amais acreditaria em tal.

CAPÍ TULO III

Mr. Woodhouse gostava muito de sociabilidade a


seu modo. Apreciava bastante que os seus amigos o
fossem visitar; e por um conj unto de variadas causas
- a sua residência há muitos anos em Hartfield, a
sua bondade, a sua fortuna, a sua casa e a sua filha -,
ele tinha, até certo ponto, a possibilidade de escolher,
à vontade, as visitas que deviam compor a sua tertúlia.
Poucas relações mantinha com outras famílias que
não fizessem parte dessa tertúlia; o seu horror às

22
EMA

noitadas e aos grandes j antares tornavam-no avesso


a convivências com quem não se suj eitasse a visitá-lo
conforme os s e u s gos tos . Felizmente para e l e ,
Highbury, j untamente com Randalls , que fazia parte
da mesma paróquia, e Donwell Abbey, da paróquia
vizinha, residência de Mr. Knightley, possuía muitas
pessoas nessas condições. Persuadido por Ema, era
frequente ele ter alguns dos preferidos e dos melhores
a j antar consigo; mas era dos serões que ele mais
gostava e, a não ser nas ocasiões em que reputava a
companhia pouco interessante, rara era a noite que
Ema não lhe preparasse a mesa do jogo.
Os Weston e Mr. Knightley eram trazidos por uma
verdadeira e muito antiga estima; e da parte de Mr.
Elton, mancebo que vivia sozinho contra sua vontade,
não havia perigo de que o privilégio de trocar as noites
vazias da sua solidão pela reunião elegante da sala de
Mr. Woodhouse, fosse deitado à margem.
Seguia-se a estes um segundo grupo; entre os mais
acessíveis encontravam-se Mrs . e Miss Bates e Mrs .
Goddard, três senhoras que quase sempre acediam a
um convite de Hartfield e que eram tantas vezes
trazidas de casa e ali reconduzidas, que Mr. Wood­
house já nem se lembrava do trabalho que isso dava
a James ou aos cavalos. Acontecesse esse facto apenas
uma vez por ano, que teria sido considerado como uma
afronta.
Mrs . Bates, viúva de um antigo vigário de High­
bury, era uma senhora de avançada idade, para quem
já tudo havia passado, excepto o chá e o voltarete.
Vivia muito modestamente em companhia de sua filha
solteira, e era alvo de toda a consideração e respeito
que uma mulher idosa e inofensiva desperta, quando
em circunstâncias difíceis. A filha gozava de uma
popularidade em grau assaz invulgar para uma
mulher que não era nova, nem bonita, nem rica, nem
casad a . Miss B ates achav a - s e preci s amente na
situação menos propícia à simpatia geral; demais, não
possuía superioridade intelectual suficiente para se
bastar a si própria ou conter em devido respeito

23
JA NEA USTEN

aqueles que, porventura, a detestassem. Nunca havia


revelado beleza nem inteligência. A sua mocidade
decorrera sem brilho, e agora, na idade madura,
dedicava-se a cuidar da alquebrada mãe e esforçava-se
por tirar o maior proveito possível do pequeno
rendimento com que ficara . E , contudo, era uma
mulher feliz e mulher que ninguém citava sem
simpatia. Era a sua larga bondade e o seu feitio
resignado que obravam tais maravilhas . Mostrava
estima por todas as pessoas , interessava-se pela
felicidade de toda a gente e descobria qualidades em
todos ; considerava-se uma criatura felicíssima e
cercada de bênçãos divinas, por ter uma mãe excelente,
vizinhos e amigos tão bondosos e um lar a que nada
faltava. A simplicidade e a jovialidade do seu tem­
peramento, o seu espírito resignado e grato, recomen­
davam-na a toda a gente e eram uma mina de felici­
dade para si própria. Conversava muito sobre assuntos
sem importância, que era o que convinha exactamente
a Mr. Woodhouse, amigo de novidades triviais e de
tagarelice inofensiva.
Mrs . Goddard era a directora de uma escola - não
no género de um internato ou de qualquer outra
instituição onde se pretendesse, em longas frases de
refinada insensatez, conciliar a instrução liberal com
uma elegante moralidade sobre novos princípios e
novos sistemas , e onde as donzelas ricas fossem, por­
ventura, despojadas da saúde do espírito e insufladas
de vaidade -, mas de um autê ntico e hon e s to
internato à velha moda, onde se conferia uma razoável
soma de conhecimentos por um preço módico, e para
onde se podiam mandar as rapariga s , para ali
receberem uma certa educação, sem perigo de serem
transformadas em prodígios . A escola de Mrs . Goddard
era altamente reputada - e bem o merecia; com efeito,
Highbury era tida como um lugar particularmente
saudável : a escol a estava instalada num amplo
edifício, com um j ardim, e a sua directora dava às
crianças uma alimentação sã e forte , deixava-as
brincar à vontade, no Verão, e, no Inverno, tratava-lhes,

24
EMA

ela própria, das frieiras. Não admirava, pois, que ,


quando ela se dirigia à igreja, a acompanhasse um
séquito de vinte jovens pares. Mrs . Goddard era uma
mulher de índole simples e maternal, que tinha
trabalhado muito quando nova e agora se julgava com
direito a um feriado e a um chá, de vez em quando; e,
como noutro tempo devera muito à bondade de Mr.
Woodhouse, estava disposta, sempre que podia, a
deixar o seu trabalho na asseada saleta de costura e
ir ganhar ou perder meia dúzia de xelins junto da
lareira de Mr. Woodhouse.
Eram estas as senhoras que Ema conseguia reunir
frequentes vezes; e isto dava-lhe satisfação, por causa
do pai, se bem que, no que pessoalmente lhe dizia res­
peito, não a compensasse da ausência de Mrs . Weston.
Ela sentia um grande prazer em ver seu pai satisfeito
e ficava muito contente consigo mesma por ter
imaginado tão bem as coisas; mas a conversação banal
daquelas três senhoras fazia-a sentir que cada noite
passada assim era, na verdade, uma das longas noites
que ela tinha previsto com horror.
Uma manhã, estava ela na expectativa de um
desses fins de dia, quando lhe trouxeram um bilhete
de Mrs . Goddard, em que esta lhe pedia, nos mais
respeitosos termos, permissão para levar consigo Miss
Smith; o pedido teve o melhor acolhimento, pois Miss
Smith era uma rapariga de dezassete anos que Ema
conhecia muito bem de vista e por quem sentia um
certo interesse, por causa da sua beleza. Em resposta,
foi enviado um amabilíssimo convite, e a linda dona
daquela mansão já não sentiu receio dessa noite .
Harriet Smith era filha natural . Haviam-na man­
dado, alguns anos atrás, para a escola de Mrs. Goddard
e, ultimamente , haviam-na guindado da condição de
aluna à de pensionista. Era tudo o que sabia da sua
história. Não lhe conheciam outras amigas senão as
que tinha adquirido em Highbury, e agora estava de
regresso de uma demorada visita ao campo, a casa
de umas meninas que haviam sido suas condiscí­
pulas .

25
JA NEA USTEN

Era uma linda rapariga e dava-se o caso de a sua


beleza ser de um género que Ema admirava parti­
cularmente . Baixa, roliça e de linhas harmoniosas ,
era cheia de frescor, possuía olhos azuis, cabelos claros,
feições correctas e uma expressão de grande meiguice;
antes de terminado o serão Ema estava tão encantada
com os seus modos como com a sua pessoa e abso-
1 utamente decidida a continuar as suas relações com
ela.
Na conversa de Miss Smith não viu nada de nota­
velmente elevado que a impressionasse, mas ao mesmo
tempo, achou-a tão insinuante - não incomodamente
tímida, nem pouco faladora - e, contudo, tão longe
de ser importuna, mostrando-se tão correcta e tão
respeitosa, parecendo tão contente e grata por ter sido
recebida em Hartfield e tão ingenuamente impres­
sionada pelo aspecto de tudo, de estilo muito superior
àquilo a que estava habituada, que, com certeza, devia
ser uma pessoa sensata e merecia que lhe dessem
confiança. Ser-lhe-ia dada confiança. Aqueles meigos
olhos azuis e todos aqueles dotes naturais não haviam
de se desperdiçar na sociedade banal de Highbury e
meios afins. As relações que já havia contraído eram
indignas dela. Os amigos que ela acabava de visitar,
se bem que muito boa gente , só lhe deviam ser
prej udiciai s . Pertenciam a uma família de nome
Marti n , que E m a conhe cia de reputação, como
rendeiros de uma vasta herdade de Mr. Knightley,
que residia na paróquia de Donwell; parece que era
gente muito estimável - ela sabia que Mr. Knightley
os tinha em grande conceito, - mas, com certeza, eram
rudes e pouco educados e , portanto, muito pouco
indicados para se tornarem íntimos de uma rapariga
a quem só faltava um pouco de cultura e elegância
para ser perfeita . Havia de lhe fazer ver isso e
aperfeiçoá-la; desviá-la-ia de más relações e apre­
sentá-la-ia na boa sociedade; ajudá-la-ia a formar as
suas opiniões e os seus modos . Havia de ser uma tarefa
interessante e certamente muito simpática, que se
adaptava j ustamente à sua posição, aos seus vagares
e às suas faculdades .

26
EMA

E m a e s tava tão abs orvida n a contemplação


daqueles meigos olhos azui s , n a convers a e na
elaboração, a intervalos , de todos estes projectos, que
o serão passava-se com uma rapidez muito fora do
usual; e a mesa da ceia, que vinha sempre pôr fim a
estas reuniões e à qual ela costumava sentar-se, à
espera do momento de servir, era preparada e colocada
em frente da lareira antes de ela dar por isso. Com
uma vivacidade que ia além do ímpeto vulgar de um
temperamento que, todavia, nunca se sentia indi­
ferente à reputação que gozava de fazer as coisas bem
e com a devida solicitude, com a real boa vontade de
um espírito deliciado com os próprios ideais, ela fez
então as honras do repasto , servindo o picado de
galinha e as ostras recheadas com uma prontidão que
ela sabia agradar aos hábitos de recolher cedo e aos
escrúpulos de delicadeza dos seus convidados .
Nessas ocasiõe s , os sentimentos do pobre Mr .
Woodhouse debatiam-se numa luta horrível . Ele
gostava de ter a mesa posta, porque era um costume
que datava da sua juventude; mas a sua convicção de
que as ceias faziam mal à saúde, era causa de que se
afligisse um pouco ao ver pôr alguma coisa na mesa:
e, ao mesmo tempo que a sua índole hospitaleira de
boa vontade o levaria a pôr tudo à disposição dos seus
hóspedes, os cuidados que a saúde deles lhe merecia
eram motivo de tormento quando os via comer.
Tudo o que ele recomendaria, com inteira aprovação
do seu espírito, era uma pequena tigela de papas de
aveia como a sua, se bem que condescendesse em dizer,
enquanto as senhoras davam agradável gasto a
acepipes melhores :
- Mrs . Bates, permita-me que a tente com um ovo
destes. Um ovo pouco cozido não faz mal nenhum. O
Serle sabe cozer os ovos melhor do que ninguém. Eu
não os recomendaria preparados por qualquer outra
pessoa . . . mas , assim, nada tem a recear . . . bem vê, são
muito pequenos . . . um ovo tão pequeno não lhe faz mal.
Miss Bates , permita que Ema lhe sirva um pedacinho
de torta . . . só um pedacinho. Cá em casa, as tortas são

27
JA NEA USTEN

de maçã. Não tenha receio, que aqui não há doces


indigestos . . . Já lhe não aconselho o creme. Mrs. Goddard,
que diz a meio copo de vinho? Só meio copo, misturado
com água. Acho que não lhe há-de desagradar.
Ema deixava o pai falar e servia as visitas de
maneira mais s atisfatóri a ; e n e s s a noite tinha
p articular prazer em as ver partir contente s . O
contentamento de Miss Smith ia ao encontro das suas
intenções . Miss Woodhouse era uma personagem tão
categori zada em Highbury que a perspectiva da
apresentação havia causado em Harriet tanto susto
como prazer: mas a humilde e grata rapariguinha
saíra com as mais agradáveis impressões e deliciada
com a afabilidade com que Miss Woodhouse a tinha
tratado durante todo o serão. Até, por fim, lhe apertara
a mão!

CAP Í TULO IV

A intimidade de Harriet Smith em Hartfield


depressa se tornou coisa assente . Rápida e decidida
nas suas resoluções, Ema não perdeu tempo em a
convidar, insistindo com ela para que a fosse visitar
amiúde; e, à medida que se iam conhecendo melhor,
mais satisfeitas estavam uma com a outra. Ema há
muito previra quão útil ela lhe seria como companheira
de passeios a pé. Sob este aspecto, tinha-se feito sentir
bastante a perda de Mrs . Weston. Seu pai nunca ia
além do bosque, onde os dois limites do terreno lhe
bastavam para o seu passeio - grande ou pequeno,
consoante a altura do ano; e desde o casamento de
Mrs . Weston o exercício de Ema sofrera uma grande
restrição. Apenas se tinha aventurado uma vez
sozinha, até Randalls, mas não achou a caminhada
muito agradável; e, por conseguinte, uma Harriet
Smith com quem ela pudesse contar para um passeio,
sempre que quisesse, aumentaria consideravelmente
as suas regalias .

28
EMA

Por isso, sob todos os aspectos , quanto mais elas se


encontravam, mais Ema simpatizava com Harriet e
mais confirmados via os seus agradáveis intentos .
Harriet não era certamente inteligente, mas
possuía uma índole meiga, dócil e grata; era total­
mente despida de presunção e apenas desej ava ser
guiada por alguém que ela venerasse. A sua dedicação
era deveras cativante e a propensão que tinha para
escolher boas companhias e a faculdade de avaliar o
que era elegante e belo revelavam que não tinha falta
de gosto, se bem que não fosse de esperar da sua parte
um grande poder de compreensão. E m a estava
absolutamente convencida de que Harriet Smith era
exactamente a jovem amiga de que precisava -
exactamente aquilo de que o seu lar necessitava. Uma
amiga como Mrs . Weston estava fora de discussão.
Nunca se encontrariam duas assim. Não pretendia
duas como ela. Agora era uma coisa completamente
diferente - era um sentimento absolutamente
distinto. Mrs . Weston era obj ecto de uma veneração
que tinha por fundamento a gratidão e a estima;
Harriet seria amada como alguém a quem podia ser
útil . Por Mrs . Weston nada se podia fazer; por Harriet,
tudo.
Nas suas primeiras tentativas para se mostrar útil,
esforçou-se por descobrir quem eram os pais da amiga,
mas Harriet nada lhe pode dizer. Estava pronta a
confiar-lhe tudo o que estivesse em seu poder, mas
nesta matéria eram inúteis as perguntas. Ema via-se
obrigada a fantasiar o que lhe apetecesse . . . mas não
podia convencer-se de que, em idêntica situação, nunca
tivesse descoberto a verdade. Harriet não era nada
perspica z . Contentar a - s e em ouvir e acreditar
exactamente aquilo que Mrs . Goddard entendera
dizer-lhe e não ambicionara mais.
Mrs . Goddard, as professoras, as raparigas e tudo
quanto, em geral, se relacionasse com a escola, eram,
naturalmente, os temas sobre que versava grande
parte da conversa e esta seria inteiramente assim
preenchida, se não houvesse as relações com os Martin

29
JA NEA USTEN

da Herdade de Abbey-Mill. Mas os Martin ocupa­


vam-lhe bastante o espírito; ela havia passado dois
deliciosos meses na companhia deles e agora gostava
de recordar os prazeres da visita e descrever os
numerosos confortos e maravilhas do lugar. Ema
estimulava a sua loquacidade, divertida com o quadro
da vida doutras criaturas e encantada com o juvenil
entusiasmo com que Harriet se referia ao facto de Mrs .
Martin ter duas saletas - duas saletas realmente
muito boas - e de ter uma criada que vivia há vinte
e cinco anos com ela; de ter oito vacas, duas delas de
raça Alderney e outra galesa - uma linda vaquinha
galesa, na verdade; de Mrs . Martin dizer que gostava
tanto desta vaquinha que lhe chamava a «sua vaca» ;
e de possuir uma bela vivenda de Verão no meio de
um j ardim, onde em qualquer dia do ano seguinte
haviam todos de ir tomar chá - uma bonita casa de
Verão, com espaço bastante para lá caber mais de uma
dúzia de pessoas .
Durante algum tempo, isto divertiu-a, sem que os
seus pensamentos fossem além da causa imediata;
mas , à medida que começava a conhecer melhor a
família, despertavam nela outros sentimentos . A
princípio, formara uma ideia errada imaginando que
se tratasse de mãe e filha, de um filho e de uma esposa
do filho, que vivessem todos j untos; mas , quando
descobriu que Mr. Martin, que desempenhava um
papel na narrativa e era sempre citado com agrado
por causa da sua grande bondade ao fazer isto e aquilo,
era solteiro e não havia nenhuma jovem Mrs . Martin,
nenhuma esposa no caso, desconfiou de um perigo para
a sua pobre amiguinha em toda essa hospitalidade e
gentileza, e receou que, se ela não tomasse cuidado,
pudesse ser levada a afundar-se para sempre.
E stimulada por esta idei a , deu incremento e
significado diferente às perguntas - levou, especial­
mente Harriet a falar mais de Mr. Martin, o que,
evidentemente, lhe não desagradava. Harriet estava
sempre a referir-se à parte que ele havia tido nos seus
passeios ao luar e nos divertidos jogos à noite , e
demorava-se em largas considerações sobre o seu bom

30
EMA

humor e amabilidade . Um dia, tinha ele andado três


milhas só para lhe trazer umas nozes, porque ela havia
dito que gostava muito - e em tudo o mais era tão
cativante ! Uma noite, mandara entrar na sala o filho
do pastor, só para ela o ouvir cantar, pois gostava
muito de canto. Ele próprio cantava alguma coisa. Ela
achava que ele era muito inteligente e que com­
preendia tudo. Tinha um lindo rebanho; e enquanto
ela esteve em sua casa, tinham-lhe feito ofertas de lã,
como a ninguém da região. Estava convencida de que
todos diziam bem dele . A mãe e as irmãs eram muito
suas amigas . Um dia, Mrs . Martin tinha-lhe dito, a
ela (Harriet corou ao dizer isto), que era impossível
ser-se melhor filho - e, por conseguinte , tinha a
certeza de que, quando ele casasse, havia de ser um
bom marido. Não que ela desejasse vê-lo casado . . . não
tinha pressa nenhuma.
«Muito bem, Mrs . Martin! - disse Ema de si para
si. - Sabe fazer bem as coisas . . . »
E quando ela se fora embora, Mrs . Martin levara a
amabilidade ao ponto de mandar a Mrs . Goddard um
lindo ganso - o mais belo ganso que Mrs . Goddard
vira até então. Mrs. Goddard cozinhou-o num domingo
e convidou as três professoras, Miss N ash, Miss Prince
e Miss Richardson, a irem cear com ela.
- Mas Mr. Martin não tem outros conhecimentos
além dos que se relacionam com os seus negócios , pois
não? Não lê?
- Oh, sim! . . . isto é, não . . . eu não sei . . . mas creio
que tem lido muito. Não são, porém, coisas que tenham
interesse para si. Ele lê o «Agricultural Reports» e
alguns livros que estão em cima de um dos bancos da
janela . . . mas lê-os só para si. No entanto, de vez em
quando, à noite, antes de jogarmos as cartas , lia em
voz alta alguns artigos bem divertidos do «Elegant
Extracts». Sei também que leu o «Vigário de Wake­
field». Nunca leu o «Romance da Floresta» nem os
«Filhos da Abadia». Nunca tinha ouvido falar desses
livros antes de eu os ter citado, mas agora está
resolvido a comprá-los logo que possa.

31
JA NEA USTEN

A pergunta seguinte foi:


- Que aspecto tem Mr. Martin?
- Oh! não é bonito . . . não é nada bonito. A princípio,
pareceu-me muito feio, mas agora não o acho tanto.
Como sabe, com o tempo acaba-se por não achar as
pessoas tão feias . Mas nunca o viu? Ele vai a Highbury
de vez em quando e todas as semanas passa por lá a
cavalo, quando vai para Kingston. Tem passado por
si muitas vezes .
- Pode ser . . . é possível que eu o tenha visto dezenas
de vezes; mas não tenho nenhuma ideia do seu nome .
Um jovem rendeiro, vá ele a cavalo ou a pé, é o último
género de p e s s o a que pode d e s pertar a minha
curiosidade . Os lavradores são justamente a classe
de pessoas com quem eu sinto nada ter de comum.
Um degrau ou dois abaixo, podiam certas pessoas de
aspecto honrado interessar-me; podia dar-se o caso
de eu desej ar ser útil de qualquer forma às suas
famílias . Mas um lavrador não necessita do meu
auxílio e, portanto, está, num certo sentido, tão acima
do meu interesse quanto, em todos os outros, está
abaixo.
- Com certeza. Sim . . . não é provável que tenha
reparado nele . . . mas , de facto, conhece-a muito bem . . .
quero dizer, de vista.
- Não duvido de que s ej a um rapaz muito
estimável . Sei que, de facto, o é e, como tal, só lhe
desejo bem. Que idade j ulga que ele tem?
- Fez vinte e quatro anos no dia 8 de Junho, e o
dia dos meus a1.1os é a 23 . . . exactamente quinze dias
de diferença . . . E curioso! ,
- Apenas vinte e quatro anos? E novo de mais para
casar. A mãe dele tem toda a razão em não ter pressa.
Parecem viver muito bem como estão, e, se ela fosse
incomodar-se com o casamento dele, provavelmente
arrepender-se-ia. Daqui a seis anos , se ele encontrar
uma rapariga de boas qualidades, da mesma classe
dele e com algum dinheiro, então está bem.
- Daqui a seis anos, querida Miss Woodhouse, já
ele tem trinta!

32
EMA

- Muito bem: é a altura em que a maior parte dos


homens se resolvem a casar, quando não nasceram
para viver sozinhos . Mr. Martin, julgo eu, tem que
fazer inteiramente a sua fortuna . . . não pode, de
maneira alguma, antecipar-se. Sej a qual for o dinheiro
que ele venha a receber quando o pai morrer, sej a
qual fo r a sua parte nos bens d a família, suponho que
está tudo a girar, está tudo empregado no negócio; e
embora, com diligência e sorte, ele possa vir a ser rico,
é quase impossível que já tenha conseguido alguma
c01sa.
- Com certeza; é assim mesmo. Mas eles vivem
muito bem. Não têm criado, mas não lhes falta nada;
e Mrs . Martin fala em contratar um rapaz para o ano.
- O que eu desejo, Harriet, é que não se vej a em
embaraços, quando ele casar . . . quero dizer, pelo facto
de ser conhecida da mulher dele . . . pois embora as
irmãs, pela sua educação superior, nada tenham que
se lhes diga, não se segue que ele não possa vir a casar
com quem a Harriet não deva dar-se. A infelicidade
da s u a ori gem devia torn á - l a p articularmente
cuidadosa quanto aos conhecimentos que arranja. Não
pode haver dúvida de que é filha de um gentleman:
deve, portanto, sustentar, por todos os meios ao seu
alcance, o título que tem a essa posição; de contrário,
haverá muita gente que sinta prazer em a descon­
siderar.
- Sim, com certeza . . . também julgo que há. Mas
enquanto eu vier a Hartfield e Miss Woodhouse for
boa para mim, nada tenho a recear, seja de quem for.
- A H arriet deve s aber guardar- se das más
influências, mas eu hei-de instalá-la no meio da boa
sociedade, mesmo independentemente de Hartfield e
de Miss Woodhouse. Quero vê-la permanentemente
bem relacionada . . . e, para atingir esse fim, é acon­
selhável contrair tão poucos conhecimentos extra­
vagantes quanto possível; portanto, devo dizer-lhe que,
se ainda viver nesta região quando Mr. Martin casar,
só o que desejo é que não sej a levada, pela intimidade
com as irmãs , a travar conhecimento com a esposa,

33
JA NEA USTEN

que, segundo todas as probabilidades , há-de ser a filha


de qualquer lavrador, sem instrução nenhuma.
- Sim, com certeza. Não é que eu julgue Mr. Martin
capaz de casar com uma mulher que não tenha
instrução . . . e sej a muito bem educada. No entanto,
não quero dizer com isto que não sej a da sua opinião . . .
estou certa de que não vou relacionar-me com a esposa.
Hei-de ter sempre grande consideração pelas irmãs
de Mr. Martin, sobretudo por Isabel, e teria muita
pena de as deixar, pois são tão bem educadas como
eu. Mas , se ele casar com uma mulher vulgar e
ignorante, com certeza que o melhor que tenho a fazer
é não a visitar, desde que possa evitá-lo.
Ema observava-a enquanto ela proferia estas
palavras evasivas, mas não viu nelas nenhum sintoma
alarmante de que estivesse apaixonada. O rapaz havia
sido o seu primeiro admirador, mas Ema confiava que
o interesse não fosse além disso e que não surgissem
obstáculos sérios da parte de Harriet que se opusessem
às suas amigáveis disposições .
Encontraram-se n o dia seguinte com Mr. Martin,
quando iam de passeio pela estrada de Dorwell. Ele
ia a pé e, depois de ter olhado muito respeitosamente
para Ema, fitou com verdadeira satisfação a sua
companheira. Ema não desgostou de ter essa opor­
tunidade de os examinar; e, caminhando alguns passos
à frente, enquanto eles conversavam um com o outro,
depressa o seu golpe de vista rápido se inteirou
suficientemente de quem era Mr. Roberto Martin. O
seu aspecto era digno e parecia ser um rapaz sensato,
mas a sua pessoa mais nenhum atractivo revelava; e
desde que ele fosse posto em confronto com cava­
lheiros , era opinião de Ema que Mr. Martin perderia
todo o terreno que conquistara na simpatia de Harriet.
Harriet não era indiferente às boas maneiras ; havia
notado espontaneamente, entre admirada e encan­
tada, os modos corteses do pai de Ema. E Mr. Martin
tinha o ar de quem n ão s abia o que eram boas
maneiras.

34
EMA

Apenas estiveram juntos alguns minutos, para que


Miss Woodhouse não ficasse à espera, correndo
Harriet finalmente para ela, sorridente , e com o
espírito num alvoroço que Miss Woodhouse esperava
acalmar em pouco tempo. ,
- Imagine, que acaso tê-lo encontrado ! E curioso!
Disse ele que foi mesmo uma sorte não ter ido dar a
volta por Randalls . Nunca supôs que viéssemos por
esta estrada. Julgava que íamos quase todos os dias
até Randalls . Ainda não conseguiu obter o «Romance
da Floresta». Estava tão ocupado, da última vez que
esteve em Kingston, que ,o esqueceu completamente;
mas amanhã volta lá. E extraordinário como nos
encontrámos ! Então, que tal lhe pareceu ele? Acha-o
muito feio?
- É muito feio, sem dúvida alguma . . . notavelmente
feio: mas isso nada é comparado com a sua absoluta
falta de distinção. Eu não tinha razões para esperar
muito e realmente não esperava; mas não fazia ideia
de que fosse tão rústico, tão desprovido de boas
maneiras . Confesso que o imaginava uns graus mais
acima, em distinção.
- Na verdade , - disse Harriet, com voz mor­
tificada - ele não é tão distinto como um verdadeiro
gentleman.
- Penso que a Harriet, desde que convive connosco,
tem estado tantas vezes em contacto com gentlemen
autênticos , que , agora, deve sentir-se chocada com a
diferença que fazem de Mr. Martin. Em Hartfield, tem
visto excelentes espécimes do homem bem educado e
de boa família. Seria uma surpresa para mim, se,
depois de os ter visto, continuasse a conviver com Mr.
Martin, sem notar que ele era uma criatura bem
inferior . . . e não se admirasse antes de o ter julgado,
até então, uma companhia agradável. Não começa a
pensar assim? Não se sentiu chocada? Tenho a certeza
de que ficou mal impressionada com o seu aspecto
acanhado, os modos bruscos e o timbre grosseiro da
voz, que eu notei vazia de inflexões, enquanto ele
estava connosco.

35
JA NEA USTEN

- Efectivamente, não é como Mr. Knightley. Não


tem um porte e uma maneira de andar como os dele.
Eu vejo muito bem a diferença. Mas Mr. Knightley é
um cavalheiro tão fino!
- Os modos de Mr. Knightley são tão distintos que
nem sequer é razoável comparar Mr. Martin com ele.
Em cem não se encontra um com o título de gentleman
tão patente em si como Mr. Knightley. Mas ele não é
o único cavalheiro que Harriet tem visto ultimamente.
Que diz de Mr. Weston e de Mr. Elton? Compare Mr.
Martin com qualquer deles . Compare os modos de
proceder, de passear, de falar, de guardar silêncio . . .
Logo verá a diferença.
- Oh, sim ! . .. Há uma diferença muito grande . Mas
Mr. Weston é quase um velho . Mr. Weston deve orçar
entre os quarenta e os cinquenta.
- O que torna as suas boas maneiras ainda mais
apreciáveis . Quanto mais idade uma pessoa tem, mais
importância reside no facto de os seus modos serem
correctos . . . mais acentuada e fastidiosa se torna
qualquer marca de rude z a , de gro s s eria ou de
acanhamento . O que é tolerável n a j uventude é
detestável na velhice . Mr. Martin, hoje, é acanhado e
brusco; como será ele quando chegar à idade de Mr.
Weston?
- Na verdade, não se pode dizer nada - replicou
Harriet, em tom um tanto grave.
- Mas pode-se muito bem conjecturar. Há-de ser
um lavrador rude e ordinário . . . indiferente , em
absoluto, às aparências e não pensando em mais nada
senão em lucros e perdas .
- Realmente, isso será muito mau . . .
- Vê-se quanto o s negócios o absorvem já: o facto
de se ter esquecido de perguntar pelo livro que a
Harriet lhe havia recomendado é bastante elucidativo.
Estava preocupado de mais com o mercado para
pensar noutra coisa qualquer . . . é exactamente o que
se deve ser quando se quer prosperar nos negócios.
Que lhe importam, a ele, os livros? E eu não tenho
dúvidas de que há-de prosperar e, com o tempo, vir a

36
EMA

ser muito rico . . . E o facto de ele ser ignorante e


grosseiro em nada o prej udicará.
- Admiro-me de que ele não se tenha lembrado do
livro - disse Harriet, por única resposta, num tom de
leve enfado que Ema entendeu conveniente deixar
desenvolver-se por s i . Por isso, nada mais disse
durante algum tempo. Finalmente, começou por estas
palavras :
- Até certo ponto, as maneiras de Mr. Elton são
talvez sup�riores às de Mr. Knightley ou às de Mr.
Weston . E verdade que eles são mais corte s e s .
Podia-se, sem inconveniente, tomá-los como padrão .
Há uma franquez a , uma vivacidade , quase uma
rudeza, em Mr. Weston, que agradam a toda a gente,
pelo bom humor que dele dimana . . . mas são coisas
que se não devem copiar. Nem mesmo os modos
decididos, categóricos e como que imperativos de Mr.
Knightley . . . embora lhe fiquem muito bem, a ele; a
sua expressão, o seu aspecto e a sua posição social
parecem permitir-lho; mas qualquer rapaz que
pretendesse imitá-lo seria insuportável . Pelo con­
trário: acho que um rapaz só tem conveniência em
tomar Mr. Elton como modelo. Mr. Elton é dotado de
bom humor, é alegre , obsequioso e afável . Afigu­
ra-se-me que, de há um certo tempo para cá, se tem
tornado particularmente afável. Não sei se ele tem
qualquer desígnio de captar as simpatias de alguma
de nós, Harriet, patenteando mais a sua amabilidade,
mas não posso deixar de notar que os seus modos são
mais insinuantes que de costume. Se há algum intento,
deve ser o de agradar a si. Não lhe contei o que ele me
disse a seu respeito no outro dia.
Ema repetiu então alguns dos calorosos elogios que
tinha arrancado a Mr. Elton e que naquele momento
muito apreciava; e Harriet, corada e sorridente, disse
que sempre havia j ulgado Mr. Elton muito cativante .
Mr. Elton era a pessoa escolhida por Ema para
afastar o jovem lavrador do espírito de Harriet. Achava
que seria um magnífico partido e só o que se poderia
dizer é que não havia grande mérito em planear um

37
JA NEA USTEN

casamento tão evidentemente desej ável, natural e


provável.
Ema temia que fo s s e isto o que toda a gente
pensasse e previsse. No entanto, não era de esperar
que houvesse alguém que tivesse concebido o plano
com a mesma prontidão que ela, isto é, precisamente
na primeira noite em que Harriet fora a Hartfield.
Quanto mais cogitava nisso, mais nítida era a noção
que tinha do seu valor, do seu expediente . A posição
de Mr. Elton era das mais recomendáveis : um perfeito
cavalheiro, sem parentescos de baixa condição, não
era ao mesmo tempo de família que , porventura,
obj ectasse à origem incerta de Harriet. Possuía uma
casa confortável para lhe oferecer e, calculava Ema,
um rendimento muito razoável; com efeito, embora o
vicariado de Highbury não fo s s e muito grande,
sabia-se que ele possuía alguma coisa de seu; e Ema
tinha-o na conta de um rapaz digno, j ovial , bem
intencionado, sem deficiências de compreensão e de
prática do mundo.
Já era uma satisfação para ela que ele achasse
Harriet uma linda rapariga: confiava, pois, que essa
circun s t ânci a , acompanhada d e s s e s fr e quentes
encontros em Hartfield, fosse uma base suficiente do
lado dele; e do lado de Harriet poucas dúvidas haveria
de que a ideia de ele a preferir exercesse toda a
influência e eficácia habituais . Era, de facto, um rapaz
encantador, um rapaz com quem uma mulher que não
tivesse falta de gosto havia de simpatizar. Tinham-no
na conta de um bonito rapaz ; a sua figura era
geralmente admirada, se bem que ela própria não o
admirasse, pois achava-lhe as feições pouco correctas,
defeito de que não gostava - mas a rapariga que se
encantava com o facto de um tal Roberto Martin ter
percorrido a cavalo a região à procura de nozes para
ela, podia muito bem ser conquistada pela admiração
por Mr. Elton.

38
EMA

CAP Í TULO V

- Não sei qual é a sua opinião, Mrs . Weston, -


dizia Mr. Knightley - acerca desta grande intimidade
entre Ema e Harriet Smith, mas, quanto a mim, acho
isto mau.
- Mau! Acha realmente mau! Porquê? . . .
- Penso que não farão bem algum uma à outra.
- O senhor surpreende-me. Ema faz bem a Harriet,
com certeza. E, quando mais não sej a por lhe oferecer
um novo obj ecto de interesse, deve-se reconhecer que
Harriet faz bem a Ema. E com grande prazer que tenho
notado a sua intimidade . Como são diferentes as
nossas opiniões! . . . Não j ulgo que se prejudiquem uma
à outra! Parece-me que isto vai ser o princípio de uma
das nossas zangas a respeito de Ema, Mr. Knightley.
- Talvez pense que eu vim de propósito para brigar
consigo, por saber que Weston não está em casa e que
assim tem de defender-se sozinha.
- Mr. Weston defender-me-ia, sem dúvida alguma,
se aqui estivesse, pois pensa exactamente como eu
nesse capítulo. Ainda ontem falámos sobre ele e fomos
ambos de parecer que era uma felicidade para Ema
haver essa rapariga em Highbury para a acompanhar.
Mr. Knightley, não o reconheço como juiz competente
nesta questão. O senhor está tão acostumado a viver
sozinho que não conhece o valor de uma companhia;
e talvez que nenhum homem sej a capaz de avaliar
bem o conforto que uma mulher sente com o convívio
de outra pessoa do mesmo sexo, depois de habituada
a isso toda a vida. Eu calculo no que se baseia a sua
antipatia por Harriet Smith. Ela não é a jovem de
espírito superior que toda a amiga de Ema devia ser.
Mas , por outro lado, como Ema desej a que ela se
instrua, o facto é até um incentivo para que a própria
Ema leia mais. Vão ler j untas . Sei que ela tenciona
fazê-lo.
- Ema teve sempre tenções de ler mais, desde os
doze anos. Tenho visto um grande número de listas

39
JA NEA USTEN

de livros que ela tencionava ler sucessivamente ,


elaboradas em várias alturas . . . e listas boas , de livros
bem escolhidos, e organizadas com método . . . umas por
ordem alfabética, outras por qualquer outra ordem. A
lista que ela fez quando tinha apenas catorze anos,
lembro-me eu de ter achado que honrava tanto a sua
inteligência que a conservei durante algum tempo; e
calculo que agora deve ter feito óptimas listas também.
Mas j á deixei de ter esperanças de que Ema siga uma
orientação na leitura. Ela nunca se submeterá a nada
que requeira engenho e paciência, ou suj eição da
fantasia ao raciocínio. Onde o estímulo de Miss Taylor
fracassou, posso afoitamente dizer que Harriet Smith
nada fará. - A senhora nunca conseguiu que ela lesse
metade do que pretendia que lesse. Bem sabia que
não podia consegui-lo !
- Creio que pensava então assim, - explicou Mrs.
Weston, sorrindo - mas desde que nos separámos,
não posso levar à paciência que Ema deixasse de fazer
o que eu queria.
- Não há da minha parte o desejo de avivar essa
recordação - disse Mr. Knightley, vivamente , e
calou-se durante alguns momentos. - Mas eu, -
acrescentou pouco depois - que não estou sob o
domínio de tal encantamento, ainda sou capaz de ver,
ouvir e recordar. Ema está estragada pelo facto de ser
a mais inteligente da família. Aos dez anos tinha a
desgraça de saber responder a perguntas que embara­
çavam a irmã aos dezassete. Foi sempre viva e ousada:
Isabella, lenta e tímida. E desde os doze anos que Ema
mandou na casa e em vocês todos. Na mãe, perdeu ela
a única pessoa capaz de competir consigo . Herdou as
qualidades da mãe, que era quem devia ter domínio
sobre a filha.
- Pelos vistos, Mr. Knightley, se eu houvesse tido
que sair de casa da família Woodhouse e precisado de
uma recomendação sua para arranjar outra colocação,
estava bem servida! Parece-me que o senhor não era
capaz de dar boas referências minhas a ninguém.

40
EMA

Tenho a certeza de que sempre me j ulgou incom­


petente para o lugar que desempenhei.
- É verdade - disse ele, sorrindo . - O seu lugar
é aqui ; tem muita competência para esposa, mas
nenhuma para preceptora. No entanto , durante o
tempo que permaneceu em Hartfield esteve a pre­
parar-se para vir a ser uma boa esposa. A senhora
não conseguiu dar a Ema uma educação tão completa
como as suas faculdades pareciam prometer; pelo
contrário, recebeu dela uma esplêndida educação,
utilís sima para a vida conj ugal , pois aprendeu a
submeter-se e a fazer o que lhe ordenavam; e, se Mr.
Weston me tivesse pedido que lhe indicasse uma
esposa, sem dúvida, ter-lhe-ia citado Miss Taylor.
- Muito obrigada. Pouco mérito há em ser boa
esposa, com um homem como Mr. Weston.
Olhe : a dizer a verdade, temo que as suas qua­
lidades estej am a ser desperdiçadas, tendo tão boas
d i s p o s i ç õ e s para s uportar tudo e , afinal , nada
precisando de suportar . . . Todavia, não desesperemos .
Weston pode tornar-se difícil de aturar, pelo excesso
de conforto, ou porque o filho o venha a atormentar.
- Espero que não. Não é provável. Não, Mr. Knight­
ley, não pressagie desgostos desse lado .
- E u não pressagio nada. Apenas me refiro a
possibilidades. Não pretendo ter o talento de Ema em
presságios e conj ecturas . Espero de todo o coração que
o rapaz sej a um Weston em qualidades e um Churchill
na fortuna. Mas, quanto a Harriet Smith, ainda lhe
não disse metade do que queria dizer a respeito dela.
Julgo-a o pior género de companhia que Ema podia
arranj ar. Não sabe nada e pensa que Ema sabe tudo.
É uma aduladora sob todos os aspecto s . A sua
ignorância é uma lisonj a permanente. Como pode Ema
verificar o que lhe falta aprender, quando Harriet
patenteia tão deliciosa inferioridade? E, quanto a
Harriet, atrevo-me a dizer que também não pode
ganhar nada com esta convivência. Hartfield apenas
a fará desgostar-se de todos os outros meios a que ela

41
JA NEA USTEN

pertence . Há-de tornar-se tão fina que se sentirá mal


naquele meio em que a sua origem e as circunstâncias
a colocaram . Muito me enganarei eu se as teorias de
Ema fortalecerem o espírito ou contribuírem de algum
modo para dar a uma rapariga o poder de se adaptar
razoavelmente às contingências da sua posição social.
Apenas lhe conferirão um pouco de polimento.
- Confio mais no bom senso de Ema que o senhor
e, ao mesmo tempo , preocupo-me mais com o seu
bem-estar, pois não posso lamentar o conhecimento
que arranjou. Que bem que ela estava ontem à noite !
- Ah! prefere falar da sua pessoa a falar do seu
espírito, não é verdade? Muito bem; não nego que Ema
estava muito bonita.
- Bonita? Diga antes - linda! Pode imaginar
alguma coisa mais próxima da beleza perfeita que
Ema, tanto em feições como em figura?
- O que seria capaz de imaginar não sei, mas
confesso que, realmente, raras vezes tenho visto um
rosto e uma figura que mais me agradem que os dela.
Mas eu, como velho amigo, não sou imparcial . . .
- Que olhos ! Verdadeiros olhos d e avelã! E tão
brilhantes ! Feições correctas , expressão franca . . . e a
cor da pele? Oh! Que frescura tão sadia! E que estatura
tão bonita! Uma figura tão direita, tão desempenada!
Ali há saúde , não só na sua frescura, mas no porte, na
cabeça, no olhar. Ouve-se às vezes dizer que uma
criança é o próprio retrato da saúde; pois Ema dá-me
sempre a ideia de ser o perfeito retrato da saúde
adulta. É a beleza personificada. Não acha, Mr.
Knightley?
- Não encontro um único defeito na sua pessoa ­
retorquiu ele . - Penso o mesmo que a senhora. Gosto
de olhar para ela; e devo acrescentar que não a j ulgo
presunçosa. Formosa como é, parece preocupar-se
pouco com isso; a sua vaidade toma outro rumo . Mrs .
Weston, não deixarei de insistir no meu desagrado
pela intimidade dela com Harriet Smith, nem no meu
temor de que ambas se prej udiquem.

42
EMA

- E eu, Mr. Knightley, continuo forte na minha


confiança de que em nada se prejudicarão uma à outra.
Ema, com todos os seus pequenos defeitos, é uma
excelente rapariga. Onde encontrar melhor filha, irmã
mais terna, amiga mais fiel? Não, não; ela possui
qualidades em que se deve confiar; nunca aconselhará
ninguém mal; nunca comete erros duradoiros; por cada
vez que erra, acerta cem.
- Muito bem; não a importuno mais. Ema deve
ser um anjo; e eu guardarei para mim o meu pes­
simismo, até que o Natal nos traga John e Isabella.
John estima Ema com um afecto razoável e, portanto,
isento de cegueira, e Isabella pensa exactamente como
ele, excepto quando ele não se preocupa o suficiente
com os filhos. E stou certo de que a opinião deles é
igual à minha.
- Eu sei que todos a estimam o suficiente para
não serem injustos e malévolos ; mas desculpe-me, Mr.
Knightley, se tomo a liberdade (sabe que me considero,
até certo ponto, com o privilégio que a mãe de Ema
teria tido de dizer o que lhe parecesse conveniente . . . ),
a liberdade de lembrar que não vejo a vantagem que
possa advir do facto de a intimidade de Harriet Smith
constituir assunto de discussão entre vós . . . Descul­
pe-me; mas admitindo que haj a algum inconveniente
nessa intimidade, não é de esperar que Ema, obrigada
a prestar contas unicamente a seu pai, que aprova
inteiramente as relações por ela criadas , ponha fim a
estas, desde que sej am uma fonte de prazer para ela.
A minha mi s s ão fo i , durante tantos ano s , dar
conselhos, que o senhor não deve surpreender-se, Mr.
Knightley, com estes restos do ofício que me ficaram.
- De maneira alguma - exclamou ele; - estou-lhe
muito obrigado. E um excelente conselho, que há-de
ter um destino melhor que outros conselhos seus:
segui-lo-ei.
- Mrs . John Knightley alarma-se facilmente e
podia ficar apoquentada por causa da irmã.
- Estej a descansada, - disse ele - não vou causar
sustos. Guardarei para mim o meu mau humor. Nutro

43
JA NEA USTEN

um interesse muito sincero por Ema; não considero


Isabella mais minha irmã que ela, nem nunca me
despertou maior interesse - talvez nem tanto . Há
como que uma ansiedade, uma curiosidade no que se
sente por Ema. Gostaria de saber qual será o seu
futuro .
- Também eu - disse Mrs . Weston com ternura
- gostava tanto !
- Ela está sempre a dizer que nunca se há-de
casar . . . o que, evidentemente, não quer dizer nada.
Mas não me consta que tenha, até hoje, encontrado
algum homem que lhe interessasse. Não seria nada
mau para ela apaixonar-se por alguém digno dela.
Gostava de ver Ema apaixonada e sem a certeza de
ser correspondida; far-lhe-ia bem. Mas aqui pelas
redondezas não há ninguém que a atraia; e ela sai tão
raras vezes de casa!
- Realmente, parece haver muito pouco que a tente
a quebrar a sua resolução - retorquiu Mrs . Weston;
- e enquanto ela for assim feliz em Hartfield, não
devo desej ar que crie qualquer afeição que vá levantar
embaraços a Mr. Woodhouse . Por enquanto , não
aconselho Ema a casar-se, se bem que não pretenda
menosprezar esse estado . Garanto-lhe . . .
A sua intenção era, em parte, dissimular, tanto
quanto possível, certos pensamentos que ela e Mr.
Weston nutriam acerca do assunto. Em Randalls havia
determinados desejos respeitantes ao destino de Ema
que não convinha dar a conhecer; e a serena transição
com que Mr. Knightley daí a pouco passou para «Que
diz Weston a respeito do tempo? Teremos chuva?» ,
convenceu Mrs . Weston de que ele nada mais tinha a
dizer ou a insinuar acerca de Hartfield .

44
EMA

CAP Í TULO VI

Ema não duvidava de que havia dado à imaginação


de Harriet a orientação conveniente e despertado a
sua vaidade de adolescente para um fim esplêndido,
pois verificou que, decididamente, ela reconhecia, mais
que dantes , que Mr. Elton era realmente um bonito
homem, de maneiras em extremo cativantes; e como
não hesitara em alimentar e s s a admiração com
lisonjeiras sugestões, depressa confiou em que Harriet
se afeiçoaria, logo que houvesse ocasião para isso.
Estava absolutamente convencida de que Mr. Elton,
se não estava j á apaixonado, ia em bom caminho para
tal . Quanto a ele, não tinha quaisquer dúvidas. Falava
de Harriet e elogiava-a tão calorosamente, que Ema
não podia admitir que, mesmo faltando ainda qualquer
coisa, o tempo não fizesse a sua obra. O facto de ele se
ter apercebido dos impressionantes progressos nas
maneiras de Harriet, desde a sua apresentação em
Hartfield, era uma das provas mais agradáveis do seu
interesse crescente .
- A senhora deu a Miss Smith tudo o que ela neces­
sitava - dizia ele; - fez com que ela se tornasse
elegante e sociável. Era uma linda rapariga quando
me foi apre s e n t a d a , m a s na minha opinião o s
atractivos que a senhora lhe acrescentou são infinita­
mente superiores aos que ela recebeu da natureza.
- Ainda bem que acha que lhe tenho sido útil; mas
Harriet apenas precisava de estímulo e de receber
algumas, muito poucas , sugestões . Ela tinha em si
toda a graça natural de um espírito terno e simples.
Por meu lado, fiz muito pouco.
- Se me fosse permitido contradizer uma senhora . . .
- disse cortêsmente Mr. Elton.
- Talvez eu lhe incutisse um pouco mais de firmeza
de carácter, ensinando-a a meditar num certo número
de coisas que nunca lhe haviam lembrado.
- Exactamente ! É isso que mais me impressiona.

45
JA NEA USTEN

Uma tão grande firmeza de carácter, só uma mão


habilíssima lha podia ter comunicado!
- Realmente, o prazer foi enorme. Nunca encontrei
índole mais amável !
- Não duvido . . .
E isto foi dito num tom suspirante, que tinha muito
de apaixonado. Ema não ficou menos satisfeita, num
outro dia, com a maneira como ele secundou um desejo
súbito, manifestado por ela, de possuir um retrato de
Harriet.
- Já tirou algum dia o retrato, Harriet? - pergun­
tou ela. - Já posou alguma vez?
Harriet ia a sair da sala, mas parou, para dizer
com um interessante ar de ingenuidade:
- Oh! minha querida . . . nunca.
Mal desaparecera, Ema exclamou:
- Que valioso tesouro não seria um bom retrato
dela! Eu era capaz de dar todo o dinheiro por ele. Estou
tentada a fazer-lhe o retrato. O senhor não sabe,
suponho, que há dois anos ou três tive uma grande
paixão pelos retratos e ensaiei em muitas amigas
minhas, e, duma forma geral, consideraram-me como
tendo um sofrível golpe de vista. Mas , enfadada por
diversas razões, abandonei isso. No entanto, se Harriet
quisesse, tentava-o. Era um prazer tão grande ter o
retrato dela!
- Suplico-lho ! - exclamou Mr. Elton. Seria, na
verdade, uma delícia! Suplico-lhe, Miss Woodhouse,
que aplique o seu encantador talento em favor da sua
amiga. Eu conheço as suas produções. Julga que as
ignoro? Não está esta sala enriquecida com quadros
de paisagens e flores feitos por si? - E não possui
Mrs . Weston algumas inimitáveis pinturas na sala
de visitas , em Randalls?
«Pois sim, bom homem . . . - pensou Ema - mas que
tem tudo isso com pintar retratos? Não conheces nada
de desenho . Não te finj as extático diante dos meus
quadros . . . Guarda os teus êxtases para o rosto de Harriet».
E em voz alta disse:
- Pois bem: j á que me encoraj a tão amavelmente,
Mr. Elton, estou disposta a ver o que posso fazer. As

46
EMA

feições de Harriet são tão delicadas que fazer-lhe um


retrato é coisa muito difícil ; e , contudo, há uma
peculiaridade na expressão dos olhos e nas linhas da
boca que devo apanhar.
- Justamente ! A expressão dos olhos e a linha da
boca . . . não duvido do seu êxito . Rogo-lhe . . . rogo-lhe
que o tente . Quando o terminar, teremos , na verdade,
para usar das suas próprias palavras , um tesouro
valioso.
- Mas eu tenho medo, Mr. Elton, que Harriet não
goste de posar. Ela preocupa-se tão pouco com a pró­
pria beleza. . . Não reparou no modo como ela me
respondeu? Foi exactamente como se dissesse: «Por
que razão me haviam de pintar o retrato?» .
- Oh ! sim, reparei , pode ter a certeza. Não me
passou despercebido. No entanto, não julgo que ela
não se convença.
Harriet voltou daí a pouco e a proposta foi-lhe feita
quase em seguida; e, no fim de contas, as suas objecções
não persistiram por muitos minuto s , perante a
calorosa insistência dos dois. Ema resolveu deitar
mãos à obra imediatamente : foi buscar, por conse­
guinte , a pasta que continha diversos esboços de
retratos , - pois nenhum deles havia sido acabado -
com o fim de escolherem em conjunto qual o melhor
tamanho a dar ao de Harriet. Exibiu os seus nu­
merosos bosquejos. Miniaturas, meios-corpos , corpos
inteiros, retratos a lápis, a crayon e a aguarela - tudo
havia experimentado. Ela sempre gostara de fazer de
tudo, e obtivera mais progressos em desenho e em
música do que muitas pessoas trabalhando tão pouco
como ela. Tocava e cantava: e desenhava quase todos
os género s ; mas o que sempre lhe faltara fora a
perseverança; e em nada havia atingido o grau de
excelente, que teria gostado de possuir e que, por certo,
teria conseguido. Não estava muito iludida quanto à
sua perícia, quer como pintora, quer como música, mas
não desgostava que os outros estivessem e não se
importava que a fama das suas produções fo s s e
superior a o que elas mereciam.

47
JA NEA USTEN

Todos os desenhos tinham valor - quanto menos


acabados talvez maior; o seu estilo tinha persona­
lidade; mas , mesmo que tivessem muito menos ou dez
vezes mais, o prazer e a admiração dos seus dois
companheiros teriam sido os mesmos. Estavam ambos
extáticos . Um retrato agrada sempre a toda a gente;
e as produções de Miss Woodhouse eram magníficas .
- Não há grande variedade de caras para vocês -
disse Ema.- Os meus estudos são apenas de pessoas
de família. Aqui têm o meu pai . . . outro de meu pai . . .
mas s ó a ideia de posar para o seu retrato deixava-o
tão nervoso, que eu só o podia apanhar às escondidas;
por isso, nenhum deles ficou muito parecido . Mrs .
Weston agora . . . mais um . . . mais outro . . . vêem?
Querida Mrs . Weston ! Foi sempre a minha melhor
amiga em todas as ocasiões. Posava todas as vezes
que eu lhe pedia. Esta é a minha irmã: é, de facto, a
sua figurinha elegante ! . . . Podia ter-lhe feito um bom
retrato, se ela tivesse posado durante mais tempo;
mas estava com tanta pressa de que eu lhe desenhasse
os quatro filhos que não podia estar sossegada. E
agora, cá estão todos os meus ensaios de três dos
pequenos : Henry, John e Bella, de uma ponta a outra
da folha; qualquer deles tanto podia ser ele próprio
como qualquer dos outros. A mãe estava tão impa­
ciente pelos retratos, que não lhos pude recusar; mas,
como s ab e , não é pos s ível faz e r - s e com que se
conservem quietas crianças de três ou quatro anos,
nem é fácil dar-lhes parecenças , além do aspecto geral
e da expressão, a não ser que elas tenham umas feições
grosseiras , que as crianças desta idade nunca têm.
Aqui está um esboço do quarto, quando ainda era bebé.
Tirei-lho enquanto ele dormia no sofá; o retrato do
laço ficou tão bom quanto se poderia desejar. Não podia
ter a cabeça mais convenientemente aninhada. Está
muito pareci d o . Sinto-me mesmo orgulho s a d o
Jorginho. O canto d o sofá está muito bom. Aqui está
o último que fiz - disse ela, mostrando um magnífico
esboço de pequenas dimensões, de um cavalheiro, em
corpo inteiro - o último e o melhor . . . meu irmão,

48
EMA

Mr. John Knightley. A este pouco faltava para acabar,


quando me deu uma veneta e j urei nunca mais fazer
retratos . Não pude deixar de me irritar, pois, no fim
de tanto trabalho, e quando eu tinha realmente feito
um magnífico retrato - Mrs . Weston concordou
comigo que , na verdade , estava muito parecido . . .
apenas bonito de mais . . . um pouco favorecido . . . mas
isso era uma vantagem - depois de tudo isto, veio a
fria aprovação da minha pobre lsabella: «Sim . . . está
um pouco parecido . . . mas a verdade é que não lhe faz
muita justiça» . Nós havíamos tido um trabalhão para
convencer John a posar. Fez isso como quem faz um
grande favor, e com isto ainda por cima, era mais do
que o que se podia suportar. Por isso, nunca mais
acabei o retrato, para que depois não andassem sempre
a pedir desculpa a todos os visitantes matutinos da
Praça de Brunswick de ele estar desfavorecido . . . E ,
como disse, j urei então nunca mais pintar o retrato de
ninguém . Mas por causa de Harriet, ou antes por
minha causa, e como, presentemente, não há no caso
esposos nem esposas, quebrarei a minha resolução.
Mr. Elton parecia convenientemente impressionado
e deliciado com a ideia e repetia com interessante
convicção: «Presentemente não há no caso esposos nem
esposas, como muito bem observou. Justamente! Nem
esposos nem esposas . . . », que Ema chegou a pensar se
não seria melhor deixá-los sozinhos imediatamente .
Mas, como pretendia desenhar, a declaração tinha de
esperar um pouco mais.
Já tinha escolhido o tamanho e o género do retrato.
Seria uma aguarela em corpo inteiro, como o de Mr.
John Knightley, e destinava-se, no caso de ficar
satisfeita com ele, a ocupar um muito honroso lugar
por cima da chaminé .
Começou a pose e Harriet, sorridente e corada, e
receosa de não conseguir manter sempre a mesma
atitude e o mesmo semblante , p atenteava uma
deliciosa expressão de juventude ao olhar perspicaz
da artista. Mas não se podia fazer nada com Mr. Elton
ali atrás, a mexer-se e a observar cada pincelada. Ema

49
JA NEA USTEN

tinha-lhe permitido que estivesse onde quisesse, para


olhar à vontade; mas, na verdade, foi obrigada a acabar
com i s s o e pediu-lhe que fo s s e p ara outro lado .
Lembrou-se então de o entreter a ler.
Se quisesse ter a bondade de lhes ler alguma coisa,
seria na verdade muito amável. . . Ajudava-a a vencer
as dificuldades que lhe surgissem e atenuava o
aborrecimento de Miss Smith.
Mr. Elton fê-lo com todo o prazer. Harriet ouvia e
Ema desenhava, sossegada. Tinha, contudo, de lhe
permitir que , de vez em quando, fosse deitar uma
olhadela; o contrário seria realmente um pouco
estranho num apaixonado; e ele estava sempre atento
à mais pequena paragem do lápis, para dar um salto
a ver os progressos e ficar encantado. Ninguém podia
enfadar-se com tal animador, pois no seu entusiasmo
chegava a ver s emelhanças que mal se podiam
distinguir. Ema não podia confiar muito na perspicácia
dele , mas o seu amor e a sua complacência eram
indiscutíveis .
A sessão fora inteiramente satisfatória; o primeiro
esboço agradara-lhe o suficiente para desej ar pros­
seguir. O retrato estava parecido, ela havia sido feliz
na atitude escolhida e, como tencionava favorecer um
pouco a figura, dando-lhe algo mais de altura e muito
mais elegância, confiava grandemente em que, por
fim, lhe havia de sair, sob todos os aspectos, um lindo
quadro, que iria ocupar, com honra para ambas, o
lugar destinado - como duradoira memória da beleza
de uma, da arte de outra e da amizade de ambas; isto
além de tantas outras agradáveis perspectivas a
associar, como a prometedora simpatia de Mr. Elton.
H arriet devia servir de modelo ainda no dia
seguinte e Mr. Elton, como era seu dever, pediu licença
para assistir e ler em voz alta para elas .
- Com todo o gosto. Sentir-nos-emos felicíssimas
em que nos faça companhia.
No dia seguinte, verificaram-se as mesmas amabi­
l i d a d e s e corte s i a s , o m e s m o êxito e a m e s m a
satisfação, durante toda a sessão, que fo i curta e feliz.

50
EMA

Todos estavam encantados com o retrato, mas Mr.


Elton mostrava-se continuamente enlevado e defen­
dia-o contra toda a crítica.
- Miss Woodhouse deu à amiga a única graça que
lhe faltava - observou Mrs . Weston, dirigindo-se a
ele, sem de modo algum suspeitar que estava falando
com um apaixonado . - A expressão do olhar está
correctíssima, mas Miss Smith nã9 tem aquelas
sobrancelhas nem aquelas pestanas. E o que falta ao
seu rosto.
- Acha? - replicou ele . - Não estou de acordo
consigo . A mim, afigura-se-me que existe a mais
perfeita semelhança em todas as feições. Nunca vi tão
grande semelhança em toda a minha vida. Temos de
contar com o efeito das sombras , sabe?
- Fê-la alta de mais, Ema - disse Mr. Knightley.
Ema bem o sabia, mas não o queria confessar, e
Mr. Elton acrescentou calorosamente:
- Oh! , não! não está nada alta de mais. De maneira
alguma! Lembre-se de que está sentada . . . e natural­
mente p arece diferente . . . no fim de contas , d á
exactamente a ideia . . . e d e v e m respeitar- s e as
proporções, sabe? As proporções , o escorço . . . oh, não !
dá-nos exactamente a ideia da estatura de Miss
Smith . . . exactamente, de facto.
- E stá muito bonito - disse Mr. Woodhouse. -
Tão bem feito ! Como o são sempre os teus trabalhos ,
minha querida. A única coisa de que eu não gosto
muito é da impressão que dá de estar sentada ao ar
livre, apenas com um xaile leve pelos ombros . . . faz
uma pessoa recear que ela apanhe alguma cons­
tipação.
- Mas, meu querido papá, supõe-se que é Verão
- um dia quente de Verão. Olhe para a árvore . . .
- Mas nunca é bom estar sentado ao ar livre,
minha querida . . .
- Mr. Woodhouse, - exclamou Mr. Elton - diga
o senhor o que disser, devo confessar que acho uma
ideia felicíssima a de figurar Miss Smith ao ar livre;
e a árvore pintada com tão inimitável perfeição! Outra
posição qualquer teria sido muito menos natural. A

51
JA NEA USTEN

singeleza de Miss Smith . . . e tudo o mais . . . Oh! é


admirável ! Não posso desviar os olhos do retrato.
Nunca vi tanta semelhança.
A primeira coisa que se impunha era encaixilhar o
retrato e aqui surgiu uma série de dificuldades . Tinha
de se fazer imediatamente e havia de ser em Londres;
a encomenda devia fazer-se por intermédio de alguém
em cuj a inteligência e bom gosto se pudesse confiar; e
com I s abella, a habitual executora de todos os
encargos, não se podia contar, porque se estava em
Dezembro, e Mr. Woodhouse não podia suportar a ideia
de que ela saísse de casa com os nevoeiros daquele
mês. Mas esse escolho, assim que Mr. Elton soube
dele, logo foi removido. A sua gentileza estava sempre
alerta. Confiassem-lhe a missão, que ele se desem­
penharia dela com infinito prazer! Montava a cavalo
e ia a Londres em qualquer ocasião . Não podiam
calcular a satisfação que sentia em que lhe fosse
atribuído tal encargo .
Que bondade a sua! Ela não podia suportar a ideia . . .
Por nada deste mundo lhe daria tão grande maçada . . .
E discutido o caso com a conveniente repetição de
pedidos e de garantias, o negócio resolveu-se em poucos
minutos.
Mr. Elton levaria o retrato para Londres, a fim de
escolher a moldura e encomendar o trabalho ; e,
enquanto Ema cogitava na melhor forma de embrulhar
a aguarela, que garantisse a sua conservação e, ao
mesmo tempo, desse pouco incómodo ao seu portador,
este parecia em extremo receoso de que não o
incomodassem bastante.
- Que precioso depósito ! - exclamou ele, com um
terno suspiro, ao recebê-lo.
«Acho este homem gentil de mais para estar apai­
xonado - pensava Ema. - Pelo menos, julgo assim;
no entanto, pode havei: cem maneiras diferentes de se
estar apaixonado . . . E um excelente rapaz e está
perfeitamente indicado para Harriet; adequa-se-lhe
'justamente', como ele próprio diz ; mas os seus suspi­
ros , os seus modos langorosos , os seus cumprimentos

52
EMA

burilados são um pouco exagerados de mais para que


eu os suportasse, se fosse a principal interessada. No
entanto, mesmo em segundo lugar, apanho uma boa
parte de gratidão por causa de Harriet . . . » .

CAP Í TULO VII

O próprio dia da ida de Mr. Elton para Londres


deu a Ema uma nova oportunidade de prestar serviço
à amiga. Harriet, como de costume, havia ido para
Hartfield depois do almoço; e, decorrido algum tempo,
fora a casa, para voltar de novo para j antar; voltou, e
mais cedo do que tinham combinado; vinha agitada e
com o semblante preocupado , como se houvesse
acontecido alguma coisa extraordinária que ela
ansiava por contar. Em meio minuto tudo se explicou.
Assim que chegou a casa de Mrs . Goddard, soube que
Mr. Martin havia lá estado uma hora antes e, vendo
que ela não estava nem era tão cedo esperada, deixara
um pequeno embrulho que uma das irmãs lhe
mandava, e fora-se embora; e, aberto o embrulho, ela
encontrara, além de duas canções que tinha empres­
tado a Isabel, para copiar, uma carta para si: esta
carta era dele - de Mr. Martin - e continha uma
proposta de casamento.
Quem o teria pensado? . . . Estava tão surpreendida
que não sabia o que havia de fazer. Sim, uma carta
tão bem escrita! Pelo menos, ela achava-a assim. E
ele escrevia como se realmente a amasse muito . . .
mas ela não sabia . . . e por isso tinha vindo a toda a
pressa, para perguntar a Miss Woodhouse o que
devia fazer.
Ema estava meio envergonhada por a sua amiga
parecer tão satisfeita e indecisa.
- Palavra de honra! - exclamou ela - o rapaz
está decidido a não perder coisa alguma por falta de
pedido . . . Só se não puder é que não arranja boas relações.

53
JA NEA USTEN

- Quer ler a carta? - disse Harriet.- Faça favor . . .


Gostaria que a lesse.
Ema não desgostou da insistência. Leu e ficou
surpreendida. O estilo da carta era muito superior ao
que esperava. Não só não havia um único erro de
gramática, mas , mesmo como redacção, não envergo­
nharia qualquer gentleman; a linguagem, se bem que
simples , era precisa e despretensiosa, e os sentimentos
que revelava faziam muita honra a quem escrevera a
carta. Era curta, mas mostrava sensatez, caloroso afecto,
generosidade, correcção e até delicadeza de sentimentos.
Ema reflectia sobre isto, enquanto Harriet aguar-
dava, ansiosa, a sua opinião e lhe perguntava:
- Então?
Mas, por fim, viu-se obrigada a acrescentar:
- Não está uma carta bem escrita? Ou será curta
de mais?
- Sim, realmente, está muito bem escrita . . . -
respondeu Ema, com uma certa lentidão,- tão bem
escrita, Harriet, que, considerando bem, acho que uma
das irmãs o deve ter auxiliado . Custa-me a crer que o
rapaz que eu vi a falar consigo, no outro dia, fosse
capaz de se exprimir tão bem entregue às suas próprias
forças . . . e, contudo, o estilo não é de mulher. Não,
evidentemente : é demasiado forte e conciso; não é
prolixo bastante para ser de mulher. Não há dúvida
de que ele é um homem sensato, e suponho que deve
ter uma vocação natural para . . . pensa com exactidão
e clareza . . . e, quando pega na pena, os seus pensa­
mentos encontram naturalmente as expre s s õ e s
própri a s . I s s o sucede c o m alguns homens . S i m ,
conheço espíritos nesse género : vigorosos, decididos ,
com sentimentos, até certo ponto, nada grosseiros.
Uma carta mais bem escrita do que eu esperava,
Harriet - terminou, devolvendo-lha.
- Bem - disse Harriet, ainda à espera - bem e . . .
e que devo fazer?
- Que deve fazer? . . . A respeito de quê? Refere-se
a esta carta?
- Sim.

54
EMA

- Mas quais são as dúvidas que tem? Deve ,


naturalmente, responder . . . e quanto antes.
- Pois sim. Mas que hei-de dizer? Querida Miss
Woodhouse, aconselhe-me . . .
- Oh! não, não . . . É muito melhor que a carta seja
toda feita por si. Tenho a certeza de que a Harriet se
expressará muito correctamente. Não há perigo de que
fique ininteligível, e isso é o principal. Aquilo que
tenciona dizer não deve dar lugar a equívocos, nem a
dúvidas ou hesitações ; e as expressões de gratidão e
de pesar pelo desgosto que lhe causa, exigidas pela
delicadeza, ocorrer-lhe-ão espontaneamente , estou
persuadida disso. A Harriet não precisa de que a
incitem a revelar, no que escreve, a pena que lhe causa
a desilusão que ele vai sofrer.
- Acha então que devo rejeitá-lo? - disse Harriet,
de olhos no chão .
- Se o deve rejeitar! Minha querida Harriet, que
quer dizer com isso? Tem dúvidas a esse respeito? Eu
pensava . . . mas desculpe-me , talvez eu estivesse
enganada. Com certeza não a compreendi bem: está
em dúvida quanto ao conteúdo da sua resposta? Eu
supunha que me consultava apenas quanto à maneira
de a redigir.
Harriet guardou silêncio. Com modo um pouco
reservado, Ema continuou:
- Pelo que vej o , tenciona dar uma resposta
favorável. . .
- Não, não . . . isto é , não tenciono . . . Que devo fazer?
Que me aconselha? Peço-lhe, querida Miss Woodhouse,
que me diga o que devo fazer . . .
- Não lhe darei conselho ?lgum, Harriet. Não
quero interferir no assunto. E um caso que deve
resolver conforme os seus sentimentos .
- Eu não supunha que ele gostasse tanto d e mim
- disse Harriet, olhando para a carta.
Durante um certo tempo, Ema manteve-se calada;
mas , como principiasse a recear que a fascinante
lisonj a daquela carta fosse poderosa em demasia,
achou melhor dizer:

55
JA NEA USTEN

- Tenho assente, como regra geral, Harriet, que,


quando urna mulher duvida se há-de ou não aceitar
o amor de um homem, o que deve evidentemente fazer
é rej eitá-lo. Se pode hesitar em dizer «Sim», deve dizer
«Não» imediatamente. Não é situação em que se entre
sem perigo com sentimentos indecisos - com metade
do coração unicamente . Entendi ser meu dever como
amiga, e amiga mais velha, falar-lhe assim mesmo.
Mas não imagine que pretendo coagi-la!
- Oh! não. Acho que é boa de mais para o fazer.
Mas , se quisesse aconselhar-me o que era melhor que
eu fizesse . . . Não, não é isto que eu quero dizer . . . Como
diz, um espírito deve §er absolutamente decidido. Não
deve ter hesitações . E uma coisa muito séria. Talvez
fosse mais seguro dizer «Não». Acha que eu faria
melhor em dizer «Não»?
- Por nada deste mundo - disse Ema, sorrindo
graciosamente - lhe aconselharia uma coisa ou outra.
A Harriet deve ser o melhor juiz da própria felicidade.
Se prefere Mr. Martin a qualquer outra pessoa - se
acha que ele é o homem mais atraente que até hoj e
conheceu, - porque hesita? Está a corar, Harriet . . .
Acaso lhe ocorre neste momento outra qualquer pessoa
que se encontre nessas condições? Harriet, Harriet,
não procure iludir-se a si mesma . . . Não se precipite
por gratidão ou compaixão. Neste momento, em quem
está a pensar?
Os sintomas eram favoráveis . Em lugar de res­
ponder, Harriet, confusa, voltou-se para o lado e ficou
pensativa em frente do fogão; e, se bem que ainda
conservasse a carta na mão, tinha-a amarrotado sem
dar por i s s o . E m a aguardava o resultado c o m
impaciência, mas não sem fortes esperanças. Harriet,
por fim, disse, um pouco hesitante :
- Miss Woodhouse, visto que não me dá a sua
opinião, tenho de resolver sozinha a questão: estou
realmente decidida a rejeitar a oferta de Mr. Martin.
Acha que faço bem?
- Muito bem, minha querida Harriet! Faz j usta­
mente o que deve. Enquanto esteve indecisa, guardei
para mim a minha opinião, mas agora que se decidiu

56
EMA

completamente , não hesito em lhe dar a minha


aprovação. Querida Harriet, causou-me uma grande
alegria! Seria para mim um desgosto perder o seu
convívio em consequência do seu casamento com Mr.
Martin. Enquanto esteve vacilante nada disse a este
respeito, porque não queria coagi-la; mas a verdade é
que isso teria constituído para mim a perda de uma
amiga. Eu nunca poderia visitar Mrs . Roberto Martin,
da Herdade de Abbey-Mill . Agora estou segura de si
para sempre .
Harriet não suspeitava do próprio perigo, mas a
ideia dele impressionava-a fortemente .
- Não poderia visitar- me ! - exclamou e l a ,
horrorizada. -Não, evidentemente que não . . . Mas
nunca me ocorrera isso antes . Seria horrível ! Que
alívio ! Querida Miss Woodhous e , por nada deste
mundo renunciaria ao prazer e à honra da sua
intimidade.
- Na verdade, Harriet, teria sido um cruel tor­
mento perdê-la; mas tinha de ser. A Harriet ver-se-ia
obrigada a afastar-se da boa sociedade. E eu teria que
a abandonar.
- Valha-me Deus ! Como o poderia suportar?
Morreria, se nunca mais viesse a Hartfield .
- Querida e delicada menina! Exilada na Herdade
de Abbey-Mill! Limitada toda a vida ao convívio de
pessoas ignorantes e vulgares! Admiro-me como esse
rapaz teve o desplante de lhe fazer tal proposta . . . Com
certeza, faz muito boa opinião de si mesmo . . .
- Mas eu, de uma forma geral , não o acho muito
pretensioso - disse Harriet, cuj a consciência se
opunha a uma tal censura; - pelo menos, é muito
afável e eu hei-de ficar-lhe sempre reconhecida e ter
por ele uma grande estima . . . mas isto é uma coisa
inteiramente diferente . . . sabe que, embora ele goste
de mim, não se segue que eu lhe corresponda . . . e, de
facto, devo confessar que, desde que aqui venho, tenho
visto outras pessoas . . . e se se vai compará-las com
ele, em trato e maneiras, vê-se que não há comparação
possível . . . são tão elegantes e agradáveis! Contudo,
não só acho que Mr. Martin é um rapaz muito simpático,

57
JA NEA USTEN

como tenho óptima opinião a seu respeito; e quanto


ao facto de ele me ter tanta afeição . . . e de me escrever
essa carta . . . a verdade é que nenhumas considerações
me levariam a deixá-la.
- Obrigada, obrigada, minha doce amiguinha . . .
Não nos havemos de separar. Uma mulher não há-de
casar com um homem só porque é requestada, ou
porque ele gosta dela e sabe escrever bem uma carta.
- Oh! pois não . . . e, demais, uma carta tão pequena.
Ema notou o mau gosto da amiga, mas deixou-o
passar_ com estas palavras :
- E verdade : seria uma bem pequena consolação
para si, enquanto aturava os modos rudes do marido,
a todas as horas ou todos os dias , saber que ele era
capaz de escrever bem uma carta . . .
- Oh! sim, e bem pequena . . . Ninguém d á valor a
uma carta: o essencial é ser-se feliz na companhia de
pessoas agradáveis. Estou inteiramente resolvida a
rej eitá-lo. Mas como devo fazê-lo? Que hei-de dizer?
E m a a s s egurou-lhe que não havia qualquer
dificuldade na resposta e aconselhou-a a escrever-lhe
imediatamente, com o que ela concordou, esperançada
na sua aj uda; e, embora Ema continuasse a protestar
contra a necessidade de qualquer auxílio, este foi de
facto prestado na construção de todas as frases. A nova
leitura da carta de Mr. Martin, enquanto era redigida
a resposta, exerceu tal influência amolecedora, que
se tornou extremamente necessário estimular Harriet
com algumas palavras terminantes ; ela estava tão
presa da ideia de o fazer infeliz e preocupava-se tanto
com o que a mãe e as irmãs pudessem pensar e dizer,
e tão aflita, não a fossem julgar ingrata, que Ema
convenceu-se de que, se o rapaz aparecesse naquele
momento, teria sido logo aceite, apesar de tudo.
A carta, no entanto, foi escrita, lacrada e enviada.
O assunto estava liquidado e Harriet salva. Esteve
um pouco abatida toda a tarde, mas Ema sabia dar o
desconto aos seus ligeiros pesares e, de vez em quando,
aliviava-os , ora recordando-lhe o seu afecto, ora
trazendo à conversa a pessoa de Mr. Elton.

58
EMA

- Nunca mais serei convidada para ir a Abbey-Mill


- dizia Harriet, em tom um pouco triste.
- Mesmo que fosse, eu não poderia estar separada
de si, minha Harriet. Faz falta de mais em Hartfield,
para poder ser cedida a Abbey-Mill .
- E eu tenho a certeza de que nunca desej aria ir
para lá, pois só em Hartfield é que sou feliz.
Daí a pouco acrescentou:
- Creio que Mrs . Goddard fi c aria bas tante
surpreendida se soubesse do sucedido. Estou certa de
que Miss Nash havia de ficar . . . Miss Nash acha que a
irmã casou muito bem, e o marido é um simples
fanqueiro.
- Mas é que seria de lamentar que se visse mais
orgulho ou requinte numa mestra, Harriet. Suponho
que Miss Nash lhe invej aria uma oportunidade de se
casar, como esta. Mesmo esta conquista, a seus olhos,
afigurar- se-ia valios a . Quanto a qualquer coi s a
superior para s i , creio que o ignora totalmente . As
atenções de certa pessoa ainda mal devem ter entrado
no domínio da tagarelice de Highbury. Por isso, supo­
nho que a Harriet e eu somos as únicas pessoas para
quem se tornou clara a significação dos olhares e
atitudes dessa pessoa.
Harriet, corando e sorrindo, disse qualquer coisa
em que parecia mostrar estranheza por as pessoas
gostarem tanto dela. A ideia de que se tratasse de Mr.
Elton era realmente animadora; mas, ainda assim,
passado algum tempo, ela estava de novo pesarosa
por causa do repudiado Mr. Martin.
- A estas horas, já ele recebeu a minha carta -
disse ela, com voz suave . - Gostava de saber o que
estão eles a fazer . . . se as irmãs sabem . . . se ele ficar
magoado, também as irmãs ficam. Oxalá que não se
importe muito.
- Pensemos naqueles amigos ausentes que estão
ocupados em coisas mais alegres - exclamou Ema.
- Talvez que Mr. Elton estej a neste momento a
mostrar o retrato à mãe e às irmãs e a dizer-lhes quão

59
JA NEA USTEN

mais lindo é o original , e , depois de lho terem


perguntado cinco ou seis vezes , consinta em lhes
revelar o seu nome, o seu querido nome . . .
- O meu retrato? . . . Mas ele deixou o meu retrato
em Bond-Street!
- Sim? Então j á não sei nada de Mr. Elton. Não,
minha modestazinha Harriet, pode ter a certeza de
que o quadro só estará em Bond-Street quando ele
amanhã montar a cavalo. Será a sua companhia toda
a noite, a sua consolação, a sua delícia . . . Revelará à
família os desígnios dele, apresentá-la-á entre os seus,
derramará entre eles esses agradabilíssimos senti­
mentos da nossa alma - a curiosidade impaciente e
a predisposição de uma viva simpatia. Que contente,
que excitada, que ansiosa, que ocupada deve estar a
imaginação deles todos !
Harriet sorria novamente e o seu sorriso era cada
vez mais luminoso.

CAP Í TULO VIII

Harriet dormiu em Hartfield nessa noite . Como


havia algumas semanas que ela ali passava a maior
parte do tempo, acabou, a pouco e pouco, por lá ter um
quarto reservado; e Ema viu que, j ustamente naquela
altura, era, sob todos os aspectos, mais seguro e mais
agradável conservá-la, tanto quanto possível, junto
de si . Na manhã seguinte, teve de ir, por uma hora ou
duas , a casa de Mrs . Goddard, mas ficou assente que
regressaria a Hartfield para uma visita de alguns dias.
Na sua ausência, chegou Mr. Knightley, que ficou
algum tempo a conversar com Mr. Woodhouse e Ema,
até que aquele, que havia resolvido dar um passeio,
se deixou persuadir pela filha a não se demorar e foi
convencido pelas instâncias de ambos - se bem que
contra os escrúpulos da sua delicadeza - a deixar
Mr. Knightley. Este, que nada tinha de cerimonioso,

60
EMA

oferecia, com as suas respostas breves e decisivas, um


engraçado contraste com as prolongadas desculpas e
as corteses hesitações do outro.
- Bem: nesse caso, desculpe-me, Mr. Knightley . . .
se não v ê indelicadeza d a minha parte, seguirei o
conselho de Ema e vou sair durante um quarto de
hora. Como faz sol, acho que é melhor ir dar as minhas
três voltas enquanto p o s s o . Não faço cerimónia
consigo, Mr. Knightley. Nós, os inválidos, conside­
ramo-nos pessoas privilegiadas .
- Meu caro senhor, não faça cerimónia . . .
- Deixo um excelente substituto e m minha filha.
Ema terá muito, gosto em conversar consigo. Por isso,
apresento-lhe as minhas desculpas e vou dar as três
voltas do costume . . . o meu passeio de Inverno .
- Faz muito bem, Mr. Woodhouse .
- Gostaria de ter o prazer da sua companhia, Mr.
Knightley, mas sou muito vagaroso e o meu passo seria
muito aborrecido para si; de resto, o senhor tem em
perspectiva outro longo passeio até Donwell Abbey.
- Obrigado, muito obrigado. Eu também me vou
já embora; e acho que quanto mais depressa o senhor
for, melhor. Vou buscar o seu sobretudo e abrir-lhe a
porta do j ardim.
Mr. Woodhouse saiu finalmente; mas Mr. Knightley,
em lugar de se ir imediatamente embora também,
sentou-se de novo, parecendo disposto a continuar a
conversa. Começou por falar de Harriet, elogiando-a
com uma espontaneidade que Ema nunca lhe ouvira.
- Não posso gabar tanto a beleza dela como a de
Ema - disse ele; - mas reconheço que é uma bonita
rapariga e sinto-me inclinado a fazer muito boa opinião
da sua pessoa. O seu carácter depende daqueles com
quem se der; mas, em boas mãos, há-de vir a ser uma
mulher às direitas .
- Folgo que pense assim . Com respeito a boas
mãos, espero que não lhe faltem.
- Vamos ! - bradou ele - está ansiosa por um cum­
primento . . . Pois dir-lhe-ei que a Ema a tem aperfeiçoado

61
JA NEA USTEN

muito . Curou-a daquele arzinho de colegial; de facto,


faz-lhe honra.
- Obrigada. Na verdade, teria grande desgosto se
não visse que tinha sido de alguma utilidade. Mas
nem toda a gente faz elogios onde os pode fazer. O
senhor não me sobrecarrega com eles muitas vezes . . .
- Diz que está à espera dela outra vez, esta manhã?
- A todo o momento. Está a demorar-se mais do
que tencionava.
- Sucedeu qualquer coisa que a retém; talvez
visitas.
- Tagarelices de Highbury! . . . Maçadores !
- E possível que Harriet não considere maçadores
todos os que a Ema considera . . .
Ema sabia de mais que isto era verdade, para o
contradizer; por isso nada disse. Daí a pouco, Mr.
Knightley acrescentou, com um sorriso:
- Não pretendo marear datas nem lugares, mas
devo dizer-lhe que tenho boas razões para crer que a
sua amiguinha cedo saberá uma coisa que a beneficia.
- Realmente ! Como? De que género?
- De um género muito sério, asseguro-lhe - disse
ele, com o mesmo sorriso.
- Muito sério ! . . . Não posso pensar senão numa
coisa . . . Quem é que está apaixonado por ela? Quem o
fez, ao senhor, seu confidente?
Ema estava bastante esperançada de que fosse Mr.
Elton que tivesse dado a entender qualquer coisa. Mr.
Knightley era uma espécie de amigo e conselheiro
geral e ela sabia que Mr. Elton o tinha em grande
consideração.
- Tenho razões para pensar - replicou ele - que
H arriet Smith receberá, dentro em pouco , uma
proposta de casamento e de procedência absoluta­
mente inconcebível - de Roberto Martin. A visita dela
a Abbey-Mill , este Verão, parece ter produzido frutos:
ele está desesperadamente apaixonado e quer casar
com ela.
- É muito amável - disse Ema; - mas tem ele a
certeza de que Harriet o aceite para marido?

62
EMA

- Bem: então tenciona propor-lhe cas amento .


Servirá assim? Ele veio a Abbey, há duas noites, para
me consultar a esse respeito. Sabe que tenho uma
grande estima por ele e pela família e creio que me
considera um dos seus melhores amigos. Pergun­
tou-me se eu j ulgava imprudência da sua parte
casar-se tão cedo, se a acha va nova de mais - em
resumo, se eu aprovava inteiramente a escolha.
Naturalmente, tinha um certo receio de que ela fosse
considerada (especialmente desde que a Ema lhe
dispensa tanta amizade) de categoria superior à dele.
Fiquei muito satisfeito com tudo o que ele disse. Nunca
ouvi falar ninguém com mais sensatez que Roberto
Martin. Fala sempre a propósito - é sincero, recto e
de bom critério. Disse-me tudo - as suas condições,
os seus projectos e o ql}e eles todos se propunham fazer,
no caso de ele casar. E um excelente rapaz , quer como
filho, quer como irmão . Não hesitei em o aconselhar a
casar. Provou-me que tinha recursos para tal; e, sendo
assim, fiquei convencido de que Martin não podia
proceder melhor. Elogiei também a linda dama e
acabei por mandá-lo embora muito feliz. Se ele até aí
nunca tivesse prezado a minha opinião , naquele
momento teria, com certeza, formado um alto conceito
da minha pessoa; e suponho que saiu de minha casa
tendo-me na conta do melhor amigo e conselheiro que
um homem j amais teve. Isto sucedeu anteontem à
noite. Agora, como é de supor, não deixará passar
muito tempo sem falar à dama, e como não parece
que lhe tenha falado ontem, não é improvável que vá
hoje a casa de Mrs . Goddard; e Harriet podia assim
ser detida por um visitante, sem o julgar, de modo
algum, maçador . . .
- Por favor, Mr. Knightley, - disse Ema, - que,
no íntimo, se estivera rindo durante grande parte deste
discurso - como sabe que Mr. Martin não falou
ontem?
- Evidentemente - replicou ele, surpreendido -
que o não sei em absoluto, mas pode-se inferir. Não
esteve ela todo o dia consigo?

63
JA NEA USTEN

- Vamos! - disse Ema - vou-lhe dizer uma coisa,


em troca do que me contou. Ele, de facto, falou ontem . . .
isto é, escreveu e foi rej eitado.
Foi preciso repetir isto para ele acreditar; Mr.
Knightley estava realmente vermelho de surpresa e
descontentamento, ao mesmo tempo que se levantava
e, com forte indignação, dizia:
- Ela é então mais tola do que eu julgava! Mas
que quer essa rapariga tonta?
- Oh! na verdade, - exclamou Ema - é sempre
incompreensível para um homem que uma mulher
rej eite qualquer proposta de casamento . Os homens
julgam que uma mulher está sempre disposta a aceitar
sej a quem for que a peça . . .
- Que disparate ! O s homens não j ulgam nada
disso. Mas que quer isto dizer? Harriet Sr.lith rejeitar
Roberto Martin! Se o fez, praticou um& loucura. Mas
oxalá que estej a enganada . . .
- E u vi a resposta: não podia ser mais clara.
- Viu a resposta? Então ajudou-a a escrever essa
resposta? Ema, isto é obra sua! Persuadiu-a a rej ei­
tá-lo, não é verdade?
- E se assim fosse (o que, todavia, estou longe de
admitir), não julgaria ter procedido mal . Mr. Martin
é um rapaz muito estimável, mas eu não posso
considerá-lo como igual de Harriet; e até estou um
pouco surpreendida de que tenha ousado dirigir-se­
-lhe . Segundo me diz, parece que ele teve uns certos
escrúpulos . É pena que tivesse saltado por cima
deles.
- Não é igual de Harriet?! - exclamou Mr. Knight­
ley, em voz alta e com veemência; e momentos depois
acrescentou com aspereza, mas mais calmo:
- Não, na verdade, não é seu igual, visto que lhe
é muito superior em juízo e em condições de vida. Ema,
a sua dedicação por essa rapariga cega-a! Quais são
os títulos que Harriet tem, quer por nascimento, quer
por carácter, quer por educação, a qualquer aliança
mais elevada que Roberto Martin? Ela é filha natural

64
EMA

não se sabe de quem, provavelmente sem nada de seu,


e, certamente, sem parentesco respeitável . Apenas se
sabe que é pensionista de uma escola vulgar. Não é
u m a rap ariga s e n s ata nem i n s truíd a . Não lhe
ensinaram nada de útil, e é nova e ingénua de mais
para ter obtido qualquer coisa à própria custa. Na sua
idade, não pode ter experiência nenhuma, e, com a
escassa esperteza que tem, é pouco provável que venh�
a adquirir alguma coisa que lhe sej a de utilidade . E
bonita e tem bom génio - e é tudo ! O meu único
escrúpulo em aconselhar o casamento foi por causa
dele, visto ela estar abaixo dos seus méritos e ser para
Martin um mau partido. Achava que, quanto a fortuna,
ele tinha todas as probabilidades de arranjar melhor;
e quanto a companheira inteligente e prestável, não
podia ter arranj ado pior. Mas eu não podia apresentar
estes raciocínios a um homem apaixonado e dispus-me,
com toda a boa vontade, a confiar que dela não viesse
nenhum mal, que ela tivesse esse género de índole
que , quando em boas mãos como as dele, fo s s e
susceptível d e boa orientação e s e amoldasse muito
bem. Entendi que as vantagens do casamento estavam
todas do lado dela; e não tive a menor dúvida (nem
tenho agora) de que haveria um clamor geral que
apregoaria a boa sorte de Harriet. Tinha mesmo a
certeza de que a Ema havia de ficar s atisfeita.
Atravessou-me, ao mesmo tempo, o espírito a ideia de
que não lastimaria que a sua amiga deixasse High­
bury, em troca de se estabelecer tão bem na vida.
Recordo-me de ter dito para comigo: «Até Ema, com
todo o seu fraco por Harriet, reconhecerá que é um
bom casamento».
- Não deixa de me causar espanto que conheça
tão pouco Ema para pensar assim. O quê ! Reconhecer
que um fazendeiro, (e, com todo seu bom senso e todo
o seu mérito, Mr. Martin não passa de um fazendeiro)
é um bom partido para a minha melhor amiga ! . . . Não
lastimar que ela deixe Highbury, para se casar com
um homem que eu j amais admitiria como pessoa das
minhas relações ! . . . Admiro-me que j ulgasse possíveis

65
JA NEA USTEN

essas ideias em mim . Asseguro-lhe que penso de


maneira muito diferente . Acho que as suas palavras
não são nada leais. O senhor não é justo no que se
refere às qualidades de Harriet. Outras pessoas
apreciá-las-iam de maneira muito diferente, assim
como eu: é possível que Mr. Martin sej a o mais rico
dos dois, mas do que não há dúvida é que é inferior a
ela em categoria social . A esfera em que ela se move
está muito acima da dele . Seria degradante . .
- D egradante para a ilegitimidade e para a
ignorância ser casada com um lavrador respeitável e
inteligente? . . .
- Quanto às circunstâncias do seu nascimento, se
bem que legalmente lhe possam chamar «enjeitada» ,
isso não se sustenta perante o senso comum. Ela não
deve pagar pelas culpas dos outros , indo descer a um
nível inferior ao daqueles entre quem é educada.
Poucas dúvidas haverá de que seu pai s ej a um
gentleman . . . e um gentleman com fortuna. A mesada
dela é avultada; nunca foi regateada coisa alguma em
favor da sua educação ou do seu conforto. Para mim é
fora de dúvida que é filha de um gentleman ; que ela
se dá com filhas de gentlemen , suponho que ninguém
negará. Harriet é superior a Mr. Roberto Martin.
- Sej am quais forem os pais , - retorquiu Mr.
Knightley - sej a quem for que a tenha a seu cargo,
não parece ter feito parte dos planos dessas pessoas
apresentá-la no que a Ema chamaria a boa sociedade .
Depois de ter recebido uma educação muito medíocre,
foi entregue nas mãos de Mrs . Goddard, para que se
arranj asse como pudesse - em resumo, para que
navegasse nas águas de Mrs . Goddard e respirasse o
mesmo ar que Mrs . Goddard . As pessoas amigas
achavam isto, evidentemente, mais que suficiente para
ela; e era, de facto, suficiente . Ela não aspirava a nada
de melhor. Enquanto Ema não resolveu fazer dela sua
amiga, o seu espírito não sentiu o mínimo desagrado
pelo seu mundo, nem a mínima ambição para além
dele. Era tão feliz quanto se pode ser, quando ia passar

66
EMA

o Verão com os Martin. Não tinha então nenhuma


ideia de superioridade. Se a tem agora, foi Ema que
lha incutiu . Não tem sido nada amiga de Harriet
Smith, Ema. Roberto Martin nunca teria ido tão longe,
se não estivesse convencido de que ela não anti­
patizava de todo com ele . Conheço-o bem . Possui
sentimentos de mais para se dirigir a uma mulher
sob o domínio de uma paixão egoísta. E quanto a
fatuidade, ele é de todos os homens que conheço, o
que está mais afastado de uma coisa dessas . Pode ter
a certeza de que ela o encoraj ou.
Ema achou conveniente não responder directa­
mente a esta asserção; preferiu dar ao assunto a
orientação que havia escolhido.
- O senhor é um amigo dedicadíssimo de Mr.
Martin; mas, como eu disse há pouco, é injusto para
Harriet. Os direitos de Harriet a fazer um bom
casamento não são tão desprezíveis como o senhor os
apresenta. Ela não é muito esperta, mas tem mais
bom senso do que j ulga e não merece que se fale tão
superficialmente da sua inteligência. Mas supondo que
ela é, como o senhor afirmou, apenas bonita e dotada
de um bom génio , deixe-me diz er-lhe que estas
qualidades, no grau em que ela as possui, não são
recomendações assim tão banais para o mundo em
geral , pois ela é , de facto , uma linda rapariga, e
noventa e nove por cento das pessoas devem pensar
assim; e enquanto os homens não começarem a
filosofar acerca da beleza mais do que é uso -enquanto
eles se não apaixonarem por espíritos cultos em vez
de caras bonitas, uma rapariga com a formosura de
Harriet pode ter a certeza de ser admirada e cortejada,
de ter a faculdade de e s colher entre muitos e ,
consequentemente, o direito d e ser precavida. A sua
bondade também não é uma qualidade que se encare
de ânimo leve, compreendendo ela, como compreende,
uma absoluta suavidade de temperamento e de
maneiras, uma muito humilde opinião de si própria e
uma grande prontidão para estar contente com as
outras pessoas. Muito me engano eu, Mr. Knightley,

67
JA NEA USTEN

se o seu sexo, de uma forma geral, não achar que tal


beleza e tal temperamento são os mais altos títulos
que a uma mulher é dado possuir.
- Palavra de honra, Ema, que ouvi-la utilizar dessa
forma as suas faculdades de raciocínio é quase o
suficiente para me fazer pensar assim também. Vale
mais não ter inteligência do que aplicá-la tão mal como
a aplica . . .
- Evidentemente ! - exclamou ela, e m tom de
brincadeira . - Eu sei que é isto que vocês todos
sente m . Sei que uma rap ariga como H arri et é
exactamente o que faz as delícias dos homens - o que
a um tempo lhes cativa os sentidos e lhes satisfaz o
espírito . Oh! Harriet pode bem escolher e tornar a
escolher. Tencionasse o senhor algum dia casar, que
ela seria a mulher indicada para si . E é, porventura,
caso para admirar que ela, aos dezassete anos, quando
está j ustamente a entrar na vida, quando começa
j ustamente a tornar- s e conhecida, não aceite a
primeira proposta de casamento que recebe? Não, por
amor de Deus ! Dêem-lhe tempo para se orientar!
- Sempre achei esta intimidade muito dispara­
tada, - disse Mr. Knightley, pouco depois - se bem
que tenha guardado para mim as minhas ideias; mas
agora vejo que, para Harriet, é uma calamidade. A
Ema há-de fazê-la inchar tanto com tais ideias acerca
da própria beleza e daquilo a que ela tem direito, que,
daqui a pouco, ninguém que lhe estej a ao alcance lhe
parecerá bastante bom. A vaidade a trabalhar num
cérebro fraco produz toda a espécie de males . Nada é
mais fácil a uma menina do que erguer as suas
aspirações alto de mais . As propostas de casamento
não devem chover sobre Miss Harriet Smith, por muito
bonita que ela seja. Os homens de bom senso, diga o
que disser, não gostam de esposas sem senso nenhum.
Um homem de boa família não apreciaria muito
ligar-se a rapariga tão obscura - e os mais prudentes
rece ariam ver-se envolvi dos em complicações e
desgraças , quando um dia o mistério da sua origem
fosse desvendado . Deixe-a casar com Roberto Martin,

68
EMA

que ela viverá sempre tranquila, respeitada e feliz;


mas se a incita a albergar esperanças de que há-de
fazer um bom casamento e a ensina a não a satisfazer
senão um homem de alta categoria e avultada fortuna,
ela corre o risco de ficar toda a vida pensionista de
Mrs . Goddard - ou, pelo menos (pois, Harriet Smith
é rapariga para casar com este ou com aquel e ) ,
desesperar e dar-se por feliz se casar com o filho do
velho professor de caligrafia.
- Nós pensamos de maneiras tão diferentes neste
capítulo, Mr. Knightley, que é inútil discutirmos .
Apenas conseguimos irritar-nos um ao outro. Mas,
quanto a de ixá - l a casar com Roberto M arti n , é
impossível; ela rej eitou-o, e de forma tão decisiva,
suponho eu, que deve impedir segunda tentativa. Ela
tem de se conformar com as desvantagens de o ter
rej eitado, sej am elas quais forem; e quanto à recusa
em si, não digo que a não tenha influenciado um pouco;
mas asseguro-lhe que tanto eu como qualquer outra
pessoa pouco tínhamos ali a fazer. A aparência de Mr.
Martin prej udica-o tanto, os seus modos são tão
desagradáveis que, se alguma vez ela esteve disposta
a ceder, agora não está. Admito que , antes de ter
conhecido alguém superior, o tolerasse. Ele era irmão
das amigas dela e esforçava-se por lhe agradar; e, ao
mesmo tempo , como nunca tinha visto ninguém
melhor (o que o deve ter auxiliado muito), ela não o
devia, enquanto permaneceu em Abbey-Mill, achar
desagradável . Mas o caso agora muda de figura .
Harriet s abe j á o que é um gentleman, e só um
gentleman em educação e maneiras terá qualquer
probabilidade j unto d�la.
- Que disparate! E um refinado disparate como
nunca se viu ! - exclamou Mr. Knightley. - As
maneiras de Roberto Martin têm o bom senso, a
sinceridade e a jovialidade a recomendá-las ; e o seu
espírito é mais requintado do que Harriet Smith seria
capaz de conceber.
Ema não deu resposta; procurou aparentar alegre
indiferença, mas , de facto, sentia-se pouco à vontade
e desej ava bem que o seu interlocutor se fosse embora.

69
JANEA USTEN

Ela não se arrependia do que tinha feito ; consi­


derava-se mesmo melhor j ui z nesse capítulo de
qualidades e requintes femininos do que ele; contudo,
de uma forma geral, nutria pela opinião dele um certo
respeito, que era causa de que se sentisse aborrecida
por vê-lo tão abertamente em desacordo consigo; e vê-lo
sentado na sua frente em tal estado de irritação era
bem desagradável . Decorreram alguns minutos no
meio de um silêncio embaraçador, quebrado apenas
uma vez por uma tentativa de Ema em puxar a
conversa para o estado do tempo, mas que não obteve
resposta. Mr. Knightley meditava. O resultado dos
seus pensamentos revelou-se, finalmente , nestas
palavras :
- Roberto Martin não perde grande coisa . . . assim
ele o possa compreender. Espero que não demore muito
que o compreenda. A Ema deve saber melhor que
ninguém o que tem em vista para Harriet; mas, como
não faz segredo do seu gosto casamenteiro, é fácil
imaginar que intenções, planos e projectos arquitecta;
e, como amigo, apenas lhe lembrarei que, se se trata
de Elton, será trabalho inútil .
Ema riu-se e negou. Ele continuou:
- Pode ter a certeza de que Elton não a secunda.
Elton é muito boa pessoa e, como vigário de Highbury,
goza de grande respeitabilidade , mas não é , de
maneira alguma, homem para fazer um casamento
imprudente. Ele conhece tão bem como qualquer outro
o valor de um bom rendimento. Elton pode falar em
tom sentimental, mas age de modo racional . Está tão
inteirado das próprias qualidades , como a Ema o pode
estar das de Harriet. Ele sabe que é um bonito rapaz
e que desperta grandes simpatias aonde quer que vá;
e pela sua maneira de falar em certos momentos, estou
convencido de que não tenciona desperdiçar-se. Ouvi-o
referir-se com grande animação a uma família
numerosa a que pertencem umas meninas com quem
as irmãs se dão, e que têm de dote vinte mil libras
cada uma.
- Fico-lhe muito reconhecida -disse Ema, rindo
novamente . - Se fosse meu empenho que Mr. Elton

70
EMA

casasse com Harriet, teria sido grande bondade sua


abrir-me os olho s ; m a s , pre sentemente , apenas
pretendo guardar Harriet para mim. Na realidade,
acabei com a mania casamenteira. Nunca poderia
esperar igualar os meus próprios feitos de Randalls.
Porei isso de parte, enquanto estiver bem.
- Desejo-lhe muito bom dia - disse Mr. Knightley,
levantando-se e saindo bruscamente.
Estava muito vexado. Sentia o desapontamento do
rapaz e estava mortificado por ter contribuído para
isso, com a sua sanção; e a parte que Ema tomara na
questão - estava convencido disso - irritava-o
extraordinariamente .
Ema ficou também profundamente desgostosa;
nela, porém, as causas eram mais indistintas que nele.
Ela não se sentia tão absolutamente satisfeita consigo
mesma, tão inteiramente convencida de que as suas
opiniões eram justas e as do seu adversário erróneas,
como Mr. Knightley. Ele havia saído mais senhor dos
seus princípios do que a tinha deixado. Ema, material­
mente, porém, não sofrera tão grande derrota que um
pequeno intervalo e o regresso de Harriet não fossem
elementos susceptíveis de a reanimar. A ausência tão
demorada de Harriet principiava a inquietá-la. A
possibilidade de o rapaz ter ido nessa manhã a casa
de Mrs . Goddard, ter-se ali encontrado com Harriet e
haver pleiteado a própria causa, originou nela ideias
alarmantes . O temor de tal fracasso depois de todo o
seu trabalho era o principal motivo da sua inquietação;
e quando Harriet apareceu, muito bem disposta, sem
que desse qualquer razão da longa ausência, Ema
sentiu uma s atisfação que a reconciliava consigo
própria e a persuadia de que, pensasse ou dissesse
Mr. Knightley o que quisesse, ela nada havia feito
que a sua amizade e os seus sentimentos de mulher
não j ustificassem.
Ele havia-a assustado um pouco com Mr. Elton;
mas, depois de considerar que Mr. Knightley não o
podia ter analisado tão bem como ela, nem com o
mesmo interesse, nem (podia permitir-se dizê-lo, a
despeito das pretensões de Mr. Knightley) com o

71
JA NEA USTEN

mesmo poder de observação sobre tal matéria, e que


havia falado precipitadamente e dominado pela cólera,
Ema estava disposta a crer que era mais certo ele
haver dito o que , no seu ressentimento, pretendia que
fosse verdade, do _que realmente soubesse alguma coisa
a esse respeito . E possível que ele tivesse ouvido Mr.
Elton falar mais livremente do que ela nunca ouvira,
e que Mr. Elton não fosse de índole imprevidente e
irreflectida em questões monetárias; era natural que
prestasse uma certa atenção a essas questões; mas,
n e s s e caso, Mr. Knightley não fazia as devidas
concessões à influência de uma paixão forte, em guerra
com todos os motivos interesseiros. Mr. Knightley não
concebia tal paixão e, naturalmente, não tinha em
consideração os seus efeitos; mas concebia-a ela em
grau suficiente para sentir dúvidas de que dominasse
quaisquer hesitações , porventura sugeridas a princípio
por uma prudência razoável; e um grau de prudência
que fosse além do razoável tinha ela a certeza de que
não existia em Mr. Elton.
A expressão e os modos alegres de Harriet comuni­
caram-se-lhe: Ema voltou ao seu estado de espírito
normal, não para pensar em Mr. Martin, mas para
falar de Mr. Elton. Miss Nash havia contado a Harriet
uma coisa que ela, deliciada, repetiu logo. Mr. Perry
tinha ido a casa de Mrs . Goddard ver uma criança
doente. Miss Nash vira-o, e ele havia dito a Miss Nash
que, na véspera, quando regressava de Clayton Park,
se encontrara com Mr. Elton com grande surpresa sua,
soubera que Mr. Elton ia a caminho de Londres, donde
não tencionava regressar senão no dia seguinte ,
embora nessa noite houvesse a habitual partida de
whist no clube, aonde não constava que ele tivesse
alguma vez faltado; e Mr. Perry censurara-o por isso,
dizendo-lhe que era uma vergonha que ele, o melhor
jogador do clube, se ausentasse, e tentara por todas
as formas persuadi-lo a adiar a viagem por um dia
apen a s , mas nada cons eguira : Mr. Elton havia
decidido ir e tinha dito em tom muito especial que ia
em negócios que não podia protelar por quaisquer
razões deste mundo; e acrescentara qualquer coisa a

72
EMA

respeito de uma invej ável mis s ão de que estava


encarregado e que era portador de algo excepcio­
nalmente precioso. Mr. Perry não pode compreender
bem, mas tinha a certeza de que havia dama no caso,
e assim lho fez sentir; Mr. Elton apenas se mostrou
muito senhor de si e, sorrindo, despediu-se alegre­
mente.
Miss Nash contara-lhe tudo isto e muitas outras
coisas mais a respeito de Mr. Elton; e dissera, olhando
muito significativamente para ela, que não pretendia
desvendar que negócio seria o dele, mas só sabia que,
fosse quem fosse a mulher preferida de Mr. Elton, ela
era, na sua opinião, a mulher mais feliz do mundo,
visto ser fora de dúvida que Mr. Elton não tinha rival
em beleza nem em gentileza.

CAP Í TULO IX

Mr. Knightley podia contender com ela, mas Ema


é que não contenderia consigo própria. Ele estava tão
aborrecido que se passou mais tempo que de costume
antes que voltasse a Hartfield; e quando tornaram a
encontrar-se, a expressão grave do seu olhar mostrava
que ele ainda não havia perdoado a Ema. Ela tinha
pena, mas não estava arrependida. Pelo contrário, os
seus planos e a sua forma de proceder j ustificavam-se
e tornavam-se-lhe cada vez mais gratos, perante o
aspecto geral dos factos nos primeiros dias que se
seguiram.
O retrato, artisticamente emoldurado, chegou-lhe
às mãos sem novidade, pouco depois do regresso de
Mr. Elton; e, assim que o viu pendurado por cima do
fogão da sala de visitas , Mr. Elton levantou-se para o
contemplar e proferir, suspirando, as suas truncadas
frases de admiração, como era seu dever; e quanto
aos sentimentos de Harriet, iam visivelmente tomando
a forma de um afecto profundo e espontâneo, próprio

73
JA NEA USTEN

da sua juventude e da sua índole. Ema em breve ficou


plenamente satisfeita com o facto de Mr. Martin não
ser lembrado senão pelo contraste que fornecia com
Mr. Elton, com enormes vantagens para este último.
Os seus planos de aperfeiçoar o espírito da sua
amiguinha, por meio de abundante leitura e con­
versação de carácter útil , ainda não tinham ido além
de uns primeiros capítulos e da intenção de prosseguir
no dia seguinte . Era muito mais fácil palestrar que
estudar - muito mais agradável deixar a imaginação
vaguear e entreter-se com o futuro de Harriet do que
dar-se ao trabalho de lhe ampliar as faculdades de
compreensão ou exercitá-la sobre os factos da vida
diária; e a única ocupação literária que, de momento,
retinha Harriet, a única provisão mental que ela
estava fazendo para o crepúsculo da vida, eram o
coleccionamento e a transcrição de toda a espécie de
enigmas que encontrava, para um pequeno álbum de
papel acetinado, feito pela sua amiga e ornamentado
com arabescos e troféus .
Nesta época de literatura, não são raras tais
colecções em grande escala. Miss N ash, primeira
professora da escola de Mrs . Goddard, havia copiado,
pelo menos, umas trezentas ; e Harriet, que tinha
recebido dela as primeiras ideias a este respeito,
esperava, com o auxílio de Miss Woodhouse, conseguir
muito mai s . E m a aj udava-a com o seu e s pírito
inventivo, a sua memória e o seu gosto; e como Harriet
tinha uma letra muito bonit a , era natural que
resultasse uma combinação de primeira ordem, tanto
na forma como em quantidade.
Mr. Woodhouse estava quase tão interessado no
caso como as raparigas e , muitas vezes , tentava
recordar-se de alguma coisa digna de figurar no álbum.
Havia enigmas tão curiosos quando ele era novo . . .
Era estranho que não s e lembrasse de nenhum! Mas
tinha esperanças de que , com o tempo , havia de
lembrar-se .
E isto terminava sempre com: «Kitty, formosa mas
fria donzela» .

74
EMA

O seu grande amigo Perry, a quem ele falara no


caso, também não se recordava, presentemente, de
nada no género; mas Mr. Woodhouse havia-lhe pedido
que estivesse alerta e, como o boticário se esforçava
por lhe ser agradável, ele estava convencido de que
alguma coisa devia vir daquele lado.
Não era de modo algum desejo de sua filha que se
requisitassem os intelectos de Highbury. Mr. Elton
foi o único cuj a assistência foi solicitada. Foi convidado
a contribuir com todos os enigm a s , charadas ou
quebra-cabeças que conseguisse arranj ar; e ela teve o
prazer de o ver pôr mãos à obra com toda a solicitude,
tendo, ao mesmo tempo, ocasião de verificar os sérios
cuidados que ele tinha em que nada de irreverente,
nada que não respirasse um elogio ao sexo, passasse
pelos seus lábios . Elas deveram-lhe dois ou três
finíssimos enigmas ; e a alegria e a exultação com que
ele, finalmente, se recordou e, bastante sentimental­
mente, recitou esta conhecida charada:

A minha parte primeira designa afiição 1


Que a minha segunda deverá suportar,
E o meu todo é remédio eficaz
Que a afiição é capaz de curar.

fizeram-na ter pena de ser obrigada a confessar que


já a haviam transcrito algumas páginas atrás .
- Porque não nos ofer�ce uma da sua autoria, Mr.
Elton? - disse Ema. - E a única forma de garantir
a novidade e nada seria mais fácil para si.
Oh! não . . . ele quase podia dizer que nunca tinha
feito nada nesse género, em toda a sua vida. Não tinha
j eito nenhum! Receava que nem mesmo Miss Wood­
house, nem (e aqui parou um momento) Miss Smith
conseguissem inspirá-lo.
Mas, logo no dia seguinte, apresentou provas da
sua inspiração . Fez uma visita de alguns momentos,

1 A decifração é: Wo = Mágoa, aflição. Man = Homem. Woman


= Mulher. (N. do T.)

75
JA NEA USTEN

apenas para deixar sobre a mesa uma folha de papel


que continha, conforme disse, uma charada que um
amigo seu tinha enviado a uma menina, objecto da
sua admiração, mas, pela atitude dele, Ema con­
venceu-se imediatamente de que era produção sua.
- Não a ofereço para a colecção de Miss Smith ­
disse ele . - Como pertence ao meu amigo, não tenho
o direito de a expor, de qualquer modo, aos olhares de
toda a gente; mas talvez não desgostem de a ver.
Estas palavras dirigiam-se mais a Ema do que a
Harriet, o que para Ema era fácil de perceber. Mr.
Elton tinha profunda consciência dos seus sentimentos
e, por isso, achava-se com mais ânimo de encontrar o
olhar dela que o da sua amiga. Após uma pausa de
alguns momentos, foi-se embora.
- Pegue nisto, - disse Ema, sorrindo e empur­
rando o papel para Harriet - é para si. Pegue no que
é seu.
Mas Harriet estava a tremer e não era capaz de
lhe tocar; e Ema, que nunca se aborrecia de ser a
primeira, viu-se obrigada a lê-lo :

A MISS . . .

CHARADA

A primeira ostenta a riqueza e a pompa,


O luxo e o bem-estar dos reis, senhores da terra!
A segunda encerra outra produção do homem,
E é lá q ue o vês, como monarca dos mares.

Mas, unidas, que contraste!


A força e a liberdade, glórias suas, voaram:
Senhor da terra e do mar, tornou-se escravo,
E a mulher, a divina mulher, reina sozinha!

A tua inteligência depressa achará a palavra:


Possa no teu olhar suave brilhar o assentimento!

Ema percorreu isto com os olhos, meditou, procurou


apanhar o significado, tornou a ler para se certificar

76
EMA

e, completamente elucidada, passou o papel a Harriet


e sentou-se sorridente, dizendo para consigo, enquanto
Harriet, confusa de esperança e timidez , tentava
adivinhar a charada:
«Muito bem, Mr. Elton, muito bem ! Tenho lido
charadas piores. Courtship (galanteio) - bela suges­
t,ão ! Faz-lhe honra . . . Isto chama-se apalpar terreno .
E o mesmo que dizer: «Permita-me, Miss Smith, que
lhe faça a corte. Aceite a minha charada e as minhas
intenções com o mesmo relance de olhar.»

Possa no teu olhar suave brilhar o assentimento!

« É Harriet, sem dúvida alguma. Suave - é o termo


próprio . . . de todos os epítetos , é o que mais se lhe
aj usta. »

A tua inteligência depressa achará a palavra:

, «Hum ! . .. A inteligência de Harriet . . . Tanto melhor!


E preciso que um homem estej a deveras apaixonado
para a j ulgar assim. Ah! Mr. Knightley, gostaria que
visse isto: parece-me que se havia de convencer . . . Ao
menos, uma vez na vida, seria obrigado a confessar
que se tinha enganado. As coisas devem estar no
momento crítico».
Foi obrigada a distrair o espírito destas agradabi­
líssimas cogitações, que, doutro modo, se prolongariam
indefinidamente, pela ansiedade que Harriet revelava
nas suas perguntas cheias de admiração.
- Que será, Miss Woodhouse? . . . que será? Não faço
ideia . . . não consigo de forma alguma adivinhar. Que
poderá ser? Vej a se é capaz de des cobrir, Miss
Woodhouse. Ajude-me ... Nunca vi coisa tão difícil! Será
kingdom (reino)? Gostava de saber quem era o amigo . . .
e quem era a donzela! Acha a charada boa? Será um
nome de mulher?

E a mulher, a divina mulher, reina sozinha!

77
JA NEA USTEN

- Não é Neptuno?

E é lá que o vês como monarca dos mares!

- É um tridente (tridant). . . ou uma sereia (mermaid) ...


ou um tubarão (shark) ... Ah! não . . . Shark tem só uma
sílaba. Deve ser muito subtil, senão ele não a teria
trazido. Miss Woodhouse, acha que consigamos adi­
vinhar?
- Sereias e tubarões ! Que disparate ! Minha que­
rida Harriet, que é que pensa? Que vantagem teria
ele em nos trazer uma charada que se referisse a uma
sereia ou a um tubarão? Dê-me o papel e oiça: Em
lugar de Miss . . . , leia Miss Smith.

A primeira ostenta a riqueza e a pompa,


O luxo e o bem-estar dos reis, senhores da terra

- Isto é corte (court).

A segunda encerra outra produção do homem,


E é lá q ue o vês, como monarca dos mares!

- É o navio (ship). Claro como água. Agora vamos


ao melhor:

Mas, unidas (courtship, vê?), q ue contraste!


A força e a liberdade, glórias suas, voaram:
Senhor da terra e do mar, tornou-se escravo,
E a mulher, a divina mulher, reina sozinha!

- Um cumprimento muito correcto ! . . . e depois


segue a aplicação, que j ulgo, minha querida, não
encontrará muita dificuldade em aprender. Leia isto
para si e saboreie. Não pode haver dúvidas de que foi
escrito para si e inspirado por si.
Harriet j á não podia resistir a tão deliciosa certeza.
Leu as linhas do conceito e ficou toda palpitante e
feliz. Não conseguia falar. Mas não precisava de falar.
Bastava-lhe sentir! Ema falava por ela.

78
EMA

- Há um significado tão evidente e particular neste


galanteio - disse ela - que eu não posso ter um
momento de dúvida quanto às intenções de Mr. Elton.
A Harriet é o seu objectivo . . . e dentro em breve há-de
receber a mais completa prova disso. Assim pensei
que devia s e r . Sempre pensei que não sofreria
nenhuma desilusão, mas agora está tudo bem claro : o
seu estado de espírito é tão patente e decisivo como
têm sido as minhas aspirações nesse capítulo, desde
que a conheço . Sim, Harriet, tinha desej ado durante
todo esse tempo que acontecesse precisamente o que
aconteceu. Nunca pude dizer se uma afeição entre a
Harriet e Mr. Elton seria extremamente desej ável ou
natural. As suas probabilidades e as suas vantagens
têm-se igualado de tal maneira ! Sou muito feliz.
Felicito-a de todo o coração, minha querida Harriet.
Trata-se de um afecto que uma mulher bem pode
orgulhar-se de ter inspirado . É uma união donde não
pode advir senão bem. Conceder-lhe-á tudo aquilo de
que necessita - consideração, independência, um lar
próprio -, estabelecê-la-á entre todos os seus ver­
dadeiros amigos, perto de Hartfield, e firmará para
sempre a nossa intimidade. É uma aliança, Harriet,
que j amais poderá fazer corar qualquer de nós .
- Querida M i s s Woodh o u s e . . . querida M i s s
Woodhouse - fo i tudo o que Harriet, a o mesmo tempo
que ternamente a abraçava, pôde articular. Mas
quando chegaram a alguma coisa que se assemelhava
mais a uma conversa, tornou-se suficientemente claro
para a sua amiga que ela via, sentia, antevia e evocava
justamente o que devia. A superioridade de Mr. Elton
era amplamente reconhecida.
- Diga Miss Woodhouse o que disser, tem sempre
razão - exclamou Harriet; - por conseguinte ,
suponho, creio e espero que sej a assim. Mas , doutro
modo, não o poderia imaginar. Está tão além de tudo
o que mereço! Mr. Elton, que podia casar com qualquer
outra mulher! . . . Não pode haver duas opiniões a seu
respeito . É verdadeiramente superior. Só pensar

79
JA NEA USTEN

naqueles lindos versos - A Miss . . . Meu Deus, que


bem feitos ! Serão realmente dirigidos a mim?
- Não posso fazer nem ouvir pergunta alguma a
tal respe�to . São, com certe z a ! Confie na minha
opinião . E uma espécie de prólogo da peça, uma
epígrafe do capítulo ; e, em brev e , s eguir- s e - á o
entrecho.
-
É uma coisa que ninguém podia esperar. Tenho
a certeza de que, há um mês , nem eu própria fazia a
menor ideia . . . Mas neste mundo sucedem as coisas
mais extraordinárias !
- Que Miss Smith e Mr. Elton travem conhe­
cimento um com o outro, é realmente extraordinário!
Não é vulgar que as coisas mais evidentes, mais
visivelmente desejáveis, aquilo que os proj ectos de
outras pessoas visam, tomem, tão de pronto, a forma
apropriada. A situação das residências de ambos faz
com que a Harriet e Mr. Elton sej am convidados;
pertenceis um ao outro, graças às circunstâncias dos
respectivos lares. O vosso casamento será idêntico ao
de Randalls . Dir-se-ia que há qualquer coisa no ar de
Hartfield que dá ao amor a direcção precisa, impe­
lindo-o para o canal em que deve vogar.

O curso do amor sincero nunca é sereno

Uma edição de Shakespeare, publicada em Hart­


field, teria certamente uma longa anotação a esta
passagem.
- Parece impossível que Mr. Elton se enamorasse
de mim . . . dentre toda a gente, fosse justamente de
mim, que ainda pelo S. Miguel não o conhecia, nem
nunca lhe havia falado ! E logo ele, o homem mais
bonito que h á , um homem que todos veneram ,
exactamente como a Mr. Knightley! O seu convívio é
tão disputado que toda a gente diz que, se ele quisesse,
nem a comida precisava de levar à boca, e que recebe
mais convites do que de dias tem a semana. E é tão
exímio na igrej a ! Miss N ash copiou todos os sermões
que ele tem pregado desde que veio para Highbury.

80
EMA

Meu Deus ! Quando me lembro da primeira vez que o


vi . . . Mal pensava eu! . . . As duas Abbotts e eu corremos
para a saleta da frente e espreitámos pelas gelosias,
quando o sentimos ir-se embora, e Miss N ash apareceu
e ralhou connosco, mas ficou a espreitar em nosso
lugar; no entanto, daí a pouco chamou-me e deixou-me
espreitar também, o que foi muita bondade da sua
parte. E como eu o achava belo ! Ia de braço dado com
Mr. Cole .
- É uma aliança que, quem quer . . . quem quer que
sej am os seus amigos, lhes deve agradar, contanto que
eles tenham, pelo menos , um pouco de senso comum;
e nós não vamos dar a nossa maneira de proceder a
apreciar a tolos. Se é verdade que estão ansiosos por
ver se a Harriet casa feliz, há um homem cujo carácter
bondoso dá a todos garantia disso; se é verdade que
desej am vê-la estabelecida na mesma região e no
mesmo ambiente em que decidiram colocá-la, ei-lo em
vias de ser levado a efeito; e se é verdade que o único
obj e ctivo deles é que a H arriet case bem, como
vulgarmente se diz , aí tem a magnífica fortuna, a
respeitável posição, a ascensão ao seu meio social, que
os deve satisfazer.
- Sim, é verdade ! Como fala bem ! Gosto muito de
a ouvir. Miss Woodhouse compreende tudo. É tão
inteligente como Mr. Elton. Esta charada! . .. Ainda que
eu estudasse durante um ano, nunca seria capaz de
fazer uma coisa como esta.
- Acho que ele tencionava experimentar a sua
habilidade, pela maneira como ontem se recusou.
- Eu acho que é, sem excepção, a melhor charada
que até agora vi.
- Realmente nunca vi nenhuma mais bem ade­
quada.
- E além disso é tão grande como as outras que
tenho lido.
- N ã o j ulgo que o s e u tamanho a favoreça
p articularmente . E stas coi s a s , em geral , nunca
perdem por serem curtas .

81
JA NEA USTEN

Harriet estava demasiado atenta aos versos para


ouvir. No seu espírito surgiam as mais lisonj eiras
com par ações.
- Uma coisa é - disse ela, momentos depois, com
as faces radiantes - ter o vulgar bom senso que toda
a gente possui e, quando há alguma coisa para dizer,
sentar-se a escrever uma carta e dizer justamente o
que se pretende , de maneira resumida, e outra é
escrever versos e charadas como esta.
Ema não podia desej ar mais judiciosa repulsa pela
prosa de Mr. Martin.
- Que versos tão, doces! - continuou Harriet. -
E estes últimos ! . . . Mas como hei-de eu devolver o papel
ou dizer que adivinhei? Oh ! Miss Woodhouse, que
havemos de fazer?
- Deixe isso comigo. Não faça nada. Ele vem cá
esta tarde, suponho eu, e então restituir-lhe-ei o papel;
e um disparate ou outro que se diga ficará entre nós,
e a Harriet escusa de se expor. Os seus meigos olhos
apenas devem aproveitar a ocasião para brilhar .
Confie em mim.
- Oh! Miss Woodhouse, que pena que eu não possa
escrever esta linda charada no meu álbum! Tenho a
certeza de que nunca consegui nada tão bom.
- Deixe de fora as duas últimas linhas, e j á não há
razão para que não transcreva a charada no seu álbum.
- Oh! Mas essas duas linhas são . . .
- . . . as melhores de todas. D e acordo! Mas são para
uso privado. E, como tal, escreva-as à parte . Não ficam
menos escritas por as haver separado . A parelha não
deixa de existir, nem o seu significado muda. Mas
deixe-as de parte e verá que a sugestão desaparece e
fica uma linda charada, excelente para qualquer
colecção . Fique certa de que ele havia de gostar tão
pouco que desdenhassem da sua charada como da sua
paixão . Um poeta amoroso deve ser encoraj ado nas
duas qualidades ou em nenhuma. Dê-me o álbum, que
eu lhe transcrevo a charada; depois, já não pode haver
reflexão da sua parte .

82
EMA

H arriet submete u - s e , embora o s e u e s p írito


dificilmente se convencesse a dispensar o álbum, por
pouco segura de que a amiga não fosse escrever nele
uma declaração de amor. Parecia-lhe um documento
precioso de mais para qualquer grau de publicidade .
- Nunca deixarei este livro sair das minhas mãos
- disse ela.
- Muito bem: - replicou Ema - é um sentimento
naturalíssimo; e quanto mais tempo ele durar, mais
satisfeita ficarei . Mas aí vem meu pai. Não se importa
que eu lhe leia a charada, pois não? Vai dar-lhe tanto
prazer! Ele gosta muito de coisas deste género e,
especialmente, de tudo o que representa um galanteio
a uma mulher. Meu pai possui o mais cavalheiresco
espírito de galantaria para com todas as mulheres.
Tem de me deixar ler-lhe a charada . . .
Harriet assumiu u m ar grave.
- Minha querida Harriet, não seja ciosa de mais
por esta charada. Se se mostrar muito cônscia do seu
valor e arreb atada, e p arecer que lhe dá mais
significado do que tem ou mesmo todo aquele que lhe
deve ser atribuído, trairá de forma inconveniente os
seus sentimentos . Não se deixe deslumbrar por tão
pequeno tributo de admiração. Se, ele se preocupasse
muito em guardar segredo disso, não teria entregue o
papel comigo ao pé; mas, pelo contrário, entregou-mo
até a mim, em vez de o entregar a si. Não encaremos
o assunto com demasiada gravidade . Ele recebe
estímulo bastante para prosseguir, sem que sej a
necessário suspirarmos sobre a charada . . .
- Oh! não . . . espero não me tornar ridícula a esse
ponto . Pode fazer o que quiser.
Mr. Woodhouse entrou e não tardou muito que se
referisse ao assunto, repetindo a sua pergunta mais
frequente :
- Então, minhas queridas, como vai o vosso álbum?
Obtiveram mais alguma coisa nova?
- Sim, papá, temos uma coisa para lhe ler, uma
coisa inteiramente nova. Encontrou-se em cima da

83
JA NEA USTEN

mesa, esta manhã, uma folha de papel - largada ali


por uma fada, supomos nós -, com uma linda charada,
que acabamos de copiar.
Ema leu-lha, do modo que ele apreciava que lhe
lessem tudo, lenta e distintamente, e repetindo duas
e três veze s , com explicações pormenorizadas , à
medida que ia lendo . Mr. Woodhouse gostou muito e,
como ela havia previsto, mostrou-se particularmente
deliciado com a lisonjeira conclusão.
- Oh! isto é µmito j usto, realmente : uma coisa
muito bem dita! E uma verdade ! «A mulher, a divina
mulher . . . » A charada é tão bonita, minha filha, que
não me custa nada a adivinhar qual foi a fada que a
trouxe . Ninguém podia ter escrito uma coisa tão
graciosa senão tu, Ema.
Ema limitou-se a abanar a cabeça e a sorrir. Depois
de pensar um pouco e com um terno suspiro , Mr.
Woodhouse acrescentou:
- Ah! não é difícil de ver com quem te pareces ! A
tua querida mãe era tão habilidosa em todas estas
coisas ! Se eu ao menos tivesse a memória dela! Mas não
consigo lembrar-me de nada . . . Nem sequer daquela
engraçada adivinha que me ouviste citar; só consigo
recordar-me da primeira estância, e elas são várias :

Kitty, formosa mas fria donzela,


Ateou uma chama q ue, todavia, deploro,
No rapaz de olhos vendados, cujo auxílio chamei,
Embora receoso da sua aproximação,
Tão fatal até então aos meus desejos.

- E é tudo quanto dela me recordo . . . mas é toda


muito bem arquitectada. Lembro-me, porém, minha
querida, de me teres dito que já a tinhas .
- Sim, papá, figura na segunda página do álbum.
Copiámo-la do «Elegant Extracts». É de Garrick, sabe?
- Ah ! é verdade . . . Gostava de me lembrar de mais
alguns versos da adivinha.

Kitty, formosa mas fria donzela . . .

84
EMA

- O nome leva-me a pensar na pobre Isabella, pois


esteve quase a ser baptizada com o nome de Catarina,
que assim se chamava a avó. Espero que a tenhamos
cá na próxima semana . . . Já resolveste onde a hás-de
instalar? E que quarto se reservará para os pequenos?
- Oh! já . . . ela fica no quarto que lhe pertence,
naturalmente . . . o quarto que ela sempre ocupou; e
quanto aos pequenos, há o quarto das crianças . E o
costume, como sabe . . . Por que havia de se fazer
alteração?
- Não sei, minha filha . . . mas já se passou tanto
tempo desde que ela cá esteve ! Já cá não vem desde a
Páscoa e , então , só esteve meia dúzia de dias . A
profissão de advogado de Mr. John Knightley é muito
incómoda. Pobre Isabella! Que pena estar tão afastada
de nós ! E como ela vai ficar triste quando vier e não
vir cá Miss Taylor!
- Pelo menos, não será surpresa para ela, papá.
- Não sei, minha querida. Tenho a certeza de que
fiquei muito surpreendido quando ouvi pela primeira
vez dizer que Miss Taylor ia casar.
- Temos de convidar Mr. e Mrs . Weston para
jantar connosco, enquanto Isabella cá estiver.
- Sim, minha querida, se houver tempo. Mas -
acrescentou ele, em tom de profundo desânimo - ela
vem só por uma semana . . . Não haverá tempo para
nada.
- É pena que eles não possam demorar-se mais . . .
mas parece que é por motivo de força maior. Mr. John
Knightley tem de estar novamente na cidade no dia
2 8 , e nós devemos estar-lhes muito gratos, papá, por
nos dedicarem todo o tempo que têm para estar no
campo e não nos tirarem dois ou três dias para os
passarem em Abbey. Mr. Knightley promete renunciar
aos seus direitos este Natal . . . embora, como sabe, eles
já não vão lá há mais tempo do que a nossa casa.
- Na verdade, seria muito custoso, minha filha,
que a pobre Isabella fosse para outro lado que não
Hartfield.

85
JA NEA USTEN

Mr. Woodhouse nunca estava disposto a reconhecer


os direitos de Mr. Knightley à companhia do irmão,
ou os direitos de quem quer que fosse à de Isabella, a
não ser ele. Ficou um momento a meditar e, depois,
disse:
- Mas eu não vejo razões para que Isabella seja
obrigada a regressar tão cedo, embora ele parta já.
Acho, Ema, que devemos tentar persuadi-la a ficar
mais tempo connosco. Ela e os pequenos podiam muito
bem ficar.
- O h ! papá . . . I s s o é que nunca foi capaz de
conseguir, nem julgo que j amais o consiga! Isabella
não pode suportar a ideia de estar separada do marido.
Era demasiado verdade para contradizê-lo. Por
muito desagradável que isto fosse, Mr. Woodhouse
nada mais pode fazer que dar um resignado suspiro;
e Ema, notando que o ânimo se lhe deprimia com a
ideia da dedicação da filha pelo marido, encaminhou
a conversa para um plano que o dispusesse melhor.
- Harriet far-nos-á companhia sempre que possa,
enquanto meus irmãos cá estiverem. Estou certa de
que há-de gostar dos pequenos. Nós temos muita
vaidade nas crianças , não temos, papá? Sempre quero
ver qual deles ela vai achar mais bonito: se Henry, se
John . . .
- Também e u tenho empenho e m o s ver. Pobres e
queridos petizes ! Como eles hão-de ficar contentes em
vir! Gostam muito de estar em Hartfield, Harriet.
- Acredito, senhor. Nem sei quem não há-de
gostar.
- Henry é um lindo garoto, mas John é muito
parecido com a mãe. Henry é o mais velho : puse­
ram-lhe o meu nome e não o do pai. John, o segundo
em idade , tem o nome do pai . Algumas pessoas
admiram-se, julgo eu, de não terem posto o nome do
pai ao mais velho , mas Isabella quis que ele se
chama�se Henry, o que achei muito gentil da sua
parte . E um garoto muito inteligente ! Todos eles são
notavelmente inteligentes e tem saídas tão engra­
çadas ! Põem-se ao lado da minha cadeira e dizem:

86
EMA

«Avô, dá-me um bocadinho de cordel?» . E uma vez


Henry pediu-me uma faca, mas eu disse-lhe que as
facas foram apenas feitas para os avós . Acho que o
pai é, muitas vezes, áspero de mais para eles.
- Isso parece-lhe a si, - disse Ema - porque o
papá é muito benévolo; mas, se o comparasse com
outros pais, não o julgava áspero. Ele o que quer é que
os filhos sej am activos e trabalhadores; e se eles se
portam mal, fala-lhes severamente uma vez por outra.
Mas é um pai muito extremoso . . . Mr. John Knightley
é realmente um pai extremosíssimo . Os pequenos
adoram-no.
- E depois vem o tio e levanta-os até ao tecto, de
uma forma assustadora.
- Mas eles gostam, papá . . . Não há nada de que
mais gostem. É tal o prazer que sentem que, se o tio
não assenta como regra ir um de cada vez , aquele que
primeiro começa, por sua vontade, não daria o lugar
ao outro.
- Pois não posso compreender isso!
- É o que sucede connosco, papá. Meio mundo não
é capaz de compreender os prazeres do outro meio.
Já para a tarde e exactamente na ocasião em que
as raparigas se despediam, por isso que se aproxi­
mavam as quatro, hora do j antar, entrou de novo o
autor da inimitável charada. Harriet voltou as costas ;
mas Ema recebeu-o com o seu habitual sorriso, e o
seu olhar perspicaz depressa descobriu no dele a
consciência de quem teve um atrevimento - de quem
atirou um dado; e logo pensou que ele vinha ver qual
havia sido o resultado . A razão ostensiva, porém, era
perguntar se Mr. Woodhouse o poderia dispensar da
reunião dessa noite, ou se a sua presença seria
absolutamente necessária em Hartfield. Se assim
fosse, tudo o mais tinha de ser posto de parte; mas o
caso é que o seu amigo Cole tinha insistido tanto com
ele para que fosse j antar a sua casa, tinha mostrado
tanto empenho nisso, que ele lhe havia prometido ir,
sob reserva.

87
JA NEA USTEN

Ema agradeceu-lhe, mas não podia consentir que


contrariasse o seu amigo por causa deles; seu pai tinha
a partida de whist assegurada. Ele tornou a insistir e
Ema confirmou o que havia dito; preparava-se Mr.
Elton então para fazer a sua mesura, quando ela,
tomando o papel de cima da mesa, disse:
- Ah ! Aqui tem a charada que teve a amabilidade
de nos deixar. Obrigada pelo empréstimo. Apreciá­
mo-la tanto que eu tomei a liberdade de a transcrever
para a colecção de Miss Smith. Espero que o seu amigo
não leve a mal . . . Evidentemente, não copiei mais que
as primeiras oito linhas .
Mr. Elton naturalmente não soube muito bem o
que havia de dizer. Mostrou um ar meio indeciso, meio
confuso, disse qualquer coisa sobre «honra» , olhou para
Ema e para Harriet, e depois, vendo o livro aberto em
cima da m e s a , pegou nele e examinou-o muito
atentamente . No intuito de dissipar aquele constran­
gimento, Ema, sorrindo, disse:
- Queira apresentar as minhas desculpas ao seu
amigo ; mas uma charada tão boa não deve ser
conhecida só de um ou dois. Ele pode estar certo do
assentimento de todas as mulheres, enquanto escrever
com tanta galantaria.
- Não hesito em dizer - replicou Mr. Elton,
embora hesitasse bastante ao dizer isto - não hesito
em dizer . . . pelo menos se o meu amigo pensar
exactamente como eu . . . não tenho a menor dúvida de
que, se ele visse esta sincera expressão do seu desabafo
como eu a vejo (olhou para o livro mais uma vez e
tornou a colocá-lo sobre a mesa), considerar-se-ia no
momento mais glorioso da sua vida.
Após estas palavras , saiu o mais depressa que lhe
foi possível. Ema não poderia achar a saída muito
prematura, pois Mr. Elton, com todas as suas boas e
agradáveis qualidades, estava mostrando uma espécie
de ênfase no seu discurso, que contribuía razoa­
velmente para a dispor a dar uma gargalh ada.
Afastou-se para disfarçar essa vontade, evitando assim
a parte terna e sublime da peroração a Harriet.

88
EMA

CAP ÍTULO X

Embora se estivesse em meados de Dezembro ,


ainda não fizera tempo que impedisse as donzelas de
darem os seus passeios com relativa regularidade; e
no dia seguinte, Ema teve de fazer uma visita de
caridade a uma família pobre, que vivia à saída de
Highbury.
O caminho para essa cabana isolada fazia-se pela
azinhaga onde estava situado o presbitério, azinhaga
que fazia ângulo recto com a larga, se bem que
irregular, rua principal da terra; e como é de supor,
era lá a abençoada residência de Mr. Elton. Passava-se
primeiro por uns casebres miseráveis e, depois de
percorrido cerca de um quarto de milha, erguia-se o
presbitério - velho edifício de fraca aparência, quase
contíguo ao caminho. O local não lhe oferecia muitas
vantagens, mas o prédio havia sido muito beneficiado
pelo actual proprietário e, tal como era, não havia
possibilidades de que as duas amigas passassem por
ele sem afrouxar o passo e o contemplar com curio­
sidade . Ema fez a seguinte observação:
- Ei-lo. Qualquer dia a Harriet entra ali com o
seu álbum de adivinhas . . .
E Harriet disse:
- Oh! que bela casa! É muito bonita! E tem cortinas
amarelas, que Miss Nash tanto admira.
- Agora não passo por aqui muitas vezes,-disse
Ema, enquanto caminhavam - mas depois já haverá
um motivo e, então, familiarizar-me-ei a pouco e pouco
com todas as sebes , cancelas, charcos e arbustos desta
parte de Highbury.
Harriet - bem o percebia - nunca na sua vida
havia estado tão perto do presbitério, e agora a sua
curiosidade era levada a tal extremo que, dadas as
aparências e as probabilidades , Ema não podia deixar
de ver n i s s o uma prova de que Harri et amava
Mr. Elton, e só pelo facto de este a ter considerado
inteligente .

89
JANEA USTEN

- Gostaria que ele nos visse, - disse Ema - mas


não encontro nenhum pretexto decente para entrar;
não vejo nenhum criado a quem possa perguntar pelo
dono da casa . . . não trago nenhum recado de meu pai .
Pensou um pouco, mas de nada se lembrou. Após
um silêncio mútuo de alguns minuto s , Harri et
recomeçou nestes termos :
- Realmente, admiro-me, Miss Woodhouse, de que
não estej a casada ou em vias de casar! É tão encan­
tadora! . . .
Ema riu-se e replicou:
- Os meus encantos, Harriet, não são o suficiente
para me induzirem a casar; preciso de encontrar mais
gente encantadora . . . outra pessoa, pelo menos. E eu
não só não estou, presentemente, em vias de me casar,
como tenho poucas tenções de algum dia o fazer.
- Oh ! fala assim, mas não posso acreditá-la.
- É preciso que encontre alguém superior aqueles
que estou habituada a ver, para que me tente . Mr.
Elton, fique certa, - acrescentou, depois de reflectir
- está fora da questão: não é essa a pessoa que desejo
encontrar ... Não me tentaria. Na realidade, não posso
mudar para melhor. Se me casasse, creio que me
arrependeria.
- Meu Deus ! . . . É tão estranho ouvir uma mulher
falar assim!
- Eu não possuo nenhum dos estímulos que levam
as mulheres a casar. Ainda se me apaixonasse, seria
diferente . . . Mas eu nunca me apaixonarei: não está
no meu feitio, nem na minha natureza. Nem julgo que
o estej a alguma vez. E sem amor, estou convencida de
que seria loucura trocar por outra uma situação como
a minha! Fortuna, tenho-a; de distracção, não preciso;
incentivos , não me faltam: creio que poucas mulheres
casadas há que sej am tão senhoras da casa de seus
maridos como eu sou de Hartfield; e nunca, nunca
poderia esperar ser tão amada e considerada -
sempre tida como primeira e j usta aos olhos de um
homem, como sou aos de meu pai.

90
EMA

- Mas, nesse caso, acabará por ser uma solteirona,


como Miss Bates!
- Essa foi a mais formidável imagem que podia
apresentar, Harriet. Se eu visse que um dia me asse­
melharia a Miss Bates . . . tão simplória, tão resignada,
tão sorridente, tão prosaica, tão apagada e tão sub­
missa . . . e tão pronta a contar tudo o que se relacione
com as pessoas que me rodeiam, casar-me-ia amanhã.
Mas, aqui para nós, estou convencida de que nunca
terei outras semelhanças com ela senão a de ser
solteira.
- No entanto, não deixará de ser uma solteirona . . .
e isso é horrível !
- Não importa, Harriet, não hei-de ser uma
solteirona pobre; e só a pobreza é que faz do celibato
um motivo de desprezo para o público generoso! Uma
mulher solteira, com um exíguo rendime:q.to, é, por
força, uma solteirona ridícula e fastidiosa! E o melhor
divertimento para os rapazes e para as raparigas . Mas
uma mulher solteira, com fortuna, é sempre respeitada
e deve ser tão sensata e atraente como qualquer outra.
E a distinção não desmente , tanto como parece, a
imparcialidade e o senso comum do vulgo, por isso
que um rendimento diminuto contribui para atrofiar
o espírito e azedar o temperamento . Aqueles que
passam privações e são forçados a viver num meio
acanhado e geralmente inferior, têm toda a tendência
para ser mesquinhos e acerbos. Isto, porém, não sucede
com Miss Bates; ela apenas é demasiado bondosa e
simples para me agradar; mas, em geral , todos a
acham muito a seu gosto, não obstante ser solteira e
pobre. A pobreza não lhe atrofiou o espírito: eu até
creio que, se ela tivesse apenas um xelim, era muito
capaz de dar seis pence; e ninguém foge dela: essa
qualidade constitui um grande atractivo.
- Meu Deus . Mas que fará depois? E m que
empregará o tempo quando envelhecer?
- Julgo conhecer-me bem, Harriet: o meu espírito
é suficientemente activo e com bastantes recursos
próprios ; de resto, não sei porque teria mais neces-

91
JA NEA USTEN

sidade de empregar o tempo aos quarenta ou cinquenta


anos do que aos vinte e um. As habituais ocupações
visuai s , manuais e e s pirituais de uma mulher
facultar-se-me-ão tanto nessa idade como agora; ou,
pelo menos, com pouca diferença. Se desenhar menos,
lerei mais; se deixar a música, bordarei tapetes. E
quanto a obj ectivos de interesse, obj ectos de afeição,
que são, na verdade, o ponto crucial da inferioridade,
cuja falta é realmente o grande mal a prevenir quando
se é solteira, estou perfeitamente tranquila, tendo,
como tenho, os filhos de uma irmã que tanto amo.
Segundo todas as probabilidades, eles fornecerão em
medida suficiente todo o género de sensações de que
se necessite na velhice . Não faltarão estímulos para
todas as esperanças e todos os temores; e embora o
meu afecto por eles não possa comparar-se ao dos pais,
ele adapta-se melhor aos meus ideais de felicidade do
que qualquer outro mais ardente e mais cego. Os meus
sobrinhos e as minhas sobrinhas ! . . . Hei-de ter muitas
vezes comigo uma sobrinha.
- Conhece a sobrinha de Miss Bates? Quero dizer,
creio que deve tê-la visto um cento de vezes . . . mas
conhece-a de perto?
- Oh! conheço . . . Não podemos deixar de nos falar,
sempre que ela vem a Highbury. Por sinal que ela,
por si, quase que é o bastante para fazer perder a
uma pessoa o gosto de ter uma sobrinha . . . Deus me
livre ! Pelo menos, nunca macei os outros, com todos
os Knightleys j untos, metade do que Miss Bates faz
com Jane Fairfax. Uma pessoa sente-se doente só de
ouvir o nome de Jane Fairfax. Cada carta que se recebe
dela é lida mais de quarenta vezes ; os seus cum­
primentos a todos os amigos correm a roda umas
poucas de vezes ; e mesmo quando ela manda apenas
à tia o modelo de um espartilho ou um par de ligas
para a avó, não se ouve falar de outra coisa durante
um mês . Não quero senão bem a Jane Fairfax, mas
estou mortalmente enjoada dela.
Aproximavam-se da cabana e os comentários
cessaram . Ema era muito compassiva; todos os

92
EMA

sofrimentos da gente pobre encontravam alívio certo


tanto no seu interesse e bondade pessoais , nos seus
conselhos e na sua paciência, como na sua bolsa. Ela
conhecia-lhes os hábitos, desculpava-lhes a ignorância
e as tentações, não albergava esperanças românticas
de extraordinárias virtudes da parte daqueles em
quem a educação tão fraca acção exercera, investigava
dos seus desgostos com viva simpatia e prestava
sempre o seu auxílio com tanta inteligência como boa
vontade. Naquele caso, era à doença e à pobreza, ao
mesmo tempo, que ela vinha prestar assistência; e,
depois de ali se demorar o tempo necessário para
dispensar socorros e dar conselhos , deixou a cabana
tão impressionada com a cena que não pode impedir-se
de dizer a Harriet, à medida que se afastavam:
- São estas cenas, Harriet, que incutem bondade
a uma pessoa. Como elas fazem parecer fúteis todas
as outras coisas ! . . . Sinto que, durante o resto do dia,
em nada mais posso pensar senão nestas pobres
criaturas; e, contudo, quem poderá dizer quanto tempo
isso perdurará no meu espírito?
- É bem verdade - disse Harriet. - Pobres
criaturas ! Não podemos pensar em mais nada.
- E, realmente, creio que a impressão não se
desvanecerá tão depressa - disse Ema, transpondo a
sebe baixa e a laj e vacilante em que terminava a
estreita e escorregadia vereda que atravessava a horta
da cabana e as reconduzia à azinhaga. - Julgo bem
que não .
E , cá fora, parou para circunvagar, uma vez mais,
o olhar por toda aquela miséria e evocar a outra ainda
maior que havia lá dentro.
- Oh! minha querida, vamo-nos - disse a sua
companheira.
Continuaram o caminho . A azinhaga fazia uma
ligeira curva; e quando a ultrapassaram viram logo
Mr. Elton. Estava tão perto que mal deu tempo a que
Ema dissesse:
- Ah! Harriet, eis o que põe à prova a estabilidade
dos nossos pensamentos bons. Bem, - acrescentou,

93
JA NEA USTEN

sorrindo - creio que se pode dizer que, se a piedade


empregou os seus esforços em aliviar os que sofrem,
fez o mais importante . Se nos compadecemos dos
desgraçados o suficiente p ara fazer tudo quanto
possamos por eles, o resto é frívola simpatia que só a
nós próprios poderá prejudicar.
Harriet apenas pode responder, antes que o vigário
se lhes reunisse:
- Oh! sim, minha querida.
As privações e os sofrimentos da pobre família
foram, porém, o primeiro assunto de que falaram ao
encontrar-se. Ele tinha saído para ir visitar a pobre
gente . Agora adiaria a visita; mas havia coisas muito
interessantes a combinar acerca do que se poderia e
deveria fazer. Mr. Elton mudou, então, de rumo para
as acompanhar.
«Cruzaram-se um com o outro em tal missão, -
pensava Ema - encontraram-se colaborando no
mesmo projecto . . . Isto há-de aumentar grandemente
o amor, de ambos os lados . Não me admiraria se fosse
origem de uma declaração . Devia ser, se eu aqui não
estivesse. Gostaria de estar noutro lado.»
Impaciente por se afastar deles o mais possível,
não tardou muito que se desviasse para uma estreita
vereda, que corria a um lado da azinhaga e um pouco
mais alta que esta, deixando-os sozinhos no meio do
caminho . Mas ainda ali não estava há dois minutos,
quando verificou que os hábitos de dependência e de
imitação traziam Harriet para junto de si e que, no
fim de contas, daí a pouco, estariam ambos ao pé dela
outra vez. Isto não podia ser; parou logo, sob o pretexto
de fazer qualquer alteração no laço do botim e ,
baixando-se, d e maneira a ocupar toda a largura do
carreiro, pediu-lhes que fizessem o favor de ir andando,
que ela segui-los-ia dentro de um minuto . Fizeram
como ela desejava; e, quando ao fim de um certo tempo
Ema achou oportuno deixar de prestar atenção à bota,
teve a satisfação de encontrar novo pretexto para se
demorar mais, numa garota que a alcançou e que vinha
da cabana com um cangirão na mão e ia a Hartfield

94
EMA

buscar caldo, conforme lhe haviam ordenado. Cami­


nhar ao lado da petiz, conversar com ela e fazer-lhe
perguntas era a coisa mais natural deste mundo, ou
teria sido a coisa mais natural, se ela estivesse agindo
então sem nenhum desígnio especial; e desta forma
os outros podiam muito bem seguir à frente, sem
obrigação de esperarem por da . Ema aproximava-se,
porém, deles , involuntariamente; o passo da criança
era rápido e o d e l e s um pouco v agaro s o . E m a
observava-os com tanto mais cuidado, por isso que
estavam empenhados numa conversa que parecia
interessá-los. Mr. Elton falava animadamente, Harriet
ouvia com agrado; e Ema, depois de ter mandado a
petiz à frente, começava a pensar na maneira de se
atrasar um pouco mais, quando os dois olharam para
trás e ela foi obrigada a reunir-se-lhes.
Mr. Elton continuava a falar, entregue à descrição
de qualquer interessante pormenor, e Ema experi­
mentou um certo desapontamento quando verificou
que ele apenas e stava relatando à sua formo s a
companheira o jantar d a véspera e m casa d o seu amigo
Cole, entrando ela na altura do queij o Stilton, do
Wiltshire do Norte, da manteiga, da beterraba e da
sobremesa em geral.
«Tudo isto há-de contribuir forços amente para
alguma coisa melhor - foi a reconfortante reflexão
que ela fe z . - Um nada desperta interesse entre
aqueles que se amam; e um nada servirá de introdução
ao que lhes está na alma. Se eu, ao menos , pudesse
conservar-me mais tempo afastada . . . » .
C am i nh avam t o d o s e m s i l ê n ci o , q u a n d o , a o
avistarem o cercado d o presbitério, Ema, tomada da
súbita resolução de, ao menos, fazer com que Harriet
entrasse na residência , fingiu dar por qualquer
desarranjo na bota e se deixou ficar para trás mais
uma vez . Quebrou o atacador e, atirando-o disfarça­
damente p ara a valeta , viu-se então obrigada a
pedir-lhes que parassem, confessando que não sabia
como poderia continuar o caminho até casa com a bota
desatada.

95
JA NEA USTEN

- Caiu-me o atacador da bota - disse ela - e não


sei como remediar isto . Com franqueza, sou uma
companheira muito maçadora, mas espero que não
me suceda muitas vezes vir tão mal preparada. Mr.
Elton, tenho de lhe pedir licença para entrar em sua
casa e pedir à governanta uma fita, um cordão ou
qualquer coisa com que possa atar a bota.
Mr. Elton pareceu encantado com o pedido e nada
podia exceder a viva solicitude com que ele as conduziu
ao presbitério e se esforçou por lhes ser agradável. O
aposento em que foram introduzidas era um dos mais
bem mobilados e ficava na frente do edifício; nas
traseiras havia outro que lhe era contíguo; a porta de
comunicação estava aberta e Ema passou para lá,
acompanhada da governanta, que a atendeu da forma
mais cativante . Viu-se obrigada a deixar a porta
entreaberta conforme a encontrara ; mas estava
plenamente convencida de que Mr. Elton a fecharia.
Este, porém, não lhe fez a vontade, e a porta continuou
entreaberta; no entanto, ela esperava que, encetando
aturada conversa com a governanta, o habilitasse a
enfrentar, no aposento contíguo, o assunto que lhe
dizia respeito . Durante dez minutos, Ema nada mais
conseguiu ouvir que a própria voz . Aquilo não podia
prolongar-se por mais tempo. Viu-se então forçada a
dar-se por pronta e a aparecer.
Os dois namorados estavam de pé, a uma j anela.
Mostravam um ar de grande satisfação; e, durante
meio minuto, Ema sentiu a vaidade de ter colhido êxito
no seu plano. Mas não era verdade; ele ainda não havia
chegado à meta. Tinha-se mostrado agradabilíssimo
e encantador, havia dito a Harriet que a vira passar
e as tinha seguido propositadamente, proferira mais
algumas pequenas amabilidades e fi z era deter­
min�das alusões, mas nada de positivo.
«E muito cauteloso - pensou Ema; - avança palmo
a palmo e não se aventura enquanto não se encontrar
seguro» .
Todavia, embora o engenhoso estratagema de Ema
não tivesse dado o resultado almej ado, ela não podia

96
EMA

deixar de se regozijar por haver proporcionado a ambos


uns momentos de real prazer, que deviam contribuir
para a realização do grande acontecimento.

CAP Í TULO XI

Mr. Elton tinha de ficar de ora avante entregue


aos seus próprios recursos . Já não competia a Ema
interferir na sua felicidade ou apressar a sua decisão.
A vinda da irmã preocupava-a tanto que, primeiro em
perspectiva, depois na realidade, se tornou, daí em
diante, o seu principal obj ecto de interesse; e durante
os dez dias da permanência dos irmãos em Hartfield
não era de esperar - nem ela própria podia pensar
nisso - que ela concedesse aos dois namorados mais
do que uma atenção acidental e fortuita. Era natural,
porém, que tivessem toda a liberdade para fazer
rápidos progressos; de uma maneira ou de outra, esses
progressos verificar-se-iam, quisessem ou não . Ema
não tinha que se lastimar pelo facto de não ter mais
tempo para lhes dedicar. Há pessoas que quanto mais
delas se ocupam, menos zelam os próprios interesses .
Mr. e Mrs . John Knightley, como haviam estado
ausentes do Surrey mais tempo que de costume,
despertavam naturalmente um pouco mais de inte­
resse que o habitual . Depois do seu casamento, as
férias grandes dos anos anteriores tinham sido
divididas entre Hartfield e Donwell Abbey; mas as
férias desse Outono haviam sido todas utilizadas na
praia, para as crianças tomarem banhos de mar, e,
por isso, há muitos meses que os seus parentes do
Surrey os não viam com regularidade, e, em especial,
Mr. Woodhouse que os não via de facto, pois ninguém
conseguia convencê-lo a deslocar-se até Londres, nem
mesmo para ver a pobre Isabella; em consequência
disso gozava agora de uma felicidade mesclada de

97
JA NEA USTEN

apreensão e nervosismo, na antecipação da escassa


duração da visita.
Ele pensava muito nos incómodos que a viagem
havia de causar à filha e não pouco nas fadigas dos
seus cavalos e do cocheiro, que deviam transportar a
família durante a última metade do caminho. Mas a
sua inquietação não tinha razão de ser: as dezasseis
milhas foram transpostas sem novidade e Mr. e Mrs .
John Knightley, os cinco filhos e o correspondente
número de aias chegaram a Hartfield sãos e salvos . O
alarido e a alegria da chegada, as intermináveis
perguntas , as boas-vindas , a dispersão e a instalação
dos recém-vindos produziam tal balbúrdia e confusão
que seriam demais para os nervos de Mr. Woodhouse,
se tivessem qualquer outra origem, e que , mesmo
tendo a que tinham, não eram de molde a que eles
aguentas s e m por muito temp o ; mas Mrs . John
Knightley respeitava tanto os hábitos e o feitio do pai
que, não obstante a maternal solicitude pelos filhos,
que a levava a facultar-lhes, sem a mais pequena
demora, todas as distracções, toda a liberdade e todos
os cuidados, a comida, a água, o sono, os brinquedos ,
de que, porventura, necessitavam, vigiava por que as
crianças não fossem motivo de muita maçada para o
avô , quer por si próprias , quer pelos incessantes
desvelas de que era preciso rodeá-las.
Mrs . John Knightley era de pequena estatura, mas
bonita e alegre, de modos afáveis e índole notavel­
mente benévola e afectuosa; com um grande amor pela
família, era uma esposa dedicada, uma mãe extremosa
e tinha tão terna afeição pelo pai e pela irmã que, não
falando no amor pelo marido e pelos filho s , era
impossível encontrar afecto mais ardente . Jamais
reconheceria um defeito em qualquer deles. Não era
mulher de viva compreensão ou perspicácia; e a par
da semelhança com o pai, tinha também herdado, em
grande parte , a sua compleição; tinha uma saúde
delicada, era extremamente cuidadosa com a dos
filhos, passava por muitos terrores, era muito nervosa
e na cidade apegava-se tanto a Mr. Wingfield como o

98
EMA

pai a Mr. Perry. Também tinham muitas analogias


na benevolência de carácter e no hábito pronunciado
de dispensar grande estima aos amigos de velha data.
M r . John Knightley era um homem alto , de
maneiras corteses e de grande inteligência; eminente
na sua profissão, possuía um carácter respeitável e
era dedicado ao lar; mas os seus modos reservados
impediam que se tornasse geralmente agradável e,
além disso, era muitas vezes suj eito a acessos de mau
humor. Não tinha má índole, nem as suas imper­
tinências eram tão frequentes que justificassem tal
suposição ; mas não podia gabar-se de que o tem­
peramento fosse a sua grande perfeição. E, na verdade,
com tão amorável esposa, dificilmente seria possível
que os seus defeitos naturais não se agravassem. A
extrema doçura do temperamento de Isabella devia
ferir a susceptibilidade dele. Ele possuía toda a clareza
e vivacidade de espírito que a ela faltavam, e, por isso,
dava-se, por vezes , o caso de ele tomar atitudes mais
ásperas , isto é, severas . Não gozava de grandes
simpatias j unto d a linda cunhad a . Ela não lhe
perdoava a mínima falta. Ema ressentia-se vivamente
das pequenas ofensas que ele infligia a Isabella e que
a própria Isabella deixava passar . Talvez que o
houvesse desculpado mais, se o cunhado fosse um
pouco mais lisonj eiro para com ela; mas os seus modos
eram apenas os de um irmão e amigo tranquilamente
amável, sem louvores nem cegueiras ; mas, mesmo que
se verificasse qualquer grau de lisonj a pessoal, era
muito difícil que esse facto a tornasse desatenta a uma
falta que ele muitas vezes praticava e que, a seus olhos,
se afigurava a mais grave de todas - a falta de
paciência para com seu pai . De facto, o cunhado nem
sempre tinha a paciência que seria para desej ar. As
peculiaridades e as inquietações de Mr. Woodhouse
provocavam nele, por vezes , censuras irónicas ou
comentários mordazes, igualmente lamentáveis . O
facto não sucedia com muita frequência, principal­
mente quando daí resultava toda a dor de uma
apreensão, embora isenta de melindre . Todavia ,

99
JA NEA USTEN

durante os primeiros dias de cada visita não se


manifestavam outros sentimentos que não fossem os
mais amigáveis, e como as circunstâncias, desta vez,
impunham que a visita fosse tão curta, era de esperar
que ela decorresse num ambiente de perfeita cordia­
lidade . Havia pouco que eles se tinham instalado
devidamente , quando Mr. Woodhouse, abanando,
melancólico, a cabeça e suspirando, chamou a atenção
da filha para a triste mudança que se fi zera em
Hartfield, desde a última vez que ela ali estivera.
- AhJ minha filha! - dizia ele . - A pobre Miss
TaylorJ E um caso bem doloroso!
- E verdade, meu pai ! - exclamou ela, apres­
sando-se a concordar. - Como deve sentir a sua
falta! . .. E a querida Ema também . . . Que terrível perda
para ambos ! . . . Senti tanto o vosso, desgosto! Não sei
como podem passar sem ela . . . E uma bem triste
mudança, realmente . Mas espero que ela estej a bem,
meu pai . . .
- Muito bem, minha filha . . . sim, espero que estej a
bem. Pelo menos sei que s e d á razoavelmente n a terra
onde está.
Nesta altura, Mr. John Knightley perguntou, com
a maior naturalidade, a Ema, se havia dúvidas quanto
ao clima de Randalls .
- Oh! não . . . não há nenhumas. Nunca na minha
vida vi Mrs . Weston gozar de melhor saúde . . . nunca a
vi com tão bom aspecto. O papá apenas se refere ao
seu próprio desgosto.
- O que muito honra tanto um como o outro - foi
a delicada resposta.
- E vê-a com frequência, meu pai? - perguntou
Isabella, nesse tom de lástima que tanto agradava ao
ancião.
Mr. Woodhouse mostrou-se hesitante .
- Não tantas vezes como desejaria, minha querida.
- Oh ! papá . . . Desde que eles se casaram, apenas
houve um dia que os não vimos . Se exceptuarmos esse
dia, temos visto, de manhã ou à noite, ou Mr. Weston
ou a esposa, e geralmente ambos , quer em Randalls ,
quer aqui . . . mas, como deves calcular, Isabella, a maior

1 00
EMA

parte das vezes aqui . São extremamente solícitos em


nos visitar. Mr. Weston é, de facto, tão solícito como
ela. Papá: se começa a falar nesse tom triste, dará a
Isabella uma falsa ideia de nós todos. Toda a gente
pode saber que Miss Taylor nos fez muita falta, mas
também convém que todos se certifiquem de que Mr.
e Mrs . Weston tem, na verdade, atenuado, por todos
os meios, essa falta, tanto quanto nós prevíamos . Esta
é que é a verdade !
- Justamente como era de esperar, - disse Mr.
John Knightley - justamente como eu esperava que
fosse, em vista das suas cartas . O desej o dela em
patentear a sua estima não podia ser posto em dúvida,
e a circunstância de ele ser um homem lhano e sociável
torna tudo fácil . Eu sempre te disse, meu amor, que
não me parecia que a mudança se fizesse sentir tanto
em Hartfield como tu imaginavas ; e agora que tens o
testemunho de E m a , e s pero que tenhas fi c a d o
satisfeita.
- Sim, de facto, - disse Mr. Woodhouse - sim . . .
não posso negar que Mrs . Weston, a pobre Mrs .
Weston, nos vem ver bastantes vezes . . . mas - que
querem . . . - é sempre obrigada a ir-se outra vez em­
bora.
- Seria muito desagradável para Mr. Weston se
ela o não fizesse, papá . . . Esquece-se do pobre Mr. Wes­
ton?
- De facto - observou John Knightley, gracej ando
- parece-me que Mr. Weston tem uns certos direitos . . .
A Ema e e u resolvemos tomar o partido d o pobre
marido. Como eu sou marido e como Ema não é esposa,
é muito n atural que os direitos do homem nos
interessem igualmente . Quanto a Isabella, não está
casada há tanto tempo que vej a conveniência em pôr
de parte todos os Westons . . .
- E u , meu amor? . . . - exclamou sua esposa,
ouvindo e compreendendo apenas parte do que o
marido dissera. - Falaste de mim? Estou persuadida
de que não deve nem pode haver melhor advogado do
matrimónio do que eu; e se não fosse a tristeza de ela

101
JA NEA USTEN

ter deixado Hartfield, eu nunca teria j ulgado Miss


Taylor senão como a mais feliz mulher do mundo; e
quanto a menosprezar Mr. Weston, o excelente Mr.
Weston, acho que não há nenhum bem que ele não
mereça. Na minha opiniãot é um dos homens mais
bondosos que tem havido. A excepção de ti e de teu
irmão , não conheço outro que o iguale. Nunca me
hei-de esquecer do papagaio que ele fez para Henry,
naquele dia ventoso da Páscoa deste ano . . . e desde
que ele em Setembro do ano passado levou a amabi­
lidade a ponto de, à meia-noite, me escrever aquele
bilhete, com o fim de me certificar de que não havia
escarlatina em Cobham, fiquei convencida de que não
é possível haver coração mais compassivo nem homem
de melhores qualidades na terra . E se alguém o
merece, é Miss Taylor.
- Onde está o filho dele? - disse John Knightley.
- Tem cá vindo ultimamente . . . ou não?
- Ainda cá não veio - retorquiu Ema. - Havia
grandes esperanças de que viesse pouco depois do
casamento, mas isso ficou em nada; e há algum tempo
que não oiço falar dele.
- Mas porque não lhes falas da carta, minha filha?
- disse Mr. Woodhouse. - Ele escreveu uma carta à
pobre Mrs . Weston a felicitá-la: era uma carta muito
correcta e delicada . . . E l a mostro u - m a . Achei-a
realmente muito boa. Se era ou não da sua autoria é
o que não se pode dizer. Ele ainda é muito novo e talvez
que o tio . . .
- Meu querido papá, ele tem vinte e três anos!
Esquece-se de que o tempo passa . . .
- Vinte e três ! . . . Realmente? Pois não tinha
pensado nisso . . . não tinha mais de dois anos quando
perdeu a pobre mãe . . . como o tempo voa ! . . . A minha
memória está muito abaixo . . . Em todo o caso, era uma
carta bonita e deu bastante prazer a Mr. e a Mrs .
Weston. Lembro-me de que era escrita de Weymouth,
trazia a data de 26 de Setembro . . . e começava assim:
«Minha querida senhora»; mas não me recordo do
seguimento. Só me lembro de que trazia a assinatura

1 02
EMA

de «F. C . Weston Churchill» . . . Disso lembro-me eu


perfeitamente.
- Muito amável e gentil da sua parte ' - exclamou
a sensível Mrs . John Knightley. - Não tenho dúvidas
de que deve ser um rapaz muito cortês ! Mas que pena
que ele não viva com o pai ! . . . É tão impressionante o
facto de um filho estar afastado dos pais e da sua casa!
Não compreendo como Mr. Weston pode separar-se
dele . Abandonar um filho ! . . . Na verdade , nunca
poderia fazer bom juízo de uma pessoa que propusesse
uma coisa dessas a outra.
- Suponho que nunca ninguém fez bom juízo dos
Churchills - observou friamente Mr. John Knightley.
- Mas escusas de imaginar que Mr. Weston tenha
sentido o mesmo que sentirias se tivesses de aban­
donar Henry ou John. Mr. Weston é mais homem de
espírito tolerante e jovial que de sentimentos fortes ;
ele aceita a s coisas como elas s e lhe apresentam e tira
delas , duma forma ou doutra, o maior proveito
possível . Para o seu bem-estar, conta mais, suponho
eu, com aquilo a que se chama sociabilidade, isto é,
com a faculdade de comer, beber e j ogar o whist com
os amigos cinco vezes por semana, do que com os
afectos de família, ou qualquer outra coisa que o lar
proporcione.
Ema não tolerava nada que se parecesse com uma
censura a Mr. Weston e esteve vai-não-vai a refutar o
que acabava de ouvir; mas fez um esforço sobre si
mesma e calou - s e . Manteria a paz tanto quanto
possível; e, demais, havia alguma coisa de honrosa e
apreciável nos profundos hábitos doméstico s , na
suficiência que o cunhado encontrava no lar, do que
resultava a sua predisposição para desdenhar do
vulgar nível das relações sociais e daqueles para quem
estas tinham grande valor. Por tudo isto, ele tinha
indiscutível direito a uma certa tolerância.

1 03
JA NEA USTEN

CAP Í TULO XII

Mr. Knightley viria j antar com eles - um pouco


contra a vontade de Mr. Woodhouse, que não gos­
tava muito de que alguém partilhasse com ele da
presença de Isabella no primeiro dia. O bom senso de
Ema, porém, havia determinado assim; e além da
consideração que era devida a ambos os irmãos, ela
tinha particular prazer, dado o recente desacordo
entre Mr. Knightley e ela, em lhe enviar o respectivo
convite.
Esperava que ficassem amigos outra vez . Achava
que era tempo de fazerem as pazes . Na realidade, não
se fariam as pazes ; ela evidentemente que não tinha
sido a culpada, e ele nunca confessaria que o fora.
Não se podia pensar em concessão de qualquer dos
lados; mas era tempo de parecer esquecer que se
haviam zangado; e Ema esperava que fosse um factor
de auxílio ao restabelecimento da sua amizade a
circunstância de, quando ele entrasse na sala, ela ter
ao colo uma das crianças - a mais novinha, uma linda
menina de oito meses, que fazia então a sua primeira
visita a Hartfield e se sentia muito feliz por ser
acalentada nos braços da tia. E realmente foi de grande
auxílio, pois não obstante ele, de princípio, mostrar
uma expre ssão grave e fazer perguntas breves ,
depressa se pôs a conversar acerca dos garotos, com o
seu modo habitual , acabando por lhe tirar a criança
dos braços, com toda a sem-cerimónia de uma perfeita
camaradagem. Ema percebeu que eram amigos outra
vez; e como essa convicção lhe desse, em primeiro
lugar, uma grande satisfação e, depois, lhe incutisse
um pouco de audácia , não pode deixar de dizer,
enquanto ele olhava embevecido para o bebé:
- É consolador que tenhamos os mesmos pontos
de vista com respeito aos nossos sobrinhos e sobri­
nhas . No que se refere aos homens e às mulheres, as
nossas opiniões são, por vezes , muito diferentes; mas,

1 04
EMA

quando se trata destas crianças , noto que nunca


estamos em desacordo .
- Se se deixasse guiar tanto pelo temperamento,
no seu juízo acerca dos homens e das mulheres, e tão
pouco pela fantasia e pelo capricho, nas suas relações
com eles, como faz com estas crianças, é possível que
fossemos sempre da mesma opinião.
- Evidentemente . . . as nossas discordâncias devem
derivar sempre do facto de eu estar em erro . . .
- Sim - disse ele, sorrindo - é . . . uma boa razão .
Eu tin,ha dezasseis anos quando a Ema nasceu.
- E pois uma diferença material - replicou ela -
. . . e, nesse caso, não há dúvida de que o senhor me era
muito superior em juízo nesse período da nossa vida;
mas acaso o lapso de vinte e um anos não será
s u fi ciente para aproximar um pouco as n o s s a s
faculdades d e raciocínio?
- Sim . . . um pouco .
- Todavia , não o suficiente para me conferir
probabilidades de ter razão , quando pensamos de
forma diferente . . .
- E u continuo tendo sobre si a vantagem de possuir
a experiência de mais dezasseis anos e de não ser uma
linda rapariga e uma criança amimada. Vamos, minha
querida Ema, fiquemos amigos e não falemos mais a
respeito do assunto. Diz a tua tia, Emazinha, que nós
temos o dever de te dar melhores exemplos que este
de renovar velhas zangas e que, se ela não estava em
erro antes, está agora . . .
- Isso é verdade, - exclamou ela - é bem verdade !
Emazinha, oxalá que venhas a ser melhor que tua
tia. Que sej as infinitamente mais inteligente e nem
metade tão presunçosa. Vamos, Mr. Knightley, só mais
duas palavras e prometo que não digo mais nada. Se
considerarmos apenas as boas intenções, nós ambos
tínhamos razão; devo dizer que, na discussão, os meus
intuitos j amais se provariam culposas . Eu apenas
pretendo saber se Mr. Martin não ficou amargamente
desiludido.

1 05
JA NEA USTEN

- Ficou mais desiludido do que homem algum


j amais ficou - foi a curta e rápida resposta.
- Ah! . . . Realmente, lamento muito. Vamos, um
aperto de mão !
Acabavam de trocar estas palavras com a maior
cordialidade, quando apareceu John Knightley, que
disse:
- Olá, Jorge ! Como passaste?
- Como estás, John?
As saudações sucederam-se no verdadeiro tom
inglês, isto é, escondendo, sob uma fleuma que mais
parecia indiferença, o real afecto que levaria qualquer
deles, se necessário fosse, a fazer tudo em prol do outro.
Naquela noite gozava-se de uma quietação que
convidava ao cavaco: Mr. Woodhouse renunciou às
cartas , para se embeber em agradável conversa com
a sua querida Isabella, e a família dividiu-se natu­
ralmente em dois grupos; a um lado, ele e a filha, do
outro, os dois Knightleys . Os temas eram inteiramente
distintos, ou muito raramente se misturavam. E Ema
só acidentalmente se reunia a um ou a outro grupo.
O s dois irmãos fal avam dos seus negócios e
proj ectos, mas principalmente dos do mais velho, cujo
feitio era muito mais comunicativo, sendo, por isso,
quem mais fazia as despesas da conversação. Como
magistrado, tinha sempre algum pormenor jurídico a
citar a John ou, pelo menos, uma curiosa anedota a
contar; como agricultor, visto que cultivava a herdade
de Donwell, referia-se ao que cada campo produziria
no ano próximo e prestava todas as informações locais,
que não podiam deixar de interessar a um irmão que
havia igualmente passado a maior parte da vida no
mesmo lar e cujos laços de afecto que a ele o uniam
eram tão forte s . O proj ecto de um escoadoiro , a
modificação de um cercado, o derrubamento de uma
árvore e o destino de cada acre de trigo, de nabos ou
de milho eram assuntos por que John mostrava
igualmente tanto interesse quanto os seus modos frios
o permitiam; e se o condescendente irmão deixava

1 06
EMA

passar algum ponto por esclarecer, as suas perguntas


chegavam a revestir-se de um tom de impaciência.
E n quanto eles e stavam a s s i m comodamente
entretidos, Mr. Woodhouse experimentava o prazer
de manifestar as suas saudades e o seu afecto doentio.
- Minha pobre Isabella, - dizia ele, pegando-lhe
carinhosamente na mão e interrompendo, por mo­
mentos, a incessante atenção que ela tinha de prestar
a um ou a outro dos seus cinco filhos - há que tempos
que cá não vinhas ! . . . Há tanto tempo ! E como deves
estar fatigada da j ornada! . . . Tens de te deitar cedo,
minha filha . . . e aconselho-te a que tomes uma pinga
de caldo de aveia antes. Havemos ambos de tomar
uma boa tigela de caldo. Minha querida Ema, suponho
que todos podemos tomar um pouco de caldo de aveia . . .
Ema não podia supor tal coisa, cônscia como estava
de que nem os Knightleys nem ela se persuadiriam a
ingerir tal iguaria; por isso, só se mandaram vir duas
tigelas de caldo. Após mais algumas palavras de elogio
ao manj ar e de estranheza por nem toda a gente o
saborear todas as noites, Mr. Woodhouse continuou,
com um ar gravemente reflexivo:
- Foi uma péssima resolução essa de passares o
Outono em South End, em lugar de vires para cá,
minha filha. Nunca simpatizei muito com o ar do mar.
- Mr. Wingfield aconselhou-o expressamente, meu
pai. Recomendou-o para todos os pequenos , mas, pri­
ncipalmente, para a doença da garganta da Belinha . . .
tanto o ar do mar como o s banhos .
- Ah! minha querida, mas Perry tinha muitas
dúvidas de que o mar lhe fizesse bem; e quanto a mim,
há muito que estou absolutamente convencido, embora
nunca to tenha dito, de que o mar muito raramente
beneficia quem quer que seja. Tenho quase a certeza
de que me matava num instante.
- Vamos, vamos ! - exclamou Ema, pressentindo
que o assunto era perigoso - peço-lhes que não falem
do mar. Fazem-me invej a e tristeza . . . eu, que nunca o
vi ! South End é zona proibida, se fazem favor . . . Minha

107
JA NEA USTEN

querida Isabella, ainda não te ouvi perguntar por Mr.


Perry . . . e ele nunca se esquece de ti.
- Oh ! o bom Mr. Perry . . . como está ele, meu pai?
- Vai razoavelmente; mas não de saúde perfeita.
O pobre Perry é bilioso e não tem tempo para se
tratar . . . diz-me ele que não tem tempo para se tratar . . .
o que é pena . . . estão sempre a chamá-lo d e toda a
parte . . . Acho que não há em parte alguma homem com
tanta prática. O caso é que não há ninguém tão
inteligente . . .
- E Mrs . Perry e o s filhos, como vão? O s garotos
estão crescidos? . . . Eu tenho uma grande estima por
Mr. Perry. Espero que ele nos venha visitar em breve . . .
Há-de gostar d e ver o s meus pequenos .
- Espero-o c á amanhã, pois tenho uma pergunta
ou duas de certa gravidade a fazer-lhe, a meu respeito.
E , minha querida, quando ele vier, acho que o melhor
é deixá-lo ver a garganta da Belinha.
- Oh ! meu querido pai, a garganta está tão boa
que já poucas preocupações me dá. Ou os banhos lhe
foram de grande beneficio, ou então as melhoras
devem ser atribuídas a um magnífico medicamento
de Mr. Wingfield, que, de vez em quando, damos à
pequena desde Agosto.
- Não é muito provável, minha filha, que os banhos
lhe tenham feito bem . . . e se eu soubesse que precisavas
de um remédio, teria falado a . . .
- Parece-me que te esqueceste de Mrs . e de Miss
Bates - disse Ema; - não te ouvi perguntar por elas . . .
- Oh! a s boas Bates . . . estou envergonhada . . . mas
tu tens falado delas em quase todas as cartas . . . Espero
que estej am de saúde . . . A boa Mrs . B ates . . . vou
visitá-la amanhã e levo os pequenos . Elas gostam
sempre tanto de ver as crianças ! . . . E a excelente Miss
Bates ! É uma gente tão digna! . . . Como vão elas, meu
pai?
- Duma forma geral , vão bem, minha filha. Mas a
pobre Mrs . Bates está com uma terrível constipação
há um mês.

1 08
EMA

- Coitada! Nunca se viram tantas constipações


como este Outono. Mr. Wingfield disse-me que nunca
viu constipações tão fortes, a não ser quando se trata
de gripe.
- Tem havido bastantes, minha querida, mas não
com a gravidade que dizes. Perry diz que as cons­
tipações têm sido frequentes, mas não tão fortes como
ele está costumado a ver em Novembro. Perry não
considera o Outono uma estação muito doentia.
- Eu não digo que Mr. Wingfield o considere uma
estação muito doentia, mas . . .
- Ora! minha querida filha . . . a verdade é que em
Londres ninguém pode ser saudável. É horrível ser-se
obrigado a viver lá! Tão longe . . . e um clima tão mau!
- Nem por isso . . . nós não estamos, de modo algum,
num clima mau. A zona de Londres em que habitamos
é muito superior à maior parte das outras . Não
confunda o nosso bairro com toda a cidade de Londres,
meu pai ! As imediações da Praça de Brunswick são
muito diferentes de quase todo o resto. É tão alegre !
Não viveríamos de bom grado, confesso, em qualquer
outro bairro da cidade; é difícil encontrar-se outro que
satisfaça aos pequenos : mas ali há tanta ventilação! . . .
Mr. Wingfield acha que, quanto a clima, as circun­
vizinhanças da Praça de Brunswick são as que melhor
satisfazem.
- Ah, minha querida! não há nada que se compare
a Hartfield. Vocês dão-se bem lá . . . mas, depois de
passarem uma semana em Hartfield, ficam com­
pletamente diferentes : já não parecem os mesmos.
Agora não posso dizer que vos ache com bom parecer.
- Lamento que diga isso, meu pai ; mas afirmo-lhe
que , se exceptuar aquelas leves nevralgias e pal­
pitações de que nunca me vejo livre em parte alguma,
a minha saúde é perfeita; e se as crianças estavam
um pouco pálidas antes de irem deitar-se, era apenas
porque estavam um pouco mais fatigadas que de
costume, devido à viagem e à alegria da vinda. Estou
convencida de que amanhã as achará com melhor

1 09
JA NEA USTEN

aspecto, pois asseguro-lhe que Mr. Wingfield me disse


que, por muito bem que nos déssemos , não acreditava
que o deixássemos para sempre . Estou convencida de
que , ao menos, não acha Mr. Knightley com mau
aspecto . . . - terminou Isabella, voltando os olhos com
afectuosa inquietação para o marido.
- Assim, assim, minha filha . . . Não te dou os para­
béns. Acho que Mr. John Knightley está muito longe
de ter bom parecer.
- De que se trata, senhor? Falou a meu respeito?
- exclamou Mr. John Knightley, ao ouvir o seu nome .
- Sinto muito, meu amor, que meu pai não te ache
com bom aspecto . . . mas espero que não passe de um
pouco de fadiga . Eu bem queria, como sabes , que
consultasses Mr. Wingfield antes de termos saído de
casa.
- Minha querida Isabella, - disse ele enfadado
- peço-te que não te importes com o meu aspecto.
Contenta-te em tratar de ti e dos pequenos e não te
importes com o meu parecer.
- Não percebi bem o que estava dizendo a seu
irmão, - exclamou Ema - a propósito de o seu amigo
Mr. Graham tencionar mandar vir da Escócia um
feitor para olhar pela sua nova propriedade . Mas
valerá a pena? Não haverá excesso de preconceito?
E falou neste tom tanto tempo e com tanto êxito
que, quando foi obrigada a prestar novamente atenção
ao pai e à irmã, apenas ouviu Isabella perguntar
solícita por Jane Fairfax; e a Jane Fairfax, se bem
que não fosse da sua simpatia, estava ela, nesse
momento, bem disposta a tecer elogios .
- A doce e gentil Jane Fairfax! - dizia Mrs . John
Knightley. - Há tanto tempo que não a vejo, a não
ser uma vez por outra, por acaso, na cidade! Que
felicidade para a sua boa avó e para a sua excelente
tia, quando ela vier visitá-las ! Sempre lastimei, por
causa da querida Ema, que ela j á não estej a em
Highbury; mas, agora que a filha do coronel e de
Mrs . Campbell casou, suponho que eles não quererão,

110
EMA

de maneira alguma, separar-se dela. . . Seria uma


companhia deliciosa para Ema.
M r . Woodh o u s e concordou plenamente , mas
acrescentou:
- No entanto, a nossa amiguinha Harriet Smith
sempre é outro género ! Hás-de gostar de Harriet. Ema
não podia ter melhor companheira que Harriet.
- Folgo muito em o saber . . . mas deve-se reconhecer
que Jane Fairfax é uma rapariga muito prendada
e inteligente. E, além disso, é da mesma idade de
Ema.
Discutido este assunto em perfeito acordo, suce­
deram-se outros de análoga oportunidade , todos eles
terminados em igual harmonia; mas o serão não
acabaria sem perturbação . Veio o caldo de aveia, que
forneceu tema para discussão - muitos elogios e
muita crítica, a inevitável sentença da sua salubridade
em todos os organismos e severas filípicas contra
muitas casas em que nunca fora tolerado; mas,
infelizmente, entre, os erros que Isabella evidenciava,
o mais recente e, portanto, o mais proeminente, residia
na cozinheira que ela tivera em South End, uma
rapariga contratada para a época, que nunca fora
capaz de compreender o que queria a patroa dizer
quando falava numa tigela de caldo de aveia ralo, mas
não de mais. Todas as vezes que ela lho mandara fazer,
mostrara-se sempre incapaz de apresentar qualquer
coisa aceitável. Isto era uma perigosa aberta.
- Oh! -fez Mr. Woodhouse, abanando a cabeça e
fixando na filha o olhar com terno pesar.
Esta exclamação, aos ouvidos de Ema, significava:
- Oh! não têm fim as tristes consequências
da tua ida para South End. Nem vale a pena falar
nisso.
E , durante alguns momentos, ela albergou espe­
ranças de que o pai não dissesse mais nada e que a
reflexão em silêncio fosse suficiente para lhe restituir
o prazer de saborear o seu caldo de aveia. No en­
tanto, após um intervalo de alguns minutos , ele
começou:

111
JA NEA USTEN

- Hei-de sempre lamentar que tenhas ido este


Outono para a praia em vez de vir para cá . . .
- Mas porquê, meu pai? . . . Afirmo-lhe que fez muito
bem aos pequenos !
- E demais, se querias ir para a praia, não devias
ter ido para S outh E n d . South End é um lugar
insalubre. Perry ficou surpreendido quando soube que
tinhas escolhido South End.
- Sei que há muita gente que pensa assim, mas é
um completo engano, meu pai . Todos nós gozámos de
excelente saúde e nunca tivemos o menor transtorno
por causa do lodo; e Mr. Wingfield diz que é um erro
supor que o sítio é insalubre . E eu tenho a certeza de
que se pode acreditar nele, pois conhece perfeitamente
a natureza do clima, e o próprio irmão e a família tem
lá estado repetidas vezes .
- Devias ter ido para Cromer, minha filha, j á que
querias ir para a praia. Perry, que esteve, uma vez ,
uma semana em Cromer, sustenta que é a melhor de
todas as praias de banhos . Uma praia vastíssima, diz
ele, e um ar puríssimo . E pelo que me informou, vocês
teriam ali alojamento bastante afastado do mar . . . a
um quarto de milha . . . e com muita comodidade .
Deviam ter consultado Perry.
- Mas , meu querido pai, a distância era muito
maior . . . Lembre-se de como fica longe. Cem milhas,
talvez, em lugar de quarenta . . .
- Ora, minha querida, como Perry diz , quando se
trata da saúde, não se deve pensar em mais nada: e
quando se tem de fazer uma viagem, não vale a pena
escolher entre quarenta milhas e cem. Mais valia não
sair de casa, mais valia ficar em Londres do que fazer
uma jornada de quarenta milhas para ir para um clima
p é s s i m o . É i s t o m e s m o o que Perry d i z . A e l e
afigurou-se-lhe uma resolução imprevidente .
As tentativas de Ema para fazer calar o pai foram
inúteis; e quando ele chegou a este ponto, ela não ficou
nada admirada de que o cunhado explodisse.
- Mr. Perry - disse ele, com modo enfadado -

1 12
EMA

faria melhor em guardar para si a sua opinião até lha


pedirem. Que tem ele com o que nós fazemos? . . . Que
tem ele com que eu leve a família para uma parte da
costa ou para outra? . . . Parece-me que tenho, tanto
como Mr. Perry, o direito de pensar como me apetecer. . .
Prescindo tanto dos seus conselhos como das suas
drogas .
Fez uma pausa e, com mais frieza ainda, acres­
centou, apenas num tom sarcástico:
- Se Mr. Perry for capaz de me indicar a maneira
de transportar mulher e cinco crianças para uma
distância de cento e trinta milhas , com a mesma
despesa e maçada com que se transportam para uma
distância de quarenta, de boa vontade preferirei
Cromer a South End.
- Isso é verdade, - exclamou Mr. Knightley,,
interrompendo-o vivamente - é bem verdade ! E
realmente caso para pensar. Mas , John, voltando ao
que te estava a dizer sobre a ideia que tinha de
modificar o caminho para Langham, de o desviar mais
para a direita, para que ele não passe pelos prados da
casa, não vej o nisso nenhuma dificuldade . Não o
tentaria, se trouxesse inconvenientes para o povo de
Highbury, mas deves recordar-te da direcção que o
caminho agora tem . . . A única maneira de fazer a
demonstração é com o mapa à frente . Conto contigo
amanhã de manhã em Abbey, e então analisá-lo-emos
e tu me darás a tua opinião.
Mr. Woodhouse ficara um pouco irritado com tão
severas censuras ao seu amigo Perry, a quem ele, para
dizer a verdade, tinha, se bem que inconscientemente,
atribuído muitos dos seus pontos de vista e expressões;
mas as apaziguadoras atenções das filhas desva­
neceram, a pouco e pouco, o seu ressentimento, e a
pronta solicitude de um irmão e a melhor disposição
do outro evitaram que ele se reavivasse.

1 13
JA NEA USTEN

CAP ÍTULO XIII

Era difícil encontrar-se no mundo criatura mais


feliz que Mrs . John Knightley, quando, durante a sua
curta visita a Hartfield, ia todas as manhãs , com os
cinco filhos, de visita às suas velhas amigas e se punha
a contar como passara, na véspera, o tempo com o pai
e a irmã. Nada mais desej ava senão que os dias não
passassem tão depressa. A visita decorria delicio­
samente e às mil maravilhas , não obstante ser
demasiado curta.
Em geral, os serões ocupavam-nos menos com os
amigos do que as manhãs ; mas não houve meio de
evitar um convite para jantar, embora se estivesse no
Natal . Mr. Weston não aceitaria nenhuma desculpa:
eles tinham que ir todos jantar a Randalls um dia; e
até Mr. Woodhouse se persuadiu a admiti-lo como coisa
possível , de preferência a des membrar o grupo
familiar.
Se ele pudesse, teria levantado dificuldades quanto
à maneira de todos se transportarem a Randalls, mas,
como a carruagem do genro e da filha se encontrava
então em Hartfield, não pôde senão formular uma
simples pergunta, que mal se podia classificar de
dúvida. Ema, porém, não teve muito trabalho em o
convencer de que numa das carruagens também se
arranj aria lugar para Harriet.
Harriet, Mr. Elton e Mr. Knightley, isto é, os mais
íntimos , eram as únicas pessoas convidadas a ir com
eles; a partida devia efectuar-se com pontualidade e o
número, de pessoas tão reduzido quanto possível, em
atenção aos hábitos e gostos de Mr. Woodhouse.
Na véspera deste grande acontecimento (pois foi
realmente um grande acontecimento que Mr. Wood­
house jantasse fora, no dia 24 de Dezembro), Harriet
passara o serão em Hartfield e fora para casa tão
constipada que, se não fosse o seu insistente desejo de
ser tratada por Mrs . Goddard, Ema não lhe teria
permitido que saísse. Ema foi vê-la no dia seguinte e

1 14
EMA

achou que ela estava condenada a não ir a Randalls .


Tinha muita febre e a garganta muito inflamada. Mrs .
Goddard , que estava cheia de cuidado , mandara
chamar Mr. Perry, e a própria Harriet achava-se
demasiado doente e abatida para resistir à contin­
gência que a excluía da deliciosa reunião, se bem que
não pudesse falar dela sem muitas lágrimas .
Ema demorou-se a seu lado o mais que pode, para
tratar dela durante as ausências de Mrs . Goddard e
levantar-lhe o moral, lembrando-lhe que Mr. Elton
havia de ficar desanimado quando soubesse do seu
estado; finalmente, deixou-a razoavelmente resignada
e docemente convencida de que ele havia de ir muito
desconsolado e que todos haviam de sentir muito a
falta dela. Ainda não ia muito longe da porta de Mrs .
Goddard, quando se encontrou com Mr. Elton, que,
evidentemente, se dirigia para lá; e enquanto cami­
nhavam a passos lentos, falando a respeito da enferma
- de cujo estado ele, por lhe ter chegado aos ouvidos
que se tratava de uma doença grave, se dispunha a ir
indagar, para levar notícias a Hartfield - foram
alcançados por Mr. John Knightley, que regressava
da sua visita diária a Donwell, em companhia dos dois
filhos mais velhos, cujas faces sadias e resplandecentes
patenteavam a benéfica acção de um passeio pelo
campo e pareciam assegurar rápido despacho ao
carneiro assado e ao pudim de arroz por que eles
ansiavam, ao chegar a casa. Reuniram-se todos e
s eguiram o mesmo caminho . E m a es tava então
des crevendo a n aturez a da doença da amiga : a
garganta muito inflamada, bastante febre, o pulso
muito agitado, etc. Demais, soubera por Mrs . Goddard
que Harriet era suj eita a grandes inflamações de
garganta, que a tinham assustado muitas vezes . Mr.
Elton parecia alarmado ao exclamar:
- Uma inflamação na garganta! . . . Oxalá não sej a
nenhuma doença contagiosa! E spero que não sej a
qualquer mal pútrido . . . Perry viu-a? Na verdade, devia
ter tanto cuidado consigo como com a sua amiga .

1 15
JANEA USTEN

Suplico-lhe que não se exponha. Porque não a vrn


Perry?
Ema, que não estava nada assustada, tranqui­
lizou-o deste excesso de apreensão, assegurando-lhe
que Mrs . Goddard tinha muita prática e não faltaria
com cuidados a Harriet; mas, como ainda devia restar
uma certa inquietação, que ela não queria desfazer
de todo, antes lhe convinha manter, Ema acrescentou,
pouco depois, como se se tratasse de um assunto
inteiramente diferente:
- Está tanto frio, tanto frio . . . dá tanto a impressão
de que vai nevar, que, se estivéssemos noutra terra
ou a reunião fosse com outras pessoas , eu, realmente,
não me atreveria a sair hoje . . . e dissuadiria meu pai
de se arriscar; mas, como ele está resolvido a ir e parece
não sentir frio, não desmancharei o que está feito,
tanto mais que sei que seria um grande desgosto para
Mr. e Mrs . Weston . Mas dou-lhe a minha palavra de
honra, Mr. Elton, de que, no seu caso, apresentava as
minhas desculpas e não ia. Acho que já está um pouco
rouco e, se se lembrar da necessidade que terá da sua
voz amanhã e das fadigas que o esperam, verá que
seria da mais vulgar prudência ficar em casa e
tratar-se à noite.
Mr. Elton parecia não saber que resposta havia de
dar; realmente assim era, pois, se bem que muito grato
pelo amável cuidado de tão formosa j ovem e não
gostasse de se opor a um conselho seu, não se sentia
com a mínima disposição para faltar ao j antar; mas
Ema, demasiado dominada pelas suas ideias pre­
concebidas para o escutar imparcialmente ou en­
tendê-lo com visão clara, ficou inteiramente satis­
feita com o facto de ele reconhecer, num murmúrio,
que «realmente estava muito frio . . . » , e continuou o
seu caminho , regozij ando-se de o ter afastado de
Randalls e de haver assegurado as possibilidades
de ele mandar saber notícias de Harriet de hora a
hora, nessa noite.
- Faz muito bem - disse ela. - Nós apresen­
taremos as suas desculpas a Mr. e Mrs . Weston.

116
EMA

Mas ainda ela não tinha acabado de falar, quando


viu que o cunhado estava amavelmente oferecendo a
Mr. Elton um lugar na sua carruagem, no caso de a
única dúvida deste último residir no estado do tempo,
e que Mr. Elton aceitava a oferta com viva satisfação .
Era negócio consumado; Mr. Elton iria, e nunca as
suas faces cheias e coradas exprimiram maior prazer
do que naquele momento - nunca o seu sorriso foi mais
aberto, nem o seu olhar mostrou expressão mais exul­
tante do que quando ele olhou em seguida para ela.
«Olá - disse ela para consigo isto é muito es­
tranho ! . .. Depois de me ter livrado dele, preferir ir na
nossa companhia e deixar Harriet, doente, para trás ! . . .
Muito estranho, n a verdade ! Mas há, creio eu, em
muitos homens, principalmente solteiros , tal pre­
dilecção, tal paixão por um j antar fora de casa . . . um
convite para j antar figura tanto em destaque na classe
dos seus prazeres, das suas actividades, das suas
honrarias, quase dos seus deveres, que tudo o mais
tem de ceder . . . Deve ser este o caso de Mr. Elton; um
rapaz de excelentes qualidades , muito gentil, muito
simpático , sem dúvida alguma , e apaixonado por
Harriet, mas que, no entanto, não é capaz de recusar
um convite : tem de ir j antar aonde quer que o
convidem. O amor é uma coisa bem esquisita! Está
pronto a ver inteligência em Harriet, mas não é capaz
de j antar sozinho por causa dela» .
Momentos depois, Mr. Elton deixou-os e Ema não
pôde deixar de lhe fazer j ustiça reconhecendo que
havia bastante sentimento na maneira de ele se referir
a Harriet ao despedir-se; notou-o no tom da voz, ao
assegurar-lhe que iria a casa de Mrs . Goddard saber
notícias da sua linda amiga, diligência que ele já antes
tencionava efectuar, para ter o prazer de a ver, e por
meio da qual contava ficar habilitado a dar melhores
informações sobre o seu estado . E , ao dizer isto,
suspirava e sorria de uma maneira que fazia pender
muito a seu favor o prato da balança da simpatia.
Após alguns minutos de absoluto silêncio, John
Knightley disse:

117
JA NEA USTEN

- Nunca na minha vida vi homem mais solícito


em ser agradável do que Mr. Elton. É um trabalho
extenuante para ele quando se trata de senhoras. Com
os homens mostra-se razoável e desafectado, mas,
quando pretende agradar às damas , todas as suas
feições mexem.
- Os modos de Mr. Elton não são perfeitos, -
retorquiu Ema - mas quando se vê que há vontade
de agradar, deve-se ser indulgente e, realmente, é-se
indulgente. Quando um homem faz o que pode com os
limitados meios que tem ao seu alcance, apresenta
uma vantagem sobre o negligente a quem nada falta.
Há tão perfeita benignidade e boa vontade em Mr.
Elton que ninguém pode deixar de as apreciar.
- Sim, - disse Mr. John Knightley, passado um
momento, com certa finura - parece que ele denota
uma grande dose de boa vontade por si . . .
- Por mim ! - exclamou ela, com u m sorriso de
admiração. - Julga que sej a eu o alvo de Mr. Elton?
- Confesso que me passou isso pela ideia, Ema;
pois se nunca lhe ocorreu tal coisa antes, agora pode
tomá-la em consideração.
- Mr. Elton apaixonado por mim ! . . . Que ideia!
- Não digo tanto. Mas fará bem em averiguar se
será assim ou não e orientar a sua maneira de proceder
em conformidade. Acho que a sua atitude não faz senão
encoraj á-lo. Falo-lhe como amigo, Ema. Seria melhor
que tomasse conta de si, que olhasse pelo que faz e
pelo que tenciona fazer.
- Obrigada. Mas asseguro-lhe que está completa­
mente enganado. Mr. Elton e eu somos bons amigos e
nada mais.
E Ema continuou o seu caminho, divertindo-se a
pensar nos erros que muitas vezes resultam de um
conhecimento imperfeito das circunstâncias, dos
enganos em que as pessoas de j uízo temerário caem
frequentemente; e ao mesmo tempo não estava muito
satisfeita com o cunhado, por este a j ulgar cega e
ignorante e precisada de conselhos. Mas ele nada mais
disse.

1 18
EMA

Mr. Woodhouse estava tão decidido à jornada até


Randalls que, apesar do frio cada vez mais intenso,
parecia nem se lembrar de tiritar, e acabou por se
encaminhar com a máxima pontualidade para a sua
carruage m , acompanhado d a filha mais velha,
aparentemente menos consciente do estado do tempo
que qualquer dos outro s ; achav a - s e demasiado
absorvido pela admiração que lhe causava a própria
ida e pelo prazer que seria encontrar-se em Randalls
com aquele frio, mas demasiado abafado para o sentir.
O frio, porém, era cortante; e na ocasião em que a
segunda carruagem partia caíam alguns flocos de neve
e o céu apresentava-se tão carregado que bastava uma
leve viração para embranquecer tudo em curto espaço
de tempo.
Ema depressa viu que o seu companheiro não
estava de muito bom humor. Os preparativos e a saída
com um tempo daqueles, além do sacrifício de não ficar
a fazer companhia aos filhos , eram males - contra­
riedades, pelo menos - que Mr. John Knightley de
maneira alguma apreciava; não antevia na visita nada
que compensasse o incómodo; e enquanto se dirigiam
para o presbitério, levou todo o tempo a exprimir o
seu descontentamento .
- É preciso - dizia ele - que um homem tenha
muito boa opinião de si mesmo, para pedir às pessoas
que deixem a própria lareira e afrontem um dia como
este, só para o irem ver. Deve-se julgar um_!3. companhia
muito atraente; eu nunca faria tal coisa. E um enorme
disparate . . . E a nevar como já está! . . . É uma loucura
não permitir a uma pessoa que fique confortavelmente
em casa . . . e nós também somos tolos em não nos
deixarmos ficar sossegadamente em casa quando isso
está na nossa mão ! Se fôssemos obrigados a sair com
uma tarde destas por dever ou por motivo de, negócios,
acharíamos que era um sacrifício; mas agora cá vamos
nós, de boa vontade, naturalmente com roupa mais
leve que de costume, sem desculpa nenhuma, desa­
fiando a voz da natureza, que diz ao homem, por
intermédio de tudo o que ele vê ou sente, que fique em

1 19
JA NEA USTEN

casa e se conserve tão abrigado quanto possível; cá


vamos nós passar cinco aborrecidas horas em casa de
outro homem, sem nada para dizer ou ouvir que não
tenha sido dito ou ouvido ontem e que não possa
dizer-se ou ouvir-se amanhã. Vamos com um tempo
medonho, para, provavelmente, regressarmos com
tempo pior. E, no fim de contas, deslocam-se quatro
cavalos e quatro criados unicamente para transportar
cinco criaturas ociosas , a tiritar de frio, para salas
ainda mais frias e com pior companhia do que teriam
tido em casa.
Ema não se achava disposta a dar o grato assen­
timento que , s e m dúvida nenhuma, ele estava
habituado a ouvir, equivalente ao «Tens razão, meu
amor» que, certamente, era de uso a sua companheira
de viagem proferir; m a s também teve domínio
suficiente sobre si para não dar resposta. Ela não podia
estar de acordo , mas receava tornar-se briguenta;
levou o heroísmo apenas ao ponto de guardar silêncio.
Deixava-o falar, limpava as vidraças e abafava-se
mais, mas sem abrir os lábios .
Chegaram finalmente, a carruagem deu a volta,
abaixou-se o degrau, e no mesmo instante apareceu
junto deles Mr. Elton, todo aperaltado, vestido de preto
e sorridente. Ema aguardou com prazer uma mudança
de assunto. Mr. Elton era, todo ele, amabilidade e
contentamento; mostrava-se realmente tão jovial nas
suas gentilezas que Ema começou a pensar se ele não
teria recebido acerca de Harriet notícias diferentes
daquelas que ela tinha recebido. Enquanto se estivera
preparando, tinha mandado saber do seu estado e a res­
posta tinha sido: «Quase na mesma . . . não está melhor».
- A informação que Mrs . Goddard me mandou -
disse ela - não foi tão agradável como eu esperava. A
resposta que me deram foi que não estava melhor.
O semblante de Mr. Elton assumiu logo uma
expressão grave; e a sua voz tinha um timbre de mágoa
ao dizer:
- Oh! . . . sinto muito . . . ia dizer-lhe que, quando fui
a casa de Mrs . Goddard, que foi a última coisa que fiz

120
EMA

antes me ir vestir, disseram-me que Miss Smith não


estava melhor, nada melhor, talvez pior. Estou muito
inquieto . . . tinha esperanças de que melhorasse depois
de um «cordial» que soube terem-lhe dado de manhã . . .
Ema sorriu é retorquiu:
- Creio que a minha visita foi benéfica ao seu
estado nervoso; mas nem por isso me agrada muito a
doença da garganta: é uma constipação bem violenta!
Mr. Perry tem estado a seu lado, não sei se sabe . . .
- Sim . . . creio que sim . . . isto é . . . não sabia . . .
- Ele tem-na tratado em todos estes incómodos e
espero que o dia de amanhã nos traga melhores
notícias. Mas é impossível deixar de sentir um certo
mal-estar. Uma falt,a destas num dia como o de hoje!
- Justamente ! E bem triste ... Sentiremos a falta
dela a todo o momento.
Isto era muito gentil e o sorriso que acompanhou
estas palavras era realmente muito digno de apreço;
mas devia ter durado mais tempo . Ema estava um
pouco des animada quando , meio minuto depoi s ,
principiou a falar doutras coisas, aparentando grande
alegria e contentamento .
- Que magnífico invento - dizia ela - o uso de
peles de carnejro nas carruagens ! Como tornam isto
confortável ! E impos sível sentir-se frio com tais
preventivos . As invenções modernas transformam
realmente a carruagem numa perfeita maravilha.
Está tão defendida das inclemências do tempo que
nem uma ponta de ar lá entra. O mau tempo assim
não nos mete medo. Está uma tarde muito fria . . . mas
nesta carruagem nem damos por isso. Olhem ! Está a
nevar . . .
- Sim, - disse John Knightley - acho que vamos
ter bastante neve.
- É o tempo do Na tal - observou Mr. Elton. -
É
próprio da época. E podemos dar-nos por muito felizes
que não tenha começado ontem, pois poderia impedir
a vinda de hoje, segundo todas as probabilidades, visto
que Mr. Woodhouse dificilmente se acostumaria a sair,
se visse o terreno coberto de neve; mas agora já não

121
JA NEA USTEN

faz mal . Esta quadra é, realmente, a mais própria


para o s amigos s e reunire m . Pelo Natal todos
convidam as pessoas amigas e a gente pouco se lembra
do tempo, por muito mau que esteja. Uma vez tive
que ficar em casa de um amigo durante uma semana,
bloqueado pela neve . Não havia nada mais divertido.
Tinha ido só por uma noite, e apenas pude de lá sair
daí a sete dias.
Mr. John Knightley parecia não compreender que
prazer haveria nisso, mas limitou-se a dizer, com
frieza:
- Oxalá que não fique em Randalls durante uma
semana, bloqueado pela neve.
E m qualquer outra ocasião, Ema teria achado
graça , mas naquele momento estava demasiado
espantada com o estado de espírito de Mr. Elton, para
atender a outra coisa. Harriet parecia totalmente
esquecida, perante a expectativa de uma agradável
reunião.
- Podemos ter a certeza de que há excelentes
lareiras - continuou ele - e o máximo conforto em
tudo. É uma gente encantadora, Mr. e Mrs . Weston.
Mrs . Weston, na verdade, está acima de todo o elogio,
e o marido tem exactamente as qualidades que mais
se apreciam numa pessoa: é hospitaleiro e sociável.
Há-de ser uma pequena reunião, mas num lugar em
que as pequenas reuniões são selectas : são talvez as
mais atraentes . A sala de j antar de Mr. Weston não
comporta mais do que dez pessoas, à vontade; e pela
minha parte, em tais circunstâncias, preferia faltar a
estar a mai s . Creio que deve pensar como eu -
acrescentou cortêsmente, voltando-se para Ema; -
sem dúvida, está de acordo comigo , embora Mr.
Knightley, talvez mais habituado às grandes reuniões
de Londre s , não abunde inteiramente na nossa
opinião.
- Não estou familiarizado com as grandes reuniões
de Londres, senhor . . . nunca j antei com ninguém.
- Deveras !
E em tom de espanto e comiseração:

122
EMA

- Não fazia ideia de que a j urisprudência escra­


vizasse tanto! Pois bem, senhor: lá virá o tempo em
que será compensado disso tudo, quando tiver pouco
trabalho e grandes alegrias.
- A minha primeira alegria - retorquiu John
Knightley, enquanto transpunham o portão - será
apanhar-me de novo, são e salvo, em Hartfield .

CAP Í TULO XIV

Impunha-se que cada um dos cavalheiros modifi­


casse um pouco a expressão do semblante, ao entrar
na sala de visitas de Mrs . Weston: Mr. Elton tinha
de reprimir o seu ar j ovial e Mr. John Knightley
precisava de disfarçar o seu mau humor; Mr. Elton
tinha de sorrir menos e Mr. John Knightley um pouco
mais, para não destoarem do lugar em que estavam.
Ema apenas tinha de manter o seu ar natural, isto é,
mostrar-se tão feliz como realmente se sentia. Para
ela, era uma verdadeira alegria encontrar-se com os
Westons. Nutria uma grande simpatia por Mr. Weston
e, no que se referia à esposa, não havia outra pessoa
no mundo a quem ela falasse com tanta franqueza -
ninguém de quem tivesse tanto a certeza de ser ouvida
e compreendida, ninguém que a escutasse com tanto
interesse e inteligência, quando ela descrevia os
pequenos problemas, combinações, perplexidades e
alegrias do pai e dela própria. Ema não podia dizer
nada de Hartfield em que Mrs . Weston não fosse parte
interessada; e meia hora de conversa ininterrupta a
respeito de todos esses pequenos nadas em que assenta
a felicidade diária da vida caseira era uma das mais
gratas ocupações de ambas .
Era um prazer que nem talvez aquele dia inteiro
de convívio proporcionasse, por isso que certamente
não se podia tirar dele a meia hora necessária; mas só
a presença de Mrs . Weston, o seu sorriso, a sua voz

123
JA NEA USTEN

eram suficiente motivo de satisfação para Ema e,


assim, estava resolvida a pensar tão pouco quanto
possível nas excentricidades de Mr. Elton ou no que
quer que fosse de desagradável, e a tirar o máximo
prazer daquilo que realmente lho podia oferecer.
A notícia da inoportuna constipação de Harriet já
havia chegado muito antes dela. Mr. Woodhouse j á
estava confortavelmente instalado h á tempo suficiente
para contar não só o caso, como toda a história da sua
vinda em companhia de Isabella e da de Ema, que os
seguia; acabava justamente de falar da sua satisfação
em que James v i s s e a fi l h a , quando os outros
apareceram, e Mrs . Weston, que tinha sido quase
monopolizada por ele, conseguiu afastar-se e dar as
boas-vindas à querida Ema.
A intenção de Ema de esquecer Mr. Elton por algum
tempo foi causa de que ela se enfadasse por ver que
ele, e nquanto todos estavam sentados nos seus
lugares, não saía de junto dela. Era-lhe extremamente
difícil afastar do espírito a ideia da insensibilidade
que Mr. Elton manifestava por Harriet, porquanto não
só se conservava a seu lado, como estava continua­
mente impondo à atenção dela o seu rosto radiante de
felicidade e solicitamente se lhe dirigia a todo o
momento. O seu comportamento era de tal ordem que
Ema, em lugar de se esquecer dele, não podia, pelo
contrário, evitar esta insinuação íntima:
«Haverá de facto o que o meu cunhado imagina?
Será possível, que este homem estej a trocando, no seu
afecto , Harriet por mim? . . . Que insuportável dis­
parate! » .
Contudo, não havia que negar a sua preocupação
em lhe captar as simpatias , em se mostrar extrema­
mente solícito para com seu pai e encantado com a
companhia de Mrs . Weston; e não havia que negar
até a sua admiração pelos desenhos, na qual revelava
tanto ardor e tão pouco conhecimento que mais o
faziam assemelhar-se terrivelmente a um suposto
namorado, e que era causa de que ela fizesse um certo
esforço para conservar bons modos . No seu próprio

124
EMA

interesse, não lhe convinha mostrar-se rude; e no de


Harriet, na esperança de que tudo se resolvesse ainda
como desej ava, ela continuava evidenciando cortesia;
mas era um esforço - tanto mais que entre os outros,
num momento em que atingiam o auge os incómodos
despropósitos de Mr. Elton, se dizia qualquer coisa
que ela tinha grande empenho em ouvir. Ouviu o
suficiente para saber que Mr. Weston estava dando
qualquer informação a respeito do filho; chegaram-lhe
aos ouvidos as palavras «meu filho», «Frank» e «meu
filho», repetidas veze s , e de outra meia dúzia de
palavras truncadas deduziu que ele estava anun­
ciando, para breve, a visita do rapaz ; mas, antes que
pudesse fazer calar Mr. Elton, o assunto esgotou-se
de tal forma que qualquer pergunta da sua parte que
o evocasse teria sido inoportuna.
O facto é que, a despeito da decisão de Ema em
nunca casar, havia qualquer coisa no nome e em volta
da pessoa de Mr. Frank Churchill que sempre a havia
interessado . Ela tinha pensado frequentemente -
sobretudo desde o casamento do pai dele com Miss
Taylor - que, se se resolvesse a casar, era ele a pessoa
que mais lhe convinha, tanto pela idade, como pelo
carácter e pela posição social . Afigurava-se-lhe que a
intimidade entre as duas famílias era um elemento
que o fazia destinar-se a ela. Não podia deixar de
admitir que era um casamento em que toda a gente
sua conhecida certamente pensaria. Que Mr. e Mrs .
Weston pensassem nele, disso estava ela persuadida:
e, embora não tencionasse deixar-se induzir por ele
ou por quem quer que fosse a abandonar a situação
que ela reputava mais repleta de bem-estar do que
qualquer outra que viesse a escolher, Ema sentia
grande curiosidade em ver o rapaz , uma decidida
vontade de o achar atraente, de lhe agradar dentro de
uma certa medida, e uma espécie de prazer em
supor-se casada com ele, na imaginação dos seus
amigos.
Sob o domínio de tais sentimentos, as amabilidades
de Mr. Elton eram terrivelmente inoportunas ; mas

125
JA NEA USTEN

ela, ao mesmo tempo que sofria um verdadeiro


tormento, tinha a satisfação de aparentar delicadeza,
pensando que, com certeza, o dia não terminaria sem
lhe trazer mais algum esclarecimento, parcial ou
completo, por intermédio do franco Mr. Weston . E
confirmou-se essa suposição : quando, finalmente, se
viu livre de Mr. Elton e, ao j antar, se sentou ao lado
de Mr. Weston, este aproveitou o primeiro intervalo
entre os seus deveres de hospitalidade , depois de
trinchado o carneiro assado, para lhe dizer:
- Apenas faltam dois para se completar o número
exacto. Gostava de ver aqui mais dois . . . a sua linda
amiga Miss Smith e meu filho . . . e então é que eu diria
que estávamos todos . Julgo que me ouviu dizer na
sala que esperávamos Frank . . . Recebi uma carta dele
esta manhã, em que dizia vir daqui a quinze dias .
Ema mostrou o seu agrado de forma muito con­
veniente e concordou plenamente que Mr. Frank
Churchill e Miss Smith completariam efectivamente
o número dos convivas .
- Desde Setembro que está para vir - continuou
Mr. Weston: - todas as cartas falam da sua vinda;
mas ele não dispõe de tempo . . . Tem de comprazer com
aqueles de quem depende e que - aqui entre nós -
muitas vezes apenas ficam satisfeitos à custa de
muitos sacrifícios. Mas, agora, não tenho dúvidas de
o ver cá na segunda semana de Janeiro .
- Que grande prazer que deve ser para si! E Mrs .
Weston está tão ansiosa de o conhecer que deve
sentir-se quase tão feliz como o senhor.
- Sim, é verdade; mas ela está convencida de que
vai haver outro adiamento. Não conta, tanto como eu,
com a vinda dele : é que não conhece tão bem os
pormenores como eu. O caso, bem vê . . . mas isto tem
de ficar entre nós : na sala, nem ao de leve lhe fiz
referência. Como deve saber, em todas as famílias há
segredos . . . Mas o caso é que há umas pessoas amigas
que foram convidadas a fazer uma visita a Enscombe
em Janeiro; e a vinda de Frank depende de que a ida
deles fique adiada. Se não for adiada, ele não poderá

126
EMA

vir. Mas eu sei que eles a adiam, porque se trata de


uma família com quem uma senhora de elevada
preponderância de Enscombe antipatiza particular­
mente: e se bem que se j ulgue necessário convidá-los
de dois em dois ou de três em três anos , eles adiam
sempre a ida quando chega a ocasião. Não tenho a
menor dúvida de que será o mesmo desta vez. Estou
tão certo de ver cá Frank antes do meado de Janeiro,
como estou certo de me encontrar aqui; mas a sua boa
amiga (e acenou com a cabeça para o outro, extremo
da mesa) tem tão poucas manias e estava tão pouco
habituada a elas em Hartfield, que não imagina até
onde elas podem chegar, como a minha longa prática
me tem demonstrado.
- Teria pena que houvesse dúvidas quanto à vinda
do seu filho , - retorquiu Ema - mas sinto-me
inclinada a ser da mesma opinião que o senhor, Mr.
Weston. Se j ulga que ele vem, também eu, visto que o
senhor conhece bem Enscombe .
- Sim . . . tenho alguma obrigação de conhecer,
embora nunca na minha vida lá tivesse residido. Ela
é uma mulher muito esquisita! . .. Todavia, nunca me
permitirei dizer mal dela, por causa de Frank, pois
acredito que é, muito amiga dele. Eu estava convencido
de que Mrs . Churchill não era capaz de ter amizade a
ninguém, senão a si mesma: mas tem sido sempre boa
para ele . . . à sua maneira . . . que lhe leva em conta as
pequenas manias e caprichos e acata tudo o que ela
quer. E, na minha opinião, não é pequena honra para
meu filho despertar tal afeição, pois, embora eu não o
diga a mais ninguém, o coração dela é como uma pedra
para todas as pessoas em geral. E tem um génio ! . . .
Ema gostou tanto do assunto que, pouco depois de
terem ido para a sala, começou a falar nele a Mrs .
Weston: deu-lhe os parabéns, sem, contudo, deixar de
reconhecer que o primeiro encontro devia ser um tanto
inquietador. Mrs . Weston concordou com ela; mas
acrescentou que folgaria muito em afrontar a ansie­
dade desse primeiro encontro na data a que se haviam
referido: «pois eu não conto muito com a sua vinda.

127
JA NEA USTEN

Não sou tão optimista como Mr. Weston. Receio bem


que tudo fique em nada. Mr. Weston esteve certamente
a dizer-lhe em que pé está a questão . . . »
- Sim . . . parece que conta apenas com o mau humor
de Mrs . Churchill, que eu suponho ser a coisa mais
certa deste mundo.
- Oh ! minha querida E m a ! - replicou Mrs .
Weston , sorrindo . - Como podemos fiar-nos em
caprichos?
E voltando-se para Isabella, que não tinha até então
prestado atenção :
- Saiba, minha querida Mrs . Knightley, que, na
minha opinião, não podemos ter tanto a certeza de
ver Mr. Frank Churchill como seu pai julga. Tudo
depende da disposição e dos gostos de sua tia, em
suma, do seu génio. A vós . . . às minhas duas irmãs,
posso dizer a verdade : - Mrs . Churchill é quem dita
as leis em Enscombe e é uma mulher de feitio muito
esquisito; e a vinda de Frank, agora, depende de ela
estar disposta a separar-se dele.
- Oh ! Mrs . Churchill . . . Toda a gente conhece Mrs .
Churchill - retorquiu Isabella: - nunca tive tanta
pena desse pobre rapaz como agora. Ter de viver
constantemente com uma pessoa de mau génio, deve
ser horrível . Foi coi sa que felizmente nós nunc;;t
conhecemos; mas deve ser uma vida desgraçada. E
uma bênção do céu que ela nunca tenha tido filhos!
Pobres criaturinhas , que infelizes que deviam ser com
tal mãe !
Ema desej aria estar sozinha com Mrs . Weston.
Teria então sabido mais alguma coisa: Mrs . Weston
falar-lhe-ia com uma franqueza que nunca se atreveria
a ter com Isabella; e, estava realmente convencida,
não lhe ocultaria nada que se relacionasse com os
Churchill, a não ser aqueles pontos de vista acerca do
rapaz de que a imaginação de Ema j á lhe havia dado,
instintivamente, a conhecer. Mas, por enquanto, nada
mais havia a dizer. Mr. Woodhouse em breve se lhes
reuniu na sala. Conservar-se muito tempo sentado à
mesa, depois do j antar, era uma suj eição que ele não
podia suportar. Nem o vinho nem a conversa o

128
EMA

atraíam; e , por i s s o , era com s atisfação que s e


encaminhava para j unto daquelas com quem melhor
se sentia.
No entanto, enquanto ele conversava com Isabella,
Ema achou ocasião de dizer:
- Então, não considera a visita do seu enteado
como certa? Sinto muito . A apresentação, faça-se
quando se fizer, deve ser des agradável ; por isso,
quanto mais cedo se efectuar, melhor.
- Sim; quanto mais se demora mais apreensiva
fi c o . Mesmo que e s s a famíli a , os Braithwaite s ,
desistam d e ir, ainda assim receio que arranj em
alguma desculpa que nos desiluda. Não posso admitir
que haj a alguma relutância da parte dele; mas tenho
a certeza de que da parte dos Churchills há um grande
desej o de o conservarem consigo. Há ciúmes . Eles até
ciúmes têm do afecto que ele sinta pelo pai . Em
resumo, não confio nada na sua vinda e gostaria que
Mr. Weston fosse menos optimista.
- Devia vir - disse Ema. - mesmo que fosse
apenas por dois dias, devia vir; não é concebível que
um rapaz da idade dele não tenha possibilidades de
fazer isso. Uma rapariga que caísse em más mãos, é
pos sível que s e deixasse escravi zar e conservar
afastada daqueles com quem ela gostaria de estar;
mas um homem, não se compreende que se deixe assim
dominar, a pontos de não conseguir vir passar uma
semana com o pai , se lhe apetece.
- Só vivendo em Enscombe e conhecendo os hábitos
da família é que se poderia dizer o que ele pode fazer
- explicou Mrs . Weston. - Talvez que devamos usar
da mesma precaução, ao j ulgarmos o comportamento
de um indivíduo de qualquer família, mas acho que
Enscombe não deve ser julgada pela norma geral: ela
está demasiado fora da razão e, além disso, tudo cede
diante dela.
- Mas é tão amiga do sobrinho . . . tem tanta
predilecção por ele! O caso é que, de acordo com a ideia
que faço de Mrs . Churchill, seria naturalíssimo que,
ao passo que não faz quaisquer sacrifícios em favor do
bem-estar do marido, a quem deve tudo, e usa dos

129
JA NEA USTEN

seus incessantes caprichos para com ele, fosse frequen­


temente dominada pelo sobrinho, a quem nada deve.
- Minha querida Ema, não pretenda, com o seu
carácter meigo, compreender um carácter mau ou
atribuir-lhe normas: deixe-o seguir o seu próprio rumo.
Não duvido de que Frank exerça, por vezes, con­
siderável influência; mas deve ser-lhe inteiramente
impossível conhecer de antemão quando serão essas
vezes .
Ema deixou-a falar e , em seguida, disse sim­
plesmente :
- 1\{ão me darei por satisfeita, enquanto ele não vier.
- E possível que ele exerça bastante influência
em alguns casos, - continuou Mrs . Weston - e
noutros, muito pouca. E entre aqueles em que ela está
fora do seu domínio, não é improvável que figure
justamente a circunstância de os deixar para nos vir
visitar.

CAP Í TULO XV

Não tardou muito que Mr. Woodhouse manifestasse


vontade de tomar o seu chá, e, assim que o tomou,
apeteceu-lhe regre s s ar a c a s a ; não foi pequeno
trabalho para as suas três companheiras convencê-lo
de que ainda não era tarde, até que apareceram os
restantes cavalheiros . Mr. Weston era sociável ,
conversador e nada amigo de separações prematuras ,
fossem de que género fossem; por fim, o grupo reunido
na sala foi aumentando . Mr. Elton, muito bem
disposto, foi o primeiro a entrar. Mrs . Weston e Ema
estavam sentadas no sofá. Ele aproximou-se delas
imediatamente e, sem esperar que o convidassem,
sentou-se no meio das duas .
Ema, muito bem disposta também, em virtude da
diversão que lhe proporcionara a esperança da visita
de Mr. Frank Churchill, condescendeu em esquecer
os recentes despropósitos do seu companheiro e

130
EMA

mostrar-se tão afável como dantes, e, vendo que eb �


escolhia Harriet para tema da conversa, prontificou-se
logo a escutá-lo com o mais amigável dos sorrisos .
Afirmava-se ele extremamente preocupado a
respeito da amiga de Ema - a sua formosa, adorável
e gentil amiga . « S abia ela alguma coisa? Tinha
recebido notícias desde que estavam em Randalls? Ele
sentia-se bastante inquieto . . . confessava que a natu­
reza da doença o assustava consideravelmente» . E
continuou, durante algum tempo , a falar muito
correctamente neste tom, sem esperar muito que lhe
respondessem, mas, ao mesmo tempo, suficientemente
aterrorizado pelo medo de uma doença maligna de
garganta; e Ema chegou a compadecer-se dele .
Mas, por fim, lá se deu uma mudança, maléfica; de
repente, afigurou-se a Ema que o receio que ele tinha
da doença era mais por causa dela que por causa de
Harriet - parecia desejar mais que ela não contraísse
a infecção do que não houvesse infecção na doente .
Principiou, com grande veemência, a pedir-lhe que
evitasse, por enquanto, voltar ao quarto da enferma,
- a pedir-lhe que lhe prometesse não se expor a tal
risco enquanto ele não tivesse falado com Mr. Perry e
soubesse a opinião deste; e, não obstante ela rir a bom
rir e procurar levar a conversa para o rumo con­
veniente , não houve meio de pôr fim à extrema
solicitude que ele mostrava para com ela. Ema
sentia-se vexada. Realmente tudo indicava - escu­
sado era dissimulá-lo - que ele estava enamorado
dela e não de Harriet; tal inconstância, se de facto
existia, só podia classificar-se de desprezível e abomi­
nável ! Era com dificuldade que Ema se continha. Ele
voltou-se para Mrs . Weston a suplicar-lhe auxílio:
«Não estaria ela disposta a dar-lhe o seu apoio? Não
quereria juntar as suas instâncias às dele, no intuito
de convencer Miss Woodhouse a não ir a casa de Mrs .
Goddard, enquanto ele não se certificasse de que a
doença de Miss Smith não era contagiosa? Não ficaria
tranquilo senão com uma promessa . . . não o auxiliaria
a obtê-la?» .

131
JA NEA USTEN

- Tão escrupulosa com os outros - prosseguiu ele


- e, no entanto, tão descuidada consigo ! Manifestou
desejo de que eu ficasse hoj e em casa para tratar da
minha constipação e, contudo, não é capaz de me
prometer que há-de evitar o perigo de contrair uma
inflamação ulcerada na garganta. Isto é justo, Mrs .
Weston? . . . Seja j uiz entre nós . Não acha que tenho o
direito de me queixar? Estou certo do seu apoio e do
seu auxílio.
Ema reparou na surpresa de Mrs . Weston e com­
preendeu que devia ser grande, perante uma atitude
que , tanto em linguagem como em maneiras, estava
assumindo nele a pretensão de um direito de primazia
no espírito dela; e quanto a Ema, achava-se demasiado
impaciente e melindrada para se sentir com forças de
lhe falar abertamente como convinha. Apenas pode
deitar-lhe um olhar; mas esse olhar foi tal que ela
ficou convencida de que devia tê-lo chamado à razão .
Em seguida, deixou o sofá e mudou-se para uma
cadeira ao lado da irmã, a quem passou a prestar toda
a atenção.
Não teve tempo para ver como Mr. Elton tinha
acolhido a reprimenda, tão rápida foi a mudança para
outro assunto; com efeito, Mr. John Knightley entrava
naquele momento na sala, depois de ter ido perscrutar
o tempo, e começava a explicar-lhes que o solo estava
coberto de neve e que esta continuava a cair em grande
quantidade, acompanhada de forte ventani a ; e ,
concluindo, dirigiu-se desta forma a Mr. Woodhouse:
- Isto é um esplêndido começo para as suas visitas
de Inverno, senhor. . . É uma novidade para o seu cocheiro
e para os seus cavalos fazerem o caminho através de
uma tempestade de neve .
O pobre Mr. Woodhouse não disse palavra, de tão
consternado que ficou, mas todos os demais encon­
traram qualquer coisa para lhe dizer: ou se mostraram
surpreendidos ou não, ou acharam, qualquer pergunta
para lhe fazer ou alguma palavra que o tranquilizasse.
Mrs . Weston e Ema fizeram todo o possível para o

1 32
EMA

animar e desviar-lhe a atenção do genro, que prosse­


guia triunfante e com uma certa crueldade.
- Admirei-me bastante da sua resolução, - disse
ele - de se aventurar com este tempo . . . Naturalmente,
havia de ver que não tardaria muito que caísse neve .
Toda a gente via que ia nevar. Admirei-me da sua
coragem; atrevo-me, pois, a dizer que podemos muito
bem regressar a casa. Mais uma hora ou duas de neve
não devem tornar a estrada intransitável; e nós temos
duas carruagens : se uma for arrastada para o meio
da charneca gelada, temos outra à mão. Estou certo
de que havemos de chegar sem novidade a Hartfield,
antes da meia-noite.
Mr. Weston, encarando o triunfo de maneira
diferente, confessava que j á sabia há algum tempo
que estava nevando, mas que não dissera palavra para
não incomodar Mr. Woodhouse e dar-lhe assim motivo
para se ir embora à pressa. E quanto a haver muita
neve caída ou em vias de cair, que impedisse o regresso,
isso não passava de mero gracejo; o que ele temia é
que não encontrassem dificuldade nenhuma. Dese­
j aria que a estrada estivesse intransitável, para ter a
oportunidade de os albergar a todos em Randalls; e
e stava convencido de que , com boa vontade , s e
arranjaria acomodação para toda a gente . Invocava o
apoio da esposa e dizia que, com um pouco de ima­
ginação, todos se poderiam aloj ar, o que ela não sabia
bem como, visto haver só dois quartos vagos na casa.
- Que havemos de fazer, minha querida Ema? . . .
que havemos de fazer? - foi a primeira exclamação
de Mr. Woodhouse, e, durante algum tempo, não pode
dizer mais nada.
Ema via que ele precisava de conforto; e, à força de
lhe assegurar que não havia perigo, lembrando-lhe a
excelência dos cavalos, a perícia de James e a presença
de tantos amigos em volta dele, conseguiu reanimá-lo
um pouco.
O medo da filha mais velha igualava-se ao dele. O
terror de ficar detida em Randalls , enquanto as
crianças se encontravam em Hartfield, preenchia-lhe

1 33
JA NEA USTEN

a imaginação; e, figurando-se que a estrada estivesse


naquele momento apenas transitável para pessoas
arroj adas, mas num estado que não admitia delongas ,
estava desejosa de convencer o pai e Ema a ficarem em
Randalls, enquanto ela e o marido partiriam imediata­
mente através de todas as possíveis acumulações de
neve que , porventura, se lhes opusessem no caminho.
- Talvez fosse melhor mandares j á aprontar a
carruagem , meu amor - disse ela. - Creio que
havemos de passar, se formos já; e se houver algum
transtorno, eu posso muito bem continuar a pé. Não
tenho medo nenhum. Não me importo de fazer metade
do caminho a pé. Era questão de tirar os sapatos
quando chegasse a casa; e o frio não me assusta.
- Sim? . . . - retorquiu o marido. - Pois, minha
querida Isabella, é a coisa mais extraordinária deste
mundo, visto que, em geral, estás sempre com frio. Ir
a pé até casa ! . . . Os teus sapatos são delicados de mais
para uma marcha dessas . O caminho já é bastante
mau para os cavalos . . .
Isabella voltou-se para Mrs . Weston, esperando
aprovação ao seu plano. Mrs . Weston não podia deixar
de o aprovar. Isabella voltou-se então para Ema; mas
Ema não se sentia muito disposta a abandonar a
esperança de que pudessem partir todos j untos; e
ainda discutiam a questão, quando Mr. Knightley, que
havia saído da sala depois de o irmão ter informado
que estava a cair neve, voltou e lhes disse que tinha
estado lá fora e podia garantir que nada obstava a
que partissem, quando entendessem, quer fosse j á,
quer daí a uma hora. Havia passado a meia-laranj a,
fôra um bocado pela estrada de Highbury, e vira que
a neve em p arte alguma atingira mais de meia
polegada de altura e, em muitos sítios , mal bran­
queava o solo; naquele momento, caíam alguns flocos,
mas as nuvens dissipavam-se e tudo indicava que não
tardaria o bom tempo. Falara com os cocheiros, e ambos
concordaram com ele em que nada havia a temer.
A Isabella foi grande o alívio que, estas notícias
causaram, e por Ema não podiam deixar de ser bem

1 34
EMA

acolhidas por causa do pai, que se mostrou logo tão


tranquilo sobre esse ponto quanto lho permitia o seu
temperamento; mas o susto que apanhara não podia
desvanecer-se a ponto de ele se sentir à vontade
enquanto permanecesse em Randalls . Estava satis­
feito por, ao presente, não haver perigo em regressar
a casa, mas não havia garantias que o convencessem
de que era seguro ficar; e enquanto os outros se apres­
savam a fazer os seus preparativos de partida, Mr.
Knightley e Ema resolviam-na em poucas palavras:
- O seu pai parece não estar muito sossegado; por
que não vão?
- Se os outros estão prontos, eu também estou.
- Toco a campainha?
- Sim, toque.
Tocou-se a campainha e mandou-se aprontar a
carruagem. Minutos depois, j á Ema esperava ver
instalado na sua casa e com o espírito mais calmo um
dos incómodos companheiros, e presenciar no outro o
regresso da boa disposição, visto haver terminado a
visita.
Veio a carruagem e Mr. Woodhouse, sempre o
primeiro a ser atendido nestas ocasiões, foi solicita­
mente acompanhado ao seu lugar por Mr. Knightley
e por Mr. Weston; mas nenhum deles pôde impedir
que ele se alarmasse de novo à vista da neve que, de
facto, estava caindo, e da noite mais escura do que
esperava. «Receava uma má viagem. Temia que a
pobre Isabella não se desse bem. E , além disso, havia
a pobre Ema, que vinha na outra carruagem, atrás .
Não sabia o que seria melhor. Deviam conservar-se
tão j untos quanto possível» . E James recebeu ordem
de ir devagar e esperar pela carruagem.
Isabella entrou depois do pai ; John Knightley,
esquecendo-se de que não fazia parte do mesmo grupo,
subiu muito naturalmente atrás da mulher, de
maneira que Ema, depois de ter entrado na segunda
carruagem com Mr. Elton, verificou que fechavam a
portinhola e que eles teriam de fazer o percurso sós .
Se não fossem as suspeitas surgidas nesse dia, não

135
JA NEA USTEN

teria experimentado a menor contrariedade nesse


momento, antes teria sentido prazer; poderia falar-lhe
de Harriet, e as três quartas partes de uma milha não
lhe pareceriam mais do que uma. Mas agora preferia
que aquilo não sucedesse. Estava convencida de que
ele havia bebido uma dose apreciável do excelente
vinho de Mr. Weston e tinha a certeza de que só lhe
iria dizer disparates .
N o intuito d e o conter, tanto quanto possível, por
meio de uma atitude conveniente, ela preparou-se,
desde logo , para lhe falar, com absoluta calma e
gravidade, do estado do tempo e da noite; mas , mal
havia começado, mal tinham ultrapassado a meia­
-laranja e alcançado a outra carruagem, quando ela
se viu subitamente interrompida por Mr. Elton, que
lhe agarrava na mão com todas as mostras de um amor
violento. Valia-se daquela preciosa oportunidade para
lhe declarar sentimentos que j á deviam ser bem
conhecidos - tinha esperança . . . receava . . . adorava-a . . .
e estava disposto a morrer s e ela o repelisse; mas , ao
mesmo tempo, convencia-se de que a sua fervorosa
dedicação, o seu amor sem igual, a sua paixão sem
exemplo, não deixaria de exercer algum efeito - em
resumo , o seu mais intenso desej o era que fosse
favoravelmente acolhido o mais cedo possível . Era, de
facto , assim. Sem mostrar escrúpulos , sem pedir
desculpas, sem qualquer espécie de timidez, Mr. Elton,
o apaixonado de Harriet, declarava-se apaixonado por
Ema. Esta tentou impor-lhe silêncio, mas em vão; ele
continuou , até dizer tudo o que tinha para dizer.
Apesar de irritada, decidiu, no mesmo instante ,
conter-se e não dizer o que lhe apetecia. Compreendia
que aquele despropósito era mais embriaguez que
outra coisa e, por isso, esperava que não durasse muito
tempo. Assim, em tom meio sério meio jocoso, que ela
achava ser o que melhor se adaptava ao seu estado,
replicou:
- Estou muito admirada, Mr. Elton! A mim uma
coisa dessas? . . . Esquece-se . . . o senhor toma-me pela
minha amiga . . . terei muito prazer em transmitir

136
EMA

qualquer recado a Miss Smith . . . mas, por favor, a mim,


não me fale mais assim.
- Miss Smith ! . .. Um recado a Miss Smith! Que,
diabo quer dizer com isso? . . .
E repetiu as palavras dela com tal firmeza de tom,
com um espanto tão sincero, que Ema não pode deixar
de replicar com uma certa vivacidade:
- Mr. Elton, o seu procedimento é muito extraor­
dinário! E eu não posso interpretá-lo senão de uma
maneira: o senhor não está em si; de contrário, não se
me dirigia dessa forma. Domine-se e não diga mais
nada, que eu farei o possível por esquecer tudo.
Mas Mr. Elton, de vinho apenas tinha bebido a
quantidade suficiente para lhe despertar a coragem e
não para lhe baralhar as ideias . Ele sabia perfeita­
mente o que dizia; e depois de haver protestado
veementemente contra tal suspeita, que considerava
inj uriosa, e ter, de passagem, afirmado a sua estima
por Miss Smith - confessando-se, porém, admirado
de que Miss S mith fo s s e ali citada , renovou os
protestos da sua paixão e insistiu por uma resposta
favorável .
À medida que ela se ia convencendo de que ele não
e s tava embriagad o , mais se cap acitava da s u a
inconstância e d a sua presunção; e, resolvendo pôr de
parte � delicadeza, retorquiu:
- E -me impossível duvidar mais. O senhor foi
bastante claro . Mr. Elton, o meu espanto está muito
acima de toda a expressão. Depois da atitude que eu
testemunhei durante o mês passado, para com Miss
Smith . . . depois das atenções que eu estava habituada
a observar dia a dia . . . dirigir-se-me dessa maneira . . .
revela realmente uma falta de firmeza de carácter que
eu não julgava possível! Creia-me, senhor, estou longe,
muito longe, de me sentir lisonj eada por ser alvo de
tais protestos !
- Deus d o céu - exclamou Mr. Elton - que quer
isto dizer? . . . Miss Smith! Eu nunca pensei em Miss
Smith em toda a minha vida . . . nunca tive para com
ela outras atenções que não fossem aquelas que me

137
JA NEA USTEN

merecia como sua amiga. Nunca me importei que ela


fosse morta ou viva, senão nessa qualidade. Se ela
supôs outra coisa, foram os próprios desejos que a
iludiram , o que muito lamento . . . lamento mesmo
muito. Mas Miss Smith, realmente ! . . . Oh! Miss Wood­
house! Quem se lembra de Miss Smith, quando Miss
Woodhouse está ao pé? Não, j uro pela minha honra
que não há falta de firmeza de carácter. Pensava
unicamente em si . Garanto que nunca prestei a menor
atenção a mais ninguém. De há muitas semanas para
cá que todas as minhas palavras , todas as minhas
acções, têm tido por único obj ectivo afirmar a minha
adoração por si. Seriamente, não pode ter a menor
dúvida a tal respeito. Não ! - e num tom que pretendia
ser insinuante - Estou certo de que viu isso e me
compreendeu.
Seria impossível definir o estado de espírito de Ema
ao ouvir estas palavras . De todas as sensações
desagradáveis que experimentara, esta atingia o mais
elevado grau . Sentia-se demasi ado opressa para
responder imediatamente; e como o silêncio que, por
momentos, se fez desse suficiente estímulo ao estado
de optimismo de Mr. Elton, este tentou pegar-lhe, de
novo, na mão, ao mesmo tempo que dizia:
- Encantadora Miss Woodhouse! Permita-me que
interprete o seu silêncio desta forma: diz-me ele que
há muito me compreendeu.
- Não, senhor, - exclamou Ema - não diz nada
disso! Muito ao contrário de o compreender, eu tenho
estado até hoje completamente iludida a respeito das
suas intenções . Sinto muito que lhe tenha inspirado
quaisquer sentimentos . . . Nada podia estar mais longe
dos meus desejos . . : a sua dedicação à minha amiga
Harriet, a perseguição que lhe fazia (perseguição,
parecia-me a mim) dava-me grande prazer, e eu
desejaria sinceramente que fosse bem sucedido . Mas
se eu tivesse j ulgado que não era ela quem o atraía a
Hartfield, certamente teria considerado importunas
as suas frequentes visitas . Devo acreditar que nunca

138
EMA

procurou insinuar-se particularmente no ânimo de


Miss Smith? . . . Que nunca pensou seriamente nela?
- Nunca, minha senhora - exclamou ele, ofendido
por seu turno; - nunca, garanto-lhe ! Eu, pensar
seriamente em Miss Smith? . . . - Miss Smith é muito
boa rapariga e eu teria muito gosto em que ela fizesse
um bom casamento. Desejo-lhe todas as felicidades; e
não duvido de que haj a muitos homens que se não
recusem a . . . Mas cada um no seu lugar: eu julgo que
não me encontro em situação tão crítica que deva
desesperar de fazer uma aliança igual, a ponto de ter
que recorrer a Miss Smith . . . Não, minha senhora, as
minhas visitas a Hartfield eram unicamente por sua
causa; e o incentivo que recebi . . .
- Incentivo?! E u dei-lhe algum incentivo, senhor? . . .
S e j ulgou isso, enganou-se redondamente. Vi e m si
apenas o admirador da minha amiga. O senhor não
podia ser para mim mais do que um vulgar conhe­
cimento. Lamento bastante, mas é bom que os enganos
terminem quando devem . Se isto persistisse, Miss
Smith seri a , porventura , induzida a uma fal s a
interpretação das suas intenções, visto que, provavel­
mente, não estava mais cônscia do que eu da enorme
desigualdade a que o senhor é tão sensível. . . Mas ,
assim, o desengano é fácil e, estou certa, não será de
efeitos duradoiros. Por enquanto, não tenho ideias de
me casar.
Ele estava zangado de mais para dizer alguma
coisa, e o modo de Ema era demasiado terminante
para provocar réplica. E neste estado de vivo ressenti­
mento e profunda mortificação de parte a parte ,
tiveram eles de se conservar lado a lado, durante
alguns minutos ainda, visto que os temores de Mr.
Woodhouse os obrigavam a fazer o percurso passo a
passo. Se a irritação não fosse tão grande, ter-se-ia
feito sentir um insuportável constrangimento; mas o
seu evidente estado de excitação não permitia os
pequenos ziguezagues de uma atitude de embaraço.
Sem notarem que a carruagem dava a volta para a
a zinhaga do presbitério e , fi n almente , parav a ,

139
JA NEA USTEN

encontraram-se, de súbito, à porta dele ; e antes que


se dissesse «alguma palavra mai s , descia ele da
carruagem. Ema achou então indispensável dar-lhe
as boas-noites . A saudação foi retribuída com frieza e
arrogância; e, com o ânimo indescritivelmente irritado,
Ema partiu então para Hartfield.
Uma vez ali , foi acolhida com extremos de alegria
pelo pai, que estivera todo o tempo em ânsias ,
lembrando-se dos perigos daquele traj ecto solitário,
desde a azinhaga do presbitério, - o voltar daquela
esquina em que nem queria pensar . . . nas mãos
estranhas de um cocheiro qualquer . . . ainda se fosse
James . . . E tudo parecia esperar apenas pela sua
chegada para correr b e m : com efeito , Mr. John
Knightley, envergonhado do seu mau humor, todo ele
era agora amabilidade e delicadeza e mostrava-se tão
solícito para com Mr. Woodhouse que, se não estava
disposto a saborear com ele uma tigela de caldo de
aveia, pelo menos reconhecia inteiramente os seus
salutares efeitos; e o dia terminou em paz e conforto
para toda a família, excepto para Ema. O seu espírito,
na verdade, nunca passara por tão grande pertur­
bação, e ela necessitava de desenvolver violento esforço
para parecer atenta e bem disposta, até que a habitual
hora de recolher lhe permitisse encontrar alívio nas
reflexões em sossego.

CAP ÍTULO XVI

Depois de se ter penteado e de haver despedido a


cri a d a , E m a , de ânimo abatido , quedou - s e e m
cogitaçõe s . E r a realmente um c a s o b e m triste ! A
derrocada de todos os seus proj ectos - o funesto
desfecho de todos os seus planos! Que golpe para
Harriet! E isto era o pior de tudo . De uma forma ou de
outra, todo aquele negócio lhe acarretava desgosto e
humilhação; mas, comparado com a infelicidade de

140
EMA

Harriet, tudo o mais pouco valia; de boa vontade


suportaria, ainda mais do que agora, o reconhecimento
do seu erro, a consciência de umjuízo falso, se os efeitos
da sua imprudência se limitassem a si própria.
«Se eu não tivesse persuadido a Harriet a gostar
do homem, eu podia bem suportar tudo. Comigo bem
podia ele redobrar de pretensões . . . Mas a pobre
Harriet! . . . »
Como podia ela ter-se enganado daquela forma? . . .
Ele protestava que nunca pensara a sério em Harriet . . .
nunca! Ela bem procurava recordar-se; mas era tudo
tão confuso! Supunha haver criado a ideia e feito com
que tudo a seguisse. As atitudes dele, porém, haviam
sido, com certeza, demasiado obscuras , hesitantes,
dúbias, de contrário não se teria ela deixado iludir
assim .
O retrato ! . . . Como ele se havia mostrado ansioso
pelo retrato ! . . . E a charada! E dezenas de outras
c_ircunstâncias! Como elas pareciam apontar Harriet! . . .
E facto que a charada com aquela «inteligência» a par
do «olhar suave» - não se adequava a uma nem a
outra; era uma misturada sem gosto nem verdade.
Quem teria distinguido alguma coisa através de tão
estúpido disparate?
Realmente tinha achado, sobretudo ultimamente,
os seus modos para com ela excessivamente corteses,
mas isso tinha sido interpretado como uma simples
falta de discernimento, de conhecimentos , de gosto,
como uma prova, entre muitas outras , de que ele nem
sempre tinha vivido na melhor sociedade; e de que,
com toda a sua polidez, carecia, por vezes, de uma
verdadeira elegância de maneiras ; mas , até ao
presente, j amais suspeitara, um instante sequer, que
tudo isso significasse outra coisa que não fosse gratidão
e respeito para com ela, como amiga de Harriet.
A Mr. John Knightley era ela devedora da sua
primeira ideia sobre o caso, resultante do primeiro
vislumbre de possibilidade. Não se podia negar que
os dois irmãos eram perspicazes. Lembrava-se do que
Mr. Knightley lhe havia uma vez dito a respeito de

141
JA NEA USTEN

Mr. Elton, do aviso que lhe tinha feito, da convicção


que ele nutria de que Mr. Elton j amais faria um
casamento imprudente; e corava ao reconhecer quanto
não era mais profundo o conhecimento então revelado
acerca do carácter dele do que o que ela atingira. Era
horrivelmente humilhante; mas Mr. Elton estava-se
mostrando, sob muitos aspectos, o reverso exacto do
que ela d e s ej ava e acreditava existir n e l e : era
arrogante, presunçoso e enfatuado; zelava muito os
seus direitos e pouco se importava com os sentimentos
dos outros .
Contrariamente à evolução habitual dos factos, a
pretensão de Mr. Elton em a cortej ar havia-o dimi­
nuído no seu conceito . Os seus protestos e as suas
propostas não lhe tinham sido de utilidade . A ela não
só não intere s s ava o seu afecto , como se sentia
insultada pelas suas esperanças . Ele queria casar bem
e, depois de ter a petulância de erguer os olhos para
ela, pretendia estar apaixonado ; mas Ema estava
perfeitamente tranquila quanto à reacção produzida
nele pela sua repulsa: não sofreria qualquer desilusão
de que merecesse a pena ocupar-se. Nem na sua
linguagem nem nos seus modos havia revelado um
verdadeiro afecto . Suspiros e palavras bonitas ,
tinha-os esbanj ado em abundância; mas ela dificil­
mente teria imaginado conj unto de expressões ou
fantasiado tom de voz menos repassados de amor. Não
valia a pena incomodar-se em se compadecer dele. Mr.
Elton o que queria era engrandecer-se e enriquecer;
e como Miss Woodhouse de Hartfield, herdeira de
trinta mil libras, não era tão facilmente obtível como
supusera, cedo faria a tentativa j unto de outra Miss
Beltrana com vinte mil libras, ou mesmo dez mil.
Mas que ele falasse de incentivo, que a julgasse
assaz cônscia das suas intenções para aceitar a sua
corte e pensar, afinal, em casar com ele ! - que a
considerasse igual a si em categoria e inteligência! -
que desdenhasse da sua amiga, por julgá-la, como bom
conhecedor da escala hierárquica, abaixo de si, mas

142
EMA

tão cego para o que lhe ficava acima, a ponto de não


se supor presunçoso ao cortej á-la: era insultante !
Talvez que não fosse razoável esperar dele a noção
de quanto lhe era inferior em talento e em todas as
subtilezas do espírito . A própria desproporção nesse
capítulo devia impedir a sua pretensão; mas, ao menos,
devia saber que ela, em fortuna e posição social, lhe
era muito superior. Devia saber que os Woodhouses
- o mais moderno ramo de uma antiquíssima família
- há muitas gerações que se haviam estabelecido em
Hartfield - e que os Eltons não eram ninguém. Os
bens de raiz de Hartfield não eram, evidentemente,
consideráveis, visto que não passavam de uma espécie
de entalhe no domínio de Donwell Abbey, a que
pertencia todo o resto de Highbury; mas a fortuna da
família, provinda doutras origens, era tão importante
que a colocava, quanto a categoria social, num plano
escassamente inferior até à de Donwell Abbey; e os
Woodhouses há muito que desfrutavam de elevado
lugar na consideração dos habitantes da região, aonde
Mr. Elton tinha chegado há menos de dois anos, para
governar a sua vida conforme podia, sem outras
relações fora do seu meio, sem outra coisa que o
destacasse senão a sua profissão e os seus modos
corteses . No entanto, Mr. Elton tinha-se convencido
de que ela se enamorara dele; era um evidente excesso
de confiança em si próprio. E Ema, depois de ter
divagado um pouco sobre a aparente incongruência
entre a delicadeza de maneiras e o espírito enfatuado,
teve de reconhecer honestamente que a sua atitude
para com ele havia sido tão complacente e cativante,
tão cheia de amabilidade e de atenções, que - mesmo
supondo despercebido o seu verdadeiro móbil - era
de molde a autorizar qualquer homem dotado de
vulgar poder de observação e igual delicadeza de
sentimentos, como Mr. Elton, a imaginar-se decidi­
damente preferido. Se ela havia tão erradamente
interpretado os seus sentimentos , pouca razão tinha
para se admirar de que ele, com o egoísmo a cegá-lo,
se tivesse enganado com os dela.

1 43
JA NEA USTEN

O primeiro e mais grave erro partira de si mesma.


Era uma tolice, era uma falta importante tomar parte
tão activa na aproximação de duas pessoas . Era
arri s c a r - s e muito , era atrevimento demasiado ,
pretender dar um carácter frívolo ao que devia ser
sério, complicar aquilo que devia ser simples . Sentia-se
aflita e envergonhada e decidida a nunca mais usar
de tais atitudes .
- Eis o que fiz - dizia ela: - induzi a pobre Harriet
a afeiçoar-se de mais a esse homem . Nunca teria,
porventura, pensado nele, se não fosse eu; e, com
certeza, nunca teria nutrido aspirações a seu respeito,
se eu a não tivesse assegurado do seu afecto, pois
Harriet é tão modesta e humilde quanto eu estava
habituada a considerá-lo, a ele . Oh! Por que não me
contentei em persuadi-la a não aceitar o jovem Martin?
Nisso tive toda a razão. Até aí procedi com acerto;
mas devia ter parado então e deixado o resto ao tempo
e ao acaso. Apresentei-a na boa sociedade e ofereci-lhe
oportunidade de agradar a qualquer homem digno;
não devia ter ido mais além . E agora, pobre rapariga!
tem a paz do espírito perturbada, sabe-se lá por quanto
tempo ! A minha amizade para com ela ficou a meio;
se ela não se ressentisse muito com este contratempo,
estou certa de que ninguém lhe conviria melhor que
William Coxe . . . Oh, não ! Não posso suportar William
Coxe . . . um jovem advogado sem escrúpulos.
D eteve-se e riu-se do próprio relap s o ; depoi s ,
recomeçou, desta vez sob u m prisma mais sério, mais
desanimador, as cogitações sobre o que tinha sucedido,
o que podia suceder e o que devia suceder. As
embaraçosas explicações que devia a Harriet e tudo o
que a pobre Harriet iria sofrer com o constrangimento
provocado por futuros encontros, a dificuldade em
continuar ou em cessar a intimidade, em ocultar os
sentimentos , em dissimular o ressentimento , em
evitar a divulgaç ã o , eram s u fi cientes para lhe
ocuparem o espírito em tristíssimas reflexões durante
mais algum tempo, até que, finalmente, se foi deitar,

144
EMA

sem ter estabelecido outra coisa que não fosse a


convicção de haver terrivelmente errado.
A j uventude e a natural alegria de Ema, embora
temporariamente ofuscadas à noite, a custo deixarão
de se reanimar com o regresso do dia. A j uventude e
a alegria da manhã estão em feliz analogia e são de
poderoso efeito; e, se a aflição não for assaz excitante
para conservar os olhos abertos , eles abrir-se-ão, com
certeza, a sensações de dor suavizada e de esperança
mais luminosa.
Ema levantou-se no dia seguinte mais disposta a
encarar tudo com optimismo do que quando se deitara,
mais inclinada a ver na sua frente alívios para o mal
e a confiar mais numa razoável libertação.
Era de grande lenitivo que Mr. Elton não estivesse
verdadeiramente apaixonado por ela, nem se tivesse
mostrado tão particularmente cativante que lhe
custasse disiludi-lo - que a índole de Harriet não fosse
daquele género superior em que os sentimentos são
de uma acuidade e de uma retentiva extremas - e
que não houvesse necessidade de alguém, além dos
três interessados , saber o que se tinha passado,
sobretudo por causa do pai, a quem o facto incomodaria.
E stes pens amentos eram bem animadores ; e a
perspectiva de uma grande camada de neve lá fora
ainda lhe foi de utilidade, pois tudo o que justificasse
a circunstância de se encontrarem afastados uns dos
outros era bem-vindo .
O tempo favorecia-a consideravelmente ; embora
fosse dia de Natal, ela não iria à igreja. Mr. Woodhouse
afligir-se-ia se a filha o houvesse tentado, e ela estava
a s s i m a coberto de s u s citar ou de ouvir ideias
desagradáveis e da máxima inconveniência. Com o
solo coberto de neve e a atmosfera nesse estado incerto
de gelo e degelo, que é, entre todos , o mais impróprio
para se sair, as manhãs ora de chuva ora de neve, e as
noites geladas , Ema ficou em casa involuntariamente
pri s i oneira durante muitos d i a s . C o m H arriet
nenhuma comunicação era possível senão por escrito;
para ela, nem no dia de Natal, nem ao Domingo, houve

145
JA NEA USTEN

prática n a i grej a ; e p ar a M r . Elton não havi a


necessidade de apresentar desculpas por se conservar
ausente.
Estava um tempo que, com razão, obrigava toda a
gente a fi c ar em c a s a ; e embora e l a e s tive s s e
convencida d e que ele i a realmente aprazendo com a
companhia de outras pessoas , era bem agradável ver
o pai tão satisfeito por Mr. Elton ficar prudentemente
em casa, e ouvi-lo dizer a Mr. Knightley, para quem
não havia tempo que impedisse de ir a Hartfield:
- Ah! Mr. Knightley, porque não fica em casa como
o pobre Mr. Elton?
Esses dias de reclusão teriam sido, se não houvesse
as suas preocupações íntimas , notavelmente apra­
zíveis, por o que tal retiro convinha perfeitamente ao
cunhado, cuj o estado de espírito assumia sempre ,
grande importância para quem o acompanhava;
demais, ele havia-se libertado de tal forma do seu mau
humor de Randalls, que, durante o resto da sua
permanência e m H artfi e l d , nunca fraquej o u a
afabilidade de que era possuidor. Mostrava-se sempre
agradável e cativante, falando amavelmente de toda
a gente . No entanto, com todas as perspectivas de
alegria e com todo o consolo de uma dilação , a
preocupação da hora das explicações com Harriet
continuava a assediar Ema de tal forma que lhe era
impossível sentir-se absolutamente tranquila.

CAP Í TULO XVII

Mr. e Mrs . John Knightley não se demoraram muito


mais em Hartfield. O tempo em breve se tornou
propício a que saíssem aqueles que precisavam de sair;
e Mr. Woodhouse, apesar de ter tentado, como de
costume, persuadir a filha a ficar com os pequenos,
não teve outro remédio senão ver a família partir,
voltando às suas lamentações sobre o destino da pobre

146
EMA

Isabella - o que não obstava a que a pobre Isabella,


passando a vida no meio daqueles que mais amava,
convicta das suas qualidades , cega para os seus
defeitos e sempre solícita sem reservas, pudesse ser
tomada como modelo de perfeita felicidade feminina.
Na tarde do mesmo dia em que eles partiram, Mr.
Woodhouse recebeu de Mr. Elton uma carta, uma
longa, amável e cerimoniosa carta, em que, com os
s e u s melhores cumprimento s , lhe d i z i a que s e
propunha deixar Highbury n o dia seguinte, d e manhã,
para se dirigir a B ath, onde , em s atisfação de
insistentes pedidos de pessoas amigas , se compro­
metera a passar algumas semanas, e que lamentava
muito que o estado do tempo e os seus numerosos
afazeres o impossibilitassem de se despedir pes­
soalmente de Mr. Woodhouse, de cujas delicadas
atenções ele guardaria para sempre grata recordação
- sentir-se-ia, pois, feliz em cumprir as ordens que
Mr. Woodhouse houvesse por bem dar- lhe.
Ema ficou agradavelmente surpreendida. Nada de
melhor se podia desejar do que a ausência de Mr. Elton
naquela altura. Admirou-lhe a ideia, se bem que não
pudesse dar-lhe muito crédito, pela forma como ele a
anunciava. O seu ressentimento não podia ser mais
claramente p atenteado do que ao usar daquela
fórmula de delicadeza para com seu pai, da qual ela
era excluída de uma maneira tão evidente. O seu nome
nem ao de leve era citado; e nessa circunstância havia
uma mudança tão flagrante, uma gravidade tão
afectada nos seus cumprimentos de despedida, que
Ema, a princípio, pensou que tudo isso não deixasse
de despertar suspeitas no pai.
No entanto, não despertou. Mr. Woodhouse ficou
tão tomado de espanto por aquela viagem resolvida
tão de improviso e assaltou-o tal receio de que Mr.
Elton não chegasse sem novidade ao seu termo, que
nada notou de extraordinário na sua forma de se
expressar. Foi uma carta muito proveitosa, pois
forneceu-lhe novo tema para reflexões e conversação

147
JA NEA USTEN

durante o resto do seu serão solitário. Mr. Woodhouse


falava das suas inquietações e Ema sentia-se com
razoável disposição para as afastar, com a sua habitual
vivacidade .
Resolveu então não deixar Harriet, por mais tempo,
na ilusão. Tinha razões para crer que a amiga em breve
estaria restabelecida da constipação, e era de desejar
que ela dispusesse do máximo de tempo possível para
se curar da outra doença, antes do regresso do vigário.
Nessa conformidade , Ema, logo no dia seguinte ,
dirigiu-se a casa de Mrs . Goddard, disposta a sofrer a
penitência da revelação; e bem severa que ela era!
Iria destruir todas as esperanças que tão habilmente
alimentara - aparecer sob o antipático aspecto de
preferida -confessar-se grosseiramente iludida em
todas as suas ideias, em todas as suas conclusões, em
todas as suas convicções, em todas as suas previsões
das últimas seis semanas .
A confissão fê-la sentir-se de novo envergonhada e
as lágrimas de Ester levaram-na a pensar que j amais
se perdoaria a si própria.
Harriet suportou a revelação muito bem - não
censurou ninguém e revelou em tudo tal subtileza de
espírito e tão humilde opinião de si própria, que ,
naquele momento, se ergueu no conceito da amiga.
Ema achava-se predisposta a apreciar ao máximo
a simplicidade e a modéstia; e tudo o que era bondade,
tudo o que era afectividade, lhe parecia estar do lado
de Harriet e não do seu. Harriet entendia que nada
tinha de que se queixar. O afecto de um homem como
Mr. Elton teria sido para ela uma considerável
distinção. Jamais o mereceria - e ninguém senão uma
amiga fiel e bondosa como Miss Woodhouse o teria
admitido como possível .
As lágrimas caíam-lhe abundantes - mas a sua
mágoa era tão despida de artifício que nenhum título
de nobreza as teria tornado mais respeitáveis aos olhos
de Ema, que a ouvia e tentava consolar, aplicando
coração e raciocínio, convencida então de que Harriet
era das duas a que se revelava superior e que, para se

148
EMA

equiparar a ela, teria de contribuir mais com o seu


bem-estar e a sua felicidade do que com o talento e a
inteligência.
Era um pouco tarde para afectar simplicidade de
espírito e ignorância; mas deixou-a, com a firme
resolução de ser humilde e discreta e de reprimir os
voos da imaginação, todo o resto da vida. O dever que
agora se lhe impunha, depois daqueles que tinha para
com o pai , era reconfortar Harriet e esforçar-se por
lhe provar a sua amizade por meio de um sistema
melhor do que o de planear casamentos . Levou-a
consigo para Hartfield e usou para com ela da mais
inalterável afabilidade, empenhando-se em a distrair
e, por meio de livros e de conversação, tirar-lhe Mr.
Elton da ideia.
Ela bem sabia que tinha de se dar tempo a que isso
se verificasse por completo; e não podia deixar de se
considerar um mau juiz em tal matéria, em geral, e
muito pouco inadequada para compreender uma
afeição a Mr. Elton , em particular; mas afigura­
va-se-lhe admissível que, na idade de Harriet e com a
inteira destruição de todas as esperanças, o processo
se encaminhasse para um estado de serenidade
quando do regresso de Mr. Elton, de tal forma que
lhes permitisse, a todos, encontrarem-se, de novo,
dentro da ordinária rotina da convivência, sem perigo
algum de que se traíssem quaisquer sentimentos ou
se desse incremento a eles.
É verdade que Harriet lhe atribuía todas as
perfeições e não admitia a existência de mais ninguém
que o equivalesse em beleza e em bondade - e
realmente mostrava nutrir por ele um amor mais firme
do que Ema tinha previsto; no entanto, parecia-lhe
tão natural, tão inevitável , reprimir um afecto não
correspondido, que não podia compreender que este
persistisse por muito tempo, com a mesma inten­
sidade .
Se Mr. Elton, no seu regresso, manifestasse a sua
indiferença de forma tão evidente e insofismável como
Ema estava convencida de que era o seu mais ardente

149
JA NEA USTEN

desejo, ela não podia conceber que Harriet teimasse


em se considerar feliz só em o ver e pensar nele.
O facto de terem a vida fixada, tão radicalmente
fixada, na mesma terra, era mau para cada um deles,
mau para todos três. Nenhum tinha possibilidades de
deslocação, nem de efectuar qualquer modificação nas
relações . Eram obrigados a encontrar-se uns com os
outros e a sair-se o melhor possível da dificuldade.
Harriet teve ainda de sofrer os remoques das suas
companheiras da escola de Mrs . Goddard, porque Mr.
Elton era o ídolo de todas as professoras e das alunas
mais crescidas; só em Hartfield havia possibilidade
de ela ouvir falar dele com moderação ou repulsa. Onde
quer que se tivesse produzido a ferida, ali tinha que
se encontrar a cura; e Ema sentia que, enquanto não
vi sse Harriet em vias de cura, não haveria paz
completa para si.

CAP Í TULO XVIII

Mr. Frank Churchill não veio. Estava próximo o


dia da vinda, quando Mrs . Weston viu justificados os
seus receios pela chegada de uma carta de desculpas .
Naquele momento, não podia dispor de si, com «grande
pena e mortificação suas ; no entanto, nutria espe­
ranças de ir a Randalls em data não muito distante» .
Mrs . Weston ficou extremamente contrariada -
muito mais contrariada, de facto, que o marido, se
bem que a sua confiança na vinda do rapaz tivesse
sido muito moderada: mas uma índole optimista,
embora, de ordinário, espere que as coisas corram
melhor do que realmente correm, nem sempre paga
as suas esperanças com a correspondente depressão
de ânimo . Mr. Weston ficou surpreendido e triste
durante meia hora; mas, depois começou a compre­
ender que a vinda de Frank, dois ou três meses mais
tarde, seria de muito maior conveniência - a época

150
EMA

era melhor, o tempo mais favorável, e o rapaz teria,


sem dúvida alguma, mais possibilidades de se demorar
com eles do que teria se viesse mais cedo.
E s t e raciocínio depre s s a lhe restituiu a boa
disposição, ao passo que Mrs . Weston, de feitio mais
apreensivo, não previa senão a repetição das desculpas
e dos adiamentos; e depois de todo o seu cuidado pelo
que o marido iria sofrer, ainda sofria muito mais.
Ema, por esta altura, não se encontrava num estado
de espírito que lhe permitisse preocupar-se muito com
o facto de Mr. Frank Churchill não vir, a não ser na
medida em que constituía um desapontamento em
Randalls. A apresentação , então, não lhe oferecia
atractivo algum. O que ela desejava era tranquilidade
e manter-se afastada de todas as tentações; todavia,
dada a conveniência de aparentar, tanto quanto
possível, a sua maneira de ser habitual, ela cuidou de
manifestar tanto interesse pelo facto e tomar tanta
parte no desgosto de Mr. e de Mrs . Weston quanto
naturalmente a sua amizade exigia.
Foi ela a primeira pessoa que o anunciou a Mr.
Knightley; mostrou até onde era necessário (ou talvez,
um pouco mais, visto que desempenhava um papel) o
seu espanto pela forma de proceder dos Churchills,
que teimavam em manter o rapaz afastado. Depois,
prosseguindo, começou a dizer mais coisas do que
sentia - da vantagem de tal acréscimo ao meio
diminuto do Surrey, do prazer de ver uma nova cara,
do dia de festa que seria para Highbury quando ele
chegasse - e, terminando mais uma vez com reflexões
sobre os Churchills, achou-se logo em desacordo com
Mr. Knightley, apercebendo-se, para grande regozijo
seu, de que estava advogando o outro lado da questão,
consoante a sua própria maneira de pensar, ao mesmo
tempo que fazia uso dos argumentos de Mrs . Weston
contra si mesma.
- É muito provável que os Churchills sej am
culpados, - dizia Mr. Knightley - mas acho que ele,
se quisesse, vinha.

151
JA NEA USTEN

- Não compreendo porque fala assim. Ele tem o


máximo empenho em vir; mas o tio e a tia é que não
lho permitem.
- Mão me convenço de qu� ele não possa vir, desde
que imponha a sua vontade. E demasiado inverosímil
para eu o acreditar sem provas .
- O senhor é muito esquisito ! Que fez Mr. Frank
Churchill para o s e nhor o supor uma criatura
anormal?
- Eu não o julgo de modo algum anormal, quando
admito que ele tenha aprendido a colocar-se acima
dos seus parentes e a importar-se pouco com tudo que
não sej a o próprio prazer, visto que viv� com aqueles
que sempre lhe deram esse exemplo. E muito mais
natural do que se podia desejar que um rapaz educado
por pessoas orgulhosas , mesquinhas e egoístas , sej a
orgulhoso, mesquinho e egoísta também. Se Frank
Churchill tivesse vontade de ver o pai, tê-lo-ia feito
entre Setembro e Janeiro. Um homem da sua idade
- que idade tem? vinte e três ou vinte e quatro . . . -
não podia deixar de ter meios ao seu alcance para o
fazer. E impossível que não os tenha.
- Isso é fácil de dizer! O senhor, que teve sempre
liberdade de acção, fala bem . . . Neste mundo não há
pior j uiz das dificuldades de um estado de depen­
dência, Mr. Knightley. O senhor não sabe o que é lidar
com feitios .
- Não se concebe que um homem de vinte e três
ou vinte e quatro anos não tenha liberdade de gostos
ou de acção a tal ponto. Não lhe deve faltar dinheiro . . .
n e m lhe deve faltar tempo . S abemos que, pelo
contrário, dispõe tanto de ambas as coisas, que para
ele é um prazer desembaraçar-se delas, nos mais
frívolos lugares do reino. Ouvimos a todo o momento
dizer que está nesta ou naquela instância de águas .
Há pouco, estava ele em Weymouth. Isto prova que
pode deixar os Churchills .
- Sim, às vezes , pode.
- E essas vezes são quando ele entende que vale
a pena, quando o prazer o tenta.

1 52
EMA

- É muito pouco justo apreciar o procedimento de


alguém, sem um íntimo conhecimento da sua situação.
Ninguém que não tenha vivido na intimidade de uma
família pode avaliar as dificuldades de que qualquer
membro dessa família, porventura, sofra. Tínhamos
de conhecer a fundo Enscombe e o feitio de Mrs .
Churchill , antes de pretendermos pr5munciar-nos
sobre o que o sobrinho dela pode fazer. E possível que
ele, umas vezes , estej a habilitado a agir com mais
liberdade do que outras .
- Há uma coisa, Ema, que um homem pode sempre
fazer, se quiser - o seu dever. Não com ardis ou
subtilezas, mas com firmeza e decisão. E o dever de
Frank Churchill é mostrar respeito pelo pai. Ele sabe
que é assim, como o demonstram as suas promessas
e as suas cartas; mas, se desejasse fazê-lo, tê-lo-ia feito.
Um homem que se sentisse com razão, diria sem
rodeios, simplesmente, resolutamente, a Mrs. Churchill:
« E n contrar-me-ão sempre pronto para todos os
sacrifícios que tendam a satisfazer-lhes um mero
prazer; mas agora devo ir ver meu pai imediatamente .
Sei que ele se melindraria se eu deixasse de lhe
testemunhar, na presente ocasião, este sinal de
respeito . Portanto , partirei amanhã» . Se ele lhes
falasse assim, em tom decisivo, próprio de um homem,
não haveria oposição à sua vinda.
- Não, - disse Ema, rindo - mas talvez houvesse
ao seu regresso. Uma linguagem dessas para um rapaz
que vive em completa dependência! Ninguém senão
Mr. Knightley imaginaria possível uma coisa dessas .
Mas o senhor não faz ideia das exigências que impõem
situações absolutamente opostas à sua. Mr. Frank
Churchill a dirigir-se dessa forma ao tio e à tia, que o
criaram e que o sustentam ! . . . Parado no meio da sala,
a levantar a voz para eles ! . . . Como pode admitir a
possibilidade de tal atitude?
- Fique certa, Ema, de que um homem sensato
não encontraria dificuldade alguma. Sentia a razão
do seu lado; e a declaração - feita, naturalmente ,
como um homem de bom senso deve fazer, isto é,

1 53
JA NEA USTEN

delicadamente - beneficiá-lo-ia mais, elevá-lo-ia


mais, fortaleceria mais a sua situação perante aqueles
de quem depende, do que toda a série de artifícios e
exp edientes de que p o s s a ter u s a d o . Ao afecto
acrescentar-se-ia o respeito . Haviam de compreender
que podiam confiar nele - que o sobrinho, procedendo
lealmente para com o pai, procederia lealmente para
com eles, pois sabem tão bem como ele e como toda a
gente, que era seu dever fazer uma visita ao pai; e
enquanto exercerem a s u a m e s quinha coacção ,
afastando-o do cumprimento desse dever, no fundo do
coração não hão-de fazer elevado j uízo dele, visto que
se submete aos seus caprichos. O respeito pela lealdade
toda a gente sente. Se ele procedesse dessa forma, por
princípio, inabalavelmente, regularmente, o espírito
acanhado dos tios curvar-se-ia perante o seu.
- Duvido. O senhor gosta muito de subj ugar os
espíritos acanhados ; mas quando esses espíritos
acanhados são de pessoas ricas e preponderantes, acho
que elas têm a habilidade de os fazer inchar, até que
fiquem tão indomáveis como os espíritos largos . Sou
levada a crer que , se o senhor, tal como é, Mr.
Knightley, se visse, de um instante para o outro ,
colocado na situação de Mr. Frank Churchill, seria
capaz de dizer e fazer exactamente o que acabou de
exigir para ele - e é pos sível que tirasse bons
resultados . Os Churchills não teriam uma palavra
para argumentar; mas, então , não devia ter que
romper com hábitos de obediência e de respeito há
muito radicados . A ele, que os tem, não devia ser fácil
assumir, do pé para a mão, uma independência
completa, e reduzir a nada os direitos dos tios à sua
gratidão e à sua estima. É possível que ele tenha uma
noção exacta da rectidão como o senhor, mas que não
se encontre em circunstâncias tão favoráveis para
proceder de acordo com ela.
- Então, é porque a noção não é tão exacta. Se não
permite que se chegue a igual resultado, é porque não
há igual convicção.
- Oh ! E a diferença de situação e de hábitos?

1 54
EMA

Lembre-se do que um mancebo respeitador poderia


sentir ao opor-se abertamente aqueles que , desde
criança, está acostumado a venerar.
- O seu mancebo respeitador, se é esta a primeira
vez que ele procura levar avante a sua resolução de
proceder bem contra a vontade de outrem, é um
mancebo muito fraco. Nesta altura, já devia ser nele
um hábito cumprir o seu dever, em lugar de consultar
as conveniências . Posso, admitir o medo numa criança,
mas não num homem. A medida que ia aprendendo a
raciocinar, devia despertar e sacudir de si tudo o que
fosse indigno da sua autoridade. Devia ter-se oposto
à primeira tentativa dos tios o fazerem menosprezar
o pai . Tivesse ele procedido como devia, que agora não
haveria quaisquer dificuldades .
- Nunca estaremos d e acordo a respeito dele -
exclamou Ema;- mas isso nada tem de extraor­
dinário. Não tenho a menor ideia de que ele sej a um
fraco; tenho a certeza de que o não é. Mr. Weston não
seria cego a ponto de não ver tal coisa, embora se trate
do próprio filho; mas é muito provável que possua uma
índole mais complacente, mais pacífica, do que quadra
às suas noções de perfeição no homem . Acho que
possui; e embora essa circunstância o prive de algumas
vantagens , oferece-lhe muitas outras .
- Sim; todas as vantagens de permanecer imóvel
quando deve mexer-se, de levar uma vida de ociosidade
e de se supor extremamente hábil por encontrar
desculpas para tal . Sabe escrever uma carta muito
bonita, cheia de floreados, de protestos e de falsidades,
e convence-se de que descobriu o melhor método do
mundo para garantir a paz em casa e impedir e o
pai tenha o direito de se queixar. As suas cartas
enJ oam-me.
- O senhor pensa de uma forma muito esquisita!
Elas parecem agradar a toda a gente.
- Duvido de que agradem a Mrs . Weston. Pouco
devem agradar a uma mulher de bom senso e fina
sensibilidade, que ,ocupa o lugar de mãe, sem o amor
de mãe a cegá-la. E por causa dela que é duplamente

1 55
JA NEA USTEN

devida uma certa atenção a Randalls, e ela deve


duplamente sentir essa negligência. Se Mrs . Weston
fosse uma pessoa de elevada posição, creio que ele teria
vindo e não veria nisso qualquer inconveniente . Julga
que a sua amiga é alheia a esta espécie de consi­
derações? Supõe que ela não tem dito tudo isto, de si
para si, muitas vezes? Não, Ema, o seu respeitador
mancebo pode ser respeitad!Jr (aimable) apenas em
francês, mas não em inglês . E possível que sej a muito
aimable, que tenha boas maneiras, que sej a muito
agradável ; mas não deve ter nenhuma delicadeza
britânica para com os sentimentos dos outros; nele,
nada há de respeitador.
- O senhor parece empenhado em fazer mau juízo
dele .
- E u ! . . . De maneira alguma - retorquiu Mr.
Knightley, um pouco agastado. - Eu não pretendo
fazer mau juízo dele . Reconhecer-lhe-ia as qualidades
com tão boa vontade, como a qualquer outro homem;
mas não me consta que as tenha, a não serem as de
carácter meramente pessoal - é elegante e bem
constituído e usa de modos afáveis e insinuantes .
- Pois bem : m e s m o q u e n a d a m a i s tivesse a
recomendá-lo, seria considerado em Highbury como
um tesouro . Aqui não se vêem com muita frequência
rapazes elegantes, educados e corteses . Não se deve
ser exigente a ponto de s� pretenderem todas as
virtudes ainda por cima. E capaz de calcular, Mr.
Knightley, a sensação que a vinda dele há-de produzir?
Não se falará doutra coisa nas paróquias de Donwell
e Highbury; não haverá outro assunto, outro objecto
de curiosidade . Só se ouvirá falar de Mr. Frank
Churchill : em mais ninguém se há-de pensar.
- Desculpar-me-á a teimosia. Se achar que ele é
uma pessoa com quem valha a pena conversar, terei
muito prazer em travar conhecimento com ele; mas
se for apenas um peralvilho falador, não me ocupará
muito o tempo, nem os pensamentos.
- A minha opinião é que ele é capaz de adaptar a
conversação ao gosto de cada um e tem a faculdade,

156
EMA

assim como a vontade, de se tornar agradável a todos.


A si, falar-lhe-á de lavoura; a mim, de pintura ou de
música; e assim sucessivamente a toda a gente, visto
que possui conhecimentos gerais de todos os assuntos,
que o habilitam tanto a seguir a orientação da conversa
como a orientá-la com a devida propriedade, e a falar
correctamente sobre tudo. Esta é a ideia que faço dele.
- E a minha - retorquiu Mr. Knightley com calor
- é que , se ele é , d e s s a espéci e , é o tipo mais
insuportável desta vida ! . .. O quê ! aos vinte e três anos
reinar sobre o seu auditório - o grande homem, o
experiente político que lê no pensamento de todos e se
aproveita dos outros, para pôr em destaque a sua
superioridade, que lisonj eia a torto e a direito, no
intuito de fazer com que todos pareçam tolos com­
parados com ele ! Minha querida Ema, o seu bom senso
não suportaria um velhaco dessa ordem.
- Nada mais direi a respeito de Mr. Frank
Churchill - exclamou Ema; - o senhor vê o mal em
tudo. Temos ambos ideias preconcebidas ; o senhor
contra, eu a favor dele . E não vejo probabilidade de
chegarmos a acordo, enquanto ele, de facto, cá não
estiver.
- Ideias preconcebidas ! Eu não tenho qualquer
ideia preconcebida.
- Mas tenho eu, e muitas , e não sinto vergonha
por isso. A minha amizade por Mr. e Mrs . Weston é
causa de que haj a em mim um nítido preconceito em
seu favor.
- Ele é uma destas pessoas de que eu nunca me
lembro, desde que começa o mês até que acaba - disse
Mr. Knightley, um tanto agastado, o que fez com que
Ema começasse imediatamente a falar doutra coisa,
se bem que não compreendesse porque estaria ele
zangado.
Nutrir antipatia por um rapaz , s ó porque ele
parecia possuir uma índole diferente da dele, era
indigno da perfeita imparcialidade que ela estava
habituada a reconhecer em Mr. Knightley, pois, a

157
JA NEA USTEN

despeito do alto conceito em que se tinha, circunstância


de que Ema inúmeras vezes o acusara, ela nunca
supusera, por um momento sequer, que isso o tornasse
injusto para com os méritos do outro.

CAP Í TULO XIX

Ema e Harriet tinham andado a passear toda a


manhã e, na opinião de Ema, haviam falado de Mr.
Elton o suficiente para todo o dia. Ela não podia
admitir que , para l enitivo de H arriet ou como
penitência dos seus próprios pecados, fosse preciso
mais; por isso, no caminho para casa, ia tratando
habilmente de se ver livre do assunto. Mas , quando
julgava que o tinha conseguido, ele reapareceu e Ema,
como falasse durante algum tempo de quanto os pobres
deviam sofrer no Inverno e não recebesse outra
resposta além de um lamentoso: «Mr. Elton é tão bom
para os pobres ! » , entendeu que tinha de tomar outras
medidas .
Aproximavam-se então da casa em que habitavam
Mrs . e Miss Bates . Resolveu ir visitá-las , procurando
assim salvação junto de outras pessoas . Havia sempre
razão plausível para essa atenção; Mrs . e Miss Bates
gostavam de que as visitassem, e ela sabia que era
considerada, pelos raros que pretendiam ver nela
imperfeições, como um pouco negligente nesse capítulo
e que não contribuía com o que devia para a escassa
provisão de distracções das duas senhoras .
Tinha ouvido muitas insinuações de Mr. Knightley
e algumas dá própria consciência quanto à sua falta
- mas nenhuma conseguia rebater a convicção de
quanto eram desagradáveis tais visitas - a perda de
tempo, a conversa enfadonha, além de todo o horror
do perigo de se encontrar com gente da classe média
e da classe baixa, que eram visitas da casa há muito
tempo, razão por que Ema raramente lá ia. Mas agora

1 58
EMA

tomara a súbita resolução de não lhes passar à porta


sem entrar - atendendo, como observou a Harriet, a
que , segundo calculava, deviam estar a salvo de
qualquer carta de Jane Fairfax.
O prédio era habitado por gente de negócios . Mrs .
e Miss Bates ocupavam o rés-do-chão; e foi ali, na
exígua saleta, que era tudo para elas, que as visitantes
foram recebidas com a máxima cordialidade e até
acolhidas com gratidão; a simpática velhinha, que se
entretinha com a sua malha, sentada no canto mais
agasalhado, quis até ceder o lugar a Miss Woodhouse,
e a filha, mais activa, mais faladora, quase opri­
mindo-as de solicitude e amabilidade, agradecia-lhes
a visita, tirava-lhes os sapatos , perguntava ansiosa
pela saúde de Mr. Woodhouse, informava-as alegre­
mente da de sua mãe e oferecia-lhes bolos do aparador.
Mrs . Cole acabava de sair dali ; fora lá por dez
minutos, mas tivera a gentileza de se demorar uma
hora com elas, havia comido uma fatia de bolo e tivera
a amabilidade de dizer que gostara muito; portanto,
esperava que Miss Woodhouse e Miss Smith lhes
fizessem o favor de comer também um bocadinho .
A referência aos Coles seria, com certeza, seguida
de outra a Mr. Elton. Existia intimidade entre eles, e
Mr. Cole recebera noticias de Mr. Elton desde que este
havia partido. Ema já sabia o que vinha em seguida;
tiveram de ficar cientes do que a carta dizia, de quanto
tempo ele havia estado ausente, do seu compromisso
com os amigos, de como era bem acolhido em toda a
parte aonde ia, de como estivera animado o baile do
mestre de cerimónias , etc. Ema suportou tudo muito
bem, mostrando todo o interesse e fazendo todas as
apreciações que o assunto requeria, e antecipando-se
sempre a Harriet no intuito de evitar que ela dissesse
palavra.
Para isso, tinha-se ela preparado antes de entrar;
mas contava - uma vez que havia levado primo­
rosamente a termo a conversa a respeito do Mr. Elton
- não mais ser incomodada com qualquer outro tema
maçador e poder espraiar-se à vontade acerca de todas

1 59
JA NEA USTEN

as damas e donzelas de Highbury e das suas partidas


de cartas . Não estava preparada para a contingência
de Jane Fairfax suceder a Mr. Elton; mas este foi
positivamente atirado para o lado por Miss Bates, que,
saltando de repente para os Coles, acabou por anunciar
uma carta da sobrinha.
- Oh! Sim . . . Mr. Elton, bem sei . . . decerto os bailes . . .
Mrs . Cole disse-me que o s bailes d e Bath eram . . . Mrs .
Cole teve a amabilidade de estar algum tempo
connosco a conversar a respeito de Jane, pois assim
que entrou perguntou por ela . . . Jane é tão estimada
por eles! Todas as vezes que ela cá vem, Mrs . Cole não
sabe como melhor há-de mostrar a sua bondade ; e
digo-lhe que Jane o merece tanto como qualquer outra.
Por isso, Mrs . Cole começou logo por perguntar por
ela, dizendo : «Sei que não tem tido notícias de Jane
ultimamente , visto que esta não tem tempo para
es crever» . E quando eu lhe dis s e : «Mas tivemos
notícias, recebemos uma carta esta manhã! » , mos­
trou-se tão surpreendida como nunca vi ninguém .
«Sim? Palavra de honra? . . . -exclamou ela - Pois é
uma coisa inesperada. E que diz Jane?».
A delicadeza de Ema aconselhou-a logo a dizer, com
sorridente interesse:
- Recebeu então há pouco notícias de Miss Fairfax?
Folgo imenso! Espero gue estej a bem . . .
- Muito obrigada! E muito amável ! - retorquiu a
feliz e iludida tia, ao mesmo tempo que procurava,
impaciente, a carta. - Ah ! Cá está. Eu tinha a certeza
de que não podia estar longe . Sabe? Tinha-lhe posto
em cima a minha caixa de costura, sem dar por isso,
e não a via . . . mas , como tinha estado com ela na mão
há tão pouco tempo, quase tinha a certeza de que se
encontrava em cima da mesa. Estive a lê-la a Mrs .
Cole, e, depois de esta se ter ido embora, li-a outra vez
a minha mãe . . . ela gosta tanto . . . uma carta de Jane . . . -
que nunca se cansa de a ouvir ler. Por isso, sabia que
não podia estar longe, e a carta aqui está, exactamente
debaixo da minha caixa de costura . . . E j á que a menina

1 60
EMA

é tão amável, que quer saber o que Jane, diz . . . Mas ,


primeiro que tudo, para fazer j ustiça a Jane, devo
pedir-lhe desculpa por ela escrever uma carta tão
curta. Vê? Só duas páginas . . . e incompletas . . . quando
a maior parte das vezes enche o papel todo e ainda
escreve metade de través . Minha mãe admira-se
muitas v e z e s de que eu as perceba tão b e m . É
frequente ela dizer-me , depois de aberta a carta:
«Vamos lá a ver, Hetty, se és capaz de decifrar essa
baralhada» - não é, mamã? E eu então digo-lhe que
tenho a certeza de que ela também havia de ser capaz
de a decifrar, palavra por palavra, se não tivesse
ninguém que o fizesse em seu lugar . . . estou certa de
que não tirava os olhos da carta enquanto não tivesse
compreendido todas as palavras . E, de facto, embora
minha mãe não tenha a vista tão boa como tinha, ainda
vê muito bem com óculos , graças a Deus ! Abençoados
óculos ! Os de minha mãe são realmente muito bons.
Jan e , quando cá está, diz muitas vezes : «E stou
convencida, avó, de que devia ter tido muito bons olhos
para ver ainda como vê . . . e fazer trabalhos tão
delicados como faz! Eu só queria que a minha vista se
conservasse assim tão boa» .
Tudo isto foi dito com tal rapidez que Miss Bates
se viu obrigada a parar para tomar fôlego; entretanto,
Ema exprimiu delicadamente a opinião de que a letra
de Miss Fairfax era esplêndida.
- E muito gentil! - exclamou Miss Bates, extre­
mamente reconhecida. - A menina é tão bom juiz e
escreve com tanta perfeição ! Nenhum elogio me podia
dar tanto prazer como o de Miss Woodhouse. Minha
mãe não ouve; não sei se sabe que é um pouco surda.
Mamã, - acrescentou, voltando-se para a mãe -
ouviu o que Miss Woodhouse teve a amabilidade de
dizer a respeito da letra de Jane?
E E m a teve a s atisfação de ouvir o seu leve
cumprimento duas vezes repetido, até a boa velhota o
perceber. Entretanto, ia estudando a possibilidade de,
sem parecer indelicada, esquivar-se à carta de Jane
Fairfax, e já estava quase resolvida a apresentar

1 61
JA NEA USTEN

qualquer desculpa nesse sentido, quando Miss Bates


se voltou para ela e lhe prendeu de novo a atenção.
- Como vê, a surdez de minha mãe é insignifi­
cante . . . um quase nada. Basta que eu eleve a voz e
diga as coisas duas ou três vezes, para ela ouvir; mas
a verdade é que está habituada à minha voz . É , porém,
de admirar que ela oiça sempre Jane melhor do que
eu. Jane fala tão distintamente ! No entanto, não vai
achar a avó mais surda que há dois anos, o que é
alguma coisa para a idade de minha mãe . . . realmente,
sabe? Já se passaram dois anos desde que ela cá esteve.
Nunca estivemos tanto tempo sem a ver, e, como disse
a Mrs . Cole, agora nem sabemos como melhor havemos
de a receber.
- Esperam então Miss Fairfax para breve?
- Oh ! Esperamo-la na próxima semana.
- Sim? . . . Dou-lhes muitos parabéns !
- Obrigada! É muito amável ! É verdade . . . n a pró-
xima semana. Estão todos tão surpreendidos ! E toda
a gente nos diz as mesmas amabilidades. Estou certa
de que Jane se há-de sentir tão feliz por ver os seus
amigos de Highbury como estes por a verem a ela.
Pois é na sexta ou no sábado que Jane vem: não pode
dizer em qual dos dias, porque o coronel Campbell
há-de precisar da carruagem num desses dias . São
tão bons para ela que lha dispensam para toda a
jornada! Mas , como sabe, sempre assim foram. Pois
na sexta ou no sábado cá a temos . É o que ela diz . É
por esse motivo que nos escreve fora da norma, como
nós costumamos dizer, pois, se assim não fosse, só na
terça ou na quarta-feira teríamos notícias dela.
- Sim, também o supunha. Eu até temia que hou­
vesse poucas probabilidades de saber hoj e alguma
coisa a respeito de Miss Fairfax.
- Ficamos-lhe tão reconhecidas ! Pois não teríamos
recebido notícias, se não fosse esta circunstância
particular de a termos cá em breve . Minha mãe está
tão contente ! . . . É que ela vem passar três meses
connosco, pelo menos . Três meses, diz ela textual-

1 62
EMA

mente, conforme vou ter o prazer de lhe ler. A questão


- sabe? - é que os Campbell vão à Irlanda. Mrs. Dixon
convenceu os pais a irem vê-la quanto antes. Eles não
tencionavam partir antes do Verão, mas ela está tão
ansiosa por vê-los, pois até casar, em Outubro passado,
nunca esteve afastada deles mais de uma semana, e,
ainda por cima, lhe parece muito esquisito encon­
trarem-se . . . em reinos diferentes, ia eu a dizer . . . pelo
menos, em países diferentes; por isso, escreveu uma
carta muito urgente à mãe . . . ou ao pai -confesso que
não sei a qual deles foi, mas daqui a pouco verei na
carta de Jane - escreveu em nome de Mr. Dixon e em
seu próprio nome, insistindo que fossem sem demora,
que eles os iriam esperar a Dublin, donde partiriam
todos para a sua casa de campo, em Baly-Craig, um
sítio muito pitoresco, creio eu. Jane tem ouvido muitas
vezes falar da beleza do lugar -julgo que a Mr. Dixon . . .
não m e consta que o tenha ouvido a outra pessoa;
mas era muito natural - não é verdade? - que ele
gostasse de falar da sua terra, na época em que
namorava . . . e Jane costumava sair com eles, pois o
coronel e Mrs . Campbell tinham todo o cuidado em
que a filha não saísse muitas vezes sozinha com Mr.
Dixon, o que não lhes censuro . Naturalmente , ela
ouvia tudo o que ele dizia a Miss Campbell, a respeito
da sua casa da Irlanda; e eu tenho uma ideia de ela
nos mandar dizer que Mr. Dixon lhe tinha mostrado
algumas fotografias do lugar que ele próprio tinha
tirado . Deve ser um rapaz muito atencioso e encan­
tador. Jane, só de o ouvir, ficou logo com vontade, de
ir à Irlanda.
No mesmo instante, Ema, como se lhe atravessasse
o espírito viva e subtil suspeita relativa a Jane, ao
encantador Mr. Dixon e à circunstância de ela não ir
à Irlanda, disse, com o mais disfarçado desígnio de
descobrir alguma coisa mais:
- Devem sentir-se muito contentes por ter sido
permitido a Miss Fairfax vir para cá por essa ocasião.
Dada a particular amizade que a une a Mrs . Dixon,

1 63
JA NEA USTEN

tinham todos os motivos para não esperar que o coronel


e Mrs . Campbell a dispensassem de os acompanhar.
- Realmente, assim é. Era disso mesmo que nós
tínhamos receio, pois não gostávamos muito de a ter
tão longe de nós, todo esse tempo . . . sem poder vir, se
sucedesse qualquer coisa. Mas , como vê, tudo corre
pelo melhor. Eles (Mr. e Mrs . Dixon) insistem, com
todo o empenho, para que vá com o coronel e Mrs .
Campbell; contam mesmo com isso. Nada há mais
amável e cativante que o convite que juntaram - diz
a Jane , como verá daqui a pouco. Mr. pixon parece
que nunca se esquece de ser atencioso. E um homem,
encantador! Desde aquele serviço que prestou a Jane,
em Weymouth, quando eles foram dar um passeio pelo
mar e ela, por causa de qualquer desarranjo súbito
nas velas , ia ser atirada pela borda fora, e realmente
assim sucederia se não fosse ele que , com a mais
completa presença de espírito, a agarrou pelo vestido . . .
tremo s ó d e m e lembrar! . . . E desde que soubemos do
caso, fiquei tão amiga de Mr. Dixon! . . .
- Mas, apesar das instâncias dos seus amigos e do
seu próprio desejo de visitar a Irlanda, Miss Fairfax
prefere dedicar a si e a Mrs . Bates o tempo de que
dispõe,, não é verdade?
- E verdade . . . a decisão foi exclusivamente dela; o
coronel e Mrs . Campbell acham que ela faz muito bem.
Ter-lho-iam aconselhado , pois entendem que deve
experimentar o clima natal, porque ultimamente não
tem andado muito boa.
- Sinto muito ! Acho que eles pensam com acerto.
Mas Mrs . Dixon é que vai ficar muito contrariada.
Mrs . Dixon, suponho eu, nem por isso é muito bonita,
pois não? Não se pode comparar de maneira alguma
com Miss Fairfax, não é verdade?
- Oh! pois não. A menina é muito amável em nos
dizer essas palavras . . . mas, realmente, é assim mesmo.
Não há comparação possível entre elas . Miss Campbell
foi s empre feia . . . mas extremamente elegante e
atenciosa.
- Sim, naturalmente .

1 64
EMA

- Jane apanhou uma constipação muito forte -


pobre pequena! - em 7 de Novembro (conforme lh�
hei-de ler) e, desde então, nunca mais ficou boa. E
tempo de mais para se curar de uma constipação, não
acha? Ela nunca, falou nisso antes, porque não nos
queria assustar. E o feitio dela: é tão discreta! Todavia,
está tão longe de se encontrar boa que os seus bons
amigos, os Campbell, acham que o melhor que ela tem
a fazer é vir para casa e experimentar este ar que
sempre lhe fez bem; e - eles não duvidam de que três
ou quatro meses em Highbury a hão-de curar por
completo . . . e, de facto, é muito preferível que ela venha
para cá do que para a Irlanda, se está doente. Ninguém
poderia tratar dela como nós .
- Também m e parece que é a melhor solução.
- E por isso deve vir na sexta ou no sábado, e os
C ampbells p artem da cidade para Holyhead na
segunda-feira seguinte . . . como verá pela carta de Jane.
Uma coisa tão inesperada ! . . . Bem deve calcular,
querida Miss Woodhouse, a confusão que isto me fez !
S e não fosse a nuvem negra da sua doença . . . mas tenho
medo de a ver muito magra e com mau aspecto .
Confesso que isso para mim seria uma tristeza. Eu
sempre tive por costume ler primeiro para mim as
cartas de Jane, antes de as ler em voz alta a minha
mãe - sabe? - com receio de que venha nelas alguma
coisa que a aflija. Jane quis que eu fizesse assim, e
por isso o tenho feito: e hoj e também usei da minha
habitual precaução; mas , assim que cheguei à altura
em que ela me dizia que não estava bem, não me pude
conter que não dissesse, assustada: «Meu Deus ! A
pobre Jane está doente ! » . E minha mãe, que estava
atenta, ouviu distintamente e ficou logo alarmada: No
entanto, depois de continuar a ler, verifiquei que o
caso não era tão grave como julgara a princípio; e agora
mostro-me tão pouco preocupada, que ela j á não está
tão aflita. Mas não sei como me precipitei ! Se Jane
não se puser boa depressa, teremos de chamar Mr.
Perry. Não se olhará a despesas; mesmo que ele, dada
a sua generosidade e a sua amizade por Jane, não

1 65
JA NEA USTEN

queira levar nada pelos seus serviços , não consen­


tiremos em tal coisa, como deve calcular. Ele tem
esposa e filhos a sustentar e o seu tempo não é para
desperdiçar. Bem! Agora que lhe dei uma ideia do que
Jane mandou dizer, vamos à carta: estou certa de que
ela há-de contar melhor as coisas do que eu.
- Tenho muita pena, mas temos de nos ir embora
- disse Ema, relanceando um olhar para Harriet e
começando a levantar-se . . . - porque meu pai está à
nossa espera. Quando entrei, não tencionava . . . não
podia demorar-me mais de cinco minuto s . Vim
visitá-las , porque não queria passar à sua porta sem
saber como estava Mrs . Bates; mas a conversa foi tão
agradável, que me demorei sem dar por isso ! Contudo,
agora temos de nos despedir: desej amos muito bom
dia a si e a Mrs . Bates.
E nada houve que a convencesse a ficar. Apa­
nhou-se de, novo na rua - congratulando-se pelo facto
de, não obstante se ter visto constrangida a ouvir a
súmula da carta de Jane Fairfax, haver conseguido
esquivar-se à própria carta.

CAP Í TULO XX

Jane Fairfax era órfã e filha única da filha mais


nova de Mrs . Bates.
O matrimónio do Tenente Fairfax, do . . . regimento
de infantaria, e de Miss Jane Bates havia tido a sua
época de fama e de prazere s , de esperanças e de
interesses; mas agora nada restava de tudo isso, salvo
a melancólica recordação da morte dele em acção, no
estrangeiro - do sucumbir da esposa à tuberculose e
à dor, pouco tempo depois - e desta filha.
Por n ascimento , era natural de Highbury . E
quando, aos três anos , perdeu a mãe e se tornou o
tesouro, o encargo, a consolação, o ai-j esus da avó e da
tia, afigurara-se haver probabilidades de lá ficar para

1 66
EMA

sempre, de ali ser educada apenas com o que os


limitados recursos permitissem e de se desenvolver
sem nenhumas vantagens de família, ou dotes de
cultura a acrescentar ao que a natureza lhe havia
concedido: a par da sua graça, a boa compreensão, o
afecto, as boas intenções da avó e da tia.
Mas a índole compassiva de um amigo do pai
modificou-lhe o destino. Era ele o coronel Campbell,
que tivera Fairfax em elevada estima, como excelente
oficial e mancebo de grande merecimento; além disso,
devera-lhe tais cuidado s , durante uma terrível
epidemia de acampamento, que o considerava como
tendo-lhe salvado a vida. Dívidas eram estas que ele
aprendera a não esquecer, embora tivessem decorrido
alguns anos depois da morte do pobre Fairfax, ocorrida
antes que o regresso de Campbell a Inglaterra lhe
conferisse o pleno uso das suas possibilidades . Assim
que chegou à pátria, procurou a criança e dedicou-lhe
a sua atenção. Era casado e possuía uma filha única,
uma rapariga da idade de Jane, pouco mais ou menos;
e Jane tornou-se hóspede da casa, fazendo-lhes visitas
demoradas e depressa captando a afeição de todos.
Antes de atingir os nove anos, o profundo afecto da
filha dos Campbell por ela e o próprio desejo do pai
em provar a sua amizade conj ugaram-se para que no
coronel nascesse a ideia de se encarregar da sua
educação. Foi aceita a oferta; e a partir de então, Jane
ficou fazendo parte da família do coronel Campbell,
passando a viver com eles e visitando a avó apenas de
tempos a tempos.
Haviam planeado dar-lhe a educação precisa para
que ela, por sua vez, educasse outros; os poucos centos
de libras que ela herdara do pai não eram suficientes
para lhe proporcionarem independência. Protegê-la
doutra forma estava além das posses do coronel
C ampbell , pois, se bem que os proventos que lhe
advinham do soldo fossem apreciáveis , a sua fortuna
era m o d e s t a e destinav a - s e t o d a à filha; m a s ,
dando-lhe educação, esperava ele proporcionar-lhe

167
JANEA USTEN

recursos que lhe permitissem, no futuro, manter-se


honestamente .
Tal era a história de Jane . Havia caído em boas
mãos, não tendo recebido dos Campbells senão provas
de bondade e uma excelente educação . Graças a um
convívio permanente com pessoas de espírito recto e
esclarecido, o seu coração e a sua inteligência haviam
recebido todos os dotes de disciplina e de cultura; e
como o coronel Campbell residia em Londres, tinha-se
dado inteira satisfação às suas vivas faculdades ,
rodeando-a d e professoras eminentes . A sua índole e
a sua capacidade intelectual eram, por igual, dignas
de tudo o que a amizade podia fazer por ela; e aos
dezoito ou dezanove anos encontrava-se ela plena­
mente competente - isto é, tanto quanto e s s a
classificação s e pode atribuir a tão verdes anos, no
que respeita à educação das crianças - para, por sua
vez , se dedicar à missão de professora; mas que­
riam-lhe de mais para se separarem dela. Nem o pai
nem a mãe o lembrariam, nem a filha o suportaria. O
dia funesto foi adiado. Fácil foi alegar que ela ainda
era muito nova; e Jane ficou com eles, compartilhando,
como segunda filha, de todos os finos prazeres de um
meio elegante e de uma hábil combinação de vida e de
lar e de diversões, tendo apenas por nuvem negra o
futuro - as j udiciosas sugestões do seu bom senso a
lembrarem-lhe que tudo isso terminaria em breve.
A amizade de toda a família, sobretudo a profunda
dedicação de M i s s C ampbel l , eram tanto mais
honrosas para cada um deles quanto era indiscutível
a superioridade de Jane em beleza e em cultura. Que
a natureza lha concedera na correcção de feições, era
um facto que não podia passar despercebido à jovem,
nem os seus invulgares dotes de espírito podiam deixar
de ser notados pelos esposos Campbell. Continuaram,
não obstante, a nutrir por ela inabalável estima, até
que se realizou o casamento de Miss Campbell, que, por
aquele acaso, aquela boa sorte que tantas vezes desafia
as previsões no capítulo matrimonial , conferindo

1 68
EMA

atractivos antes ao que é modesto do que ao que é


superior, havia inspirado o afecto de Mr. Dixon ,
mancebo rico e insinuante, quase no mesmo instante
em que se conheceram, acabando por contrair com ele
a feliz e vantajosa união, enquanto que Jane Fairfax
ainda tinha o seu pão a ganhar.
O acontecimento dera-se muito recentemente -
recentemente de mais para que a amiga menos
afortunada houvesse j á dado o passo que o dever lhe
indicava, não obstante haver atingido a idade que ela
própria tinha fixado para dar começo à iniciativa. Há
muito que resolvera principiar aos vinte e um anos.
Com a firmeza de um noviciado convicto, havia-se
decidido a consumar o sacrifício aos vinte e um anos
- trocar para sempre todos os prazeres da vida: as
relações, a sociedade dos seus iguais, a paz , a espe­
rança - pelo sofrimento e pelas mortificações .
O bom senso do coronel e de Mrs . Campbell j amais
se oporia a tal resolução, embora os seus sentimentos
o fizessem. Enquanto eles vivessem, desnecessários
eram sacrifícios : o seu lar seria o dela. E se fossem a
atender aos próprios impulsos , tê-la-iam retido para
sempre; mas seria egoísmo: -aquilo que tinha de ser,
melhor seria que fosse quanto ante s . Talvez que
principiassem a compreender quanto mais benéfico e
acertado não teria sido resistir à tentação de um
adiamento e privá-la de saborear aquelas alegrias do
bem-estar e da ociosidade. Todavia, a afeição com­
prazia-se em se aferrar a todos os pretextos razoáveis
para retardar o momento fatal . Ela não gozava de
perfeita saúde desde o casamento da filha dos seus
benfeitores; e enquanto não recuperasse as forças por
completo , eles tinham de impedir que ela tomasse
encargos que, longe de serem compatíveis com um
organismo enfraquecido e um e s pírito abati d o ,
pareciam, até, exigir, sob a s mais favoráveis circuns­
tâncias, alguma coisa mais do que saúde perfeita de
corpo e de espírito, para tais encargos se desem­
penharem, em toleráveis condições de conforto .

1 69
JANEA USTEN

Quanto ao facto de não acompanhar os Campbells


à Irlanda, o que ela expunha, à tia não continha senão
a verdade, embora houvesse, porventura, algumas
verdades que não dizia. Fora decisão unicamente sua
dedicar a Highbury o tempo que eles estivessem
ausentes - passar, talvez , os seus últimos meses de
inteira liberdade entre aquelas bondosas pessoas suas
conhecidas que tanto a estimavam. E os Campbells,
qualquer que fosse o motivo ou motivos , simples ,
duplos ou triplos , apressaram-se a sancionar a sua
resolução e disseram que esperavam mais de alguns
meses passados no clima natal para o restabelecimento
da sua saúde do que de qualquer outra medida. Era
certo ela vir; e Highbury, em lugar de estar à espera
dessa autêntica novidade há tanto tempo prometida,
- Mr. Frank Churchill - devi a, por enquanto ,
preparar-se para receber J arre Fairfax, que apenas
traria consigo a novidade que lhe conferiam dois anos
de ausência.
Ema estava desolada : ter de usar de atenções,
durante três longos meses , com uma pessoa de quem
não gostava! Ser obrigada a fazer mais do que desejava
e menos do que devia! . . . Porque não gostava ela de
Jane Fairfax, era uma pergunta a que era difícil
responder; Mr. Knightley dissera-lhe uma vez que a
razão do facto estava em que ela via em Jane o tipo
perfeito de rapariga que gostava que lhe atribuíssem
a si própria; e embora a acusação tivesse sido, no
mesmo instante, energicamente refutada, havia
momentos de auto-análise em que a consciência não a
absolvia por completo. Mas ela nunca havia de criar
intimidade com a rapariga: não sabia porque era, mas
sentia uma tal frieza e uma tal reserva . . . uma tal indi-
ferença em lhe agradar ou não . . . e depois a tia era
uma faladora tão enfadonha! . . . e fazia tão grande
espalhafato com toda a gente ! . . . Além disso, habi-
tuara-se de tal modo a imaginar que elas iam tornar-se
íntimas , porque eram da mesma idade, que os outros
supunham que eram muito amigas uma da outra.
Eram estas as razões - e não tinha melhores.

1 70
EMA

Era uma antipatia tão pouco justificada, todos os


defeitos imputados eram tão amplificados pela
fantasia, que ela nunca via Jane Fairfax pela primeira
vez depois de qualquer ausência considerável, sem
sentir que a tinha inj uriado; e agora que , à sua
chegada, após um intervalo de dois anos, a visita era
levada a efeito, Ema ficou particularmente impres­
sionada com aquele mesmo porte e aquelas mesmas
maneiras que ela, durante dois anos, havia depreciado.
Jane Fairfax era deveras elegante, notavelmente
elegante; e tinha a consciência do alto valor da sua
elegância. Possuía, além daquela magnífica estatura
que a maioria das pessoas consideraria alta, mas que
ninguém julgaria alta de mais, uma silhueta extre­
m amente graciosa e um conj unto de proporções
perfeitamente equilibrado, sem ser gorda nem magra,
se bem que um ligeiro ar de pouca saúde parecesse
realçar o que de desfavorável houvesse em cada uma
daquelas qualidade s . Ema não podia deixar de
reconhecer tudo isto; e depois, o rosto . . . as feições . . .
havia em todo o seu conj unto uma beleza de que ela se
havia esquecido; não era muito correcta, mas era, em
todo o caso, uma beleza deveras atraente. Os olhos,
de um cinzento escuro, adornados de negras pestanas
e sobrancelhas de igual tom, j amais haviam des­
mentido a j ustiça dos elogios que lhes faziam; mas a
pele, que Ema costumava criticar por a achar falta de
cor, possuía tal brilho e suavidade que, na realidade,
não necessitava de maior colorido . Era um género de
beleza de que a delicadeza de expressão era o carácter
dominante, e como tal ela teve de, lealmente e por
todos os seus princípios, a admirar: - delicadeza de
expressão que, quer física quer espiritual, ela estava
tão pouco acostumada a ver em Highbury. Longe de
ser vulgar, revelava-se nela distinção e mérito.
Em suma: durante a primeira visita, Ema não
deixava de olhar para Jane Fairfax com uma expressão
de agrado que tinha uma causa dupla: a sensação de
prazer e o sentido de j ustiça, que a dispunham a não
mais antipatizar com ela. De facto, quando conheceu

1 71
JA NEA USTEN

a sua história, a sua situação, ao mesmo tempo que


lhe notou a beleza; quando considerou aquilo a que
toda essa formosura estava destinada, aquilo a que
ela ia ficar reduzida, o modo de vida que escolhera,
afigurava-se-lhe impossível experimentar outra coisa
que não fosse compaixão e respeito, sobretudo se a
todos os conhecidos pormenores que lhe davam direito
a provocar interesse se acrescentasse a circunstância
altamente provável de uma paixão por Mr. Dixon, que
ela naturalmente procurasse desviar do pensamento.
Nestas condições, nada mais lastimável e honroso do
que os sacrifícios que se propusera. Ema estava pronta
agora a isentá-la da acusação de ter alienado o afecto
de Mr. Dixon pela esposa, ou de qualquer outra culpa
que a sua imaginação, a princípio, lhe tinha sugerido.
Se havia amor, devia ser um amor singelo, individual,
sem esperança, unicamente do, lado dela. Teria,
porventura, sugado inconscientemente o fatal veneno,
enquanto fora testemunha das entrevistas dele com a
amiga; e inspirada na melhor, na mais pura das razões,
ter-se-ia agora privado da visita à Irlanda, resolvendo
afastar-se definitivamente dele e dos seus parentes,
iniciando quanto antes a rota de um dever laborioso.
No fim de contas , Ema despediu-se dela dominada
por tais sentimentos de ternura e de piedade que, no
caminho para casa, só cogitava e lamentava que em
Highbury não houvesse qualquer mancebo digno de
lhe dar a independência; não via ninguém que ela
julgasse merecedor de lhe ser destinado.
Estes sentimentos eram admiráveis - mas não
duradoiros. Antes que ela se houvesse comprometido
por meio de qualquer protesto em público a uma eterna
amizade por Jane Fairfax, ou manifestasse o propósito
de uma retratação de preconceitos e erros passados,
por outra forma que não fosse dizer a Mr. Knightley:
«De facto, é bonita . . . é mais que bonita! » , Jane tinha
passado um serão em Hartfield com a avó e a tia, e as
coisas haviam tornado à situação do costume . Os
antigos motivos reapareceram. A tia era tão enfadonha

1 72
EMA

como dantes - mais enfadonha ainda, porque, agora,


ao culto p e l a s qualidades de Jane aliav a - s e a
inquietação pela sua saúde; e, além disso, tiveram que
ouvir a exposição exacta da escassa quantidade de pão
com manteiga que ela comia ao almoço e do exíguo
pedaço de carneiro que engolia ao j antar, assim como
de suportar a exibição de novas coifas e novos sacos
de costura destinados a Miss Bates e à mãe . E os
preconceitos contra Jane despertaram de nov o .
Tocou-se música e E m a fo i obrigada a mostrar o seu
talento; e os agradecimentos e os elogios que natural­
mente se seguiram, afiguraram-se-lhe revestidos de
uma sinceridade afectada e de uma magnanimidade
que apenas pretendiam realçar a execução, realmente
magnífica, de Jane. E o que era pior: ela parecia tão
fria, tão circunspecta! Não havia meio de se saber a
sua verdadeira opinião. Envolvida num manto de
cortesia, dir-se-ia decidida a nada arriscar. Era
fastidios amente reservada - tão res ervada que
chegava a despertar suspeitas .
Se acaso se podia admitir mais, onde tudo era
muitíssimo, era ainda mais reservada a respeito da
questão de Weymouth e dos Dixons do que de qualquer
outra. Não parecia mais disposta a revelar o carácter
de Mr. Dixon ou o apreço em que ela tinha a sua
companhia, do que mostrar a sua opinião sobre a
conveniência do casamento. Nada mais se ouvia que
aprovação e louvor - nada de definido ou nítido .
Todavia, essa atitude não lhe oferecia vantagens . A
sua reserva foi-lhe prejudicial. Ema viu o artifício e
voltou às suas suspeitas anteriores. Havia, prova­
velmente , alguma cois a mais a ocultar além da
paixoneta. Quem sabe se Mr. Dixon não estivera em
vias de trocar uma amiga por outra, ou não fixara os
olhares em Miss Campbell apenas com a mira nas
doze mil libras?
Verificava-se idêntica reserva noutros capítulos.
Ela e Mr. Frank Churchill haviam estado em Wey­
mouth pela mesma ocasião. Sabia-se que eles tinham
travado conhecimento um com o outro; mas Ema nem

1 73
JA NEA USTEN

uma palavra de esclarecimento sobre as qualidades


de Frank Churchill conseguiu obter.
«Era bonito?
«Sim, parecia que era tido na conta de um rapaz
muito elegante .
«Era, amável?
«Geralmente assim o j ulgavam.
«Parecia, acaso, ser pessoa de bom senso? E quanto
a conhecimentos?
«Numa estância de águas , ou em qualquer lugar
público de Lqndres, era difícil formar uma opinião a
tal respeito . A falta de um conhecimento mais íntimo
do que o que ela havia tido de Mr. Churchill , as
maneiras eram tudo o que se podia julgar sem errar.
Ela estava convencida de que toda a gente achava as
suas maneiras muito cativantes».
Ema não lho podia perdoar.

CAP ÍTULO XXI

Ema não lho podia perdoar; mas como Mr. Knight­


ley, que havia estado presente, não houvesse notado
qualquer reserva ou ressentimento e apenas tivesse
visto de ambos os lados a mais perfeita cortesia e os
mais insinuantes modos, no dia seguinte, de manhã,
tendo ido novamente a Hartfield para tratar de negó­
cios com Mr. Woodhouse, exprimiu o seu agrado pela
maneira como decorrera o serão: não de forma tão clara
que originasse a saída de Mr. Woodhouse da sala, mas
de modo assaz perceptível para que Ema o entendesse.
Estava acostumado a considerá-la injusta para Jane,
e, agora, era com grande prazer que verificava um
melhoramento.
- Um serão muito agradável, - começou ele, assim
que acabou de expor a Mr. Woodhouse o que achava
necessário e de lhe dar as explicações indispensáveis ,
pondo d e lado o s papéis - extremamente agradável !

1 74
EMA

A Ema e Miss Fairfax proporcionaram-nos muito boa


música. Não sei de prazer mais intenso, senhor, que
este de estar confortavelmente sentado todo um serão,
em companhia de duas meninas como estas, ora
conversando, ora ouvindo música. Estou convencido
de que Miss Fairfax achou o serão delicioso, Ema. Pela
sua parte nada deixou a desej ar. Eu fiquei muito con­
tente por a Ema lhe ter permitido que tocasse à
vontade, pois, como não há instrumento algum em
casa da avó, devia ter-lhe dado grande satisfação .
- Sinto-me feliz com a sua aprovação, - disse
Ema, sorrindo - mas creio que nunca me esqueço do
que é devido aos hóspedes de Hartfield.
- Pois não, minha filha, - disse o pai, no mesmo
instante - disso tenho eu a certeza. Não há ninguém
tão obsequiosa e delicada como tu. Chegas a ser
obsequiosa de mais. Acho que ontem, à noite, a torta . . .
s e tivesse sido servida s ó uma vez , seria o bastante.
- De facto, - disse Mr. Knightley, quase ao mesmo
tempo - a Ema não se esquece muito : tanto em
delicade z a como em compreen s ã o , não é muito
esquecida. Julgo que me compreende, não é verdade?
O vivo olhar que ela lhe deitou significava:
- Compreendo-o muito bem.
Mas limitou-se a dizer:
- Miss Fairfax é reservada.
- Sempre lhe disse que era um bocadinho; mas
estou certo de que, em breve, dissipará todo esse resto
de reserva que, realmente, deve ser dissipado, visto
que tem por base a timidez . O que se baseia na
discrição só merece louvor.
- O senhor j ulga-a tímida? Não me pareceu.
- Minha querida Ema, - retorquiu ele, saindo da
cadeira em que estava e indo ocupar outra, ao lado
dela - espero que me não vá dizer que não passou
um serão agradável. . .
- Oh! Não. Fiquei encantada com a minha paciên­
cia em fazer perguntas e diverti-me imenso ao ver-me
tão pouco elucidada.

1 75
JA NEA USTEN

- E stou deveras des apontado - foi a única


resposta que ele deu.
- Julgo que todos passaram um serão agradável
- disse Mr. Woodhouse, com o seu modo calmo. - Eu
passei. Ao princípio, achei calor demais; mas afastei
a cadeira do fogão um bocado e já não me incomodou.
Miss Bates estava muito conversadora e bem disposta,
como sempre, se bem que fale um pouco depressa de
mais . No entanto, é muito simpática, e Mrs . Bates
também, embora de género diferente. Gosto dos velhos
amigos; e Miss Jane Fairfax está uma linda rapariga
- muito bonita, muito elegante , e , realmente ,
comporta-se como uma senhora. Ela deve ter gostado
do serão, Mr. Knightley, pois tinha a Ema a seu lado .
- Tem razão, senhor; e Ema também, porque tinha
Miss Fairfax.
E m a notou-lhe a apreensão e , desej o s a de a
dissipar, pelo menos de momento, disse, com um ar
de sinceridade que ninguém podia pôr em dúvida:
- Ela possui aquele tipo de elegância de que se
não pode desviar os olhos . Estive sempre a con­
templá-la com admiração; e, realmente, senti muita
pena dela.
Mr. Knightley mostrou uma expressão de quem
estava mais s atisfeito do que realmente queria
mostrar; e antes que ele respondesse, Mr. Woodhouse,
cujos pensamentos incidiam só sobre as Bates, disse:
- E deveras lamep.tável que vivam em circuns­
tâncias tão precárias ! E realmente pena! Muitas vezes
tenho p e n s a d o . . . m a s é tão pouco que não n o s
atrevemos . . . - em l h e s oferecer uma bagatel a ,
qualquer coisa pouco vulgar. Matámos h á pouco um
porquito e Ema pensa em lhes mandar um bocado de
lombo ou uma perna; é um presente delicado . . . é,
verdade que a carne de porco em Hartfield não é muito
superior à outra . . . No entanto, sempre é carne de
porco . . . e, minha querida Ema, a não ser que se tenha
a certeza de que elas a cortam em postas e a fritam
convenientemente , como se frita cá em casa, sem
banha nenhuma, e não a assem, pois não há estômago

1 76
EMA

que aguente carne de porco assada - acho que o


melhor é mandar a perna . . . não pensas também assim,
minha filha?
- meu querido papá, eu mandei um qu arto
traseiro. Sabia que era de sua vontade . . . Têm a perna
para salgar, que é tão boa, e o lombo, que pode ser
logo preparado da forma que mais gostarem.
- Está bem, minha querida . . . está muito bem. Não
me tinha lembrado disso, mas foi a melhor solução .
Não devem salgar de mais a perna; e se não levar sal
de mais, se for bem cozida, exactamente como Serie
costuma cozer, e a comerem com moderação, acom­
panhada de um nabo cozido e de uma cenourazinha,
não lhes deve fazer mal.
- Ema, - disse Mr. Knightley, passado um mo­
mento - tenho uma novidade para lhe dar. Sei que
gosta de novidades . . . quando vinha para cá, ouvi uma
coisa que, j ulgo, lhe deve interessar.
- Novidades? . . . Oh! gosto muito ! Que é? Porque se
ri? . . . Onde a ouviu? Em Randalls?
Mr. Knightley apenas teve tempo de dizer:
-:;- Não, não foi em Randalls; não passei por Randalls.
E que nessa altura a porta abriu-se para dar
entrada a Miss Bates e a Miss Fairfax. Desfazendo-se
em agradecimentos e repleta de novidades , Miss Bates
não sabia a qual das coisas havia de dar a preferência.
Mr. Knightley viu logo que tinha perdido a oportu­
nidade e que já não podia comunicar palavra do que
tencionava.
- Oh! meu caro senhor! Como passou de ontem
para cá? Minha querida Miss Woodhouse . . . fiquei
verdad,eiramente penhorada! Que belo , quarto de
porco! E muito generosa! Já sabe a novidade? Mr. Elton
vai casar.
Ema, que estava longe de pensar em Mr. Elton,
ficou tão surpreendida com a notícia que não pode
evitar um ligeiro sobressalto, nem que as faces se lhe
cobrissem de leve rubor.
Era a novidade que eu também trazia: pensei que
lhe interessasse - disse Mr. Knightley, com um

1 77
JA NEA USTEN

sorriso que subentendia, de certo modo, o que se havia


passado entre eles.
- Mas onde soube isso? - exclamou Miss Bates.
- Onde poderia tê-lo ouvido, Mr. Knightley? Ainda
não há cinco minutos que recebi um bilhete de Mrs .
Cole . . . não, não pode haver mais de cinco minutos . . .
quando muito dez . . . fo i só preparar-me e pôr o
chapéu . . . Ia descer para recomendar mais uma vez a
carne à Patty . . . Jane até estava no corredor . . . não é
verdade, Jane? . . . Minha mãe tinha tanto medo de que
não tivéssemos uma salgadeira de tamanho sufi­
ciente . . . Mas, como estava dizendo, desci para ver e
Jane disse: «Vou lá eu, se quer: a tia está um pouco
constipada e a Patty tem estado a lavar a cozinha» .
«Oh, minha filha ! » , disse eu, e mesmo nessa ocasião
chegou o bilhete . Trata-se de uma tal Miss Hawkins . . .
é tudo o que sei . Mas, Mr. Knightley, como pode o
senhor ter sabido isso? Assim que Mr. Cole o contou à
esposa, ela tratou logo de me escrever . . . Uma tal Miss
Hawkins . . .
- E u estive há cerca de hora e meia a tratar de
negócios com Mr. Cole. Tinha acabado de ler a carta
de Mr. Elton quando eu entrei, e ele mostrou-ma logo.
- Ah ! É um caso absolutamente . . . acho que nunca
houve notícia que mais interesse despertasse. Meu
caro senhor, - disse ela, voltando-se para Mr. Wood­
house - é realmente muita generosidade da sua parte.
Minha mãe incumbiu-me de lhe apresentar os seus
respeitos e mil agradecimentos e disse que, realmente,
o senhor a deixa oprimida de gratidão.
- Nós achamos que a carne de porco de Hartfield
- replicou Mr. Woodhouse . . . - é, na verdade, tão
superior a todas as outras que Ema e eu não podemos
sentir maior prazer do que . . .
- Oh! meu caro senhor! É o que minha mãe diz, -
os nossos amigos são excessivamente bons para nós .
Se já houve alguém que, sem possuir grande fortuna,
teve sempre tudo o que poderia desej ar, somos nós .
Bem podemos dizer que jogámos num número que saiu

1 78
EMA

premiado. Então o senhor viu realmente a carta,


Mr. Knightley? .. .
- Era curta . . . uma simples participação . . . mas
alegre, exultante, naturalmente .
E , ao mesmo tempo, olhou disfarçadamente para
Ema.
- Dizia que era com o maior prazer que . . . mas não
me lembro bem das palavras exactas . . . não é assim
tão fácil recordar-me delas . A comunicação resumia-se,
como a senhora disse, em que ele ia casar com Miss
Hawkins . Por este modo de dizer, creio que é negócio
assente .
- Mr. Elton casar! - disse Ema, assim que conse­
guiu falar. - Há-de ter os votos de felicidade de toda
a gent� .
- E muito novo para tomar estado - observou
Mr. Woodhouse. -Talvez fosse melhor não ter tanta
pressa. Acho que estava bem como estava. Tínhamos
sempre muito gosto de o ver em Hartfield.
- Uma nova vizinha para todos nós, Miss Wood­
house ! - exclamou Miss Bates, jovialmente . - Minha
mãe está tão contente ! . . . Diz ela que não pode suportar
a ideia d� que o velho presbitério não tenha uma dona
de casa. E, realmente, uma grande novidade . Jane, tu
nunca viste Mr. Elton! Não admira que tenhas tanta
curiosidade de o ver.
Mas a curiosidade de Jane não parecia ser de natu­
reza tão absorvente que lhe ocupasse totalmente o
espírito.
- Efectivamente, nunca vi Mr. Elton - retorquiu
ela, com um leve sobressalto. -Ele é . . . é alto?
- Quem poderá responder a uma pergunta des­
sas? - exclamou Ema. - Meu pai dir-lhe-ia que sim,
Mr. Knightley que não; e Miss Bates e eu dir-lhe-emos,
que está na j usta medida. Depois de cá se demorar
mais algum tempo, Miss Fairfax, verá que Mr. Elton
é o padrão da perfeição em Highbury, tanto de corpo
como de espírito.
- Tem razão, Miss Woodhouse, ela há-de ver isso.
Ele é um perfeito rapaz . . . Mas, minha querida Jane,

1 79
JA NEA USTEN

deves lembrar-te de que ontem te disse que ele era


exactamente da altura de Mr. Perry. Miss Hawkins . . .
acho que é uma boa menina. E a s atenções dele para
com minha mãe . . . convidando-a a sentar-se no banco
reservado do presbitério, para que ela ouvisse melhor,
pois minha mãe é um pouco surda, como sabe . . . não é
muito, mas não ouve com muita facilidade . Jane diz
que o coronel Campbell é um pouco surdo. Ele supunha
que os banhos lhe fizessem bem . . . os banhos quentes . . .
mas Jane diz que o s resultados não foram duradoiros.
O coronel Campbell, não sei se sabe, é o nosso anj o da
guarda. E Mr. Dixon parece que é um rapaz encan­
tador, inteiramente digno dele . Dá tão grande
satisfação ver as pessoas bondosas ligadas por laços
de família . . . e eles hão-de ser sempre muito unidos.
Agora teremos Mr. Elton e Miss Hawkins ; e, além
disso, há os Coles, que são muito boas pessoas , e os
Perry . . . creio que nunca houve casal mais feliz nem
melhor que Mr. e Mrs . Perry . Olhe, senhor, -
acrescentou, voltando-se para Mr. Woodhouse - acho
que poucas terras há com tão boa gente como High­
bury. É o que sempre tenho dito: Abençoados vizinhos
que temos! Meu caro senhor, se há coisa de que minha
mãe mais goste é de carne de porco . . . lombo de porco
assado.
- Quanto a Miss Hawkins, quanto ao que ela é ou
quem e, ou há quanto tempo ele a conhece, - disse
Ema - suponho que nada se sabe. Compreende-se
que não deva ser um conhecimento muito antigo. Ele
esteve lá apenas quatro semanas . . .
Ninguém a pôde esclarecer; e após mais algumas
conj ecturas , Ema continuou:
- Não diz nada, Miss Fairfax . . . mas espero que
não deixe de se interessar por estas novidades . . . A
menina, que ultimamente tem ouvido e visto tanta
coisa neste género e conheceu tão de perto a matéria,
por causa de Mis s C ampbell . . . não podemos des­
culpar-lhe a sua indiferença a respeito de Mr. Elton e
de Miss Hawkins .

180
EMA

- Quando eu tiver visto Mr. Elton, - replicou Jane


- é possível que me interesse . . . mas creio que há-de
ser difícil. E como há já alguns meses que Miss
Campl;>ell casou, a impressão está um pouco apagada.
- E verdade, Miss Woodhouse, ele foi j ustamente
por quatro semanas , como disse, - observou Miss
B ates - fez quatro semanas ontem. E s s a Mis s ,
Hawkins . . . Pois e u sempre calculei que havia d e ser
alguma pequena dos arredores; não que eu . . . Mrs. Cole
apenas me disse em segredo . . . mas eu disse logo: «Não,
Mr. Elton é um rapaz respeitabilíssimo . . . mas . . . » . Em
resumo: acho que não sou muito perspicaz para esse
género de descobertas . Não tenho pretensões . Vej o só
o que está na minha frente . Mas , ao mesmo tempo,
ninguém devia admirar-se de que Mr. Elton tivesse
aspirado . . . Miss Woodhouse deixa-me tagarelar à
vontade . . . Ela sabe que não há a menor ofensa no que
digo . E como vai Miss Smith? Ela agora parece
completamente restabelecida. Tem tido notícias de
Mrs . John Knightley? Oh! os queridos pequeninos !
Jane, não sei se sabes que sempre comparei Mr. Dixon
a Mr. John Knightley . . . Quero dizer, na aparência . . . é
alto, tem um olhar parecido . . . e é pouco falador.
- Está muito enganada, minha tia: não há seme­
lhanç� alguma.
- E singular! Nunca se consegue formar uma ideia
justa de uma pessoa, sem a ver. Cria-se uma noção e
ela arrasta-nos . Dizes então que ele não é, rigorosa­
mente falando, muito bonito?
- Bonito? . . . Oh! não . . . muito longe disso . . . é mesmo
feio. Eu disse-lhe que ele era feio.
Minha filha, o que tu disseste foi que Miss Campbell
não o achava feio, e que tu . . .
- O h ! quanto a mim , o meu j uízo nada val e .
Quando olho para uma pessoa, acho-a sempre bem
parecida. Mas, quando disse que ele era feio, não fazia
senão repetir a opinião geral .
- Bem, minha querida Jane : parece-me que temos
de nos ir embora. O tempo pão tem boa cara e a avó
pode estar em cuidad o . E muito amável, minha

181
JA NEA USTEN

querida Miss Woodhouse, mas a verdade é que temos


de nos ir embora. Pois foi uma novidade muito
agradável ! Já agora, passarei por casa de Mrs . Cole;
mas não tenciono demorar-me mais de três minutos.
E , Jane, seria melhor que fosses já para casa . . . não
quero que apanhes chuva. Parece-nos que ela já gosta
mais de Highbury. Creia que lhe fico muito obrigada!
Não me atrevo a ir visitar Mrs . Goddard , pois a
verdade é que ela, segundo julgo, só gosta da carne de
porco cozida: quando prepararmos a perna, será outra
coisa. Bom dia, meu caro senhor. Oh! Mr. Knightley
também vem? Que bom! Jane está tão fatigada que
lhe agradeço muito a bondade de lhe dar o braço. Mr.
Elton e Miss Hawkins . . . Bom dia!
Ema, depois de ficar sozinha com o pai, teve de
prestar quase toda a atenção a ele, que lastimava
essa gente nova que tinha tanta pressa de casar . . . e,
ainda por cima, sem se conhecerem bem . . . O resto da
atenção empregava-a ela no exame do assunto . Era
para ela uma divertida e grata novidade, pois provava
não ter sido muito duradoiro o sofrimento de Mr. Elton;
mas lamentava-o por Harriet: Harriet devia senti-lo
- e o mais que Ema podia esperar, por ser a pri­
meira a dar-lhe a informação, era evitar que ela a
ouvisse, de chofre, a outros. Era mais ou menos a hora
a que ela costumava vir. Se se encontrasse com Miss
Bates? Começara a chover e Ema não pode deixar de
sentir receio de que o mau tempo a retivesse em casa
de Mrs . Goddard e que a notícia a colhesse despre­
venida.
O aguaceiro foi forte, mas curto; e ainda não se
tinham passado cinco minutos, quando Harriet entrou,
precis amente com aquela expressão afogueada e
agitada que só a pressa e o pesar lhe poderiam dar. E
aquele «Üh, Miss Woodhouse! não sabe o que suce­
deu?» , que , no mesmo instante , lhe irrompeu dos
lábios, exprimia toda a evidência de uma perturbação
correspondente . Visto que fora dado o golpe, Ema
entendeu que não podia mostrar-se mais generosa do

1 82
EMA

que ouvindo-a; e Harriet, sem nada que a reprimisse,


expôs veementemente o que tinha para dizer.
Que tinha saído de casa de Mrs . Goddard há meia
hora . . . receara que chovesse . . . estivera sempre à
espera de que começasse a chover a potes . . . mas pensou
que talvez tivesse tempo de chegar a Hartfield e, por
isso, correu o mais que pode; mas, ao passar à porta
de uma pequena a quem havia encomendado um
vestido, lembrou-se de entrar para ver como ele ia e,
embora não se demorasse lá mais que um instante,
pouco depois de ter saído começou a chover, ficando
ela sem saber o que havia de fazer; por isso, deitou
logo a correr com quanta força tinha e abrigou-se na
loj a de Ford.
A loj a de Ford era o principal estabelecimento de
roupa branca, fazendas e mercearia, tudo reunido .
- E , despreocupada, estava ali há uns dez minutos,
talvez, quando, de, repente, quem havia de entrar? . . .
por essa é que eu não esperava! . . . mas a verdade é
que eles sempre gastaram do Ford . . . quem havia de
ser? . . . Isabel Martin e o irmão . Oh, querida Miss
Woodhouse! nem me quero lembrar! Pouco faltou para
desmaiar. Não sabia o que havia de fazer. Estava
sentada ao pé da porta . . . Isabel viu-me logo, mas ele
não: estava entretido a fechar o chapéu de chuva.
Tenho a certeza de que ela me viu, mas voltou logo a
cara e fingiu não dar por mim; depois, dirigiram-se
ambos para o outro extremo da loja, e eu deixei-me
ficar sentada ao pé da porta . . . Oh, meu, Deus ! Estava
tão envergonhada! . . . Estou convencida de que fiquei
tão branca como a cal da parede . Imagine que não
podia sair por causa da chuva . . . Mas não me faltou
vontade, tal era o meu desejo de me ver em qualquer
parte menos ali ! Oh, querida Miss Woodhouse! Por
fim, ele olhou e viu-me, mas, em vez de continuarem
com as suas compras, puseram-se a cochichar um com
o outro. Tenho a certeza de que falavam de mim e eu
não posso deixar de supor que ele procurava convencer
a irmã a falar-me . . . não acha, Miss Woodhouse? . . . pois

1 83
JA NEA USTEN

daí a pouco ela adiantou-se, chegou-se ao pé de mim,


perguntou-me como estava e pareceu esperar que eu
lhe estendesse a mão para ma apertar. Não mostrava
o seu modo habitual; no entanto, parecia esforçar-se
por aparentar cordialidade . Trocámos um aperto de
mão e ficámos a conversar uns momentos; mas eu nem
sabia o que dizia . . . tremia tanto ! . . . Lembro-me de que
ela disse sentir muito que nunca nos víssemos agora,
o que achei, de certo modo, amável . Valha-me Deus,
Miss Woodhouse! Eu estava tão envergonhada! Nessa
altura, o tempo começou a clarear e eu achava-me
resolvida a não me deixar deter por coisa alguma . . . e
então . . . nem me quero lembrar! . . . vi que ele se dirigia
para mim também . . . com passos lento s , como se
estivesse indeciso; chegou ao pé de mim, falou e eu
respondi . . . e ali fiquei durante um minuto - imagine !
- tão assustada, que nem lho sei dizer! Depois, tomei
coragem e disse que, como já não chovia, tinha de me
ir embora. E saí. Mas mal havia andado três j ardas ,
quando ele se aproximou de mim, apenas para me
dizer que , se eu ia para Hartfield, achava melhor que
desse a volta pelas cavalariças de Mr. Cole, pois o
caminho mais curto devia estar completamente
alagado. Oh, meu Deus ! Julguei que morria! Disse
então que lhe ficava muito agradecida: bem vê que
não podia fazer outra coisa . . . Finalmente, voltou para
junto de Isabel, e eu dei a volta pelas cavalariças . . .
creio que assim fi z . . . mas e u mal sabia onde estava ou
o que fazia. Oh, Miss Woodhouse! Preferia tudo a que
me sucedesse uma coisa destas : e no entanto - sabe?
- senti uma certa satisfação em o ver comportar-se
de forma tão cativante e amável . E Isabel também.
Oh, Miss Woodhouse ! Diga-me qualquer coisa que me
tranquilize.
Ema desejava-o sinceramente; mas não o pode fazer
logo . Precisava de meditar. Ela própria não estava
absolutamente tranquila. O procedimento do rapaz e
o da irmã pareciam a consequência de um sentimento
sincero e ela não podia deixar de se compadecer deles .
Pelo que Harriet referira, revelara-se n a atitude deles

1 84
EMA

um misto de afecto ferido e de fina delicadeza. Mas


ela sempre os considerara bem intencionados, e dignos;
e acaso isto diminuía os inconvenientes das relações
com eles? Era loucura incomodar-se com aquilo.
Naturalmente, ele devia doer-se de a ter perdido -
todos eles se deviam doer. Provavelmente, tanto havia
sofrido a ambição como o amor. É possível que toda a
família dele tivesse albergado a esperança de se elevar
por meio do casamento com Harriet: e demais, que
valor, tinha o relato de Harriet? Seduzida por tão
pouco . . . , compreendendo tão pouco as coisas . . . Que
significação tinham os seus louvores?
Fez um esforço sobre si mesma e procurou tran­
quilizá-la, demonstrando-lhe que tudo o que sucedera
não passava de uma insignificância e que não valia a
pena J?ensar em tal .
- As primeiras impressões era natural que fosse
aborrecido, - disse ela - mas acho que a Harriet se
portou muito bem; e, de resto, já passou . . . e não é
provável . . . não deve acontecer o mesmo outra vez .
Portanto, não pense mais nisso.
Harriet disse que realmente assim era e que não
pensaria mais no caso; mas a verdade é que só falava
nele, não podia falar doutra coisa, até que Ema, por
fim, no intuito de lhe tirar os Martin da ideia, viu-se
obrigada a recorrer à notícia, que tencionava dar-lhe
com as mais ternas precauções, sem bem saber se se
havia de regozijar ou zangar, envergonhar-se ou levar
o caso de brincadeira, em face do estado de espírito da
pobre Harriet - isto é, em face da importância que
Mr. Elton tinha, no fim de contas, para ela!
Os direitos de Mr. Elton, porém, restabeleciam-se
gradualmente . Embora H arriet não acolhesse a
revelação da mesma forma que a teria acolhido no dia
anterior ou uma hora antes, não tardou que o seu
intere s s e aumentas s e ; e antes de terminarem a
conversa sobre o assunto, manifestou ela todos os
sentimentos de curiosidade, admiração e lástima, de
mágoa e prazer, no que se referia a essa afortunada

1 85
JA NEA USTEN

Miss Hawkins , que talvez contribuísse para dar aos


Martin o devido lugar de segunda plana na sua
imaginação.
Ema acabou por se congratular de aquele encontro
se haver dado. Oferecia a vantagem de amortecer o
primeiro choque, sem que retivesse qualquer in­
fluência alarmante. Com a vida que, Harriet agora
levava, os Martin não tinham possibilidades de se
aproximar dela, sem a procurarem onde até então lhes
falecera a coragem ou a disposição para o fazer; com
efeito, desde que ela rejeitara o irmão, as irmãs nunca
mais tinham ido a casa de Mrs . Goddard, e, possivel­
mente , p a s s ar-se-ia um ano sem que se vissem
obrigadas a encontrar-se ou a trocar palavra.

CAP Í TULO XXII

A natureza humana é tão benevolente para com


aqueles que se encontram em situações interessantes ,
que, acerca de qualquer jovem que case ou morra, é
certo, ouvir sempre as melhores referências .
Ainda não havia decorrido uma semana depois de
o nome de Miss Hawkins ser citado pela primeira
vez em Highbury, e já se tinha descoberto, de uma
maneira ou de outra, que ela era possuidora de todos
os dotes físicos e morais - era bonita, elegante ,
extremamente instruída e de uma delicadeza a toda a
prova. E quando Mr. Elton conseguiu, finalmente,
realiz ar as suas felizes aspirações e divulgou os
méritos da noiva, pouco mais precisou de dizer do que
revelar o seu nome de baptismo e o instrumento
musical da sua preferência.
Mr. Elton regressou felicíssimo. Havia partido
repudiado e mortificado - desfeita a sua esperança
mais ardente, até então fortalecida por uma série de
circunstâncias que se lhe tinham afigurado outros

186
EMA

tantos motivos de encoraj amento; e não só perdera a


mulher que pretendia, como se vira rebaixado ao nível
de outra muito abaixo dele . Partira profundamente
melindrado, mas regressava noivo de outra que,
naturalmente, era superior à primeira na medida em
que, dadas as circunstâncias, o que se ganha compensa
sempre o que se perde. Regressava jubiloso e satisfeito
de si mesmo, impaciente e activo, nada pesaroso por
Miss Woodhouse e pouco se importando com Miss
Smith.
A encantadora Augusta Hawkins, além de todos
os inevitáveis predicados de formosura e de inteli­
gência, era exclusiva possuidora de uma fortuna que
orçava por dez mil libras - um partido tão honroso
como vantaj oso: os ventos corriam favoráveis. Ele não
se havia aventurado ao acaso; alcançara uma mulher
de 10 000 libras ou coisa parecida e alcançara-a com
tão deliciosa rapidez - à hora da apresentação
seguira-se tão depressa o triunfante desfecho; era tão
gloriosa a história do início e da evolução do negócio
que ele tinha para relatar a Mr. Cole - os passos
haviam sido tão rápidos desde o encontro casual até
ao j antar em casa de Mr. Green e à reunião em casa
de Mrs . Brown; os sorrisos e rubores cresciam tanto
em significado, a consciência do que eles valiam e a
agitação de espírito eram neles tão evidentes - a
dama mostrara-se tão facilmente impressionável, tão
docemente disposta a ceder; em resumo, para falar
mais claramente , havia-se mostrado tão pronta a
aceitá-lo que a - vaidade e a prudência se congratu­
lavam por igual.
Havia conseguido o espírito e a substância, o afecto
e a fortuna: - a sua felicidade era completa. Falava
unicamente de si e dos próprios interesses , sempre à
espera de que o felicitassem, disposto a acolher todos
os gracejos, e agora dirigia-se com sorrisos cordiais e
intrépidos a todas as donzelas da terra, com quem,
algumas semanas antes, teria sido mais cauteloso nas
suas galantarias .

187
JA NEA USTEN

Não estava distante o dia da boda, visto que nada


impedia os noivos de satisfazerem os seus desejos,
nada os obrigava a esperar, a não ser os indispensáveis
preparativos ; e quando ele partiu de novo para Bath,
correu por todos a esperança - que um certo olhar de
Mrs . Cole parecia não desmentir -de que, quando
regressasse a, Highbury, trouxesse a noiva consigo.
Ema, durante o curto intervalo da sua demora, mal
o tinha visto; mas foi o suficiente para compreender
que a antiga intimidade acabara e colher a impressão
de que aquele misto de arrogância e fatuidade, que
ele agora ostentava, em nada o favorecia. De facto,
ela começava deveras a admirar-se de algum dia o ter
achado insinuante; e a sua silhueta afigurava-se-lhe
tão intimamente ligada a certas sensações sumamente
desagradáveis que, a não ser sob um ponto de vista
moral, como uma penitência, uma lição, uma fonte de
útil humilhação voluntária, ela agradeceria a Deus
que nunca mais lhe permiti ssem vê-lo. Não lhe
desej ava senão bem, mas a sua presença incomo­
dava-a, e se ele fosse gozar a sua felicidade para vinte
milhas mais longe , isso só lhe daria uma enorme
satisfação.
O incómodo que lhe causava a sua residência
permanente em Highbury devia ser, contudo, ate­
nuado pelo casamento . Este evitaria muita cortesia
vã, removeria muito constrangimento. Uma Mrs. Elton
seria uma desculpa para uma mudança de relações ; a
antiga intimidade podia desaparecer sem que isso se
tornasse notado . Seria como se recomeçassem a sua
vida de sociedade.
Da noiva, pessoalmente, pouco Ema se ocupava.
Sem dúvida, quadrava bem a Mr. Elton e possuía
suficientes predicados para Highbury, quer dizer, era
bastante bonita para provavelmente parecer feia ao
lado de Harriet. Quanto a categoria social, estava Ema
perfeitamente tranquila, pois era convicção sua de que
ele, depois das vaidosas pretensões e do desdém que
manifestara por Harriet, não ganhara muito com a
troca. Nesse capítulo, a verdade parecia fácil de

1 88
EMA

atingir. O que ela era, talvez fosse incerto; mas quem


ela era, é possível que se descobrisse; e, pondo de parte
as 10 000 libras, não parecia que fosse muito superior
a H arri e t . Não tinha n o m e , nem s angue , nem
linhagem. Miss Hawkins era a filha mais nova de um
cavalheiro de Bristol - negociante, naturalmente;
mas como os lucros da sua vida comercial pareciam
ser tão modestos, era lógico supor que a sua estirpe
mercantil também fosse muito modesta. Tinha-se ela
acostumado a passar parte do Inverno em Bath, mas
era em Bristol, mesmo no coração de Bristol, que tinha
a sua casa; com efeito , os pais tinham falecido há
alguns anos , mas ficara um tio, pertencente à classe
j urídica, que nada achava mais honroso do que fazer
p arte d e s s a clas s e , e com quem ela vivi a . E m a
calculava que ele fosse ajudante d e algum notário e
demasiado estúpido para se elevar. E toda a grandeza
j erárquica parecia provir da irmã mais velha, que
tinha casado m u i to bem com um cavalheiro de
categoria, das proximidades de Bristol, que possuía
duas carruagens ! Era esta, em resumo, toda a glória
de Miss Hawkins .
Se pudesse incutir em Harriet as mesmas ideias a
respeito disso tudo ! Infundira-lhe no ânimo o amor;
mas, ai ! já não era tão fácil tirar-lho de lá. O encanto
de um obj ectivo que preenchesse os numerosos ócios
do espírito de Harriet não era susceptível de se
dissipar. Outro o substituiria possivelmente; por certo
que assim sucederia: nada mais verosímil; até um
Roberto Martin seria suficiente; mas - bem o receava
- nada mais a poderia curar. Harriet era daquelas
mulheres que, uma vez iniciadas, hão-de amar sempre.
E agora, pobre rapariga! achava-se consideravelmente
pior em face desta reaparição de Mr. Elton. Havia
sempre em si um vislumbre dele, estivesse onde
estivesse. Ema viu-o apenas uma vez; mas quanto a
Harriet, era certo, duas ou três vezes por dia, com
todo o favorável e n t u s i a s m o da surpre s a e d a
conj ectura, estar a ponto d e se encontrar com ele, estar
a ponto de lhe ouvir a voz ou de o ver pelas costas ,

1 89
JA NEA USTEN

estar a ponto de lhe ocorrer qualquer coisa que lhe


ficasse na imaginação. Demais, ela ouvia permanente­
mente falar dele, pois , a não ser quando se encontrava
em Hartfield achava-se constantemente entre pessoas
que não viam defeito algum em Mr. Elton e que nada
conheciam tão interessante como a discussão sobre
tudo o que lhe dissesse respeito ; e cada notícia,
portanto, cada conj ectura - tudo o que j á havia
ocorrido, tudo o que poderia ocorrer na disposição da
sua vida, compreendendo proventos, criados, mobília,
se agitava continuamente em volta del a . O seu
intere s s e ia-se fortalecendo com os invariáveis
louvores que lhe rendiam; e os seus pesares man­
tinham-se vívidos e a sensibilidade irritada perante
as incess antes referências à felicidade de Miss
Hawkins e as contínuas observações sobre a dedicação
que ele parecia revelar, sobre a maneira de caminhar
quando se dirigia para casa e até sobre o modo de pôr
o chapéu - outras tantas provas de quão apaixonado
ele estava!
Tivesse isso constituído uma distracção aceitável,
não houvesse motivo de dor para a amiga ou de censura
para si própria nas vacilações de espírito de Harriet,
que Ema ter-se-ia divertido com estas variações . Umas
vezes era Mr. Elton que predominava, outras os
Martin; e cada um deles era, por sua vez, utilizado
como arma contra o outro. O compromisso de Mr. Elton
havia sido o remédio que combatera a agitação
produzida pelo encontro com Mr. Martin. O desgosto
causado pelo conhecimento desse compromisso havia
sido um pouco posto de parte pela visita de Isabel
Martin a Mrs . Goddard , alguns dias mais tarde .
Harriet não estava então em casa; mas tinham-lhe
deixado um bilhete, escrito num estilo susceptível de
cativar - um misto de leve censura e de grande
amabilidade; e enquanto Mr. Elton não apareceu,
Harriet estivera extremamente ocupada com o bilhete,
cogitando sobre o que seria conveniente fazer em
resposta e desej ando fazer mais do que se atrevia a
confessar. Mas Mr. Elton, em pessoa, tinha varrido

190
EMA

esses cuidados . Enquanto ele estava, eram os Martin


esquecidos; e na mesma manhã em que ele partiu
novamente para Bath, Ema, no intuito de dissipar a
mortificação que esse facto ocasionasse, entendeu que
o melhor era retribuir a visita de Isabel Martin.
Como essa visita se havia de realizar, o que seria
necessário fazer e a forma m ais segura de proceder,
eram pontos de uma certa consideração. Um absoluto
desprezo pela mãe e pelas irmãs, depois de convidada
a visitá-las, seria ingratidão. Não devia ser assim: e
contudo, havia perigo de se renovar a intimidade ! . . .
Depois de muito pensar, decidiu que o melhor que
havia a fazer era Harriet retribuir a visita; mas esta
devia ser levada a efeito de tal forma que, se eles
compreendessem bem, os convencesse de que ela a
fazia apenas por simples cortesia. Tencionava levá-la
na carruagem, deixá-la em Abbey Mill, e, depois de
dar uma volta, ir buscá-la de novo, mas concedendo-lhe
apenas um espaço de tempo que não permitisse
insidiosas súplicas ou perigosas evocações do passado
e definis s e nitidamente o grau de intimidade a
estabelecer para de futuro .
De nada melhor se pôde lembrar e não obstante haver
nesse plano qualquer coisa que no íntimo não aprovava
- o seu quê de ingratidão mal disfarçada -, assim
tinha de ser, senão que seria de Harriet?

CAP Í TULO XXIII

Harriet pouco ânimo tinha para a visita. Apenas


meia hora antes de a amiga haver ido ter com ela a
casa de Mrs . Goddard, a sua má estrela tinha-a levado
precisamente para o sítio em que, naquele momento,
estavam carregando um baú, destinado ao Rev Philip
.

Elton, White-Hart, Bath, para a carroça do cortador,


que o conduziria pelo mesmo caminho das carruagens;

191
JA NEA USTEN

e nesse momento, a não ser o baú e a direcção, nada


mais tinha significação para ela.
No entanto , foi; e quando chegou à herdade e
desceu, no princípio, a larga alameda ensaibrada que,
entre macieiras em latada, conduzia à porta principal,
o cenário que tanto prazer lhe tinha dado no Outono
anterior começou a reavivar-lhe a sensibilidade; e
quando elas se separaram, Ema notou que a amiga
olhava em volta com uma espécie de tímida curio­
sidade , que a decidiu a não permitir que a visita
excedesse o quarto de hora combinado. Seguiu sozinha,
resolvida a dedicar esse intervalo a uma antiga criada
que tinha casado e que morava em Donwell .
Ao fim de um quarto de hora, encontrava-se
pontualmente, de novo, junto do portão branco; e Miss
Smith, avisada, apressou-se a reunir-se-lhe, sem que
rapaz algum a acompanhas s e . Desceu sozinha a
alameda ensaibrada, apenas aparecendo à porta uma
das irmãs Martin, a despedir-se dela, com cortesia
aparentemente cerimoniosa.
Harriet não pôde fazer logo um relato preciso da
visita. Tinha o espírito demasiado ocupado; mas , por
fim, Ema conseguiu colher dela o suficiente para lhe
dar uma ideia de como aquela decorrera e do género
de mágoa que criara na amiga. Apenas tinha visto
Mrs . Martin e as duas raparigas . Haviam-na recebido
ambiguamente, senão friamente; e durante a visita, a
conversa girou quase toda em volta dos mais correntes
lugares-comuns , até que , para o fim, Mrs . Martin
di s s e , de chofre , que achava Miss Smith muito
desenvolvida, trazendo assim a lume um assunto mais
interessante e um ambiente um pouco mais íntimo.
Naquela mesma saleta, em Setembro passado, ela e
as duas amigas tinham medido as respectivas alturas .
Viam-se ainda os riscos e os números a lápis na
ombreira da j anela. Tinha-os ele marcado. Todas elas
pareciam recordar o dia, a hora, o serão, - sentir a
mesma consciência do facto, as mesmas saudades -
querer voltar ao bom entendimento doutro tempo; e
estavam j á assumindo o seu antigo modo (Harriet,

1 92
EMA

segundo Ema suspeitava, tão disposta como elas a


mostrar-se cordial e alegre ) , quando a carruagem
chegou e tudo terminou. O carácter e a brevidade da
visita fizeram-se então sentir decisivamente . Dedicar
catorze minutos àqueles com quem havia passado seis
gratas semanas, seis meses atrás ! . . . Ema não podia
deixar de compreender quão j ustamente eles haviam
de estar ressentidos, quão logicamente Harriet devia
sofrer. Era uma situação crític a . Teria dado ou
suportado tudo para ver os Martin numa classe mais
elevada. Eram tão merecedores, que um poucochinho
mais seria o suficiente; mas assim, como podia ela
proceder doutra forma? Impossível ! Não tinha de que
se arrepender. Eles tinham de se separar; mas o
processo era muito doloroso - nessa altura, era-o
tanto para ela que sentiu a necessidade de um pouco
de conforto e, no seu caminho para casa, resolveu
passar por Randalls, no intuito de o obter. Sentia-se
atrozmente enfastiada de Mr. Elton e dos Martin.
Tornava-se absolutamente necessário o refrigério de
Randalls .
Era uma boa medida; mas quando s e preparava
para bater à porta, disseram-lhe que nem «O senhor
nem a senhora estavam em casa» ; tinham saído havia
um bocado ; o criado j ulgava que tivessem ido a
Hartfield.
- Que aborrecimento ! - exclamou Ema, voltando
para trás . - Justamente agora é que não havíamos
de os encontrar! Que arrelia! Nunca me senti tão
contrariada.
E encolheu-se a um canto , para se lamentar e
meditar à vontade; naturalmente, ambas as coisas ,
pois tal é o processo mais vulgar de um espírito
indisposto. Pouco depois a carruagem parou; ela olhou
para fora: havia sido detida por Mr. e Mrs . Weston,
que estavam j unto da portinhola para lhe falar. Ao
vê-los, sentiu instantaneamente um enorme prazer, e
ainda maior prazer foi o que se seguiu, pois Mr. Weston
interpelou-a logo com estas palavras:
- Então, como passou?! Estivemos com seu pai . . .

1 93
JA NEA USTEN

folguei muito em o ver de saúde. Frank vem amanhã . . .


recebi uma carta dele esta manhã . . . vê-lo-emos, de
certeza, amanhã, à hora do j antar . . . está hoj e em
Oxford e vem por quinze dias . . . eu sabia que ele havia
de vir. Se tiv e s s e vindo pelo Na t a l , não podia
demorar-se mais de três dias . Sempre gostei que não
tivesse vindo pelo Natal; e agora temos justamente o
tempo próprio para a sua estada cá: um belo tempo,
seco e seguro . O prazer da sua companhia será
completo ; correu tudo exactamente à medida dos
nossos desejos.
Não era possível resistir a tal notícia, não havia
pos sibilidade de evitar o contágio da expre s s ão
radiante de Mr. Weston, confirmado como tudo era
pelas palavras e pelo semblante da esposa, menos
prolixa numas e mais calma no outro, mas não menos
sugestiva. Saber que ela considerava como certa a
vinda do enteado era o bastante para Ema acreditar
nela e sinceramente os secundar na sua alegria. Era
uma deliciosíssima reanimação para espíritos exaus­
tos . O enfadonho passado seria absorvido pela frescura
do porvir; e uma ideia rápida como um instante
sugeriu-lhe a esperança de que, agora, ia não mais se
falaria em Mr. Elton.
Mr. Weston relatou-lhe a história dos compromissos
de Enscombe, que permitiam que o filho dispusesse,
à sua vontade, de uma quinzena, e igualmente lhe
descreveu o itinerário e o plano da viagem; e ela ouvia,
sorria e congratulava-se.
- Terei muito gosto em o apresentar em Hartfield
- disse ele, à laia de conclusão.
Ema juraria ter visto a esposa tocar-lhe no braço,
quando ele disse estas palavras.
- Seria melhor irmos, Mr. Weston; - disse ela -
estamos, a demorar as pequenas .
- Bem, bem, já vou . . .
E voltando-se mais uma vez para Ema:
-. . . mas não espere ver um rapaz muito fino . . . Sabe
que tem o exemplo em mim . . . Afirmo-lhe que ele nada
tem de extraordinário.

1 94
EMA

Todavia , ao mesmo tempo que falava, o olhar


cintilava-lhe de convicção muito diferente .
Ema fingiu não o notar e respondeu de uma
maneira que em nada a comprometia.
- Pense em mim amanhã, por volta das quatro,
minha querida Ema - foi a recomendação que Mrs .
Weston lhe deu ao despedir-se. Isto foi dito com uma
certa ansiedade e dirigia-se unicamente a ela.
- Às quatro ! . . . Pode ter a certeza de que ele há-de
cá estar às três - rectificou Mr. Weston vivamente.
E assim terminou o agradabilíssimo encontro .
O estado de espírito de Ema elevara-se até às
alturas da felicidade ; tudo se revestia de um aspecto
diferente : James e os cavalos j á não pareciam tão
indolentes como até ali . Olhou para as sebes e disse
de si para si que os sabugueiros deviam estar prestes
a brotar; e, voltando-se para Harriet, viu nela como
que uma expressão primaveril, um terno sorriso até .
- Passará Mr. Frank Churchill por Bath, assim
como passa por Oxford? - foi, todavia, a pergunta
que ela fez, pergunta que não pressagiava grande
coisa. - Mas a geografia e a tranquilidade não podiam
aparecer juntas ; e Ema achava-se agora com humor
para confiar que elas apareceriam a seu tempo.
Chegou a manhã do interessante dia e a fiel pupila
de Mrs . Weston não se esqueceu, nem às dez , nem às
onze, nem ao meio-dia, de que devia pensar nela às
quatro.
«Minha querida amiga, minha ansiosa amiga, -
dizia ela em solilóquio, enquanto saía do quarto e
descia a escada - sempre cuidadosa em extremo pelo
bem-estar de todos menos pelo seu . . . Estou a vê-la
entregue às suas pequenas tarefas, andando de um
lado para o outro no quarto dele, a certificar-se de que
tudo está em ordem» .
O relógio batia o meio-dia n a ocasião e m que ela
atravessava o vestíbulo.
« É meio-dia, não me hei-de esquecer de pensar nela
daqui a quatro horas . E amanhã por esta hora, talvez,

195
JA NEA USTEN

ou mais tarde, devo estar pensando na possibilidade


da visita deles todos. Tenho a certeza de que não se
demorarão em o trazer cá» .
Abriu a porta da saleta e viu dois cavalheiros
sentados a falar com o pai - Mr. Weston e o filho .
Tinham chegado poucos minutos antes; Mr. Weston
mal havia acabado de explicar a razão de Frank ter
chegado um dia antes do que prometera, e o pai ainda
estava a meio das amabilís simas boas-vindas e
congratulações, quando ela apareceu para compar­
tilhar da surpresa, da apresentação e do prazer.
O tão falado, o tão almej ado Frank Churchill
encontrava-se realmente na sua frente - era-lhe
apresentado, e ela não achou exagerado o que haviam
dito em seu louvor; era um mancebo de muito boa
figura: estatura, maneiras, garbo, tudo era irrepre­
ensível, e o semblante revelava muito do espírito e da
vivacidade do pai ; parecia fino e ponderado. Sentiu
logo que havia de gostar del e ; havia nele uma
desenvoltura de pessoa bem educada e uma facilidade
de expressão que a persuadiram de que ele vinha com
a intenção de se familiarizar com ela e de que não
tardaria muito que e s s a intimidade fo s s e uma
realidade .
Tinha chegado a Randalls na véspera, à noite . Ela
sentia-se deliciada com a impaciência que o tinha
levado a alterar os seus planos e a fazer a viagem com
maior rapidez, de noite e de madrugada, com o fim de
ganhar meio dia.
- Eu bem lhes disse ontem, - exclamava Mr.
Weston, exultante - eu bem lhes disse a todos que
e l e havia de cá estar antes da hora marcad a .
Lembro-me muito bem d o que e u próprio costumava
fazer. Não se tem paciência para andar devagar; não
se pode deixar de chegar mais cedo do que se havia
planeado; e o prazer de aparecer aos amigos quando
eles menos nos esperam, vale bem qualquer pequeno
esforço que exija.
- Realmente , é um grande prazer, quando há
razões para ele, - retorquiu o filho - se bem que não

196
EMA

creia haver muitas casas que mo proporcionem; no


entanto , ao vir a c a s a , s enti que alguma coisa
ganharia.
A expressão a casa fez com que o pai olhasse para
ele com um novo ar de satisfação. Ema percebeu logo
que ele conhecia a arte de agradar; e essa convicção
foi fortalecida pelo que se seguiu. Mostrou-se encan­
tado com Randalls, achou a casa muito a seu gosto,
não admitindo sequer que fosse pequena de mais,
gabou-lhe a situação, elogiou o caminho para High­
bury, a própria Highbury e ainda mais Hartfield, e
confessou ter sempre nutrido pela região - aquele
grau de interesse que só a nossa região pode inspirar,
além de haver sentido a mais profunda curiosidade
de a visitar. Que ele j amais houvesse sido susceptível
de alimentar tão afectuosas disposições , foi a suspeita
que passou pelo espírito de Ema; mas ainda que aquilo
não passasse de falsidade, era uma falsidade habil­
mente manobrada, que agradava. Os seus modos não
denotavam estudo nem exagero. Nos gestos e na lin­
guagem aparentava realmente uma alegria invulgar.
Os assuntos por eles debatidos eram, de uma forma
geral, aqueles que são habitualmente versados entre
pessoas que se conhecem muito bem . Por parte dele,
ouviam-se perguntas como estas - «Montava a
cavalo? - Bons passeios? - E a pé? - Havia muita
gente na região com quem se dessem? - Highbury
talvez oferecesse bastantes relações, não? - Vira lá e
nos arredores lindas casas . . . - E bailes? Davam-se lá
bailes? - Era sociedade que cultivasse a música ou
não?»
Mas, depois de satisfeitas todas estas interrogativas
e à medida que a intimidade aumentava propor­
cionalmente, conseguiu ele descobrir oportunidade,
enquanto os respectivos pais se achavam entretidos,
de introduzir a madrasta na conversa e referir-se-lhe
com tão solícito louvor, com tão fervorosa admiração,
com tanta gratidão pela felicidade que assegurava ao
pai e pela amabilíssima recepção que lhe fizera, que
provou assim, mais uma vez, a sua arte de agradar

197
JA NEA USTEN

- e, certamente, a sua convicção de quanto valia a


pena procurar agradar a Mrs . Weston. No seu elogio
não proferiu uma só palavra além daquilo a que ,
conforme Ema sabia, Mrs . Weston tinha indiscutível
jus; mas era fora de dúvida que ele, nesse capítulo,
muito pouco sabia. Tinha a intuição daquilo que devia
agradar, e nada mais.
- O casamento de meu pai - dizia ele - foi uma
medida muito sensata; todas as pessoas que o estimam
deviam regozij ar-se com isso; e a família aonde ele foi
buscar tal tesouro devia ser considerada como tendo­
-lhe prestado o mais elevado favor.
Aproximou-se tanto quanto pôde do ponto de lhe
manifestar a sua gratidão pelos méritos de Mrs .
Weston, sem, de modo algum, parecer esquecer que,
pela ordem natural das coisas , era mais de supor que
fosse Miss Taylor quem houvesse formado o carácter
de Miss Woodhouse do que Miss Woodhouse o de Miss
Taylor. E, finalmente, como se decidisse a definir por
completo a sua opinião, focando o objecto sob todos os
aspectos , exprimiu, em conclusão, o seu espanto pela
j uventude e pela beleza da madrasta.
- E stava preparado para ver uma mulher de
maneiras finas e insinuante s ,- disse ele - mas
confesso que, consideradas todas as circunstâncias,
não esperava mais do que uma pessoa de certa idade,
se bem que de aparência muito agradável : não sabia
que viria encontrar uma linda jovem em Mrs . Weston.
-Na minha opinião, o senhor nunca verá perfeições
de mais em Mrs . Weston - disse Ema.-Eu não dei­
xaria de o ouvir com prazer, se lhe atribuísse dezoito
anos ; mas ela é que se indignaria consigo por usar de
tal linguagem. Não lhe dê a conhecer que se lhe referiu
como se ela fosse uma linda jovem.
- Espero saber falar como convém - retorquiu
ele. - Não; (e com uma galante inclinação de cabeça),
pode ter a certeza de que, ao dirigir-me a Mrs . Weston,
saberei elogiar sem perigo de que achem exageradas
as minhas expressões .

198
EMA

Ema perguntou a si própria se não teria atra­


vessado o espírito dele a mesma suspeita do que havia
a esperar do seu conhecimento mútuo, suspeita que
tão fortemente se apossara do espírito dela, e se os
seus cumprimentos deviam considerar-se como provas
de submissão ou como marcas de desafio . Tinha de o
conhecer melhor para compreender os seus intuitos ;
d e momento, apenas via quanto ele era insinuante .
Ela não alimentava dúvidas sobre o que Mr. Weston
e s t av a p e n s ando a respeito daquela convers a .
Surpreendeu-lhe o olhar perspicaz , repetidas vezes
voltado para eles com uma expressão de contenta­
mento; e mesmo quando ele, porventura, resolvia não
olhar, ela tinha a certeza de que não deixava de estar
à escuta.
O facto de o pai ser completamente alheio a pen­
samentos de tal ordem, a sua absoluta carência de tal
género de penetração ou suspicácia, era uma cir­
cunstância extremamente agradável. Felizmente, ele
não estava mais próximo de aprovar um casamento
do que de prevê-lo . Não obstante fazer sempre obj ec­
ções a todos os consórcios que se aj ustavam, nunca
sofria antecipadamente da apreensão que lhe cau­
sariam; dir-se-ia que não era capaz de fazer tão mau
juízo da inteligência de duas pessoas a ponto de as
j ulgar dispostas a casarem-se, enquanto se não
verificasse que isso era uma realidade . Ema dava
graças a Deus por tão vantajosa cegueira. Mr. Wood­
house podia assim, sem despertar o menor vislumbre
de suspeita, a mínima desconfiança de qualquer
possível traição por parte do visitante, dar largas à
sua benevolente delicadeza, inquirindo solicitamente
das condições em que Mr. Frank Churchill fizera a
j ornada, suportando os incómodos de dormir duas
noites no caminho, e exprimir uma genuína e pura
ansiedade ao saber que ele havia escapado, por um
triz, de apanhar uma pneumonia, sem que, contudo,
se houvesse completamente tranquilizado senão na
noite seguinte.

1 99
JA NEA USTEN

Vendo que a visita j á havi a durado o tempo


indispensável, Mr. Weston levantou-se, dizendo que
tinha de se ir embora, pois precisava de tratar de uma
questão na Coroa , a respeito do seu feno, e tinha uma
porção de compras a fazer no Ford para Mrs . Weston;
mas não queria obrigar ninguém . . .
O filho, bastante educado para ouvir segunda vez
a sugestão, levantou-se imediatamente também,
dizendo :
- Como vai tratar de negócios, senhor, aproveitarei
a oportunidade para fazer uma visita, que tinha de
ser feita mais dia menos dia e, portanto, pode ser
agora. Tenho a honra de conhecer, uma vizinha sua
acrescentou, voltando-se para Ema - uma senhora
que reside em Highbury ou perto; trata-se de uma
família de nome Fairfax. Julgo que não hei-de ter
dificuldade em encontrar a casa, se bem que Fairfax
não sej a bem o seu nome, creio eu . . . parece-me que é
Barnes , ou Bates. Conhece alguma família com este
nome?
- Claro que conhecemos - exclamou o pai. - Mrs .
Bates . . . passámos por sua casa . . . e eu vi Miss Bates à
j anela. Verdade , verdade, conheces Miss Fairfax?
Agora me lembro de que a conheceste em Weymouth . . .
bela rapariga que ela é ! Deves ir visitá-la, sej a como
for.
- Não há necessidade absoluta de a ir ver esta
manhã - disse o mancebo; -poderia fazê-lo em
qualquer outro dia. Mas criou-se um tal grau de
intimidade em Weymouth que . . .
- Ah! Vai hoje, vai hoje . . . Não adies a visita. Nunca
é cedo de mais para se cumprir um dever. E, além
disso, devo avisar-te de uma coisa, Frank: aqui tem
de se evitar cuidadosamente a menor falta de atenção
para com ela. Eu vi-a com os Campbell quando ela
estava em igualdade de circunstâncias com aqueles
com quem andava, mas , aqui, habita com a pobre avó,
que mal tem com que viver. Se não vais visitá-la
quanto antes , será uma desconsideração .

200
EMA

O filho parecia convencido .


- Ouvi-a referir-se ao vosso conhecimento disse
Ema; - é uma jovem muito elegante.
Ele concordou, mas com um «sim» tão discreto que
a fez duvidar da sua real convicção nesse sentido; e,
contudo, admitindo que Jane Fairfax fosse apenas
dotada de um género de elegância vulgar, é porque
devia haver para o mundo da moda um outro género
muito diferente.
- Se nunca s e sentiu impressionado com as
maneiras dela, - disse Ema - estou certa de que se
há-de impressionar hoj e . Há-de vê-la muito mais
apurada: vê-la e ouvi-la . . . isto é, receio bem que não
consiga ouvi-la, pois tem uma tia que nunca põe um
freio na língua.
- Conhece então Miss Jane Fairfax? - disse Mr.
Woodhouse, sempre atrasado na conversa. - Nesse
caso, deixe-me dizer-lhe que vai achá-la encantadora.
Está cá de visita à avó e à tia, umas senhoras muito
dignas; tenho-as conhecido toda a minha vida. Elas
terão enorme prazer em o ver, estou convencido disso;
um dos meus criados acompanha-o, para lhe ensinar
o caminho.
- Oh! meu caro senhor, por nada deste mundo .
Meu pai pode indicar-mo.
- Mas seu pai não vai para lá; fica no tribunal, no
outro extremo da rua, e até lá ainda há muitas casas .
Pode ver-se embaraçado e, além disso, é um caminho
muito lamacento, a não ser que vá pelo atalho . Mas o
meu cocheiro indica-lhe em que ponto deve atravessar
a rua.
Mr. Frank Churchill, no entanto, declinou a oferta,
conservando-se tão sério quanto possível, e o pai
apoiol!-O energicamente, exclamando:
- O meu bom amigo, é inteiramente desnecessário;
Frank sabe evitar os lamaçais, e quanto à casa de Mrs .
Bates , chega da Coroa lá num pulo.
Finalmente, permitiram-lhes que fossem sós; e com
um cordial aceno de cabeça de um e uma graciosa
mesura de outro, os dois cavalheiros despediram-se .

201
JA NEA USTEN

Ema ficou verdadeiramente encantada com este início


de relações : agora podia pensar em toda a família de
Randalls a qualquer hora do dia, plenamente confiante
de que viviam felizes.

CAP Í TULO XXIV

Mr. Frank Churchill compareceu de novo na manhã


seguinte . Vinha acompanhado de Mrs . Weston, por
quem parecia nutrir o mesmo cordial afecto que nutria
por Highbury. Tinha-se demorado em casa a fazer-lhe
amigável companhia, até à hora do passeio que ela
habitualmente d av a ; e , convi dado a e s colher o
itinerári o , decidi u - s e logo por Highbury . «Não
duvidava de que houvesse magníficos passeios para
qualquer outro lado, mas , se o deixassem, escolheria
sempre o mesmo. Highbury, a clara, a alegre, a feliz
Highbury, seria a sua constante atracção». Highbury,
em companhia de Mrs . Weston, significaria Hartfield;
e ela considerava-a no mesmo sentido, em companhia
dele. Dirigiram-se para lá imediatamente .
Ema nem por sombras os esperava: com efeito, Mr.
Weston, que tinha lá ido por curtos momentos, apenas
para ouvir dizer que o filho era muito elegante, nada
s abia dos proj ectos que eles haviam formado ; foi,
portanto, uma agradável surpresa para ela, quando
os viu encaminharem-se de braço dado para sua casa.
Estava ansiosa por vê-lo outra vez, e, sobretudo, em
companhia de Mrs . Weston, cuj a opinião acerca dele
dependeria da sua forma de proceder. Se então
incorresse em falta, nada poderia remediar-se. Mas,
ao vê-los j untos, Ema ficou extremamente satisfeita.
Não foi com meras palavras de cortesia ou cum­
primentos hiperbólicos que ele cumpriu os seus
deveres de civilidade; nada podia ser mais correcto e
cativante do que os seus modos para com ela - não
podia haver forma mais encantadora de patentear o

202
EMA

seu desejo de a ter como amiga e de se assegurar da


sua amizade . E houve tempo de sobra para Ema
formar um juízo concreto, visto que a visita ocupou
toda a manhã. Foram todos os três dar uma volta pelas
imediações durante uma hora ou duas - primeiro,
pelas alamedas de Hartfield, depois, por Highbury.
Frank mostrava-se encantado com tudo . Gabou
Hartfield em voz suficientemente alta para chegar aos
ouvidos de Mr. Woodhouse; e quando ficou resolvido
prolongarem o p a s s e i o , manifestou o d e s ej o de
conhecer melhor a terra e achou matéria, para tecer
louvores e mostrar-se interessado, com muito mais
frequência do que Ema teria suposto.
Alguns dos alvos da sua curiosidade eram motivo
de que ele reve l a s s e s e ntimentos de profunda
afectuosidade . Pediu que lhe mostrassem a casa em
que seu pai tinha vivido durante tantos anos e que
havia sido a casa do pai de seu pai; e, ao recordar-se
de que ainda vivia uma velhota que lhe tinha servido
de ama, dirigiu-se à procura da sua cabana, per­
correndo a rua de uma ponta à outra. Além disso, não
obstante não residir grande mérito na busca ou na
atenção dedicadas a certos lugares, elas mostravam,
sem dúvida alguma, tão boa vontade por Highbury,
em geral, que essa circunstância devia assemelhar-se
ao mérito, na opinião daquelas com quem ele ia.
Ema, observando-o, estava convencida de que com
tais sentimentos como os que agora se patenteavam,
não seria razoável admitir que ele se houve sse
conservado tanto tempo ausente por sua própria
vontade, que tivesse estado a representar um papel
ou a fazer ostentação de desígnios menos sinceros, e
que Mr. Knightley lhe houvesse, porventura, feito
j ustiça.
A primeira paragem que fizeram foi na Estalagem
da Coroa, hospedaria insignificante, se bem que a
primeira no género, onde havia uma parelha de
cavalos de posta, mais para conveniência da vizi­
nhança do que para serviço da estrada. É claro que
não era de esperar que as companheiras de Frank

203
JA NEA USTEN

fossem ali detidas por algum interesse, mas, ao


passarem por lá, elas relataram a história do espaçoso
salão visivelmente edificado como anexo : havia sido
construído muitos anos atrás para sala de baile, e
enquanto os habitantes da terra foram amigos de
dançar e ali afluíram em massa, tinha sido utilizada
como tal; mas esses dias brilhantes tinham passado
há muito e, agora, a principal aplicação que lhe davam
era adaptá-la a clube de whist, colectividade cons­
tituída pelos gentlemen e semi-gentlemen da terra.
Frank mostrou-se logo interessado. A reputação como
sala de baile arrebatou-o; e em lugar de passar adiante,
demorou-se alguns minutos junto das duas j anelas
sacadas do primeiro andar que estavam abertas, a
olhar para dentro e a apreciar a sua capacidade ,
lamentando que o fim primitivo a que havia sido
destinada tivesse sido posto de parte . Não achava
defeito algum na sala, não reconhecia nenhum dos
que elas sugeriam . Não : era bastante comprida,
bastante larga, de aspecto assaz agradável . Devia
comportar muita gente à vontade . Com certez a ,
haviam d e realizar lá bailes, pelo menos d e quinze em
quinze dias, durante o Inverno. Porque não tinha Miss
Woodhouse feito reviver os bons tempos da sala? Ela
que tudo podia em Highbury! A escassez de famílias
decentes na terra e a convicção de que ninguém, além
dos habitantes da terra e dos arredores mais próximos,
ali afluísse, foram as desculpas apresentadas ; mas ele
não ficou satisfeito. Não se persuadia de que tantas
casas de magnífico aspecto que via à sua volta não
contribuíssem com frequentadores suficientes para
aquele lugar de reunião; e nem mesmo quando se
expuseram pormenores e se focaram famílias ele quis
admitir que o inconveniente de tal mistura fosse de
grande importân c i a , ou que houve s s e a menor
dificuldade de que cada um se pusesse no seu lugar,
no dia s eguinte de manhã. Argumentava como
qualquer jovem apaixonado da dança; e Ema estava
um pouco surpreendida por ver o temperamento dos
Westons exercer tão decidida preponderância contra

204
EMA

os hábitos dos Churchills. Dir-se-ia que ele tinha toda


a vida e todo o espírito, todo o optimismo e todas as
tendências de sociabilidade do pai, e nada do orgulho
nem da reserva de Enscombe. Quanto a orgulho, talvez
houvesse, de facto, muito pouco; a sua indiferença pela
mistura de classes tocava as raias do mau gosto .
Contudo, ele não podia avaliar os inconvenientes a
que estava dando tão pouco valor. Não passava de
efusão de um espírito vivaz .
Finalmente, convenceu-se a deixar a Coroa ; e como
estivesse, enfim, quase defronte da casa em que habi­
tavam as Bates, Ema lembrou-lhe a visita proj ectada
no dia anterior e perguntou-lhe se já a tinha feito.
- Fiz, sim - respondeu ele; - ia mesmo agora
falar dela. Uma visita muito bem sucedida: Vi as três
senhoras ; e senti-me muito reconhecido para consigo
pelas suas palavras de preparação. Se a tagarela da
tia me houvesse tomado de surpresa, teria sido uma
desgraça para mim. Assim, fiquei quite com uma visita
enfadonha. Dez minutos teriam sido o indispensável ,
talvez o que era próprio; tinha dito a meu pai que,
com certeza, chegaria a casa antes dele - mas não
havia maneira de me livrar, não havia a mínima
pausa; e, para meu indizível espanto, verifiquei depois
de ele, por fim, ir lá ter comigo (pois não me encontrava
em parte alguma), que acabara por me demorar ali,
com elas, quase três quartos de hora. A boa senhora
não me dera a menor possibilidade de sair antes.
- E que tal achou Miss Fairfax?
- Mal , muito mal . . . isto é , se acaso se pode
considerar que uma menina tenha mau aspecto. Mas
a expressão não é muito de admitir, pois não, Mrs .
Weston? As senhoras nunca podem ter mau aspecto.
A sério: Miss Fairfax é tão macilenta que quase: nos
faz convencer de que é doente.
Ema não podia concordar com isto e principiou uma
defesa cerrada do semblante de Miss Fairfax.
- Não é certamente muito corada, mas não acho
que ela tenha uma tez doentia; além disso, possui uma
pele tão macia e delicada que do seu rosto irradia uma
beleza especial .

205
JANEA USTEN

Ele escutou-a com toda a deferência que lhe era


devida; declarou que tinha ouvido muita gente dizer
o mesmo - no entanto, devia confessar que, na sua
opinião, nada havia que compensasse a falta do brilho
da saúde. Uma bonita cor imprime beleza até às feições
mais vulgares. E quando estas são correctas , o efeito
então . . . felizmente não tinha necessidade de descrever
o efeito.
- Bem, - disse Ema - gostos não se discutem.
Mas, ao menos, embora não lhe agrade o semblante,
admira-a de uma forma geral, não?
Ele abanou a cabeça e riu:
- Não posso separar Miss Fairfax do seu sem­
blante .
- Viu-a muitas vezes em Weymouth? Encontra­
ram-se muitas vezes nos mesmos lugares de reunião?
Nesse momento aproximavam-se da loj a de Ford,
e ele exclamou vivamente :
- Ah! com certeza, é esta a loj a onde toda a gente
se abastece de tudo o que é indispensável às suas
necessidades diárias , como meu pai me contou. Diz
ele que vem a Highbury seis dias por semana e tem
sempre compras a fazer no Ford. Se não se importam,
entremos, para provar que sou da terra, que sou um
verdadeiro cidadão de Highbury. Tenho de comprar
qualquer coisa no Ford. Será a minha carta de alfor­
ria . . . Julgo que vendem luvas . . .
- Oh, sim! luvas e muitas mais coisas. Admiro o
seu bairrismo! Hão-de adorá-lo em Highbury. O senhor
j á gozava de popularidade antes de vir, por ser filho
de Mr. Weston . . . mas gaste um guinéu no Ford e verá
que a sua popularidade lhe há-de conferir todas as
virtudes . . .
Entraram; e enquanto s e tiravam das prateleiras e
se expunham no balcão os reluzentes e bem atados
pacotes de Men's Beavers e York Tan, Frank disse:
- Mas . . . desculpe, Miss Woodhouse . . . estava a falar
comigo, dizia qualquer coisa quando eu patenteei o
meu amor patriae . . . Não me prive do que ia a dizer.
Garanto-lhe que nem o mais elevado grau de reputação

206
EMA

me compensaria da perda da mais pequena satisfação


na minha vida particular.
- Apenas lhe perguntava se havia travado íntimo
conhecimento com Miss Fairfax e com a sua gente,
em Weymouth.
- Pois agora que compreendi a sua pergunta, devo
dizer que a acho muito pouco razoável . Está sempre
nas mãos de uma senhora decidir do grau de inti­
midade com quem quer que seja. Miss Fairfax j á deve
ter apresentado o seu ponto de vista, e eu não me
atrevo a pretender mais do que aquilo que ela,
porventura, haj a determinado conceder.
- Essa agora! . .. O senhor responde de uma maneira
tão discreta como ela própria teria respondido. No entanto,
o que ela me disse dá lugar a supor tanta coisa, ela é tão
reservada, mostra-se tão pouco disposta a revelar seja o
que for a respeito de alguém, que, realmente, penso que
o senhor podia muito bem dizer alguma coisa acerca do
grau de intimidade que há entre os dois.
- Acha? Nesse caso, vou dizer a verdade . . . até me
convém. Encontrava-a frequentemente em Weymouth.
Eu conhecia os Campbells um pouco, de Londres; e
em Weymouth mantínhamos mais ou menos as
mesmas relações. O coronel Campbell é uma pessoa
muito agradável e Mrs . Campbell é uma senhora
extremamente afável e comunicativa. Simpatizo com
todos eles .
- O senhor conhece a situação de Miss Fairfax,
julgo eu . . . isto é, sabe aquilo a que ela se destina . . .
- Sim . . . - respondeu ele u m pouco hesitante -
creio que conheço .
- Está entrando numa questão muito delicada,
Ema.- observou Mrs . Weston, sorrindo. - Lembre-se
de que estou aqui. Mr. Frank Churchill mal sabe o
que há-de dizer, se lhe fala na situação de Miss Fairfax.
Eu vou andando . . .
- Realmente, - disse Ema - esqueço-me de ver
nela outra coisa que não sej a a minha amiga, a minha
mais querida amiga.

207
JA NEA USTEN

Frank olhou para ela como se compreendesse e


respeitasse plenamente aqueles sentimentos.
Compradas as luvas, disse ele, depois de saírem do
estabelecimento :
- Já ouviu essa senhora de que falávamos tocar
piano?
- Se já a ouvi repetiu Ema. - O senhor esquece-se
de que ela é, de Highbury . . . Oiço-a desde que ambas
começámos a aprender. Toca primorosamente !
- Pensa assim? A verdade é que eu precisava de
conhecer a opinião de alguém competente. No meu
entender, ela toca muito bem, isto é, com gosto, mas
eu não percebo nada da matéria. Gosto imenso de
música, mas não tenho o mínimo talento nem o direito
de apreciar o desempenho de quem quer que seja.
Estava habituado a ouvir elogiar o de Miss Fairfax e
recordo-me de um exemplo do apreço em que a tinham:
um homem, uma verdadeira competência em música,
enamorado de uma mulher . . . e comprometido com
ela . . . sob o ponto de vista de casamento . . . nunca pediria
a outra mulher que se sentasse ao piano . . . se a dama
em questão pudesse lá sentar-se em lugar dela . . . com
certeza nunca iria ou vir uma, desde que pudesse ouvir
a outra. Parece-me que isto, num homem de reco­
nhecido talento musical, é uma prova . . .
- Realmente, é uma prova - disse Ema, altamente
divertida. - Mr. Dixon é um grande conhecedor de
música, não é? Nós , quando ouvimos Mr. Frank,
ficamos, em meia hora, a saber mais a respeito deles
todos do que Miss Fairfax o teria permitido em seis
meses.
- É verdade : trata-se de Mr. Dixon e de Miss
Campbell. Acho que é uma prova bem concreta.
- Efectivamente . . . é bem concreta. Para dizer a
verdade, é muito mais concreta do que seria agradável
para mim, no caso de eu estar no lugar de Miss
Campbell . . . Não poderia perdoar a um homem que se
dedicasse mais à música do que ao amor. . . que tivesse
mais ouvidos que olhos . . . que fosse mais sensível às

208
EMA

harmonias que aos meus sentimentos. Como é possível


que Miss Campbell tenha apreciado tudo isso?
- Sabe, era a sua amiga íntima . . .
- Fraca consolação ! - exclamou Ema, rindo . - É
preferível ser-se preterida por uma estranha a sê-lo
por uma amiga íntima . . . uma estranha pode es­
quecer-se . . . ao passo que uma amiga íntima está
desgraçadamente sempre ao pé, a lembrar a sua
superioridade ! Pobre Mrs . Dixon ! . .. Por isso, folgo
muito que ela tenha ido para a Irlanda.
- Tem razão. Não era muito, lisonj eiro para Miss
Campbell; mas, na realidade, ela não parecia senti-lo
muito.
- Tanto melhor . . . ou tanto pior: não sei o que
prefira. Mas, seja brandura ou estupidez dela . . . viva
amiz ade ou falta de sensibilidade . . . havi a uma
pessoa, penso eu, que o devia sentir: Miss Fairfax.
Ela é que devia sentir o indecoroso e o arriscado da
distinção.
- Quanto a isso . . . eu não . . .
- Oh! não imagine que estej a à espera de que o
senhor ou qualquer outra pessoa me descreva os
sentimentos de Miss Fairfax. Não há ser humano
que os conheça senão ela, suponho eu. Mas se ela
continuasse a tocar todas as vezes que Mr. Dixon
lhe pedisse, bem se pode fazer ideia do que isso signi­
ficava.
- Parecia haver um entendimento tão perfeito
entre eles todos . . . - começou ele vivamente ; mas
impressionado, acrescentou:
- Contudo, é-me impossível dizer em que termos
eles realmente estavam . . . o que haveria por detrás do
cenário. Apenas posso dizer que, aparentemente, havia
muita correcção. Mas a senhora, que conhece Miss
Fairfax desde criança, deve ser melhor juiz do seu
carácter e deve saber melhor do que eu como é que
ela, porventura, se comporta em situações criticas .
- Conheço-a desde criança, realmente; crescemos
j untas e é natural que se suponha que mantemos

209
JA NEA USTEN

intimidade, que nos correspondíamos uma com a outra


quando ela estava em casa dos seus amigos. Mas não
sucedeu nada disso. Nem sei bem porquê; talvez por
um pouco de embirração da minha parte, causada pela
propensão de antipatizar com uma rapariga tão
idolatrada e tão elogiada como ela era pela tia e pela
avó e todas as visitas da casa. E depois, o seu feitio
reservado . . . Nunca poderia ser amiga de uma pessoa
tão reservada.
- De facto, é uma qualidade que desgosta - disse
ele. - Muitas vezes , tem a sua conveniência, sem
dúvida, mas nunca é agradável. A reserva proporciona
segurança, mas não é um atractivo. Não se pode amar
uma pessoa reservada.
- Não, enquanto a reserva não cessa; é que, então,
a atracção ainda pode tornar-se maior . Mas , com
certeza, devo ter muita necessidade de uma amiga ou
de uma companheira agradável, para me dar ao
incómodo de vencer a reserva de alguém, no intuito
de a captar. A intimidade entre mim e Miss Fairfax
está completamente fora da questão . Não tenho
qualquer razão para fazer mau juízo dela. . . de maneira
alguma . . . a não ser por essa extrema e constante
cautela na linguagem e nos gestos, esse receio de dar
uma ideia nítida de quem quer que sej a, que é de molde
a criar suspeitas de que haj a alguma coisa a ocultar.
Frank concordou plenamente com ela; e Ema, no
fim desta troca de pensamentos, sentiu que havia entre
eles tal grau de familiaridade que lhe custava a
acreditar que fosse aquele apenas o seu segundo
encontro. Ele não era exactamente o que ela tinha
esperado; menos mundano em algumas das suas
noções, menos filho mimado da fortuna e, portanto,
melhor do que esperava. As suas ideias pareciam mais
modestas - os seus sentimentos mais afectuosos . Ela
sentia-se particularmente impressionada pela maneira
como ele considerava a casa de Mr. Elton, a qual, do
mesmo modo que a igreja, de boa vontade iria ver,
pois não as achava muito faltas de interesse.

210
EMA

Não, ele não achava que a casa fosse muito má; a


casa não era tão má que houvesse razão de se ter
pena do homem que a possuía. Habitada com a
mulher que ele amasse, nenhum homem era digno
de lástima por ser seu proprietário. Devia lá haver
espaço suficiente para se viver confortavelmente . O
homem que desej asse melhor que aquilo devia ser
um imbecil .
Mrs . Weston riu-se e disse que ele não sabia o que
dizia. Habituado a uma casa grande e sem nunca se
lembrar das vantagens e comodidades que o seu
tamanho oferecia, ele não podia avaliar as dificuldades
de acomodação a que inevitavelmente se estava sujeito
numa c a s a pequen a . Mas E m a , no seu ínti m o ,
entendia que ele sabia bem o que dizia e que revelava
uma amável tendência para se fixar cedo na vida e
casar, por motivos dignos de ponderação. Não podia
saber que os meandros da paz doméstica não partiam
do quarto da governanta, nem da dispensa do copeiro,
mas do que não havia dúvidas é que compreendia
perfeitamente que Enscombe não podia fazê-lo feliz e
que, quando um dia se sentisse apaixonado, de boa
vontade daria uma fortuna para se ver tão depressa
quanto possível instalado no seu lar.

CAP Í TULO XXV

A excelente opinião de Ema: a respeito de Frank


Churchill foi um pouco abalada no dia seguinte,
quando soube que ele tinha ido a Londres com o único
fim de cortar o cabelo . Parecia ter sido atacado de
súbito capricho ao almoço, e, tendo mandado vir uma
carruagem, partira, tencionando regressar à hora do
j antar, m a s , na ap arênci a , s e m outro de s ígnio
importante que não fo s s e o de cortar o cabel o .
Evidentemente, não havia mal algum e m fazer uma
viagem de dezasseis milhas por duas vezes , para tal

211
JANEA USTEN

fim; mas havia em tudo isso o seu quê de loucura e


insensatez que ela não podia aprovar. Não condizia
com a racionalidade de ideias , com a moderação nas
despesas, nem sequer com a desinteressada afec­
tividade que ela julgara distinguir nele, na véspera.
Vaidade , extravagância de génio, que o levavam a
fazer qualquer coisa, fosse ela boa ou má - negligência
pelos gostos do pai e de Mrs . Weston, indiferença pela
impressão que o seu comportamento , porventura,
causasse -eram estas as acusações a que ele se
expusera. O pai apenas lhe chamou peralvilho e achou
uma certa piada àquilo; mas que Mrs . Weston não
tinha gostado, era bastante claro, pois mal falou no
caso e não fez outro comentário senão o de que «todos
os rapazes tinham as suas venetas» .
C o m e x c e p ç ã o d e s t a pequena manch a , E m a
verificou que a sua visita tinha até então deixado n a
madrasta boas impressões d o rapaz . Mrs . Weston era
a primeira a reconhecer nele um companheiro
atencioso e agradável, que, ao mesmo tempo, impunha
simpatia pela sua índole insinuante. Frank revelara-se
um temperamento expansivo, evidentemente alegre
e comunicativo; ela não podia ver nada de falso nas
suas noções; pelo contrário, estas aproximavam-se da
perfeição; ele referia-se ao tio com afectuosa estima,
gostava de falar nele , dizia que ele seria o melhor
homem deste mundo se fosse sozinho, e, não obstante
dedicar pouco afecto à tia, reconhecia-se grato à sua
bondade e mostrava-se sempre disposto a falar dela
com respeito. Tudo isto era deveras prometedor; e a
não ser a infeliz lembrança de ir cortar o cabelo, nada
havia nele que o provasse indigno da distinta honra
que a imaginação de Ema lhe havia conferido - a
honra de o considerar, senão enamorado dela, pelo
menos muito próximo disso, e apenas contido pela
indiferença de Ema nesse ponto (pois ela mantinha a
resolução de nunca casar), a honra, em suma, de ela
atentar nele com especial interesse, logo depois de o
ter conhecido.
Mr. Weston, por seu lado, veio acrescentar ao

212
EMA

prestígio de Frank uma virtude que devia exercer uma


certa influência . Deu-lhe a entender que a filho
professava por ela uma admiração sem limites -
achava-a formosíssima e encantadora; e com tanta
coisa a aboná-lo, pensou ela que não devia j ulgá-lo
com demasiado rigor. Como Mrs . Weston observava,
«todos os rapazes tinham as suas venetas».
Havia entre os seus novos conhecimentos do Surrey
uma pessoa que não se sentia com tão benévola
disposição . Em geral, nas paróquias de Donwell e
Highbury j ulgavam-no com bastante indulgência;
desculpavam generosamente os pecadilhos de tão
simpático rapaz , que tinha o sorriso tão pronto e que
cumprimentava com tanta graça; mas entre essa gente
havia uma pessoa que não se deixava enternecer com
mesuras e sorrisos - Mr. Knightley.
O caso foi-lhe contado em Hartfield; durante um
momento guardou silêncio; mas Ema ouviu-o, quase
em seguida, murmurar, ao mesmo tempo que olhava
para o j ornal que tinha na mão:
- Hum! É exactamente o tipo frívolo e louco que
eu julgava.
Ema ficou meio ressentida; mas um instante de
observação convenceu-a de que o que ele dizia era
apenas por desabafo e não com o intuito de melindrar;
deixou, portanto, a frase sem reparo.
Se bem que, até certo ponto, Mr. e Mrs . Weston,
nessa manhã, fossem portadores de más notícias , a
sua visita foi, sob outro aspecto , particularmente
oportuna. Enquanto eles se encontravam em Hart­
field, ocorreu um facto que fez com que Ema sentisse
necessidade do seu conselho; e ainda para melhor
sorte, foi exactamente o conselho que eles lhe deram
que ela pretendia.
O caso foi o seguinte : Os Coles tinham fixado
residência em Highbury havia já alguns anos, e eram
muito boa gente: afáveis, generosos e despretensiosos;
mas, por outro lado, pertenciam a uma modesta classe
comercial e não primavam pela elegância de hábitos.
Quando se estabeleceram na região, limitaram-se a

213
JA NEA USTEN

viver em proporção com os seus rendimentos, levando


uma vida retirada, dando-se com pouca gente e fazendo
poucas despesas; mas havia um ano ou dois que os
seus meios tinham aumentado consideravelmente -
o estabelecimento da cidade tinha dado maiores lucros
e a fortuna acabara por lhes sorrir. Com a riqueza,
cresceram as suas aspirações: o desejo de uma casa
maior e uma tendência para maior sociabilidade .
Aumentaram a casa, o número de cri ados e as
despesas ; e agora desfrutavam em fortuna e trem de
vida apenas o segundo lugar entre as famílias de
Hartfield. O seu amor ao convívio e a sua nova sala de
jantar atraíam toda a gente aos seus j antares; e j á
haviam tido lugar algumas reuniões, frequentadas ,
sobretudo, por rapazes solteiros. Ema mal admitia que
eles se atrevessem a convidar as famílias mais
categorizadas - nem Donwell, nem Hartfield, nem
Randalls . Se o fizessem, nada a tentaria a aceder; e
lamentava que o bem conhecido feitio do pai não desse
à sua recusa todo o significado que ela desej aria. Os
Coles eram, de todo o ponto, respeitáveis no seu meio,
mas deviam saber que não lhes ficava bem pre­
tenderem que as famílias de distinção os visitassem.
Ema bem temia que fosse ela a única a dar-lhes esta
lição: pouco esperava de Mr. Knightley e nada de Mr.
Weston.
E stava, porém , tão preparada para receber a
pretensão, tantas semanas antes de a terem mani­
festado, que quando a afronta finalmente surgiu, foi
sob um aspecto diferente. Donwell e Randalls haviam
recebido o respectivo convite, sem que nenhum tivesse
sido dirigido a ela e ao pai; e a justificação de Mrs .
Weston para o facto: «Acho que não se atrevem a usar
de tal liberdade para convosco; sabem bem que não
iríeis lá jantar», não a satisfez . Gostaria de ter o prazer
de recusar; e depois, ao mesmo tempo que repeti­
damente lhe ocorria a ideia de que as pessoas que
afluíam à reunião eram precisamente aquelas cuj a
companhia lhe era mais grata, ela não s e lembrava de

214
EMA

que não tinha o direito de se deixar tentar por um


eventual convite. Harriet devia lá ir à noite, assim
como as Bates. Haviam falado nisso durante o passeio
da véspera, e Frank Churchill tinha deveras lamen­
tado a sua ausência. Não haveria baile? - fora uma
pergunta dele. A mera possibilidade de tal circuns­
tância actuava no espírito de Ema como um motivo a
mais de irritação; e o facto de ela ficar no meio da sua
solitária grandeza, ainda mesmo supondo a omissão
como uma marca de respeito , era um bem triste
conforto.
Foi justamente a chegada desse convite, na ocasião
em que os Westons estavam em Hartfield, que tornou
a sua presença tão conveniente; com efeito, embora a
primeira observação de Ema, ao lê-lo, fosse de que
«naturalmente recusava» , foi tal o seu empenho em
lhes perguntar o que lhe aconselhavam que o conselho
que lhe deram de ela ir teve um êxito completo.
Confessou que, considerando bem, não deixava de
ter certo desej o de assistir à reuni ão. O s Coles
expressavam-se com tanta correcção, revelavam-se
realmente tão atenciosos , mostravam tanta consi­
deração pelo pai! «Há mais tempo que teriam solicitado
essa honra, se não estivessem à espera de que lhes
mandassem de Londres um biombo, que, certamente,
resguardaria Mr. Woodhouse de qualquer corrente de
ar e que, portanto, seria mais uma razão para o induzir
a dar-lhes a honra da sua companhia» . No fim de
conta s , E m a era bem persuadível ; e depois de
combinada em poucas palavras a melhor forma de
aceitar o convite sem descurar o conforto do pai -
certamente podia contar-se com Mrs . Goddard ou com
Mrs . Bates , para lhe fazer companhia - tratou-se de
convencer Mr. Woodhouse a que desse a sua aquies­
cência a que Ema j antasse fora num dos próximos dias
e passasse todo o serão ausente dele . Quanto à sua
ida, Ema fez-lhe ver quanto isso era impossível: a
reunião deitava até muito tarde e a afluência era
numerosa. Mr. Woodhouse depressa se resignou.
- Não gosto de aceitar convites paraj antar - disse

215
JA NEA USTEN

ele .- Nunca gostei . E Ema também não . As noitadas


não nos agradam. Lamento que Mr. e Mrs . Cole o
tenham planeado . Seria muito melhor que eles
viessem uma tarde, no Verão, tomar chá connosco . . .
ou darem connosco um passeio pela tardinha; podiam
muito bem fazer isso, a horas razoáveis , e depois voltar
para casa, sem necessidade de apanhar a humidade
da noite. Por minha vontade, nunca exporia ninguém
aos orvalhos das noites de Verão. No entanto, já que
têm tanto empenho em que a querida Ema vá j antar
com eles e vós estareis lá ambos, e Mr. Knightley
também, para a acompanhar, não me oponho, contanto
que o tempo esteja em condições, nem húmido, nem
frio, nem ventoso.
Depois, voltando-se para Mrs . Weston , com um
olhar de leve censura:
- Ah! Miss Taylor! se não tivesse casado, podia
ficar em casa a fazer-me companhia.
- Pois bem, senhor, - exclamou Mr. Weston -
visto que fui eu quem lhe roubou Miss Taylor, tenho
obrigação de procurar quem a substitua; vou num
instante a casa de Mrs . Goddard, se quer.
Mas a ideia de se fazer qualquer coisa num instante ,
em vez de ser um lenitivo para o estado de excitação
de Mr. Woodhouse, ainda o agravou mais. As senhoras
sabiam melhor como haviam de o acalmar. Mr. Weston
teve que desistir da s u a diligência e as coi s as
compuseram-se a pouco e pouco .
Com esta forma de tratar, Mr. Woodhouse depressa
serenou o suficiente para poder conversar na forma
do costume.
«Teria muito gosto em ver Mrs . Goddard. Ele tinha
Mrs . Goddard em grande consideração: Ema devia
escrever-lhe umas linhas a convidá-la. James lhe
levari a o bilhete. Mas, primeiro que tudo , devia
mandar-se uma resposta a Mrs . Cole» .
- Apresentar-lhe-ás as minhas desculpas o mais
delicadamente que for possível, minha filha. Dir-lhe-ás
que sou um perfeito inválido, que não vou a parte
alguma e que, portanto, me vejo obrigado a declinar o

216
EMA

seu amável convite . Principiarás por apresentar os


meus cumprimentos, naturalmente . Mas expõe tudo
nos devidos termos . Não é preciso dizer-te como deves
fazer. Temos de lembrar a James que a carruagem
há-de ser precisa na terça-feira. Com ele, nada recearei
por tua causa. Desde que se construiu o novo caminho,
ainda não fomos para aqueles lados mais do que uma
vez; não tenho, porém, dúvidas de que James te há-de
lá pôr sem novidade. E quando fores, não te esqueças
de lhe dizer a que horas queres que ele te vá buscar;
o melhor seria indicar-lhe qualquer hora mais cedo.
Não hás-de gostar de ficar até tarde. Quando o chá
terminar, hás-de estar cansada . . .
- Então não quer que eu me retire enquanto não
estiver cansada, papá?
- Oh! não é isso, meu amor! Mas é que tu depressa
estarás cansada. Há-de haver muita gente a falar ao
mesmo tempo. E tu não gostas de barulho.
- Mas, meu caro senhor, - exclamou Mr. Weston
- se Ema vier muito cedo, desmanchará a festa.
- Não deve haver grande mal nisso - disse Mr.
Woodhouse. - As reuniões quanto mais cedo acaba­
rem, melhor.
- Mas o senhor não se lembra de que possa parecer
mal aos Coles . . . Se Ema sair logo depois do chá, podem
ficar ofendidos . São uma gente bem intencionada, que
pouco pensa nos próprios direitos; no entanto, devem
compreender que a saída precipitada de uma pessoa
não é um grande sinal de respeito ; e se for Miss
Woodhouse quem faça tal coisa, sentir-se-ão mais do
que se for qualquer outra pessoa. Estou convencido
de que o senhor não há-de querer melindrar e
mortificar os Coles, tão afáveis e tão bondosos como
poucos e que são seus vizinhos há dez anos.
- Não, por nada deste mundo, Mr. Weston! E
agradeço-lhe que mo tenha lembrado. Lamentaria
muito se lhes desse qualquer desgosto. Eu sei que são
umas pessoas muito dignas . Perry diz que Mr. Cole
não prova uma gota de cerveja. Quem olhar para ele

217
JA NEA USTEN

não diz que é bilioso . . . mas Mr. Cole sofre muito da


bílis. Não, de maneira alguma contribuiria para lhes
causar desgosto. Minha querida E m a , temos de
atender a isto. Tenho a certeza de que, a correr o risco
de ferir Mr. e Mrs . Cole, preferirás demorar-te um
pouco mais do que desej arias . Esquecer-te-ás de que
estás cansada. Bem vês , estarás perfeitamente entre
os teus amigos.
- Oh! sim, papá. Por mim não tenho medo nenhum;
e não teria escrúpulo algum de me demorar tanto como
Mrs . Weston, se não fosse lembrar-me de si. Receio
apenas que fique a pé por minha causa. Enquanto
Mrs . Goddard cá estiver, não há perigo de que não se
sinta bem . Como sabe, ela gosta muito de jogar aos
centos; mas, quando ela for para casa, temo que o papá
fique a pé, em lugar de se ir deitar à hora do costume . . .
e s ó a ideia d e tal coisa destruiria toda a minha
satisfação . Tem de me prometer que não fica a pé.
Mr. Woodhouse prometeu, em troca de algumas
promessas por parte dela, tais como : se viesse para
casa com frio, tinha de se abafar bem; se viesse com
fome, havia de comer qualquer coisa; que a sua criada
de quarto havia de ficar à espera dela; e que o Serle e
o copeiro olhariam por que tudo estivesse em ordem,
como de costume .

CAP Í TULO XXVI

Frank Churchill voltou; se faltou à hora de j antar,


foi coisa que não se soube em Hartfield, pois sendo o
maior desejo de Mrs . Weston que ele caísse, nas graças
de Mr. Woodhouse, não iria desvendar uma falta que
devesse ocultar-se.
Voltou com o cabelo cortado e rindo alegremente,
mas sem parecer, de maneira alguma, envergonhado
pelo que tinha feito. Não tinha razões para desej ar
andar de cabelo comprido, como se pretendes s e
esconder algum defeito n o rosto; nem razões tinha para

218
EMA

fazer economias ou para se tornar puritano. Era tão


intrépido e espirituoso como sempre fora; e Ema,
depois de o ver, moralizou para consigo desta forma:
«Não sei se assim devia ser, mas certamente as
leviandades deixam de ser leviandades quando são
praticadas desassombradamente por pessoas sen­
satas . A malvadez é sempre malvadez, mas a loucura
nem sempre é loucura. Depende do carácter daqueles
que a praticam. Mr. Knightley, ele não é um tipo frívolo
e estouvado. Se o fosse, teria feito isto de maneira
diferente . Ou se teria vangloriado da acção, ou se teria
envergonhado . Ou exerceria a ostentação de um
presumido ou as evasivas de um espírito demasiado
fraco para defender as próprias vaidades. Não, tenho
a absoluta certeza de que não é frívolo nem estouvado.
Com o dia de terça-feira s urgiu a agradável
perspectiva de o ver outra vez e durante mais tempo
do que até então, de ajuizar das suas atitudes em geral
e, por inferência, do significado das suas atitudes para
com ela - de avaliar quanto tempo seria necessário
para ela mostrar frieza - e de conj ecturar quais
seriam as observações daqueles que, pela primeira
vez, os viam juntos .
Contava colher grande satisfação, apesar de o
cenário ser em casa de Mr. Cole e de não conseguir
esquecer que entre os fracos de Mr. Elton, mesmo nos
seus dias de favor, nenhum a aborrecia mais que a
sua propensão para j antar com Mr. Cole.
O conforto do pai estava amplamente assegurado,
visto que tanto Mrs . B ates como Mrs . Goddard
estavam prontas a vir; e o último dever de amabilidade
de Ema, antes de sair, foi apresentar-lhes os seus
respeitas, na ocasião em que se reuniam na sala depois
do j antar, e, ao mesmo tempo que o pai se comprazia
em observar a elegância do seu vestido, obsequiar as
duas senhoras por todas as formas , servindo-lhes
grandes fatias de bolo e copos de vinho bem cheios,
pois, ainda que pouco dispostas à abstinência, era
muito possível que Mr. Woodhouse as tivesse obrigado
a praticá-la, à força de cuidados com a sua saúde. Ema

219
JA NEA USTEN

havia providenciado para que lhes fosse servido um


jantar abundante; desej aria ter a certeza de que lhes
fora concedido saboreá-lo à sua vontade .
Até à porta de Mr. Cole, seguiu ela atrás de outra
carruagem; e ficou encantada quando viu que era a
de Mr. Knightley. Com efeito Mr. Knightley, com toda
a sua fortuna, com toda a sua saúde , actividade e
independência, não possuía cavalos e, na opinião de
Ema, era muito capaz de dar as suas voltas conforme
podia, sem utilizar a carruagem com a frequência que
seria de esperar do proprietário de Donwell Abbey.
Teve ela ocasião de lhe expressar a sua aprovação,
enquanto lhe não arrefecia o entusiasmo, pois ele
parou para a ajudar a descer.
- Assim é que o senhor devia andar sempre, como
um gentleman - disse ela - . . . folgo muito em o ver.
Ele agradeceu e observou:
- Que sorte chegarmos ao mesmo tempo ! É que se
nos encontrássemos só na sala, duvido que lhe
parecesse mais gentleman que de costume . Só pelo
meu olhar ou pelos meus modos não conseguiria
descobrir como eu tinha vindo . . .
- Descobria, sim; tenho a certeza de que descobria.
Quando uma pessoa procede de uma maneira que lhe
não é habitual , denuncia sempre na expressão a
consciência do facto . O senhor julga que desempenhou
o papel muito bem, creio eu, mas em si revela-se uma
espécie de bravata, um ar de desenvoltura afectada;
noto isso todas as vezes que o encontro em circuns­
tâncias idênticas . Mas agora já não tem nada que
fingir ; vej o que j á não receia que o s uponham
comprometido . Já não se esforça por parecer mais alto
do que qualquer outra pessoa. Agora sentir-me-ei
realmente muito feliz em entrar consigo na sala.
- Que rapariga com tão pouco j uízo ! - foi a
resposta dele, mas sem se mostrar zangado .
Ema teve tantas razões para ficar satisfeita com o
resto dos convidados como com Mr. Knightley. Foi
recebida com um afectuoso respeito que não podia

220
EMA

deixar de lhe agradar, e patentearam-lhe toda a


consideração que ela poderia desej ar. Quando os
Westons chegaram, os mais carinhosos olhares de
amizade, os mais ardentes olhares de admiração,
foram para ela, tanto do marido como da esposa; o
filho aproximou-se dela com alegre solicitude, que a
designava como seu principal obj ecto de interesse, e,
ao j antar, ela ficou sentada a seu lado - não sem
alguma habilidade da parte dele, segundo era firme
convicção de Ema.
Os convidados eram numerosos , visto que havia
ainda outra família, uma irrepreensível família da
província, que os Coles tinham a honra de contar entre
as suas relações, e a parte masculina da família de
M r . Cox, o advogado de Highbury . O elemento
feminino de menor categoria devia vir à noite, e era
constituído por Miss Bates, Miss Fairfax e Miss Smith;
mas, ao j antar, já os convidados eram em número
suficiente para que qualquer tema de conversação se
tornasse geral; e enquanto se falava de Mr. Elton e de
política, Ema facilmente pode dedicar toda a atenção
às facécias do seu companheiro . O primeiro som
remoto a que ela não pôde deixar de prestar ouvidos
foi o nome de Jane Fairfax. Mrs . Cole parecia estar
contando qualquer coisa a seu respeito que devia ser
muito interessante. Ema pôs-se à escuta e achou que
valia a pena prestar atenção . Aquela querida parte
do seu ser, a imaginação, recebeu um novo e agradável
incentivo . Mrs . Cole estava dizendo que tinha ido
visitar Miss Bates e, assim que entrara na saleta, o
seu olhar fora atraído para um piano, um lindo e
magnífico piano, não muito grande, mas de excelente
tamanho; e o essencial da história, o final de todo o
diálogo nascido da surpresa, das perguntas e das
congratulações da sua parte, e das explicações da parte
de Miss Bates , foi que aquele piano havia chegado da
casa Broadwood no dia anterior, com grande espanto
tanto da tia como da sobrinha, por inesperado, e que,
a princípio, segundo Miss Bates contara, a própria
Jane ficara interdita; completamente desorientada,

22 1
JA NEA USTEN

para se lembrar de quem o poderia ter encomendado,


mas, por fim, assentaram que só de um lado podia ter
vindo - naturalmente , do coronel Campbell.
- De ninguém mais era de supor, - acrescentou
Mrs . Cole - e eu até me admirei de que pudesse ter
havido qualquer dúvida. Mas parece que Jane recebeu
muito recentemente uma carta dele e nela não se dizia
uma palavra a tal respeito . Ela deve saber melhor
que ninguém; mas eu não acho que o silêncio deles
seja indício de que não tencionavam contemplá-la com
o piano. Podiam muito bem ter resolvido fazer-lhe uma
surpresa.
Mrs . Cole teve muitos a concordarem com a sua
opini ã o ; todos os que falavam do caso estavam
igualmente convencidos de que devia ter sido o coronel
C ampbell e igualmente se congratulavam pelo
presente . Entretanto, a conversa generalizara-se a
ponto de permitir a Ema formar as suas ideias a tal
respeito e ouvir Mrs . Cole, ao mesmo tempo.
- Confesso que não me lembro de ter ouvido coisa
que me desse mais satisfação ! Sempre me impres­
sionou muito que Jane Fairfax, que toca que é um
encanto, não tivesse um piano. Era mesmo uma
vergonha, sobretudo se nos lembrarmos de quantas
casas há em que se atiram para o lado esplêndidos
instrumentos . A verdade é que contra nós próprias
falamos! Ainda ontem dizia eu a Mr. Cole que tinha
realmente vergonha de olhar para o nosso novo piano,
pois não sei uma nota, e as nossas filhas, ainda tão
pequeninas , talvez nunca cheguem a tocar nele, ao
passo que a pobre Jane Fairfax, que é uma mestra em
música, não tem sombra de instrumento, nem sequer
uma velha e desprezível espineta para se entreter.
Ainda ontem dizia isto a Mr. Cole, que concordava
inteiramente comigo; mas o caso é que ele gosta tanto
de música que não pôde resistir a comprar o piano, na
esperança de que algum dos nossos bons vizinhos fosse
tão amável que, de vez em quando, lhe desse melhor
uso que nós ; é essa a razão por que se comprou o
instrumento . . . de contrário, estou convencida de que

222
EMA

seria uma vergonha para nós . Temos toda a esperança


de que Miss Woodhouse tenha a bondade de se utilizar
dele esta noite .
Miss Woodhouse aquiesceu como devia; e vendo que
nada mais de surpreendente ouviria a Mrs . Cole,
voltou-se para Frank Churchill :
- Porque está a rir?
- Mas . . . de que se ri também?
- Eu! . . . Suponho que é de prazer por o coronel
Campbell ser tão rico e generoso. Que lindo presente !
- Isso é verdade !
- Até me admiro de que não o tenha feito há mais
tempo .
- Talvez porque Miss Fairfax nunca tenha estado
tanto tempo cá . . .
- . . . e por que não pretenda facultar-lhe agora o
uso do piano deles, que deve estar fechado na casa de
Londr�s, sem que ninguém se utilize dele .
- E um piano enorme e ele deve ter calculado que
seria grande de mais para a casa de Mrs . Bates.
- O senhor pode dizer o que quiser . . . mas na cara
demonstra que as suas ideias a este respeito são mais
ou menos as minhas .
- Não sei . Creio que me atribui mais perspicácia
do que realmente mereço. Eu sorrio-me porque a vejo
sorrir e, naturalmente, suspeito o mesmo que julgo
que Miss Woodhouse suspeita. Se não foi o coronel
Campbell, quem terá sido?
- Que diz de Mrs . Dixon?
- Mrs . Dixon ! É verdade ! Não me tinha lembrado
de Mrs . Dixon. Ela devia saber tão bem como o pai
a aceitação que o instrumento teria; e talvez que o
modo de oferecer, a surpresa, o mistério, sej a mais
conforme à índole de uma j ovem do que de um
homem idos o . E stou convencido de que foi Mrs .
Dixon. Eu bem lhe disse que as suas suspeitas guia­
riam as minhas .
- Se assim fosse, devia torná-las extensivas a
Mr. Dixon.
- Mr. Dixon ! . . . Tem razão. Sim, agora percebo que

223
JA NEA USTEN

deve ser presente comum de Mr. e Mrs . Dixo n .


Lembra-se d e termos falado n o outro dia a propósito
de ele ser um fervoroso admirador do talento de Miss
Fairfax?
- Sim; e o que me disse sobre esse capítulo confir­
mou uma ideia que eu havia concebido antes . Não
pretendo duvidar das boas intenções de Mr. Dixon nem
de Miss Fairfax, mas não posso deixar de desconfiar de
que, depois de ter proposto casamento à amiga dela,
ele se tenha apaixonado por Jane, ou então que haja
tido conhecimento de um certo afecto por parte de Miss
Fairfax. Podem conjecturar-se dezenas de coisas sem
se conseguir acertar; mas tenho a certeza de que deve
haver um motivo muito especial para ela ter resolvido
vir para Highbury, em lugar de ir com os Campbells
para a Irlanda. Aqui, tem ela de levar uma vida de
privações e sofrimento: lá, teria sido só de prazer.
Quanto à pretensão de experimentar o clima natal,
considero isso como mera desculpa. No Verão poderia
acreditar-se; mas que acção pode o clima natal exercer
em alguém nos meses de Janeiro, Fevereiro e Março?
Na maior parte dos casos de saúde delicada, seriam
de muito maior utilidade uma boa lareira e uma boa
carruagem, e creio que assim seria no caso dela.
Embora condescenda em concordar com as minhas
suspeitas , não pretendo que as perfilhe todas; por uma
simples questão de lealdade é que lhas exponho .
- E , palavra de honra, que têm todos os visos de
probabilidade . Quanto ao facto de Mr. Dixon preferir
a música dela à da esposa, isso posso eu garantir.
- E depois, ele salvou-lhe a vida. Ouviu falar
nisso? . . . Um passeio pelo mar . . . e, devido a qualquer
incidente, ela esteve em riscos de ir pela borda fora.
Foi ele que a segurou.
- Pois foi. Eu estava lá . . . também ia no passeio.
- Ah, sim? . . . Não sabia! Mas , com certeza, não
notou nada, pois parece ser uma ideia nova para si . . .
S e e u l á estivesse, creio que teria feito algumas
descobertas.
- Também acredito; mas eu, na minha inge-

224
EMA

nuidade, nada vi senão o facto de Miss Fairfax estar


em riscos de cair à água e de Mr. Dixon a agarrar. Foi
obra de um momento. E, embora o abalo e o susto que,
inevitavelmente , s e seguiram fossem grandes e
bastante duradoiros, - com efeito, creio que se passou
meia hora antes que serenássemos todos - a sensação
geral de ansiedade era tão viva que não permitia que
se reparasse em mais coisa alguma. Não quero, porém,
com isto dizer que Miss Woodhouse não fosse capaz
de fazer as suas descobertas .
O diálogo foi nesta altura interrompido . Um
intervalo um tanto longo que se seguiu entre dois
pratos forçou-os a tomar parte na conversa geral ,
coagindo-os a mostrarem-se tão cerimoniosos como os
outros; mas assim que puseram na mesa a iguaria
seguinte, assim que cada conviva foi servido e a ordem
restabelecida, Ema disse:
- A vinda deste piano é muito significativa para
mim. Desejava saber certas coisas e isto elucida-me
completamente . Tenha a certeza de que não tardará
muito que oiçamos dizer que foi um presente de Mr. e
Mrs . Dixon .
- E se os Dixons negassem terminantemente a
sua interferência no caso, teríamos de concluir que
fora lembrança dos Campbells.
- Não : estou certa de que não foi dos Campbells .
Miss Fairfax sabe que não foram o s C ampbells ,
p oi s , de contrári o , tê-lo-ia conj e cturado logo de
princípio . Ela não teria ficado tão embaraçada, S «?
as suas suposições se houvessem fixado neles . E
natural que não consiga convencê-lo, mas eu é que
estou convencida de que Mr. Dixon tem a parte
principal no cas o .
- N a verdade, ofende-me s e m e julga e m desa­
cordo. Os seus raciocínios levam-me a concordar
inteiramente com o seu ponto de vista. A princípio,
enquanto a supus crente de que fosse o coronel
Campbell o oferente , vi no gesto apenas bondade
paternal e achei a coisa mais natural deste mundo.
Mas quando citou Mrs . Dixon, reconheci que muito

225
JA NEA USTEN

mais provável que fosse o tributo de uma ardente


amizade feminina. E agora não posso ver no facto
senão um presente de amor.
Não havia motivos para insistir sobre a questão. A
convicção dele parecia sincera; o seu modo era de quem
o sentia. Ema nada mais disse sobre o assunto: outros
se sucederam, e assim decorreu o resto do j antar.
Serviu-se a sobremesa, entraram as crianças, que
foram admiradas e amimadas no meio do habitual
estilo da conversação, disseram-se algumas coisas com
acerto, disseram-se outras sem acerto algum, mas em
proporção muito aproximada umas das outras - nada
mais do que observações da vida corrente, lugares­
-comuns, notícias já velhas e gracejos pesados.
Pouco depois de as senhoras se terem instalado na
sala, chegaram sucessivamente as restantes convi­
dadas . Ema estava atenta à entrada da sua particular
amiguinha; e quando não exultasse com aquele ar de
dignidade e de graça, não poderia deixar de se encantar
com aquela expressão de radiante meiguice e aquele
porte despido de artifício, bem como de se regozij ar
profundamente por a sua índole alegre e pouco
apreensiva lhe consentir encontrar motivos de prazer
como alívio nos transes de um afecto desiludido . Ali
estava ela - e quem teria adivinhado quantas
l ágrimas havia pouco antes derramado? Ver-se
rodeada de amigo s , apresentar-se elegantemente
vestida e admirar os elegantes traj os dos outros,
sorrir- se e mostrar-se gentil , sem dizer palavra,
bastava-lhe para ser feliz na hora presente . Jane
Fairfax mostrava-se-lhe realmente superior, mas Ema
não duvidava de que ela de boa vontade teria trocado
o seu estado sentimental pelo de Harriet, de boa
vontade teria tomado para si a mortificação de ter
amado - sim, de ter amado em vão, ainda que fosse
Mr. Elton - contra a cedência de todo o perigoso
prazer de se saber amada pelo marido da amiga.
No meio de tantos convidados não era neces­
sariamente inevitável que Ema se aproximasse dela.

226
EMA

Não queria ser obrigada a falar no piano, sentia-se de


mais no s e gredo para j ulgar sincera qualquer
aparência de curiosidade ou de interesse e, por isso,
conservava-se propositadamente afastada; mas os
outros ventilaram quase imediatamente a questão e
E m a notou o significativo rubor com que eram
recebidas as felicitaçõe s , o rubor de culpa que
acompanhou o nome do «meu excelente amigo , o
coronel Campbell» .
Mrs . Weston, cheia d e boa fé e amiga d e música,
mostrava-se particularmente interessada pelo caso, e
Ema não podia deixar de se divertir com a sua
insistência em falar no assunto e em fazer tantas
perguntas e dar tantas opiniões a respeito do timbre,
do som e do pedal, sem de modo algum notar como
Ema claramente notava no rosto da formosa heroína
o desej o de falar tão pouco quanto possível a tal
respeito .
Dai a pouco reuniram-se-lhe alguns cavalheiros; e
o primeiro deles foi Frank Churchill. Via-se que era o
mais belo em aprumo e elegância; depois de ter
apresentado de passagem os seus cumprimentos a
Miss Bates e à sobrinha, dirigiu-se logo para o extremo
oposto do círculo, onde se encontrava Miss, Wood­
house, e, enquanto não obteve um lugar a seu lado,
não se sentou . Ema bem pressentia o que todos os
presentes deviam estar a pensar. Era ela o seu alvo e
todos o deviam perceber. Apresentou-o à sua amiga,
Miss Smith, e, decorridos alguns momentos, pode
saber o que um pensava do outro. «Ele nunca tinha
visto rosto tão simpático e estava encantado com a
sua ingenuidade» . E ela: «Reconhecia que o elogio era
grande de m ai s , m a s achava que tinha certas
expressões que o faziam assemelhar-se a Mr. Elton» .
Ema reprimiu a sua indignação, limitando-se a
afastar-se dela sem dizer palavra.
Entre ela e Frank trocaram-se sorrisos de inteli­
gência quando ambos olharam ao mesmo tempo para
Miss Fairfax; mas acharam mais prudente calar-se.
Disse-lhe ele que estava impaciente, por deixar a sala

22 7
JA NEA USTEN

de j antar . . . detestava estar muito tempo à mesa . . . era


sempre o primeiro a levantar-se todas as vezes que
podia . . . que tinha deixado o pai, Mr. Knightley, Mr.
Cox e Mr. Cole a conversar sobre assuntos paroquiais,
mas que, no entanto, todo o tempo que lá estivera se
sentira satisfeito, por isso que os considerava homens
de bem e de bom senso; e ao mesmo tempo falou tão
elogios amente de Highbury, achou que na terra
abundavam tanto as boas famílias, que Ema começou
a p e n s ar que ela própri a se tinha habituado a
desprezar de mais a terra. Interrogou-o sobre a
sociedade do Yorkshire, o número de famílias vizinhas
de Enscombe e outras questões do mesmo género; e
das suas respostas deduziu: que, no que dizia respeito
a Enscombe, poucas relações mantinham : as suas
visitas limitavam-se a um grupo de famílias mais
importantes, nenhuma delas muito perto; que, mesmo
quando se mareavam os dias e se aceitavam os
convites, havia sempre probabilidades de que o estado
de saúde e a disposição de Mrs . Churchill lhe não
permitissem ir; que eles haviam determinado não
visitar vizinhos recentes, e que, não obstante ele ter
os seus compromissos à parte, não era sem dificuldade,
sem considerável habilidade, por vezes, que conseguia
sair ou hospedar um amigo por uma noite.
Ema compreendeu que Enscombe não satisfazia e
que Highbury, tomada no seu melhor aspecto, devia
naturalmente agradar a um mancebo que passava
mais tempo em casa do que desej aria. A importância
de que gozava em Enscombe era evidente. Ele não se
gabava disso, mas deu naturalmente a perceber que,
em muitos casos, em que o tio nada podia, ele convencia
a tia, e, quando Ema se riu e lho sugeriu, confessou
estar crente de que, a não ser num ou noutro caso,
com o tempo conseguiria tudo dela. Citou então um
desses casos em que a sua influência fracassara.
Nutrira o desej o intenso de ir ao estrangeiro , -
realmente manifestara insistentemente a vontade de
viaj ar - mas ela não queria ouvir falar em tal . Isto

228
EMA

sucedera o ano pass ado . Agora - dizia ele - j á


principiava a não ter tanta vontade .
O caso em que não a convencia e que ele não citou
conj ecturou Ema que fosse o bom entendimento com
o pai.
- Fiz uma tristíssima descoberta - disse ele, após
uma pequena pausa. - Faz amanhã uma semana que
cá estou . . . metade do tempo de que disponho. Nunca
os dias me voaram tão rápidos ! Uma semana amanhã! . . .
E mal comecei a tomar o gosto . . . Mal travei conhe­
cimento com Mrs . Weston e com outras pessoas ! . . .
Detesto lembrar-me disso!
- Talvez comece agora a lastimar ter roubado a
tão poucos dias um dia inteiro, só para ir cortar o
cabelo.
- Não, - disse ele, sorrindo - não há motivo para
lastimar. Não tenho prazer algum em ver os meus
amigos, quando não me julgo em condições de eles me
verem.
Como os cavalheiros j á se encontrassem todos na
sala, Ema viu-se obrigada a afastar-se dele por alguns
minutos e a prestar atenção a Mr. Cole. Assim que
Mr. Cole se afastou e ela pôde voltar a atender Frank
Churchill, notou que este olhava atentamente para
Miss Fairfax, que se encontrava sentada no extremo
oposto da sala.
- Que sucedeu? - perguntou Ema.
Ele sobressaltou-se.
- Agradeço-lhe ter-me despertado - disse.
Creio que fui muito indelicado; mas, realmente, Miss
Fairfax tem um penteado tão esquisito . . . tão esqui­
sito . . . que não posso tirar de lá os olhos. Nunca vi coisa
tão exagerada! . .. Aqueles anéis . . . Deve ser invenção
dela. Nunca vi ninguém que se apresentasse como ela!
Vou perguntar-lhe se aquilo é à moda da Irlanda. Vou?
Vou . . . estou resolvido a ir . . . e repare como ela me
recebe . . . repare se ela cora.
E foi imediatamente; Ema viu-o pouco depois a falar
com Miss Fairfax, mas quanto aos efeitos que as suas
palavras exerciam na j ovem , como ele se tivesse

229
JA NEA USTEN

imprevidentemente colocado de permei o , mesmo


diante de Miss Fairfax, foi coisa que ela não conseguiu
ver.
Antes que ele regressasse à sua cadeira, esta foi
ocupaqa por Mrs . Weston.
- E esta a vantagem de uma grande reunião -
disse ela: - podemos acercar-nos de toda a gente e
falar de qualquer assunto . Minha querida Ema, estou
ansiosa por conversar consigo. Fiz descobertas e formei
planos , justamente como a Ema, e quero contar-lhos,
enquanto as ideias estão frescas . Sabe como Miss
Bates e a sobrinha vieram para aqui?
- Como vieram? . . . Julgo que foram convidadas ,
não?
- Sim . . . mas como se transportaram para cá . . . a
maneira como vieram?
- Creio que vieram a pé. Como é que deviam ter
vindo?
- Está muito bem! Pois há um momento acudiu-me
a ideia de que seria bem triste que Jane Fairfax
voltasse para casa a pé, altas horas , e com a noite tão
fria, como todas elas agora estão. E ao mesmo tempo
que olhava para ela, se bem que nunca a visse com
melhor aspecto, lembrei-me de que estava quente e,
portanto , particularmente suj eita a apanhar uma
pneumonia. Pobre rapariga!
Não podia suportar essa ideia; por isso, assim que
Mr. Weston entrou na sala e eu pude chegar ao pé
dele , falei-lhe a respeito da carruagem. Bem deve
calcular como ele concordou logo comigo; e com a sua
aprovação, dirigi-me logo a Miss Bates para lhe
assegurar que a carruagem estava à sua disposição
antes de nos conduzir a casa, o que evidentemente a
devia alegrar, conforme eu esperava. Meu Deus ! Se
visse como ela ficou reconhecida! «Não havia ninguém
com tanta sorte como ela ! » - mas com repetidos
agradecimentos - «não valia a pena incomodar­
mo-nos, visto que tinham vindo na carruagem de Mr.
Knightley, que as reconduziria a casa» . Fiquei
profundamente surpreendida - muito satisfeita,
realmente, mas deveras surpreendida. Uma amabi-

230
EMA

lidade daquelas, uma solicitude tão grande ! . . . Era de


tal ordem que poucos homens se teriam lembrado dela.
Em resumo, como conheço a maneira de ser de Mr.
Knightley, desconfiei muito de que a carruagem estava
destinada a uso exclusivo delas . Estou convencida de
que ele não ia alugar uma parelha de cavalos só para
si: isso não foi mais que uma desculpa para lhes
prestar esse serviço.
- E muito provável, - disse Ema - não há nada
mais provável . Não conheço outro homem como Mr.
Knightley para fazer uma coisa dessas - praticar
qualquer acção bondosa, útil, discreta e benfazeja. Não
é galanteador, mas é deveras humano; e isto, se nos
lembrarmos da saúde delicada de Jane Fairfax ,
representa para ele um caso de humanidade . E para
actos de bondade modesta não há ninguém como Mr.
Knightley. Sei que hoje tinha cavalos, pois viemos
j untos; até me ri com ele por causa disso, mas ele não
disse uma única palavra que o denunciasse .
- Pois bem, - disse Mrs . Weston - a Ema
atribuiu-lhe uma benevolência mais simples e mais
desinteressada do que eu. Enquanto estive a falar com
Miss Bates , assaltou-me uma suspeita que nunca mais
me largou. Quanto mais penso nela, mais verosímil
me parece . Em suma: fiz um casamento entre Mr.
Knightley e Jane Fairfax. Vê o resultado da sua
companhia? . . . Que diz a isto?
- Mr. Knightley e Jane Fairfax! - exclamou Ema.
- Querida Mrs . Weston, como pode pensar tal coisa? . . .
Mr. Knightley! . . . Mr. Knightley jamais casará! Então
queria que o pequeno Henry fosse desapossado de
Donwell? . . . Oh ! não, não . . . O Henry deve herdar
Donwell . Não posso consentir de maneira alguma que
Mr. Knightley case. E tenho a certeza de que isso não
se há-de dar. Admiro-me bastante de que a minha
amiga pensasse uma coisa dessas.
- Minha querida Ema, eu disse-lhe o que me levou
a pensar a s s i m . Não d e s ej o o cas amento . . . não
pretendo prej udicar o querido Henry . . . mas as
circunstâncias é que me sugeriram a ideia; e se

23 1
JA NEA USTEN

Mr. Knightley realmente desej asse casar, a Ema não


lho iria proibir por causa de Henry, uma criança de
seis anos , que nada conhece da questão .
- Proibia, sim ! Não admito que Henry sej a lesado.
Mr. Knightley casar! . .. Não, nunca me ocorreu tal
ideia, e agora não posso conformar-me com ela. E logo
Jane Fairfax!
- Então? Ela gozou sempre de especial consi­
deração por parte dele, como muito bem sabe.
- Mas era uma imprudência esse casamento !
- Eu não estou falando da sua prudência: apenas
me refiro às suas probabilidades.
- Não vejo probabilidades nenhumas, a não ser
que a minha amiga tenha melhores razões para as
fundamentar do que aquelas que menciona. A sua
bondade, o seu feitio humanitário, seriam, como lhe
disse, suficientes para o levar a alugar os cavalos . Ele
tem, como sabe, uma grande consideração pelas Bates,
independentemente de Jane Fairfax . . . e é sempre com
satisfação que lha patenteia. Minha querida Mrs .
Weston, não se meta a casamenteira. Sai-se muito
mal . . . Jane Fairfax dona de Abbey! . . . Oh! não . . . todo o
meu espírito se revolta. No próprio interesse dele,
desejaria que ele não fizesse tal disparate .
- Imprudência, talvez . . . mas disparate não. A não
ser a desigualdade de meios e talvez uma pequena
desproporção de idades, não vejo outro inconveniente.
- Mas Mr. Knightley não pretende casar. Estou
convencida de que não tem a menor ideia disso. Não
lhe meta tal coisa na cabeça. Porque havia ele de casar?
Solteiro, é tão feliz quanto se pode ser; tem a herdade,
os carneiros , a biblioteca e toda a paróquia para
administrar, e, além disso, é extremamente amigo dos
sobrinhos. Não tem quaisquer motivos para casar, nem
lhe falta com que preencher o tempo e o coração .
- Minha querida Ema, se ele assim pensa, está
muito bem; mas se, de facto, ama Jane Fairfax . . .
- Disparate ! Ele não quer saber de Jane Fairfax.
No capítulo amor, estou certa de que não quer, saber

232
EMA

dela. Há-de fazer todo o bem que puder, a ela e à


família, mas . . .
- Bem, - disse Mrs . Weston, rindo - talvez que
o maior bem que lhes possa fazer seja oferecer a Jane
um lar respeitável .
- Se era bem para ela, tenho a certeza de que era
mal para ele - uma união verdadeiramente ver­
gonhosa e degradante ! Como é que ele podia suportar
o parentesco com Miss Bates? Tê-la constantemente
na Abbey a agradecer-lhe durante todo o dia a sua
grande bondade em casar com Jane . . . «Tão amável e
obsequiador ! Mas ele tinha sido sempre tão bom
vizinho ! . . . » . E depois saltar, no meio de uma frase,
para a velha saia da mãe . . . «Era tão velha aquela saia. . .
pois ainda durou muito tempo . . . e realmente devia
dar graças por as saias serem todas de fazenda muito
forte ! » .
- Por amor d e Deus, E m a ! Não estej a a arre­
medá-la. Faz-me rir sem querer . . . E, para dizer a
verdade, não creio que Mr. Knightley se incomodasse
muito com Miss Bates . As pequenas coisas não o
irritam . Ela podia continuar a falar, que , se ele
quisesse dizer qualquer coisa, bastar-lhe-ia elevar a
voz e falar mais alto que ela. Mas a questão não é
saber se seria uma união desvantajosa para ele, mas
se ele a deseja. E eu penso que sim. Ouvi-o falar - e
a Ema também - tão elogiosamente de Jane Fairfax!
O interesse que ele toma por ela . . . o cuidado que tem
pela sua saúde . . . a preocupação que lhe causa o seu
futuro! Ouvi:o expressar-se com tanto calor sobre estas
questões . . . E tão grande admirador do seu talento
musical é da sua voz ! Ouvi-lhe dizer que era capaz de
estar a ouvi-la toda a vida. Ah! e quase me esquecia
da ideia que me acudiu . . . esse piano que foi recebido
não se sabe de quem . . . embora nós todos nos satis­
fizéssemos em o considerar um presente dos Camp­
bells, quem nos diz que não é de Mr. Knightley? Tenho
as minhas desconfianças a esse respeito. Acho que é
ele justamente a pessoa capaz de o ter feito, mesmo
que não estej a apaixonado.

233
JA NEA USTEN

- Nesse caso, não pode servir de argumento para


provar que estej a enamorado. Mas não creio que sej a
coisa dele . Mr. Knightley não fa z nada, com mistério.
- Eu tenho-o ouvido repetidas vezes lastimar que
ela não possua qualquer instrumento; e esse facto
tem-se dado com mais frequência do que seria de supor
em circunstâncias normais.
- Pois bem: se fosse intenção dele oferecer-lhe o
piano, ter-lho-ia dito com toda a franqueza.
- Podia haver escrúpulos de delicadeza, minha
querida Ema. Tenho uma forte impressão de que isto
veio dele. Lembro-me de que, na ocasião em que Mrs .
Cole no-lo contava ao j antar, ele se conservou calado.
- A minha amiga apodera-se de uma ideia e não
a larga: faz j ustamente aquilo que tantas vezes me
censurou. Não vejo nenhum sintoma de amor . . . não
reconheço no piano uma prova convincente de que Mr.
Knightley tenha qualquer ideia de casar com. Jane
Fairfax.
Discutiram a questão por mais algum tempo ,
sempre no mesmo tom, mas Ema ia ganhando algum
terreno sobre o espírito da amiga; com efeito, Mrs .
Weston era, das duas, a que estava mais habituada a
ceder. Finalmente, um leve rumor na sala deu-lhes a
entender que tinham acabado de tomar o chá e que
estavam preparando o piano; e, no mesmo instante,
aproximou-se delas Mr. Cole, que vinha solicitar de
Miss Woodhouse a honra de tocar alguma coisa. Frank
Churchill, em quem ela, entretida com Mrs . Weston,
não tinha reparado, senão que o vira sentado ao lado
de Miss Fairfax, acompanhava Mr. Cole, no intuito
de o secundar no seu pedido; e como Ema, sob todos os
respeitas, tinha a máxima conveniência em o atender,
aquiesceu gentilmente.
E l a conheci a demasiado o s limites d a s suas
faculdades para tentar mais do que podia executar
com êxito; não lhe faltavam gosto nem talento nas
pequenas coi sas que , geralmente , dão prazer, e
acompanhava muito bem a própria voz . Foi agra­
davelmente colhida de surpresa ao ouvir uma segunda

234
EMA

voz que a acompanhava - era Frank Churchill que a


secundava com voz não muito forte , mas bem tim­
brada. Assim que a canção terminou, pediu-lhe o
devido perdão , e s e guiram - s e as amabilidades
habituais. Ele foi acusado de ter uma voz deliciosa e
um perfeito conhecimento de música, o que foi
convenientemente negado - que não conhecia nada
da matéria e que não tinha voz capaz, afirmações que
todos contestaram. Cantaram ambos mais uma vez,
até que Ema teve de ceder o lugar a Miss Fairfax, cujo
talento, tanto vocal como instrumental, ela não pode
deixar de reconhecer como infinitamente superior ao
seu.
Dominada por sentimentos confusos, sentou-se a
pequena distância das pessoas que rodeavam o piano .
Frank Churchill cantou novamente. Parece que eles
haviam cantado uma ou duas vezes em Weymouth.
Mas Ema, ao ver Mr. Knightley entre os mais atentos,
depressa despertou das suas cogitações; e mergulhou
numa série de pensamentos em volta das suspeitas
de Mrs . Weston, a que os sons melodiosos das duas
vozes em coro davam apenas momentâneas inter­
rupções . As suas obj ecções ao cas amento de Mr .
Knightley não abrandavam de modo algum. Não via
nisso senão mal. Seria uma grande desilusão para Mr.
John Knightley e, por consequência, para Isabella. Um
verdadeiro agravo para os pequenos - uma humi­
lhante transformação e uma perda material para todos
eles - uma considerável redução das satisfações
diárias de seu pai , e, quanto a ela, não podia de
maneira alguma suportar a ideia de Jane Fairfax em
Donwell Abbey. Uma Mrs . Knightley a quem todos
eles deviam respeito ! . . . Não, Mr. Knightley nunca
podia casar. O pequeno Henry tinha de ser o herdeiro
de Donwell.
Naquele momento Mr. Knightley voltou-se para
trás e foi sentar-se ao lado dela. A princípio, falaram
apenas da execução de Jane . A admiração dele pela
artista era evidentemente entusiástica; ela, porém,
pensou que, se não fosse Mrs . Weston, isso não a teria
impressionado . No entanto, dando à conversação o

235
JA NEA USTEN

carácter de pedra de toque, começou a falar da sua


bondade em conduzir a tia e a sobrinha na carruagem,
e, embora a resposta fosse de natureza a cortar cerce
o assunto, elajulgou que indicasse apenas repugnância
em se deter em tudo que se referisse à sua bondade.
- Eu, muitas vezes, tenho pena - disse ela - de
não me atrever a dar mais utilidade à nossa carruagem
nestas ocasiões . Não é que me falte vontade; mas o
senhor bem sabe da impossibilidade que há em
convencer meu pai a empregar James para esse fim.
- Isso não oferece dúvidas , isso não oferece
dúvidas , - retorquiu ele - mas tenho a certeza de
que deve tê-lo desej ado muitas vezes .
E , sorridente , parecia tão satisfeito da convicção
que ela entendeu dever dar outra investida.
- Aquele presente dos Campbells - disse - foi
uma oferta muito generosa.
- E verdade - retorquiu ele, aparentemente sem
o menor constrangimento . - Mas teriam feito melhor
se lho tivessem comunicado. As surpresas são tolices.
O prazer não é maior por isso e os inconvenientes são
por vezes consideráveis . Eu esperava mais bom senso
do coronel Campbell.
A partir daquele momento , j ulgou Ema ter a
garantia de que M r . Knightley não havia tido
interferência na oferta do instrumento. Mas se ele era
estranho ou não a qualquer afecto particular - se
havia ou não real predilecção, - era uma questão que
ainda se mantinha duvidosa. Para o fim da segunda
canção , a voz de Jane fraquejou um pouco , e Mr.
Knightley, assim que ela acabou, disse, pensando em
voz alta:
- Basta! Já cantou o suficiente esta noite . . . agora,
descanse.
No entanto, pediram-lhe outra canção .
Mais uma . . . Não queriam maçar Miss Fairfax, mas
pediam-lhe mais uma . . .
Nesta altura, ouviu-se Frank Churchill dizer:
- Acho que pode cantar esta sem esforço ; a
primeira parte é tão ligeira! O vigor da canção só se
faz sentir na segunda parte .

236
EMA

Mr. Knightley encolerizou-se.


«Este tipo - disse ele de si para si, indignado -
não pensa em mais nada senão em exibir a própria
voz . Não há-de ser assim !
E tocando no braço de Miss Bates, que naquele
momento passava perto:
- Miss Bates: certamente enlouqueceu para deixar
a sua sobrinha cantar a ponto de enrouquecer a voz
daquela maneira. Intervenha! Não tem pena dela? . . .
Miss Bates, sinceramente inquieta por Jane, mal
se demorou a agradecer e tratou logo de interromper
a canção, pondo fim a tudo. Terminou assim a parte
musical do serão, pois Miss Woodhouse e Miss Fairfax
eram as únicas meninas que tocavam e cantavam; mas
não tardou muito que fosse lembrado um baile - não
se soube de quem havia partido a sugestão, - e a
ideia foi tão eficazmente secundada por Mr. e Mrs .
Cole que a sala se desimpediu rapidamente, a fim de
obter o espaço conveniente. Mrs . Weston, notável em
contradanças, sentou-se ao piano e principiou com uma
valsa irresistível; e Frank Churchill, dirigindo-se com
a mais perfeita galantaria a Ema, pegou-lhe na mão
para abrir o baile .
Enquanto esperava que os demais jovens empar­
ceirassem com eles, Ema aproveitou a ocasião - se
bem que, ao mesmo tempo, tivesse de atender aos
cumprimentos que lhe faziam pela voz e pela arte ao
piano - para percorrer a sala com o olhar e ver o que
fazia Mr. Knightley. Ia proceder a uma prova. Em
regra, ele não dançava. Se acaso se mostrasse solícito
em convidar Jane Fairfax desta vez, alguma coisa se
podia augurar. Nada havia que o denotasse. Não: ele
estava a conversar com Mrs . Cole - não parecia
interessar-se pela dança; Jane foi convidada por outro
mancebo e ele continuou a conversar com Mrs . Cole.
Ema j á não tinha razões para se alarmar por causa
de Henry; os interesses deste ainda estavam asse­
gurados e ela abria o baile, com o espírito desanuviado
e alegre. Não se obtiveram mais que cinco pares; mas

23 7
JA NEA USTEN

o facto de serem escassos os dançarinos e de a dança


ser organizada de improvi s o , tornaram-na mais
agradável, acrescendo que ela tinha o companheiro
que lhe convinha. Formavam ambos um par digno de
admiração.
Infelizmente, só se puderam dançar dois números.
Era tarde, e Miss Bates estava ansiosa por regressar
a casa, por causa da mãe . Por isso, depois de algumas
tentativas para recomeçarem, viram-se forçados, um
tanto tristes, a agradecer a Mrs . Weston e a dar por
terminado o baile.
- Talvez sej a melhor - disse Frank Churchill,
enquanto conduzia Ema à carruagem. - Tinha de
convidar Miss Fairfax, e a sua fraca maneira de dançar
não me teria deixado s audades como a de Miss
Woodhouse .

CAP Í TULO XXVII

Ema não se arrependeu de ir a casa dos Coles . A


visita proporcionou-lhe numerosas recordações no dia
seguinte; e tudo o que ela, porventura, supusesse haver
perdido por não se ter conservado num afastamento
digno, compensara-o amplamente o brilho da popu­
laridade . Ela devia ter deixado os Coles encantados
- eram tão dignos que bem mereciam que os fizessem
felizes . Devia, pois, ter deixado neles uma impressão
que não se desvaneceria tão cedo.
A felicidade perfeita, mesmo em imaginação, não é
muito vulgar; e havia dois pontos em que ela não se
sentia de todo tranquila. Receava ter transgredido o
dever da mulher para com a mulher, revelando a
Frank Churchill as suas suspeitas acerca dos senti­
mentos de Jane Fairfax. Não fora uma acção muito
correcta; mas a ideia era tão persistente que o facto
lhe escapara, e a submissão de Frank a tudo o que ela

238
EMA

havia dito era uma homenagem ao seu poder de


penetração que lhe tornava difícil adquirir a absoluta
certeza de que devia ter reprimido a língua.
A outra circunstância que a preocupava relacio­
nava-se - também com Jane Fairfax; e dessa não
tinha ela dúvidas . Sentia sinceramente , inequi­
vocamente, que lhe era inferior no canto e no piano .
Lamentou, do mais fundo da alma, a ociosidade em
que decorrera a sua infância e sentou-se ao piano,
treinando-se afincadamente durante hora e meia.
Ao fim desse tempo, foi interrompida pela chegada
de Harriet; e se os elogios de Harriet a satisfizessem,
ela ter-se-ia reconfortado em pouco tempo.
- Oh! Se eu soubesse tocar tão bem como Miss
Woodhouse e Miss Fairfax!
- Não nos confunda uma com a outra, Harriet. A
minha execução está tão longe da dela como uma
lâmpada da luz do Sol.
-Oh ! minha querida . . . acho que toca melhor
que ela. Penso que não lhe fica atrás . Gostei muito
mais de a ouvir a si. Todos louvaram a sua maneira
de tocar.
- Aqueles que conhecem alguma coisa da matéria
devem ter sentido a diferença. A verdade, Harriet, é
que a minha execução é suficientemente boa para
agradar, mas a de Jane Fairfax está muito acima.
- Pois bem: hei-de sempre achar que não toca pior
do que ela, ou que, se alguma diferença há, ninguém
a nota. Mr. Cole admirou-lhe o gosto; e Mr. Frank
Churchill também falou muito a esse respeito e disse
que apreciava muito mais o gosto que a execução.
- Ah! mas J arre Fairfax possui ambas as coisas ,
Harriet.
- Tem a certeza disso? Eu vi que ela tem boa
execução , mas não me pareceu que tivesse gosto
algum. Ninguém falou a tal respeito . É , além disso,
detesto as canções italianas . Não há forma de se
compreender uma palavra sequer. Demais, se ela toca
tão bem, não faz mais do que a sua obrigação, visto

239
JA NEA USTEN

que se destina a mestra de piano . As Coxes ontem


perguntavam se ela arranjaria lugar junto de qualquer
família importante . Que tal achou as Coxes?
- Exactamente como elas são - muito vulgares .
- Elas disseram-me uma coisa, - disse Harriet,
hesitante - mas não é nada de importante.
Ema foi obrigada a perguntar o que lhe tinham
dito, embora receasse que fosse alguma coisa a respeito
de Mr. Elton.
- Disseram-me que Mr. Martin jantou em casa
delas , no sábado .
- Oh!
- Foi tratar qualquer negócio com o pai, e este
pediu-lhe que ficasse para jantar.
- Oh!
- Conversaram um grande bocado a respeito da
situação dele, sobretudo Ana Cox. Não sei o que ela
pretendia com isso, mas perguntou-me se eu ten­
cionava ir lá passar este Verão.
- Pretendia satisfazer a sua impertinente curio­
sidade, como era de esperar de Ana Cox.
- Disse-me que ele se mostrou muito afável no dia
em que lá j antou. Ficou a seu lado, à mesa. Miss Nash
é de opinião que qualquer das Coxes teria muito gosto
em casar com ele .
- É muito provável . N o meu entender, elas são,
sem dúvida alguma, as raparigas mais vulgares de
Highbury.
Harriet tinha compras a fazer no Ford e Ema achou
mais prudente ir com ela. Havia a possibilidade de
outro encontro acidental com os Martin, que no actual
estado de coisas seria perigoso.
Harriet, a quem tudo tentava e a quem meia
palavra sugestionava, demorava-se sempre muito
tempo a fazer uma compra; e Ema, enquanto ela
escolhia musselinas e variava de decisão, foi até à
porta para se distrair. Não se podia esperar muito
movimento mesmo na p arte mais comercial de
Highbury: - Mr. Perry que passava apressado, Mr.
William Cox que entrava no escritório, os cavalos de

240
EMA

tiro de Mr. Cole que voltavam do passeio, ou um


carteiro que incitava a mula teimosa que montava,
eram os incidentes mais , animados que ela poderia
esperar; e quando o seu olhar caiu sobre o carniceiro
j unto das peças de carne, uma asseada velhota que
saía de uma loja e se dirigia para casa com o cesto
cheio, dois rafeiros que se digladiavam com um osso
suj o , e um grupo de garotos ociosos que se aglo­
meravam j unto da pequena montra do padeiro a
contemplar os bolos de gengibre, reconheceu que não
tinha motivos para se queixar e que havia bastante
com que se distrair, mesmo conservando-se de pé, à
porta. Um espírito vivaz e tranquilo tem a faculdade
de encontrar atractivos nas coisas mais banais e sem
significado aparente .
Ema olhou para a estrada de Randalls . O cenário
ampliou-se; surgiram duas pessoas : Mrs . Weston e o
enteado; dirigiam-se para Highbury - naturalmente
para Hartfield . Contudo, fizeram a primeira paragem
à porta de Mrs . Bates, cuj a casa ficava um pouco mais
próxima de Randalls que do Ford; iam para bater
quando viram Ema. Atravessaram imediatamente a
estrada e dirigiram-se para ela: a recordação da
reunião da véspera parecia dar novo prazer ao
encontro de agora. Mrs. Weston disse-lhe que ia visitar
as Bates, no intuito de ouvir o novo piano .
- O meu companheiro diz-me que eu prometi
absolutamente a Miss Bates, ontem à noite, vir cá
esta manhã. Não me lembro disso. Não me recordo de
haver fixado o dia, mas ele diz que o fixei e eu vou.
- E enquanto Mrs. Weston vai fazer a visita, espero
que me permita - disse Frank Churchill - ir consigo
e esperar por ela em Hartfield . . . isto é, se vai para
casa.
Mrs . Weston ficou contrariada.
- Julguei que tencionava ir comigo . . . Elas teriam
muito gosto.
- Eu! Fazia tenção de continuar. Mas , talvez . . .
posso igualmente ficar por aqui . Miss Woodhouse
parece que não quer a minha companhia. A minha tia

241
JA NEA USTEN

manda-me s empre passear quando está a fazer


compras . Diz ela que eu a maço mortalmente; e Miss
Woodhouse está com cara de quem quase diria o
mesmo. Que devo fazer?
- Não estou aqui por minha causa - retorquiu
Ema; - espero apenas a minha amiga. Provavel­
mente, não se demora, e então vamos para casa. Mas
acho que faria melhor em ir com Mrs . Weston ouvir o
piano.
- Bem . . . se me aconselha assim . . . Mas (com um
sorriso) suponhamos que o coronel C ampbell se
utilizou de uma pessoa pouco cuidadosa e que o piano
tem um som fraco . . . que devo eu dizer? Não serei de
nenhum auxílio para Mrs . Weston. Ela sozinha poderá
resolver a questão . Uma verdade desagradável dita
pela sua boca poder-se-ia suportar; mas comigo o caso
é diferente: eu sou a criatura mais desgraçada deste
mundo para uma mentira cortês .
- Não acredito e m tal coisa - retorquiu Ema.
Estou convencida de que pode dissimular tão bem
como qualquer dos seus semelhante s , quando é
necessário; mas não há razão alguma para supor que
o piano é de má qualidade. Muito pelo contrário até,
se não ouvi mal a opinião de Miss Fairfax ontem à
noite .
- Venha comigo, - disse Mrs . Weston - se não o
contraria muito. Convém não nos demorarmos . Iremos
depois a Hartfield. Segui-las-emos. De facto, tenho
muito interesse em que vá comigo . Será um grande
favor que me faz; além disso, sempre pensei que tivesse
essa intenção.
Frank nada mais pode dizer; e, esperançado em
que teria a recompensa de Hartfield, voltou com Mrs .
Weston até à porta de Mrs . Bates. Ema deixou-se ficar
à porta da loja, a vê-los entrar, e depois foi reunir-se
a Harriet, que se encontrava junto do interessante
balcão, tentando, com toda a sua força de persuasão,
convencê-la de que, se ela pretendia musselina lisa,
era escusado olhar para as musselinas estampadas , e

242
EMA

que as fitas azuis, por muito bonitas que fossem, nunca


condiriam com a cor amarela do vestido . Finalmente,
acabou por se resolver tudo, até o destino a dar ao
pacote .
- Quer que mande isto a casa de Mrs . Goddard,
minha senhora? - perguntou Mrs . Ford .
- Sim . . . não . . . sim, a casa de Mrs . Goddard. Só o
modelo do meu vestido é que está em Hartfield. Não,
mande para Hartfield, se faz favor. Mas o pior é que
Mrs . Goddard há-de gostar de ver . . . E eu podia levar
o modelo para casa qualquer dia. Mas vou precisar já
da fita ... por isso, seria melhor ir para Hartfield ... pelo
menos a fita. Não pode fazer dois embrulhos , Mrs .
Ford?
- Não vale a pena dar a Mrs . Ford o incómodo de
fazer dois embrulhos, Harriet.
- Pois não.
- Não incomoda nada, minha senhora - disse a
obsequiadora Mrs . Ford.
- Oh! mas, de facto, prefiro que fique tudo num só
embrulho. Nesse caso, faça-me o favor de mandar tudo
para casa de Mrs . Goddard . . . não sei . . . Não, acho, Miss
Woodhouse, que pode muito bem ir para Hartfield, e
eu à noite levo-o para casa. Que me aconselha?
- Que não gaste mais um segundo com o assunto.
Para Hartfield, se faz favor, Mrs . Ford.
- Ah ! É muito melhor - disse Harriet, toda
satisfeita. - Não me convinha de maneira alguma
que fosse para casa de Mrs . Goddard.
Ouviam-se vozes que se aproximavam - ou antes
uma voz e duas senhoras; eram Mrs . Weston e Miss
Bates, com quem se encontraram à porta da loja.
- Minha querida Miss Woodhouse, - disse Miss
Bates - dei uma corrida até aqui só para lhe pedir o
obséquio de vir a nossa casa um bocadinho e dar-nos
a sua opinião sobre o novo piano . . . a menina e Miss
Smith . Como passou, Mis s Smith? . . . Bem, muito
obrigada . . . E pedi a Mrs . Weston que viesse comigo
para, ter a certeza de que era bem sucedida.

243
JA NEA USTEN

- Espero que Mrs . Bates e Miss Fairfax estej am


bem . . .
- Estão de perfeita saúde, muito obrigada . . . Minha
mãe está muito boa; e Jane não se constipou nada
ontem. Como está Mr. Woodhouse? . . . Folgo tanto em
ouvir que se encontra bem ! Mrs . Weston disse-me que
estavam aqui . Oh ! então - disse eu - vou até lá, e
tenho a certez a de que Miss Woodhouse não me
deixará ficar mal se eu lhe pedir que venha a minha
casa; minha mãe há-de gostar tanto de a ver . . . e agora
que temos uma companhia tão agradável, não pode
recusar. «Ah! Peço-lhe que vá» - disse Mr. Frank
Churchill; - «há toda a conveniência em se ouvir a
opinião de Miss Woodhouse». Mas, - disse eu - se
um de vós vier comigo há mais a certeza de ser bem
sucedida. «Oh ! » - disse ele - «espere meio minuto
que eu acabe a minha tarefa» . Pois, talvez não acredite,
M i s s Woodhou s e , mas ele l á ficou , com toda a
amabilidade, a apertar um perno dos óculos de minha
mãe . Soltou-se esta manhã, sabe . . . Mr. Frank é tão
amável! É que minha mãe não podia fazer uso dos
óculos . . . não podia pô-los. E a propósito: toda a gente
qevia ter dois pares de óculos . . . realmente, devia ter.
E o que Jane diz . Eu tencionava levá-los ao John
Saunders , mas toda a manhã tive coisas que fazer
que me impediram de lá ir; primeiro uma coisa, depois
outra, um nunca acabar, como deve saber. A certa
altura, veio a Patty dizer-me que a chaminé da cozinha
precisava de limpeza. Oh! - disse eu - não me venhas
com más notícias. Olha: o perno dos óculos da tua ama
caiu. Mas nessa ocasião chegaram as maçãs assadas
que Mrs . Wallis nos mandou pelo seu garoto . - Têm
sido sempre extremamente delicados e amáveis para
nós, os Wallis . . . Há quem diga que Mrs . Wallis, às
vezes, é mal educada e capaz de dar uma má resposta,
mas nós nunca recebemos deles senão as maiores
atenções . E não é com certeza pela despesa que lá
fazemos, pois que pão gastamos nós? Somos só três . . .
e Jane agora . . . não come quase nada . . . ao almoço
então . . . Se a visse, até se assustava. Não me atrevo a

244
EMA

dar a saber a minha mãe o que ela come . . . Por isso


dou uma desculpa ou outra e tudo acaba por passar
despercebido . Mas para a tarde começa a sentir
apetite, e não há nada de que goste tanto como de
maçãs assadas ; são muito saudáveis . No outro dia,
encontrei Mr. Perry na rua e aproveitei a ocasião para
lho perguntar. Não que eu tivesse qualquer dúvida
antes . . . tenho ouvido muitas vezes a Mr. Woodhouse
aconselhar as maçãs assadas . Creio que é a única
maneira como Mr. Woodhouse considera a fruta
saudável. No entanto, nós fazemos muitas vezes maçãs
em pudim. A Patty faz um excelente pudim de maçãs .
Bem, Mrs . Weston, acho que levou a melhor e só tenho
que agradecer a estas senhoras .
Ema disse que teria «muito prazer em ir ver Mrs .
Bates, etc . » , até que saíram da loja, não sem antes
Miss Bates cumprimentar Mrs . Ford .
- Como passou, Mrs . Ford? Queira desculpar! Não
a tinha visto. Ouvi dizer que tinha recebido de Londres
uma linda colecção de fitas . . . Jane voltou ontem
encantada. Muito obrigada, as luvas assentam muito
bem . . . só um pouco largas no puls o , mas Jane
calçou-as .
- De que é, que eu estava a falar? - tornou ela,
quando se encontraram todas na rua.
Ema, por mais que se esforçasse, não conseguira
fixar nada de toda aquela embrulhada.
- Confesso que não sou capaz de me recordar do
que estava a dizer. Ah ! os óculos de minha mãe. Estou
tão grata a Mr. Frank Churchill ! «Oh ! » - disse ele -
«acho que posso colocar o perno . Gosto muito destes
trabalhos» . Deve concordar que o faz parecer tão . . . Na
verdade, devo dizer que, conforme já ouvira e esperava,
ele sobressai em tudo . . . Felicito-a, muito sinceramente,
Mrs . Weston. Ele parece possuir todas as qualidades
que uns pais extremosos podiam . . . «Oh ! » - dizia ele
« e u p o s s o colocar o pern o . Gosto muito d e s t e s
trabalho s » . N u n c a me hei-de esquecer d o s s e u s
modos. E quando e u tirei a s maçãs assadas d o armá­
rio , esperando que os nossos amigos tive ssem a

245
JA NEA USTEN

amabilidade de provar delas, ele disse logo: «Üh! em


fruta não há coisa melhor, e eu nunca vi m�çãs com
tão bonito aspecto». Como vê, isto foi tão . . . E eu bem
via, pela maneira como falou, que não era por lisonja.
Na verdade, estas maçãs são deliciosas e Mrs . Wallis
faz-lhes inteira j ustiça . . . só há uma diferença :
levámo-las apenas duas vezes ao forno e Mr. Wood­
house recomendou-nos que as levássemos lá três
vezes . . . mas Miss Woodhouse, com certeza, desculpará.
As maçãs, j á de si, são do melhor que há para assar,
sem dúvida alguma; são todas de Donwell . . . e algumas
generosamente oferecidas por Mr. Knightley. Ele
manda-nos um saco delas todos os anos ; e a verdade
é que não há em parte alguma maçãs para guardar
como as do seu pomar . . creio que ainda há cá duas .
Minha mãe diz que, nos seus tempos de rapariga, j á
o pomar d e Mr. Knightley tinha fama. Mas n o outro
dia fiquei realmente envergonhada . . . foi de manhã;
Mr. Knightley veio visitar-nos e, como Jane estava
comendo uma maçã, começámos a falar nelas e
dissemos que a pequena as apreciava muito; e ele
então perguntou se ainda as não tínhamos acabado .
«Acho que j á não devem ter nenhumas - disse ele; -
vou mandar-lhes mais» . Eu bem lhe pedi que não
fizesse tal coisa . . . pois a verdade é que, se bem que
ainda se não tivessem gasto, eu também não podia
dizer que tivéssemos muitas . . . haveria, quando muito,
meia dúzia; mas essas estavam guardadas para Jane,
e, ao mesmo tempo, eu tinha escrúpulo em aceitar
mais de uma pessoa que já tinha sido tão generosa.
Jane também foi d e s t a opinião . E quando M r .
Knightley se retirou, ela quase se zangou comigo . . .
isto é , não quero dizer tanto , pois nós nunca nos
z angamos, mas a verdade é que ela estava toda
desconsolada por eu ter confessado que as maçãs
estavam quase no fim; achava Jane que devia ter-lhe
dito que ainda tínhamos muitas . «Oh! - respondi-lhe
eu - eu disse-lhe o menos que pude». Entretanto,
nessa mesma tarde chegou William Larkins com um
grande cesto de maças da mesma qualidade, quase

246
EMA

um alqueire; imagine a minha gratidão ! Por isso desci


e tratei de apresentar a William Larkins os meus
agradecimentos . Larkins é um velho amigo; é sempre
com prazer que o vejo. No entanto, soube depois por
Patty que William dissera que, daquela qualidade,
eram aquelas maçãs as últimas que o patrão tinha;
havia-as trazido todas . . . e agora o patrão não tinha
uma que fosse para assar ou cozer. William, só por si,
pouco se importava; até gostara que o patrão tivesse
vendido tantas, pois não sei se sabe que o que mais o
preocupa são os interesses do patrão . Mas diz ele que
Mrs . Hodges é que não gosta nada que se desperdicem
assim as maçãs ; ela não pode levar à paciência que o
patrão não tenha a sua torta de maçãs esta Primavera.
Ele contou tudo isto a Patty, mas recomendou-lhe que
não o divulgasse, sobretudo a nós, pois Mrs . Hodges
podia zangar-se, e, de resto, desde que se tinham
vendido tantos sacos de maçãs, pouco importava quem
comeria o que restasse. Patty contou-me tudo e, como
deve calcular, fiquei bastante incomodada! Gostaria
que Mr. Knightley não soubesse nada desta história!
Com certeza ficava tão . . . Ainda fiz todo o possível para
que Jane o não soubesse, mas infelizmente descaí-me
e disse-lhe tudo quase sem dar por isso.
Miss Bates acabou exactamente na ocasião em que
Patty abria a porta; e as visitantes, enquanto subiam
a escada, não tiveram de escutar nenhum relato
aturado, visto que apenas se viram perseguidas pelos
extremos das incoerentes amabilidades da solteirona.
- Cuidado , Mrs . Weston . . . aí há um degrau .
C autela , Miss Woodhous e , a escada é um pouco
escura . . . é bastante escura e estreita. Miss Smith, vej a
lá n ã o caia . . . M i s s Woodhouse, estou desolada . . .
tropeçou e magoou-se, não? Miss Smith, olhe o degrau
desse lado.

24 7
JA NEA USTEN

CAP Í TULO XXVIII

Reinava uma atmosfera de tranquilidade na


pequena saleta em que entraram; Mrs . Bates , privada
do seu habitual entretenimento, dormitava a um canto
da lareira, enquanto Frank Churchill, sentado a uma
mesa, próximo dela, parecia profundamente absorvido
com os óculos da velhota, e Jane Fairfax, de costas
voltadas para ambos, percorria a escala no piano .
Não obstante a sua aplicação, o rapaz não deixou
de mostrar uma expressão radiante ao ver Ema outra
vez .
- Estou muito contente - disse ele, e m voz baixa
- por ter vindo pelo menos dez minutos mais cedo do
que eu esperava. Como vê, estou procurando tornar-me
útil ; acha que terei êxito na minha tentativa?
- O quê ! - exclamou Mrs . Weston - então ainda
não acabou? Estou vendo que não poderia ganhar a
vida como cinzelador . . .
- Tenho tido interrupções n o meu trabalho -
replicou o rapaz; - estive a ajudar Miss Fairfax a
assentar bem o piano no chão; não estava bem firme,
creio que por causa de qualquer defeito do soalho .
Como vê, tivemos que calçar uma perna com papel .
Foi muito amável em ter acedido em vir . . . Receei que
tivesse resolvido ir já para casa.
Insistiu com a madrasta para que se sentasse ao
lado dele, e, depois de lhe ter solícitamente oferecido
a maçã mais bem assada que encontrou, pediu o seu
conselho sobre a tarefa a que se entregara, até Jane
Fairfax se sentir disposta a sentar-se novamente ao
piano . Que ela se não dispusera de pronto, bem o
percebeu Ema pelo nervosismo que a denunciava; o
instrumento não estava em seu poder há tempo
suficiente para que se utilizasse dele sem comoção;
precisava de se dominar para que a execução se não
ressentisse, e Ema não podia deixar de se compadecer
de tal estado de espírito, qualquer que fosse a sua
origem; no entanto, resolveu não o revelar a ninguém.

248
EMA

Jane, por fim, decidiu começar; e, se bem que os


primeiros compassos fossem executados com uma
certa indecisão, ela conseguiu, a pouco e pouco, tirar
do instrumento todo o partido que ele podia dar. Mrs .
Weston, que já tivera uma vez o prazer de a ouvir, era
com verdadeiro entusiasmo que a ouvia de novo; Ema
juntou aos dela os seus elogios e o piano foi devida­
mente julgado de alta categoria.
- O facto é que, seja quem for a pessoa que o coronel
Campbell incumbiu de fazer a compra, - disse Frank
Churchill, sorrindo para Ema - a escolha foi muito
acertada. Em Weymouth ouvi muitas vezes falar do
bom gosto do coronel; e lembro-me de que , tanto ele
como todos os do seu grupo, o que mais apreciavam
era exactamente a sonoridade das notas agudas . Não
tenho dúvidas em afirmar, Miss Fairfax, que ele ou
deu ao amigo instruções minuciosas ou escreveu ele
próprio a Broadwood. Não acha?
Jane nem sequer voltou a cara; dir-se-ia nada
ter ouvido. Mrs . Weston falava com ela nesse mo­
mento .
- Não é bonito - disse Ema, em voz baixa; - as
minhas conj e cturas não se baseiam em nada de
positivo . Não a aflija.
Frank sorriu e abanou a cabeça, parecendo ter
poucas dúvidas e estar pouco disposto à compaixão . E
momentos depois recomeçou :
- Os seus amigos da Irlanda é que devem estar
muito contentes a estas horas, Miss Fairfax! Estou
convencido de que hão-de pensar muitas vezes em si,
ansiosos por saber o dia, o dia exacto, da chegada do
piano às suas mãos . Já pôs na ideia o interesse com
que o coronel Campbell deve ter seguido o andamento
do negócio até esta altura? Já imaginou as conse­
quências que derivam do facto de ele haver pessoal­
mente tratado do caso ou, ao contrário, ter dado apenas
instruções vagas quanto à entrega da encomenda,
suj eitando-se assim às contingências do acaso e às
conveniências deste ou daquele?

249
JANE A USTEN

E calou-se. Jane não podia deixar de o ouvir; e


também não pode deixar de responder:
- Enquanto não receber uma carta do coronel
C ampbell , - disse ela, esforçando-se por manter
calma - não posso imaginar nada de concreto. O resto
não passa de suposições.
- Suposições? Pois sim: mas há suposições que se
podem fazer e outras não. Por exemplo: eu gostava de
supor daqui a quanto tempo terei acabado de fixar
este perna. Quando se está embebido em qualquer
trabalho, e nos dá para conversar, dizem-se muitos
disparates , não é verdade, Miss Woodhouse? Os
operários de verdade devem estar sempre de boca
fechada, suponho eu; mas nós , os amadores, quando
nos agarramos a uma palavra . . . Tudo isto porque Miss
Fairfax disse qualquer coisa a respeito de suposições.
Pronto ! Acabei . Minha senhora, - acrescentou ,
dirigindo-se a Mrs . Bates - tenho o prazer de lhe
restituir os seus óculos , devidamente consertados .
Mãe e filha agradeceram-lhe calorosamente; e ele,
para se ver livre da última, dirigiu-se a Miss Fairfax,
que ainda estava sentada ao piano, e pediu-lhe que
tocasse mais qualquer coisa.
- Se não se importasse, - disse ele - gostaria de
ouvir uma daquelas valsas que dançámos esta noite . . .
permita-me que as recorde mais uma vez. O seu prazer
não foi tão grande como o meu ao ouvi-las; pareceu-me
ver em si um ar de fadiga . Creio que ficou bem
satisfeita por não dançar mais tempo; e, no entanto,
eu daria uma fortuna . . . a maior fortuna que j amais
tenha existido nas mãos de alguém . . . por outra meia
hora como aquela.
Jane tocou.
- Que ventura ouvir de novo a melodia que uma
vez nos tornou felizes ! Se não estou em erro , j á
dançámos essa e m Weymouth.
Ela olhou para ele um momento, corou intensa­
mente e começou a tocar outro trecho. Frank tirou
uma música de uma cadeira que estava ao lado do
piano e, voltando-se para Ema, disse:

250
EMA

- Aqui está uml} coisa inteiramente nova para


mim. Conhece isto? E de Cramer. Olhe: também aqui
há uma nova colecção de melodias irlandesas . De resto,
não é nada de espantar cá em casa; devem ter vindo
com o piano. Muito previdente da parte do coronel
Campbell, não é? Ele, com certeza, sabia que Miss
Fairfax não tinha músicas . . . Destaco em especial este
pormenor, pois demonstra que a atenção do coronel
partiu do coração. Nada se fez com precipitação, nada
ficou incompleto . Apenas um verdadeiro afecto o
poderia ter inspirado.
Ema teria preferido que ele fosse menos incisivo;
contudo, não podia deixar de lhe achar graça. E
quando, num relance, surpreendeu um meio sorriso
nos lábios de Jane Fairfax, quando viu que, de mistura
com o intenso rubor causado pela compreensão
daquelas palavras , havia ainda um sorriso de íntima
delícia, Ema sentiu menos escrúpulos do seu regozijo
e muito menos piedade pela outra. Afinal, essa Jane,
tão amável, tão íntegra, tão perfeita, parecia alimentar
sentimentos bem repreensíveis !
Frank levou a música a Ema e puseram-se ambos
a examiná-la. Ema aproveitou a oportunidade para
lhe dizer em voz baixa:
- Você falou claro de mais; ela, com certeza, percebeu.
- Oxalá que sim! Fiz todo o possível para que me
compreendesse. Não me envergonho das minhas
palavras .
- Mas eu, realmente, é que estou meio enver­
gonhada e arrependida da ideia que tive.
- Pois eu estou muito satisfeito com isso, e ainda
mais por mo ter comunicado. Agora tenho a chave de
todos os olhares e gestos estranhos que tenho notado
nela. Deixe a vergonha para ela; se é culpada, deve
senti-la.
- Acho que não está inteiramente livre dessa
vergonha.
- Pois eu não lhe vej o muitos sinais disso. Olhe: lá
está ela a tocar Robin Adair . . . a melodia predilecta
dele.

251
JANE A USTEN

Quase no mesmo instante, Miss Bates, que chegara


à j anela, avistou Mr. Knightley, que se aproximava a
cavalo.
- Olhem! Mr. Knightley! . .. Preciso de lhe falar,
para lhe agradecer. Não abro esta j anela, porque
podem constipar-se; vou ao quarto de minha mãe .
Tenho a certeza de que ele, quando souber que estão
aqui, entra também. Que felicidade tê-los todos aqui
juntos ! Que honra para a nossa modesta casa!
Já estava no aposento anexo e ainda continuava a
falar; abriu a j anela dessa dependência, apressou-se
a chamar Mr. Knightley, e os outros não perderam
palavra de toda a conversa que então se travou, como
se e s t a decorre s s e no mesmo apos ento em que
estavam.
- Então como passou? . . . Como passou? Bem, muito
obrigada . . . Estou-lhe muito agradecida por nos ter
trazido de carruagem e s t a noite , não imagi n a !
Chegámos a muito boa hora; minha mãe j á começava
a estar em cuidado. Faça favor de entrar . . . entre .
Encontrará cá amigos seus .
Assim começou Miss Bates; e Mr. Knightley parecia
empenhado em que o ouvissem por seu turno, pois foi
em tom forte e resoluto que disse:
- Como está a sua sobrinha, Miss Bates? Inte­
ressa-me saber como passam todos em sua casa, mas
principalmente sua sobrinha. Como está Miss Fairfax?
Oxalá não se tenha constipado esta noite . . . Como está
ela hoj e? Diga-me como está Miss Fairfax.
E Miss Bates foi obrigada a dar-lhe uma resposta
concreta, pois não lhe dava atenção a respeito de mais
nada. Os outros que ouviam estavam divertidíssimos;
e Mrs . Weston deitou a Ema um olhar cheio de
subentendidos. Mas Ema limitou-se a abanar a cabeça
com ar de inabalável cepticismo.
- Não imagina como lhe estou grata! Que grande
favor o seu por nos ter trazido na sua carruagem! -
tornava Miss Bates .
Mas ele interrompeu-a, dizendo-lhe secamente:
- Vou a Kingston. Desej a alguma coisa de lá?

252
EMA

- Oh! Meus Deus ! Vai a Kingston? Sim? . . . Mrs . Cole


no outro dia disse que precisava de qualquer coisa de lá.
- Mrs . Cole tem os seus criados. A si é que eu
pergunto se quer alguma coisa.
- Não, muito obrigada. Mas entre . . . Não adivinha
quem aqui está . . . Miss Woodhouse e Miss Smith . . .
Tiveram a bondade de vir ouvir o piano novo. Deixe o
cavalo na Coroa e venha até cá.
- Bem, - disse ele, parecendo decidir-se - por
cinco minutos, talvez . . .
- E Mrs . Weston e Mr. Frank Churchill também
cá estão ! Que bom ! Tantos amigos !
- Não entro, obrigado . Lembrei-me de que não
posso demorar-me nem dois minutos: tenho de estar
em Kingston o mais cedo possível.
- Oh! entre . . . Eles hão-de gostar tanto de o ver!
- Não, não; a sua sala já está muito cheia. Virei
outro dia e então ouvirei o piano.
- Pois creia que tenho muita pen a ! Ah ! Mr.
Knightley, que bela noite a de ontem, hem? Que serão
tão agradável ! E o baile? Não acha que esteve
delicioso? Gostei muito de ver Miss Woodhouse dançar
com Mr. Frank Churchill; nunca vi par igual.
- Também eu gostei muito; não posso deixar de
falar assim, pois suponho que Miss Woodhouse e Mr.
Frank Churchill devem estar a ouvir tudo o que
dizemos. E - acrescentou, levantando ainda mais a
voz - não sei porque não havemos de falar também
de Miss Fairfax . . . Eu acho que Miss Fairfax dança
muito bem; e Mrs . Weston é, sem excepção , a mais
exímia conhecedora de danças regionais de toda a
Inglaterra. Agora, se os meus amigos quiserem ser
gratos , que digam, em paga, alguma coisa em voz alta
a seu e a meu resp�ito; mas o pior é que não posso
esperar para os ouvir. ,
- Oh! Mr. Knightley, um momento só . . . E que há
uma coisa muito importante . . . Jane e eu estamos
muito incomodadas por causa das maçãs !
- Mas que há?
- Ficámos muito aborrecidas por nos ter mandado
todas as maçãs que tinha. O senhor disse que tinha

253
JANE A USTEN

muitas, e afinal ficou sem nenhuma! Realmente não


ficámos muito contentes. Mrs . Hodges deve estar bem
zangada . . . William Larkins disse-o cá em casa. Não
devia ter feito uma coisa dessas . . . isso é que não devia.
Oh ! e vai-se embor a ! Nunca quer ouvir agrade­
cimentos . E ou que j ulgava que estava a ouvir-me !
Acho que não devia calar-me . . . Bem - continuou Miss
Bates, voltando à saleta - não consegui nada. Mr.
Knightley não pode demorar- s e . Vai a Kingston .
Perguntou-me se queria alguma coisa . . .
- Nós ouvimos o seu amável oferecimento: ouvimos
tudo.
- Ah! sim? Não me admiro; a porta estava aberta
e a j anela também . . . E depois Mr. Knightley falava
tão alto . . . É claro que devem ter ouvido tudo. «Desej a
alguma coisa d e Kingston?» - disse ele . E e u até me
referi . . . Oh! Miss Woodhouse, j á se vai embora? Ainda
agora chegou . . . Foi muita amabilidade sua ter cá
vindo!
Ema, de facto, achava que eram horas de voltar
para casa; a visita já tinha durado bastante tempo. E
Mrs . Weston e o seu companheiro, como olhassem para
o relógio e vissem que havia decorrido grande parte
da manhã, despediram-se também, resolvidos a
acomp anhar as duas j ovens até aos portõe s de
Hartfield, para depois seguirem para Randalls .

CAP Í TULO XXIX

Pode-se muito bem viver sem dançar. Abundam os


exemplos de j ovens que p a s s am meses e meses
sucessivos sem frequentar bailes de espécie alguma,
e, no entanto, o dano causado por essa abstinência, no
corpo ou no espírito, é nulo. Mas quando se dança uma
vez, - quando se experimentam pela primeira vez os
prazeres do torvelinho, por muito pouco intensos que

254
EMA

sej am - então o hábito torna-se tão imperioso que


absorve todas as demais aspirações .
Frank C hurchill tinha dançado u m a v e z e m
Highbury e estava ansioso por dançar novamente; por
isso, a última meia hora de um dos serões que Mr.
Woodhouse acedeu a passar em Randalls na compa­
nhia da filha, foi aproveitada pelos dois j ovens a fazer
planos acerca do assunto. Era a ideia dominante de
Frank, e, dos dois, era ele quem maior zelo mostrava
no seu prosseguimento; quanto à sua companheira,
revelava-se uma excelente solucionadora de todas as
dificuldades e manifestava a maior solicitude pelo que
respeitava à organização e ao carácter do baile . Mas
o que sobretudo a interessava era mostrar mais uma
vez aos outros a perfeição com que Mr. Frank Churchill
e Miss Woodhouse dançavam, - fazer aquilo de que
ela não tinha que corar ao comparar-se a Jane Fairfax;
interessava-lhe mesmo a própria dança por si, sem
necessitar do estímulo inconfessável da vaidade. E com
o fim de avaliar a capacidade da sala, auxiliou Frank
a medir a passo as dimensões do aposento e, depois,
as da dependência em frente, na esperança de que,
não obstante Mr. Weston ter dito que os dois com­
partimentos eram de igual tamanho, a segunda sala
fosse um pouco maior.
A proposta que o rapaz fez de prosseguirem ali com
os bailes iniciados em casa de Mr. C ole e de se
convidarem as mesmas pessoas e a mesma pianista,
encontrou a mais pronta aquiescência. Mr. Weston
associou-se à ideia com sincera alegria e Mrs . Weston
comprometeu-se de muito boamente a tocar durante
todo o tempo que os convidados quisessem dançar.
Seguiu-se, pois, a interessante ocupação de calcular o
número exacto de pessoas que ali se reuniriam e o
espaço indispensável, consoante a quantidade de
pares.
- A senhora, Miss Smith e Miss Fairfax são três,
e mais as duas Misses Coxes, cinco - repetiu Frank
vezes sem conto. - Além disso, temos os dois Gilberts,
o j ovem Cox, meu pai, Mr. Knightley e eu. Chega para

255
JANE A USTEN

nos divertirmos . A senhora, Miss Smith e Miss Fairfax


são três, com as duas Misses Coxes , cinco; e para cinco
pares deve haver espaço de sobej o .
D a í a pouco reconsiderava:
- Mas haverá realmente espaço suficiente para
cinto pares? Parece-me que não . . .
E depois:
- E , além disso, por cinco pares não valia a pena
tanto incómodo. Cinco pares não são nada, quando se
pensa a sério no assunto. Reunir cinco pares apenas
se pode admitir como ideia de momento.
Alguém disse que Miss Gilbert era esperada em
casa do irmão e que , portanto , deviam convidá-la
também. Um outro lembrou que Mrs . Gilbert teria
com certeza dançado na última noite, se lho tivessem
pedido . Alvitrou-se convidar mais um dos j ovens
Coxes, e, por fim, depois de Mrs . Weston ter citado
uns primos , que convinha acrescentar à lista, e uma
família com quem estava há muito relacionada e de
que não se deviam esquecer, chegou-se à conclusão de
que, em vez de cinco pares, haveria pelo menos dez ,
resultando daí interessantes conjecturas sobre a s
possibilidades d e o s acomodar.
As portas das duas salas ficavam exactamente em
frente uma da outra. «Não se poderiam utilizar ambas
as dependências e dançar numa sala e noutra com as
portas de comunicação abertas?» . Parecia ser o melhor
processo; e, contudo, não se afigurou tão bom que
alguém não desej asse outro ainda melhor. Ema disse
que isso não tinha j eito nenhum; Mrs . Weston pôs
objecções por causa da ceia; e Mr. Woodhouse opôs-se
veementemente a esse plano , alegando motivos de
s aúde . De facto , estava tão contrari ado que não
convinha insistir nesse ponto.
- Oh ! não - dizia ele; - seria o cúmulo da
imprudência. Receio-o por Ema . . . ela não é muito forte.
Podia apanhar uma pneumonia. E a pobre Harriet
também; todos podiam apanhar . Mrs . Weston, a
senhora talvez caís se de cama . . . não permita tal

256
EMA

disparate . . . por favor não permita que se faça uma


coisa dessas . Esse rapaz - acrescentou em voz baixa
- é muito irreflectido. Não diga ao pai, mas esse moço
tem pouco j uízo . Tem passado toda a noite a abrir
portas e a deixá-las abertas , como um estouvado . Não
se lembra das correntes de ar . . . Não pretendo
indispô-la contra ele, mas realmente ele tem pouco
juízo !
Mrs . Weston ficou muito pesarosa ante tal acu­
sação . Reconhecendo a sua importância, fez tudo
quanto estava em seu poder para a desfazer. Fecha­
ram-se todas as portas, pôs-se de parte o proj ecto das
duas salas e voltou-se ao primeiro plano de dar o baile
numa única sala; e, graças à boa vontade de Frank
Churchill, essa dependência, que, um quarto de hora
antes, parecia escassamente suficiente para cinco
pares, reconheceu-se poder comportar dez .
- Estávamos sendo muito exigentes - disse ele.
- Para quê mais espaço? Os dez pares cabem aqui
muito bem .
Ema duvidava: «Que ficariam como sardinha em
lata e seria um aborrecimento dançar, sem quase se
poderem voltar» .
- Tem razão - volveu Frank; - isso seria uma
maçada.
Contudo, foi de novo tomar medidas e, quando
terminou, disse:
- Acho que haverá bastante espaço para dez pares.
- Não deve haver - disse ela; - creio que se
engana. Que horror todos apertados uns contra os
outros! Nada há menos agradável do que dançar no
meio de uma multidão . . . e então numa sala pequena!
- Não há dúvida - retorquiu ele.- Concordo em
absoluto. Uma multidão numa sala pequena . . . Miss
Woodhouse tem a arte de pintar um quadro em poucas
palavras . Interessante, muito interessante ! Todavia,
no ponto a que as coisas chegaram, não é muito
agradável pôr tudo de parte . Seria um desapon­
tamento para meu pai . . . e para todos . . . Não sei se . . .

257
JANE A USTEN

enfim, quer-me parecer que os dez pares cabem aqui


muito bem.
Ema compreendeu que a sua delicadeza era de um
carácter um pouco voluntarioso e que ele, com risco
de passar por obstinado, faria o possível para não
perder o prazer de dançar com ela; aproveitou, no
entanto, a parte que a lisonjeava e perdoou o resto. Se
ela tencionava casar com ele, ainda mereceria a pena
ponderar um bocado e procurar compreender o valor
das preferências do rapaz e o seu género de tempe­
ramento ; mas para as exigências de uma simples
amizade como a deles, a sua amabilidade era mais
que suficiente .
No dia seguinte , antes do meio-dia, j á ele estava
em Hartfield; e entrou na sala com um sorriso que
atestava estar o projecto de pé. E não tardou muito
que ele não anunciasse uma melhoria de situação.
- Bem, Miss Woodhouse, - principiou quase em
seguida - espero que a sua paixão pela dança não
tenha esmorecido com o terror que lhe inspiraram os
exíguos aposentos da casa de meu pai. Tenho uma
nova proposta a fazer-lhe: é uma ideia de meu pai,
que apenas espera a sua aprovação para ser posta em
execução . Posso esperar a honra de me conceder as
duas primeiras valsas do baile que se proj ecta dar,
não em Randalls, mas na Estalagem da Coroa .
- Na Coroa? ...
- Sim; se a senhora e Mr. Woodhouse não vêem
nisso inconveniente, - e eu confio que não - meu pai
espera dos seus amigos a bondade de o visitarem ali .
Não só lhes pode prometer melhores acomodações,
como lhes garante um acolhimento não menos
afectuoso do que lhes faria em Randalls . A ideia é
exclusivamente dele . Mrs . Weston não põe obj ecção
alguma a isso, contanto que vos agrade . Isto é o que
todos nós pensamos. Oh! tinha toda a razão! Dez pares,
em qualquer das s alas de Randall s , seria insu­
portável ! . . . Horrível ! Eu bem via a razão com que
falava, mas a verdade é que eu queria garantir o baile,

258
EMA

custasse o que custasse . Não acha a solução boa?


Então, consente, não à verdade?
- Parece-me uma ideia a que ninguém tem nada
que objectar, visto que Mr. e Mrs . Weston a perfilham.
Ach o - a admirável e , pe s s o almente , considero-a
felicíssima ... Creio que é a melhor solução . Papá, não
acha uma solução excelente?
Foi obrigada a repetir e a explicar tudo, antes que
o pai o compreendesse; e mesmo assim, como se tratava
de uma coisa completamente nova, foram precisos
inúmeros argumentos para a tornar aceitável.
«Que não, que não achava que isso fosse uma
solução . . . era uma péssima ideia . . . muito pior que a
outr a . As s alas das estalagens eram húmidas e
perigosas , pouco arej adas e nada convidativas para
as pessoas ali se demorarem. Se queriam dançar,
tinham Randalls, que era melhor. Quanto a ele, nunca
na sua vida havia estado na sala de baile da Coroa . . .
nem de vista conhecia a gente que a mantinha. Oh!
não . . . que péssima ideia! Na Coroa havia mais perigo
de constipações que em qualquer outro lado».
- Permita-me que lhe observe, senhor, - disse
Frank Churchill - que uma das coisas que mais
recomendam esta modificação é precisamente o facto
de o perigo das constipações ser quase nulo . . . e na
Coroa muito menor ainda que em Randalls ! Mr. Perry
talvez tivesse razão para lamentar a alteração, mas
mais ninguém . . .
- Senhor, - retorquiu Mr. Woodhouse, um tanto
irritado - está redondamente enganado se j ulga que
Mr. Perry é desse j aez. Mr. Perry é de uma solicitude
a toda a prova quando qualquer de nós está doente . O
que não compreendo é como a sala da Coroa é mais
abrigada que a casa de seu pai .
- Pela simples razão de que é mais ampla, senhor.
Não haverá necessidade de se abr!rem as j anelas, uma
vez sequer, durante toda a noite. E esse terrível hábito
de abrir j anelas, deixando o ar frio penetrar nos corpos
muito quentes, que, como muito bem sabe, é origem
de todo o mal .

259
JANE A USTEN

- Abrir j anelas ! . . . Mas , Mr. Ch urchill, com certeza


que ninguém pensa em abrir as j anelas em Randalls .
Ninguém seria imprudente a tal ponto! Nunca ouvi
semelhante coisa . . . Dançar com as j anelas abertas !
Estou convencido de que nem seu pai nem Mrs .
Weston . . . a pobre Miss Taylor . . . admitiriam uma coisa
dessas .
- Ah! senhor . . . mas há sempre um j ovem irre­
flectido que , de vez em quand o , se põe atrás do
cortinado da j anela e se lembra de levantar o caixilho,
sem ninguém dar por isso. Eu próprio o tenho feito
muitas vezes .
- Seriamente? . . . Valha-me Deus ! Nunca o suporia.
Mas não admira: vivo tão isolado que me deixo
surpreender muitas vezes com o que oiço. Entretanto,
há que distinguir; e talvez que, quando conversarmos
a esse respeito . . . mas estas coisas exigem muita
ponderação. Não se podem resolver precipitadamente.
Se Mr. e Mrs . Weston tiverem a bondade de cá vir
qualquer manhã destas , havemos de conversar; e
então veremos o que se pode fazer.
- Mas , infelizmente, senhor, o meu tempo, é tão
escasso . . .
- Oh! - interrompeu Ema - h á tempo de sobra
para combinar tudo. Não há pressa. Se ficar decidido
dar-se o baile na Coroa , papá, é mais uma vantagem
por causa dos cavalos : a cavalariça fica perto.
- Isso é verdade, minha filha; é uma grande coisa.
Não é que James s e queixe - , mas h á toda a
conveniência em poupar os cavalos sempre que se
possa. Se eu tivesse a certeza de que a casa era bem
arej ada . . . mas Mrs . Stokes é pessoa digna de con­
fiança? Duvido . Não a conheço, nem sequer de vista . . .
- Pode estar descansado, senhor: está tudo ao
cuidado de Mrs . Weston; ela encarrega-se de tudo.
- Aí tem, papá! Está satisfeito? A nossa querida
Mrs . Weston, que é o zelo em pessoa . . . Não se lembra
do que Mr. Perry disse, há anos, quando eu tive a
escarlatina? «Se é Miss Taylor quem trata de Miss
Ema, nada tem a recear, meu caro senhor». E depois

260
EMA

disso, tenho ouvido o papá referir-se a esse facto


muit�s vezes , quando quer elogiá-la!
-E verdade; foi assim mesmo que Mr. Perry disse.
Nunca o esquecerei. Pobre Emazinha! Estiveste muito
mal . . . isto é, teria sido muito pior, se não fossem os
cuidados de Perry. Durante uma semana, veio quatro
vezes por dia. Disse ele, logo desde o principio, que o
mal era benigno . . . j á foi um grande alívio para nós;
mas a verdade é que a escarlatina é uma doença
terrível . Se os pequenos da pobre Isabella tiverem
alguma vez escarlatina, oxalá que ela mande chamar
o Perry.
- Meu pai e Mrs . Weston estão neste momento na
Coroa - disse Frank Churchill - a verificar a
capacidade da sala. Deixei-os lá e vim a Hartfield,
ansioso por conhecer a vossa opinião e na esperança
de que não se importariam de ir lá ter com eles e dar
então o vosso parecer. Fui incumbido por ambos de
lhes dizer isto mesmo . Dar-lhes-iam imenso prazer,
se qui s e s s e m acompanhar-me até l á ; eles nada
resolvem sem a vossa presença.
E m a s e ntiu enorme s atisfação a o ver a s s i m
solicitado o seu conselho; e como o velho deixasse o
caso entregue à filha, os dois j ovens não tardaram a
sair, a caminho da Coroa. Mr. Weston e a esposa, que
ali se encontravam, ficaram encantados de ver Ema e
obterem a sua aprovação; pareciam ao mesmo tempo
muito afadigados e felizes, cada um a seu modo: ela,
um pouco embaraçada; ele, achando tudo bem.
- Ema, - disse ela - este papel está em pior
estado do que eu esperava. Olhe ! há sítios em que
está horrivelmente manchado; e o lambril está mais
amarelo e estragado do que eu imaginava.
- Minha querida, tu és muito exigente - disse o
marido. - Que importância tem isso? À luz das velas
não se nota nada; nessa altura há-de parecer tudo tão
limpo como em Randalls. No nosso clube, à noite, não
se vêem essas c01sas .
As senhoras trocaram entre si um olhar que parecia
dizer:

261
JANE A USTEN

«Üs homens nunca sabem quando as coisas estão


SUJaS ou não» .
E eles talvez pensassem no seu foro íntimo:
«As mulheres hão-de ter sempre as suas exigên­
ciazinhas absurdas».
Surgiu, porém, uma dificuldade de que os cava­
lheiros não desdenharam; tratava-se da sala da ceia.
Na ocasião em que fora construída a sala de baile,
não se tinham preocupado com as ceias; o único anexo
que havia era uma pequena saleta de j ogo. Que fazer?
Essa dependência seria, com certeza, agora precisa
para o fim a que fora destinada, e mesmo que os quatro
organizadores do baile entendessem dispensar o j ogo,
não seria, contudo, essa divisão pequena de mais para
uma ceia em condições? Havia uma outra sala muito
maior com que se poderia contar; mas essa ficava no
outro extremo da casa e, para se lá chegar, tinha de se
passar por um corredor muito comprido e estreito. O
problema tornav a - s e emb araço s o . Mrs . Weston
receava as correntes de ar desse corredor; e nem Ema
nem os dois homens toleravam a perspectiva de ir em
chusma para a sala da ceia.
Mrs . Weston propôs então que não se desse ceia,
mas que apenas se servissem umas sanduíches na
pequena saleta; essa ideia, porém, foi considerada
inaceitável e, portanto, reprovada. Um baile parti­
cular, sem ceia, seria uma fraude miserável contra os
direitos dos convidados; Mrs . Weston não tornou, por
isso, a falar em tal coisa. Encarando então outro
aspecto da questão e olhando para a saleta em dúvida,
observou:
- No fim de contas, não acho que sej a muito
pequena. Como sabem, nós não seremos muitos . . .
Nessa altura, Mr. Weston, que media a passos
largos e rápidos o corredor, gritou dali:
- Dizias que este corredor era muito comprido,
minha querida . . . Nem por isso! E, demais, não vem a
menor corrente de ar da escada.
- Gostaria de preparar as coisas - disse Mrs .
Weston - da maneira que mais agradasse aos nossos

262
EMA

convidados. Dispor tudo de uma forma que satisfaça,


tanto quanto possível, a todos , é o que deve ser o nosso
objectivo . . . mas gostaria que me dissessem qual é essa
forma.
- Tem razão - exclamou Frank; - é isso mesmo .
Há vantagem em conhecer a opinião dos outros . Não
me surpreende o que diz . Se pudéssemos obter o
parecer dos principais . . . os Coles, por exemplo . . . Não
moram longe . Quer que vá falar com eles? Ou vou
antes a casa de Miss Bates? Essa mora ainda mais
perto; e, além disso, não sei de ninguém com mais
probabilidades de conhecer os gostos das outras
pessoas do que Miss Bates. Acho que precisamos de
reunir um conselho maior. Quer que vá pedir a Miss
Bates que venha cá?
- Sim . . . se faz favor . . . - disse Mrs . Weston, um
pouco hesitante . - Se acha que ela nos pode ajudar . . .
- Não conseguirá nada de Miss Bates - disse
Ema. - Ela desfar-se-á toda em protestos de gratidão
e exclamações de regozijo, mas não lhe dirá nada. Nem
sequer ouvirá as suas perguntas . Não vej o vantagem
alguma em consultar Miss Bates.
- Mas ela é tão divertida! Gosto muito de ouvir
falar Miss Bates. E não tenho necessidade nenhuma
de trazer a família toda, bem sabe . . .
Neste momento entrou Mr. Weston n a sala e , posto
ao facto do que se propunham fazer, deu a sua
aprovação incondicional.
-Va i , Frank; vai chamar M i s s B ate s , para
acabarmos com isto. Estou convencido de que ela vai
ficar toda contente com o proj ecto; e, de facto, não sei
de pessoa mais indicada para nos tirar de dificuldades .
Vai buscar Miss, Bates. Estamos a mostrar-nos muito
exigentes . Ela é um exemplo vivo de como se pode
viver feli z . Mas traz as duas . Pede às duas que
venham.
- As duas , meu pai ! . . . A velha também?
- Qual velha! A rapariga, quem havia de ser? . . .
Chamar-te-ei imbecil, Frank, s e trouxeres a tia sem a
sobrinha!

263
JANE A USTEN

- Ah ! Perdão, meu pai . . . Não me lembrei logo. Se


assim o quer, tenha a certeza de que farei todo o
possível para persuadir ambas a virem .
E saiu a correr.
Muito antes de ele voltar, acompanhado da pequena
e irrequieta solteirona e da sua elegante sobrinha, Mrs.
Weston, como mulher transigente e boa esposa, tinha
mais uma vez examinado o corredor e achara que os
seus defeitos eram muito menores do que havia
suposto antes; realmente, eram insignificantes; e aí
terminaram as dificuldades de uma decisão . Tudo o
mais, em teoria pelo menos, era fácil . As questões
menores de mesa e cadeiras , luzes e música, chá e
ceia, resolver-se-iam por si próprias , ou pôr-se-iam de
lado como meras bagatelas . , a serem resolvi das
oportunamente entre Mrs . Weston e Mrs . Stokes. Sem
dúvida alguma compareceriam todas as pessoas
convidadas ; e Frank j á tinha escrito para Enscombe a
pedir licença para se demorar mais alguns dias além
da quinzena que lhe havia sido marcada, o que,
certamente, lhe não seria recusado . Estava, pois, em
perspectiva um baile delicioso.
Miss Bates , quando chegou, concordou pronta­
mente em que realmente devia ser um encanto . Como
conselheira já não se necessitava das suas luzes ; mas
foi cordialmente acolhida como ratificadora (dado o
seu claro entendimento) das medidas tomadas . A sua
aprovação , tanto das linhas gerais como dos por­
menores e ao mesmo tempo calorosa e incondicional ,
não podia deixar de agradar; e, durante meia hora
mais, puseram-se todos a passear de cá para lá, de
dependência para dependência, uns fazendo sugestões,
outros ouvindo-as, todos antegozando, felizes, o dia
do baile . Não se separaram antes de o herói da noite
se ter assegurado da acedência de Ema para as duas
primeiras valsas, nem antes de ela ouvir Mr. Weston
dizer em voz baixa à esposa:
- Ele pediu-lhe, minha querida. Vai tudo bem. Eu
sabia que ele lhe havia de pedir!

264
EMA

CAP Í TULO XXX

Uma coisa apenas faltava para que a perspectiva


do baile desse a Ema uma satisfação completa: - que
aquele fosse marcado para um dia que ficasse dentro
do prazo concedido a Frank para se demorar em
Surrey; com efeito, não obstante toda a confiança de
M r . Weston , ela não achava im p ossível que os
Churchills recusassem ao sobrinho licença para ficar
mais um dia que fosse, além da quinzena fixada. Mas
esse desej o não era exequível . Os preparativos deviam
levar s e u tempo e as coisas só poderiam e s tar
convenientemente terminadas no princípio da terceira
semana; por isso, durante alguns dias, tiveram de
traçar planos , dar andamento à tarefa, baseados na
incerteza, com risco - na opinião dela, com grande
risco - de ser tudo em vão.
Enscombe, contudo, foi generosa - generosa de
facto, se não de palavras. O desej o de Frank de se
demorar mais tempo não agradou, evidentemente,
mas também não se opuseram . Ia pois tudo bem
encaminhado; e como, em geral, quando desaparece
uma preocupação, aparece logo outra, Ema, agora
tranquila quanto ao baile, começou a nutrir apreensões
pela provocante indiferença que M r . Knightley
afectava por ele . Ou porque ele próprio não dançasse,
ou porque estivesse melindrado, o que certo é que Mr.
Knightley parecia determinado a não se interessar
pela festa , decidido a não ceder à curiosidade ou
atracção que porventura aquela lhe despertasse. As
participações espontâneas que Ema lhe fazia não
obtinham melhores respostas do que estas :
- Muito bem ! Se os Westons acham que vale a
pena tanto incómodo por algumas horas de ruidosa
distracção , nada tenho a dizer; mas ao menos não
j ulguem que me dão muito prazer. Oh! sim, lá estarei;
não posso recusar; e prometo conservar-me acordado
tanto quanto puder. Mas confesso que gostaria mais
de ficar em casa a conferir as contas semanais de

265
JANE A USTEN

William Larkins . Prazer em ver dançar? . . . Eu não . . .


nunca tive . . . e não sei quem tenha. Creio que a dança
é como a virtude : a única recompensa está em si
própria. Aqueles que assistem a um baile, em regra,
estão pensando numa coisa completamente diferente.
Ema compreendeu que estas últimas palavras eram
dirigidas a ela e isto indignou-a. Não era, contudo,
para lisonj ear Jane Fairfax que ele afectava tal
indiferença, tal hostilidade; não o guiavam as ideias
que a rapariga, porventura, nutrisse contra o baile,
pois esta, pelo contrário, sentia-se verdadeiramente
feliz só com a previsão de tal acontecimento . Esse
pens amento animava-a, enchia-a de j úbilo , e era
espontaneamente que dizia:
- Oh! Miss Woodhouse, oxalá não sobrevenha
qualquer coisa que transtorne tudo ! Que aborre­
cimento que havia de ser! Confesso que estou ansiosa
pelo baile.
Não era, pois , para se tornar agradável a Jane
Fairfax que Mr. Knightley teria preferido a companhia
de William Larkins . Não ! Ema convencia-se cada vez
mais de que Mrs . Weston estava completamente
enganada ao fazer essa conjectura. Havia da parte
dele um afecto muito sincero e compassivo, mas não
amor.
Ai ! não houve muito tempo para se preocuparem
com Mr. Knightley. A dois dias de alegre confiança
segui u - s e , ines peradamente , a derrocada geral .
Chegou uma carta de Mr. Churchill que exigia o
regresso imediato do sobrinho. Mrs . Churchill estava
muito mal, demasiado mal para poder passar sem a
sua presença; j á estava muito doente (pelo que dizia
o marido) dois dias antes, quando escrevera a Frank,
se bem que, dado o seu habitual escrúpulo em causar
desgostos e o seu velho costume de nunca pensar em
si própria, nada tivesse dito; mas agora estava doente
de mais para dissimular e via-se obrigada a chamar o
sobrinho a Enscombe, sem a mínima demora.
A essência desta carta foi no mesmo instante
transmitida a Ema por Mrs. Weston. Quanto, à partida

2 66
EMA

de Frank, era inevitável . Tinha de sair dentro de


poucas horas . Se bem que ocultasse a sua repugnância
em ir, não albergava apreensões quanto ao estado da
tia; conhecia os seus males; estes só se manifestavam
quando convinha à velha.
Mrs . Weston acrescentava na carta enviada a Ema
que ele mal tinha tempo para ir num pulo a Highbury,
depois do almoço, despedir-se dos poucos amigos que
ali tinha e a quem devia atenções; e que, portanto,
chegaria de um momento para o outro a Hartfield.
Esta malfadada carta foi a sobremesa do almoço
de Ema. Ao tomar conhecimento do seu conteúdo, nada
mais pôde fazer senão lamentar- s e e prote star.
Veio-lhe logo à ideia a perda do baile, a perda do rapaz,
e tudo o que nesse momento iria no ânimo de Frank.
Que infelicidad e ! Que deliciosa noite teria sido !
Estavam todos tão contentes ! E sobretudo ela e o seu
companheiro . . .
«Eu bem dizia que isto tinha de acontecer» - era
a única consolação que lhe restava.
Os sentimentos de Mr. Woodhouse eram inteira­
mente diferentes . Preocupava-se principalmente com
a doença de Mrs . Churchill e estava ansioso por saber
como ela era tratada; quanto ao baile, era realmente
pena que Ema sofresse esse contratempo, mas a
verdade é que sempre estariam mais seguros em casa.
Ema já estava preparada para receber o seu
visitante algum tempo antes de ele aparecer; mas a
sensação desagradável que esta circunstância hou­
vesse, porventura, causado no espírito ansioso do
rapaz tinha a sua justificação no olhar triste e na
expressão de desalento que ele mostrava. O desgosto
da partida era intenso de mais para falar nele. O seu
des ânimo era patente . Durante alguns minuto s ,
quedou-se imerso em pensamentos e, quando des­
pertou, foi unicamente para dizer:
- De todo este horror, a despedida é o pior.
- Mas há-de voltar, não é verdade? - disse Ema.
- Esta não será a sua única visita a Randalls.

267
JA NE A USTEN

- Ah ! - fe z ele, abanando a cabeça - e s s a


incerteza d e poder voltar . . . Tentá-lo-ei por todos o s
meios! Será o obj ecto d e todos os meus pensamentos !
Se os meus tios forem a Londres esta Primavera . . .
mas tenho receio . . . n a Primavera d o ano passado não
saíram . . . receio que tenham perdido para sempre esse
hábito .
- Temos então de pôr de parte o nosso baile . . .
- Ah! o baile . . . Para que esperámos nós tanto?
Porque não aproveitámos o tempo? Quantas vezes se
destrói a felicidade com preparativos , com absurdos
preparativos ! . . . A senhora bem nos disse que isto
aconteceria. Oh! Miss Woodhouse tem sempre razão
no que diz .
- Infelizmente tive razão desta vez . Talvez fosse
melhor aproveitar a alegria do momento e não me
preocupar com o futuro.
- Se eu voltar, havemos de dar o nosso baile. Meu
pai conta com ele. Não se esqueça do seu compromisso.
Ema deitou-lhe um olhar sedutor.
- Que felizes estes quinze dias ! - continuou ele .
- Cada dia sempre mais delicioso que o anterior! Cada
dia tornando-me mais apegado a estes lugares! Felizes
os que ficam em Highbury!
- Faz-nos finalmente inteira justiça - disse Ema,
rindo; - atrevo-me a perguntar-lhe se a princípio não
tinha umas certas prevenções . . . Acha então que
ultrapassámos a sua expectativa? Tenho a certeza
disso. E stou convencida de que não estava muito
disposto a simpatizar connosco. Se tivesse feito uma
ideia favorável de Highbury, não se teria demorado
tanto tempo a visitá-la . . .
Frank sorriu, um pouco cônscio d a culpa e , embora
ele negasse, Ema estava convicta da razão das suas
palavras.
- Terá de partir esta manhã?
- Sim; meu pai virá encontrar-se comigo aqui:
s airemos j untos e eu partirei em seguida. E stou
temendo a todo o momento a sua chegada.

268
EMA

- Não pode ao menos dispor de cinco minutos para


se despedir das suas amigas Miss Fairfax e Miss
Bates? Que pena! O espírito encoraj ador de Miss Bates
incutir-lhe-ia força de ânimo.
- Sim . . . já fui vê-las ; como passei pela sua porta,
achei melhor entrar. Era um dever. Tencionava
demorar-me três minutos, mas demorei-me mais,
porque Miss B ates estava ausente; tinha saído.
Reconheci que não podia deixar de esperar por ela.
Miss Bates é uma mulher que nos desperta o riso e,
contudo, está longe de merecer o nosso desdém. Era
melhor fazer a minha visita de despedida, e depois . . .
Hesitou e , levantando-se, dirigiu-se para a j anela.
- Em resumo, - continuou - Miss Woodhouse,
com certe z a . . . quer-me parecer que j á deve ter
desconfiado .. .
Fitou-a um momento, como se pretendesse ler-lhe
no pensamento . Ela mal sabia o que havia de dizer.
Dir-se-ia antever algo de muito sério, que desej ava
evitar. Constrangendo-se, pois, a falar, na esperança
de afastar esse quê de grave, disse com toda a calma:
- Tem razão; era muito natural que quisesse fazer
a sua visita de despedida, e depois . . .
Frank conservou-se calado . Ema viu que ele não
tirava os olhos dela; provavelmente reflectia no que
ela tinha dito e procurava interpretar o sentido das
suas palavras . Ouviu-o suspirar; era natural que ele
se j ulgasse com motivos para suspirar. Não podia
es perar dela nenhum incitamento . Passaram-se
alguns minutos de constrangimento e Frank, sen­
tando-se de novo, disse em tom mais decidido:
- Aprazia-me pensar que os meus últimos mo­
mentos fossem dedicados a Hartfield. A minha estima
por Hartfield é mais profunda . . .
Calou-se e , com ar embaraçado, ergueu-se nova­
mente . Estava mais enamorado de Ema do que esta
supunha; e quem sabe como aquilo terminaria, se Mr.
Weston não chegasse naquele momento ! Pouco depois
apareceu Mr. Woodhouse e a força das circunstâncias
restituiu a tranquilidade ao pobre rapaz .

269
JANE A USTEN

Alguns minutos mais tarde , porém , dava-se o


remate da provação. Mr. Weston, sempre atento ao
que era forçoso fazer-se e tão incapaz de se esquivar
a um mal inevitável como de prever o que era duvidoso,
disse:
- São horas !
E o rapaz , embora suspirando, só teve que se
submeter e levantou-se para se despedir.
- Conto ter notícias de todos - disse; - é a minha
única consolação . Espero estar sempre ao facto do que
por cá se passa. Mrs . Weston prometeu escrever-me
regularmente. Oh! que felicidade termos uma mulher
que nos es creva e que se interesse por nós ! Ela
contar-me-á tudo ; graças às suas cartas, julgar-me-ei
em Highbury.
Um cordial aperto de mão e um afectuoso «adeus ! »
remataram estas palavras e, pouco depois, a porta
fechava-se sobre Frank Churchill . Se breve fora a
notíci a , breve fo i a visit a . Ele partira ; e ante a
separação, fo i tanta a triste z a de E m a e tal a
consciência que ela tinha de que a ausência do rapaz
constituía uma perda real para o seu pequeno círculo,
que começou a recear que as s audades fo s s e m
profundas d e mais.
A mudança foi realmente triste . Desde que Frank
viera: eles tinham-se encontrado quase todos os dias .
Era indubitável que a sua presença em Randalls, havia
dado àquelas duas semanas uma vida extraordinária;
cada manhã trazia a ideia, a perspectiva de o ver, a
garantia das suas atenções, da sua vivacidade, dos
seus modos corteses . Aqueles quinze dias haviam sido
tão felizes quão sombria era a queda, de novo, na
existência trivial de Hartfield. A reforçar todas estas
circunstâncias, ele quase lhe dissera que a amava.
Qual o grau de intensidade ou de constância desse
afecto , i s s o era outro aspecto da que s t ã o ; pre­
sentemente Ema não tinha a menor dúvida de que ele
nutria por ela uma ardente admiração, uma consciente
predilecção; e esta certeza, aliada a tudo o mais,

270
EMA

levava-a a suspeitar de que estivesse também um


pouco apaixonada por ele , a despeito de todas as
determinações previamente tomadas .
«Devo e star - dizia ela; - esta fraqueza de
vontade , e s te tédio , este embrutecimento , esta
repugnância em me entreter com qualquer coisa, esta
sensação de que tudo em casa é vulgar e insípido . . .
Devo estar apaixonada; seria a mais estranha criatura
deste mundo se não estivesse . . . por algumas semanas
ao menos . Bem: o mal de uns é o bem de outros . Quem
chore Frank Churchill serei só eu, mas quem chore o
baile haverá mais pessoas; Mr. Knightley é que deve
estar satisfeito. Agora pode passar à vontade o serão
com o seu amigo William Larkins».
Mr. Knightley, contudo, não mostrou triunfo nem
satisfação . Não se podia dizer que estivesse triste; a
sua expressão jubilosa tê-lo-ia denunciado . Mas disse,
e num tom que não dava lugar a dúvi d a s , que
lamentava o facto pelos outros; e, amavelmente ,
acrescentou:
- A Ema, que tão poucas ocasiões tem de dançar,
está com pouca sorte; é realmente muito pouca sorte !
Isto foi dias antes de ver Jane Fairfax e julgar do
seu pesar ante este deplorável sucesso. Mas quando
ambas se encontraram, a serenidade da rapariga foi
francamente irritante. E, no entanto, havia estado
doente: umas dores de cabeça tão fortes que levaram
a tia a declarar que, mesmo no caso de o baile se ter
realizado, Jane, com certeza, não assistiria; foi pois
um acto de caridade atribuir a sua atitude à prostração
deixada pela enfermidade.

CAP ÍTULO XXXI

Ema continuava a não manter dúvidas quanto ao


seu estado amoroso. As suas ideias apenas variavam
no que respeitava à intensidade do mal. A princípio,

271
JANE A USTEN

julgou que o caso fosse grave; mas depois verificou


que era benigno. Tinha grande prazer em ouvir falar
de Frank Churchill e, por amor dele, maior prazer do
que nunca em ver Mr. e Mrs . Weston; pensava muitas
vezes nele e ansiava pela sua carta, para saber como
estava, como ia de ânimo, como estava a tia, e quais
eram as probabilidades de ele voltar a Randalls na
próxima Primavera. Mas , por outro lado, não podia
sentir- s e infeli z , nem, passada aquela primeira
manhã, menos disposta que de costume a empregar o
seu tempo em qualquer coisa; continuava a dedicar-se
alegremente as suas ocupações e, não obstante os
atractivos que encontrava em Frank, reconhecia-lhe
também muitos defeitos. Além disso, o facto de pensar
tanto nele e de, quando se sentava a desenhar ou a
fazer malha, se entreter a arquitectar mil planos, qual
deles o mais divertido, para o progresso e remate do
seu mútuo afecto . , fantasiando interessantes diálogos
e inventando graciosas epístolas , - não obstava a que,
ante uma im aginária declaração da p arte dele,
chegasse à conclusão de o rejeitar. Toda aquela afeição
redundava sempre numa simples amizade. É verdade
que a despedida se revestira do seu tanto de terno e
encantador; mas o facto é que isso não impediu que se
separassem. Ao pensar nisto, Ema não pode deixar
de reconhecer que não devia estar muito apaixonada;
com efeito, a despeito da decisão previamente tomada
de nunca deixar o pai, de nunca se casar, um afecto
forte teria certamente sido causa de uma luta íntima
para que ela não encontrava campo nos seus sen­
timentos actuais .
«Não m e inclino muito para a palavra s a c rifício ­
pensava ela. - Em nenhuma das minhas réplicas
mais vivas , em nenhuma das minhas negativas mais
delicadas , se encontra qualquer alusão a sacrifícios.
Creio que realmente isso não é muito necessário para
a minha felicidade. Tanto melhor. Não pretendo sentir
mais do que sinto . Em amor basta-me isto; sena
lamentável que fosse mais alguma coisa» .

2 72
EMA

D e u m a forma geral , e l a s e nti a - s e b a s tante


satisfeita com o aspecto da sua vida sentimental .
«Ele está, sem dúvida alguma, profundamente
apaixonado . . . tudo o denota . . . está apaixonado ,
evidentemente ! E quando ele voltar, se essa paixão
durar, tenho de me pôr em guarda para não o animar.
Seria imperdoável proceder doutra forma, depois da
c o n c l u s ã o a que cheguei . N ã o que eu o j ulgue
convencido de que o estive animando até agora . . . Não :
se ele, porventura, j ulgasse que eu correspondia aos
s eu s sentimento s , não e s taria tão des animado .
Supusesse-se ele encoraj ado, que o seu olhar e a sua
linguagem, ao partir, teriam sido diferentes . Todavia,
devo estar em guarda. Isto admitindo que a sua paixão
persista; mas não o creio. Não me inclino muito a
j ulgá-lo dessa espécie . . . não confio muito na sua
constância . Tem um temperamento ardente, mas
acho-o muito volúvel . Quanto mais reflicto sobre esta
questão, mais me regozijo por a minha felicidade não
estar nela envolvida. Estará tudo terminado dentro
de pouco tempo . . . e não se pensará mais nisso; dizem
que só se ama uma vez na vida, e nesse caso ter-me-ia
visto livre desse mal com relativa facilidade» .
Quando Mrs . Weston recebeu a primeira carta de
Frank, Ema também a leu; e foi tal o grau de prazer
e admiração com que o fez, que, a princípio, abanou a
cabeça, em comentário aos seus próprios sentimentos,
pensando que tinha ajuizado mal das suas forças . Era
uma longa carta muito bem escrita, em que o rapaz
dava pormenores da sua viagem e do estado de ânimo
em que a fizera, expressava todo o seu afecto, gratidão
e respeito, que muito o honravam, e descrevia, com
espírito e clareza, episódios que ele julgava dignos de
interesse. Nada de afectadas ou lamurientas flores
de retórica: apenas uma linguagem simples em que
exprimia o seu sincero afecto por Mrs . Weston; e o
contraste entre Highbury e E nscombe , entre as
principais características da vida social dos dois
lugare s , era apresentado com as indispensáveis

2 73
JANE A USTEN

expressões , que traduziam quanto o rapaz o tinha


sentido e quanto mais poderia dizer, se não fossem as
restrições impostas pelas conveniências. Não faltavam
referências a E m a . O nome de Miss Woodhouse
aparecia mais de uma vez, e sempre com uma citação
amável, ou um elogio ao seu bom gosto ou recordando
qualquer frase que ela tinha dito; e foi precisamente
da última vez que o seu nome se lhe deparou, se bem
que desadornado de quaisquer vestes de lisonja, que
Ema viu o ascendente que exercia e reconheceu estar
ali o maior de todos os cumprimentos até então
expressos . Apertadas num dos cantos inferiores da
carta, liam-se estas palavras : «Na terça-feira, como
sabe, não pude dispor de tempo para ir ver a linda
amiguinha de Miss Woodhouse. Peço-lhe o favor de
lhe apresentar as minhas desculpas e as minhas
despedidas» . Ema não tinha a menor dúvida: aquilo
era para ela. Apenas se lembrava de Harriet como
amiga dela.
Quanto a notícias de Enscombe e às perspectivas
que ali se ofereciam a Frank, não eram piores nem
melhores que aquelas que se tinham previsto; Mrs .
Churchill estava em vias de restabelecimento e ele
não podia de modo algum fixar a data em que voltaria
a Randalls .
Conquanto a carta fosse lisonj eira e animadora
sobre os sentimentos que revelava, Ema, contudo, ao
dobrá-la e devolvê-la a Mrs . Weston, sentia que
nenhum entusiasmo lhe incutira, que ela própria
poderia continuar a suportar a ausência daquele que
a escrevera e que este tinha de aprender a viver sem
ela. As suas intenções mantinham-se inalteráveis . A
sua resolução de o rej eitar apenas se tornou mais
radicada pelo acréscimo de um plano que elaborara,
tendente a favorecer a resignação e a felicidade futuras
do rapaz . A referência por ele feita a Harriet, as
palavras que revestiram essa referência, a «linda
amiguinha», sugeriram-lhe a ideia de Harriet lhe
s u c e d e r n a s preferências de Frank . E r a a c a s o
impossível? Não . Harriet estava, sem dúvida alguma,

274
EMA

muito abaixo dele em inteligência; mas a verdade é


que ele se deixara impressionar pela graça das suas
feições e pela cálida simplicidade das suas maneiras .
Por isso, ela tinha todas as probabilidades de êxito.
Para Harriet seria de facto uma admirável e vantajosa
solução .
«Sei que não devo insistir muito sobre este ponto
- dizia consigo . - Não devo pensar em tal coisa.
Conheço o perigo de me entregar a semelhantes
especulações. Mas o que é certo é que as circunstâncias
são por de mais estranhas; e quando cessarmos de
nos preocuparmos um com o outro, como agora, então
haverá a possibilidade de nos fixarmos nesse género
de amizade sincera e desinteressada que já vislumbro
com prazer» .
Era realmente uma vantagem ter, graças a Harriet,
um recurso à mão; em todo o caso, seria aconselhável
que a imaginação o não fosse buscar senão de longe
em longe, pois o mal andava desperto por aqueles
sítios . Do mesmo modo que a chegada de Frank
Churchill substituíra a questão do casamento de Mr.
Elton na tagarelice de Highbury, sendo o caso antigo
derrubado pelo mais recente, assim, agora que Frank
Churchill partira, a curiosidade à volta de Mr. Elton
reassumira a sua forma mais aguda. Chegou o dia do
casamento. Não tardaria que Mr. Elton, acompanhado
da noiva, estivesse de novo entre os seus, conterrâneos .
Mal houvera tempo para falar da primeira carta de
Enscombe; Mr. Elton e a noiva absorviam todas as
conversas e Frank Churchill estava posto de parte.
Ema enfastiara-se ouvindo estas bisbilhotices. Havia
passado três felizes semanas sem ouvir falar em Mr.
Elton e acalentado a esperança de que o espírito de
Harriet se estivesse fortalecendo. Pelo menos com o
baile de Mr. Weston em perspectiva, pouco lugar
houvera para se preocupar com outras coisas ; mas
agora verificava que Harriet, afinal, não atingira
aquele grau de serenidade indispensável para afrontar
o inevitável espectáculo da carruagem nupcial, dos
sinos a tocar, etc.

2 75
JANE A USTEN

A pobre Harriet andava com o espírito tão sobres­


saltado que nunca eram demais todos os argumentos
e consolações que Ema lhe pudesse apresentar. Ema
compreendia que tudo quanto fizesse por ela pouco
era, e que Harriet tinha direito a toda a sua solicitude
e paciência; mas reconhecia que era uma tarefa bem
árdua tentar convencê-la das suas razões, sem nunca
colher qualquer resultado, persistir nos seus pro­
pósitos, sem j amais incutir-lhe os seus pontos de vista.
Harriet ouvia-a submissa e dizia que «tinha razão,
que era exactamente como Miss Woodhouse afirmava,
que, realmente, não valia a pena pensar na questão,
que nunca mais pensaria em tal coisa», mas bem
podiam mudar de assunto, que o resultado era sempre
o mesmo : não passava meia hora que não estivesse de
novo impaciente por falar nos Eltons . Por fim, Ema
resolveu atacá-la noutro terreno.
- A pior censura que me pode fazer, Harriet, é
mostrar-se tão preocupada e infeliz por causa do
casamento de Mr. Elton. Não podia exprobrar-me mais
claramente o erro que pratiquei . Sei que a culpa é
toda minha; não o esqueci , creia . Enganando-me ,
enganei-a miseravelmente . . . e isso será um remorso
que arrastarei toda a vida comigo. Não julgue que haj a
possibilidade d e o esquecer.
Harriet ficou tão impressionada com esta lingua­
gem que não pode encontrar mais que uma ou outra
palavra de ansioso protesto. Mas Ema continuou:
- Não quero dizer com isto que faça um esforço
por minha causa, que pense e fale menos em Mr. Elton,
em atenção a mim; pelo contrário: faça-o em atenção
a si própria. Desej aria que assim procedesse, por amor
d aquilo que é mais importante que as minhas
conveniências: o hábito de se dominar a si própria, a
noção do seu dever, a compreensão do decoro, um
esforço tendente a evitar as suspeitas dos outros , a
zelar pela sua saúde e pela sua reputação e a recuperar
a tranquilidade de espírito. São estes os motivos que
me levam a insistir consigo. São muito importantes; e
lamento bem que Harriet não os sinta suficientemente

2 76
EMA

para proceder de acordo com eles. Poupar-me inquieta­


ções é o que menos a deve preocupar. O que eu quero
é que poupe a si inquietações maiores. Talvez que eu
tenha pensado algumas vezes que Harriet esquecesse
aquilo que me era devido . . . ou antes aquilo que eu
merecia.
Este apelo à sua amizade fez mais do que tudo
quanto até ali tentara. A ideia de faltar com a gratidão
e a consideração que devia a Miss Woodhouse, que
ela realmente amava com todas as veras da sua alma,
afligiu-a por momentos; depois, se bem que atenuada,
a violência da dor foi suficientemente eficaz para a
impelir a uma justa atitude, em que se manteve com
relativa firmeza.
- A si, - disse - a melhor amiga que tenho tido
em toda a minha vida . . . faltar com a minha gratidão ! . . .
Ninguém a iguala n a minha estima! Por ninguém
tenho tanta amizade como por si! Oh! Miss Woodhouse,
que ingrata tenho sido ! . . .
Estas expressões, a que o olhar e o gesto davam
todo o realce, convenceram Ema de que nunca amara
Harriet, nem apreciara tanto o seu afecto como agora.
«Nada há que mais nos cative que um coração
bondoso - dizia ela, pouco depois, para consigo . -
Não há nada que se lhe compare. Um coração terno e
bondoso , auxiliado por uns modos insinuantes e
afectuosos, atrairá mais do que todas as inteligências
do mundo. Estou convencida disso. É a bondade que
faz com que meu pai sej a geralmente estimado e que
granjeia a Isabella todas as simpatias de que goza.
Tenho-as agora . . . mas sei a que atribuí-las e dou-lhes
o devido valor. Harriet é muito superior a mim na
graça que irradia e na felicidade que transmite .
Querida Harriet! Não te trocaria pela mais inteligente,
esclarecida e ponderada das mulheres . Oh ! aquela
frieza de Jane Fairfax! Harriet vale cem vezes mais.
E como esposa . . . como esposa de um homem de
coração . . . seria inestimável. Não cito nomes, mas feliz
daquele que trocar Ema por Harriet» !

2 77
JANE A USTEN

CAPÍ TULO XXXI I

A primeira vez que viram Mrs . Elton foi na igreja;


mas, não obstante a devoção ter sido prejudicada, o
certo é que a curiosidade não se satisfez com olhar
para o vulto da recém-casada no banco reservado e
teve de aguardar as visitas da praxe, para então ver
se Mrs . Elton era, de facto, uma beleza, se era apenas
bonitota, ou se não tinha graça nenhuma.
Ema, menos por um sentimento de curiosidade que
de orgulho ou de decoro, decidiu não ser das últimas
a apresentar os seus respeitos; e fez questão de que
Harriet a acompanhasse, para que o ponto crítico fosse
transposto o mais depressa possível.
Ao entrar de novo naquela casa, naquela sala a
que se acolhera três meses antes, sob o pretexto inútil
de atar os cordões dos botins, não pode eximir-se a
essas recordações. Apresentaram-se-lhe ao espírito mil
pensamentos, qual deles o mais molesto . Galanteios ,
charadas, tolices . . . E não era de supor que a pobre
Harriet não se recordasse também; no entanto, esta
portou-se muito bem, embora pálida e silenciosa. A
visita foi, naturalmente, curta; e o constrangimento e
a preocupação de espírito contribuíram tanto para a
encurtar que Ema não conseguiu formar uma opinião
definida acerca da esposa de Mr. Elton, pelo que as
suas impressões não iam além da expressão vaga de
«pessoa muito afável e vestida com elegância».
Ema, no fundo, não simpatizou com ela. Não queria
fazer juízos temerários, mas tinha as suas suspeitas
de que ela não era uma pessoa realmente distinta:
tinha desenvoltura, mas não distinção. Achava que
para uma j ovem , uma estranha, uma noiva, era
desenvoltura demais. Tinha boa figura e não era feia;
mas nem nas feições, nem no porte, nem na voz, nem
nos modos , havia distinção. Ema, no entanto, pensava
que , com o decorrer do tempo, era possível que a
adquirisse.

2 78
EMA

Quanto a Mr. Elton, as suas maneiras não pare­


ciam . . . Mas , não: ela nunca se permitiria uma crítica
precipitada sobre as suas maneiras . Foi sempre um
cerimonial difícil esse de receber visitas de casamento,
e um homem necessita de todo o seu talento para se
desempenhar bem dessa missão. A mulher tem esse
encargo muito facilitad o , pois é, auxiliada pela
elegância do traj o e pelo privilégio da timidez ; mas o
homem apenas pode contar com o seu próprio bom
senso. Ema, então, considerando a delicada posição
do pobre Mr. Elton, que se encontrava, simultanea­
mente, na presença da mulher com quem acabava de
casar, da mulher com quem pretendera casar e da
mulher com quem haviam pretendido casá-lo, com­
preendeu, no seu foro, íntimo , que devia ter-lhe
concedido o direito de se mostrar tão desastrado e
comprometido como realmente era de esperar.
- Então, Miss Woodhouse, - disse Harriet, com
um leve suspiro, quando, terminada a visita, se viu
na rua, e depois de esperar em vão que a amiga
dissesse alguma coisa - então, Miss Woodhouse, que
tal a achou? Não é encantadora?
Ema respondeu evasivamente :
- Sim . . . realmente . . . é muito agradável .
- Eu achei-a linda . . . lindíssima.
- De facto traj a muito bem . . . o seu vestido é muito
elegante.
- Não me surpreende nada que ele se tenha
apaixonado por ela.
- Oh! na verdade não é caso para admirar. Uma
bela fortuna . . . e um feitio que parece dar-se bem com
o dele . . .
- Tenho a impressão - volveu Harriet, suspirando
de novo - de que ela lhe é muito dedicada.
- Talvez; mas parece que nem todos os homens
têm a sorte de casar com a mulher que mais os poderia
ter amado. Talvez que Miss Hawkins precisasse de
um lar e achasse ser este o melhor a que podia aspirar.
- É muito possível - retorquiu Harriet, viva­
mente; - não podia encontrar melhor. Bem: o que eu

2 79
JANE A USTEN

lhes desej o do coração é que sej am felizes . E agora,


Miss Woodhouse, creio que já não me importo de os
tornar a ver. Ele para mim é a mesma pessoa superior
de sempre; mas casado, sabe, já é um caso diferente.
Não, Miss Woodhouse, não tenha receio; eu agora
posso contemplá-lo à vontade, sem perigo algum. Saber
que ele não fez uma má escolha, já é, uma consolação!
Ela parece uma rapariga encantadora, tal como ele
merece. Feliz criatura! Ele chamava-lhe «Augusta» .
Que lindo nome !
Depois da retribuição da visita, Ema tinha a sua
resolução tomada. Então pode observar e j ulgar
melhor. Como Harriet se não encontrasse em Hartfield
e seu pai estivesse entretido com Mr. Elton, Ema
conseguiu manter um quarto de hora de conversação
com a sua visitante , podendo assim dedicar-lhe
sossegadamente toda a atenção; e esse quarto de hora
convenceu-a de que Mrs. Elton era uma mulher frívola,
extremamente enfatuada, que se preocupava muito
com a sua pessoa; que tinha a preocupação de brilhar
e aparentar superioridade , mas cuj as maneira s ,
formadas numa má escola, eram insolentes e exces­
sivamente familiares; que todos os seus princípios
eram decalcados sobre os de uma determinada classe
e consoante determinado género de vida; que, se não
era tola, era pelo menos ignorante, e que o seu convívio
não devia ser muito vantajoso para Mr. Elton.
Harriet teria sido melhor partido. Se não era um
espírito inteligente nem requintado, ao menos tê-lo-ia
relacionado com aqueles que possuíam essas quali­
dades; mas Miss Hawkins , como se poderia supor pela
excessiva condescendência com que ela se julgava a si
própria, era a melhor do seu meio. O cunhado rico de
Bristol era o orgulho da família, e a sua posição e as
suas carruagens eram, por sua vez , o orgulho dele
próprio.
A primeira coisa a que ela logo se referiu foi a Maple
Grove, «residência de meu irmão, Mr. Suckling» ,
comparando esta localidade a Hartfield. O domínio
de Hartfield era pequeno, mas pitoresco e bem cuidado,

280
EMA

e o edifício era moderno e de boa construção. Mrs. Elton


parecia particularmente agradada das dimensões da
sala, do vestíbulo e de todas as outras dependências
que pode ver ou imaginar.
Que parecido com Maple Grove ! Estava realmente
impressionada com a semelhança. Aquela sala era
exactamente, tanto na forma como no tamanho, a sala
de estar de Maple Grove, o aposento favorito de sua
irmã.
Foi invocado o testemunho de Mr. Elton .
Não era extremamente parecida? Ela quase se
j ulgava em Maple Grove.
- E a escada . . . Sabe, quando entrei também notei
a mesma semelhança na escada . . . exactamente ,
colocada no mesmo lado da casa. Fiquei realmente
surpreendida! Crei a , Miss Woodhouse , que me é
sumamente delicioso recordar um lugar que tanto
aprecio - Maple Grove. Passei lá tantos meses ! (Nesta
altura deu um leve suspiro) . É na verdade um sítio
encantador; todos os que o visitam ficam impres­
sionados com a sua beleza; mas a mim agrada-me,
sobretudo, porque foi o meu lar. Se um dia tiver de
sair daqui, Miss Woodhouse, compreenderá então o
prazer que se tem em deparar com coisas que nos
recordam aquilo que se deixou. Direi sempre que é
este um dos males do matrimónio.
Ema fez o mais leve comentário que pode fazer;
mas foi plenamente suficiente para Mrs . Elton, que
se contentava em falar sozinha.
- É de uma semelhança pasmosa com Maple
Grove ! E não é só a casa . . . os terrenos à volta, até
onde posso alcançar, asseguro-lhe que se parecem
extraordinariamente com os de lá. Em Maple Grove
abundam os loureiros como aqui, e estão igualmente
dispostos como os de cá . . . espalhados pelo relvado. E
também tive ocasião de ver de relance uma bela árvore
copada, com um banco em toda a volta, que me trouxe
gratas recordações . O meu cunhado e a minha irmã
hão-de ficar encantados com este lugar. As pessoas

281
JANE A USTEN

que possuem grandes propriedades têm sempre muita


satisfação em ver outras no mesmo estilo.
Ema duvidou da verdade desta asserção . Ela tinha
a convicção de que as pessoas que possuem extensas
propriedades pouco se importam com as extensas
propriedades dos outro s ; mas não valia a pena
contestar tão infundada afirmação, e, portanto, apenas
disse em resposta:
- Quando tiver conhecido melhor esta região,
receio que julgue exagerado o juízo que agora faz de
Hartfield. O SurreY, é rico de belos panoramas .
- Oh! eu sei . E o j ardim de Inglaterra, não é
verdade? O Surrey é o j ardim de Inglaterra.
- Pois sim; mas não devemos tomar as nossas
pretensões demasiado ao pé da letra. Creio que há
muitos condados a que chamam igualmente o j ardim
de Inglaterra.
- Não, creio que não - replicou Mrs . Elton. -
Nunca ouvi dar esse título senão ao Surrey.
Ema não respondeu:
- Meu cunhado e minha irmã prometeram
fazer-nos uma visita na Primavera, ou no Verão, o
mais tardar - continuou Mrs . Elton. - Será então
ocasião de fazermos as nossas explorações. Enquanto
eles se demorarem connosco, conto que daremos
bastantes passeios. Eles trazem, naturalmente, o seu
baro uche - landa u, onde cabem quatro pessoas à
vontade; e, portanto, sem falar na nossa carruagem,
poderemos percorrer, com toda a comodidade, os belos
sítios da região. Não é provável que, nessa época do
ano, venham no cabriolé. Quando se aproximar a
altura de eles virem, estou resolvida a pedir-lhes que
tragam o barouche-landau, é muito melhor. Bem vê,
Miss Woodhouse, quando se vem para uma região tão
pitoresca como esta, é natural que se deseje ver o mais
possível; e Mr. Suckling aprecia imenso os passeios.
No Verão passado fomos duas vezes a King's Weston,
utiliz ando o b a ro uc h e - landa u, que eles tinham
acabado de comprar. Foi delicioso! Suponho que por
cá também dão desses passeios todos os verões , não,
Miss Woodhouse?

282
EMA

- Nem por isso. Nós estamos um pouco afastados


desses lugares pitorescos a que se refere; e, além disso,
somos muito pacatos e mais habituados a ficar em
casa do que a tomarmos parte em diversões.
- Ah! para conforto, não há nada como ficar em
casa. Ninguém é mais apegado ao lar do que eu. O
meu, apego à casa era proverbial em Maple Grave.
Muitas vezes Selina disse, quando ia a Bristol : «Não
há meio de fazer sair esta rapariga de casa. Estou
vendo que tenho de sair sozinha, apesar de não gostar
nada de ir no barouche-landau sem ninguém que me
acompanhe . Mas a verdade é que Augusta, por muito
boa vontade que tenha, não consegue ir além dos
portões do parque» . Muitas vezes ela disse isto; e,
contudo, não sou partidária de uma reclusão completa.
Penso, pelo contrário, que quando uma pessoa foge
por completo da sociedade, só tem que perder; é muito
mais aconselhável conviver com o mundo de uma
forma moderada, sem se ligar a ele de mais nem de
menos. No entanto, compreendo perfeitamente a sua
situação, Miss Woodhouse - acrescentou, olhando
para Ema. - O estado de saúde de seu pai deve ser
um grande obstáculo. Porque não experimenta ele
Bath? Acho que devia experimentar. Permita-me que
lhe recomende Bath. Estou convencida de que Mr.
Woodhouse havia de se dar bem.
- Meu pai j á em tempos o tentou mais de uma
vez, mas sem resultado; e Mr. Perry, de quem j á deve
ter ouvido falar, acha que, agora, nenhumas pro­
babilidades há de que Bath lhe traga algum beneficio.
- Ah! realmente, é pena, Miss Woodhouse, porque
é, maravilhoso o alívio que essas águas costumam dar.
Quando estive em Bath, vi tantos exemplos ! E, além
disso, a terra é tão alegre que não podia deixar de ser
favorável ao estado de espírito de Mr. Woodhouse, tão
deprimido, às vezes, segundo tenho ouvido dizer. E
quanto às vantagens que lhe ofereceria a si, j ulgo não
ser preciso citá-las . A senhora, que leva uma vida tão
retirada, teria ali um esplêndido meio para a sua

283
JANE A USTEN

apresentação na sociedade; e eu podia, sem dificuldade


alguma, assegurar-lhe lá algumas boas relações . Duas
palavras minhas seriam o suficiente para lhe granjear
um pequeno grupo de amigos; e a minha particular
amiga Mrs . Partridge, em casa de quem me hospedei
quando estive em Bath, teria o maior prazer em a
servir e seria até a pessoa mais indicada para a apre­
sentar em público.
Era o máximo que Ema podia suportar, sem se
mostrar descortês. Ficar devendo a Mrs . Elton aquilo
a que se dava o nome de «apresentação» - aparecer
em público graças aos auspícios de uma amiga de Mrs .
E l t o n , provavelmente qualquer viúva vulgar e
pretensiosa que mantinha pensão donde tirava os
recursos para viver! . .. Esta ideia não podia deixar de
ferir a dignidade de Miss Woodhouse, de Hartfield.
Conteve-se, porém, e calou a réplica desagradável
que aquilo merecia; limitou-se a agradecer a Mrs .
Elton, dizendo que não pensava ir a Bath, pois não
tinha bem a certeza de que o lugar lhe conviesse mais
do que a seu pai. E depois , para evitar mais melindres
e consequente indignação, apressou-se a mudar de
assunto.
- Não lhe pergunto se se dedica à música, Mrs .
Elton. Em ocasiões como esta a fama de uma senhora,
geralmente, precede-a; e Highbury há muito que sabe
que a senhora é uma excelente pianista.
- Oh! são favores . . . que ideia! Uma excelente
pianista ! . . . Muito longe disso, creia. Quem a informou
foi muito parcial . Sou louca por música . . . tenho pela
música uma verdadeira paixão, e os meus amigos
dizem que não sou inteiramente desprovida de gosto;
mas quanto ao resto , garanto-lhe que a minha
execução é muito medíocre. Miss Woodhouse é que
toca maravilhosamente, segundo me consta. Creia que
para mim foi uma enorme satisfação, um verdadeiro
conforto, saber que vinha entrar num meio musical
como este. Decididamente não posso passar sem
música; para mim é uma necessidade. Como estive

284
EMA

sempre habituada a viver num meio musical, tanto


em Maple Grave como em Bath, agora seria com
grande sacrifício que viveria num meio diferente .
Disse-o, com toda a franqueza, a Mr. Elton, numa
ocasião em que ele me falava do meu futuro lar e me
exprimia o receio de que me desagradasse a vida
retirada que iria levar; e como também a casa que
passaria a habitar era mais modesta que aquela a
que eu estava acostumada, ele andava naturalmente
cheio de apreensões . Eu, então, disse-lhe com toda a
sinceridade que o mundo - reuniões, bailes, teatros
- não me atraía e que, portanto, não tinha medo de
viver isolada. Que com os recursos que possuo, esse
mundo não me fazia falta. Podia muito bem passar
sem ele. Para aqueles que não tinham recursos
próprios , já o caso era diferent e ; mas eu podia
considerar-me independente . E quanto a vir morar
numa casa mais pequena do que aquela a que estava
habituada, era coisa que nada me preocupava. Não
me afectavam sacrifícios deste género. De facto, estava
acostumada a certo luxo em Maple Grave, mas
afirmei-lhe que, para ser feliz, não necessitava de duas
carruagens nem de salões. No entanto, - observei ­
para ser franca, devo dizer que não posso viver sem
ser numa sociedade onde se cultive música. Nada mais
exijo; mas , sem música, a vida não teria significado
para mim.
- Não é de supor - disse Ema, sorrindo - que
Mr. Elton hesitasse em lhe garantir que Highbury
era um meio altamente musical . . . Espero que não
tenha achado a verdade tão diferente que não o
considere digno de perdão pelo exagero, inspirado em
tão justificados motivos .
- Realmente, não fiquei desiludida a esse respeito.
Estou encantada por me encontrar no meu elemento.
Estou confiada em que havemos de organizar alguns
pequenos concertos . Miss Woodhouse e eu podíamos
fundar um grupo musical, que se reuniria regular­
mente todas as semanas em sua casa ou na minha.

285
JANE A USTEN

Não acha o projecto magnífico? Se o tentarmos , penso


que não nos faltarão adeptos . Uma iniciativa deste
género oferecer-me-ia muitas vantagens , visto que me
auxiliaria a m anter o treino ; é que as mulheres
casadas , sabe . . . em regra faz-se um triste juízo acerca
delas . Não as consideram aptas senão para porem a
música de parte . . .
- Mas a senhora, que é apaixonada por música,
não corre esse perigo, com certeza.
- Espero que não; mas a verdade é que quando
olho para as minhas amigas, tremo. Selina abandonou
completamente a música . . . nunca toca . . . e ela tocava
deliciosamente . O mesmo posso dizer de Mrs . Jeffe­
reys . . . em solteira, Clara Partridge . . . e das duas
Milmans, agora Mrs . Bird e Mrs . James Cooper; e de
muitas mais que eu podia enumerar. Palavra de honra
que é caso para alarmar uma pessoa. Cheguei a
zangar-me com Selina; mas agora começo a com­
preender que uma mulher casada tem muitas coisas
que lhe distraiam a atenção. Só esta manhã estive
empatada meia hora com a minha governante .
- Mas essas coisas , - retorquiu Ema - com
certeza não tardarão a normalizar-se . . .
- Bem, - disse Mrs . Elton, rindo - veremos !
Ema, ao vê-la tão predisposta a negligenciar a
música, nada mais disse; e, após um momento de
silêncio, Mrs . Elton encetou outro assunto.
- Fomos a Randalls - disse - e encontrámos
ambos em casa. São muito agradáveis ! Simpatizei
muito com eles ! Mr. Weston parece uma excelente
criatura . . . agradou-me logo que o vi, pode crer. E a
mulher parece tão boa . . . há nela qualquer coisa de
maternal e bondoso que nos cativa à primeira vista.
Ela foi sua preceptora, não foi?
Ema ficou tão surpreendida que mal pode dar uma
resposta; mas Mrs . Elton quase não esperou pela
afirmativa para continuar:
- Sabendo isso, fiquei um pouco admirada por ver
tanta distinção nessa senhora. Mas a verdade é que é
uma senhora muito fina.

286
EMA

- Mrs . Weston - disse Ema - foi sempre uma


pessoa de esmerada educação. A sua correcção, a sua
simplicidade e a sua elegância poderiam servir de
modelo a qualquer menina.
- E quem j ulga que entrou enquanto nós lá
estávamos?
Ema ficou perplexa: o tom da. pergunta subentendia
qualquer velho conhecimento. Mas que podia ela
conj ecturar?
- Knightley! - prosseguiu Mrs . Elton - o próprio
Knightley! Não foi sorte? E que no outro dia, quando
ele nos foi visitar, eu não estava em casa e por isso
ainda o não tinha visto; era natural que eu tivesse
imensa curiosidade de conhecer um tão particular
amigo de Mr. Elton . . . Tem sido tantas vezes citado «O
meu amigo Knightley» , que eu, de facto, estava
impaciente por vê-lo; e devo fazer ao meu caro esposo
a justiça de dizer que ele não tem que se envergonhar
do amigo . Knightley é um p erfeito ge ntlema n .
Simpatizei muito com ele . Decididamente achei-o um
homem muito distinto .
Felizmente, chegara a hora de se retirarem; e Ema
pode respirar.
«Que insuportfivel mulher! - foi o seu primeir9
pensamento . - E pior do que eu tinha suposto . . . E
verdadeiramente insuportável ! Knightley ! . . . Nunca o
suporia . . . Knightley! . . . Nunca o viu e chama-lhe
simplesmente Knightley! . .. E logo descobriu que é um
gentleman ! E sta mulher não passa de uma dama feita
à pressa, respirando banalidade por todos os poros,
com o seu «Mr. E . » , o seu «caro esposo» , os seus «re­
cursos» , e todos os seus ares pretensiosos de distinção
de pacotilha. Realmente, foi uma grande descoberta
ver que Mr. Knightley é um gentleman . . . Duvido que
ele lhe retribua o cumprimento . . . Ora não há! E ter o
desplante de propor que formemos um grupo musical!
Quem nos ouvisse diria que éramos íntimas amigas.
E Mrs . Weston! . .. Admira-se de que a pessoa que me
educou fosse uma senhora fina ! . . . Muito pior do que
eu j ulgava . . . Nunca encontrei ninguém assim; foi
muito além do que eu esperava. Harriet tem um fraco

287
JANE A USTEN

golpe de vista . . . Oh ! que diria Frank Churchill se aqui


estivesse? Sempre havia de se divertir muito! Ah! l�
estou eu a pensar nele sem mais nem menos . . . E
sempre a primeira pessoa em quem penso! Como eu
me aferrei a isto ! Frank Churchill vem-me constan­
temente à ideia . . . »
Todos estes pensamentos se sucederam tão rápidos
que, quando, passadas as primeiras impressões depois
da partida dos Eltons , o pai lhe falou, Ema já estava
suficientemente serena para lhe prestar atenção.
- Pois, minha filha, - principiou Mr. Woodhouse,
em tom convencido - nunca a tínhamos visto, mas
parece uma rapariga Il}U ito simpática; e, pelo que vi,
agradaste-lhe muito. E verdade que fala um pouco
depressa de mais; e a rapidez de expressão fere-nos
os ouvidos . Mas eu sou muito escrupuloso; não gosto
de vozes estranhas e ninguém fala como tu e a pobre
Miss Taylor. No entanto, ela parece ser uma pessoa
muito afável e correcta; não tenho dúvidas de que
há-de ser uma boa esposa, embora eu sej a de opinião
que ele teria feito melhor em não casar. Apresentei-lhe
desculpas por não ter ido visitá-lo e a Mrs . Elton, por
ocasião do feliz aconteciment o , e disse -lhe que
esperava poder fazê-lo para o Verão . Mas a verdade é
que devia ter ido antes. Não visitar uma noiva é uma
falta imperdoável . . . Ah ! isto mostra bem o inválido
que sou! Mas , que queres? não gosto daqueles sítios
onde fica o presbitério . . .
- Estou certa de que Mr. Elton aceitou as suas
desculpas, meu pai; ele conhece-o muito bem.
- Pois sim; mas uma senhora . . . uma noiva . . . Eu
devia ter feito todo o possível para a ir visitar. Foi um
desleixo !
- Mas se o papá não é adepto do matrimónio, por
que razão devia ir cumprimentar a noiva? A verdade
é que o casamento não se deve impor à sua atenção.
Prestar homenagens aos recém-casados seria o mesmo
que incitar as pessoas a casarem-se.
- Não , minha filha, nunca animei ninguém a
casar-se, mas sempre gostei de usar das devidas

288
EMA

atenções . . . Sobretudo, nunca nos devemos esquecer


de uma noiva. Uma senhora, nestas condições, é, mais
do que ninguém, merecedora da nossa consideração .
Fica sabendo, minha filha, que a recém-casada está
sempre à frente, sej a de quem for.
- Pois bem, papá, se isso não é uma instigação ao
casamento, não sei o que sej a . . . Nunca esperei que o
meu pai sancionasse tais engodos à vaidade das pobres
raparigas .
- Minha filha, não me compreendes . Isto é uma
questão de simples delicadeza e de boa educação, e
nada tem que ver com uma incitação ao casamento .
Ema achou melhor não responder; o pai j á estava
a enervar-se e não podia compreendê-la. Tornou, pois ,
às suas reflexões sobre as ousadias de Mrs . Elton, que
lhe ocuparam o espírito durante muito tempo.

CAPÍTULO XXXI II

Nenhuma circun s t â n c i a ulterior s urgi u que


obrigasse Ema a modificar a má opinião que formara
acerca de Mrs . Elton. O exame fora muito acertado.
Mrs . Elton, num segundo encontro , pareceu-lhe o
mesmo que sempre lhe pareceu de todas as vezes que
se tornaram a ver, isto é, enfatuada, presunçosa,
atrevida, ignorante e mal educada. Se bem que bonita
e com algum verniz , era, no entanto, dotada de tão
pouco senso que se julgava possuidora de um superior
conhecimento do mundo e predestinada a educar o
espírito da gente da região . Além disso, pensava que
o importante lugar que Miss Hawkins ocupara na
sociedade apenas Mrs . Elton o poderia exceder.
N ã o havia r a z õ e s para supor que M r . Elton
pensasse diferentemente de sua mulher. Ele não só
parecia feliz com ela, mas também orgulhoso da
e s c olha que fi z e r a . M o s trava o ar de quem s e
congratulava por ter trazido para Highbury uma

289
JANE A USTEN

mulher que nem mesmo Miss Woodhouse podia


igualar; e a maior parte dos novos conhecidos da
esposa, dispostos à lisonj a ou pouco habituados a
discernir, imitando a benevolência de Miss Bates ou
tomando por certo que a noiva seria tão inteligente e
perfeita como ela própria se dizia, estavam extre­
mamente satisfeitos . E dessa forma os louvores a Mrs .
Elton passavam de boca em boca, sem que Miss
Woodhouse lhes fosse à mão, pois se limitava a afirmar
com os seus modos mais graciosos o mesmo que
afirmara da primeira vez que a vira, isto é, que ela
era «uma pessoa muito afável e vestia com elegância» .
Sob um aspecto, Mrs . Elton ainda se tornou pior
do que parecera a princípio. Os seus sentimentos para
com Ema sofreram uma modificação; ofendida, sem
dúvida, pelo pouco favor que as suas pretensões de
intimidade encontraram em Ema, ela, por seu turno,
foi-se afastando e tornando-se cada vez mais fria e
reservada; e embora o efeito fosse dos mais agradáveis,
essa circunstância não deixou de contribuir para
aumentar a antipatia de Ema. Começou - secundada
por Mr. Elton - também a mostrar-se desagradável
para Harriet, usando para com ela de uns modos
desdenhosos e depreciativos . Ema esperava que isto
auxiliasse a cura rápida de Harriet; mas a reacção
que tal procedimento poderia, causar foi inteiramente
nula. Era fora de dúvida que a paixão da pobre Harriet
tinha sido assunto tratado sem reservas entre os dois
cônj uges , que, s egundo todas as probabilidade s ,
tinham comentado a sua atitude, - atitude que se
apresentava à mulher sob uma cor muito pouco
favorável e ao marido sob um aspecto extremamente
lisonjeiro. E Harriet, naturalmente, era objecto da sua
comum má vontade . Quando eles não tinham mais
nada que dizer, era inevitável que começariam a dizer
mal de Miss Woodhouse, e o ódio que não se atreviam
a mostrar-lhe abertamente encontrava desafogo na
maneira insolente como tratavam Harriet.
Mrs . Elton tomou-se, logo de princípio, de grande
simpatia por Jane Fairfax. Não era apenas aquela

290
EMA

simpatia transitória que muitos sentem por deter­


minada pessoa, quando se põem em guerra com outra,
mas um sentimento que se criara logo de início. E a
esposa de Mr. Elton não se contentava com exprimir
uma admiração natural e razoável : sem pretexto
algum, sem que a rapariga lho solicitasse, ela julgou-se
no dever de a favorecer e de lhe impor a sua amizade.
Ema, da terceira vez que se encontraram, quando
ainda não havia perdido a estima de Mrs . Elton, teve
ocasião de lhe ouvir aquelas palavras que revelavam,
as suas disposições de cavaleiro andante.
- Jane Fairfax - dizia ela - é encantadora, Miss
Woodhouse ; gosto muito del a . É uma rap ariga
extremamente insinuante. E depois, tão modesta, com
um tal ar de distinção . . . e tão prendada! Não tenho
dúvidas em afirmar que é uma exímia pianista.
C onheço de música o b a s t ante p a r a fal ar sem
hesitações a tal respeito. Oh! Jane é, encantadora! A
senhora talvez se ria do meu entusiasmo . . . mas
confesso que nada me seduz tanto como Jane Fairfax.
E a sua situação é tão comovente ! Miss Woodhouse,
temos de fazer alguma coisa por ela; temos de a ajudar.
Não se pode admitir que um talento daqueles se
desperdice . Miss, Woodhouse conhece por certo os
belos versos do poeta:

Quantas flores não desabrocham ignoradas


E derramam a sua fragrância na solidão! 1

Não devemos permitir que esta verdade se confirme


com Jane Fairfax.
- Não creio que haj a esse perigo - replicou Ema,
com toda a calma; -quando conhecer melhor a
situação de Miss Fairfax e estiver mais ao facto da
posição que ela ocupou junto do coronel e de Mrs .
Campbell, estou certa de que j á não julgará possível
que os seus talentos fiquem ignorados .

1 Robert Burns , poeta escocês do século xvm (N. do T.)

291
JANE A USTEN

- Ó querida Miss Woodhouse ! mas ela vive tão


isolada, leva uma existência tão obscura, está tão
deitada à margem. Fossem quais fossem as vantagens
que ela desfrutou com os C ampbell s , hoj e vê-se
claramente que j á as não desfruta. E creio que ela o
compreende bem; tenho a certeza disso. Miss Fairfax
é muito modesta e calada. Vê-se nela a falta de um
estímulo. Ainda gosto mais dela por isso; confesso que
é um motivo que a impõe à minha simpatia. Aprecio
muito a modéstia . . . não é uma qualidade que se
encontre muito amiúde. Nos espíritos superiores então
tem um valor extraordinário. Oh! asseguro-lhe que
Jane Fairfax é uma rapariga admirável , que me
interessa além de todo o meu poder de expressão.
- Vej o que nutre uma grande . . . Mas não creio que
a senhora ou qualquer das pessoas que conhecem Miss
Fairfax há mais tempo, possa sentir por ela outro
interesse . . .
- Minha querida Miss Woodhouse, com audácia
muito se pode fazer. É preciso não termos medo; se
nós ambas dermos o exemplo , muitas mais nos
seguirão, consoante as suas possibilidades, visto que
nem todas dispõem dos nossos recursos. Ambas temos
carruagem que poderia ir buscá-la e levá-la, e as
condições em que vivemos são tais que o acréscimo de
Jane Fairfax nenhum inconveniente traria . . . Desa­
gradar-me-ia bastante que Wright nos servisse algum
j antar que me fizesse arrepender de ter convidado
mais alguém além de Jane Fairfax a partilhar dele.
Não faço ideia do que acontecerá; nem seria provável
que a fi z e s s e , visto que não estou h abituada a
preocupar-me com essas coisas . Talvez que o maior
perigo para mim, quanto ao governo da casa, estej a
noutro lado, isto é, em gastar muito , s e m olhar a
despesas . Maple Grove serve-me, naturalmente, de
modelo mais do que conviria . . . pois nós não podemos
equiparar-nos a meu cunhado, Mr. Suckling, no que
respeita a fortuna . . . Sej a como for, a minha resolução
está tomada quanto à protecção a dispensar a Jane

292
EMA

Fairfax. Por certo terei que a convidar muitas vezes


para minha casa, apresentá-la sempre que possa, dar
pequenos concertos onde ela se destaque, estar, enfim,
constantemente atenta a todas as oportunidades que
surj am. Estou relacionada com tantas pessoas que
poucas dúvidas tenho de que em breve s aiba de
qualquer coisa que lhe convenha. Recomendá-la-ei
naturalmente a meu cunhado e a minha irmã, quando
eles vierem visitar-nos . Tenho a certez a de que
hão-de gostar muito dela; e quando ela estiver
mais familiarizada com eles, estou convencida de
que a sua timidez des aparecerá completamente,
pois a verdade é que os modos quer de um quer da
outra são extremamente insinuantes. Hei-de, pois,
tê-la cá muitas vezes enquanto eles estiverem comigo;
então espero conseguir muitas vezes um lugar para
ela no barouche-landau, quando dermos os nossos
passe10s .
«Pobre Jane Fairfax! - disse Ema de si para si. -
Merecias melhor sorte. Quaisquer que tenham sido
os teus erros no que se refere a Mr. Dixon, este castigo
é superior às tuas culpas ! A generosa protecção de
Mrs . Elton ! «Jane Fairfax e mais Jane Fairfax! » Meu
Deus ! não permitais que ela se lembre de E m a
Woodhouse ! Palavra d e honra que a língua desta
mulher parece não ter limites na sua verbosidade ! »
Ema, felizmente, não teve que voltar a ouvir tão
notável alardear de ideias , exclusivamente reservado
para si e adornado daquele tão fastidioso «querida Miss
Woodhouse». A mudança de atitude por parte de Mrs .
Elton ocorreu pouco depois, e Ema foi deixada em paz:
não mais se viu forçada a fingir intimidade com Mrs .
Elton, nem, sob a orientação desta última, a ser a
zelosa protectora de Jane Fairfax; continuou apenas,
como qualquer outra, a interessar-se de uma forma
geral pelo que se dizia, pensava ou fazia à sua volta.
Obs ervava tudo com um certo humori s m o . A
gratidão de Miss Bates pelas atenções de Mrs . Elton
com Jane revelava-se pelo seu carácter de franca

293
JANE A USTEN

ingenuidade e sincero entusiasmo . Para ela, Mrs .


Elton era uma daquelas pessoas que mereciam todo o
seu respeito, uma mulher extremamente amável e
encantadora - tão perfeita e boa como Mrs . Elton
pretendia que a julgassem. A única surpresa de Ema
foi que Jane Fairfax aceitasse todas aquelas atenções
e tolerasse Mrs . Elton como parecia tolerar. Ouvia
falar dos seus passeios com os Eltons , das suas visitas
aos Eltons, dos dias inteiros que passava com os
Eltons ! Era espantoso! . . . Jamais teria julgado possível
que o bom senso ou o orgulho de M i s s F airfax
suportasse aquela intimidade que o presbitério lhe
oferecia.
«Esta rapariga é um enigma, um perfeito enigma!
- pensava ela. - Como se compreende que se deixasse
ficar aqui meses e meses , a sofrer privações de toda a
espécie, e agora aceitasse a penitência das imper­
tinentes atenções e da tagarelice banal de Mrs . Elton,
em vez de voltar para a companhia daqueles que
sempre a têm amado com tão sincero e generoso
afecto?»
Jane tinha vindo para Highbury por três meses; os
Campbells tinham ido para a Irlanda também por três
meses , m a s , por fi m , h aviam prometido à filha
demorar-se lá, pelo menos, até ao S . João, e tinham
recentemente convidado Jane a que fosse ali reu­
nir-se-lhes . Segundo Miss Bates,- o que se sabia era
por seu intermédio - Mrs . Dixon tinha escrito
insistindo no mesmo pedido; para Jane ir, não lhe
faltariam recursos, nem criados ou amigos que a
acompanhassem: dificuldades na viagem era coisa que
não existiria. E , no entanto, ela tinha-se recusado !
«Deve ter qualquer motivo mais imperioso do que
se j ulga para recusar o convite - concluiu Ema. -
Deve estar suj eita a qualquer pena, imposta pelos
Campbells ou por ela a si própria. Há grande receio e
grandes , precauções nalgum lado . . . Ela não pode
encontrar-se com os Dixons; alguém ditou a sentença.
Mas quem a obrigava a consentir no convívio com os
Eltons? Que confusão ! »

294
EMA

Tendo ela manifestado em voz alta as últimas


palavras, reveladoras da, sua estranheza, na presença
dos poucos que conheciam a sua opinião a respeito de
Mrs . Elton, Mrs. Weston arriscou uma desculpa a favor
de Jane :
- Não s abemos se ela se divertirá muito no
presbitério, minha querida Ema . . . mas sempre é
melhor do que não sair de casa. A tia é uma boa
criatura, mas, como companheira constante, deve ser
muito maçadora. Convém ter em atenção o que Miss
Fairfax deixa, antes de condenarmos o seu gosto por
aquilo que procura.
- Tem razão, Mrs . Weston - disse Mr. Knightley,
com entusiasmo; - Miss Fairfax é tão capaz como
qualquer de nós de formar urna opinião exacta acerca
de Mrs. Elton. Pudesse ela escolher as suas companhias
que não teria escolhido essa mulher. Mas - acres­
centou, sorrindo para Ema com ar de censura - não
tem outro remédio senão aceitar as atenções de Mrs .
Elton, pois mais ninguém as tem para com ela.
E m a percebeu que Mrs . Weston a olhou um
momento de relance , e ficou impressionada com o
entusiasmo de Mr. Knightley. Corando ligeiramente,
replicou pouco depois :
- No meu entender, atenções como as de Mrs .
Elton são mais de molde a enfastiar do que a satisfazer
Miss Fairfax. Os convites de Mrs . Elton devem ser
tudo menos atraentes .
- Não me admiraria - disse Mr. Knightley - de
que Miss Fairfax tivesse sido arrastada além do que
ela própria desej aria, pela ânsia da tia em corres­
ponder às amabilidades de Mrs . Elton. A pobre Miss
Bates terá até forçado a sobrinha a assumir com a
outra uma aparência de intimidade, contrária ao que
o seu bom senso lhe teria ditado, a despeito do desejo
muit � natural de quebrar um pouco a monotonia em
que vive .
Estavam ambas desej osas de continuar a ouvi-lo,
e, ao fim de alguns minutos de silêncio, ele prosseguiu:
- Outra coisa que se deve também tomar em
consideração . A maneira como Mrs . Elton se dirige a
. .

295
JANE A USTEN

Miss Fairfax não corresponde à forma como fala dela.


Todos nós conhecemos a diferença que há entre os
pronomes «ele» ou «ela» e «tu » , que são os mais
vulgarmente usados ; todos nós sentimos a influência
de qualquer coisa além da simples cortesia nas nossas
relações mútuas . . . algo de profundamente arraigado.
Não podemos repetir aos outros as ideias desa­
gradáveis que porventura nos tenham ocorrido uma
hora antes . . . Sentimos de uma maneira e falamos
doutra. E além deste fenómeno, que se deve tomar
como regra geral, pode estar certa de que Miss Fairfax
intimida Mrs . Elton pela sua superioridade tanto
de espírito como de educação; e frente a frente, Mrs .
Elton trata-a com todo o respeito a que ela tem jus.
Provavelmente Mrs . Elton nunca encontrou na sua
frente uma mulher como Jane e por muita vaidade
que tenha na sua pessoa, não pode deixar de exte­
riorizar o reconhecimento da sua própria inferiori­
dade .
- Eu conheço o alto conceito em que o senhor tem
Jane Fairfax - disse Ema.
Não lhe saía da ideia o pequeno Henry, e, se bem
que alarmada, a delicadeza tornava-a indecisa quanto
ao que deveria dizer mais.
- De facto, - replicou Mr. Knightley - todos
podem ver o elevado juízo que eu formo dela.
- E, no entanto . . . - principiou Ema, com o olhar
irritado; mas deteve-se . Em todo o caso mais valia
saber o pior quanto antes. Apressou-se, pois, a dizer:
- E, no entanto, talvez não calcule até onde o pode
levar e s s e elevado conceito . A grand eza da sua
admiração pode um dia tomá-lo de surpresa . . .
Mr. Knightley estava entretido com o s botões das
suas grossas polainas de couro e, ou fosse por estar
curvado ou por qualquer outro motiv o , o rubor
cobria-lhe o rosto quando respondeu:
- Oh! ainda vai aí? Está muito atrasada . . . Mr. Cole
já me deu a entender o mesmo há seis semanas .
Calou-se. Ema sentiu Mrs . Weston pisá-la; não

296
EMA

soube o que pensar. Momentos depois Mr. Knightley


continuou:
- Todavia, asseguro-lhe que isso nunca sucederá.
Estou certo de que Miss Fairfax não me aceitaria ainda
que eu lhe pedisse a mão . . . e é resolução minha j amais
lha pedir.
Ema retribuiu com j uros a pisadela da amiga; e
estava tão contente que exclamou:
-O senhor não é fátuo, Mr. Knightley; e creia que
o digo sem lisonja.
Dir-se-ia que ele mal a ouvia; parecia pensativo, e,
momentos depois, com ar pouco satisfeito, disse:
- Resolveu então que eu casasse com Jane Fairfax?
- De maneira alguma. O senhor tem-me censurado
de mais pelo meu gosto casamenteiro, para que eu me
atrevesse a tomar essa iniciativa consigo. O que eu
disse há pouco nada significava. Essas coisas dizem-se,
naturalmente , sem ideia reservada. Oh! dou-lhe a
minha palavra de honra de que não tenho o menor
desej o de que case com Jane Fairfax ou outra Jane
qualquer. O senhor não estaria aqui a conversar
amenamente connosco, se estivesse casado .
Mr. Knightley estava de novo pensativo . A sua
rêverie teve como resultado as seguintes palavras:
- Não, Ema, não creio que a grandeza da minha
admiração por ela me colhesse algum dia de surpresa.
Certifico-lhe que nunca pensei nela com os intuitos
que julgava.
E pouco depois acrescentou:
- Jane Fairfax é uma rapariga encantadora . . . mas
apesar disso não é, perfeita. Tem um defeito: não é
aquele espírito franco que um homem desej aria numa
esposa.
Ema não pode deixar de se regozij ar ao ouvir que
Jane tinha um defeito.
- Nesse caso, - disse ela - apressou-se a desiludir
Mr. Cole, não é verdade?
- Imediatamente . Ele aludiu muito naturalmente
a essa possibilidade , mas eu disse-lhe que estava

29 7
JANE A USTEN

enganado; ele pediu-me desculpa e não tornou a falar


no caso. Cole não pretende ser mais sensato nem mais
arguto que qualquer outro .
- Nesse caso é muito diferente de Mrs . Elton, que
se julga mais sensata e arguta que ninguém. Gostava
de saber como é que ela fala dos Coles . . . que trata­
mento lhes dá. Que denominação terá ela encontrado
que exprima claramente o grau de familiaridade que
julga ter com eles? A si trata-o por Knightley . . . como
tratará ela Mr. Cole? Agora já não me surpreende que
Jane Fairfax aceite as suas amabilidades e o seu
convívio . Mrs . Weston, os seus argumentos conven­
cem-me. Repugna-me menos acreditar na tentação de
Jane de fugir à tagarelice de Miss Bates, do que no
triunfo do seu espírito sobre Mrs . Elton . Não me
convenço de que Mrs . Elton sej a pessoa para confessar
a sua inferioridade, quer em pensamento quer por
palavras ou actos; também não acredito que haj a
alguma coisa que s e lhe imponha que não sej a o seu
mesquinho conceito de boa educação. Não a imagino
senão importunando continuamente a sua visitante
com elogios, conselhos e oferecimentos, -maçando-a
constantemente com a exposição pormenorizada das
suas generosas intenções, desde o proj ecto de lhe obter
uma situação confortável até ao de fazê-la participar
daqueles deliciosos passeios que se hão-de realizar no
barouche-landau.
- Jane Fairfax é um espírito sensível - disse Mr.
Knightley - . . . não a acuso de falta de sensibilidade .
Estou até convencido de que tem uma forte sensi­
bilidade . . . uma índole toleran�e e paciente e o poder
de se domil).ar a si mesma. E pena que careça de
franqueza. E reservada, mais reservada, julgo eu, do
que era antigamente . E eu gosto das pessoas francas . . .
Não . . . enquanto Cole não aludiu à minha suposta
preferência, nunca isso me veio à ideia . Via Jane
Fairfax e conversava com ela, sempre com prazer . . . ,
mas sem nenhum pensamento reservado.
- Bem, Mrs . Weston, - disse Ema, triunfante,
depois de ele se ter despedido - que diz agora quanto
a Mr. Knightley casar com Jane Fairfax?

298
EMA

- Olhe, minha querida Ema, digo-lhe que ele está


tão preocupado com a ideia de que não esta apaixonado
por ela que não me admiraria de que, no fim de contas,
acabasse por se apaixonar. Mas não me bata . . .

CAPÍTULO XXXIV

Todas as pessoas de Highbury ou dos arredores,


que estavam relacionadas com Mr. Elton, apres­
s aram-se a prestar-lhe a devida homenagem por
motivo do seu casamento. Os j antares e as reuniões
em honra dele e da e s p o s a sucediam - s e em tal
abundância que Mrs. Elton não tardou a verificar, com
agrado, que, tão depressa, não teriam, ela e o marido,
um dia livre.
- Estou vendo, - dizia ela - estou vendo a vida
que vou levar entre vós. Palavra de honra que, dentro
em pouco , estaremos uns libertinos . . . Parece que
vivemos na alta sociedade . Se isto é vida de campo,
nada mais me poderá causar espanto. De segunda a
sábado, afirmo-lhes que não temos um dia livre. Uma
mulher com menos recursos do que eu não precisava
de se preocupar.
Nenhum convite era por ela mal acolhido. Os seus
hábitos de Bath dispunham-na a aceitar todas as
reuniões como perfeitamente naturais, e Maple Grove
havia criado nela o gosto pelos j antares. Estava um
pouco escandalizada por, nos pobres arremedos de
ceias, os convidados não serem recebidos em duas salas
e não servirem gelados nas p artidas de j ogo de
Highbury. Mrs. Bates, Mrs. Perry, Mrs. Goddard e outras
estavam um pouco atrasadas no conhecimento das leis
mundanas, mas ela não tardaria a mostrar-lhes como
se deviam fazer as cois as . Lá para a Primavera
tencionava retribuir-lhes as atenções com uma
recepção condign a , n a qual as mesas de j ogo s e
apresentariam com iluminação própria e baralhos
novo s , como mandava a decência, e a criadagem

299
JANE A USTEN

contratada para a reunião seria em maior número do


que em qualquer das casas das ditas senhoras e
serviria os bolos e as bebidas à hora de antemão
determinada e na devida ordem.
Ema, entretanto, entendeu que não devia deixar
de dar em Hartfield um j antar em honra dos Eltons .
Não convinha ficar atrás dos outros, se não queria
expor-se a odiosas suspeitas e a que a julgassem capaz
de mesquinhos ressentimentos . O j antar tinha de se
dar. Depois de Ema ter falado no assunto durante dez
minutos, Mr. Woodhouse não pôs nenhuma obj ecção;
apenas impôs a habitual condição de não lhe marea­
rem o lugar ao topo da mesa, ao mesmo tempo que
fazia as costumadas considerações sobre a inutilidade
dessa disposição .
Requeria pouco estudo determinar as pessoas que
deviam ser convidadas. Além dos Eltons , contar-se-ia
com os Westons e com Mr. Knightley, como era
natural ; e parecia inevitável que se convi dasse
também a pobre Harriet, para perfazer o número de
oito , mas este convite não era feito de muito boa
vontade , e Ema ficou, por várias razões, particu­
larmente satisfeita com o facto de Harriet ter pedido
licença para não aceitar.
Que preferia não se encontrar com ele, desde que
pudesse evitá-lo. Ainda não estava preparada para o
ver na companhia da sua encantadora esposa, sem
um certo mal-estar. Se Miss Woodhouse se não
importasse, ela preferia ficar em casa.
Se Ema tivesse manifestado exactamente esse
desejo, não o teria visto mais prontamente satisfeito.
Estava encantada com a coragem da sua amiguinha
- a coragem de ficar em casa e prescindir da com­
panhia dos amigos; e agora já podia convidar aquela
com que realmente contava para completar o número
de oito pessoas - Jane Fairfax. Desde a última vez
que falara com Mrs . Weston e Mr. Knightley, a
consciência acusava-a, mais do que das outras vezes,
de ter sido inj usta com Jane Fairfax. As palavras de
Mr. Knightley não lhe saíam da ideia. Tinha ele dito

300
EMA

que Jane recebia de Mrs . Elton atenções que mais


ninguém tinha com ela.
«Isso é verdade - pensava ela; - pelo menos na
parte que me diz respeito, que era ao que ele queria
referir-se . . . e realmente é uma vergonha. Da mesma
idade . . . e conhecendo-nos há tanto tempo . . . eu devia
mostrar por ela mais amizade . Ela, agora, já não me
deve tolerar; tenho-a desprezado tanto . . . Mas estou
disposta a mostrar-me mais atenciosa do que até aqui».
Todos os convites tiveram esplêndido acolhimento;
todas as pessoas os aceitaram com o máximo prazer.
Contudo, os obstáculos ao j antar ainda não tinham
desaparecido . Surgiu uma circunstância um tanto
aborrecida: os dois pequenos Knightleys mais velhos
tinham-se comprometido com o avô e a tia a fazer-lhes
uma visita de algumas semanas, na Primavera, e o
pai propunha-se agora trazê-los e passar um dia em
Hartfield, e esse dia era precisamente aquele em que
se devia realizar o j antar. Os seus compromissos
profissionais não lhe permitiam adiar a sua ida, e tanto
o pai como a filha estavam verdadeiramente emba­
raçados por esse motivo . Mr. Woodhouse considerava
oito pessoas à mesa o máximo que os seus nervos
podiam suportar . . . e agora aparecia uma nona! E Ema
então pensava que essa nona pessoa era bem ino­
portuna, pois não vinha a Hartfield por mais de
quarenta e oito horas e logo a sua vinda coincidia com
um j antar de cerimónia.
Entretanto, procurou confortar o pai melhor do que
podia confortar-se a si própria; disse-lhe que, embora
houvesse, com o genro, nove pessoas à mesa, ele tinha
por costume falar tão pouco que o barulho pouco maior
seria. Mas , enquanto assim falava, pensava que, na
realidade, seria uma coisa bem triste para ela tê-lo a
seu lado, com o seu olhar grave e a sua conversação
instável, em lugar do irmão .
O acontecimento foi mais favorável a Mr. Wood­
house que a Ema. John Knightley sempre veio; mas
Mr. Weston, como fosse inesperadamente chamado a

301
JANE A USTEN

Londres, viu-se obrigado a ausentar-se no próprio dia.


Calculava poder vir à noite, mas não a horas de j antar,
certamente. Mr. Woodhouse mostrava-se inteiramente
satisfeito, e essa circunstância, aliada à chegada dos
garotos e à filosófica s erenidade com que John
Knightley soube do que lhe estava destinado, também
removeram as principais apreensões de Ema.
Chegou o dia, os convivas compareceram com toda
a pontualidade, e Mr. John Knightley parecia desejoso
de se mostrar agradável a todos. Em lugar de puxar
o irmão para o vão de uma j anela, enquanto esperavam
pelo j antar, pôs-se a conversar com Miss Fairfax. Para
Mrs . Elton, tão elegante quanto as rendas e as j óias a
podiam fazer, limitava-se ele a olhar em silêncio, no
único intuito de poder trans mitir a I s abella as
impressões colhidas a seu respeito, ao passo que Miss
Fairfax era um velho conhecimento e uma b o a
rapariga, com quem e l e podia conversar. Tinha-se
encontrado com ela antes do almoço, ao voltar de um
passeio com os pequenos , j ustamente na ocasião em
que começava a chover. Era natural que tivesse a
delicadeza de lhe perguntar se se tinha molhado; disse,
pois:
- Esta manhã, com certeza não se demorou muito
tempo na rua . . . Espero que não se tenha molhado
muito . Nós mal tivemos tempo de chegar a casa.
Recolheu-se logo, não?
- Eu só fui ao correio, - disse ela - e cheguei a
casa antes de começar a chover muito. Era o meu
passeio diário. Quando cá estou, sou sempre eu quem
vai buscar a correspondência. Poupo trabalho aos
outros e tenho um pretexto para sair. Um passeio antes
do almoço faz-me bem.
- Mas não à chuva, penso eu . . .
- Pois não; mas quando saí ainda não chovia.
Mr. John Knightley sorriu e replicou:
- Quer dizer: o seu passeio tinha forçosamente de
se dar, pois Miss Jane não estava a mais de seis j ardas
da sua porta quando tive o prazer de a encontrar;
Henry e John já tinham visto mais gotas de chuva do

302
EMA

que aquelas até onde sabiam contar. O correio tem


um grande encanto num certo período da nossa vida.
Quando chegar à minha idade, verá que as cartas
nunca merecem que nos exponhamos à chuva por
causa delas .
Isto deu em resultado um leve rubor e depois a
resposta:
- Não espero atingir j amais a situação que o senhor
ocupa, no meio de tão caros afectos, e, portanto, não
posso convencer-me de que o simples facto de avançar
na idade me faça criar indiferença pelas cartas .
- Indiferença? . . . Oh! não . . . nunca me passou pela
ideia que Miss Jane pudesse sentir essa indiferença.
As cartas não são matéria para indiferença; em geral
são uma autêntica maldição .
- O senhor refere-se a cartas de negócios ; as
minhas são cartas de amizade.
- Muitas vezes tenho considerado essas as piores
- retorquiu ele, secamente . - O negócio, sabe, pode
trazer lucros , ao passo que a amizade quase nunca.
- Ah! o senhor não fala a sério. Conheço-o bastante,
Mr. John Knightley, para estar convencida de que
avalia tão bem a amizade como qualquer outro .
Compreendo muito bem que as cartas signifiquem
para si muito menos do que para mim, mas não é o f
acto de ser dez anos mais velho do que eu que
estabelece a diferença; não é a idade, é a situação . O
senhor tem sempre a seu lado os que lhe são mais
queridos, e eu, provavelmente, nunca os terei; por isso,
enquanto eu estiver longe dos meus afectos, o correio
terá sempre o poder de me fazer sair, mesmo em dias
piores do que o de hoj e .
- Quando l h e dis s e q u e com o t e m p o , com o
decorrer dos ano s , se modificaria, - disse John
Knightley - subentendia também a mudança de
situação que o tempo geralmente traz . Considero que
uma coisa implica a outra. O temp o , em regra ,
enfraquece a intensidade de todos os afectos, entre
aqueles que não estão em contacto diário . . . mas não

303
JANE A USTEN

era essa a mudança que eu previa para si. Como velho


amigo , Miss Fairfax, permita-me desej ar-lhe que ,
dentro de dez anos, os seus obj ectivos de interesse
sej am tantos como os que eu tenho actualmente .
Estas palavras foram ditas num tom benévolo e
sem o mínimo intuito de melindre. Supor-se-ia uma
risada em seguida ao alegre «Obrigada» , dado em
resposta; mas o rubor, o tremor dos lábios e as lágri­
mas nos olhos mostravam que pouca vontade havia
de rir.
A atenção de Jane foi nesse momento reclamada
por Mr. Woodhouse, que, percorrendo, segundo o seu
costume em ocasiões análogas, o círculo dos seus
convidados e apresentando as suas homenagens às
senhoras, chegava finalmente junto dela e, com toda
a sua doce urbanidade, dizia-lhe :
- Lamento muito saber que andou esta manhã à
chuva, Miss Fairfax. As senhoras novas deviam tomar
mais cuidado consigo; são plantas muito delicadas .
Deviam ter toda a cautela com a saúde. Minha filha,
mudou de meias?
- Mudei, sim, senhor; estou-lhe muito grata pela
sua solicitude.
- Minha querida Miss Fairfax, creia que na sua
idade todos os cuidados são poucos. E sua avó e sua
tia estão bem, não é verdade? Somos velhos amigos.
Quem me dera que a saúde me permitisse ser melhor
vizinho do que sou ! Pois é grande a honra que nos dá
hoje, creia. Tanto minha filha como eu estamos muito
sensibilizados com a sua bondade e é com imensa
satisfação que a vemos em Hartfield.
O bondoso e delicado velho resolveu então sentar-se,
cônscio de que havia cumprido o seu dever, dando as
boas-vindas às formosas senhoras suas convidadas .
Entretanto, a notícia do passeio à chuva tinha
chegado aos ouvidos de Mrs . Elton, que se apressou a
fazer as suas censuras a Jane .
- Minha querida Jane , que acabo eu de saber? . . .
Ir a o correio à chuva! . . . Isso, com certeza, não pode

304
EMA

ser . . . Sua má! por que fez uma coisa dessas? Ah! não
estar eu lá para olhar por si . . .
Jane, sem s e impacientar, afirmou-lhe que não se
tinha constipado.
- Oh! não se desculpe . . . Você é realmente muito
má e não toma nenhum cuidado consigo . Ao correio,
hem! Mrs. Weston, já viu uma coisa assim? A senhora e
eu temos decididamente de exercer a nossa autoridade.
- Re almente ,- disse Mrs . Weston, em tom
benévolo e persuasivo - sinto-me tentada a dar-lhe
um conselho. Miss Fairfax, não se exponha dessa
forma. Sujeita como é a fortes constipações, na verdade
devia ter muito mais cuidado, especialmente nesta
época do ano . Fui s e mpre da opinião de que a
Primavera é uma estação muito perigosa.
Vale mais esperar uma hora ou duas , ou mesmo
uma manhã inteira, pelas suas cartas , do que correr
o risco de apanhar uma bronquite outra vez .
Vej amos : não acha que podia dar-se mal? Estou
certa de que o compreende assim, visto que é uma
pessoa razoável. E acredito que não voltará a fazer o
que fez.
- Oh ! com certeza que não volta a fazer o que fez !
- disse Mrs . Elton, com energia. - Nós não lhe
p ermitirem o s que volte a praticar s e m elhante
imprudência.
E abanando a cabeça significativamente, acrescentou:
- Havemos de arranj ar as coisas de maneira que
isso se não torne a dar. Falarei a Mr. Elton. O homem
que vai buscar as nossas cartas todas as manhãs . . .
um criado nosso cuj o nome me esqueceu . . . perguntará
pelas suas também e levar-lhas-á. As sim, resol­
ver-se-ão todas as dificuldades, sabe? Acho, minha
querida Jane, que, de nós, não terá escrúpulo em
aceitar esse pequeno serviço .
- A senhora é extremamente bondosa - disse
Jane; - mas eu é que não posso deixar de dar o meu
passeio matinal. Aconselharam-me a sair sempre que
pudesse, e eu preciso de ir para qualquer lado; o correio

305
JANE A USTEN

é um pretexto. Garanto-lhe que , até agora, quase


nunca deparei com mau tempo, de manhã.
- Minha querida Jane, não diga mais nada. O caso
está resolvido . . . isto é, - acrescentou, rindo afecta­
damente - tanto quanto me é permitido resolver
qualquer coisa sem consultar o meu senhor e amo.
Sabe, Mrs . Weston, ambas nós temos de nos acautelar
quanto à maneira de nos expressarmos . . . Mas eu,
realmente , estou a supor demasiado d a minha
influência. Portanto, se não deparar com obstáculos
insuperáveis, considere a coisa assente .
- Desculpe-me, - retorquiu Jane, a sério - não
posso de forma alguma consentir em tal coisa; isso é
incomodar o seu criado sem qualquer necessidade. Se
o encargo não fosse um prazer para mim, também
tinha a criada de minha avó, que é, quando eu cá não
estou . . .
- Oh! minha filha . . . mas com tanto que a Patty
tem que fazer! E é um favor que me faz, utilizando os
nossos criados .
Jane mostrou n o rosto uma expressão d e que não
queria deixar convencer-se e, em lugar de responder,
- voltou-se para Mr. John Knightley, com quem
recomeçou a conversar.
- O correio é uma instituição admirável - disse
e l a . - Q u e regulari d a d e , que rapid e z ! Se n o s
lembrarmos da tarefa que lhe está confiada e d a
perfeição com que a executa, não podemos deixar de
ficar assombrados !
- Ije facto é um serviço muito bem feito.
- E tão rara uma negligência ou um erro ! Entre
milhares de cartas que se distribuem por esse reino,
rara é aquela que s e d e s c aminha . . . e quanto a
perder-se, suponho que nem uma num milhão ! E
quando se considera a variedade de tipos de letra, e
alguns péssimos, que têm de decifrar, mais admirados
ficamos.
- Os empregados tornam-se peritos à força de
hábito . De início, apenas precisam de um pouco de
golpe de vista e de expediente ; depoi s , o treino
aperfeiçoa- o s. Mas , se quer uma explicação mais

306
EMA

completa, - acrescentou, sorrindo - dir-lhe-ei que


eles são pagos para isso. Aí é que está, em grande
parte, a chave da sua eficiência. O público paga para
ser bem servido.
Trocaram-se mais algumas palavras acerca da
variedade de tipos de letra, fazendo-se à volta do
assunto as habituais considerações .
- Tenho ouvido afirmar -disse John Knightley
- que é frequente persistir numa família o mesmo
tipo de letra; e quando é o mesmo mestre que ensina,
é muito natural que assim seja. Mas , precisamente
por este motivo, não me repugna admitir que as
semelhanças de letra se restrinj am sobretudo às
raparigas, pois os rapazes, se exceptuarmos os seus
primeiros anos, pouco ensino recebem nesse capítulo,
e por isso adquirem qualquer caligrafia. Isabella e
Ema, por exemplo, tem letras muito parecidas . Nem
sempre consigo distinguir as duas caligrafias .
- De facto, - disse o irmão , um pouco hesitante
- há uma certa semelhança. Tens razão . . . mas a letra
de Ema é mais firme.
- Isabella e Ema têm ambas uma linda caligrafia
- disse Mr. Woodhouse; - sempre tiveram. E a pobre
Mrs . Weston também - acrescentou, com um leve
suspiro e sorrindo para ela.
- Nunca vi letra de homem . . . - começou. Ema,
olhando também para Mrs . Weston; mas deteve-se,
ao notar que esta dava atenção a alguém. E a pausa
deu-lhe tempo para reflectir.
«Mas sob que pretexto vou eu referir-me a ele? Não
serei capaz de citar o seu nome sem mais nem menos,
diante de toda a gente? Terei necessidade de usar de
circunlóquios? O seu amigo de Yorkshire . . . Parece-me
que seria esse o recurso, se me visse muito atra­
palhada. Não: posso muito bem pronunciar o seu nome
sem o menor embaraço. A verdade é que vou cada vez
melhor. Vamos lá . . . » .
Mrs . Weston j á estava livre e Ema tornou:
- Mr. Frank Churchill tem uma das mais lindas
caligrafias que eu conheço .

307
JANE A USTEN

, - Não gosto muito dela - disse Mr. Knightley. -


E muito miúda e pouco firme; parece letra de mulher.
Com isto não concordaram as senhoras , que se
empenharam em defender Frank da calúnia.
Que não, que não lhe faltava firmeza de forma
alguma . . . não era uma letra muito cheia, mas era
muito legível e firme, sem a menor dúvida . Mrs .
Weston não teria ali, por acaso, qualquer carta dele
que pudesse mostrar?
Que não; que tinha recebido, poucos dias antes,
noticias dele, mas, depois, de ter respondido à sua
carta, pusera-a de parte.
- Se eu tivesse aqui a mão a minha escrivaninha,
- disse Ema - estou certa de que havia de arranj ar
um espécime . Tenho um bilhete dele . Não se lembra,
Mrs . Weston, de um dia lhe ter pedido que me
escrevesse?
- Ele até disse que estava a . . .
- Bem: eu tenho essa carta e depois do j antar posso
mostrá-la a Mr. Knightley para o convencer.
- Oh ! quando um moço tão garboso como Mr.
Frank Churchill escreve a uma dama tão bela como
Miss Woodhouse, - disse Mr. Knightley, com secura
- há-de naturalmente fazê-lo com todo o esmero .
O j antar estava na mesa. Mrs . Eltonj á se preparava
para passar à sala de j antar, antes mesmo de a
convidarem; e ainda Mr. Woodhouse não estava ao pé
dela a oferecer-lhe o braço, j á ela dizia:
- Devo então ir à frente? Estou deveras enver­
gonhada de ser sempre a primeira.
A preocupação de Jane em ir ela própria buscar as
cartas ao correio não escapara a Ema. Ouvira tudo e
estava com uma certa curiosidade de saber se o passeio
à chuva teria colhido algum resultado . Tinha a
impressão de que Jane não teria insistido tanto na
sua ida ao correio, se não tivesse quase a certeza de
gratas notícias, isto é, de que o passeio não seria inútil.
Afigurava-se-lhe notar nela um ar de felicidade fora
do costume, um brilho especial na expressão e nos
modos.

308
EMA

Podia ter feito uma ou duas perguntas sobre a


expedição e a franquia da correspondência para a
Irlanda; j á tinha as palavras na ponta da língua . . . mas
absteve-se. Estava resolvida a não dizer nada que
p u de s s e ferir os s e ntimentos de Jane Fairfax ;
seguiram, pois, a s duas d e braço dado, atrás das outras
senhoras , até à sala de j antar, aparentando ambas
um ar de afabilidade que condizia admiravelmente
com a beleza e a graça de cada uma delas .

CAPÍTULO XXXV

Quando as senhoras voltaram à sala depois do


j antar, Ema verificou que era quase impossível evitar
que se dividissem em dois grupos distintos . Perse­
verando na sua forma errónea de j ulgar e proceder,
Mrs . Elton monopolizava Jane Fairfax e afastava-se.
Ema e Mrs . Weston viam-se assim forçadas a falar
unicamente uma com a outra ou a guardar silêncio ao
lado uma da outra. Mrs . Elton não lhes deixava mais
nenhuma alternativa. Se Jane pretendia desviar-se,
logo ela insistia no seu propósito; e muito embora o
diálogo se travasse a meia voz, especialmente da parte
de Mrs . Elton, não podia deixar de se perceber quais
os assuntos principais sobre que versava: o correio, o
perigo das constipações, as cartas e a amizade eram
questões demoradamente debatidas; e a estas suce­
deu-se outra que devia ser igualmente do desagrado
de Jane : tratava-se de saber se lhe conviria algum
emprego entre aqueles que Mrs . Elton tinha planeado
obter-lhe.
- Temos Abril à porta! - dizia ela. - Estou muito
preocupada por sua causa. Junho não tardará muito . . .
- Mas e u nunca fixei Junho o u qualquer outro
mês . . . simplesmente me referi ao Verão em geral.
- Mas , na verdade, não sabe de nada?
- Nunca cheguei a indagar; não me convém ainda.

309
JANE A USTEN

- Oh! minha filha, nunca é cedo de mais; não faz


ideia d a s dificul dades que há em se cons eguir
exactamente aquilo que se pretende .
- Não faço ideia! - disse Jane, abanando a cabeça.
- Mrs . Elton, quem melhor do que eu pode dizer
alguma coisa a esse respeito?
- Mas a Jane ainda não conhece o mundo como eu
conhe ç o . Não imagina a enorme quantidade de
concorrentes que há sempre aos lugares de primeira
categoria! Tive ocasião de ver bastante disso à volta
de Maple Grove . Havia uma prima de Mrs . Suckling,
Mrs . Bragge, que tinha uma infinidade de pedidos;
não havia ninguém que não estivesse desej oso de
entrar para sua casa, visto que ela fazia parte da
primeira sociedade. Imagine : velas de cera na sala da
aula! Que luxo, hem ! De todas as casas do reino, era
na de Mrs . Bragge que eu mais gostava de a ver.
- O coronel e Mrs . Campbell devem regressar a
Londres nos meados de Verão - disse Jane. - Tenho
de passar algum tempo com eles ; com certeza hão-de
querer ver-me lá. Depois é que terei provavelmente o
gosto de dispor de mim própria. Mas por enquanto
não queria de maneira alguma que Mrs . Elton se
incomodasse a colher informações.
- Incomodar-me ! Compreendo os seus escrúpulos;
receia dar-me maçada; mas o que eu lhe garanto,
minha querida Jane, é que os Campbells não terão
mais interesse por si do que eu. Amanhã ou depois
es creverei a Mrs . Partridge , encarregando-a de
procurar qualquer coisa aceitável.
- Muito obrigada, mas eu preferia que não lhe
falasse no assunto. Enquanto não chegar a ocasião,
não desej o dar incómodos a ninguém .
- Mas, minha querida filha, a ocasião aproxima-se;
estamos quase em Abril; Junho, ou mesmo Julho, estão
à port a , e temos todo esse negócio por resolver.
Realmente , acho graça à sua inexperiênci a ! Um
emprego digno de si e conforme os desejos dos seus
amigos, não é coisa que apareça todos os dias , nem se

310
EMA

obtém de um momento para o outro; verdade, verdade,


temos de começar desde j á as indagações .
- Desculpe, minha senhora, mas não é essa a
minha intenção; pessoalmente, não pretendo faze-las
e lamentaria que os meus amigos as fizessem. Não
tenho receio algum de estar muito tempo sem emprego,
quando eu vir que a ocasião é oportuna. Em Londres
há agências onde se obtém rapidamente resposta a
todos os anúncios ; são agências para a venda, não de
carne humana, mas de intelecto humano.
- Oh! minha querida! . . . Carne humana! Que ideia!
Se se refere ao tráfico de escravos , creia que Mr.
Suckling foi sempre , de certo modo, partidário da
abolição.
- Não me referia ao comércio de escravos -
replicou Jane; - asseguro-lhe que me referia apenas
ao tráfico de preceptoras . Se bem que o crime daqueles
que o sustentam sej a incomparavelmente menor, a
extrema infelicidade das vítimas não sei se será menor
que a dos escravos . Mas eu quero unicamente dizer
que há agências de anúncios e que, dirigindo-me a
uma delas , não tenho dúvidas de conseguir, em pouco
tempo, qualquer coisa que sirva.
- Qualquer coisa que sirva! - repetiu Mrs . Elton.
- Isto é, conforme a fraca ideia que faz de si própria,
não é verdade? Eu sei que é muito modesta, mas j á os
seus amigos não ficarão satisfeitos se a Jane aceitar
qualquer colocação que lhe ofereça apenas uma posição
subalterna e vulgar, numa família que não viva em
determinada esfera ou que não estej a em contacto com
os meios distintos.
- A senhora é muito amável ; mas todas essas
grandezas me são indiferentes . Não tenho grande
interesse em viver com os ricos; acho que teria mais
mortificações, pois sentiria mais o contraste . Uma
família respeitável é tudo quanto exijo.
- Eu sei, eu sei; qualquer coisa lhe servia; mas eu
sou um pouco mais exigente e estou certa de que os
bondosos Campbells hão-de estar a meu lado . Com os
seus talentos, a Jane tem o direito de viver num meio

311
JANE A USTEN

elevado. Só os seus conhecimentos musicais lhe dão


jus a ditar as suas condições, a ter tantos aposentos
quantos desej ar, e a exigir que a considerem da família;
isto é . . . eu não sei . . . Se tocasse harpa, podia fazer tudo
isso, sem dúvida alguma; mas canta tão bem . . . sim,
de facto creio que, mesmo sem a harpa, podia exigir o
que quisesse. Portanto, deve ter e terá uma colocação
honrosa e confortável antes de os Campbells virem,
ou eu não terei mais descanso.
- Estou certa de que tão honroso e confortável
emprego - disse Jane - me serviria às mil mara­
vilhas ; no entanto, é muito seriamente que lhe digo
que, por enquanto, nada quero . Estou-lhe extrema­
mente grata, Mrs . Elton, estou muito obrigada a todos
os que se interessam por mim, mas, com franqueza,
não desej o que se dê qualquer passo enquanto não
chegar o Verão . Pretendo conservar-me onde estou e
como estou, por mais dois ou três meses .
- E u também estou s eriamente resolvida -
replicou Mrs . Elton - a fazer todo o possível para
que nem a mim nem aos seus amigos passe desperce­
bida qualquer colocação realmente vantajosa que
apareça.
E continuou neste estilo, sem que coisa alguma a
fizesse calar, até que Mr. Woodhouse entrou na sala;
a sua vaidade encontrou então uma variante e Ema
ouviu-a dizer, sempre no mesmo tom de voz :
- Aí vem o meu velho cavaleiro andante . . . Vej a a
delicadeza dele em vir antes dos outros homens! Que
pessoa tão simpática ! Creia que gosto muito dele .
Admiro sobretudo aquele requintado cavalheirismo à
moda antiga; agrada-me muito mais do que essa
liberdade moderna, que muitas vezes me enfastia. Mas
gostava que ouvisse os galanteios que este bom Mr.
Woodhouse me dirigiu durante o j antar. Oh! creia que
cheguei a recear que o meu caro esposo tivesse ciúmes.
Julgo que o bom velho tem por mim uma certa
predilecção; até reparou no meu vestido. Que tal o
acha? Foi Selina que o escolheu . . . bonito, não é? Mas ,

312
EMA

não lhe parece enfeitado de mais? Eu não gosto nada


de arrebiques . . . tenho-lhes até horror. Agora é que
tive de me ataviar um pouco mai s , porque todos
esperavam ver-me assim. S abe, uma noiva deve
sempre apresentar-se como noiva, mas as minhas
preferências vão todas para a simplicidade; um vestido
simples é muito mais elegante que um vestido cheio
de adornos complicados . Mas eu sei que estou em
minoria; pouca gente há que saiba avaliar a simpli­
cidade num vestido; para a maior parte das pessoas ,
a ostentação e os arrebiques são tudo. Tenciono passar
esta guarnição para o meu outro vestido de lhama
branca. Acha que fique bem?
Estavam todos os convivas novamente reunidos na
sala, quando apareceu Mr. Weston. Voltara a casa,
j antara à pressa e, assim que se despachou, partiu
para Hartfield. Os que mais confiança tinham na sua
vinda a horas do j antar haviam esperado de mais por
ele, para que agora se não sentissem surpreendidos;
mas mesmo assim houve grande alegria. Mr. Wood­
house estava agora quase tão satisfeito de o ver,
quanto ficara aborrecido ao princípio. John Knightley
apenas manifestava um pasmo mudo. Que um homem
que podia ter ficado sossegadamente em casa depois
de um dia de trabalho em Londres, saísse novamente
e fizesse um percurso de meia milha, para ir para casa
doutro homem, no desej o de passar o tempo na
companhia de várias pessoas, até à hora de deitar, e
terminar o dia no meio de cortesias e de ruído, era
uma circunstância que chocava deveras Mr. John
Knightley. Um homem que não parava desde as oito
da manhã e que podia estar agora a descansar; um
homem que se fartara de falar e que podia agora estar
silencioso -, um homem que andara no meio da
multidão e que podia estar agora sozinho ! . . . Já se viu
alguém abandonar o sossego e o conchego da sua
lareira para afrontar uma noite fria de Abril e ir buscar
o convívio de outros? . . . Ainda haveria uma desculpa
se e l e , com um simples sinal, levas se a e s p o s a
novamente para c a s a ; mas, p e l o contrário , a sua

313
JANE A USTEN

chegada, em vez de interromper a reunião, foi antes


um motivo para que ela se prolongasse mais. John
Knightley olhava para ele com espanto ; depoi s ,
encolheu o s ombros e disse para consigo:
«Nem mesmo dele esperava uma coisa destas» .
Mr. Weston, entretanto, sem ter a mínima suspeita
da indignação que provocara, feliz e alegre como de
costume, e usando do direito de atrair a si todas as
atenções, direito conferido por um dia passado fora de
casa, prodigalizava a todos as suas amabilidades ; e
depois de ter respondido às perguntas que a esposa
lhe fazia quanto ao seu j antar, afirmando-lhe que
nenhuma das solícitas instruções que ela dera aos
criados havia sido esquecida, depois de transmitir a
todos as novidades que trazia, apressou-se a fazer uma
comunicação de carácter familiar, que, embora
especialmente feita a Mrs . Weston, ele não tinha a
menor dúvida de que interessaria sobremaneira a
todos os que se achavam na sala. Entregou à mulher
uma carta: era de Frank e dirigida a ela; cruzara-se
com o correio e tomara a liberdade de a abrir.
- Lê-a, lê-a, - disse ele - que hás-de ficar
satisfeita; são apenas meia dúzia de linhas : não te
roubarão muito tempo . Podes lê-la a Ema.
As duas senhoras começaram a le-la ao mesmo
tempo, enquanto Mr. Weston, sorrindo-lhes ia dizendo,
em voz baixa, mas audível de todos:
- Então ! Sempre vem, hem ! Boas , noticias, não
acham? Que dizem a isso? Eu não lhes disse que
havíamos de o ter cá outra vez dentro de pouco tempo?
Ana, minha querida, não to disse sempre? Por que
não me acreditavas? . . . Vês? Deve estar em Londres
na próxima semana, o mais tardar. É que ela, quando
há qualquer coisa em vista, mostra-se tão impaciente
como os mais impacientes ; é muito provável que
estej am até lá amanhã ou sábado . Quanto à doença
dela, nada de novo, naturalmente. Mas é magnífico
termos Frank tão perto de nós . . . Eles tencionam
demorar-se algum tempo em Londres, e Frank passará
connosco parte desse tempo. Era precisamente isso o

314
EMA

que queria. Então? Boas notícias, não é verdade? Já


acabaste? Ema já leu tudo? Bem: ponhamos isso de
parte; havemos de falar a esse respeito em qualquer
outra ocasião. Agora vou só comunicar a nova aos
outros, sem mais comentários.
Mrs . Weston estava contentíssima; a alegri a
revelava-se-lhe no olhar e na loquacidade . Era feliz,
sabia que o era e sabia também que o devia ser. O seu
intenso regozij o patenteava-se sem rebuço; mas j á
Ema não podia manifestar-se tão abertamente. Estava
um tanto ocupada a analisar os s e u s próprios
sentimentos e procurando interpretar o seu grau de
agitação, que ela achava, de certo modo, excessivo.
Mr. Weston, contudo, excitado de mais para poder
ser bom observador e demasiado comunicativo para
precisar do estímulo dos outros, ficou muito satisfeito
com o que ela disse, mas não se demorou a conversar
com Ema: afastou-se logo, para dar ao resto dos seus
amigos a alegre novidade, cuj o rumor já devia ter
percorrido toda a sala.
Ele tinha como certo que todos haviam de ficar
satisfeitos : por isso não contava que Mr. Woodhouse
e Mr. Knightley se não sentissem particularmente
encantados . Eram eles , depois de Mrs . Weston e de
Ema, os primeiros designados para receber a notícia;
em seguida, seria a vez de Miss Fairfax, mas esta
achava-se tão embebida em conversa com John
Knightley que teria sido pouco correcto interrompê-la;
e, como encontrasse a seu lado Mrs . Elton, a quem
nada retinha naquele momento a atenção, Mr. Weston
começou naturalmente por lhe comunicar logo a
novidade .

CAPÍTULO XXXV I

- Espero ter dentro de pouco tempo o prazer de


lhe apresentar o meu filho -disse Mr. Weston.

315
JANE A USTEN

Mrs . Elton, assaz disposta a subentender naquela


esperança um cumprimento dirigido a ela, sorriu
graciosamente .
- Suponho que terá ouvido falar num certo Frank
Churchill - continuou ele; - pois saiba que é meu
filho, embora não use o meu nome .
- Oh! j á sabia e terei muito prazer em o conhecer.
Estou certa de que Mr. Elton não se demorará a ir
visitá-lo; e ambos teremos muito gosto em o ver no
presbitério.
- E muito amável ! Frank, terá grande satisfação
nisso, sem dúvida . Ele deve chegar a Londres na
próxima semana, se não antes. Soubemo-lo, por uma
carta dele recebida hoj e . Encontrei o correio esta
manhã e como visse uma carta com a letra de meu
filho, apressei-me a abri-la . . . embora não fosse dirigida
a mim . . . mas para Mrs . Weston. Sabe, é com ela que
Frank mais se corresponde; a mim raramente escreve.
- Então abriu a carta que era dirigida a sua
mulher? . . . Mr. Weston! (com Urf} sorriso afectado) não
posso deixar de protestar . . . E realmente um pre­
cedente perigosíssimo ! Oxalá que os seus amigos lhe
não sigam o exemplo . . . Palavra que, se é isso o que me
espera, nós, as mulheres casadas , temos de nos pôr ao
alto ! Oh! Mr. Weston, nunca acreditaria numa coisa
dessas da sua parte!
- Ah! Nós, os homens, somos detestáveis . Acon­
selho-a a que tome cuidado, Mrs . Elton. Mas, voltando
à carta . . . diz ela . . . meia dúzia de linhas, escritas à
pressa, só para nos dar a notícia . . . diz a carta que eles
tencionam ir brevemente para Londres por causa de
Mrs . Churchill . . . ela passou todo o Inverno muito mal
e acha que Enscombe é muito frio para a sua saúde . . .
e dali partirão para o Sul, pouco tempo depois.
- Vêm do Yorkshire , não? Ens combe fica no
Yorkshire, não fica?
- Fica, e a cerca de 190 milhas de Londres. É uma
distância considerável !
- Realmente é considerável; são mais sessenta e
cinco milhas do que de Maple Grave a Londres. Mas ,

316
EMA

que é a distância para pessoas ricas , Mr. Weston? . . . O


senhor havia de ficar espantado, se ouvisse falar das
viagens de meu cunhado, Mr. Suckling . . . É possível
que não me acredite . . . mas a verdade é que ele e Mr.
Bragge vão a Londres e voltam duas vezes por semana,
utilizando quatro cavalos.
- A maior dificuldade da viagem de Enscombe a
Londres - disse Mr. Weston - está em que Mrs .
Churchill, pelo que depreendemos, é com sacrifício que
deixa o seu sofá uma semana consecutiva. Frank, na
sua última carta, dizia que ela se queixava de estar
fraca de mais para poder ir para a cama sem ser nos
braços dele e do marido ! Isto, como vê , revela um alto
grau de fraqueza . . . Mas agora está tão impaciente por
chegar a Londres que se resigna a dormir duas noites
no caminho. É isto o que Frank nos diz textualmente .
De facto as senhoras de hábitos delicados têm uma
compleição muito especial, Mrs . Elton; pode ter a
certeza do que lhe digo.
- Não , não estou de acordo consigo . Eu tomo
sempre o partido do meu sexo, isso é verdade; mas
nesse ponto encontra o senhor em mim um adversário
terrível. E, no entanto, estou sempre pronta a defender
as mulheres . . . e digo-lhe mais : se soubesse o que Selina
pensa a respeito de se dormir nas estalagens, não se
admiraria de que Mrs . Churchill fizesse todos os
sacrifícios para o evitar. Selina diz que tem horror a
tal coisa . . . E eu creio que adquiri também um pouco
dos seus escrúpulos . Ela, quando viaja, leva sempre
lençóis; acho uma excelente precaução . Mrs . Churchill
não faz o mesmo?
- Pode estar certa de que Mrs . Churchill faz tudo
o que todas as senhoras finas costumam fazer. Mrs .
Churchill não fica atrás de nenhuma outra senhora
no que respeita a . . .
Mrs . Elton interrompeu-o vivamente, dizendo :
- Oh ! Mr. Weston não me compreendeu bem .
Selina não é nenhuma senhora fina, creia. Não ponha
isso na ideia!

31 7
JANE A USTEN

- Ah ! não? Nesse caso não serve de modelo para


Mrs . Churchill, que é das senhoras mais distintas que
eu conheço .
Mrs . Elton j á começava a pensar que tinha andado
m al , desenganando tão espontane amente o seu
interlocutor. Não estava de modo algum nos seus
planos deixar crer que a irmã não era uma senhora
fina; talvez que houvesse conveniência em manter essa
suposição . Estava ela considerando a maneira como
poderia retratar-se, quando Mr. Weston disse:
- Mrs . Churchill não está em muito boas relações
comigo, como deve supor;· · mas isso é uma questão
inteiramente entre nós . E muito amiga de Frank e,
portanto, não posso dizer mal del a . Além dis s o ,
encontra-se doente , se b e m que, na verdade, essa
doença dependa exclusivamente dela. Não digo isto a
toda a gente, Mrs . Elton, mas eu não acredito muito
na doença de Mrs . Churchill.
- Se ela está realmente doente, por que não vai
para Bath, Mr. Weston? Para Bath ou para Clifton . . .
- Meteu-se-lhe n a cabeça que Enscombe é frio de
mais para ela. Mas a verdade, suponho eu, é que ela
está farta da terra. A sua permanência lá já dura há
mais tempo do que das outras veze,s, de maneira que
ela agora precis a de mudança . E um sítio muito
isolado; muito pitoresco, mas muito isolado .
- Ah! como Maple Grove, talvez . . . Não há terra
mais isolada que Maple Grove . Só se vêem imensos
campos à roda! Parece que estamos sequestrados de
todo o bulício . . . no mais completo isolamento . E
naturalmente Mrs . Churchill não tem s aúde nem
disposição como Selina para apreciar esse isolamento . . .
O u talvez não possua recursos espirituais suficientes
para suportar a vida de campo . . . Tenho dito sempre
que esses recursos nunca são demasiados para uma
mulher. Quanto a mim, dou graças a Deus por não me
faltarem e poder assim viver completamente inde­
pendente .
- Frank esteve cá em Fevereiro, durante quinze
dias.

318
EMA

- Lembro-me de mo terem dito . Quando cá voltar


encontrará um acréscimo à sociedade de Highbury. . .
Isto é , s e posso considerar-me um acréscimo . . . Talvez
que ele nem sequer tenha ouvido falar de mim.
Isto era um convite demasiado flagrante para um
cumprimento ; e Mr. Weston apressou-se a dizer
graciosamente:
- Oh, minha querida senhora! Só a senhora podia
admitir essa possibilidade. Não ouvir falar de si ! . . .
Creio que as cartas que Mrs . Weston ultimamente lhe
tem e s crito pouco m ai s contêm que não s ej am
referências a Mrs . Elton .
Cumprido o seu dever de cortesia, tornou ao filho.
- Quando Frank daqui saiu, - continuou ele -
era completa a incerteza quanto ao dia em que cá
poderia voltar; por i s s o as notíci as de hoj e s ã o
duplamente bem-vindas . Eram absolutamente ines­
peradas; isto é, eu sempre tive uma forte convicção de
que ele voltaria cá cedo. Tinha a certeza de que havia
de surgir qualquer circunstância favorável . . . mas
ninguém me acreditava. Tanto ele como Mrs . Weston
estavam horrivelmente desanimados . Como poderia,
ele arranj ar maneira de vir? Quem lhe garantia que
os tios consentiriam em dispensá-lo outra vez? . . . e
assim por diante. Mas eu sempre tive o pressentimento
de que havia de s obrevir alguma coisa que nos
benefici a s s e ; e assim sucedeu, como vê. Tenho
observado, Mrs . Elton, através da vida, que, quando
as coisas vão mal num mês, se corrigem no mês
seguinte.
- Isso é verdade, Mr. Weston, é a pura verdade.
Era exactamente o que eu costumava dizer a um certo
cavalheiro que me cortej ava em solteira; quando as
coisas não corriam bem, quando não iam com a rapidez
que convinha à sua impaciência, ele começava a
desesperar, dizendo que se passaria o mês de Maio e
nós não envergaríamos as vestes cor de açafrão do
himeneu ! Oh! o trabalho que tive para desfazer tão
negras ideias e incutir-lhe disposições mais alegres !
A carruagem . . . muitos contratempos tivemos com a

319
JANE A USTEN

carruagem! . . . Uma manhã, lembro-me bem, ele veio


ter comigo cheio de desespero . . .
Nesta altura deteve-se, interrompida por u m leve
ataque de tosse, e Mr. Weston aproveitou logo a
oportunidade para dizer:
- Referiu-se a Maio . . . Maio é precisamente o mês
que recomendaram a Mrs . Churchill, ou que ela
própria escolheu, para passar em qualquer outra terra
menos fria que Enscombe, isto é, em Londres. E por
isso que temos a agradável perspectiva de receber
frequentes visitas de Frank durante a Primavera . . .
exactamente a estação que teríamos preferido para
isso; os dias são maiores, a temperatura amena, tudo
nos convida a passear e numa há calor demasiado para
fazermos movimento . Quando ele cá esteve da outra
vez , saímos o mais que pudemos; mas o tempo esteve
sempre chuvoso, nublado, tristonho. Sabe, estava-se
em Fevereiro, e por isso não pudemos fazer metade
do que tencionávamos. Agora já haverá tempo. Será
uma festa completa; e, Mrs . Elton, não sei se esta ânsia
de o vermos, se esta expectativa de ele chegar hoj e ou
amanhã, de um momento para o outro, constitui ou
não motivo de maior felicidade do que se realmente j á
cá o tivéssemos . Eu penso assim; penso que é essa a
disposição de espírito que nos oferece mais alegria.
Espero que simpatize com meu filho; mas não espere
ver nele um prodígio . . . Têm-no geralmente na conta
de um rapaz insinuante, mas não o julgue um prodígio.
Mrs . Weston tem por ele uma grande ternura, o que,
como deve calcular, me é extremamente grato. Na
opinião dela não há ninguém que o iguale.
- E eu asseguro-lhe, Mr. Weston, que tenho muito
poucas dúvidas de que a minha opinião lhe sej a
decididamente favorável . Tenho ouvido tantas
referências em abono de Mr. Frank Churchill . . . Ao
mesmo tempo, devo observar que não sou daquelas
pessoas que se guiam pela cabeça dos outros; tenho
por costume guiar-me pela minha. Desde já o previno
de que julgarei o seu filho consoante a impressão que
ele me produzir. Não uso de lisonja.

320
EMA

Mr. Weston parecia pensativo .


- Creio - disse ele, decorridos alguns instantes
- que não fui muito severo com Mrs . Churchill. Se
ela realmente está doente, lamentaria ter sido injusto;
mas a verdade é que há certos traços no seu carácter
que me impedem de falar dela com a clemência que
eu desej aria. Mrs . Elton não ignora, por certo , as
relações que há entre mim e a família, nem a forma
como me trataram ; pois, aqui para nós, as culpas
devem atribuir-se todas a ela. Foi ela a instigadora. A
mãe de Frank nunca teria sido desconsiderada como
foi, se não fosse ela. Mr. Churchill é orgulhoso; mas o
seu orgulho não é nada comparado ao da mulher: o
seu orgulho é um orgulho pacífico, sereno, cortês, que
não ofende ninguém e que apenas faz dele, até certo
ponto, um fraco com o seu tanto de impertinente . Mas
o orgulho dela é feito de arrogância e insolência! E o
que nos dispõe mais a não lho perdoar é que ela não
pode ter quaisquer pretensões a origem ou parentesco
ilustres. Não era ninguém quando casou: simples­
mente filha, de gente educada; mas desde que se aliou
aos Churchills , a sua basófia não tem conhecido
limites . Quanto ao resto, asseguro-lhe que não passa
de uma intrometida.
- C alcul e ! Deve ser uma coisa irritante ! Tive
sempre horror a gente com pretensões. Maple Grove
contribuiu bastante para que eu criasse aversão por
pessoas assim; conheço lá uma família desse género .
E tão cheia de prosápia que meu cunhado e minha
irmã não podem ver essa gente sem se sentirem
enfastiados ! A descrição que me fez de Mrs . Churchill
recordou-me logo essa família. São uns tais Tupmans,
que foram para lá residir há pouco tempo; são de
origem modesta, mas dão-se ares de pessoas impor­
tantes e arrogam-se um pé de igualdade com as
famílias mais respeitáveis do lugar. Há ano e meio,
quando muito, que eles se estabeleceram em West
Hall ; e quanto à fortuna de que desfrutam, adqui­
riram-na ninguém sabe como. Vieram de Birmingham,

321
JANE A USTEN

que, como sabe, não é terra que se recomende muito,


Mr. Weston . Temos pouca fé em Birmingham. Foi
sempre minha impressão que há qualquer coisa de
tenebroso só no nome. Mas, com respeito aos Tupmans,
nada mais se sabe de positivo, embora se suspeite de
muitas coisas . E, contudo, a j ulgar pela maneira como
se apresentam , consideram-se evidentemente do
mesmo nível de meu cunhado, Mr. Suckling, que, por
acaso, é um dos seus vizinhos mais próximos. Isto é
péssimo . Mr. Suckling, que reside há onze anos em
Maple Grove, cujo domínio j á fora do pai . . . pelo menos
assim o julgo . . . tenho quase a certeza de que o velho
Mr. Suckling já tinha efectuado a compra antes de
morrer . . .
Nesta altura foram interrompidos . Serviam o chá,
e Mr. Weston, como tivesse dito o que pretendia,
aproveitou a oportunidade para se afastar.
Tomado o chá, Mr. e Mrs . Weston e Mr. Elton
sentaram-se a jogar as cartas com Mr. Woodhouse.
Os cinco convivas restantes ficaram entregues aos seus
próprios recursos, e Ema sentiu dúvidas de que se
des empenhas sem bem do papel ; com efeito, Mr.
Knightley parecia pouco disposto a conversar, Mrs .
Elton não encontrava ninguém que quisesse pres­
tar-lhe as atenções a que ela se j ulgava com direito, e
Ema encontrava-se num estado de espírito que a fazia
desej ar silêncio.
Mr. John Knightley mostrou-se mais conversador
que o irmão. Tinha de partir no dia seguinte ao
amanhecer; e, dirigindo-se a Ema, disse:
- Bem, Ema: creio que não é preciso dizer mais
nada a respeito dos pequenos; tem a carta de sua irmã,
onde julgo que estej a tudo minuciosamente exposto.
A minha missão é muito mais simples do que a dela e
provavelmente um pouco diferente ; tudo o que eu
tenho a pedir-lhe é que não lhes dê mimos de mais,
nem os sobrecarregue com remédios .
- Espero dar inteira satisfação a ambos ,- disse
Ema - pois farei tudo quanto estiver em meu poder

322
EMA

para que eles se sintam contentes. Isto é o que Isabella


pretende, j ulgo eu; e para haver contentamento não
são precisos remédios nem indulgência excessiva.
- Se vir que eles se tornam maçadores, mande-mos
para casa outra vez.
- Isso é muito provável . . . Acha possível, não?
- Espero que, se se tornarem muito barulhentos
para seu pai, mo mande dizer . . . ou mesmo se lhes
servirem de estorvo, no caso de as visitas continuarem
a aumentar como tem sucedido ultimamente .
- A aumentar! . . .
- Evidentemente; deve ter notado que de h á seis
meses para cá os seus hábitos se têm modificado
bastante .
- Têm-se modificado ! . . . Não acho !
- Não há dúvida que a Ema leva mais vida de
sociedade do que levava até aqui. O dia de hoje é uma
prova disso. Aqui estou eu que vim apenas por um dia
e logo a encontro comprometida com um j antar de
cerimónia! Dantes, quando é que uma coisa destas ou
parecida acontecia? O número de vizinhos vai
aumentando e a Ema vai-se relacionando mais com
eles. Ainda há pouco, todas as cartas que escreveu a
Isabella faziam referências a divertimentos recentes:
j antares em casa de Mr. Cole ou bailes na Coroa. A
diferença está em que Randalls só por si é que faz
tudo isso.
- Sim, - disse o irmão, vivamente - Randalls é
que é a causa disso tudo .
- Muito bem . . . E como não é provável, suponho
eu, que Randalls passe a exercer menos influência do
que até aqui, parece-me muito possível, Ema, que
Henry e John lhe sirvam por vezes de embaraço . Se
assim for, unicamente lhe peço que mos mande .
- Não, - exclamou Mr. Knightley - não é essa a
solução; nesse caso, que vão para Donwell. Vagar não
me há-de faltar.
- Palavra de honra - interveio Ema - que me
divertem! Gostaria de saber quantos foram, de todos

323
JANE A USTEN

os meus numerosos divertimentos, aqueles em que


qualquer dos senhores não tomou parte também, e a
razão por que supõem faltar-me vagar para cuidar
dos garotos . Esses espantosos compromissos a que me
tenho prendido . . . quais têm sido eles? Um j antar com
os Coles e um baile proj ectado, que nunca chegou a
realizar-se. Eu percebo-o . . . - acrescentou ela, olhando
para Mr. John Knightley e abanando a cabeça - a
satisfação que lhe proporcionou a sua boa fortuna de
se encontrar aqui com tantos amigos ao mesmo tempo,
é grande de mais para passar despercebida. Mas o
senhor - disse, voltando-se para Mr. Knightley -
que sabe quão raramente me conservo mais de duas
horas ausente de Hartfield, por que prevê para mim
essa vida de divertimentos? Não posso compreender.
E quanto aos meus queridos sobrinhos, devo dizer-lhe
que, se a tia Ema não tivesse tempo para cuidar deles,
não creio que passassem melhor com o tio Knightley,
que se ausenta de casa durante cinco horas, enquanto
ela se ausenta uma . . . e que, quando está em casa, ou
se entrega à leitura ou às suas contas .
Mr. Knightley parecia fazer esforços para não rir;
mas conseguiu-o sem grande dificuldade, visto que
Mrs . Elton se lhe dirigia nesse momento.

CAPÍTULO XXXV II

Um curto momento de serena reflexão foi suficiente


a Ema para definir a natureza da sua agitação ao
receber a notícia referente a Frank C hurchill .
Depressa se convenceu de que não era por si que
experimentava toda aquela apreensão, todo aquele
embaraço; era por ele. Os seus sentimentos para com
Frank tinham-se, na realidade, reduzido a um grau
tão insignificante que não valia a pena falar-se deles;
mas se ele, que, sem dúvida alguma, fora dos dois o
que mais profundamente enamorado se mostrara,

324
EMA

viesse com o mesmo entusiasmo afectivo com que havia


partido, seria uma situação verdadeiramente penosa.
Se dois meses de separação lhe não houvessem esfriado
a paixão. Ema antevia numerosos perigos e dissabores:
por ele e por ela própria, todos os cuidados seriam
pouco s . E l a não queria enredar-se de novo num
problema sentimental; seria, pois, do seu dever evitar
qualquer incitamento da parte dele .
O seu maior desej o era poder impedir que ele se
declarasse abertamente. Que desagradável remate à
sua amizade de agora! . . . E , contudo, no íntimo, ela
não podia deixar de antever algo de decisivo . Tinha o
pressentimento de que a Primavera não findaria sem
trazer uma crise, um acontecimento, qualquer coisa
que viesse alterar a sua tranquilidade presente .
Não tardou muito, se bem que tardasse um pouco
mais do que Mr. Weston havia previsto, que ela se
visse habilitada a formar uma opinião acerca dos
s e ntimentos de Frank C hurchill . A família de
Enscombe não partiu para Londres tão cedo como se
supusera; mas , uma vez ali instalada, chegava Frank
pouco depois a Highbury. Em duas horas estava lá;
não podia andar mais depressa; e assim que ele chegou
a Hartfield, vindo de Randalls, pode Ema aplicar todas
as suas faculdades de análise e rapidamente deter­
minar até que ponto ele estava apaixonado e, por
consequência, até onde devia ela agir. Mareou o seu
encontro com a máxima cordialidade . Não se podia
pôr em dúvida o grande prazer que ele tinha de a ver.
Mas , quase no mesmo instante, sentiu Ema dúvidas
de que ele experimentasse o mesmo interesse de dois
meses atrás , de que conservasse por ela o mesmo grau
de ternura. Ema não deixava de o observar. Era bem
patente que já não estava tão apaixonado . A ausência,
provavelmente, aliada à convicção da indiferença por
parte dela, havia produzido este natural e desej ável
resultado.
Frank mostrava-se jovial e tão disposto a conversar
e a rir como dantes, parecia ter grande prazer em falar

325
JANE A USTEN

da sua última visita e recordar velhos episódios , sem


que denotasse o menor constrangimento. Mas não era
nesta calma aparente que Ema verificava a diferença
que lhe notara. Na realidade ele não estava calmo; a
sua alegria era evidentemente oscilante; no fundo
notava-se-lhe uma certa inquietação . Aquela viva­
cidade que mostrava não parecia ser a vivacidade que
lhe era própria. O que firmou o juízo de Ema foi o
facto de ele apenas se demorar lá um quarto de hora,
sob o pretexto de ter mais visitas a fazer em Highbury.
Que tinha visto um grupo de velhos conhecidos na
rua; que não parara, pois não queria demorar-se, mas
j ulgava que eles ficariam contrariados se os não fosse
visitar, e, por muito desejo que tivesse de se demorar
em Hartfield, tinha, contudo, de se ir embora.
Ema não tinha a menor dúvida de que ele já não
estava tão apaixonado; mas a verdade é que nem a
sua espectaculosa alegria, nem a sua pressa lhe
pareciam sintomas de uma perfeita cura. Sentia-se
mais inclinada a ver em Frank um certo terror de que
a sua ascendência sobre ele se renovasse e uma
discreta resolução de não se confiar mais a ela.
No decurso de dez dias foi esta a única visita de
Frank Churchill . Manifestou muitas vezes a intenção
ou o desej o de voltar, mas houve sempre impedimento.
A tia não gostava que ele a deixasse, tal era a desculpa
que dava em Randalls. Se ele era sincero, se realmente
fez tentativas para ir, devia-se inferir dai que a
mudança de Mrs . Churchill para Londres não dera
nenhuma vantagem aos seus nervos . Que ela estava
doente, era uni facto; pelo menos, ele declarara-se,
em Randalls , convencido disso. Embora houvesse
muita fantasia à mistura, não tinha dúvidas de que o
seu estado de saúde era muito mais precário do que
fora seis meses antes . Não acreditava que o seu mal
fosse de tal natureza que os cuidados e a medicina
não pudessem curá-lo, ou pelo menos que ela não
tivesse ainda muitos anos de vida diante de si; mas o
cepticismo do pai não conseguia convencê-lo de que

326
EMA

todos o s m a l e s de que a tia s e queixava eram


meramente imaginários, ou que ela era tão forte como
fora sempre.
Depressa se verificou que Londres não era lugar
que conviesse a Mrs . Churchill. Os seus nervos
estavam continuamente irritados e, ao fim de dez dias,
chegou a Randalls uma carta do sobrinho, em que este
comunicava ter havido alteração nos plano s . Iam
transferir-se imediatamente para Richmond. Mrs .
Churchill tinha-se confiado ao talento de um médico
eminente da localidade e gostara muito do sítio. Tinha
alugado uma casa magnificamente mobilada, situada
em esplêndido local , e esperava-se que a doente
beneficiasse bastante com a mudança.
E m a soube que Frank e s tava extremamente
satisfeito com esta modificação e que parecia apreciar
grandemente a vantagem de ter diante de si dois meses
em que estaria perto dos seus amigos, pois a casa fora
alugada pelos meses de Maio e Junho. Informaram
Ema de que ele mostrava agora a maior confiança em
poder vir a Randalls bastantes vezes, quase tantas
quantas desej asse.
Era evidente o contentamento de Mr. Weston .
Estava encantado; nada mais poderia desej ar. Agora
tinha Frank finalmente perto de si. Que eram nove
milhas para um rapaz? Uma hora a cavalo. Andaria
sempre para cá e para lá. A este respeito, a diferença
que havia entre Richmond e Londres era a mesma
que havia entre ver o filho a todo o momento e não o
ver nunca. Dezasseis milhas . . . ou antes, dezoito . . . devia
haver bem dezoito milhas até Manchester Street . . .
eram um obstáculo sério. Mesmo que o rapaz pudesse
vir, o dia ia-se todo só na ida e na volta. Não havia
vantagem alguma em o ter em Londres; o resultado
era o mesmo que se estivesse em Enscombe . Mas
Richmond estava a uma distância que facilitava as
comunicações . Mais perto não podia ser.
A uma coisa deu esta mudança imediatamente foros
de certeza - o baile na Coroa. Não tinha sido posto
de parte, mas havia-se reconhecido inútil fixar um
dia . Agora havia de realizar-se; recomeçaram os

32 7
JANE A USTEN

preparativos e, pouco depois de os Churchills se terem


transferido para Richmond, recebeu-se uma carta de
Frank, dizendo que a tia e sentia muito melhor e que
ele não tinha dúvidas de que brevemente poderia
passar vinte e quatro horas com eles, pedindo-lhes
que marcassem a data mais próxima que lhes fosse
possível.
O baile de Mrs . Weston ia tornar-se uma realidade.
Poucos dias se interpunham entre a j uventude de
Highbury e a felicidade .
Mr. Woodhouse resignara-se. A época do ano aligei­
rava-lhe o mal . Maio sempre era melhor do que Feve­
reiro. Convidou-se Mrs . Bates a passar a noite em
Hartfield, fez-se a devida prevenção a James, e Mr.
Woodhouse apenas disse com uma certa vivacidade :
- Oxalá nada aconteça aos meninos Henry e John,
enquanto a querida Ema estiver ausente.

CAPÍTULO XXXV III

Nenhum contratempo s obreveio que a d i a s s e


novamente o baile . Aproximava-se o d i a , até que,
finalmente, chegou; e após uma manhã de ansiosa
espera, Frank Churchill, em pessoa, fazia a sua
entrada em Randalls , antes da hora do j antar; estava
tudo salvo.
Ainda não houvera segundo encontro entre ele e
E m a . Testemunhá-lo-ia a sala da Coro a ; mas a
verdade é, que um encontro a sós teria sido melhor do
que no meio de muita gente . Mr. Weston tinha sido
tão insistente a pedir a Ema que fosse cedo, que se
demorasse o menos possível, a fim de lhe dar a sua
opinião quanto à apresentação e conforto das salas,
antes de os outros chegarem , que ela não pode
recusar-se; por isso, teria que passar alguns momentos
na companhia do rapaz . Foi buscar Harriet e partiram
ambas para a Coroa , onde chegaram pouco depois da
família de Randalls .

328
EMA

Frank Churchill parecia ter estado ansiosamente


à espera e, embora falasse pouco, revelava no olhar a
esperança de uma noite deliciosa. Puseram-se todos a
percorrer o recinto do baile e a ver se tudo estava como
devia. Pouco depois reuniram-se-lhes os ocupantes de
uma carruagem que acabava de chegar e cujo rodar
causou, a princípio, a Ema, grande surpresa.
«Tão cedo ! » ia ela a dizer; mas não tardou a verificar
que se tratava de velhos amigos, que, como ela, iam
com o fim de prestar assistência a Mr. Weston. E, como
os tivesse seguido de perto uma carruagem com vários
primos, convidados com a mesma lisonjeira insistência
a comparecerem mais cedo para igual fim, Ema chegou
a recear que daí a pouco se reunisse ali metade dos
convidados para um exame prévio.
Compreendeu então que não era apenas com o seu
gosto que Mr. Weston contava, e reconheceu que gozar
da confiança e intimidade de uma pessoa que tinha
tantos íntimos e confidentes não era, evidentemente,
um motivo para se envaidecer. Ema gostava dos seus
modos franc o s , mas achava que o seu carácter
beneficiari 51 , s e u s a s s e de um pouco menos de
franqueza. E a benevolência para com todos e não a
amizade concedida indistintamente que fazem de um
homem aquilo que ele deve ser. Era assim que ela
compreendia um homem .
Os circunstantes não se cansavam de andar de um
lado para o outro, a analisar tudo e a tecer repetidos
elogios; por fim, nada mais restando que ver, formaram
uma espécie de semicírculo em volta do fogão . Todos
observaram , cada um a seu modo, enquanto não
surgiram outros assuntos de conversação, que, embora
se estivesse em Maio, um bom fogo, à noite , não era
desagradável .
Ema viu que não era por culpa de Mr. Weston que
o número de conselheiros privados não era ainda
maior. Estes tinham parado à porta de Mrs . Bates a
oferecer a sua carruagem, mas a tia e a sobrinha
tinham combinado ir com os Eltons .
Frank, de pé, ao lado de Ema, não estava um
momento quieto ; notava-se nele um desassossego

329
JANE A USTEN

próprio de um espírito preocupado. Olhava para todos


os lados, ia até à porta, parecia atento ao ruído das
outras carruagens , ou impaciente por que começasse
o baile, ou receoso de permanecer muito tempo ao pé
de Ema.
Falou-se de Mrs . Elton.
- Creio que não deve demorar-se - disse Frank.
- Tenho grande curiosidade de ver Mrs . Elton; tenho
ouvido falar tanto dela . . . Acho que não deve tardar.
Ouviu-se uma carruagem, e ele fez menção de ir à
porta. Mas , voltando logo atrás, disse:
- Esquecia-me de que não os conheço . Nunca vi
Mr. Elton, nem a esposa. Não me compete ir ao seu
encontro .
Nesse momento apareceram Mr. e Mrs . Elton e
então foi um esfuziar de sorrisos e amabilidades .
- E Miss Bates e Miss Fairfax? . . . - exclamou Mrs .
Weston, olhando para todos os lados. - Julgávamos
que viessem convosco.
A falta era remediável; a carruagem voltou atrás
para as ir buscar. Ema estava ansiosa por conhecer a
opinião de Frank acerca de Mrs . Elton, qual a
impressão produzida nele pela estudada elegância do
seu traj o e pelos seus sorrisos afectados . Ele, por seu
lado, estava-se preparando para formar uma opinião:
depois de feitas as apresentações, não cessava de a
observar com toda a atenção .
Minutos depoi s , a carruagem estava de volta.
Alguém falou de chuva.
- Vou ver se há chapéus de chuva, meu pai -
disse Frank; - não devemos esquecer-nos de Miss
Bates .
E saiu. Mr. Weston ia segui-lo, mas Mrs . Elton
deteve-o, para lhe dar a sua opinião a respeito do filho;
e começou tão de chofre que o rapaz não podia deixar
de a ouvir, embora se não afastasse a passo muito
vagaroso.
- Um belo rapaz, na verdade , Mr. Weston ! O
senhor lembra- se de eu lhe ter dito , com toda a
franqueza, que não calaria a minha opinião . . . Pois com

330
EMA

prazer lhe digo que simpatizo muito com o seu filho .


Pode acreditar no que afirmo . Nunca lisonjeio. Acho-o
um bonito rapa z , e, quanto aos seus modos, são
precisamente como aprecio . . . um verdadeiro gentle­
man, sem afectação nem pedantismo. O senhor sabe
que eu tenho profunda antipatia pelos pedantes . . . um
verdadeiro horror ! Nunca os tolerámos em Maple
Grove. Nem Mr. Suckling nem eu tínhamos contem­
plações com gente dessa; e às vezes dizíamos coisas
bem duras ! Selina, que é tolerante até à fraqueza,
suportava-os muito melhor.
Enquanto lhe falou do filho , a atenção de Mr.
Weston não se desviou um momento do que ela dizia;
mas quando a conversa enveredou para Maple Grove,
recordou-se logo de que tinha de atender às senhoras
que acabavam de chegar, e, com um sorriso dos mais
graciosos , afastou-se.
Mrs . Elton, então, voltou-se para Mrs . Weston .
- Não pode deixar de ser a nossa carruagem com
Miss Bates e Jane ! O nosso cocheiro é tão despachado
e os cavalos são tão rápidos ! . . . Estou convencida de
que andamos, mais depressa que ninguém . . . Que
prazer eu tenho em emprestar a carruagem a uma
pessoa amiga! Sei muito bem que a senhora também
não teve dúvidas em oferecer a sua, mas creia que era
absolutamente desnecessário; eu tomo conta delas
sempre que for preciso.
Miss Bates e Miss Fairfax, acompanhadas dos dois
homens, entravam nesse momento na sala; e Mrs .
Elton pareceu j ulgar-se, tanto como Mrs . Weston, no
dever de as ir receber. Os seus gestos, a alguém que
a observasse, como Ema, não podiam passar desper­
cebidos, mas as suas palavras, como as de toda a gente,
depressa foram abafadas pelo incessante fluxo de Miss
Bates , que entrara a falar e, muitos minutos depois
de ter sido admitida no círculo reunido em volta do
fogão, ainda não terminara a sua arenga.
- Oh! muito obrigada, Não chove nada; não tem
importância . Eu por mim não me importo . Trago

331
JANE A USTEN

sapatos grossos . E Jane afirma . . . Oh! (nesta altura


entrava na sala) . Que bonito ! Está realmente muito
bonito ! Admirável ! . . . Muito bem ornamentado, sim,
senhor! Não falta nada; não imaginava uma coisa
destas E que bem iluminado ! . .. Jane, Jane, olha . . . já
viste alguma vez isto? Oh! Mr. Weston, o senhor, com
certeza, deve ter a lâmpada de Aladino . A boa Mrs .
Stokes não reconheceria a sua sala . . . Eu vi-a quando
vinha a entrar; estava parada à porta. «Oh ! Mrs .
Stokes» - disse eu . . . Mas não tive tempo para lhe
dizer o que queria.
Nisto, Mrs . Weston veio ao seu encontro :
- Muito obrigada, minha senhora! - Então como
está? Bem? Estimo, estimo ! Tinha tanto receio de que
estivesse com dores de cabeça! Não era de admirar,
tão atreita como é a elas e com o trabalho que tem
tido . . . Creia que estou muito contente por saber que
está bem. Ah ! querida Mrs . Elton, estou-lhe muito
grata pela carruagem! Chegou mesmo a tempo; Jane
e eu já estávamos prontas . Não fizemos esperar os
cavalos um momento . É um veículo muito confortável!
Oh! Mrs . Weston, aceite os nossos agradecimentos pela
sua oferta; mas Mrs . Elton j á havia tido a amabilidade
de mandar um bilhete a Jane, de contrário teríamos
aceitado. Imaginem: duas ofertas no mesmo dia! . . . Que
excelentes vizinhos ! Era o que eu dizia a minha mãe:
«Palavra, mamã . . . » . Ah! muito obrigada, minha mãe
está esplêndida. Foi para casa de Mr. Woodhouse. Fiz
com que ela levasse o xaile . . . as noites não estão muito
quentes . . . Sabe, o xaile novo, grande . . . presente de
Mrs . Dixon, quando se casou. Que bondade a dela em
se lembrar de minha mãe ! Foi comprado em Wey­
mouth, sabe . . . ao gosto de Mr. Dixon. Havia ainda três,
diz Jane, que os fizeram hesitar durante algum tempo.
O coronel Campbell preferia um xaile cor de azeitona.
Minha querida Jane , tens a certeza de que não
molhaste os pés? Chovia pouco, mas eu tenho tanto
medo . . . Se não fosse Mr. Frank Churchill . . . e depois a
passadeira para pormos os pés . . . Nunca esquecerei a

332
EMA

sua extrema amabilidade . Ah! Mr. Frank Churchill,


devo dizer-lhe que os óculos de minha mãe nunca mais
tiveram outro desarranjo; o perno não tornou a cair.
Minha mãe fala-me muitas vezes da sua bondade .
Não é verdade, Jane? Não costumamos muitas vezes
falar de Mr. Frank Churchill? . . . Ah ! ali está Miss
Woodhouse . . . Como passou, minha querida Miss
Woodhouse? Vou bem, muito obrigada . . . Parece que
estamos num reino de fadas ! . . . Que transformação !
Sei que não precisa de elogios (e olhou Ema com
ternura) . . . não me ficaria bem . . . Mas a verdade é que
Miss Woodhouse parece realmente . . . Que tal acha o
penteado de Jane? A menina é um bom juiz ! Pois foi
ela sozinha que o fez . Penteia-se maravilhosamente !
Estou certa de que não há cabeleireiro em Londres
que seja capaz . . . Olha! o doutor Hughes . . . e Mrs. Hughes! . ..
Tenho que ir fal ar-lhe s . Um momento . . . C o m o
passou? . . . Como passou? . . . Bem, muito obrigada . . . Isto
está um encanto, não acham? E o nosso Mr. Richard?
Ah ! lá está ele. Não o incomodem . . . está melhor a
conversar com as senhoras mais novas do que comigo . . .
Passou bem, Mr. Richard? Vi-o n o outro dia, quando
passou a cavalo, à minha porta . . . Olha! Mrs . Otway e
o bom Mr. Otway . . . e também Miss Otway e Miss
Carolina. Tantas pessoas amigas ! . .. E também cá estão
Mr. George e Mr. Artur! Então, como passaram? Estão
todos, bons? Eu vou bem, muito obrigada! Nunca estive
melhor. Parece-me que oiço uma carruagem . . . Quem
será? Provavelmente os Coles . . . Realmente. é, delicioso
estar no meio de tanta gente amiga! E que belo fogo ! . . .
Estou quase torrada . . . Café, não, muito obrigada . . .
nunca tomo café . Prefiro uma pinga de chá, s e faz
favor . . . mas não é pressa. Oh! j á? Que delícia!
Frank Churchill, entretanto, voltara a ocupar o seu
posto ao lado de Ema; e esta assim que conseguiu
ver-se livre da tagarelice de Miss Bates , achou-se, por
acaso, ouvindo a convers a de Mrs . Elton e Miss
Fairfax, que estavam um pouco atrás dela. Frank
parecia pensativo; se ouvia ou não o que diziam, não
podia Ema afirmá-lo. Depois de muitos cumprimentos

333
JANE A USTEN

a Jane pelo seu vestido e pela sua elegância, cum­


primentos que eram recebidos com toda a calma e
naturalidade, Mrs . Elton esperava evidentemente que
a elogiassem também, pois que , além de muitas
perguntas do mesmo género, ouviam-se estas : «Que
lhe parece o meu vestido? . . . Que tal acha a guarnição?
Gosta do penteado que Wright me fez?» , a que lhe
respondiam com imperturbável polidez. Mrs . Elton
então disse:
- Em regra ninguém se preocupa menos com a
maneira de trajar do que eu . . . Mas em ocasiões como
esta, quando todos os olhares incidem sobre mim, e
também em atenção aos Westons . . . que não duvido
darem este baile principalmente em minha honra . . . acho
que não devo apresentar-me pior do que as outras. E a
verdade é que vejo poucasjóias além das minhas . . . Dizem
que Frank Churchill dança admiravelmente . . . Vamos a
ver se os nossos estilos condizem. Frank Churchill é
realmente um rapaz muito simpático. Gosto dele.
Nesse momento Frank começou a falar tão alto que
Ema não pode deixar de se convencer de que ele ouvira
os elogios que lhe faziam e não queria ouvir mais. Por
momentos, a voz das duas senhoras foi abafada, até
que, a determinada altura, em que Frank se calou, se
ouviu de novo, distintamente, a voz de Mrs . Elton.
Mr. Elton acabava de chegar j unto da esposa, que
exclamou :
- Ah ! sempre acabou por dar com o nosso escon­
derijo, hem? . . . Estava eu dizendo a Jane que o meu
amigo , a estas horas , andava intrigado à nossa
procura.
- Jane ! . . . - repetiu Frank Churchill, parecendo,,
surpreendido e contrariado ao mesmo tempo. - E
natural . . . Mas Miss Fairfax, segundo vejo, não vai
muito contra isto . . .
- Que lhe parece Mrs . Elton? - perguntou Ema,
em voz baixa.
- �ão me agrada.
- E muito ingrato !
- Ingrato? . . . Que quer, dizer? - replicou ele,
franzindo o sobrolho.

334
EMA

Depois, sorrindo, acrescentou:


- N ã o , não diga nada . . . Não quero s aber a
significação das suas palavras. Onde está meu pai?
Quando começamos a dançar?
Ema dificilmente o compreendia; achava estranhos
os seus modos . Frank afastou-se, à procura do pai,
mas voltou quase logo, acompanhado de Mrs . e Mr.
Weston. Quando os encontrou estava num estado de
grande perplexidade, que agora, na presença de Ema,
procurava disfarçar.
Acabava de ocorrer a Mrs . Weston a ideia de
convidar Mrs . Elton a abrir o baile, apesar de todos os
seus desejos de conceder a Ema essa distinção; mas
aquela, com certeza, não esperava outra coisa, e Ema
recebeu a notícia com estoicismo .
- E qual há-de ser o seu par? - perguntou Mr.
Weston. - Ela naturalmente espera que Frank a vá
convidar . . .
Frank voltou-se n o mesmo instante para Ema, a
lembrar-lhe a sua promessa; alegava desta maneira
que estava comprometido, e o pai não teve outro
remédio senão render-se. Mrs . Weston, então, tratou
de convencer o marido a que dançasse ele próprio com
Mrs . Elton, e a tarefa de Ema e de Frank foi ajudá-la
nos seus esforços, cujo êxito se não fez demorar muito .
Mr. Weston e Mrs . Elton abriram o baile, seguidos de
Mr. Frank Churchill e Miss Woodhouse. Ema teve de
se suj eitar a ficar em segundo plano relativamente a
Mrs . Elton, não obstante ter sempre considerado
aquele b aile como organizado especi almente em
atenção a si. Isto era quase o suficiente para a levar
a pensar em casar.
Desta vez era indubitável que Mrs . Elton gozava a
s atisfação completa da sua vaidade , pois embora
houvesse contado ter Frank Churchill por par, não
perdera com a troca. Mr. Weston não era inferior ao
filho . Todavia, a despeito deste contratempo, Ema
mostrava um sorriso de j úbil o , encantada com o
apreciável número de pares que se estavam formando
na sala e a noção das horas de desusada alegria que
tinha na sua frente . E stava mais contrariada por

335
JANE A USTEN

Mr. Knightley não dançar do que por qualquer outra


coisa. Ele estava ali, mas onde não devia estar: entre
os espectadores; devia estar a dançar e não, novo como
era, entre os maridos, pais e j ogadores de whist, que
fingiam divertir-se a ver o baile , enquanto não
resolviam ir entregar- se às delícias do j ogo ! E m
nenhum outro lado s e destacaria talvez tanto como
ali, onde se encontrava. A sua silhueta alta, forte,
desempenada, fazia tal contraste com as figuras obesas
e os ombros curvados dos cavalheiros idosos, que Ema
se j ulgou no dever de chamar para ele a atenção de
todos; e, a não ser o seu par, nenhum de todos aqueles
rapazes se podia comparar com Mr. Knightley. Deu
alguns passos para a frente, e esses passos foram o
suficiente para demonstrar a sua elegância e a graça
natural com que deveria dançar, se quisesse dar-se a
esse incómodo. Todas as vezes que Ema lhe atraía o
olhar, forçava-o a sorrir; mas; em geral, ele man­
tinha-se sério. Ela teria preferido que ele gostasse um
pouco mais de bailes e simpatizasse um pouco mais
com Frank Churchill. Muitas vezes parecia observá-la;
Ema não se envaideceria certamente com o que ele
pudesse pensar da sua atitude, mas também não tinha
receio de que ele a criticasse. Entre ela e o seu par não
havia o menor vislumbre de fiirt, ali só se patenteava
a mais franca e j ovial amizade . Não havia dúvida
alguma de que Frank Churchill pensava agora menos
nela do que antigamente .
O baile prosseguia animadamente. A solicitude e a
amabilidade de Mrs . Weston não eram em vão; toda a
gente parecia satisfeita, e os louvores, que raramente
se tecem antes de as festas terminarem, sucediam-se
agora, logo desde o início. Quanto a incidentes dignos
de nota, não foi aquele baile mais fértil do que
costumam ser todas as reuniões do mesmo género.
Um houve, porém, que despertou mais a atenção de
Ema. Para os dois últimos números de dança, Harriet
não encontrara par; era a única j ovem sentada. Até
então o número de cavalheiros igualara o das damas:
como se compreendia que agora houvesse uma senhora

336
EMA

sem par? . . . Mas o espanto de Ema não tardou a


desaparecer, ao ver Mr. Elton entre os espectadores.
Evidentemente que ele não iria convidar Harriet para
dançar, desde que pudesse evitá-lo; Ema estava
convencida de que ele não faria tal coisa; e esperava
a todo o momento vê-lo escapulir-se para a sala de
j ogo.
Isso, porém, não estava nos planos de Mr. Elton .
E ncaminho u - s e para o lado da s a l a em que s e
aglomeravam o s assistentes, falou a u m e a outro, e
deu alguns passos em frente deles, como que para
demonstrar a sua liberdade e a resolução de a manter.
Não deixou até de, por mais de uma vez, parar diante
de Miss Smith ou falar àqueles que estavam mais perto
dela. E m a , que naquele momento não dançava,
notou-o; vinha ela caminhando desde o fundo da sala
e, portanto, tinha ocasião de observar o que se passava
à volta; bastou-lhe, pois, voltar um pouco a cabeça
para ver tudo. Quando chegou a meio caminho, deixou
de ver Mr. Elton, porque o grupo de assistentes se
lhes interpunham; mas Mr. Elton estava tão perto
que ela pode ouvir, sílaba por sílaba, todo o diálogo
que ele então travou com Mrs . Weston. Reparou ainda
que a esposa, a pouca distância dele, não só o ouvia,
como também o incitava com significativos olhares . A
bondosa e afável Mrs . Weston tinha-se levantado e,
aproximando-se dele , dizia:
- Não dança, Mr. Elton?
Ao que este prontamente replicou :
- Com todo o gosto, Mrs . Weston, se quiser dançar
comigo .
- Eu? . . . Oh! não . . . Escolha um par melhor. Eu não
sei dançar.
- Se Mrs . Gilbert quiser, - volveu ele - terei
muito prazer nisso . . . Embora me considere já, até certo
ponto, um velho chefe de família e saiba muito bem
que os meus tempos de dançarino j á passaram, a
verdade é que teria imensa satisfação em dar umas
voltas com uma velha amiga como Mrs . Gilbert.

33 7
JANE A USTEN

- Mrs . Gilbert não dança, mas há uma menina


que está livre e que eu teria gosto em ver dançar . . .
Miss Smith.
- Miss Smith? . . . Ah ! não tinha reparado . . . A
senhora é muito amável . . . mas se eu não fosse j á um
velho chefe de família . . . Já não estou nos meus tempos,
Mrs . Weston. Queira desculpar . . . Em tudo o mais ,
estou inteiramente às suas ordens . . . mas . , quanto a
dançar, a minha época j á passou.
Mrs . Weston nada mais disse, mas Ema não teve
dificuldade em imaginar com que surpresa e desgosto
não teria Mrs . Weston voltado para o seu lugar.
Eis o que era Mr. Elton! O amável, o delicado, o
melífluo Mr. Elton ! Ema deitou um olhar em volta;
ele tinha-se aproximado de Mr. Knightley e parecia
disposto a entabular conversação com este, ao mesmo
tempo que trocava com a esposa um alegre sorriso de
entendimento.
Ema não sentiu mais vontade de olhar. Parecia ter
fogo dentro de si e receou que essa sensação se lhe
denunciasse no rosto .
Momentos depois testemunhava uma cena mais
agradável: Mr. Knightley conduzia Harriet pelo braço!
Nunca experimentara tamanha surpresa, raras vezes
tivera maior satisfação; sentia-se possuída de prazer
e gratidão, tanto por Harriet como por si própria, e
estava ansiosa por agradecer a Mr. Knightley a sua
resolução . Se estava a demasiada distância para se
fazer ouvir, o seu olhar falou eloquentemente na
primeira ocasião que se encontrou com o dele.
A sua maneira de dançar revelava-se exactamente
aquilo que ela supusera, isto é, perfeita; e a fortuna
que coubera a Harriet teria parecido excessiva, se não
se tivessem em conta as cruéis circunstâncias de pouco
ante s , assim como o irreprimido j úbilo que lhe
transparecia nas feições pela distinção que lhe era
concedida e de que ela tinha perfeitíssima noção. Nela
não era um desperdício: saltava e rodopiava com alegre
ligeireza, os lábios abertos em luminoso sorriso.

338
EMA

Mr. Elton havia-se retirado para a sala de jogo,


tendo estampada no rosto uma expressão de idiotia
(assim pareceu a Ema). Ela não o considerava tão
audacioso como a esposa, se bem que se lhe fosse
assemelhando: Mrs . Elton, em conversa com o seu par,
expunha-lhe em voz alta as suas impressões.
- Finalmente, - dizia ela - Knightley teve dó da
pobre Miss Smith ! . .. Tem muito bom coração !
Foi anunciada a ceia e o movimento geral começou.
A partir desse momento, até sentar-se à mesa e pegar
na colher, p o d e ouvir - s e M i s s B ates fa l ar s e m
interrupção:
- Jane, Jane, minha querida Jane, onde estás? . . .
Tens aqui a tua rameira . . . Mrs . Weston pede-te que a
ponhas. Ela diz que pode haver correntes de ar no
corredor, embora se tenham tomado todas as precau­
ções . . . aferrolhou-se uma porta . . . encheu-se tudo de
tapetes . . . Minha querida Jane, devias pôr a rameira!
Oh ! Mr. Churchill, que amabilidade a sua! . .. Com que
j eito lha pôs ! Muito obrigad a ! M agnífi co b aile ,
realmente ! . . . Sim, minha filha, fui num instante a
casa, como disse, para ajudar a avó a deitar-se, e voltei
sem que alguém desse pela minha falta. Saí sem dizer
palavra, como tu sabes. A avozinha estava muito bem
disposta; tinha passado um esplêndido serão com Mr.
Woodhouse, a conversar e a j ogar o gamão. Houve chá,
biscoitos, maças assadas e vinho, antes de ela se ir
embora; teve uma s orte e s p a n t o s a ao gamão e
perguntou muito por ti : quis s aber se te havias
divertido muito e quem eram os teus pares. «Üh! -
disse-lhe - eu não preveni Jane; deixei-a a dançar
com Mr. George Otway. Ela amanhã contar-lhe-á tudo;
o seu primeiro par foi Mr. Elton, mas agora não sei
quem será a seguir . . . talvez Mr. William Cox» .Oh! meu
caro senhor, que amabilidade a sua! Talvez haj a
alguém que precise mais d o seu auxílio do que e u . . .
Felizmente ainda posso bem. Mas o senhor é muito
amável ! Dar um braço a Jane e outro a mim ! . . . Espere,
espere . . . fiquemos um pouco mais para trás . . . Vai Mrs .
Elton a passar. Que elegante que está Mrs . Elton!

339
JANE A USTEN

Lindas rendas ! Agora podemos segui-la. Não h á


dúvida de que é a rainha da fe s t a ! Bem, cá estamos
no corredor . . . Olha que há aí dois degraus , Jane,
t,oma conta com os dois degraus ! Ah! não, só há um ..,.
E que e s t av a persuadida de que h avia doi s . E
esquisito ! E stava convencida de que havia dois , e ,
a fi n a l , n ã o h á s e n ã o u m . . . N u n c a vi n a d a tão
elegante e confortável ! Luzes por toda a parte ! . .. Mas
estava eu falando da avozinha, J arre . . . Houve um
p e q u e n o contrate m p o . As m a ç ã s a s s a d a s e o s
biscoitos são u m manj ar excelente, n ã o é verdade?
Pois, antes disso, foi servido um magnifico fricassé
de rim de vitela com e s p argo s , mas o bom Mr.
W o o d h o u s e rej e i t o u - o por l h e p ar e c e r que o s
espargos estavam mal cozido s . Sabes que nada há
de que a avozinha mais goste do que de rim de
vitela . com e s p argos . . . Por i s s o , ficou um pouco
contrariada; mas nós combinámos não falar nisso a
ninguém, para que não chegue aos ouvidos de Miss
Woodhouse . . . Havia de ficar muito aborrecida! -
Oh! que lindo que isto está ! . . . E stou maravilhada !
Nunca j ulguei ver coisa tão bonita! Que elegância! . . .
Que profusão ! Nunca vi nada como isto . . . Bem, onde
nos sentamos? Onde havemos de nos sentar? Em
qualquer p arte , contanto que Jane não ap anhe
correntes de ar. Aqui onde estou não há perigo . Ah !
acha melhor desse lado? Bem, não digo que não,
Mr. Churchill . . . Mas não prefere esse lugar para si?
C omo queira . . . Tudo o que o senhor faça nesta casa
não pode deixar de estar bem. Querida J arre, como
havemos de nos lembrar de todas estas iguarias para
contar à avó? E sopa também ! . . . Meu Deus ! Eu não
queria ser das primeiras a ser servida, mas ela
cheira tão bem que não r e s i s t o à t e n t a ç ã o de
aceitar . . .
Ema não teve ocasião de falar com Mr. Knightley
senão depois da ceia; quando ambos voltaram à sala
de baile, os seus olhos convidaram-no irresistivelmente
a aproximar-se dela para lhe agradecer. Ele mos­
trou-se veemente em reprovar o procedimento de

340
EMA

Mr. Elton; este tinha sido imperdoavelmente grosseiro;


e os modos de Mrs . Elton também receberam o seu
quinhão de censura.
- Eles têm em mira ferir outra pessoa além de
Harriet - disse Mr. Knightley. - Ema, por que é que
eles são seus inimigos?
Olhou-a com significativo s orris o e como não
recebesse resposta, acrescentou:
- Acho que ela não tem que estar zangada consigo,
por muitas razões de queixa que o marido tenha. A
Ema não diz nada a isto, naturalmente; mas confesse
que quis casá-lo com Harriet . . .
- Quis, - retorquiu Ema - e por isso eles não me
perdoam.
Ele abanou a cabeça, mas , ao mesmo tempo, sorriu
com indulgência e apenas disse:
- Não a censuro; deixo-a entregue às suas próprias
reflexões.
- Como pode confiar-me a tais aduladoras? Acha
que o meu espírito frívolo me diga alguma vez que
estou em erro? . . .
- Não o seu espírito frívolo, mas o seu espírito
sensato. Se um a leva a errar, estou certo de que o
outro a leva a reconhecer o erro.
- Confesso que, de facto, me enganei completa­
mente a respeito de Mr. Elton . Há nele qualquer coisa
de mesquinho que o senhor descobriu, mas que me
p a s s o u d e s percebi d a ; e, além di s s o , eu e s tava
convencida de que ele, amava Harriet. Foi uma tal
série de erros!
- Em recompensa da sua confissão, quero ter a
franqueza de lhe dizer que a escolha que a Ema tinha
feito para ele era melhor do que a que ele próprio fez .
Harriet Smith tem fil}aS qualidades que faltam em
absoluto a Mrs. Elton. E uma rapariga sem pretensões,
simples e franca. Qualquer homem de gosto e bom
senso preferi-la-ia indiscutivelmente a uma Mrs .
Elton . Achei Harriet muito mais sociável do que
esperava.
Ema estava verdadeiramente encantada . Nesta

341
JANE A USTEN

altura foram interrompidos pela voz de Mr. Weston,


que convidava todos novamente a dançar.
- Vamos, Miss Woodhouse, Miss Otway, Miss
Fairfax . . . que estão a fazer? Vamos, Ema, dê o exemplo
a essas senhoras ! Estão todas com preguiça? Parece
que adormeceram . . .
- Eu estou pronta para quando for preciso disse Ema.
- C o m quem vai dançar? - perguntou M r .
Knightley.
Ela hesitou um momento e depois respondeu:
- Consigo, se me convidar . . .
- Quer dar-me essa honra? - disse ele, ofere-
cendo-lhe a mão.
- Com todo o gosto ! O senhor demonstrou ple­
namente que sabe dançar e, bem vê, não nos ligam
laços tão fraternos que tornem isso impróprio.
- Laços fraternos? . . . Ah! isso não !

CAPÍTULO XXXIX

Esta leve explicação com Mr. Knightley propor­


cionou a Ema considerável prazer. Foi esta uma das
agradáveis recordações do baile que a deliciaram na
manhã seguinte , enquanto passeava pelo parque.
Folgava imenso que ambos tivessem chegado a tão
perfeito entendimento quanto aos Eltons , que as suas
opiniões, quer acerca do marido, quer acerca da
mulher, fossem tão afins; e, além disso, as elogiosas
referências que ele fizera a Harriet, as concessões que
estabelecera em seu favor, eram motivo de particular
regozij o . A impertinência dos Eltons, que, por alguns
momentos, ameaçara estragar-lhe a noite, fora origem
de muita s atisfação ; e Ema antevia ainda outro
resultado feliz - a cura da paixão de Harriet. Em
face da maneira como Harriet se referira ao assunto,
antes de saírem do baile, Ema não podia deixar de
albergar fortes esperanças . Dir-se-ia que os olhos se

342
EMA

lhe abriam de repente, para lhe permitirem ver que


Mr. Elton não era o homem superior que ela julgara.
A febre desaparecera, e Ema poucos receios alimen­
tava agora de que novas ilusões fizessem pulsar mais
o agitado coração da amiga . C ontava com a per­
versidade dos Eltons para suprir a disciplina de
sentimentos que porventura viesse a faltar Harriet
chegada à razão, Frank Churchill menos apaixonado,
e Mr. Knightley mais benévolo para com ela, - que
delicioso Verão se oferecia a Ema!
Não contava ver Frank Churchill nessa manhã. Ele
tinha-lhe dito que não teria o prazer de parar em
Hartfield, visto que tencionava regressar a casa por
volta do meio-dia. E Ema não se lamentou por esse
facto.
Depois de ter reflectido sobre estas questões, depois
de as ter examinado e ponderado devidamente ,
dispunha-se a entrar em casa, j á com o pensamento
voltado para os cuidados a prestar ao dois garotos,
assim como ao avô, quando o grande portão de ferro
se abriu e entraram duas pessoas que ela nunca
esperara ver juntas - Frank Churchill com Harriet
pelo braço! Harriet, nem mais nem menos ! . . . Bas­
tou-lhe um curto instante para se convencer de que
alguma coisa de extraordinário havia sucedido .
Harriet estava pálida e parecia assustada, e Frank
procurava animá-la. O portão e a porta principal não
distavam vinte j ardas um do outro ; depressa se
encontraram todos três no vestíbul o , e H arriet,
desfalecida, deixou-se cair numa cadeira.
Uma rapariga que desmaia tem forçosamente de
voltar a si; há perguntas que precisam de resposta e
explicações a dar. Estes incidentes são muito inte­
ressantes, mas a perplexidade que eles causam não
pode durar muito tempo . Em poucos minutos , Ema
ficou ao facto de toda a história.
Miss Smith e Miss Bickerton, outra pensionista de
Mrs . Goddard, que também havia estado no baile,
tinham ido dar um passeio e haviam tomado por uma
estrada, a de Richmond, que, embora b a stante

343
JANE A USTEN

frequent a d a , fora causa de susto para as duas


raparigas. A cerca de meia milha de Highbury, a
estrada fazia de súbito um cotovelo e era densamente
sombreada por ulmeiros plantados de ambos os lados;
era, em larga extensão, um sítio muito solitário.
Tinham as duas j ovens ali entrado , quand o , de
repente, avistaram a pequena distância, num campo
de relva, ao lado da estrada, um acampamento de
ciganos . Uma criança que estava à espreita dirigiu-se
para elas, a pedir; e Miss Bickerton, extremamente
assustada, deu um grande grito e, dizendo a Harriet
que a seguisse, trepou por uma ribanceira, saltou uma
pequena sebe e, cortando por um atalho, voltou, a fugir,
p ara Highbury . M a s a pobre Harriet não pode
acompanhá-la; tinha tido muitas cãibras em conse­
quência de ter dançado muito e, à primeira tentativa
que fez para subir o talude, as dores voltaram-lhe tão
insuportáveis que a deixaram sem forças . E foi neste
estado, agravado pelo terror, que ela se viu obrigada
a ficar ali .
Como os vagabundos se teriam comportado, se as
raparigas houvessem sido mais corajosas, era per­
gunta de difícil resposta; mas a um tal convite para o
ataque não puderam resistir. Harriet foi logo assaltada
por meia dúzia de crianças, capitaneadas por uma
mulher corpulenta e por um adolescente, todos eles
em grande alarido e de olhar exigente, embora não de
palavras. Harriet, cada vez mais assustada, prome­
teu-lhes logo dinheiro e, tomando-o da bolsa, deu-lhes
um xelim e pediu-lhes que não exigissem mais, porque
nesse caso seria um abuso. Achando-se, finalmente,
capaz de andar, embora devagar, afastou-se; mas o
seu terror e a sua bolsa eram demasiado tentadores,
e depressa se viu seguida, ou antes, cercada, por todo
o bando, que lhe pedia mais dinheiro.
Fora nesta situação que Frank Churchill a tinha
encontrado, ela desculpando-se, cheia de medo, eles
assediando-a, insolentes. Graças ao mais feliz dos
acasos, a partida de Frank havia sofrido um atraso,
que lhe permitira socorrê-la naquela crítica emer­
gência. A amenidade da manhã tinha-o impelido a

344
EMA

fa z e r p arte do caminho a p é , devendo tomar a


carruagem uma ou duas milhas além de Highbury;
acontecera, porém, que, na véspera, tinha pedido uma
tesoura emprestada a Miss Bates e, como se tivesse
esquecido de a restituir, fora obrigado, nessa manhã,
a parar à porta da solteirona e a entrar por alguns
minutos . Demorara-se, pois, mais do que tencionava,
e, como ia a pé, os ciganos só o viram quando ele j á
estava junto deles. O terror que a mulher e o rapaz
haviam causado a Harriet experimentaram-nos eles
então . Frank havi a - o s deixado completamente
amedrontado s , enquanto H arriet, agarrando-se
vivamente a ele e quase sem poder falar, mal tivera
forças para chegar a Hartfield, e só aí recuperara a
presença de espírito. Fora ideia de Frank trazê-la para
Hartfield: não se lembrara de nenhum outro lugar.
Eis, em resumo, o que acontecera, a j ulgar pelo
relato de Frank e pelo de Harriet, assim que esta
recobrou os sentidos e a fala. Ele não se atreveu a
demorar-se mais do que o tempo indispensável para
se certificar de que a rapariga ia melhor; com todos
estes atrasos não podia perder nem mais um minuto.
E , depois de Ema se ter comprometido a tranquilizar
Mrs . Goddard a respeito de Harriet e a avisar Mr.
Knightley de que havia ciganos nas vizinhanças ,
Frank partiu, não sem ter recebido os mais calorosos
agradecimentos que Ema entendeu por bem dar-lhe
em nome da amiga.
Uma aventura como esta, em que se achavam
envolvidos um bonito rapaz e uma linda rapariga, não
podia deixar de sugerir certas ideias ao espírito mais
indiferente e ao cérebro mais positivo. Assim o pensava
Ema, pelo menos . Qual o linguista, qual o gramático,
qual o matemático, até, que, tendo presenciado o que
se passara com Harriet, tendo-a visto aparecer pelo
braço de Frank e tendo ouvido o relato feito por ambos,
não reconheceria ter-se congregado um certo número
de circunstâncias que tornariam os dois j ovens
particularmente interessantes um ao outro? Quanto
mais não deveria então entregar-se a toda a espécie

345
JANE A USTEN

de conj ecturas e previsões um espírito imaginativo


como o de Ema, ainda por cima alicerçado em reflexões
anteriores !
E r a um caso bem extraordi nári o ! Não h avi a
memória de j amais ter sucedido coisa semelhante a
qualquer menina da terra; nem maus encontros, nem
qualquer outra peripécia do mesmo género. E, agora,
logo isso acontecia a uma pessoa, à hora precisa em
que outra passava por aquele sítio para a socorrer! . . .
D e facto, era um caso bem extraordinário! E Ema,
conhecedora como era do favorável estado de espírito
em que cada um deles então se encontrava, mais
impressionada estava. Ele, em vias de se curar da sua
paixão por ela; Harriet, quase restabelecida da sua
loucura por Mr. Elton. Tudo parecia prometer as mais
interessantes consequências . Era impossível que do
incidente não resultassem vantagens para ambos .
Nos curtos momentos em que conversara com
Frank, enquanto Harriet permanecia meio incons­
ciente , ele, ao contar-lhe o terror desta última, a sua
ingenuidade, a ansiedade com que se lhe agarrara ao
braço, mostrara-se sensibilizado e, ao mesmo tempo,
divertido com o facto ; e, fi n almente , depois da
narrativa de Harriet, exprimira, nos mais veementes
termos, a sua indignação pelo detestável procedimento
de Miss Bickerton.
Entretanto, as coisas deviam seguir o seu curso
natural : desnecessário seria impeli-las ou auxiliá-las.
Ema não daria um passo, nem faria a menor sugestão.
Não : estava farta de interferências . Nenhum mal
havia em formar um plano, um mero plano inofensivo.
Não P !l ssava de um simples desejo; mas além disso
.
não ina.
A primeira ideia de Ema foi conservar seu pai na
ignorância do que se tinha passado, cônscia como
estava das apreensões que o facto lhe causaria, mas
depressa reconheceu que era impossível guardar
segredo . Daí a meia hora era o caso sabido de toda
Highbury. Era um acontecimento de molde a atrair a
curiosidade de todos os tagarelas - os novos e os
criados ; não tardou, pois, que toda a j uventude e toda

346
EMA

a criadagem da terra desfrutassem da felicidade de


comentar a terrível novidade. Os ecos do baile da noite
anterior eram abafados pela notícia da presença dos
ciganos . O pobre Mr. Woodhouse andava assustado e,
como Ema havia previ s t o , não s e tranquili zou
enquanto lhe não prometeram nunca mais se aven­
turarem além das árvores do parque . Foi-lhe de um
certo conforto ver o cuidado com que, durante o resto
do d i a , todos perguntavam por e l e e por M i s s
Woodhouse (os seus vizinhos sabiam que ele apreciava
essas atenções), assim como por Miss Smith; e era
com o máximo prazer que ele respondia que, passavam
todos sofrivelmente, ao que Ema não opunha objecção,
apesar de não ser absolutamente verdade, pois que
ela se encontrava perfeitamente e Harriet não estava
pior do que ela. Para filha de um tal homem, a sua
saúde era incrivelmente boa, pois mal sabia o que era
uma indisposição; e se ele não inventasse doenças para
ela, Ema nunca figuraria em nenhuma das suas
cartas .
Os ciganos não esperaram pela acção da justiça;
trataram de fugir a toda a pressa. As meninas de
Highbury já podiam dar novamente os seus passeios
sem receio algum, e o incidente depressa ficou reduzido
a uma questão de secundária importância, excepto
para Ema e seus sobrinhos : na imaginação de Miss
Woodhouse continuava o caso a ocupar o seu lugar, e
Henry e John pediam todos os dias à tia que lhes
contasse a história de Harriet e dos ciganos, corri­
gindo-a implacavelmente, se ela se afastava, por pouco
que fosse, da narrativa original .

CAP Í TULO XL

Poucos dias depois do incidente a que acabámos de


nos referir, Harriet foi uma manhã a casa de Ema,
com um pequeno embrulho na mão, e, depois de se
sentar, disse, com modo hesitante:

34 7
JANE A USTEN

- Miss Woodhouse . . . se tem vagar para me ouvir . . .


h á uma coisa que e u queria dizer-lhe . . . É uma espécie
de confissão . . . Depois, sabe, ficarei mais aliviada . . .
Ema ficou bastante surpreendida, mas convidou-a
a expor o que tinha para dizer. Havia um ar de
gravidade nos modos de Harriet que lhe davam a
entender, tanto como as suas p al avras , algo de
extraordinário.
- Entendo que é meu dever - continuou ela não
fazer segredo consigo. Sob determinado aspecto, mudei
muito, e é de toda a conveniência que o saiba. Não
pretendo dizer mais que o indispensável. . . Estou
bastante envergonhada por haver cedido como cedi . . .
Creio que me compreende.
- Sim, - disse Ema - julgo compreendê-la.
- Como pude eu, durante tanto tempo iludir-me ! . . .
- exclamou Harriet com veemência. - Estava louca!
Agora não vejo nele nada de extraordinário. Pouca
diferença me faria encontrar-me com ele . . . se bem
que, a ter que me encontrar com um deles, preferisse
que fosse com ela . . . Verdade, verdade, desde que possa
evitá-lo, evito-o . . . mas , pelo menos, não tenho invej a
à mulher; hoje, não a admiro nem lhe tenho inveja,
como tive : reconheço que é muito bonita e elegante,
mas acho que tem mau génio e é antipática. Nunca
me hei-de esquecer dos olhares dela naquela noite.
Contudo, afirmo-lhe, Miss Woodhouse, que não lhes
desej o mal . Não: que sej am felizes; isso não me dará
o menor desgosto . E para que se convença de que
falo verdade, vou agora mesmo destruir . . . o que eu
devia ter destruído há muito tempo . . . o que nunca
devia ter guardado . . . sei-o bem . (E ao dizer estas
palavras corou). Mas agora vou destruir tudo . . . e faço
empenho em que sej a na sua presença, para que
vej a como me tornei razoável. É capaz de adivinhar
o que contém este embrulho? - perguntou, com um
ar significativo.
- Não faço a menor ideia. Ele deu-lhe, porventura,
alguma coisa?

348
EMA

- Não . . . não posso chamar a isto presentes; mas


são coisas a que eu dava muito valor.
Pegou no pacote , e Ema leu nele as seguintes
palavras : «Os meus tesouros mais preciosos», o que
lhe excitou ao máximo a curiosidade. Harriet desatou
o embrulho, enquanto Ema olhava para aquilo com
impaciênci a . Cuidados amente envolto em papel
prateado, via-se um cofrezinho de porcel ana de
Tunbridge, que Harriet abriu: estava cheio de algodão;
mas, além do algodão, Ema apenas viu um pequeno
retalho de tafetá.
- Olhe, - disse Harriet - lembra-se?
- Não, não me lembro !
- Valha-me Deus ! Parece impossível que se tenha
esquecido do que se passou nesta mesma sala com
este bocado de tafetá, de uma das últimas vezes que
aqui nos encontrámos ! Foi poucos dias antes de eu
adoecer da garganta . . . nas vésperas da chegada de
Mr. e Mrs . John Knightley . . . julgo até que na noite
anterior. Não se lembra de ele se ter cortado num dedo
com o seu canivete novo e de a menina lhe ter
recomendado que lhe pusesse uma tira de tafetá?
Como não o tinha e sabia que eu o possuía, pediu-me
que lho desse; por isso cortei um bocado do meu e
dei-lho; mas como ele era grande de mais, Mr. Elton
cortou um bocadito mais pequeno e ficou algum tempo
a brincar com o que sobej ara, antes de mo restituir.
Foi assim que eu, por patetice, me lembrei de fazer
deste retalho um tesouro . . . Pu-lo de lado na intenção
de nunca o usar e de vez em quando entretinha-me a
contemplá-lo como um obj ecto raro .
- Minha querida H arriet! - exclamou Em a ,
cobrindo o rosto com a mão e levantando-se d e repente
- faz com que eu me envergonhe de mim própria mais
do que posso suportar. Se me lembro disso ! . . . Ai ! agora
lembro-me realmente . . . de tudo, excepto de que a
Harriet tinha conservado essa relíquia . . . Não o soube
senão agora; mas de ele se haver cortado, de eu o
aconselhar a que pusesse o tafetá e de dizer que não
tinha nenhum, recordo-me muito bem . . . Oh! os meus

349
JANE A USTEN

pecados, os meus pecados! Tenho-os em abundância


na algibeira! Um dos meus estúpidos ardis . . . Tinha
razões para corar de vergonha durante o resto da
minha vida!
E sentando-se de novo, acrescentou : .
- Bem, continue . . . Que mais?
- E Miss Woodhouse tinha realmente algum
tafetá? Sempre supus que não o tivesse . . . disse-o com
tanta naturalidade . . .
- E a Harriet que guardou esse pedaço de tafetá
por amor dele ! . . . - disse Ema, voltando a si daquele
estado de perturbação, entre admirada e divertida.
E, intimamente, acrescentou:
«Deus me valha! Quando é que eu teria a ideia de
guardar em algodão um pedaço de pano deixado por
Frank Churchill ! . . . Nunca fui mulher para isso ! » .
- Aqui e s t á - tornou H arri e t , voltando ao
cofrezinho - uma coisa ainda mais valiosa . . . isto é,
que foi mais valiosa, visto que lhe pertenceu de facto,
o que não sucedia com o tafetá.
E m a estava ansiosa por ver aquela s uprema
relíquia. Era a ponta de um velho lápis, mas já sem
plumbagina.
- Isto foi, de facto, dele - disse Harriet. - Não se
recorda de uma manhã . . . Não, creio que não. Mas uma
manhã . . . esqueci-me completamente do dia . . . Talvez
fosse numa terça ou quarta-feira antes daquela célebre
noite. Foi numa manhã em que ele precisou de tomar
qualquer nota a respeito do fabrico de cervej a . Mr.
Knightley tinha-lhe falado na cervej a de abeto, e ele
lembrou-se de tomar nota disso; mas o lápis em que
ele pegou tinha já tão pouca plumbagina que depressa
se gastou, e Miss Woodhouse então emprestou-lhe
outro . Ele deixou o primeiro em cima da mesa, por j á
não servir para nada, mas e u não tirava d e lá o s olhos
e assim que pude apanhei-o e, desde então, nunca mais
me separei dele.
- Recordo-me disso - exclamou Ema; - recor­
do-me perfeitamente de termos falado a respeito da

350
EMA

cervej a de abeto. Mr. Knightley e eu dizíamos que a


apreciávamos muito, e Mr. Elton parecia resolvido a
h abitu ar- s e a e l a . . . Lembro-me perfeitament e !
Espere . . . Mr. Knightley estava d e pé, justamente onde
eu agora estou, não é verdade? Tenho uma ideia de
que se encontrava neste menmo sítio.
- Ah! isso não sei; não me lembro. É estranho,
mas a verdade é que não me lembro. Do que me recordo
é que Mr. Elton estava sentado pouco mais ou menos
onde eu estou agora.
- Bem, continue .
- Oh! era só isto. Não tenho mais nada para lhe
mostrar, nem para lhe dizer . . . excepto que vou agora
deitar tudo para o lume e que desej o que o veja.
-Minha pobre Harriet! E sentia-se realmente feliz
em guardar essas bagatelas?
- Sim, sentia; que ingénua era. Mas agora até sinto
vergonha, e o meu desejo seria esquecê-lo com a mesma
facilidade com que queimo estas ninharias. Sei que
me ficava mal guardar quaisquer lembranças suas
depois de ele se ter casado; sabia isso . . . mas não tinha
a coragem necessária para me desfazer delas .
- Mas, Harriet, para quê queimar o tafetá? Quanto
ao pedaço de lápis nada tenho a dizer, mas o tafetá
ainda pode ter utilidade .
- Sentir-me-ei mais satisfeita queimando-o -
replicou Harriet. - Para mim tornou-se uma coisa
antipática. Quero desembaraçar-me de tudo . Aí vai !
Acabou-se Mr. Elton, graças a Deus !
«E quando principiará Mr. Churchill?» - pensou
Ema.
Depressa teve razões para supor que já havia
principiado e não deixou de acreditar que a cigana, se
bem que não tivesse predito a fortuna de Harriet,
tinha, no entanto, contribuído para ela . Cerca de
quinze dias depois do susto, tiveram ambas ocasião
de esclarecer o assunto, sem que o houvessem de
antemão preparado. Ema nesse momento não pensava
em tal coisa, o que mais valiosa tornou a informação

351
JANE A USTEN

que recebeu . Aconteceu que , no decurso de uma


conversa banal, disse:
- Bem, Harriet: quando se casar, cá estou eu para
a aconselhar.
E j á não pensava nas palavras que proferira,
quando, momentos depois, ouviu Harriet dizer, em
tom muito sério:
- Nunca me casarei .
Ema olhou para ela e logo notou o modo grave da
amiga; e após alguns segundos de indecisão sobre se
devia ou não dar-se por achada, retorquiu:
- :r;Junca se casará? . . . É uma nova resolução?
- E uma resolução que j amais alterarei .
E Ema, depois de outro momento de hesitação ,
volveu:
- Espero que não sej a por causa de . . . espero que
não sej a em atenção a Mr. Elton . . .
- Mr. Elton ! . . . - exclamou Harriet, indignada. -
Oh! não . . .
E Ema subentendeu logo as palavras que comple­
tavam a ideia:
«Ele é tão superior a Mr. Elton ! »
Desta vez deteve-se e m mais demoradas reflexões.
Devia calar-se? Devia deixar passar e fingir que não
suspeitava de nada? Mas se assim procedesse, não a
julgaria Harriet reservada ou zangada? Ou então, se
ela guardasse um silêncio absoluto, quem sabe se isso
não compeliria a amiga a pedir-lhe atenção para as
s u a s exc e s sivas lamúri a s ! E para prevenir tão
demasiada franqueza, esses frequentes diálogos em
que se discutiam esperanças e probabilidades, tomou
prontamente a sua decisão. Entendia que era mais
prudente procurar saber tudo quanto ela pretendia
saber. Uma atitude franca era sempre a melhor. Já
tinha de antemão determinado até que ponto a deveria
levar e achava vantajoso para ambas expor logo sem
rodeios o seu ponto de vista. Tomada esta decisão disse:
- Harriet, não tenho dúvidas quanto ao significado
das suas palavras . A sua resolução, ou antes, o seu

352
EMA

pens amento de nunca se casar, resulta da ideia


de que a pessoa que Harriet, porventura, prefere
estej a demasiado acima de si para a querer. Não é
assim?
- Oh! Miss Woodhouse, creia-me, eu não tenho a
pretensão de supor . . . não sou tão louca . . . Já é um
prazer para mim olhá-lo de longe . . . e lembrar-me da
sua imensa superioridade perante o resto do mundo,
e sentir por ele aquela gratidão e respeito que merece,
principalmente da minha parte.
- Não me surpreende, Harriet. O serviço que ele
lhe prestou é realmente de molde a entusiasmá-la.
- Serviço ! . .. Oh! foi um favor inesquecível! Basta
a lembrança do que eu senti naquele momento . . .
quando o via chegar . . . a sua nobre atitude . . . e a minha
angústia de pouco ante s ! Que mudança ! De um
momento para o outro, que mudança! Do mais atroz
desespero à mais completa felicidade ! . . .
- É muito natural; é natural e honroso. Sim, é
muito honrosa essa simpatia, essa gratidão; mas se
será ou não feliz na sua preferência, isso já está além
de todas as esperanças que eu lhe possa dar. Não a
aconselho a alimentar essa simpatia; não a incito a
deixar-se arrastar por essa inclinação. Considere bem
aquilo em que se mete. Talvez sej a mais prudente
reprimir os seus sentimentos enquanto é tempo : em
todo o caso não se deixe ir longe de mais, a não ser que
estej a convencida de que ele gosta de si. Observe-o
bem. Guie-se, pela sua atitude . Dou-lhe agora este
conselho, porque nunca mais lhe falarei no assunto.
Estou resolvida a não interferir em nada. Daqui em
diante nada mais saberei do caso. Que nenhum nome
passe pelos nossos lábios. Errámos muito; sej amos
agora cautelosas . Ele é-lhe, sem dúvida, superior, e é
aí que parece residir o obstáculo mais sério; mas,
Harriet, têm sucedido coisas mais espantosas, tem
havido casamentos mais disparatados. Entretanto,
tome cuidado consigo. Qualquer que sej a o desfecho,
a Harriet dá uma prova de bom gosto erguendo os

353
JANE A USTEN

olhos para ele; eu, sei dar-lhe o devido valor, mas


preferia que não se entusiasmasse de mais.
Harriet beij ou-lhe a mão, em silêncio e em sinal de
gratidão submissa. Ema sentia-se fortemente incli­
nada a ver naquele afecto um bem para a sua amiga.
O seu desejo era elevá-la e aperfeiçoá-la e, para isso,
devia empregar todos os esforços em evitar que ela se
aviltasse.

CAP Í TULO XLI

No meio desta série de proj ectos, esperanças e


aj uste s , b ateu Junho às portas de H artfield . A
Highbury não trouxe, de uma forma geral, mudança
alguma. Os Eltons continuavam falando da visita dos
Sucklings e do uso que fariam do barouche-landau, e
Jane Fairfax continuava em casa da avó . Como o
regresso dos Campbells da Irlanda fora mais uma vez
adiado, tendo sido para tal fixado o mês de Agosto, em
lugar do S. João, era provável que ela permanecesse
em Highbury mais dois meses; contanto que con­
segui s s e derrotar Mrs . Elton nas suas solícitas
actividades e salvar-se de uma situação, vantajosa,
sim, mas contrária aos seus desejos.
Mr. Knightley, que, por qualquer razão conhecida
apenas dele, tinha, desde o princípio, antipatizado com
Frank Churchill , nutria por este uma antipatia cada
vez maior. Começava a suspeitar nele uma atitude
dúbia com respeito a Ema. Que ele tinha Ema por
objectivo, era uma verdade indiscutível para muitos;
tudo parecia indicá-lo: as atenções de que a rodeava,
as insinuações do pai , o silêncio da madrasta, as
palavras, os modos, a discrição e a indiscrição, tudo
falava a mesma linguagem. Mas , enquanto alguns o
j ulgavam inclinado p ara Ema e esta o supunha
inclinado para Harriet, Mr. Knightley começou a
suspeitar nele certa tendência para formar conluio

354
EMA

com Jane Fairfax. Não podia compreendê-lo; mas a


verdade é que havia indícios de inteligência entre os
dois - pelo menos assim o pensava. - Por parte dele
indícios de admiração, que Mr. Knightley, desde que
os notara uma vez, não conseguia despir inteiramente
de significado; todavi a , não queria incorrer nos
mesmos erros de imaginação de Ema. Jane não estava
presente quando a suspeita surgiu pela primeira vez
no espírito de Mr. Knightley. Jantava ele com a família
de Randalls e encontrava-se em casa dos Eltons ; mas
foi nessa ocasião que ele se recordou de ter sur­
preendido um olhar muito significativo para Miss
Fairfax, que, partindo do admirador de Miss Wood­
house, lhe pareceu um tanto fora de propósito. Quando
se encontrou novamente com eles, não pôde deixar de
se lembrar do que tinha visto, nem de notar certas
coisas que, a menos que fossem produtos da imagi­
nação, como sucedia com Cowper ao crepúsculo,

Eu próprio criando o que via,

lhe despertaram suspeitas ainda mais fortes de que


houvesse uma secreta simpatia, um secreto enten­
dimento, entre Frank Churchill e Jane .
Um dia, depois do j antar, dirigia-se a Hartfield para
lá passar um serão, como costumava muitas vezes
fazer, quando se encontrou com Ema e Harriet, que
iam sair; reuniu-se-lhes e, no regresso, encontraram-se
os três com um grupo maior de pessoas, que, como
eles, tinham achado mais prudente recolher-se, visto
que o tempo ameaçava chuva. Eram Mr. e Mrs .
Weston , Mr. Frank C hurchill e Miss B ates e a
sobrinha, cujo encontro fora acidental. Juntaram-se
todos e, ao chegarem aos portões de Hartfield, Ema,
sabedora de que seu pai teria muito gosto em os
receber, convidou-os a entrar e a tomarem chá . A
família de Randalls aceitou logo; e Miss Bates, depois
de um longo discurso, que poucas pessoas escutaram,
também se resolveu a aceitar o amabilíssimo convite
da querida Miss Woodhouse.

355
JANE A USTEN

Na ocasião em que atravessaram o parque, passou


Mr. Perry a cavalo e os homens puseram-se logo a f
alar da montada.
-A propósito, - disse daí a pouco Frank Churchill
a Mrs . Weston - em que ficou o proj ecto de Mr. Perry
de comprar uma carruagem?
Mrs . Weston mostrou-se surpreendida e disse:
- Eu não sabia que ele tencionava comprar uma
carruagem . . .
- Ora essa! Foi por s i que e u o soube . . . Não se
lembra de ,mo ter dito, há três meses , numa carta?
- Eu! E impossível !
- Pois creia que é verdade ; recordo-me perfei-
tamente . Até se referia a isso como coisa para breve.
Mrs. Perry estava muito contente e dissera-o a alguém.
Fora ela quem convencera o marido a comprá-la, pois
achava que lhe fazia muito mal andar ao tempo.
Lembra-se agora?
- Palavra de honra que nunca ouvi falar nisso
senão agora !
- Essa agora! . . . Como pode ser isso? Terei eu
sonhado? . . . Mas eu estava absolutamente convencido . . .
Miss Smith , parece fatigada . . . C o m certeza, está
ansiosa por chegar a casa.
- Que é isso? . . . - perguntou Mr. Weston. - Que
é isso a respeito de Perry e de carruagem? Então Perry
vai ter carruagem, Frank? Estimo muito que ele se
resolva a isso. Foi por ele que o soubeste?
- Não, senhor - respondev o filho, rindo. - Parece
que não foi por ninguém . . . E esquisito ! . . . Eu, real­
mente, estava persuadido de que Mrs. Weston se tinha
referido pormenorizadamente a isso numa das suas
cartas para Enscombe, há algumas semanas ; mas
como ela afirma que nunca ouviu palavra a tal
respeito, naturalmente sonhei-o . . . Eu sonho muito.
Sonho com toda a gente de Highbury, quando cá não
estou . . . e quando estou com os meus , começo a sonhar
com Mr. e Mrs . Perry.
- O que é estranho - observou o pai - é que
lenhas tido um sonho tão verosímil a respeito de
pessoas de que, certamente, pouco te lembras quando

356
EMA

estás em Enscombe . Perry com carruagem . . . E a


esposa, por cuidado com a sua saúde, a convencê-lo . . .
Realmente é o que vai acontecer, mais dia menos di,a,
estou certo disso; apenas é, um pouco prematuro. As
vezes há sonhos que têm o seu quê de plausível.
Outro s , então , que chorrilho de disparates ! Poi s ,
Frank, o teu sonho, com certeza, mostra-te o que é
Highbury na tua ideia quando estás ausente. E Ema,
também sonha muito, não?
Ema estava longe de mais para o ouvir. Tinha-se
adiantado aos seus hóspedes, no intuito de prevenir o
pai da sua vinda; não pode, pois , ouvir a pergunta de
Mr. Weston.
- Olhe, para dizer a verdade, - exclamou Miss
Bates, que há dois minutos fazia esforços vãos para
que lhe prestassem atenção - se me permite , direi
que não se pode negar que Mr. Frank Churchill
tenha . . . Não quero dizer que ele não tenha sonhado . . .
E u mesma tenho tido os sonhos mais extravagantes
do mundo . . . Mas se me tivessem perguntado alguma
coisa, dir-lhes-ia que já na Primavera passada se falou
do caso; a própria Mrs . Perry falou nisso a minha mãe
e os Coles sabiam-no tão bem como nós . . . Mas era
segredo, mais ninguém o sabia e só se pensou no
assunto durante três dias . Mrs . Perry estava muito
desejosa de que o marido tivesse uma carruagem e
uma manhã veio, muito animada, ter com minha mãe,
porque julgava ter levado a sua avante . Jane, não te
lembras de a avozinha no-lo ter contado , quando
chegámos a casa? . . . Não me recordo aonde tínhamos
ido . . . provavelmente a Randalls. Mrs . Perry foi sempre
muito amiga de minha mãe . . . a verdade é que não sei
quem o não sej a . . . e contou-lhe a coisa em segredo.
Não tinha dúvida em no-lo contar, naturalmente, mas
a mais ninguém o fazia; e desde então não o disse a
uma única criatura. No entanto, não garanto que eu
própria o não tenha dado a entender, pois, às vezes ,
sucede-me falar numa coisa antes de saber dela. Sou
muito tagarela, como sabem; lá isso sou . . . E, de vez
em quando, deixo escapar qualquer coisa que não devia
deixar. Não sou como Jane; gostava de ser. Por ela

357
JANE A USTEN

respondo eu: nunca revela a mais pequenina coisa.


Onde s e meteu ela? Ah ! vem aqui atrás . Deve
lembrar-se perfeitamente do que Mrs . Perry nos disse.
Um sonho realmente muito extraordinário! . . .
Nessa altura entravam no vestíbulo. Mr. Knightley
tinha-se antecipado a Miss Bates no relance de olhos
que esta deitou a Jane. Frank Churchill, em cujo rosto
j ulgou ver um ar de confusão, disfarçado com um
sorriso, voltara-se involuntariamente para ela; mas
Jane deixara-se, de facto, ficar para trás e parecia
ocupada com o xaile. Mr. Weston tinha entrado. Os
outros dois homens pararam à porta, para deixar
passar Jane . Mr. Knightley j ulgou ver em Frank
Churchill o propósito de captar o olhar da rapariga;
parecia observá-la atentamente . Mas , se assim era,
nada conseguiu, pois Jane passou pelo meio deles e
entrou no vestíbulo sem olhar para o lado .
Não se ofereceu oportunidade para analisar o caso
mais de perto . Aceitou-se o sonho; e Mr. Knightley
teve de ocupar o seu lugar ao lado dos outros, sentados
à volta da grande mesa circular moderna, que Ema
havia introduzido em Hartfield e que ninguém senão
ela teria conseguido colocar lá e convencido o pai a
usá-la, em lugar da exígua mesa estilo Pembroke, na
qual lhe haviam sido servidas , diariamente, durante
quarenta anos, duas refeições. O chá decorreu animado
e ninguém parecia com pressa de sair dali.
- Miss Woodhouse , - disse Frank Churchill,
depois de olhar para uma mesa que se encontrava
atrás de si e que, do lugar onde estava, podia tocar
com a mão - os seus sobrinhos levaram os abe­
cedários . . . a caixa das letras? Costuma estar aqui . . .
Onde está? A tarde está tão sombria que mais parece
de Inverno que de Verão. Uma manhã entretivemo-nos
com essas letras. Gostava de fazer outra vez paciências
com elas .
A ideia agradou a Ema, que foi buscar a caixa; e a
mesa depre ssa ficou coberta de letras . Ninguém
parecia ter tanta inclinação para o jogo como Ema e
Frank. Era com rapidez que formavam palavras um

358
EMA

para o outro, ou para quem quer que se propusesse


adivinhar . O carácter pacífico do j ogo tornava-o
particularmente indicado para Mr. Woodhouse, que
se tinha visto muitas vezes aflito com outros de
natureza mais excitante, ocasionalmente introduzidos
por Mr. Weston; e o ancião, confortavelmente ins­
talado, ora se lamentava, com terna melancolia, da
partida dos «pobres pequenos», ora apontava cari­
nhosamente para esta ou para aquela letra que lhe
ficava mais perto, salientando a perfeição com que
Ema a tinha desenhado.
Frank Churchill propôs uma palavra a M iss
Fairfax. Esta deitou um rápido olhar em volta d a mesa
e pôs mãos à obra. Frank, em seguida, dirigiu-se a
Ema, ficando Jane em frente deles; Mr. Knightley
encontrou-se assim em posição favorável para os ver
a todos. E tomou logo a decisão de observar o mais
que pudesse, sem o denotar. Jane decifrou a palavra
e, com um leve sorri s o , afastou as letras . Se se
lembrasse, tê-las-ia misturado com as outras e, por
isso, teria olhado para a mesa em vez de olhar para o
lado oposto; mas não as misturou, e Harriet, desejosa
de conhecer cada nova palavra, sem conseguir decifrar
nenhuma, aproveitou logo aquela e tentou achá-la.
Estava sentada ao lado de Mr. Knightley, a quem
pediu auxílio. A palavra era «desc uido»; Harriet
anunciou-a, e as faces de Jane cobriram-se de vivo
rubor, o que deu ao vocábulo um significado que ,
doutro modo, passaria despercebido. Mr. Knightley
relacionou-o logo com o sonho; mas o que não conseguia
compreender era como isso podia ser. Como era
possível que a delicadeza, a discrição da sua predilecta
tivessem adormecido a tal ponto? . . . Ele desconfiava
de que houvesse qualquer propósito oculto . Parecia
deparar a cada momento com a dissimulação e a
duplicidade. Aquelas letras não eram mais que um
veículo de galantaria e intriga; eram um j ogo infantil
que Frank Churchill escolhera para com ele ocultar
outro j ogo mais secreto.
Profundamente indignado, Mr. Knightley conti­
nuou a observá-lo, ao mesmo tempo que observava

359
JANE A USTEN

também, com certa apreensão , as suas duas com­


panheiras . Viu-o propor uma pequena palavra a Ema
e olhar para esta com ar malicioso. Viu Ema decifrá-la
rapidamente e achá-la muito divertida, não obstante
encontrar nela, até certo ponto, motivo para censura,
visto que disse:
- Disparate ! . .. Que lembrança!
E ouviu Frank Churchill dizer logo, enquanto
relanceava um olhar para Jane :
-Vou dar-lha . . . ou não?
Ao que E m a se opôs com risonha vivacidade ,
dizendo :
- Não, não lha dê . . . Não faça isso!
No entanto, ele levou a sua avante . Aquele galante
moço, que parecia amar sem profundeza e ser amável
sem bondade, apressou-se a passar as letras a Miss
Fairfax, convidando-a, com fria delicadeza, a resolver
o problema. A extrema curiosidade de Mr. Knightley
de ver que palavra seria, levava-o a aproveitar todos
os instantes em que tinha a possibilidade de arriscar
um olhar para a m e s a ; e não demorou muito a
descobrir que a palavra era «Dixon» . Jane pareceu tê-la
encontrado ao mesmo tempo que ele; é verdade que
ela estava em condições de compreender melhor do
que ele o significado oculto, a intenção reservada
daquelas cinco letras assim dispostas . Não escondeu
o seu desagrado; ergueu os olhos e, vendo-se obser­
vada, corou como Mr. Knightley nunca a tinha visto
corar e apenas disse:
- Eu não sabia que os nomes próprios também
eram do jogo.
Empurrou as letras com modo irritado, mostrando
claramente não estar resolvida a decifrar nem mais
uma palavra que lhe apresentassem. Voltou a cara
àqueles que a haviam atacado e virou-se para a tia.
- Pois sim, minha querida, - exclamou esta
última, embora Jane não tivesse dito palavra - ia
exactamente dizer o mesmo. É tempo de nos irmos
embora. Está a escurecer e a avó deve estar à nossa

360
EMA

espera. Meu caro senhor, agradeço-lhe muito a sua


amabilidade e desej o-lhe muito boa noite .
A vivacidade com que Jane se moveu demonstrava
que ela efectivamente estava tão disposta a retirar-se
como a solteirona previra. Ergueu-se imediatamente
e fez menção de sair da mesa; mas eram tantos a
levantar-se também que ela não pode afastar-se logo,
e Mr. Knightley j ulgou ver ainda um grupo de letras
que ansios amente lhe estendiam, mas que Jane
bruscamente repeliu, sem sequer olhar para elas . Em
seguida procurou o xaile, no que Frank Churchill a
auxiliou. Escurecia e na sala reinava grande confusão;
por isso, Mr. Knightley não pôde ver como eles se
separaram.
Partiram tod o s , mas Mr. Knightley ficou em
Hartfield, com o espírito cheio do que vira; tão cheio
que , quando as luzes vieram auxiliá-lo nas suas
inves tigaç õ e s , achou que devia avi s ar Ema de
qualquer maneira: sim, tinha de o fazer como amigo
e amigo sincero. Não podia vê-la em tão perigosa situa­
ção, sem fazer o possível por a salvar. Era seu dever.
- Oiça, Ema, - disse ele - posso saber em que
residia a graça, o espírito picante da última palavra
que lhe propuseram a si e a Miss Fairfax? Vi a palavra
e estou com curiosidade de saber a razão por que uma
a achou tão divertida, ao passo que outra ficou tão
magoada.
Ema parecia extremamente confusa. Não se atrevia
a dar-lhe inteira explicação do facto, pois embora as
suas suspeitas a não tivessem abandonado, ela estava
realmente envergonhada de as ter alimentado.
- Oh! - exclamou, com evidente embaraço - não
era nada . . . Uma brincadeira sem importância.
- Mas a brincadeira - replicou Mr. Knightley,
gravemente - parecia ser só entre E m a e M r .
Churchill . . .
Esperava que ela retorquísse, mas não sucedeu
assim. Ema tinha o espírito demasiado preocupado
para falar. Ele ficou um momento interdito e pela
mente perpassou-lhe uma infinidade de conj ecturas

361
JANE A USTEN

desagradáveis . Uma intervenção inútil ! O embaraço


de Ema, assim como aquela evidente intimidade com
Frank Churchill, pareciam uma prova de que o seu
coração estava comprometido. Contudo, ele falaria;
era seu dever expor-se antes a que Ema recebesse mal
a sua interferência do que deixar em risco o seu
bem-estar; tudo era preferível a mostrar-se negligente
em tais circunstâncias .
- Minha querida Ema, disse, por fim, com o mais
benévolo dos modos - j ulga conhecer bem o grau de
intimidade que há entre o cavalheiro e a dama de que
estávamos falando?
- Entre Mr. Frank Churchill e Miss Fairfax? Oh!
perfeitamente . . . Porque duvida?
- Nunca teve razões para pensar que ele a amasse
ou ela a ele?
- Nunca, nunca! - exclamou Ema com veemência.
- Essa ideia nem um instante sequer me ocorreu.
Como é possível que o senhor tenha imaginado uma
coisa dessas?
- Tem-me ultimamente p arecido ver certos
indícios de particular afecto entre os dois . . . certos
olhares expre s s ivos de mais para serem teste­
munhados por estranhos .
- Oh! acho-lhe imensa graça! Estou encantada por
ver a sua imaginação tomar esses voos . . . Mas não é
verdade . . . lamento muito desiludi-lo . . . mas creia que
não é verdade. Garanto-lhe que entre ambos nada há;
as aparências que o impressionaram têm origem em
circunstâncias particulares . . . isto é, e� sentimentos
de nature z a totalmente diferente . E impos sível
explicar-lho com exactidão: há muito contra-senso à
mistura . . . mas o que de positivo se pode dizer é que
eles estão tão longe de qualquer inclinação ou paixão
um pelo outro, quanto podem estar duas criaturas
neste mundo. Isto é, presumo que assim sej a por parte
dela, e estou certa de que é assim por parte dele . Pela
indiferença dele respondo eu.
Falava num tom de convicção que fazia vacilar Mr.
Knightley, com uma tranquilidade que o obrigava a

362
EMA

calar-se . Ema achava-se alegremente disposta e por


sua vontade prolongaria a conversa, desejosa de saber
do seu interlocutor as suspeitas que ele alimentava,
de lhe ouvir descrever todas as causas e porquês de
um assunto que tão altamente a divertia, mas Mr.
Kni ghtley n ã o corre s p o n d i a à s u a j ovialidade .
Reconhecia que não fora de maneira alguma prestável,
e o seu ânimo estava por de mais irritado para lhe
apetecer conversar. Contribuía ainda mais para lhe
causar esse estado de irritação o calor da sala, pois
Mr. Woodhouse, pelos seus habituais cuidados com a
s aúde, exigia o fogo aceso quase todas as noites
durante todo o ano; por isso não tardou que Mr.
Knightley se despedisse apressadamente e partisse
para a sua fria e solitária residência de Donwell Abbey.

CAP ÍTULO XLII

Depois de se ter durante tanto tempo iludido com


as esperanças de uma curta visita de Mr. e de Mrs .
Suckling, a alta sociedade de Highbury teve o desgosto
de saber que, possivelmente, eles não viriam senão
no Outono. Presentemente não havia novidade que
alimentasse a curiosidade da terra . No seu inter­
câmbio diário de novidade s , viam-se obrigados a
contentar-se com aqueles temas que, durante um certo
tempo, tinham andado a par da vinda dos Sucklings ,
tais como as últimas notícias de Mrs . Churchill, cujo
estado de saúde parecia cada dia oferecer um novo
aspecto, e a situação de Mrs . Weston, para quem se
esperava tão grande aumento de felicidade com o
nascimento de um filho, como de satisfação para os
seus amigos com a aproximação do almej ado dia.
Mrs . Elton ficou muito contrariada. Era o adia­
mento de numerosas partidas de prazer e de exibição.
Todas as apresentações e recepções que planeara
tinham de esperar, e quanto aos famosos passeios,
continuavam a não passar de proj ectos . Assim pensou

3 63
JANE A USTEN

ela a princípio; mas um momento de reflexão con­


venceu-a de que não havia motivo para desanimar.
Porque não iam eles a Box Hill, mesmo sem a
companhia dos Sucklings? Quando estes viessem no
Outono, voltariam lá com eles . Ficou, pois, assente
que iriam a Box Hill . Há muito que se sabia estar
planeada essa excursão e até já se tinha aventado a
ideia de uma outra. Ema nunca havia estado em Box
Hill : tinha vontade de conhecer o que toda a gente
achava digno de se visitar: combinou, pois, com Mr.
Weston marearem uma manhã para o passeio. Apenas
se admitiriam mais dois ou três íntimos e tudo se havia
de fazer de forma discreta, simples e elegant e ,
infinitamente superior a o modo espectaculoso dos
Eltons e dos Suckling, no estilo de piquenique, com a
inevitável comezaina.
Chegaram a tão perfeito acordo que Ema não pôde
deixar de se surpreender; mas logo em seguida ficou
um pouco contrariada, quando Mr. Weston lhe disse
que propusera a Mrs . Elton - visto que os irmãos
haviam faltado - a reunião dos dois grupos ; Mrs .
Elton acedera prontamente e, portanto, se Ema não
visse inconveniente nisso, ficaria assim assente. Ora,
como o único inconveniente que ela via era a sua
grande antipatia por Mrs . Elton, que Mr. Weston já
devia ter perfeitamente notado, Ema entendia que não
valia a pena discutir: não poderia opor-se a tal sem
reprovar a atitude de Mr. Weston, e isso magoaria a
sua esposa. Ema viu-se, pois, obrigada a concordar
com uma solução que ela teria feito todo o possível
por evitar - solução que a exporia provavelmente ao
vexame de passar por íntima de Mrs . Elton ! Sentia-se
ofendida no seu amor-próprio, e a complacência que
mostrara naquela submissão aparente deixara um
penoso fundo de severidade nas suas reflexões sobre
a incorrigível benignidade de temperamento de Mr.
Weston .
- Folgo que aprove o que fiz - disse ele, evi­
dentemente satisfeito, - Não esperava outra coisa,
Estes proj ectos nunca dão resultado sem um certo

3 64
EMA

número de pessoas . Nunca é gente demai s . Um


número razoável de pessoas é o que garante o êxito da
diversão. E, apesar de tudo, ela é boa senhora; não
podíamos deixá-la de fora.
Ema, aparentemente, não discordou, se bem que,
no íntimo, reprovasse tudo.
E stava-se em meados de Junho e o tempo era
esplêndido; Mrs . Elton andava cada vez mais ansiosa
por fixar o dia e dispunha-se a combinar com Mr.
Weston a preparação de empadões de pombo e de
cabrito frio , quando sucedeu estropiar-se um dos
cavalos da carruagem, o que veio lançar tudo em triste
incerte z a . Podiam p a s s ar-se semanas e podiam
p a s s ar-se apenas alguns dias , até que o cavalo
estivesse utilizável; por isso não convinha arriscar
quaisquer preparativos, e assim se passava o tempo
em melancólica estagnação. Os recursos de Mrs . Elton
revelavam-se ineficazes ante semelhante contra­
tempo.
- Já viu coisa mais aborrecida, Knightley? - dizia
ela. - E com um tempo destes ! Estes atrasos , estes
impedimentos são realmente odiosos . Que havemos
de fazer? Desta forma acabamos por passar o ano todo
sem nada ter feito. O ano passado, por esta época, j á
tínhamos feito uma deliciosa excursão d e Maple Grove
a King Weston, pode crer.
- O melhor é ir até Donwell - retorquiu Mr.
Knightley. - Já podia passar sem cavalos . Porque
não vai até lá para provar os meus morangos? Agora
estão a amadurecer de dia para dia.
Se Mr. Knightley, a princípio, não falou seriamente,
a verdade é que acabou por se ver obrigado a proceder
assim, pois a sua proposta foi logo aceita com todo o
prazer; e o tom em que Mrs . Elton disse «Oh! não há
nada de que mais goste ! » , não era menos sugestivo do
que as próprias palavras .
Donwell tinha fama pelos seus viveiros de mo­
rangos, o que parecia um belo pretexto para a aceitação
do convite; mas não havia necessidade desse pretexto:
os canteiros de couves teriam sido mais que suficientes
para tentarem a jovem senhora, que não queria outra

3 65
JANE A USTEN

coisa senão ir a qualquer lado. Prometeu repetidas


vezes a Mr. Knightley visitar a sua propriedade -
muito mais vezes do que ele esperava - e mostrou-se
extremamente lisonjeada com tal prova de intimidade,
com tão elevada prova de estima e consideração, no
seu entender.
- Pode contar comigo - disse ela. - Por certo que
vou; escolha o dia e lá me terá. Permite que leve Jane
Fairfax comigo?
- Não posso fixar o dia, - disse ele - enquanto
não falar com algumas pessoas que eu gostaria que
também fossem.
- Oh! deixe isso comigo . B asta dar-µie carta
branca . . . Sabe, eu sou a Santa Padroeira . . . E a minha
excursão; levarei vários amigos comigo.
- Espero que leve Mr. Elton, - disse Mr. Knightley
- mas não quero que se incomode a fazer mais
convites .
- Oh! que desconfiado me saiu ! Mas não tenha
receio . . . Pode delegar em mim plenos poderes. Eu não
sou uma donzela inexperiente. Nas mulhere,s casadas,
como sabe, pode ter-se toda a confiança . . . E a minha
excurs ão. Deixe isso comigo; eu me encarrego de
convidar todos os seus amigos .
- Não, - replicou ele, friamente - neste caso
apenas pode haver uma mulher casada a quem eu
autorize que convide para Donwell as pessoas que ela
entenda, e essa mulher é . . .
- . . . Mrs . Weston, suponho - interrompeu Mrs .
Elton, um tanto humilhada.
- Não . . . Mrs . Knightley; e enquanto a não houver,
tratarei eu próprio destes assuntos.
- Oh! que e s quisita criatura o s e nhor é! -
exclamou Mrs . Elton, satisfeita por não ter ninguém
a suplantá-la . - O senhor é um excêntrico, um
verdadeiro excêntrico . . . Mas faça-se a sua vontade.
Levarei Jane comigo . . . Jane e a tia. O resto é consigo.
Não vej o qualquer inconveniente em me reunir à
família de Hartfield; não haj a dúvida nisso. Sei que
lhes é muito dedicado.

3 66
EMA

É muito possível que lá se reunam todos, se eu


conseguir o que pretendo . E de caminho, passarei por
casa de Miss Bates.
- Isso é desnecessário; eu vejo Jane todos os dias . . .
Mas faça como entender. Convém trajo d e manhã, não
é verdade , Knightley? Uma coisa muito simples . . .
Hei-de pôr um chapéu de abas largas, e levarei um
dos meus cestinhos no braço . Olhe . . . ; talvez este de
fitas cor-de-rosa. Como vê, não lia nada mais simples .
E Jane há-de levar outro . Não andaremos em grupo . . .
à maneira de ciganos em bando. Havemos de percorrer
os seus j ardins, apanhar morangos por nossas próprias
mãos, e sentar-nos debaixo das árvores; e tudo o mais
que nos queira servir há-de ser ao ar livre . . . uma mesa
à sombra, não acha? Tudo tão simples e natural quanto
possível. Não é esta a sua opinião?
- Absolutamente , não . A ideia que eu faço do
simples e do natural é pôr a mesa na sala de j antar.
Acho que quando melhor se pode observar a sim­
plicidade e a naturalidade dos homens e das senhoras
é às refeições, dentro de casa. Quando estiverem fartos
de comer morangos no j ardim, terão carnes frias em
casa.
- Bem . . . como quiser. Ao menos não faça grande
aparato. E , a propósito : eu ou a minha governanta
poderemos ser-lhe de algum préstimo com os nossos
conselhos? Sej a franco, Knightley! Se desej a que fale
a Mrs . Hodges ou vigie alguma coisa . . .
- Não o desejo de modo algum, obrigado.
- Bem . . . mas se surgirem algumas dificuldades ,
lembre-se d e que a minha governanta é muito hábil.
- Garanto-lhe que a minha não lhe fica atrás e,
portanto, dispensa o auxílio de qualquer pessoa.
- Gostaria de ter um jumento. O ideal seria irmos
todas de j umento . . . Jane, Miss Bates e eu, e o meu
caro esposo a pé, a meu lado . Realmente, tenho de
falar com ele para me comprar um burro. No campo
acho que é uma coisa precisa, pois, por muitos recursos
que uma mulher tenha, é impossível estar sempre

367
JANE A USTEN

fechada em casa. E depois, para passeios mais longos,


sabe . . . com a poeira no Verão e a lama no Inverno . . .
- Entre Donwell e Highbury não encontrará uma
coisa nem outra. O caminho de Donwell não é poeirento
e agora está completamente enxuto. No entanto, se
lhe apetece, vá de burro . Pode pedir emprestado o de
Mrs . Cole. O que desejo é que se faça tudo tanto quanto
possível ao seu gosto.
- Não duvido. Creia que lhe faço justiça, meu bom,
amigo. Sob esses modos secos e ríspidos, sei que tem
um coração de ouro. O senhor é, como tenho dito a Mr.
Elton, um excêntrico . Sim, acredite-me, Knightley,
estou muito sensibilizada com as atenções que tem
tido para comigo em todo este proj ecto . O senhor tem
procurado tudo para me ser agradável .
Mr. Knightley tinha uma outra razão para não
querer mesa ao ar livre . Tencionava persuadir Mr.
Woodhouse, assim como Ema, a tomarem parte no
passeio, e sabia que bastava ele ver alguém sentado a
comer ao ar livre para ficar doente . Mr. Woodhouse
evidentemente não se suj eitari a , sob o especioso
pretexto de um passeio matutino e de uma ou duas
horas passadas em Donwell, a tal sacrifício.
Deixou-se, no entanto, convencer de boa fé. Nenhuns
horrores ocultos o haviam de fazer arrepender-se da
sua credulidade. Deu o seu consentimento; havia dois
anos que não ia a Donwell ejá tinha pensado em fazê-lo.
Uma manhã, com bom tempo, ele, Ema e Harriet,
haviam de lá ir; e, enquanto as pequenas andassem
pelos j ardins, ele ficaria a conversar com Mrs . Weston.
Estava convencido de que agora, ao meio-dia, não
havia de estar húmido para elas . Tinha realmente
muita vontade de ver mais uma vez o velho solar, e
teria muito gosto em lá se encontrar com Mr. e Mrs .
Elton e outros amigos . Não via inconveniente algum
em lá ir com Ema e Harriet, uma manhã, em que
estivesse bom tempo. Achava muito delicado da parte
de Mr. Knightley convidá-los . . . muito amável e muito
sensato . . . Realmente era mais acertado do que j antar
fora. Ele não gostava nada de j antar fora.

368
EMA

Mr. Knightley teve a satisfação de deparar com o


assentimento de toda a gente . O convite foi por toda
a parte tão bem recebido que dir-se-ia terem todos, à
semelhança de Mrs . Elton, tomado o proj ecto como
atenção especial para cada um deles. Ema e Harriet
esperavam divertir-se à larga, e Mr. Weston, sem que
lho pedissem, prometeu fazer o possível por convencer
Frank a ir também, o que foi uma prova de apra­
zimento e de gratidão muito dispensável . Mr. Knight­
ley foi então obrigado a dizer que teria muito gosto
em o ver, e Mr. Weston comprometeu-se a escrever-lhe
quanto antes e a não poupar argumentos para o
persuadir a ir.
Entretanto, o cavalo aleij ado restabeleceu-se tão
depressa que a excursão a Box Hill voltou novamente
a ser tomada em consideração; foi então marcada a
ida a Donwell para um dia e a Box Hill para o seguinte,
visto que o tempo parecia seguro .
Ao meio-dia de um belo dia de sol, pouco antes do
S . João , Mr. Woodhouse era levado sem novidade
para a sua carruagem, em que se deixara uma j anela
aberta, para que ele partilhasse da alegria do passeio.
Em Abbey haviam preparado expressamente para
ele, durante a manhã, um bom fogo, numa das salas ,
onde o instalaram confortavelmente; e, satisfeito com
a sua comodidade , Mr. Woodhouse pôs-se então a
diss ertar s obre o que s e tinha feito até ali e a
aconselhar todos a que se sentassem a descansar,
mas longe do lume, para não aquecerem de mais.
Mrs . Weston, que parecia ter feito o caminho a pé,
com o propósito de se fatigar, deixou-se ficar sentada
a seu lado, escutando-o, complacente , enquanto os
outros andavam lá por fora, acompanhados do dono
da casa.
Ema, que j á não ia a Abbey havia muito tempo,
assim que viu seu pai convenientemente instalado,
foi com alegria que o deixou, ansiosa por rever e
recordar, atenta e minuciosamente, aqueles lugares
que tanto interesse sempre lhe tinham oferecido e a
toda a sua família.

3 69
JANE A USTEN

Ao contemplar o edifício, no seu estilo grandioso e


na sua característica e vantajosa posição, abrigado
numa baixa; os amplos j ardins estendendo-se até aos
prados banhados pela ribeira, que mal se avistava do
solar, devido à tradicional falta de perspectiva, e o
frondoso arvoredo das alamedas e avenidas , que nem
o modernismo nem a extravagância tinham des­
bastado, Ema sentiu orgulho e satisfação, plenamente
justificados pelos laços que a ligavam ao actual e ao
futuro proprietário do domínio.
A casa, maior do que a de Hartfield e totalmente
dissemelhante, cobria enorme área de forma irregular
e continha numerosas dependências , entre elas duas
ou três magníficas salas . De proporções harmoniosas,
aparentava por fora o que realmente era, e Ema sentia
aumentar o seu respeito por aquele solar, residência
de uma família de indiscutível nobreza, sem mácula
de espécie alguma, quer de sangue quer de inteli­
gência. John Knightley tinha, é verdade , alguns
defeitos; mas lá estava a aliança com Isabella, que se
podia classificar de irrepreensível. Ela não contribuíra
nem com parentela, nem com nome, nem com posição
que fizessem corar. Pensamentos bem reconfortantes
estes a que Ema se entregava, enquanto caminhava
de cá para lá!
Por fim tornou-se necessário fazer o mesmo que os
outros, que se dirigiram para o morangal . Acabaram
por se reunir ali todos, excepto Frank Churchill, que
se esperava a todo o momento; e Mrs . Elton, radiante
de felicidade, com um chapéu de abas largas e de cesto
no braço, dispôs-se a dar o exemplo na colheita de
morangos, ao mesmo tempo que ia tagarelando. Não
se pensava nem falava senão em morangos.
«A melhor fruta de Inglaterra . . . a preferida de toda
a gente . . . a mais saudável .
«Não há viveiros tão bonitos como estes . . . E a
qualidade é excelente .
«É uma delícia colher morangos por nossas mãos.
Apreciamo-los melhor assim. E de manhã é realmente

3 70
EMA

a melhor ocasião . . . sob todos os aspectos . . . Não se está


tão fatigado. Estes morangos são magníficos . . . Não
há nada que se lhes compare . . . Os outros mal se podem
comer. Desta qualidade são raros . . . São do Chile, os
preferidos e os mais aristocráticos . . . O preço dos
morangos em Londres . . . Em Bristol há muitos . . . e em
Maple Grave. A cultura . . . a época da renovação dos
viveiros . . . entre os j ardineiros variam as opiniões . Não
há uma regra ger�l. . . Os j ardineiros não podem desviar
a atenção disto. E pena que sej a uma fruta um pouco
indigesta . . . Mas não o é tanto como as cerej as . . . e as
groselhas são mais frescas . Ai! não apanho mais . . .
Estou cansadíssima de andar curvada . . . e com este
sol. . . Não posso mais . . . Tenho de me ir sentar a uma
sombra» .
Tal foi, durante meia hora, o estilo das conversas,
apenas interrompidas uma vez por Mrs . Weston, que
saíra a saber se o enteado já tinha vindo. Estava um
pouco inquiet a ; o cavalo de Frank c a u s ava-lhe
apreensões .
Descobriram-se sítios à sombra, onde puderam
sentar-se com relativa comodidade; e uma vez ali, Ema
foi obrigada a ouvir tudo o que Mrs . Elton e Jane
Fairfax diziam uma à outra. Estava em causa uma
colocação extremamente vantajosa. Mrs . Elton tivera
notícia daquilo e s s a m anhã, e e stava entusias­
madíssima. Não era em casa de Mrs . Suckling, nem
de Mrs . Bragge, mas a casa de que se tratava pouco
abaixo lhes ficava em luxo e bem-estar: era a de uma
prima de Mrs . Bragge e amiga de Mrs . Suckling,
senhora muito conhecida em Maple Grave . Quer a
esfera, quer a posição, quer a origem, eram magníficas,
ilustres, elevadas, de primeira plana, - e Mrs . Elton
estava impaciente por ver a oferta aceita sem demora.
Nela tudo era entusiasmo, energia, triunfo , e ne­
gava-se formalmente a admitir uma recusa da parte
da sua amiga, não obstante Miss Fairfax continuar a
asseverar-lhe que, por enquanto, não queria com­
prometer-se com coisa alguma, e repetisse os mesmos
motivos que já havia invocado. Todavia Mrs . Elton

371
JANE A USTEN

insistia em que ela a autorizasse a transmitir a sua


anuência pelo correio do dia seguinte.
Ema estava espantada com a condescendência de
Jane em suportar tudo aquilo. Esta última parecia
vexada e não se atrevia a falar categoricamente; mas,
por fim, com modo decidido, nela desusado, propôs
saírem, dali .
E se fossem dar uma volta? Mr. Knightley impor­
tava-se de lhes mostrar os j ardins . . . todos os seus
j ardins? Ela gostava de ver tudo.
A teimosia da amiga era superior ao que ela podia
suportar.
Estava calor; e depois de terem durante algum
tempo percorrido, dispersos, os j ardins, ou em grupos
que mal iam além de trê s , foram-se todos enca­
minhando, insensivelmente, uns atrás dos outros, para
uma larga alameda de limeira s , delicios amente
sombreada, que, situada para além dos j ardins e a
meio caminho da ribeira, parecia o limite da zona de
recreio. Não conduzia a nenhum local digno de menção,
a não ser a um muro baixo de pedra com altos pilares,
donde se desfrutava uma linda vista e que parecia ter
ali sido erigido no intuito de dar a ideia da proximidade
do solar, que ainda ficava distante . Esta limitação,
por muito dis cutível que fo s s e quanto ao gosto ,
constituía , porém, o fim de delicioso passeio , e o
panorama que dali se gozava era extremamente
pitoresco . A importante eminência, próximo de cujo
sopé ficava. Abbey, ia adquirindo para lá das terras
de lavra um aspecto cada vez mais escarpado; a meia
milha via-se uma encosta abrupta e imponente, dotada
de abundante vegetação, ao fundo da qual se erguia,
favoravelmente situada e abrigada, a herdade de
Abb ey-Mill , com prados em frente , e a ribeira
descrevendo-lhe em volta uma graciosa e apertada
curva.
Era uma vista extremamente aprazível - aprazível
para os olhos e para o espírito . Era a vegetação, a
fertilidade, o conforto de Inglaterra, vistos sob um sol
resplandecente, sem ser opressivo.

3 72
EMA

Ema e Mr. Weston encontraram todos os outros


dirigindo-se para aquele sítio, e Ema avistou logo Mr.
Knightley e Harriet, que, afastados dos companheiros,
caminhavam vagarosamente a frente. Mr. Knightley
e Harriet ! . . . Singular tete-à-tête! Mas Ema estava
satisfeita. Já lá ia o tempo em que ele desdenhava e
se afastava de Harriet sem cerimónia. Agora pareciam
empenhados em amena conversa. Já lá ia o tempo
também em que Ema lamentara ver Harriet tão
atraída pela Herdade de Abbey-Mill; agora já não o
temia. Agora podia-se, sem inconveniente, contem­
plá-la, com todos os seus apanágios de prosperidade e
beleza, os seus ricos pastos, os seus extensos rebanhos,
o pomar florido e a leve coluna de fumo a subir no espaço.
E m a reuni u - s e -l h e s j unto do muro , onde o s
encontrou mais empenhados a conversar d o que a
admirar a paisage m . Mr. Knightley explicava a
Harriet os diversos usos agrícolas e teve para Ema
um sorriso que parecia dizer:
«Isto só a mim diz respeito. Eu tenho o direito de
falar nestes assuntos, sem que suspeitem de que me
refira a Roberto Martin» .
E m a não suspeitava tal coisa. Isso era uma velha
história. Roberto Martin j á tinha provavelmente
deixado de pensar em Harriet.
Deram algumas voltas juntos. Gozava-se de uma
bela frescura, à sombra, e Ema achava que aquela
era a hora mais agradável do dia . Quando dali se
retiraram foi para entrarem em casa; tinham de ir
comer. Na ocasião em que se sentavam à mesa, ainda
Frank Churchill não tinha chegado . Mrs . Weston em
vão olhava para a porta e o marido, não querendo
confes s ar a própria inquietação , ria-se dos seus
temores; ela não podia eximir-se ao desejo de que o
rapaz tivesse vindo na égua preta. Ele tinha dado a
certeza de que viria. «A tia estava muito melhor e,
portanto, não duvidava de poder ir» .
O estado de Mrs . Churchill, porém, como todos
sabiam, era tão susceptível de uma alteração súbita
que o sobrinho, dependente dessa circunstância, podia
muito bem sofrer um contratempo, e Mrs . Weston

3 73
JANE A USTEN

acabara por se persuadir, ou de facto ou na aparência,


de que devia ter havido qualquer agravamento no
estado de Mrs . Churchill que houvesse impedido a
vinda do enteado. Enquanto se debatia a questão, Ema
não tirava os olhos de Harriet: esta comportava-se
com toda a calma, sem denunciar a menor agitação .
Terminada a refeição fria, os convidados saíram
de novo, para verem o que ainda não tinham visto: os
antigos viveiros de peixes ; e talvez para irem até ao
campo de trevo, cuj a ceifa ia começar, ou então só para
terem o prazer de apanhar calor e refrescar-se depois.
Mr. Woodhouse, que j á tinha dado a sua volta pela
parte do j ardim mais próxima de casa, aonde não
chegava a humidade da ribeira, não quis tornar a sair;
e a filha resolveu ficar ao pé dele , para que Mrs .
Weston se decidisse a sair com o marido, pois bem
necessitava de distracção .
Mr. Knightley tinha feito tudo quanto podia para
que Mr. Woodhouse estivesse satisfeito . De manhã
tinha preparado livros de estampas, colecções de
moedas , camafeus, corais, conchas e outras recor­
dações de família, atenção a que Mr. Woodhouse
correspondeu plenamente , pois se mostrou excep­
cionalmente bem disposto . Mrs . Weston estivera a
mostrar-lhe todos aqueles obj ectos e agora mos­
trava-os ele a Ema: assemelhava-se a uma criança na
total falta de gosto pelo que via, porquanto, no mais,
era pausado, atento e metódico.
Ante s , porém , d e s t a segunda exibi ç ã o , E m a
dirigiu-se a o vestíbulo , na intenção d e examinar
livremente, durante alguns momento s , o e s tilo
daquela dependência; mal tinha ali chegado, quando
Jane Fairfax apareceu a correr, do lado do j ardim,
com ar de quem vinha a fugir. Como não esperasse
dar logo ali com Miss Woodhouse, mostrou-se, a
princípio , a s s u s t a d a , m a s M i s s Woodhou s e era
precisamente a pessoa que ela procurava.
- Quer fazer-me o favor - disse ela - de, quando
derem pela minha falta, dizer que fui para casa?
Vou-me embora já. A minha tia com certeza ainda

3 74
EMA

não reparou que é tarde e que estou ausente há muito


tempo . . . mas eu sei muito bem que estou a fazer falta
em casa, e resolvi partir já. Demorar-me mais tempo
só pode causar incómodos e aflições. Uns foram para
os viveiros de peixe, outros para a alameda de limeiras.
Enquanto eles não voltarem, não darão pela minha
falta; e quando vierem, Miss Woodhouse fará então o
favor de lhes dizer que me fui embora.
- Estej a descansada; mas com certeza não vai
sozinha para Highbury . . .
- Vou, sim . . . Que mal m e pode acontecer? E u ando
depressa . . . Em vinte minutos ponho-me em casa.
- Mas é uma distância muito grande para a fazer
sozinha a pé! O criado de meu pai vai consigo; eu
mando vir a carruagem. E stá cá dentro de cinco
minutos . . .
- Obrigada, obrigada . . mas não s e incomode .
Prefiro ir a pé. E eu não tenho medo de ir sozinha!
Não há-de tardar muito que tenha de guardar outros . . .
Falava com grande agitação; Ema replicou viva­
mente :
- Isso não é razão para que se exponha agora ao
perigo ! Vou mandar vir a carruagem. Até o calor é
perigoso e a menina j á está muito fatigada.
- Sim . . . - respondeu ela - estou fatigada; mas
há várias espécies de fadiga . . . Uma marcha rápida só
me pode fazer bem. Miss Woodhouse, todos nós
sabemos, por vezes, o que é ter o espírito cansado. O
meu, confesso, está exausto . O maior favor que me
pode prestar é deixar-me ir sozinha e apenas dizer
que me fui embora, quando for necessário.
Ema nada teve a opor; compreendeu tudo. Aca­
tando, pois, a vontade de Jane, favoreceu-lhe imediata­
mente a saída, com todo o zelo de uma pessoa amiga.
Miss Fairfax, ao partir, teve para ela um olhar de
gratidão, acompanhado das seguintes palavras :
- Oh! Miss Woodhouse, que alívio é por vezes estar
a gente sozinha!
Isto parecia o desabafo de um espírito oprimido e,
até certo ponto, a confissão de um sacrifício que ela

3 75
JANE A USTEN

pacientemente suportasse, mesmo para com alguns


daqueles que ela mais amava.
- Realmente , em sua casa e com sua tia! - disse
Ema, ao mesmo tempo que voltava ao vestíbulo. -
Tenho pena de si. E quanto mais sensível se mostra a
tal suplício, mais simpatizo consigo .
Mal tinha decorrido um quarto de hora depois de
Jane haver partido, e Mr. Woodhouse e a filha pouco
mais tinham apreciado que umas vistas da praça de
S. Marcos de Veneza, quando Frank Churchill entrou
na sala. Ema não só estava longe de o esperar como
até já se esquecera dele . . . mas ficou contente de o ver.
Seria uma alegria para Mrs . Weston . Nada havia que
dizer da égua preta; tinham tido razão quando
atribuíram a Mrs . Churchill a causa da demora do
sobrinho . Este havia sido detido por um temporário
agravamento da sua doença, um acesso nervoso que
durara algumas horas e que chegara a obrigá-lo a pôr
de parte a ideia de vir. Só tarde é que pudera dispor
de si; e se ele tivesse previsto a marcha árdua que o
esperava e, apesar de toda aquela pressa, o atraso
com que chegaria, certamente não teria vindo . Estava
um calor excessivo; nunca tinha suportado tanto calor;
quase preferia ter ficado em casa. Nada lhe custava
tanto como o calor; frio, suportava-o bem, mas o calor
era-lhe intolerável . E, em deplorável estado, sentou-se
o mais longe possível dos leves restos do fogo de Mr.
Woodhouse.
- Daqui a pouco estará mais fresco, se se deixar
ficar sentado - disse Ema.
- Assim que tiver refrescado, regressarei .. Eu
podia muito bem poupar-me . . . mas tinham tanto
empenho em que viess e ! Não tardará que se vão
embora, não é verdade? O grupo está já a des­
membrar-se. - Encontrei uma quando vinha para cá . . .
Que loucura, com semelhante calor! . . . Uma autêntica
loucura !
Ema, enquanto o escutava e observava, não podia
deixar de perceber que o estado de espírito de Frank
Churchill só tinha uma definição: mau humor. Muitas

3 76
EMA

pessoas há que, quando mal dispostas , não podem


deixar de se mostrar impertinentes. Tal devia ser o
caso de Frank; e Ema, como sabia que o comer e o
beber eram muitas vezes a cura desses estados
anormais, aconselhou-o a tomar qualquer coisa: na
sala de j antar encontraria comida em abundância; -
e apontou-lhe humanamente para a porta.
Que não, que não queria comer. Não tinha fome; se
comesse ficaria com mais calor ainda.
Daí a dois minutos, porém, acabou por ceder, e
murmurando qualquer coisa a respeito de 'cervej a de
abeto, saiu da sala. Ema, então, voltou a prestar
atenção ao pai, enquanto dizia para consigo:
«Ainda bem que não me apaixonei por ele ! Não
havia de me dar bem com um homem a quem uma
manhã de calor tão facilmente transtorna. Já Harriet,
com o seu feitio meigo e resignado, se não importará
com isso . . . » .
Pelo tempo que Frank s e demorou, devia ter-se
servido uma refeição bem reconfortante; e o facto é
que, quando voltou, vinha muito melhor, mais calmo
e novamente com as boas maneiras que lhe eram
próprias : em resumo, capaz de puxar uma cadeira para
junto de Mr. e Miss Woodhouse, de tomar interesse
pelo que eles faziam e de lamentar, em tom mais
ameno, o seu atraso. Ainda não estava na melhor das
suas disposições, mas parecia fazer todo o possível por
lá chegar; e por fim apanhou-se a dizer disparates
com os modos mais agradáveis, enquanto pai e filha
se entretinham com vistas da Suíça.
- Logo que minha tia estiver boa, vou ao estran­
geiro - disse ele . - Não descansarei enquanto não
tiver visto alguns destes lugares. Mais dia menos dia,
verá os meus esboços, ou então há-de ler uma descrição
da viagem ou um poema, feitos por mim. Hei-de fazer
qualquer coisa que me torne célebre . . .
- Pois sim . . . mas com quadros da Suíça é que não.
Nunca lá há-de ir. Os seus tios nunca o deixarão sair
de Inglaterra . . .

3 77
JANE A USTEN

- Convencê-los-ei a irem também . Pode-se acon­


selhar a minha tia um clima quente. Eu tenho fortes
esperanças de que havemos de ir todos lá fora; pode
crer que tenho . Esta manhã sinto uma convicção
íntima de que não tardará muito que vá ao estrangeiro.
Preciso de viaj ar; estou farto de não fazer nada. Preciso
de mudar. Estou falando a sério, Miss Woodhouse . . .
Pense o que quiser, mas creia que estou saturado da
Inglaterra . . . Quem me dera partir amanhã!
- O que o senhor está é saturado de bem-estar e
de mimos. Porque não inventa algumas preocupações
e se deixa ficar por cá?
- Eu saturado de bem-estar e de mimos! . . . Está
completamente enganada. Não me considero de forma
alguma feliz nem amimado! Sou contrariado em tudo . . .
Não m e julgo nada feliz!
- No entanto, j á não se sente tão infeliz como há
pouco, quando chegou. Vá comer e beber mais alguma
coisa, e verá que fica bom de todo . Uma fatia mais de
carne fri a e um cálice de Madeira p ô -lo -ão em
igualdade de circunstâncias com todos nós .
- Não . . . não saio daqui. Quero estar aqui ao vosso
lado. A melhor cura é a vossa companhia.
- Amanhã vamos a Box Hill e o senhor irá
connosco. Não é a Suíça, mas para um rapaz da sua
idade já é alguma coisa, à falta de melhor . Está
resolvido a ir também?
- Não, é impossível; volto para casa ao escurecer,
quando estiver mais fresco.
- Mas pode voltar amanhã, pelo fresco da manhã . . .
- Não . . . não vale a pena. Podia estar mal disposto
quando viesse . . .
- Então peço-lhe que fique e m Richmond.
- Mas se lá fico, ainda mais mal disposto es-
tarei . . . Nunca poderei levar à paciência que vão sem
mim.
- E s s a s dificuldades devem ser unicamente
resolvidas por si. Escolha entre os dois graus de mau
humor. Não insistirei mais consigo.

3 78
EMA

O resto dos convidados voltara e daí a pouco


estavam todos reunidos. Uns mostraram-se bastantes
alegres ao verem Frank Churchill, outros guardaram
uma atitude discreta; mas o que pareceu geral foi a
mágoa e a inquietação causadas pela partida de Miss
Fairfax. Finalmente, todos chegaram à conclusão de
que eram horas de se irem embora e, depois de mais
algumas combinações para o passeio do dia seguinte,
fizeram-se as despedidas . Os últimos escrúpulos de
Frank Churchill em tomar parte no passeio sofreram
tal redução que as suas derradeiras palavras para
Ema foram estas :
- Bem . . . se tem muito empenho em que vá, irei
também.
Ema sorriu-lhe em resposta; e a não ser uma
chamada formal de Richmond nada o faria lá regressar
antes da noite do dia seguinte .

CAP ÍTULO XLIII

Tiveram um lindo dia para o passeio a Box Hill, e


a julgar pelo modo como decorreram os preparativos,
pelo perfeito acordo e pontualidade dos interessados,
era de esperar que viesse a ser um passeio delicioso.
Mr. Weston dirigia tudo; serviu de medianeiro entre
Hartfield e o presbitério e, no final , todos compa­
receram à hora devida. Ema ia com Harriet; Miss
Bates e a sobrinha com os Eltons , e os homens a cavalo.
Mrs . Weston ficou com, Mr. Woodhouse . Apenas
faltava desej ar que fossem felizes à chegada. Fize­
ram-se sete milhas na perspectiva do gozo que iam
fruir e, quando chegaram, todos deram um brado de
admiração ; mas, de uma forma geral , o dia não
decorreu como se esperava. Notava-se uma frieza, uma
falta de alegria, uma falta de entendimento que não
podiam dominar-se. Dividiram-se em dois grupos : os
Eltons para um lado, Mr. Knightley com Miss Bates

3 79
JANE A USTEN

e Jane para outro, e Ema e Harriet acompanhadas de


Frank Churchill. Mr. Weston ainda tentou, mas em
vão, harmonizá-los . A princípio pareci a ser uma
separação acidental, mas o facto é que os grupos nunca
variaram . Mr. e Mrs . Elton, diga-se a verdade, não
manifestaram relutância alguma em se misturarem
com os outros e fizeram tudo quanto puderam para se
tornarem agradáveis, mas durante as duas horas
passadas na montanha notava-se entre os outros
grupos como que um princípio de separação, dema­
siado forte para que o magnífico panorama, a refeição
fria ou a j ovial afabilidade de Mr. Weston conse­
guissem destruí-lo.
A primeira a sofrer com tão pesado ambiente foi
Ema. Nunca ela tinha visto Frank Churchill tão calado
e sorumbático. Quase não falava, olhava para tudo
sem ver, contemplava tudo sem um rasgo de admi­
ração, escutava-a sem saber o que ela dizia. Com ele
assim, não era de admirar que H arriet também
estivesse sombria, e deste modo ambos se tornavam
insuportáveis .
Quando se sentaram, as coisas correram melhor;
no entender de E m a , muito melhor, pois Frank
Churchill tornou-se comunicativo e alegre, fazendo
dela o principal objecto da sua solicitude. Atenções,
s ó a Ema eram prestadas . Diverti- l a , tornar-se
agradável a seus olhos, parecia a única preocupação
de Frank - e Ema, satisfeita por se ver animada e
adulada, dava sinal de estar alegre e comunicativa
também, e concedia-lhe o estímulo, a permissão de se
mostrar galante, como lhe havia concedido no primeiro
e entusiástico período da sua amizade; agora, porém,
Ema, no seu foro íntimo, não lhes dava significado
algum, embora, no entender de muitos que os viam,
aquilo oferecesse uma tal aparência que só uma
palavra o podia classificar - namoro.
«Mr. Frank Churchill e Miss Woodhouse muito
conversavam! » .
Esta frase definia o que essa gente pensava; e foi
isto mesmo que uma senhora transmitiu numa carta
para Maple Grove, e outra para a Irlanda.

380
EMA

Não que Ema sentisse realmente alegria, não que


não sonhasse com a felicidade, mas sim porque se
sentia menos feliz do que tinha esperado . Ria-se
porque estava despeitada; e, não obstante apreciar as
atenções de Frank e, quer elas fossem por amizade,
quer por admiração ou por brincadeira, considerá-las
extremamente j udiciosas , não lhe conquistavam o
coração. Ela continuava a tê-lo apenas por amigo.
- Como lhe estou grato - dizia ele -, por me ter
dito que viesse! . . . Se não tivesse acedido ao seu pedido,
teria perdido todo o prazer deste passeio. E eu que
estava resolvido a regressar logo !
- Realmente estava de muito mau humor e ainda
estou para saber porque . . . a não ser por ter chegado
tarde de mais para apanhar os melhores morangos . . .
E u sou mais generosa do que o senhor merecia. Mas
vá lá . . . foi humilde e suplicou que lhe ordenassem que
viesse.
- Não diga que eu estava de mau humor! O que
estava era fatigado; o calor deitou-me abaixo.
- Hoj e está mais calor . . .
-Não m e parece . Sinto-me perfeitamente!
- Sente-se perfeitamente, porque está aqui em
obediência a uma ordem . . .
- À sua ordem? Isso é verdade !
- Talvez que eu goste de que fale assim; mas ao
que me referia era a uma ordem sua, ao domínio de si
próprio. Ontem, diga o que disser, ultrapassou os
limites, excedeu-se; mas hoj e voltou atrás . . . e como eu
não posso estar sempre consigo, o melhor é acreditar
que o seu temperamento obedeceu mais a uma ordem
sua do que minha.
- Vem tudo a dar na mesma. Não posso exercer
nenhum autodomínio sem um motivo qualquer. A
senhora deu-me uma ordem, diga o que disser. E , além
disso, pode estar sempre comigo; está sempre .
- Desde as três da tarde de ontem . A minha
influência não podia começar mais cedo, de contrário
não teria estado tão mal-humorado antes dessa hora.

381
JANE A USTEN

- Três da tarde de ontem ! . . . Isso é pelas suas


contas . . . Eu julgava tê-la visto pela primeira vez em
Fevereiro . . .
- A sua galantaria é realmente irrespondível. Mas
- acrescentou, baixando a voz - reparo que ninguém
fala senão nós e acho que é inútil estarmos a dizer
disparates para gáudio de sete pessoas que não dizem
palavra.
- Eu nada digo de que deva envergonhar-me -
replicou Frank, com viva impudência. - Vi-a pela
primeira vez em Fevereiro. Que me importa que todos
oiçam? Que as minhas palavras se espalhem até
Mickleham, de um lado, e a Dorking, do outro . Vi-a
pela primeira vez em Fevereiro !
E depois , em voz baixa, acrescentou:
- Os nossos companheiros estão extremamente
apáticos . Que havemos de fazer para os despertar?
Qualquer disparate serve. Eles têm de falar por força . . .
Minhas senhoras e meus senhores, Miss Woodhouse,
que é sempre quem nos dirige em toda a parte,
incumbe-me de lhes dizer que desej a saber em que
estão a pensar . . .
Alguns riram e responderam com um gracejo.
Miss Bates falou prolongadamente ; Mrs . Elton
picou-se com a ideia de Miss Woodhouse dar ordens e
a resposta de Mr. Knightley foi a mais objectiva:
- Miss Woodhouse gostaria realmente de saber
em que estamos a pensar?
- Oh! não, não . . . - exclamou Ema, rindo-se com
o modo mais descuidado possível. - Por coisa alguma
deste mundo ! Isto foi um último recurso para quebrar
o silêncio de há pouco . Digam-me tudo menos aquilo
em que estão pensando. E claro que não me refiro a
todos ; há talvez dois, pelo menos (e olhou para Mr.
Weston e para Harriet), cujos pensamentos não teria
receio de conhecer . . .
- Aí está uma coisa - disse Mrs . Elton, com
presunção - que eu nunca me atreveria a perguntar.
A verdade é que nunca fui habituada, como o Chaperon

382
EMA

do grupo . . . a dar ordens . . . a raparigas solteiras . . . a


mulheres casadas . . .
Dirigia-se principalmente a o marido, que , em
resposta, murmurou:
- Tens razão, meu amor, tens razão . É exacta­
mente assim . . . A não serem certas senhoras, mais
ninguém fala. É melhor deixar passar isso como graça;
todos sabem o que te é devido.
- Assim não vai - disse Frank, em voz baixa, a
Ema; - a maior parte deles estão ofendidos. Vou
atacá-los com mais habilidade . - Minhas senhoras e
meus senhores . . . Miss Woodhouse encarrega-me de
lhes dizer que renuncia ao seu direito de conhecer ao
certo o que estão a pensar, e que apenas exige qualquer
coisa que distraia. Sois sete, além da minha pessoa,
que , j á por s i , é bastante divertid a , como Miss
Woodhouse tem o prazer de reconhecer . . . Pois ela
apenas reclama de cada um uma ideia com bastante
graça, ou duas com alguma, ou três sem nenhuma; e,
com isso, compromete-se a rir às gargalhadas .
- Oh ! então não terei muito que me ralar -
exclamou Miss B ate s . - Três ideias sem graça
nenhuma . . . E exactamente o que me está a calhar!
Estou convencida de que me basta abrir a boca para
dizer logo três coisas sem graça nenhuma, não acha?
E olhando à volta com alegre expressão de confiança
no assentimento de todos os circunstantes, acres­
centou:
- Realmente não acham?
Ema não se pode conter que não dissesse:
- Ó minha senhora, mas há uma dificuldade ;
desculpe, mas o número é limitado . . . só podem ser
três de cada vez . . .
Miss B ates , iludida pelo tom fals amente ceri­
monioso, não apanhou logo o significado daquelas
palavras; mas , quando acabou por compreendê-las,
não se zangou, se bem que um leve rubor indicasse
que elas a tinham magoado .
- Ah! bem . . . é claro. Sim, - disse, voltando-se para
Mr. Knightley --compreendo o que ela quer dizer; farei

383
JANE A USTEN

o possível por me calar. Devo realmente tornar-me


muito desagradável, para ela ter falado assim a uma
velha amiga!
- Simpatizo com a sua ideia - exclamou Mr.
Weston. - Estou de acordo! Por mim farei o possível;
e há-de ser um enigma. Que classificação dão a um
enigma?
- Baixa, meu pai, muito baixa - respondeu o filho;
- mas seremos indulgentes . . . principalmente para
aquele que der o exemplo.
- Não, não, - disse Ema - há-de ter uma alta
classificação. Um enigma de Mr. Weston terá o mérito
de o desquitar e àquele a quem for dedicado. Vamos,
senhor, estou pronta a ouvi-lo . . .
-;-- Duvido que lhe achem graça - disse Mr. Weston.
- E claro de mais, mas lá vai: Quais são as duas letras
do alfabeto que designam perfeição? -
- Duas letras . . . que designam perfeição ! . . . Con­
fesso que não sei .
- Ah ! não descobre . . . (voltando-se para Ema) disso
estou eu certo . . . Mas eu digo-lhe: M e A - E. . . ma.
Compreende?
Ela compreendeu e agradeceu-lhe. Não teria muito
espírito, mas Ema achou que devia rir e assim fizeram
Frank e Harriet. Não pareceu ter impressionado muito
o resto dos circunstantes; alguns até se mostraram
indiferentes e Mr. Knightley disse gravemente:
- Isso satisfaz o que se pretendia; Mr. Weston
desempenhou-se muito bem do seu papel, mas devia
ter posto o problema a mais alguém. A perfeição não
teria aparecido tão depressa.
- Oh! quanto a mim, peço que me dispensem -
disse Mrs . Elton. -A verdade é que não tenho
pretensões . . . não gosto muito dessas coisas . Uma vez
mandaram-me um acróstico do meu nome, que não
me agradou nada. Eu sabia de quem vinha. Um
abominável velhaco! . . . O senhor sabe a quem me refiro
- disse, fazendo um sinal com a cabeça para o marido.
- Estas coisas são muito boas no Natal, quando se
está sentado em volta da lareira; mas, na minha

384
EMA

opinião, não têm cabimento no Verão, durante uni


passeio ao campo . Miss Woodhouse desculpar-me-á,
mas eu não sou daquelas pessoas que têm sempre
coisas bonitas para dizer aos outros. Não me julgo
es piritu o s a ; tenho também a minha vivacidade
própria, mas a verdade é que falo ou calo-me quando
entendo . Dispense-no s , Mr. Churchill; dispense
Mr. Elton, Knightley, Jane e eu. Não temos nada de
interessante para dizer . . . nenhum de nós o tem.
- Sim, sim, peço-lhe que me dispense - repetiu o
marido, num tom um tanto ou quanto sarcástico; -
eu realmente nada tenho que possa distrair Miss
Woodhouse ou qualquer outra menina. Um velho chefe
de família . . . não tem préstimo para nada. Vamos ,
Augusta?
- Com todo o gosto ! Realmente estou já enfastiada
de parar há tanto tempo no mesmo sítio. Venha, Jane,
dê-me o braço .
Jane, porém, declinou a oferta, e marido e mulher
afastaram-se sozinhos .
- Feliz casal ! - disse Frank Churchill, assim que
os viu fora do alcance da voz. - Como estão a calhar
um para o outro ! Realmente já é sorte casar como
casaram, tendo-se simplesmente conhecido num lugar
público ! Creio que eles tinham travado conhecimento
poucas semanas antes, em Bath . . . Que sorte ! Porque,
para se conhecer o carácter de uma pessoa, não é em
Bath, nem em qualquer lugar público que se con­
s_egue . . . Nunca se ficam conhecendo bem as pessoas .
E vendo as mulheres na sua própria casa, no seu
próprio meio, quando elas se apresentam como são,
que se pode formar um juízo a seu respeito. Fora disso,
só há conj ectura e sorte . . . e geralmente pouca sorte .
Quantos homens não há que se entregaram aos acasos
de um leve conhecimento e ficaram a lastimar-se todo
o resto da vida !
Miss Fairfax, que quase não falara até aí, a não ser
entre os da sua facção, falou desta vez :
- Essas coisas ocorrem, naturalmente . . .
Interrompeu-a um frouxo de tosse, Frank Churchill
voltou-se para ela.

385
JANE A USTEN

- Estava dizendo . . . - disse ele, atenciosamente .


E ela recobrando a voz , continuou:
- Ia eu apenas a dizer que, embora essas infelizes
circunstâncias ocorram algumas vezes tanto aos
homens como às mulheres, não julgo que sucedam com
muita frequênci a . Uma dedicação precipitada e
imprudente pode dar lugar . . . Mas geralmente há
tempo para reconsiderar. Queria eu dizer com isto que
só os espíritos fracos e irresolutos, cuj a felicidade está
sempre à mercê do acaso, é que sofrem os incon­
venientes de uma ligação desigual, o infortúnio para
todo o resto da vida.
Frank não deu resposta; limitou-se a olhar para
ela e a anuir com uma inclinação de cabeça, e pouco
depois disse, em tom de gracejo:
- Bem, tenho tão pouca confiança no meu dis­
cernimento, que, quando me decidir a casar, espero
que haj a alguém que me escolha esposa. Faz-me esse
favor? - acrescentou, voltando-se p ara E m a . -
Escolha uma esposa para mim. Estou certo de que me
daria bem com alguém designado por si. Já não é a
primeira vez que abastece a família - disse, ao mesmo
tempo que sorria para o pai. - Vej a se me descobre
alguém. Não tenho pressa. Adopte-a, eduque-a . . .
- E faço-a, à minha semelhança.
- Certamente, se puder.
- Muito bem; aceito o emprego. Terá uma esposa
encantadora.
- Deverá ser espirituosa e ter olhos cor de avelã.
Nada mais me interessa. Irei para o estrangeiro por
dois anos . . . e quando voltar, virei ter consigo . Não se
esqueça!
Ema não corri a risco de se esquecer. Era um
encargo que ia ao encontro dos seus sonhos mais
gratos . Não era Harriet a criatura indicada? Excep­
tuando os olhos cor de avelã, dois anos mais deviam
adaptá-la ao tipo que Frank pretendia. Era até possível
que ele tivesse Harriet na ideia naquele momento,
quem sabe? No que respeitava à educação, parecia
referir-se a ela.

386
EMA

- Bem, minha tia, - disse Jane - vamos ter com


Mrs . Elton?
- Se assim o queres, com todo o gosto, minha filha.
Eu já estava pronta para ir com ela, mas agora é o
mesmo. Depre§Sa a alcançamos . Lá está ela . . . não, é
outra pessoa. E uma daquelas senhoras que vinham
no carro irlandês . . . não se parece nada com ela. Pois
digo-te . . .
E afastaram-se, seguidas meio minuto depois por
Mr. Knightley. Só ficaram Mr. Weston, o filho, Ema e
Harriet; e a alegria do rapaz começou a assumir uma
feição quase desagradável. Ema chegou até a sentir-se
enfastiada de tanta lisonj a, de tanta j ovialidade ;
preferiria andar a passear soss egadamente com
qualquer dos outros, ou ficar ali sozinha a contemplar
tranquilamente o belo panorama a seus pés . O
aparecimento dos criados , que os procuravam para
lhes darem notícias das carruagens, foi uma agradável
derivante; e Ema até suportou alegremente o bur­
burinho dos preparativos da partida e o cuidado de
Mrs . Elton em ter a sua carruagem primeiro que os
outros, na perspectiva de um pacífico regresso, que ia
encerrar as discutíveis, alegrias dessa partida de pra­
zer. A outro passeio como aquele, com gente tão mal­
-humorada, nunca mais ela esperava ser arrastada.
Enquanto esperava pela sua carruagem, encon­
trou-se ao lado de Mr. Knightley; este olhava em volta
como se não visse ninguém ao pé de si, até que disse:
- Ema, devo mais uma vez falar-lhe como estou
habituado a fazer: é um privilégio mais tolerado do
que concedido, talvez, mas, mesmo assim, devo usar
dele novamente. Não posso vê-la errar, sem a censurar.
Porque foi tão cruel para Miss Bates? Como pôde ser
insolente a tal ponto para com uma mulher daquela
índole, idade e condição? . . . Ema, não esperava isso
de si.
Ema, lembrando-se do incidente , corou, sentiu
remorsos, mas procurou levar o caso a rir.
- Ora! como podia eu deixar de dizer o que disse?
Todos fariam o mesmo que eu. Não acho que fosse tão

387
JANE A USTEN

cruel como isso . . . Quer-me parecer que ela não me


compreendeu.
- Pode ter a certeza de que a compreendeu. Ela
sentiu bem o alcance das suas palavras. Desde então
não tem falado noutra coisa. Gostava que a ouvisse . . .
gostava que visse a candura, a generosidade d a pobre
mulher. Gostava que a ouvisse elogiar a sua paciência
com ela, as atenções que tem recebido de si e de seu
pai, apesar de a companhia dela ser tão fastidiosa.
- Oh! - exclamou Ema - eu bem sei que não há
melhor criatura no mundo; mas deve reconhecer que
a bondade e o ridículo infelizmente confundem-se
muito nela.
- Confundem-se, - disse ele - não há dúvida;
mas fosse ela rica e estou certo de que o ridículo
prevaleceria sobre a bondade . Fosse ela uma mulher
de fortuna, e seria eu o primeiro a não me incomodar
com esses inofensivos disparates , a não discutir
consigo essas liberdades . Fosse a situação dela igual
à sua . . . Mas , Ema, repare como estamos longe disso
tudo. Ela é pobre; perdeu todo o bem-estar a que estava
acostumada, e, se viver muito, provavelmente ainda
mais perderá. A situação dela devi a ser uma garantia
da sua compaixão. Foi realmente uma acção má! A
Ema, que ela conhece desde o berço, que ela viu crescer
numa época em que era uma honra ser recebido em
sua casa, esquecer-se disso tudo e, num momento de
irre fl e x ã o , num a c e s s o de orgulho , rir - s e del a ,
humilhá-la . . . e, ainda mais, à frente d a sobrinha . . . à
frente dos outros, muitos dos quais, pelo menos alguns,
orientariam a maneira de a tratar pela de Ema ! . . . Isto
não é agradável para si . . . e para mim também está
muito longe de o ser; mas devo dizer-lhe e dir-lhe-ei
as verdades enquanto puder, satisfeito por lhe
demonstrar a minha amizade por conselhos leais, e
confiado em que, mais tarde ou mais cedo, a Ema me
fará a j ustiça que agora não pode fazer.
Entretanto, tinham chegado junto da carruagem,
que já estava pronta para se pôr em marcha; e, antes
que Ema pudesse replicar-lhe, Mr. Knightley esten-

388
EMA

deu-lhe a mão para a ajudar a subir. Ele interpretara


mal os sentimentos que a faziam conservar a cara
voltada e a impediam de dizer palavra. Eram um misto
de cólera contra si própria, mortificação e remorso
profundo. Não conseguira falar; e, ao entrar para a
carruagem, deixou-se cair nas almofadas, por um
momento sucumbid a ; depoi s , censurando-se a si
própria por se não ter despedido, por não ter reco­
nhecido a sua falta, por partir sob aquela aparência
de teimosia, espreitou à j anela e, com a voz e com o
gesto, procurou, ansiosa, mostrar o que na realidade
sentia; mas era tarde: Mr. Knightley tinha-se afastado
e a carruagem começava a mover-se. Ela continuou a
olhar para trás, mas em vão; e não tardou que, com
uma velocidade que se afigurava desusada, o veículo
chegasse a meio da encosta e tudo ficasse para trás .
A angústia de Ema ia além de tudo quanto se possa
imaginar; era-lhe quase impossível disfarçá-la. Em
nenhuma circunstância da sua vida se sentira tão
comovida, tão mortificada, tão aflita. Estava profunda­
mente abalada. A verdade das palavras que acabara
de ouvir impunha-se por si. Sentia-o no mais íntimo
da alma. Como pudera ela ser tão brutal, tão cruel
para Miss B ates? . . . Como se expusera ela a tão
enérgicas censuras da parte de uma pessoa que ela
tanto considerava? . . . E como podia admitir que essa
pessoa a tivesse deixado partir sem que ela tivesse
uma palavra de gratidão, de reconhecimento , de
simples delicadeza? . . .
O tempo não lhe tranquilizava o espírito . Quanto
mais meditav a , mais parecia sentir tudo o que
ocorrera. Nunca se sentira tão deprimida. Felizmente
não precisava de falar. Apenas tinha Harriet a seu
lado, e esta também não parecia muito alegre: estava
fatigada e só desej ava silêncio; e Ema, com as lágrimas
a correrem-lhe pelas faces durante quase todo o
caminho, não se dava ao trabalho de as reprimir, tão
raras elas eram.

389
JANE A USTEN

CAP ÍTULO XLIV

O fracasso em que descambara o passeio a Box Hill


não saiu da ideia de Ema toda a tarde. Como os outros
o considerariam, não o podia ela dizer. Cada um, na
sua casa e segundo o seu modo de ver, era possível
que o recordasse com prazer; mas, no pensar dela,
tinha sido uma manhã completamente estragada, uma
manhã tão despida da mais elementar alegria, uma
manhã de tão triste memória, como ela nunca tinha
passado . Um serão de gamão com o pai era uma
felicidade em comparação com as horas que passara
em Box Hill ; agora , ao meno s , havia uma real
satisfação, pois concedia ao pai os momentos mais
agradáveis que ele podia fruir nas vinte e quatro horas .
E era reconhecendo isso que, por imerecido que fosse
o vivo afecto e a confiante estima do pai por ela, Ema
não via, em geral, na maneira como procedia, nada
que merecesse crítica severa. Como filha, não se
julgava menos amorável. Esperava que ninguém lhe
pudesse dizer: «Por que é tão desafeiçoada a seu pai?
Devo dizer-lhe e dir-lhe-ei as verdades enquanto
puder» . Miss Bates nunca mais teria razão de queixa . . .
isso não ! S e a s atenções pudessem apagar o s erros
passados, Ema tinha a certeza de que o futuro lhos
havia de perdoar. Sabia que fora muitas vezes remissa,
a sua consciência lho acusava; remissa, talvez, mais
em pensamento do que em actos, isto é, desdenhosa,
insensível. Mas tudo isso ia acabar. No calor do seu
sincero arrependimento, resolveu visitar Miss Bates
na manhã seguinte: seria da sua parte o início de uma
ininterrupta e benévola intimidade .
No dia seguinte mantinha a mesma determinação
e, para que nada a pudesse estorvar, apressou-se a
cumpri-la. Não era improvável, pensava, que encon­
trasse Mr. Knightley no caminho; ou talvez que ele
fosse a Hartfield enquanto ela se demorava na visita.
Fosse como fosse, não desistiria do seu propósito. Não
teria de se envergonhar de que ele testemunhasse a

390
EMA

sua penitência, tão justa e tão sincera. À medida que


caminhava, não tirava os olhos da estrada de Donwell,
mas não o viu .
«As senhoras estavam todas em casa» . Todas as
vezes que ali fora em simples visita, ou no intuito de
prestar algum favor, nunca se regozij ara tanto como
agora, ao ouvir aquelas palavras; ao passar por aquele
corredor, ou ao subir aquela escada, nunca deixara de
experimentar uma sensação de ridículo.
Houve uma certa agitação à sua chegada; ouviu-se
mexer e falar. Ema distinguiu a voz de Miss Bates e
um rumor de qualquer coisa que se fazia à pressa; a
criada pareceu assustada e comprometida. «Que
fizesse o favor de esperar um momento». Pareceu-lhe
ver a tia e a sobrinha fugirem para o aposento contíguo.
Jane, que ela ainda pode ver de relance, tinha aspecto
de muito doente; e antes que a porta se tivesse fechado
sobre elas , Ema ouviu Miss Bates dizer:
- Bem, minha filha, direi que estás deitada em
cima da cama, e a verdade é que estás doente.
A pobre Mrs . B ates , delicada e humilde como
sempre, parecia não compreender bem o que se
passava.
- Receio que Jane não estej a boa, - disse ela -
mas não sei; elas dizem-me que não tem nada . . . Oxalá
que minha filha se não demore, Miss Woodhouse .
Queira puxar uma cadeira. Hetty não devia ter-se ido
embora: eu pouco posso . . . Já tem a cadeira? Sente-se
onde melhor lhe apeteça. Oxalá que ela se não demore.
Ema também assim o desej ava. Por um momento
receou que Miss Bates fugisse dela; mas Miss Bates
não tardou.
- Muito prazer . . . Muito obrigada . . .
A consciência de Ema dizia-lhe que não havia nela
a mesma alegre volubilidade de sempre, - parecia
haver menos franqueza no olhar e nos modos. No
entanto , tinha a esperança de que , perguntando
amavelmente pela saúde de Miss Fairfax, facilitaria
o regresso aos mesmos sentimentos dos dias ante­
riores. O resultado foi imediato.

391
JANE A USTEN

- Ah! Miss Woodhouse, que bondade a sua! . . . Com


certeza já sabe . . . e vem dar-nos os parabéns. Apesar
de que eu não pareço estar ml}ito alegre . . . (e limpou
furtivamente uma lágrima). E muito custoso sepa­
rarmo-nos dela, depois de estar há tanto tempo
connosco; e ela agora está com uma terrível dor de
cabeça . . . esteve a escrever toda a manhã. Sabe, cartas
enormes para o coronel Campbell e para Mrs . Dixon,.
Eu bem lhe disse: «Minha filha, ainda ficas cega . . . » . E
que as lági:imas corriam-lhe em fio. Não admira, não
admira . . . E uma mudança muito grande; e embora
ela tenha uma sorte extraordinária . . . uma colocação
como nunca conseguiu até hoje uma rapariga que se
emprega pela primeira vez . . . Não nos julgue ingratas ,
Miss Woodhouse, diante de tão boa fortuna . . . (enxugou
outra vez as lágrimas) mas , coitadinha! . . . Se visse as
dores de cabeça que ela tem! Quando uma pessoa sofre
muito , não pode apreciar como deve um bem que
receba. Jane está muito aflita; quem olhar para ela
não diz como está satisfeita por ter uma situação
assegurada. Desculpá-la-á por não lhe aparecer. . . mas
não pode . . . Foi para o seu quarto; mandei-a deitar-se
em cima da cama. Disse-lhe : «Minha filha, direi que
te deitaste em cima da cama». Mas , apesar disso, não
se deitou: anda a passear de cá para lá. Agora que
acabou de escrever as cartas , diz que daqui a pouco
e s t á b o a . H á- d e l a mentar muito n ã o ver M i s s
Woodhous e , m a s a menina terá a bondade de a
desculpar. Deixaram-na ficar à porta, à espera . . .
Realmente estou envergonhada . . . mas isto estava um
pouco desarrumado . . . e sucedeu que nós não tínhamos
ouvido bater, e enquanto não a ouvimos subir a escada
não soubemos que vinha alguém. «Deve ser Mrs . Cole
- disse eu. - Ninguém senão ela viria tão cedo». «Bem
- disse J arre - isto tem de ser mais tarde ou mais
cedo, e tanto vale ser agora como depois». Mas Patty
entrou e d i s s e que era a menin a . « O h ! é M i s s
Woodhouse . . . - disse e u ; - com certeza hás-de querer
vê-la» . Mas ela levantou-se e fugiu, dizendo : «Não
posso ver ninguém» . E foi por isso que a fizemos
esperar contra nossa vontade . Estávamos tão enver-

392
EMA

ganhadas ! Eu então disse a Jane: «Se queres ir, vai,


minha filha, que eu digo que te foste deitar em cima
da cama».
Ema estava sinceramente interessada pelo que
ouvia. Há muito que se sentia cheia de benevolência
para com Jane; este retrato dos seus sofrimentos
presentes agia como remédio contra todas as suas
antigas suspeitas e nada mais deixava subsistir nela
do que piedade; e a recordação dos pensamentos menos
justos e amáveis de outro tempo levava-a a achar
muito natural que Jane se não importasse de ver Mrs .
Cole ou qualquer outra amiga sincera e não quisesse
vê-la a ela.
Ema dizia o que sentia; exprimia vivamente o seu
pesar e o desejo de que as circunstâncias que Miss
Bates acabava agora de lhe comunicar contribuíssem
tanto quanto possível para o bem-estar e para a
felicidade de Miss Fairfax.
Pensava que aquilo devia ser uma dura provação
para todas três e j ulgava que tinha sido adiado até ao
regres�o do coronel Campbell.
- E muito bondosa! - replicou Miss Bates ; - foi
sempre tão bondosa!
Era insuportável ouvir aquele «sempre» e, para se
eximir a uma gratidão que tanto receava, Ema
perguntou-lhe sem rodeios :
- Posso saber para onde vai Miss Fairfax?
- Para c a s a de Mrs . S m allridge . . . u m a b o a
senhora, e muito fina . . . Vai tomar a seu cargo a
educação , de três meninas . . . umas crianças encan­
tadoras . E impossível encontrar situação melhor, se
exceptuarmos, talvez , a família de Mrs . Suckling e a
de Mrs . Bragges; mas Mrs . Smallridge é íntima de
ambas e habita na mesma região: apenas a quatro
milhas de Maple Grave. Jane ficará apenas a quatro
milhas; de Maple Grave .
- E Mrs . Elton a pessoa a quem Miss Fairfax deve
a sua c,olocação, não?
- E s i m , é a n o s s a b o a Mrs . E l t o n , a mais
incansável, a melhor das amigas ! Ela não quis ouvir
uma negativa; não quis ouvir Jane dizer que não. E

393
JANE A USTEN

que Jane, quando ouviu pela primeira vez falar nisso . . .


foi anteontem, n a mesma manhã e m que estivemos
em Donwell . . . quando Jane ouviu falar nisso pela
primeira vez, estava inteiramente resolvida a recusar
a oferta, pelas razões que Miss Woodhouse citou; como
di s s e , ela não queria tomar qualquer resolução
enquanto o coronel Campbell não regressasse; nada
havia que a convencesse a tomar de momento qualquer
compromisso, e assim o disse repetidas vezes a Mrs .
Elton . . . Eu mesma estava persuadida de que ela não
alteraria a sua decisão . . . Mas a boa Mrs . Elton, cujo
critério nunca a engana, via mais longe do que eu.
Nem toda a gente estava disposta a ter a paciência
que ela teve e a recusar ouvir as negativas de Jane;
declarou peremptoriamente que não transmitiria a
sua recusa, como Jane pretendia, e que esperaria; e o
que é facto é que, ontem à noite, ficou assente que
Jane iria. Foi uma verdadeira surpresa para mim !
Não esperava tal coisa! Jane chamou Mrs . Elton de
parte e disse-lhe sem rodeios que , depois de ter
reflectido nas vantagens que lhe traria o lugar em
casa de Mrs . Smallridge , decidira aceitá-lo, eu nada
soube senão depois de tudo resolvido.
- Passaram a noite com Mrs . Elton?
- Sim, passámos todas ; Mrs . Elton quis que nós
fossemos para sua casa. Assim ficou combinado em
Box Hill, enquanto andávamos a passear com Mr.
Knightley. «Têm de ir todos passar a noite a nossa
casa - disse ela; - quero que vão todos».
- Mr. Knightley também foi, não?
- Não, Mr. Knightley não foi; declinou o convite
logo de princípio; eu julgava que ele acabasse por ir,
por Mrs . Elton dizer que não o dispensava, mas não
foi. Minha mãe, Jane e eu é que fomos para lá . . . foi
um serão muito agradável ! Sabe, são tão boa gente,
Miss Woodhouse . . . apesar de fatigados pelo passeio
da manhã, mostraram-se tão atenciosos ! E que mesmo
o prazer fatiga . . . e eu não julgo que tivessem gozado
muito. No entanto, sempre direi que foi um passeio

394
EMA

delicioso e que estou muito grata aos bons amigos que


me convidaram.
- É claro que a senhora não sabia de nada, mas
não acha que Miss Fairfax já devia ter tomado essa
decisão durante o dia?
- Sim, devia ter . . .
- Quando chegar a ocasião, tanto ela como o s seus
amigos hão-de senti-lo . . . mas oxalá que a sua missão
lhe sej a tão fácil quanto possível . .. Quero referir-me
às qualidades e aos hábitos da família.
- Obrigada, querida Miss Woodhouse. Efectiva­
mente ela tem lá tudo quanto é preciso para a fazer
feliz . Se exceptuarmos os Sucklings e os Bragges, não
há, entre todos os conhecimentos de Mrs . Elton, gente
tão liberal e tão distinta. Mrs . Smallridge é uma
mulher encantadora! Um género de vida quase igual
ao de Maple Grove . . . e quanto às crianças, a não serem
os pequenos Sucklings e os pequenos Bragges, não as
há mais meigas neste mundo. Jane será tratada com
tal consideração, com tal bondade ! . . . Há-de ser uma
vida deliciosa. E o ordenado ! . . . Ah! Miss Woodhouse,
realmente não me atrevo a dizer-lhe quanto ela vai
ganhar . . . Até a menina, habituada como está às
grandes quanti a s , havia de ter dificuldade em
acreditar que dessem tanto dinheiro a uma rapariga
da idade de Jane.
- Ah! minha senhora, - exclamou Ema - se as
outras crianças se parecem com o que eu me lembro
de ter sido, acho que cinco vezes a soma que se costuma
pagar por tal encargo não é demais .
- Miss Woodhouse tem ideias tão nobres !
- E quando é que Miss Fairfax as deixa?
- Brevemente, muito brevemente; isso é que é o
pior! Dentro de quinze dias; Mrs . Smallridge tem
muita pressa. A minha pobre mãe não sabe como há-de
suportar tal coisa . Eu bem faço o possível por lho
afastar da ideia; eu bem lhe digo: «Vamos , mamã, não
pensemos mais nisso» .
- Os amigos de Miss Fairfax hão-de sentir muito
a sua ausência . . . E não acha que o coronel Campbell

395
JANE A USTEN

e Mrs . Campbell hão-de lastimar que ela se tenha


comprometido antes do regresso deles?
- Com certeza; Jane diz que eles não vão gostar,
mas a verdade é que a situação que lhe obtiveram é
de tal ordem que ela não podia encontrar razões para
a recusar. A princípio, fiquei tão surpreendida quando
ela me contou o que tinha dito a Mrs . Elton e quando
Mrs . Elton veio no mesmo instante felicitar-me! Foi
antes do ch:;í . . . espere . . . não, não foi antes do chá,
porque nós Iamos nesse momento jogar as cartas . . .
Mas , realmente, parece-me que foi antes, porque me
recordo de que estava pensando . . . Ah! não, agora me
lembro : sucedeu qualquer coisa antes do chá, mas não
foi isso. Antes de tomarmos o chá, chamaram Mr.
Elton : era o filho do velho John Abdy que queria
falar-lhe . Coitado do John ! . . . E stimo-o muito ; foi
empregado de meu pobre pai durante vinte e sete anos
e, agora, o pobre velho está amarrado à cama com
reumatismo gotoso . . . Tenho de ir vê-lo hoje e Jane,
com certeza, também vai, se se resolver a sair. Pois o
filho do pobre John foi falar com Mr. Elton a respeito
de um auxílio da paróquia; ele está muito bem, como
sabe: é ele que faz todo o serviço na Coroa, que está à
frente das cavalariças , etc . , mas , mesmo assim, não
pode sustentar o pai sem alguma ajuda. E Mr. Elton,
quando voltou para junto de nós , disse-nos que John
lhe tinha contado que tinham mandado a Randalls
um carro para transportar Mr. Frank Churchill a
Richmond. Foi isto que aconteceu antes do chá; depois
é que Jane falou com Mrs . Elton.
Miss Bates mal deu tempo a Ema para esta dizer
quanto era novidade para ela essa circunstância; mas
não houve inconveniente nisso, pois que Miss Bates,
mesmo não achando possível que Ema ignorasse tudo
quanto se relacionava com a partida de Frank
Churchill, a foi, em todo o caso, informando do que
sabia a tal respeito.
O que Mr. Elton tinha ouvido ao moço de cavalariça
acerca do assunto, isto é, um resumo de tudo quanto
este último s abia e do que sabia a criadagem de

396
EMA

Randalls, foi que, pouco depois do regresso de Box Hill,


tinha chegado a Richmond um mensageiro, que mais
ou menos se esperava, e pelo qual Mr. Churchill
mandava a seu sobrinho uma carta em que lhe dava
notícias relativamente boas de Mrs . Churchill e lhe
recomendava que não retardasse o seu regresso além
das primeiras horas da manhã seguinte; mas que,
como Mr. Frank Churchill tinha resolvido partir
imediatamente e o cavalo estava com um resfriamento,
Tom tinha sido logo mandado à Coroa , à procura de
um carro. O moço de cavalariça tinha-o visto e, por
sinal, bastante apressado.
Não havia nisto motivo de espanto nem de in­
teresse; apenas prendeu a atenção de Ema por estar
ligado à questão que lhe ocupava o espírito. Não podia
deixar de a impressionar o contraste entre Mrs .
Churchill e Jane Fairfax: uma era tudo, a outra nada.
E estava meditando nas diferenças do destino das
mulheres, inconsciente do ponto em que os seus olhos
se fixavam, quando foi despertada por Miss Bates,
que dizia:
- Ah ! já sei em que está a pensar . . . é, no piano .
Que destino se lhe há-de dar, não é? Tem razão. A
pobre Jane ainda há pouco falou nisso. Dizia ela: «Tens
de sair daqui. Temos de nos separar; já aqui não fazes
nada» . E depois disse: «No entanto, deixemo-lo ficar;
arrum a - s e a qualquer canto, até que o coronel
Campbell regresse. Falar-lhe-ei a respeito do piano;
ele há-de resolver qualquer coisa. Tenho a certeza de
que há-de tirar-me de dúvidas». E a verdade é, que
até hoje ela não sabe se o piano foi presente dele se da
filha.
Ema foi então obrigada a pensar no piano ; e a
memória de todas as suas antigas e fantasiosas
conjecturas foi tão pouco agradável que não tardou a
pensar que a visita j á durara de mais. Renovando,
pois, os bons desejos já uma vez expressos e que ela
realmente sentia, despediu-se .

397
JANE A USTEN

CAPÍTULO XLV

Nada interrompeu as melancólicas reflexões de


Ema, enquanto se dirigia para casa; mas ao entrar na
sala de visitas , as primeiras pessoas com quem
deparou foram aquelas que haviam despertado essas
mesmas reflexões. Mr. Knightley, e Harriet tinham
chegado durante a sua ausência e estavam conver­
sando com Mr. Woodhouse. Mr. Knightley levantou-se
logo e, num tom intencionalmente mais grave que de
costume, disse:
- Não queria ir-me embora sem a ver; mas como
não tenho tempo a perder, tenho de me retirar já. Vou
a Londres, passar uns dias com John e Isabella. Quer
que lhes transmita algum recado , além das «sau­
dades» , que ninguém se lembra de dar?
- Não, obrigada. Mas essa resolução foi tomada
de um momento para o outro, não foi?
- Sim . . . até certo ponto . . . não me lembrei disto há
muito tempo .
Ema estava convencida de que ele lhe não havia
perdoado; achava-o diferente do habitual . O tempo,
pensava ela, acabaria, contudo, por lhe mostrar que
eles tinham de continuar a ser bons amigos. Enquanto
ele permanecia de pé, como que disposto a retirar-se,
mas sem se resolver a tal . .. Mr. Woodhouse principiou
a fazer perguntas à filha.
- Então, minha filha, chegaste lá sem novidade?
E como encontraste a minha boa amiga e sua filha?
Estou convencido de que elas devem ter ficado muito
contentes com a tua visita . . . A minha querida Ema foi
visitar Mrs . e Miss Bates, Mr. Knightley, como já tive
ocasião de lhe dizer. É sempre tão atenciosa com elas !
Ema sentiu-se corar ante este elogio imerecido; e,
sorrindo e abanando a cabeça significativamente,
olhou para Mr. Knightley. Dir-se-ia ter transmitido
no mesmo instante uma impre s s ã o que lhe era
favorável; dir-se-ia ter comunicado aos olhos de Mr.
Knightley toda a verdade, ao mesmo tempo que tudo

398
EMA

o que de bom havia em si era por ele captado e


apreciado . Ele fixou-a com um brilho no olhar. Ema
ficou profundamente lisonj eada e, momentos depois,
ainda mais, ante o gesto com que ele testemunhou
uma amizade acima do vulgar. Pegou-lhe na mão; se
foi ela que se antecipou ou não, não o poderia dizer . . .
talvez lha tivesse oferecido; mas o que é certo é que
ele pegou-lhe na mão, apertou-lha e certamente estava
a ponto de a levar aos lábios, quando, tomado de
qualquer ideia súbita, a deixou cair. Porque teria ele
sentido tal escrúpulo, porque teria mudado de ideia
no último momento, não podia Ema compreender.
Tê-la-ia julgado melhor, pensava ela, se não se tivesse
detido. A intenção, porém, era clara; quer fosse porque
ele era, em geral, pouco dado à galantaria, quer fosse
por qualquer outro motivo, Ema pensava que nada
condizia melhor com a sua natureza tão simples e,
contudo, tão digna. No entanto, não podia deixar de
lembrar com satisfação aquele gesto reprimido e que
revelava uma perfeita amizade !
Mr. Knightley despediu-se em seguida e partiu. Nos
seus modos manifestava sempre aquela vivacidade de
um espírito resoluto, mas agora parecia ter-se retirado
mais bruscamente que de costume.
Ema não estava arrependida da sua visita a Miss
Bates; apenas lamentava não se ter despedido dela
dez minutos mais cedo, porque teria tido grande prazer
em conversar com Mr. Knightley sobre a situação de
Jane Fairfax. Também não lastimava que ele partisse
para Brunswick Square, pois sabia quanto a sua visita
seria apreciada; mas a verdade é que isso podia muito
bem realizar-se em melhor ocasião, teria sido muito
mais agradável que os houvessem prevenido há mais
tempo.
E ntretanto , separaram-se em termos perfeita­
mente amigáveis; Ema não podia enganar-se quanto
ao significado da sua expressão e do seu inacabado
gesto de galantaria: tudo lhe assegurava que ela havia
recuperado inteiramente o lugar que sempre ocupara

399
JANE A USTEN

no conceito dele . Ema soube que ele se demorara ali


meia hora. Que pena não ter vindo mais cedo!
No intuito de distrair a atenção do pai da partida
de Mr. Knightley para Londres, aquela partida tão
súbita, aquela j ornada a cavalo que ela sabia serem
motivo de apreensão para Mr. Woodhouse, apressou-se
a participar o que sabia a respeito de Jane Fairfax; as
suas esperanças foram coroadas de êxito: a notícia
causou no pai uma impressão muito eficaz - inte­
ressou-o, sem o perturbar em demasia. Há muito que
ele esperava que Jane Fairfax se colocasse como
preceptora e, portanto, pode discorrer j ovialmente
acerca do assunto; a partida de Mr. Knightley para
Londres é que havia sido um golpe inesperado.
- Estou muito satisfeito, minha filha, por saber
que ela fica tão vantajosamente colocada. Mrs . Elton
é muito amável e bondosa e eu estou convencido de
que e s s a família com quem e s t á relacionada é
exactamente aquilo que convém. Tenho a certeza de
que se trata de uma situação digna e que Miss Fairfax
não deixará de olhar pela saúde da senhora a que vai
prestar os seus serviços . Este deve ser o seu principal
objectivo, como foi o da pobre Miss Taylor para comigo.
Bem vês , minha querida, que ela vai ocupar o mesmo
lugar que Miss Taylor ocupou em nossa casa. Oxalá
que se dê melhor ainda do que se tem dado e que,
nesse caso, nada a leve a abandonar mais tarde o que
tiver sido por tanto tempo o seu lar.
O dia seguinte trouxe notícias de Richmond, que
atiraram tudo o mais para segundo plano. Chegou a
Randalls um expresso anunciando a morte de Mrs .
Churchill ! Não obstante o sobrinho não haver tido
razões especiais para se apressar a voltar a Richmond,
o certo é que a tia não viveu mais de trinta e seis
horas depois do regresso do rapaz . Vitimara-a em
poucos instantes um súbito ataque de n atureza
diferente de tudo quanto pressagiava o seu estado
geral. A grande Mrs . Churchill deixara de existir.
O facto teve as repercussões que não podia deixar
de ter. Todos patentearam em grau relativo a mesma

400
EMA

tristeza solene: saudade pela defunta, solicitude pelos


amigos que fi c avam ; e, p a s s ado o c o nveniente
intervalo, todos manifestaram a curiosidade de saber
onde ela seria sepultada. Goldsmith diz que, quando
uma mulher se avilta até à loucura, só lhe resta um
recurso - morrer; e quando chega ao ponto de se
tornar detestável não se recomenda menos como foco
de má reputação. Mrs . Churchill, que só inspirara
antipatia durante vinte e cinco anos, pelo menos, tinha
agora quem fal asse dela compas sivamente . Sob
determinado aspecto, o facto j ustificava-se; nunca
tinham acreditado que ela estive sse seriamente
doente, e a morte, agora, redimia-a de todos os seus
caprichos e de todo o egoísmo que teria havido nos
seus males imaginários .
Pobre Mrs . Churchill ! Afinal sempre era verdade
ela estar bastante doente : mais do que se tinha
suposto . . . e o sofrimento constante azeda o tempera­
mento. Era um acontecimento bem triste . . . Que grande
choque ! Com todos os seus defeitos, que faria Mr.
Churchill sem ela? Mr. Churchill tinha realmente
sofrido uma grande perda! Mr. Churchill, com certeza,
nunca se conformaria.
Até Mr. Weston abanava a cabeça e, com expressão
grave, dizia:
- Ah ! pobre mulher! quem o teria pensado ! . . .
Decidiu que o seu luto havia de ser tão elegante
quanto pos sível, e a esposa suspirou e também
discorreu acerca da barra a pôr no vestido, com uma
comiseração sincera e um bom senso indiscutível ,
Como o facto afectaria Frank foi uma das questões
que primeiro ocuparam o espírito de ambos . Foi
também uma das primeiras ideias que assaltaram
Ema. A índole de Mrs . Churchill e a dor do marido
eram os dois obj ectos imediatos para que ela olhava
com respeito e compaixão; e, depois, com um espírito
mais leve , meditava sobre a repercu s s ã o que o
acontecimento teria em Frank, que benefícios colheria
ele, até que ponto ficaria livre. Num momento, anteviu
todas as possíveis vantagens . Agora nada haveria que

401
JANE A USTEN

se opusesse a uma aliança com Harriet Smith. Mr.


Churchill , sem a e s p o s a , não infundia receio a
ninguém; era um homem pacífico, dócil , que se
deixaria persuadir pelo sobrinho. O que era de desej ar
era que Frank se enamorasse de Harriet, por isso que,
apesar de toda a sua boa vontade, Ema não tinha a
certeza de que ele j á estivesse enamorado.
H arri et comport o u - s e admiravelmente nesta
emergência, demonstrando um perfeito domínio de si
própria. Quaisquer que fossem as suas esperanças,
nada denunciou, porém. Ema teve a satisfação de
verificar o que considerava uma prova de força de
vontade e evitou toda a alusão que a pusesse em risco
de soçobrar. Falaram, portanto, da morte de Mrs .
Churchill com mútua discrição.
Recebeu-se em Randalls uma carta de Frank, em
que este, em meia dúzia de linhas, revelava o que lhe
interessava directamente, quanto à sua situação e aos
seus proj ectos de vida. Mr. Churchill estava melhor
do que se poderia j ulgar; depois do funeral para o
Yorkshire, iriam ambos para casa de um velho amigo,
que residia em Windsor, a quem Mr. Churchill andava
prometendo uma visita há dez anos. Por enquanto,
nada havia a fazer em favor de Harriet; bons desej os
quanto ao futuro era tudo quanto se afigurava possível
por parte de Ema.
Agora impunha-se, sobretudo, atender a Jane
Fairfax, cuj as perspectivas se fechavam, enquanto as
de Harriet prometiam alargar-se, e cujos compro­
missos não admitiam negligência de quem quer que,
em Highbury, pretendesse manifestar interesse por
ela; e o desejo de Ema cada vez era maior nesse sentido.
Dificilmente haveria maior remorso do que aquele que
ela sentia da sua frieza de outro tempo; e a pessoa por
quem patenteara a maior indiferença durante tantos
meses era agora precisamente aquela a quem desejaria
prodigalizar todas as provas de estima e simpatia.
Tinha o maior empenho em ser-lhe útil, em mostrar
apreço pelo seu convívio, em lhe testemunhar respeito
e consideração . Resolveu convidá-la a passar um dia

402
EMA

em Hartfield; e, com esse fim, escreveu-lhe um bilhete.


O convite não foi aceito e a recusa foi transmitida de
viva voz por um mensageiro. «Ü estado de saúde de
Miss Fairfax não lhe permitia escrever» . E quando
Mr. Perry foi nessa manhã a Hartfield, soube-se que
Jane estava tão doente que, embora contra sua
vontade, o médico tivera de lá ir; atacavam-na fortes
dores de cabeça e uma febre tão alta que ele duvidava
de que ela pudesse partir para casa de Mrs. Smallridge
na data fixada. Com a saúde muito abalada, tinha
perdido o apetite por completo; e, embora os sintomas
não fossem alarmantes, por isso que não tinha os
pulmões afectados, principal preocupação da família,
o certo é que Mr. Perry tinha apreensões a seu respeito.
Achava ele que Jane tinha abusado de mais das suas
forças e que ela assim o sentia, embora o não quisesse
confessar. A sua energia parecia vencida. Mr. Perry
não podia deixar de notar que a casa em que ela vivia
não oferecia condições favoráveis ao tratamento de
uma doença nervosa; ele teria preferido não a ver
sempre confinada no mesmo aposento, e, além disso,
era forçado a reconhecer que a boa da tia, não obstante
a velha amizade que a ligava a Mr. Perry, não era a
companheiro ideal para uma doente daquele género.
Não se podiam pôr em dúvida os seus cuidados , a sua
solicitude; de facto, não podiam ser maiores; mas Mr.
Perry tinha sérios receios de que Miss Fairfax colhesse
deles mais mal do que bem.
E m a escutava-o com o maior intere s s e ; preo­
cupava-se cada vez mais com Jane e cogitava, ansiosa,
na maneira de descobrir qualquer meio de lhe ser útil.
Tirá-la à tia - nem que fosse por uma hora ou duas ,
- fazê-la mudar de ambiente, proporcionar-lhe novos
e mais interessantes assuntos de conversa, mesmo por
uma hora ou duas, só lhe podia fazer bem. E, na manhã
seguinte, escreveu-lhe, a avisá-la, nos termos mais
cativantes que pode empregar, de que iria buscá-la
na sua carruagem, à hora que Jane designasse, não
se esquecendo de frisar que o fazia com a aprovação

4 03
JANE A USTEN

de Mr. Perry, que via nisso grande vantagem para a


sua saúde . A resposta limitou-se a estas palavras :

Miss Fairfax cumprimenta e agradece, mas é-lhe


completamente impossível sair.

Ema entendeu que o seu bilhete merecia melhor


resposta; mas não valia a pena prender- se com
palavras, em que se revelava claramente o estado
anormal de quem as escrevi a . Tratou apenas de
procurar a melhor forma de combater aquela má
vontade . Por isso, não obstante tal resposta, mandou
aprontar a carruagem e partiu para casa de Miss
Bates, na esperança de que Jane se persuadisse a sair
com ela. Mas não foi assim; Miss Bates veio à porta,
d e s fe z - s e em agradecimentos , reconhec e u , com
entusiasmo, que um passeio só traria benefícios à
sobrinha, insistiu com esta para que aceitasse o convite
feito no bilhete , mas tudo em vão . Miss Bates foi
obrigada a confessar-se vencida; Jane não se deixava
de forma alguma convencer. Bastava proporem-lhe
sair, para que se sentisse pior.
Ema gostaria de falar com ela e então usaria de
todo o s e u poder de pers u a s ã o ; mas mal havia
formulado esse desejo, quando Miss Bates lhe disse
que tinha prometido à sobrinha não deixar, sob
pretexto algum, entrar Miss Woodhouse .
Ora, a verdade é que Jane não podia ver ninguém . . .
absolutamente ninguém. A não ser, claro está, Mrs .
Elton , que ela não podia recusar-se a receber e Mrs .
Cole e Mrs . Perry, que tinham insistido tanto . . . Jane
não queria ver ninguém.
Ema não desej ava de modo algum ser confundida
com as Mrs . Eltons , as Mrs . Perrys e as Mrs . Coles,
que tinham por costume imiscuir-se em tudo; por outro
lado, também se não j ulgava com direitos de pre­
ferência. Submeteu-se, portanto, e apenas se limitou
a interrogar Miss Bates quanto ao apetite da sobrinha
e aos alimentos que esta preferia; era seu desej o
auxiliá-la. Nesse capítulo mostrou-se Miss Bates assaz
desgostosa e prolixa; Jane mal comia. Mr. Perry

404
EMA

aconselhara-lhe alimentos substanciosos, mas não


havia acepipe que lhe arranj assem (e agora se viam
os bons amigos que elas tinham ! ) que ela não o
recusasse, enj oada.
Ema, ao chegar a casa, apressou-se a chamar a go­
vernanta e a informar-se das provisões que havia; e
não tardou que para casa de Miss Bates fosse expedida
uma porção de araruta de finíssima qualidade, acom­
panhada de um bilhete, cujos termos eram dos mais
afectuosos. Meia hora depois, era recambiada a araruta,
com mil agradecimentos de Miss Bates, mas «a querida
Jane não descansava enquanto a não devolvessem;
era uma coisa que ela não podia tomar, e, além disso,
devia salientar que não necessitava de coisa alguma».
Quando mais tarde Ema soube que Jane Fairfax
fora vista a passear no campo, a uma certa distância
de Highbury, precisamente na tarde do dia em que,
sob o pretexto de estar impossibilitada de sair, tão
peremptori amente se recusara a ir com ela na
carruagem - não teve mais dúvidas - reunidas todas
as circunstâncias - de que decidira não aceitar favores
seu s . E m a ficou extremamente p e s aro s a . O seu
espírito sofria aquela angústia, de todas a mais
lamentável , que provém de um misto de azedume,
impossibilidade de acção e impotência; e o que mais a
mortificava era que dessem tão pouco crédito aos seus
bons sentimentos, ou a j ulgassem tão pouco digna de
a terem por amiga; tinha, porém, a consoladora certeza
da bondade das suas intenções e de que, se Mr.
Knightley fosse sabedor de todas as suas tentativas
de auxílio a Jane Fairfax, se ele pudesse ver no seu
cor � çã.o , nada encontrari a , desta ve z , de que a
recnm1nar.

CAPÍTULO XLVI

Uma manhã, uns dez dias depois da morte de Mrs .


Churchill, Ema foi chamada à escada por Mr. Weston,

405
JANE A USTEN

que «não podia demorar-se mais de cinco minutos e


precisava de falar em particular com ela». No entanto,
acabou por entrar para a sala de visitas e, no seu tom
natural de voz, perguntou-lhe pela saúde; mas, de
m aneira a não ser ouvido por M r . Woodhou s e ,
acrescentou logo:
- Pode vir a Randalls, esta manhã, a uma hora
qualquer? Vej a se pode; Mrs . Weston precisa de lhe
falar. Ela tem de lhe falar.
- Está doente?
- Não, não . . . nada disso; apenas um pouco agitada.
Ela teria mandado aprontar a carruagem para cá vir,
se não precisasse de falar consigo a sós, e a Ema bem
sabe . . .
E , fazendo um sinal com a cabeça n a direcção de
Mr. Woodhouse, acrescentou:
- Hum ! . . . pode vir?
- Com certeza; já, se quiser. É impossível recu-
sar-me a um pedido feito nesses termos . Mas , de que
se trata? Ela não está, na verdade, doente?
- Pode acreditar no que lhe digo . . . Mas não faça
mais perguntas . Sabê-lo-á a seu tempo. O caso mais
inconcebível que se pode dar! Mas não nos ante­
cipemos .
C o nj e cturar o que tudo i s t o signifi c av a , era
impossível até para Ema. Realmente devia haver algo
de importante, a j ulgar pelos modos de Mr. Weston;
mas, como a esposa estava bem, Ema esforçava-se por
se tranquilizar, e, prevenindo o pai de que ia dar um
passeio, não tardou em sair com Mr. Weston, apres­
sando o passo em direcção a Randalls.
- Vamos, - disse Ema, assim que se encontrou a
razoável distância dos portões do parque - vamos,
Mr. Weston, diga-me o que sucedeu.
- Não, não - disse ele, gravemente . - Não me
pergunte nada. Prometi a minha mulher não lhe dizer
nada. Ela lhe dará a má notícia melhor do que eu.
Não sej a impaciente, Ema; nunca é tarde de mais para
a saber.

406
EMA

- A má notícia ! - exclamou Ema, estacando


assustada. - Meu Deus ! . .. Mr. Weston, diga-me j á o
que é. Aconteceu alguma coisa em Brunswick Square . . .
Vej o que aconteceu . . . Diga-me, diga-me imediata­
mente o que foi.
-Não, não é o que j ulga . . .
-Mr. Weston, não m e engane! Lembre-se d e que
muitos dos que me são mais queridos estão agora em
Brunswick Square . . . De qual deles se trata? Su­
plico-lhe por tudo o que há de mais sagrado . . . não me
oculte nada.
- Dou-lhe a minha palavra, Ema . . .
- A sua palavra! . . . Porque não a sua palavra de
honra? . . . Porque não me dá a sua palavra de honra de
que nada é com eles? Valha-me Deus ! . . . Que má notícia
poderá ser, que não se relacione com eles?
- Dou-lhe a minha palavra de honra - disse Mr.
Weston, com ar sério - que, não é nada com a sua
família. O caso não tem a menor ligação com qualquer
daqueles que usam o nome de Knightley.
Ema, mais animada, prosseguiu na sua marcha.
- Fiz mal - continuou ele - em lhe dizer que se
tratava de uma má notícia. Não devia ter usado dessa
expressão. A verdade é que não se relaciona consigo .. .
Apenas a mim diz respeito . . . isto é, nós esperamos . . .
Hum ! E m resum o , minha querida E m a , não há
motivos para alarmes . Não digo que não sej a um caso
muito desagradável . . . mas as coisas podiam ser muito
piores . . . Se formos mais depressa, mais depressa
chegaremos a Randalls.
Ema compreendeu que tinha de esperar; mas agora
o esforço requerido era menor. Portanto, não fez mais
perguntas; limitou-se às suas cogitações, chegando por
fim à conclusão de que, provavelmente, tratar-se-ia
de questões de dinheiro, qualquer coisa de natureza
desagradável que acabasse de surgir nos negócios da
família, qualquer coisa que o último acontecimento
de Richmond trouxesse a lume . A sua imaginação
trabalhava activamente. Meia dúzia de filhos naturais,
talvez . . . e o pobre Frank deserdado! Isto, se bem que

407
JANE A USTEN

não fosse de desej ar, não seria motivo de desgosto para


ela. Não lhe inspirava mais do que viva curiosidade.
- Quem é aquele cavalheiro que ali vai a cavalo?
- perguntou ela, enquanto caminhavam; falava mais
para aj udar Mr. Weston a guardar o seu segredo do
que com qualquer outro intuito.
- Não sei . Deve ser um dos Otways . Frank não é;
isso lhe garanto eu. Não o verá. A estas horas está a
meio caminho de Windsor.
- Então o seu filho esteve consigo?
- Ah! esteve . . . Não sabia? Bem, bem, não importa. . .
Guardou silêncio por alguns momentos e depois
acrescentou, num tom muito mais grave e reservado:
- É verdade; Frank veio cá esta manhã, só para
saber como estávamos .
Apressaram o passo e não tardaram a chegar a
Randalls.
- Olha, minha querida, - disse ele ao entrarem
na sala - aqui a tens ; espero que daqui a pouco j á
estej as melhor. Eu deixo-as . Não h á vantagem alguma
em demorares o que tens para dizer. Se precisarem
de mim, eu não estou longe .
E Ema ouviu-o distintamente acrescentar em voz
baixa, antes de sair da sala:
- Mantive a minha palavra. Ela não faz a menor
ideia do que se trata.
Mrs . Weston parecia tão incomodada, era tal a sua
perturbação, que as apreensões de Ema voltaram; e
assim que ficaram sozinhas, disse, ansiosa:
- Que é, minha querida amiga? Pelo que vej o ,
sucedeu qualquer coisa desagradável . . . Diga-me j á o
que fo i . Vim todo o caminho n a mais profunda
perplexidade. Ambas nós aborrecemos a perplexidade.
Não deixe que a minha continue por mais tempo . Só
lhe fará bem expandir a sua aflição, qualquer que ela
seJ a . . .
- N a verdade não faz ideia do que s e trata? -
disse Mrs . Weston, com voz trémula. - Não adivinha,
minha querida Ema . . . não adivinha o que vai ouvir?

408
EMA

- Apenas suponho que se trate de qualquer coisa


que se relacione com Mr. Frank Churchill .
- Tem razão . Diz-lhe efectivamente respeito , e
vou-lho contar já.
E , retomando o seu trabalho de agulha, prosseguiu,
sem se atrever a olhar para Ema:
-Ele esteve aqui esta ,manhã, portador da mais
extraordinária novidade . E impossível de descrever a
nossa surpresa. Veio falar com o pai acerca de um
assunto . . . anunciar-lhe que estava apaixonado.
Mrs . Weston parou de respirar. Ema pensou logo
em si própria e, depois, em Harriet.
- Afinal, mais que uma paixão - prosseguiu Mrs .
Weston; - um compromisso, um verdadeiro com­
promisso . : Que me dirá, Ema . . . que dirão todos, quando
se souber que Frank Churchill está comprometido com
Jane Fairfax . . . sim, que está há muito comprometido
com ela? . . .
Ema deu um salto, d e surpreendida que ficou; e
depois, horrorizada, exclamou:
- Jane Fairfax! . . . Meu Deus ! A senhora não fala a
sério . . . É impossível que fale a sério !
- Bem pode admirar-se - retorquiu Mrs . Weston,
continuando a desviar os olhos. - Bem pode admi­
rar-se; mas é assim mesmo. Desde Outubro que há
entre eles um compromisso solene . . . feito em Wey­
mouth e conservado em absoluto segredo. Ninguém o
sabia senão eles próprios . . . nem os Campbells , nem a
família dela, nem a dele . Isto é tão inconcebível que,
embora perfeitamente convencida do facto, ainda me
parece incrível. Mal posso acreditá-lo. E eu que julgava
conhecer Frank!
Ema mal ouvia o que lhe diziam. O seu pensamento
dividia-se em duas ideias : as primeiras impressões
que havia trocado com ele a respeito de Miss Fairfax
e o caso da pobre Harriet. E durante algum tempo
nada mais pode fazer senão manifestar o seu espanto
e pedir, repetidas vezes, confirmação do que acabavam
de lhe contar.
- Bem, - disse ela, finalmente, fazendo por tornar
a si - aí está uma novidade em que eu tenho de pensar

409
JANE A USTEN

quase um dia, inteiro, pelo menos, antes de me afazer


inteiramente a ela. O quê ! . . . Comprometido com ela
durante todo o Inverno . . . ainda antes de qualquer deles
ter vindo para Highbury? . . .
- Comprometidos desde Outubro . . . secretamente
comprometidos ! Isto produziu em mim um grande
abalo, Ema. O pai também ficou impressionado. Há
no seu comportamento uma parte que nós não podemos
perdoar-lhe.
Ema reflectiu um momento e depois replicou:
- Não pretendo fingir que não compreendo o que
quer dizer; e para que fique tranquila, asseguro-lhe
que as atenções dele para comigo não tiveram o
resultado que supõe .
Mrs . Weston olhou para Ema, duvidosa; mas a
expressão desta era tão firme como as suas palavras .
- Para que mais facilmente acredite no que lhe
digo, na minha perfeita indiferença por ele, hoje, -
continuou ela - dir-lhe-ei que houve realmente um
período, ao princípio de nos conhecermos, em que
cheguei a gostar del e ; n e s s a ocasião s entia-me
razoavelmente disposta a apaixonar-me por ele . . .
estive mesmo apaixonada . . . e como tudo isso acabou
por ficar em nada é que é talvez caso para nos
admirarmos. A verdade é que, felizmente, tudo acabou.
E, passado algum tempo, pelo menos de há três meses
para cá, já nenhum interesse me despertava. Pode
acreditar no que lhe digo, Mrs . Weston. Esta é a pura
verdade .
Mrs . Weston beij ou-a, com lágrimas de alegria; e
quando pode de novo falar, afirmou à amiga que as
suas palavras lhe tinham feito mais bem do que tudo
quanto havia neste mundo.
- O alívio há-de ser tão grande para Mr. Weston
como foi para mim - disse ela. - Temos estado bem
aflitos. O nosso maior desej o era que gostassem um
do outro . . . e estávamos persuadidos de que assim
sucedia.
- Salvei-me; e por isso devemos ambas dar-nos
por muito feli z e s . Mas e ssa circunstância não o
absolve, Mrs . Weston; devo dizer que o acho muito

410
EMA

digno de censura. Que direito tinha ele de se fingir


livre, quando, afinal, já tinha a sua palavra e o seu
afecto comprometidos? Que direito tinha ele de
procurar agradar, como procurou . . . de distinguir uma
rapariga com as suas persistentes atenções , como
distinguiu . . . quando na realidade estava compro­
metido com outra? . . . Tinha ele a noção do dano que
podia estar causando? Quem, lhe garantia que eu não
me apaixonasse por ele? . . . Procedeu muito mal,
realmente procedeu muito mal!
- Por certas coisas que ele disse, minha querida
Ema, eu suponho antes . . .
- E como podia ela tolerar tal atitude? . . . Que
serenidade ! Presenciar os galanteios dele a outra
mulher e não se ressentir disso! Aí está um género de
placidez que não compreendo nem aprecio.
- Tem havido desentendimentos entre os dois,
Ema; disse-mo ele mesmo. Não teve tempo para entrar
em pormenores. Esteve cá apenas um quarto de hora,
e num estado de agitação que não lhe permitia sequer
aproveitar o pouco tempo de que dispunha; mas que
tem havido desentendimentos, isso disse-o ele . A
actual crise parece ter sido provocada por ambos , e
esses desentendimentos devem possivelmente ter tido
origem no incorrecto procedimento de Frank.
- Inc orrecto ! O h ! Mrs . Weston . . . acho u m a
classificação muito benévol a ! É muito m a i s que
incorrecto; é impossíyel dizer quanto isso o rebaixou
no meu conceit o . E tão diferente aquela rígi d a
integridade, aquele inflexível respeito pela verdade e
pela rectidão, aquele desprezo pela fraude e pela
mesquinhez, que um homem deve manifestar em todos
os actos da sua vida! . . .
- Não, Ema, agora tenho de o defender; embora
ele tenha errado desta vez, conheço-o há bastante
tempo p ara poder afirmar que possui inúmeras
qualidades . E . . .
- Meu Deus ! - exclamou Ema , sem lhe dar
atenção. - E Mrs . Smallridge, ainda por cima! . .. E
Jane em vésperas de ir ocupar o lugar de preceptora! . . .
Como explica ele tão horrível falta? Permitir que ela

411
JANE A USTEN

se contrate . . . permitir até que ela tenha pensado em


tal coisa!
- Ele nada sabia a esse respeito , Ema. Nesse
capítulo, posso eu desculpá-lo inteiramente . Foi uma
resolução que ela tomou sem lhe ter comunicado
nada . . . ou pelo menos sem lho ter comunicado em tom
de verdade. Até ontem, sei eu que ele estava com­
pletamente ignorante quanto aos proj ectos dela,
segundo me disse. Chegaram ao seu conhecimento não
sei como; talvez alguma carta ou avi s o . . . Foi a
descoberta do que ela andava preparando que o fez
decidir-se a confessar imediatamente tudo ao tio,
confiado na sua bondade, e, em resumo, a pôr termo
ao miserável segredo que tinha há tanto tempo sobre
os ombros.
Ema começou a prestar mais atenção.
- N ã o tarda que e u tenha n otíci a s d ele -
continuou Mrs . Weston. - Disse-me, ao partir, que
em breve me escreveria; e falou de uma maneira que
parecia prometer-me mais pormenores que não me
pôde dar na ocasião. Esperemos, pois,, a sua carta.
Pode ser que traga muitas atenuantes. E possível que
muitas coisas agora inexplicáveis se tornem então
compreensíveis e desculpáveis . Não sej amos severos,
não nos apressemos a condená-lo. Tenhamos pa­
ciência. Eu realmente gosto dele; e agora que estou
tranquila sob um aspecto, sob um aspecto material,
anseio sinceramente por que tudo se explique de modo
satisfatório, e espero que assim suceda. Devem ambos
ter sofrido bastante com tal sistema de segredo e
dissimulação.
- Os sofrimentos dele - replicou Ema, com secura
- não parecem ter-lhe causado muito dano . E como é
que Mr. Churchill recebeu a revelação?
- De uma forma extremamente favorável para o
sobrinho . . . Deu o seu consentimento quase sem
obj ecção . Imagine quantos acontecimentos se não
deram na família durante uma semana! Creio que,
enquanto a pobre Mrs . Churchill foi viva, não houve
a menor esperança, probabilidade ou possibilidade;
mas mal os seus restos foram depositados no j azigo

412
EMA

da família, logo o marido se deixou convencer a agir


de uma forma inteiramente oposta ao que ela teria
exigido. Já é uma sorte que as más influências não
sobrevivam! Pois ele deu o seu consentimento, sem
que fosse preciso insistir muito.
«Ah! teria feito o mesmo com Harriet» - disse Ema
de si para si .
- Ficou tudo resolvido ontem à noite , e Frank
partiu hoje, ao amanhecer. Fez uma pequena paragem
em Highbury, em casa das Bates , suponho . . . e em
seguida veio cá . . . mas estava com tanta pressa de
voltar para j unto do tio, a quem a sua companhia se
torna mais necessária do que nunca, que, como lhe
disse, não se demorou connosco mais de um quarto de
hora. Estava muito agitado . . . mesmo muito agitado . . .
Estava de uma maneira como eu nunca o vi. Ainda
para mais, teve o desgosto de a encontrar doente, o
que ele de maneira alguma esperava. Realmente
parecia ter sofrido grande abalo com isso.
- E supõe que o caso se tenha mantido totalmente
em segredo? Os Campbells, os Dixons, nenhum deles
sabe do compromisso?
Ema não pôde pronunciar o nome de Dixon sem
corar levemente .
- Não, nenhum deles o sabe. Frank disse até que
não havia uma única pessoa no mundo, além deles
dois, que soubesse do segredo.
- Bem, - disse Ema - acho que nos vamos
reconciliando a pouco e pouco com a ideia, e só desej o
que sej am felizes . N o entanto, continuo a considerar
essa maneira de proceder muito condenável . Que foi
isso senão um acto de hipocrisia e de fraude . . . de
espionagem e de traição? Vir j unto de nós com
protestos de franqueza e de lealdade e, em segredo,
fazer crítica de nós todos ! . . . Aqui temos andado, todo
o Inverno e to d a a Primave r a , completamente
enganados, convencidos de que estávamos todos em
igual pé de honestidade e rectidão, com duas pessoas
entre nós que, possivelmente, nos terão analisado um
por um, julgando dos nossos sentimentos por palavras
que nunca deveriam ser ouvidas por ambos ao mesmo

413
JANE A USTEN

tempo ! Se souberam um pelo outro coisas pouco


agradáveis , que tenham paciência !
- Nesse capítulo estou absolutamente tranquila
- retorquiu Mrs . Weston. -Por minha parte, nunca
disse de nenhum deles ao outro nada que ambos não
pudessem ouvir.
- Está com sorte. A sua única confidência foi a
mim que a fez, quando supôs que determinado amigo
nosso �stava apaixonado pela pequena.
- E verdade . Mas como fiz sempre bom j uízo de
Miss Fairfax, nunca me sucedeu dizer mal dela; e
quanto a dizer mal dele, escusado será falar nisso.
Nesse momento apareceu Mr. Weston a pouca
distância da j anela; estava evidentemente à espera
do resultado. A esposa, com um olhar, convidou-o a
entrar, e, enquanto ele vinha de volta, disse para Ema:
- Agora, minha querida Ema, suplico-lhe que
encare as coisas de maneira a tranquilizar o espírito
e a predispô-lo para esse casamento. Olhemo-lo pelo
lado melhor . . . e, realmente, quase não temos nada a
dizer de Jane que lhe não sej a favorável. Não é uma
união por aí além; mas se Mr. Churchill se não
importa, porque devemos nós importar-nos? E, demais,
pode ainda ser uma felicidade para ele, isto é, para
Frank, que tenha escolhido uma rapariga de tal
firmeza de carácter e são raciocínio, como eu sempre
a j ulguei . . . e continuo a julgar, apesar deste grande
desvio das estritas regras da sinceridade. E na situação
dela quanto se não poderia dizer em desculpa desse
erro !
- Muito , i s s o é verdade ! - exclamou E m a ,
compassiv a . - S e h á mulher a q u e m s e p o s s a
desculpar o pensar só e m s i própria, é Jane Fairfax,
na situação em que se encontra. Dela quase se pode
dizer que «nem o mundo nem as leis do mundo foram
feitas para si» .
E m a , vendo Mr. Weston que vinha a entrar,
disse-lhe com ar sorridente :
- Boa partida me pregou, sim, senhor! Com certeza
era um ardil para excitar a minha curiosidade e pôr à
prova o meu talento de adivinha. Mas realmente

414
EMA

assustou-me . Pensei que tivesse perdido pelo menos


metade dos seus bens . E, no fim de contas , em vez de
haver motivo para condolências , há, pelo contrário,
motivo para parabéns. Felicito-o de todo o coração,
Mr. Weston, pela perspectiva de ter por nora uma das
raparigas mais encantadoras e mais prendadas de
Inglaterra.
Um olhar da esposa convenceu-o de que tudo
correra tão bem como estas palavras indicavam; e o
efeito que elas exerceram no seu espírito foi benéfico
e imediato. A sua expressão e os seus modos retoma­
ram logo a habitual vivacidade; apertou efusivamente
a mão de Ema e entrou no assunto por uma forma que
demonstrava que ele agora apenas precisava de tempo
para se persuadir de que o compromisso do filho não
fora um passo muito infeliz . As duas senhoras, de
momento , deram-lhe a entender unicamente o
indispensável para lhe acalmar a curiosidade e
desfazer os reparos, até que, finalmente, depois de
elas lhe terem relatado toda a conversa havida, e
depois de ele ter falado mais uma vez com Ema sobre
o assunto, enquanto se dirigiam para Hartfield, Mr.
Weston acabou por se afazer à ideia, não estando muito
longe de pensar que fora a melhor coisa que Frank
podia ter feito.

CAP Í TULO XLVII

«Harriet, pobre Harriet! » - Estas palavras encer­


ravam a torturante ideia de que Ema não conseguia
ver-se livre e que constituía para ela o lado verda­
deiramente triste do caso. Frank tinha-se comportado
muito mal para com ela - muito mal sob vários
aspectos, - mas não era tanto o mau procedimento
dele como o dela própria que a punha tão irritada
contra ele. Era a situação, crítica a que ele a tinha
arrastado por causa de Harriet que dava o tom mais
carregado à sua culpa . Pobre Harriet! Ei-la pela

415
JANE A USTEN

segunda vez vítima dos juízos errados da amiga. Mr.


Knightley falara profeticamente quando uma vez lhe
dissera: «Ema, você não tem sido uma amiga para
Harriet Smith » . Receav� bem que não lhe tivesse
causado senão prejuízo. E verdade que não tinha de
que se acusar, tanto desta vez como da outra, de ser
a única e original autora de todo o mal, ou de ter
sugerido ideias que, doutro modo, não teriam entrado
no cérebro de Harriet, pois esta havia confessado a
sua admiração e a sua preferência por Frank Churchill
antes que Ema lhe tivesse falado sobre o assunto; mas,
em todo o caso, sentia-se culpada de ter estimulado o
que podia ter reprimido. Devia ter evitado que ela se
entregasse a tais sentimentos, que ela os deixasse
progredir. A sua influência teria sido suficiente . E
agora tinha ela a perfeita noção de que teria sido do
seu dever impedir o desenvolvimento de tais sen­
timentos. Achava que tinha posto em risco a felicidade
da amiga. O vulgar bom senso ter-lhe-ia indicado que
dissesse a Harriet que não pensasse nele e que havia
quinhentas probabilidades contra uma de que ele
algum dia se interessasse por ela. «Mas receio que
consiga alguma coisa com o bom senso» - dizia ela
para consigo.
Estava extremamente irritada contra si própria.
Teria sido horrível, se não estivesse também irritada
contra Frank Churchill. Quanto a Jane Fairfax, podia
Ema ao menos afastar do espírito quaisquer desejos
de lhe ser prestável. Harriet, só por si, j á lhe dava
bastantes motivos de ansiedade; já não tinha neces­
sidade de se preocupar com Jane, cuj as mágoas e cuj a
doença, que, naturalmente, tinham a mesma origem,
deviam ser susceptíveis de cura simultânea. Os seus
dias de pobreza e de insatisfação estavam terminados .
Não tardaria a gozar d e felicidade e d e bem-estar.
Ema, agora, compreendia porque haviam sido desde­
nhadas as suas atenções . Esta descoberta desfazia-lhe
outras dúvidas menores. Era evidente que fora por
ciúme. Aos olhos de Jane, ela tinha sido uma rival;
era, pois , natural que todas as suas ofertas de auxílio

416
EMA

ou as suas provas de consideração fossem repelidas .


Um passeio na carruagem de Hartfield teria sido um
suplício e a araruta da dispensa de Hartfield teria
sido veneno. Ela compreendia tudo isso; e até onde o
seu espírito se podia libertar da injustiça e do egoísmo
de um sentimento de azedume, Ema reconhecia que a
felicidade que Jane Fairfax tinha em perspectiva não
era nada que ela não merecesse. Mas a pobre Harriet
era o seu pesadelo dominante ! Pouco mais havia a
quem ela pudesse conceder a sua simpatia. E Ema
receava bastante que esta segunda desilusão fosse
mais grave que a primeira. Considerando as supe­
riores qualidades da pessoa em vista, assim devia ser;
e a julgar pelos efeitos aparentemente mais profundos
no espírito de Harriet, pois deles derivavam a sua
reserva e o seu autodomínio, assim seria com certeza.
Ema, porém, tinha de comunicar a dolorosa verdade
o mais depressa possível. As últimas palavras de Mr.
Weston, ao despedir-se, haviam sido a recomendação
de guardar segredo. Por enquanto, convinha manter
tudo em completo segredo. Mr. Churchill insistira
nesse ponto, como sinal de respeito pela esposa tão
recentemente perdida; e todos concordavam que assim
o exigia o simples decoro . Ema prometera-lho; mas
para Harriet tinha de se abrir uma excepção. Era o
seu dever acima de tudo.
A despeito das suas apreensões , não podia deixar
de sentir quase cómico o facto de ela ter a desempenhar
j unto de Harriet exactamente a mesma penosa e
delicada missão que Mrs . Weston tinha acabado de
desempenhar junto dela. A notícia que tão ansiosa­
mente lhe tinham anunciado, ia ela agora ansio­
samente anunciar a outra. O coração bateu-lhe rápido
ao ouvir os passos e a voz de Harriet; o mesmo,
supunha ela, tinha a pobre Mrs . Weston sentido
quando ela se aproximava de Randalls . Quem dera
que o desfecho da questão tivesse agora a mesma
analogia! Mas disso não havia infelizmente nenhuma
probabilidade.

41 7
JANE A USTEN

- Então, Miss Woodhouse, - exclamou Harriet,


entrando à pressa na sala - que me diz da novidade?
Não acha que é a mais estranha que até agora tem
havido?
- A que novidade se refere? - retorquiu Ema, que
não podia adivinhar, quer pela expressão, quer pelo
tom de voz, se Harriet teria ouvido alguma coisa.
- A respeito de Jane Fairfax. Já viu coisa tão
estranha? Oh! . .. não tenha medo de o confessar, porque
Mr. Weston já mo disse. Acabei agora mesmo de o
encontrar. Ele disse-me que era um grande segredo e,
portanto, eu não devia contá-lo a ninguém senão a si.
Mas como ele me disse que Miss Woodhouse j á sabia . . .
- Que lhe contou Mr. Weston? - perguntou Ema,
ainda perplexa.
- Oh! - disse-me tudo. Disse-me que Jane Fairfax
vai casar com Mr. Frank Churchill e que j á estão
secretamente comprometidos há muito tempo. Que
coisa tão estranha!
Realmente , era estranho ! A atitude de Harriet era
tão estranha que Ema não sabia como havia de a
interpretar. Dir-se-ia que o seu temperamento tinha
mudado por completo. Parecia decidida a não mostrar
a menor c o m o ç ã o , co ntrari edade ou p articular
interesse pela descoberta. Ema olhava para ela,
absolutamente incapaz de dizer palavra.
- Fazia alguma ideia - perguntou Harriet - de
que ele gostasse dela? Naturalmente j á calculava. Miss
Woodhouse - acrescentou, corando - sabe ler no
coração da gente . . . Mas ninguém mais . . .
- Palavra - disse E m a - que começo a ter
dúvidas de que possua esse talento . É seriamente que
me pergunta, Harriet, se eu, na ocasião em que tácita,
senão abertamente, a e s t a v a incitando a obedecer
aos impulsos do seu coração, o julgava enamorado
doutra mulher? Nunca tive a mais leve suspeita, até
há uma hora, de que Mr. Frank Churchill nutrisse as
menores intenções quanto a Jane Fairfax. Pode ter a
certeza de que, se tivesse, a teria avisado como devia.

418
EMA

- A mim ! - exclamou Harriet, admirada, ao


mesmo tempo que corava.- Avisar-me porquê? . . . Com
cert e z a não j ulga que Mr. Frank C hurchill m e
interesse . . .
- Folgo muito e m a ouvir falar tão desassom­
bradamente sobre o assunto - replicou Ema, sorrindo;
- mas, certamente, não pretende negar que houve
um período . . . e não muito distante . . . em que me deu
razões para supor que ele lhe interessava . . .
- Ele ! . . . Nunca, nunca! Oh! querida Miss Wood­
hous e , como pôde j ulgar-me tão m al? . . . - disse
Harriet, voltando-lhe as costas , mortificada.
- Harriet! - exclamou Ema, após uma pausa de
alguns momentos - que quer dizer? Valha-me Deus !
Que quer dizer com isso? Julgá-la mal ! . . . Devo então
supor . . .
Não pôde dizer mais nada; faltou-lhe a voz, e , presa
da maior ansiedade , sentou-se, aguardando que
Harriet lhe respondesse.
Harriet, que estava de pé e de rosto voltado , a
alguma distância, não deu logo resposta; e quando
falou, foi com voz quase tão comovida como a de Ema.
- Nunca teria j ulgado possível - principiou ela
- que Miss Woodhouse se enganasse comigo ! Sei que
combinámos j amais citar o nome dele . . . mas, aten­
dendo às suas superiores qualidades, eu não julgava
que pudessem supor-me interessada por qualquer
outra pessoa. Mr. Frank Churchill ! Isso sim! Não
compreendo que se possa olhar para ele, quando o
outro está ao pé. Suponho-me com suficiente bom gosto
para não pensar em Mr. Frank Churchill, que não é
ninguém ao lado dele . E o mais espantoso é que Miss
Woodhouse se tenha enganado a tal ponto! . . . A verdade
é que, se não me convencesse de que Miss Woodhouse
aprovava inteiramente o meu afecto e me animava a
obedecer-lhe, eu teria considerado demasiado arroj o
da minha parte pensar sequer nele . Logo d e princípio,
se não me tivesse dito que tinham sucedido coisas mais
e s p anto s a s , que tinha h avido cas amentos mais

419
JANE A USTEN

disparatados , - foram estas as suas palavras - eu


nunca me teria atrevido a levantar os olhos . . . a julgar
possível uma coisa destas. Mas se a menina, que
sempre o conheceu tão de perto . . .
- Harriet, - exclamou Ema, fazendo u m esforço
para se dominar -entendamo-nos de uma vez para
sempre, para não haver mais enganos . Refere-se a . . .
Mr. Knightley?
- Naturalmente. Eu nunca podia ter na ideia outra
pessoa . . . e julguei que a menina soubesse . Quando
falámos a respeito dele, foi o mais claramente possível.
- Nem por isso, - retorquiu Ema, fazendo o
possível por se manter calma -pois tudo quanto a
Harriet então disse me pareceu referir-se a outra
pessoa. Quase podia asseverar que citou o nome de
Mr. Frank Churchill . Tenho a certeza de que se falou
do serviço que Mr. Frank Churchill lhe prestou, ao
livrá-la dos ciganos .
- Oh ! Miss Woodhouse, está enganada!
- Minha querida Harriet, lembro-me perfeita-
mente do que lhe disse na ocasião. Disse-lhe que não
me admirava da sua inclinação e que, atendendo ao
serviço que ele lhe havia prestado, a achava muito
natural; e a Harriet concordou com isso, exprimindo-se
calorosamente quanto ao valor que dava a esse serviço
e referindo-se até à sens ação que experimentara
quando o vira surgir em seu auxílio . Tudo isto ficou
bem nítido na minha memória.
- Oh, minha querida, - exclamou Harriet - agora
me recordo ; mas então eu p e n s ava numa coi s a
completamente diferente . N ã o e r a a o s ciganos . . .
não era a Mr. Frank Churchill que eu me referia. Não !
- acrescentou, elevando a voz - eu estava pensando
noutra circunstância muito mais importante . . . estava
pensando no facto de Mr. Knightley me ter convi­
dado para dançar, quando Mr. Elton não quis dançar
comigo e não havia outro par na sala. Foi essa a boa
acção; foi esse o acto de benevolência e de nobre
generosidade ; foi esse o serviço que deu motivo a

420
EMA

que eu principiasse a julgá-lo superior a todos quantos


há sobre a terra.
- Meu Deus ! .- exclamou - que infeliz . . . que
deplorável engano ! Que havemos de fazer?
- Não me teria encoraj ado, então, se me tivesse
compreendido? No entanto, parece-me que não sou
pior do que teria sido se estivesse em causa a outra
pessoa; e agora . . . é possível . . .
Deteve-se durante alguns segundos . Ema não se
sentia com forças para falar.
- Não me admira, Miss Woodhouse, - tornou ela
- que ache grande diferença entre os dois , tanto para
mim como para qualquer outra pessoa. De facto
considero um quinhentos milhões de vezes acima do
outro . Mas creio, Miss Woodhouse, que . . . que se . . . por
muito estranho que pareça . . . Todavia foi a menina
própria que disse que têm acontecido coisas mais
espantos a s , e que tem havido cas amentos mais
disparatados do que aquele que, porventura, se
reali zasse entre mim e Mr. Frank Churchill ; e ,
portanto, pode-se admitir que j á tenha ocorrido antes
uma circunstância igual a esta . . . e que, se eu fosse tão
feliz que . . . se Mr. Knightley realmente . . . se ele se não
imp orta s s e com a d i s p a ri d a d e , creio que M i s s
Woodhouse não seria contrária a isso, nem tentaria
opor-lhe dificuldades . É muito boa para fazer uma
coisa dessas , estou convencida.
Harriet estava de pé, junto de uma j anela. Ema
voltou-se para olhar para ela, consternada, e disse
apressadamente:
- Supõe que Mr. Knightley lhe retribua o seu
afecto?
- Sim, - replicou Harriet, com modéstia, mas sem
hesitação - devo dizer que estou convencida disso.
Ema desviou os olhos no mesmo instante e ficou,
durante alguns minutos, calada, em atitude medi­
tativa. Esses minutos foram os suficientes para se
certificar do estado do seu coração. Um espírito como
o dela, uma vez inclinado à suspeita, faz rápidos
progressos . Supôs , admitiu e acabou por reconhecer

42 1
JANE A USTEN

toda a verdade. Porque seria pior que Harriet estivesse


apaixonada por Mr. Knightley do que por Frank
Churchill? Porque tinha aumentado tanto o incon­
veniente de Harriet ter esperanças de retribuição?
Feriu-lhe o espírito, com a rapidez de uma flecha, a ideia
de que Mr. Knightley não casaria senão com ela, Ema.
No mesmo espaço de tempo, patenteou-se-lhe a sua
própria maneira de proceder, assim como o estado do
seu coração. Viu tudo com uma clareza como nunca
tinha visto. Que erro o seu de agir em nome de Harriet!
Que inconsiderada, que indelicada, que disparatada,
que insensata tinha sido até aí a sua atitude ! Que
cegueira, que loucura a sua! Isto impressionava-a
horrivelmente e não lhe repugnava atribuir-se as
piores classificações deste mundo. Contudo, um certo
respeito por si própria, a despeito de todas estas faltas,
um certo zelo pelas aparências e um forte senso de
j u stiça em favor de H arri et ( e mbora nenhuma
compaixão devesse haver pela rapariga que se julgava
amada de Mr. Knightley, mandava a boa justiça que
não a mortificassem agora com uma atitude de frieza),
decidiram Ema a suportar tudo com calma, mesmo
com aparente afabilidade. De facto convinha, no seu
próprio interesse, pôr-se tanto quanto possível ao
corrente das esperanças que animavam Harriet; e
Harriet nada tinha feito que desmerecesse a estima e
o interesse que tão espontaneamente lhe haviam
testemunhado , ou que a tornasse merecedora de
desprezo por parte daquela cujos conselhos nunca lhe
tinham sido de utilidade .
Despertando , portanto , das suas cogitações e
dominando a sua agitação, Ema voltou-se novamente
para Harriet, e, num tom mais insinuante, retomou a
conversação; com efeito, o assunto inicial, a admirável
história de Jane Fairfax, tinha sido completamente
esquecido. Nenhuma delas pensava senão em Mr.
Knightley e em si própria.
Harriet, que estivera alheada em feliz rê verie,
ficou, contudo, satisfeita por ser despertada pela voz
agora animadora de tal juiz , de tal amiga como era

422
EMA

Miss Woodhouse; não queria outra coisa senão que a


convidassem a expor todas as suas esperanças, o que
ela se dispunha a fazer com o maior prazer, não de
todo despido de comoção . A agitação de Em a , ao
fazer-lhe perguntas e ao escutá-la, disfarçava-se
melhor que a de Harriet, mas não era menos forte . A
voz continuava firme; mas o espírito sofria a per­
turbação criada pelo incremento do próprio egoísmo,
pela iminência do perigo que a ameaçava e pela
confusão de tão súbitas e fortes emoções. No íntimo,
era com dor que escutava Harriet, mas, por fora,
mostrava a maior complacência. A narração da amiga
não era de esperar que fosse metódica, nem bem
ordenada, nem dita com muita correcção; abstraindo,
porém, das fraquezas de estilo e da tautologia de que
enfermav a , encerrava uma suma que oprimia o
espírito de Ema - sobretudo no que dizia respeito
àquelas circunstâncias que corroboravam a excelente
opinião que Mr. Knightley agora formava de Harriet
e que a sua memória não podia deixar de evocar.
A Harriet não passara despercebida a atitude
diferente que ele assumira logo depois daquelas duas
vezes que dançara com ela. Ema sabia que ele, então,
a achara muito superior ao que esperava. A partir
dessa noite, ou pelo menos a partir do dia em que Miss
Woodhouse a animara a pensar nele, Harriet começara
a interessar-se pela sua conversação, muito mais do
que tinha por costume , e a tornar- se sensível à
diferença das suas maneiras para com ela; e que
maneiras tão amáveis, tão cativantes ! Ultimamente,
então, ia-o notando cada vez mais. Quando do passeio
em que todos haviam tomado parte, ele tinha andado
tantas vezes ao seu lado, a conversar tão amenamente!
Parecia querer criar intimidade com ela. Ema sabia
perfeitamente isso. Tinha muitas vezes observado a
mudança, quase tão bem como a amiga . H arriet
repetia as expressões de aprovação e de elogio que lhe
ouvira, e E m a reconhecia nelas a mais perfeita
concordância com o que sabia da sua opinião sobre
Harriet. Mr. Knightley elogiara a sua falta de artifício

423
JANE A USTEN

e de afectação; os seus sentimentos puros, honestos,


elevados . Ema sabia que ele via todos esses predicados
em Harriet; em conversa com ela, tinha-se referido a
eles mais de uma vez. Grande parte do que Harriet
recordava, muitos pormenores do interesse que Mr.
Knightley manifestara por ela, um olhar, uma frase,
o deslocar-se de uma cadeira para outra, um galanteio,
um sinal de preferência, tudo havia passado des­
percebido a Ema, porque estava desprevenida. Certas
circunstâncias que teriam tomado, quando muito, o
espaço de meia hora e que constituíam múltiplas
provas para aquela que as tinha notado, tinham
passado sem reparo para aquela que agora tomava
conhecimento delas; mas os dois últimos incidentes
que Harriet citou , para ela duas promessas evi­
dentíssimas, não tinham passado sem o testemunho
de Ema, até certo ponto .
O primeiro foi o passeio dele a sós com Harriet, na
alameda das limeiras de D onwell , onde eles se
encontravam hájá algum tempo, antes de Ema chegar,
e para onde ele tivera o cuidado (do que Harriet estava
convenci d a ) de a levar, isolando-a do resto dos
convidados; e a princípio tinha-se-lhe dirigido num
tom de intimidade que nunca tivera com ela, num tom
realmente bem íntimo! (Harriet não podia recordá-lo
sem corar). Estivera mesmo a ponto de lhe perguntar
se estava comprometida. Mas assim que ela (Miss
Woodhouse) apareceu, ele mudou logo de assunto e
principiou a falar de agricultura.
O segundo foi quando ele esteve a conversar com
ela perto de meia hora, na última manhã que estivera
em Hartfield, - embora, ao entrar, tivesse dito que
não se demorava mais de cinco minutos, - antes de
Ema ter regressado da sua visita, e lhe disse, no
decorrer da conversa, que ia a Londres, mas que era
muito contra vontade que deixava a sua casa. Ora
isto era muito mais do - que ele havia confessado a
Ema. O elevado grau de confiança que testemunhava
a Harriet, conforme este pormenor revelava, foi para
Ema motivo de grande mágoa.

424
EMA

Relativamente à primeira das duas circunstâncias ,


arriscou ela, após ligeira reflexão, a seguinte pergunta:
- Não acha possível que ele, ao pretender saber se
estava comprometida, como disse, quisesse aludir a
Mr. Martin . . . isto é, que tivesse em vista o interesse
de Mr. Martin?
Mas Harriet repeliu a suposição com energia.
- Mr. Marti n ! Oh! não . Não houve a menor
referência a Mr. Martin . Agora há quem me preocupe
mais que Mr. Martin, e não creio que me julguem
interessada por ele.
Harriet, assim que terminou o seu arrazoado, pediu
à querida Miss Woodhouse que lhe dissesse se ela não
tinha boas razões para esperanças .
- Eu nunca me atreveria a pensar nisto, - disse
ela - se não fosse a menina. Disse-me que o fosse
observando atentamente e que gui asse a minha
maneira de proceder pela dele . . . e eu assim fiz. Mas
agora começo a convencer-me de que o mereço e que,
se ele me quiser, não será assim uma coisa tão de
espantar como a princípio parecia.
Ema, em luta com as s ens ações peno s a s , a s
inúmeras sensações penosas que estas palavras lhe
haviam ocasionado , fez um último esforço para
conseguir dizer em resposta:
- Harriet, apenas me atrevo a declarar que Mr.
Knightley é o último homem do mundo que , inten­
cionalmente, denunciaria a uma mulher, mais do que
realmente tem denunciado, os seus sentimentos por
ela.
Harriet, por sua vontade, ter-se-ia ajoelhado diante
da amiga por tão satisfatória frase; e Ema só se livrou
dos seus entusiásticos transportes de ternura, que em
tal momento teriam sido um horrível suplício, graças
aos ruídos dos passos do pai, que se dirigia para o
vestíbulo. Harriet estava demasiado comovida para
poder encontrar-se com ele .
Que não podia ter mão em si . . . Mr. Woodhouse
poderia assustar-se . . . O melhor era ir-se embora.

425
JANE A USTEN

Com o pronto acordo da amiga, saiu, pois, por outra


porta; e assim que ela partiu, a dor de Ema expan­
diu-se neste brado espontâneo:
- Oh! Meu Deus ! Nunca eu a tivesse conhecido! . . .
O resto d o dia e a noite foram para ela um período
bem difícil, tão dolorosos os pensamentos a que se
entregou. Via-se desorientada no meio de todo aquele
emaranhado de circunstâncias que se haviam pre­
cipitado sobre ela durante as últimas horas . A cada
momento surgia-lhe uma surpresa; e cada surpresa
era certo ser um motivo de humilhação para ela. Como
compreender tudo isso? Como explicar todas as
decepções que tinha sofrido e que continuava so­
frendo? . . . a própria cegueira da razão e do coração, os
seus destinos . . . Quer sentada, quer andando para cá
e para lá no quarto, quer passeando no parque - fosse
onde fosse, estivesse como estivesse, Ema chegava
sempre à conclusão de que tinha procedido de uma
forma extremamente inábil, de que se deixara iludir
pelos outros de um modo assaz lamentável, de que se
havia iludido a si própria de um modo ainda mais
lamentável, de que era uma infeliz e que, provavel­
mente, era aquele dia o princípio da sua infelicidade.
Compreender, compreender em absoluto o seu
próprio coração, devia ser a primeira tarefa. A esse
fim ia ela dedicar todos os momentos de ócio que os
cuidados pelo pai lhe permitissem, e todos os mo­
mentos de involuntária abstracção de espírito .
Há quanto tempo lhe era Mr. Knightley tão caro,
para agora o manifestarem assim todas as fibras do
seu ser? Quando começara a exercer-se a sua influ­
ência, a sua grande influência? A partir de quando
atingira ele no seu afecto aquele lugar que Frank
Churchill tinha uma vez ocupado, por curto espaço de
tempo? Ema reportava-se às suas recordações e
comp arava ambos - comparav a - o s dentro dos
respectivos conceitos em que sempre os tivera, desde
o dia em que conhecera Frank - dentro daqueles
conceitos em que os devia ter em qualquer tempo

426
EMA

comparado, se houvesse tido, oh! sim, se houvesse tido


a felicidade de se lembrar de e stabelecer e s s a
comparação . Reconhecia que e m tempo algum deixara
de ver em Mr. Knightley aquela infinita superioridade,
nem a estima dele por ela deixara de lhe ser infi­
nitamente cara. Reconhecia que, quando, porventura,
se persuadira do contrário, quando o imaginara ,
quando o admitira , é porque andava totalmente
iludida, é porque ignorava em absoluto o próprio
coração, - em resumo, j amais havia realmente amado
Frank Churchill !
Foi esta a conclusão da primeira série de reflexões .
Ao primeiro interrogatório que s e fe z , fo i o conheci­
mento de si própria que alcançou e sem que demorasse
muito tempo a atingi-lo. Sentia um misto de tristeza
e de indignação, e ao mesmo tempo de vergonha por
só se lhe ter revelado uma única de todas as sensações
- o seu afecto por Mr. Knightley. Todas as restantes
zonas do seu espírito lhe repugnavam.
Com insuportável vaidade julgara-se ela no segredo
dos sentimentos de toda a gente; com imperdoável
presunção propusera-se construir o destino dos outros.
Tinha a prova de se haver enganado em toda a linha;
e nada tinha feito . . . porque só fizera mal. Fora funesta
a Harriet, fora funesta a si própria e, receava bem, a
Mr. Knightley. Realizasse-se esta, de todas a mais
absurda das uniões, que sobre ela recairia toda a culpa
de a ter incitado; pois ela era forçada a acreditar que
a preferência dele nada mais era que uma conse­
quência da de Harri e t ; e ainda que a s s i m não
sucedesse, ele nunca teria conhecido Harriet, se não
fosse a insensatez dela, Ema.
Mr. Knightley e Harriet Smith ! . .. Aí estava uma
união que faria esquecer tudo quanto houvesse de
s e n s acional no género . O c a s amento de Frank
Churchill e de Jane Fairfax tornava-se assim um lugar
comum, um facto trivial, j á velho, que não causava
surpresa, nem apresentava disparidade, nem oferecia
nada digno de nota. Mr. Knightley e Harriet Smith! . . .

42 7
JANE A USTEN

Que ascensão a dela! Que rebaixamento o dele ! Ema


senti a-se horrori zada s ó de pensar quanto e s s a
circunstância o devia diminuir n a opinião pública, só
de prever os sorrisos de desdém, os risos que haveria
à custa dele, além do desgosto do irmão e dos mil
inconvenientes que isso traria a ele próprio. Poderia
tal coisa ser levada a efeito? Não; era impossível . E ,
contudo, estava longe , muito longe, d e ser impossível .
Era, porventura, o primeiro caso de um homem de
brilhantes qualidades se deixar cativar por dotes
muito inferiores? Era acaso a primeira vez que um
homem, talvez demasiado ocupado para procurar
esposa, se tornava presa de uma rapariga que o
buscava? Porventura eram novidade neste mundo a
desigualdade, a inconsistência, a incongruência - ou
o acaso e as circunstâncias (como causas segundas)
dirigirem os destinos humanos?
Ah ! Nunca e l a tive s s e apre sentado H arri e t !
Tivesse-a ela deixado onde devia estar, - onde ele
lhe tinha dito que devia estar ! . . . Nunca a tivesse ela,
com uma insensatez que nenhuma língua poderia
exprimir, impedido de casar com o irrepreensível rapaz
que a teria fe i t o fe l i z de ntro do nível que lhe
correspondia, e tudo se teria salvo: - nenhuma destas
terríveis consequência teria sobrevindo.
Como podia Harriet ter tido a presunção de erguer
as suas vistas para Mr. Knightley! . . . Como se atrevia
ela a imaginar-se a preferida de tal homem, antes
mesmo de se ter assegurado dessa possibilidade ! . . . É
que Harriet era menos humilde, tinha menos escrú­
pulos que dantes. Parecia sentir pouco a sua infe­
rioridade, quer de espírito quer de posição. Parecera
mais sensível ao facto de Mr. Elton descer a casar
com ela, do que agora ela com Mr. Knightley. Ai ! Não
era tudo isso obra sua? - pensava Ema. Quem tivera
o trabalho de incutir a Harriet noções de valor pessoal
senão ela?
Quem senão ela a tinha ensinado a procurar
elevar-se e lhe insinuara que tinha suficientes direitos

428
EMA

a ocupar uma, alta posição? Se Harriet de humilde se


tornara pretensiosa, era por sua culpa também.

CAPÍTULO XLVIII

Agora que via a sua felicidade ameaçada é que Ema


reconhecia quanto essa felicidade dependia de ela ser
a primeira na estima e no afecto de Mr. Knightley.
Satisfeita com isso e cônscia de que tal privilégio
apenas constituía o seu legítimo direito, tinha-o fruído
sem reflectir; e só quando sentiu o temor de se ver
suplantada é que descobriu o seu inexprimível valor.
Há muitíssimo tempo que ela percebia que ocupava o
primeiro lugar; com efeito , como ele não possuía
parentes femininos , apenas havi a Isabella cuj os
direitos se podiam comparar aos de Ema, mas a
verdade é que ela sabia muito bem quão longe ele
estava de amar e estimar Isabella.
Fora durante muitos anos a primeira na sua estima.
Não o soubera merecer; frequentes vezes se mostrara
desatenciosa e má, frequentes vezes desprezara os
seus conselhos ou até os combatera obstinadamente,
meio insensível aos seus méritos , e questionando com
ele, porque ele lhe não reconhecia o falso e orgulhoso
conceito que fazia de si própria - e, contudo, por
hábito e apego familiar e, sobretudo, por bondade de
carácter, ele amava-a e vigiava-a desde criança, com
um empenho no seu progresso e uma ânsia na sua
perfeição, como mais ninguém manifestara. Apesar
de todos o s seus defeito s , ela sabia quanto Mr.
Knightley lhe queria; e podia dizer que era bastante.
Quando, pois, outras possibilidades surgiram, Ema
não pôde resolver-se a aceitá-las. Harriet Smith não
tinha o direito de s e j ulgar digna de ser p arti­
cul arme nte , excl usivamente , apaixonadamente
amada de Mr. Knightley. Não podia ser. Não podia
lisonjear-se de qualquer ideia de cegueira no seu afecto

429
JANE A USTEN

por ela. Ema recebera uma prova bem recente da sua


imparcialidade . Que mal impressionado ele havia
ficado pela sua atitude para com Miss Bates! E não
lhe tinha ele manifestado, aberta e energicamente, o
seu ponto de vista a tal respeito? Não tão ener­
gicamente que a melindrasse, mas demasiado para
se admitir que a censura tivesse por motivo outro
sentimento mais doce que não uma justiça recta e uma
bondade esclarecida. Ema não alimentava nenhuma
esperança, nada que merecesse o nome de esperança,
de que ele pudesse nutrir por ela esse género de afecto
agora em questão; mas havia uma esperança (umas
vezes leve , outras vezes muito mais forte ) de que
Harriet se tivesse iludido e avaliasse mal as atenções
que ele lhe dispensava. Quanto mais não fosse, no
interesse de Mr. Knightley, assim o desej ava Ema,
muito embora lhe não adviesse daí outra vantagem
que não fosse a de ele ficar solteiro toda a vida. Pudesse
ela, de facto, ter a certeza de que Mr. Knightley nunca
casaria, que se daria por plenamente satisfeita: pelo
menos a s s i m o j ulgav a . Que contin u a s s e a ser
unicamente o mesmo Mr. Knightley para ela e para
seu pai, o mesmo Mr. Knightley para toda a gente;
que Donwell e Hartfield não perdessem nada das suas
preciosas relações de amizade e de confiança, a paz
estaria inteiramente assegurada.
O casamento, decididamente, não lhe convinha. Era
incompatível com o que ela devia a seu pai, com o que
sentia por ele . Nada a podia separar do pai . Não
casaria, ainda que Mr. Knightley a pedisse.
O seu desejo mais ardente era que Harriet sofresse
uma desilusão; e esperava, logo que se lhe propor­
cionasse ocasião de os ver juntos, poder, pelo menos,
certificar-se das probabilidades que havia . De ora
avante observá-los-ia com a maior atenção; e visto que
se tinha até então lamentavelmente enganado até
quanto àqueles que estudava, agora não podia admitir
que se deixasse cegar.
Mr. Knightley era esperado todos os dias . As
pos sibilidades de análise cedo se ofereceriam -

430
EMA

assustadoramente cedo, como aconteceria sempre que


o pens amento de Ema seguia determinado curso.
Entretanto resolvera não ver Harriet. Nenhumas
vantagens traria, quer para elas quer para a questão,
falar mais a tal respeito . Estava decidida a não se
deixar convencer, enquanto pudesse duvidar, e ,
contudo, nenhuma autoridade tinha para s e opor a
confiança de Harriet. Conversar a tal respeito apenas
lhe irritaria o ânimo. Escreveu, portanto, a Harriet,
num tom amável mas decisivo, pedindo-lhe que, por
enquanto, não fosse a Hartfield; confessava-lhe a sua
convicção de que era melhor evitar-se mais conversa
à volta do assunto e manifestava-lhe a esperança de
que, se deixassem passar alguns dias até se en­
contrarem de novo (a sós, porque na presença de outros
não achava ela inconveniente algum ) , i s s o lhes
facultaria a possibilidade de dar como esquecida a
conversa da véspera. Harriet não só se submeteu, como
concordou, reconhecida.
Acabava de se resolver esta questão, quando chegou
uma visita, que foi desviar um pouco a ideia de Ema
do único assunto que a absorvera, quer dormindo quer
acordada, durante as últimas vinte e quatro horas .
Era Mrs . Weston, que tinha ido visitar a sua futura
nora e, de regresso a casa, passava por Hartfield, com
o fim de, tanto por dever para com Ema como por gosto
própri o , lhe n arrar todos os pormenores de tão
interessante entrevista.
Mr. Weston tinha-a acompanhado a casa de Mrs .
Bates e desempenhara-se primorosamente da parte
que lhe coubera naquela indispensável missão de
cortesia; e ela, que tinha convencido Miss Fairfax a
dar um passeio na sua companhia, estava agora de
regresso com muito mais para contar - e com muito
mais satisfação - do que teria se se tivesse limitado
ao quarto de hora passado na saleta de Mrs . Bates,
tendo a estorvá-la uma sensação geral de acanha­
mento.
Por pouca curiosidade que Ema tivesse, sempre foi
ouvindo o que a amiga lhe ia contando . Mrs . Weston,

431
JANE A USTEN

quando saíra para fazer a visita, ia num estado de


grande inquietação; a princípio até pensara não ir,
por enquanto , e e s crever antes a Miss Fairfax ,
deferindo esse cerimonioso dever para daí a mais
algum tempo, até que Mr. Churchill achasse oportuno
tornar conhecida a questão ; e, considerando bem,
achava ela que a visita acabaria por dar lugar a
comentários : mas Mr. Weston tinha pensado de
maneira diferente. Estava extremamente ansioso por
demonstrar o seu acordo a Miss Fairfax e a sua família
e não via nisso motivo para suspeitas ; e se houvesse,
que fosse coisa que se visse, pois «essas coisas -
observava ele - espalham-se sempre». (Ema sorriu e
achou que Mr. Weston tinha muito boas razões para
falar assim . ) No fim de contas, tinham ido, e grande
tinha sido a aflição e a perturbação da pequena. Mal
tivera forças para dizer uma palavra e, tanto no olhar
como nos gestos, bem mostrara quanto a atormentava
a consciência. A calma mas sincera satisfação da ve­
lhota e o entusiástico contentamento da filha, que mais
uma vez se revelou a alegre faladora do costume,
tinham constituído uma das cenas mais agradáveis e,
ao mesmo tempo, mais comoventes .
Eram ambas tão dignas d e respeito na sua alegria,
mostravam-se tão desinteressadas em todas as suas
expressões, pensavam tão pouco em Jane, tão pouco
em si próprias e tanto nos outros, que se era invo­
luntariamente levado a olhá-las com simpatia. A
recente doença de Miss Fairfax oferecera um esplên­
dido pretexto para Mrs . Weston a convidar a dar um
passeio; a princípio tinha-se assustado e recusara-se,
mas, depois de terem insistido com ela, acedera, e, no
decurso do seu passeio de carruagem, Mrs . Weston
tinha, à força de palavras animadoras, acabado por
vencer o embaraço da rapariga, a ponto de a levar a
fal a r n o magno a s s u nto . A convers a começara
necessariamente pelas desculpas de Jane pelo silêncio
aparentemente descortês que guardara, quando da
primeira vez que a recebera, e pelas mais calorosas

432
EMA

expressões de gratidão por Mrs . e Mr. Weston; mas ,


terminadas estas efusões, haviam conversado durante
um bom bocado acerca da questão, tanto no que
interessava ao presente como ao futuro. Mrs . Weston
estava persuadida de que aquela palestra tinha sido
de grande benefício para a sua companheira, há tanto
tempo encerrada no seu reflexivo mutismo, e estava
muito satisfeita com tudo o que ela tinha dito a respeito
do assunto.
- Tendo em conta o que ela sofreu, por tantos
meses de dissimulação, -continuou Mrs . Weston a
verdade é que se demonstrou bastante enérgica. Uma
das suas expressões foi esta: «Não direi que desde que
assumi esse compromisso, não tenha tido alguns
momentos felizes ; mas o que posso dizer é que nunca
conheci uma hora de tranquilidade» . E a tremura dos
seus lábios, ao falar assim, testemunhava bem o que
dizia e que eu de todo o coração acreditava.
- Pobre rapariga! - disse Ema. - Julga-se então
culpada por ter consentido nesse compromisso secreto?
- Culpada! . . . Creio que ninguém a pode censurar
mais do que ela se censura a si própria. «Ü resultado
- dizia ela - tem sido um sofrimento constante para
mim; assim devia ser. Mas por muito castigo que esse
erro tenha provocado, não deixa contudo de ser um
erro. A dor não é expiação . Não posso estar isenta de
culpa . Tenho procedido ao contrário de todas as
minhas noções de rectidão; e o feliz aspecto que tudo
tomou e as generosas atenções que estou recebendo,
diz-me a consciência que os não mereço . Não julgue,
minha senhora, - acrescentou ela - que fui educada
no erro . Não culpe os princípios ou os cuidados dos
amigos que me e d u c aram . O erro tem p artido
unicamente de mim; e afirmo-lhe que, por muita
justificação que as actuais circunstâncias me dêem,
eu estou com receio de contar esta história ao coronel
Campbell».
- Pobre rapariga! - disse Ema, novamente . -
Ela ama-o então apaixonadamente, não? Só por amor
se compreende que tenha aceitado esse compromisso.

433
JANE A USTEN

O seu afecto por ele deve ter sido mais forte que o seu
bom senso.
- Sim, não tenho dúvidas de que está verda­
deiramente apaixonada por ele.
- Receio - volveu Ema, suspirando - ter-lhe dado
muitas vezes motivos de desgosto.
- Da sua parte , minha querida, tudo era feito
inocentemente. Mas ela, provavelmente, tinha isso na
ideia quando aludiu aos desentendimentos a que
Frank se nos tinha já referido. Uma consequência
natural do mal que tinha praticado, dizia ela, era a de
se ter tornado injusta . A consciência de haver errado
tinha-a exposto a mil apreensões e tornara-a capciosa
e irritável, e isso devia ter sido - foi, com certeza -
muito custoso para Frank. «Eu não tive em devida
conta, como devia, - disse ela - o seu modo de ser,
o seu feitio, o seu delicioso feitio, e aquela alegria,
aquela j ovialidade natural, que, sob outras circuns­
tâncias , me teriam fascinado, estou certa disso, como
me fascinaram a princípio» . E depois começou a falar
de si e das grandes atenções que teve com ela durante
a sua doença; e com um rubor, que me revelou quanto
todas estas coisas andavam ligadas , pediu-me que,
logo que eu tivesse ocasião, lhe agradecesse - e a
verdade é que nunca são demais todos os agra­
decimentos que lhe dê - os seus bons desejos e as
suas tentativas de lhe prestar auxílio . Estava muito
repesa de nunca lhe ter manifestado condignamente
o seu reconhecimento.
- Se eu não soubesse que ela agora era feliz, -
disse Ema, gravemente - do que , a despeito de todos
os pequenos remorsos da sua escrupulosa consciência,
não tenho a menor dúvida, não podia aceitar esses
agradecimentos ; é que Mrs . Weston não sabe . . . se se
abrisse uma conta do mal e do bem que eu tenho feito
a Miss Fairfax ! . .. Bem - continuou, reprimindo-se e
procurando aparentar um ar mais j ovial - esque­
çamos tudo isso. A senhora é muito amável em me
trazer tão interessantes notícias . O que me contou
apresenta Jane s ob um a s p e cto extremamente

434
EMA

favoráve l . E stou convencida de que é uma boa


rapariga . . . e espero que sej a muito feliz. Acho muito
bem que a fortuna estej a do lado dele, pois tenho a
certeza de que a virtude estará do lado dela.
Uma conclusão destas não podia passar sem uma
resposta por parte de Mrs . Weston. Ela fazia de Frank
uma opinião a todos os respeitos lisonj eira; e, o que
era mais, amava-o muito : a sua defesa foi, portanto,
das mais veementes . Falou com uma grande dose de
razão e, pelo menos, com igual dose de afecto . . . mas j á
mal interessava a sua interlocutora; E m a depressa
desviara a sua atenção para Brunswick Square ou
para Donwell e esquecera-se de fazer um esforço para
a e s cutar. E n tretanto , Mrs . Weston terminava
dizendo:
- Ainda não recebemos a carta por que estamos
tão ansiosos, sabe? Mas espero que não demore muito.
Foi, porém, obrigada a esperar que Ema respon­
desse, e, mesmo assim, a resposta foi dada ao acaso,
visto que Ema não conseguiu logo recordar-se de que
carta se tratava.
- Não está doente, Ema? - foi a pergunta de Mrs .
Weston, ao despedir-se.
- Oh! estou perfeitamente . Estou sempre bem,
como sabe. Dê-me notícias da carta logo que possa.
As informações de Mrs . Weston forneceram a Ema
mais alimento para reflexões desagradáveis, visto que
vieram aumentar a estima e a compaixão por Jane
Fairfax, assim como os remorsos da sua passada
injustiça para com ela. Arrependia-se amargamente
de não ter procurado criar uma maior intimidade com
a rapariga e corava dos sentimentos de invej a que
tinham sido, até certo ponto, a causa de assim não ter
procedido. Tivesse ela seguido os desej os de Mr.
Knightley, de usar dessa atenção para com Miss
Fairfax, ao que esta tinha, sem dúvida alguma, todo
o direito; tivesse procurado fazer dela sua amiga, em
vez de Harriet Smith - que lhe teriam sido poupados,
segundo todas as probabilidades, os desgostos que a
afligiam agora.

435
JANE A USTEN

Nascimento, dotes, educação - tudo a designava


como digna companheira de Ema, que a devia acolher
com gratidão; ao passo que a outra . . . Quem era a outra?
Supondo mesmo que nunca se tivessem tornado
amigas íntimas , e que Miss Fairfax nunca a tivesse
admitido no segredo da importante questão, - o que
era muito provável - Jane teri a , contudo, sido
preservada - conhecendo-a Ema como devia conhe­
cê-la e como podia conhecê-la - da abominável
suspeita de uma ilegítima inclinação para Mr. Dixon,
que Ema não só tinha loucamente arquitectado e
perfilhado, como tão imperdoavelmente havia par­
ticipado; ali estava uma ideia que ela grandemente
receava tivesse sido motivo de profundo melindre para
os sentimentos delicados de Jane, por leviandade ou
descuido de Frank Churchill. De todas as fontes de
dano que rodeavam Jane Fairfax, desde que viera para
Highbury, estava Ema convencida de ter sido ela
própria a pior. Devia ter sido uma inimiga implacável.
Nunca haviam estado j untos todos os três que ela não
tivesse, por mil maneiras, turvado a paz de Jane
Fairfax; e em Box Hill - quem sabe ! - teria sido a
agonia de um espírito que não pode suportar mais.
Essa noite, em Hartfield, foi longa e melancólica.
O estado do tempo agravava o que havia de tristezas .
C omeçara a cair uma chuva fria e persistente , e
ninguém diria que se estava em Julho, se não fossem
as árvores e as sebes cobertas de folhas , que o vento
ia arrancando, e a longura do dia, que apenas concorria
para que se presenciasse durante mais tempo tão triste
espectáculo.
O tempo enervava Mr. Woodhouse, que só se podia
manter num estado de espírito razoável graças aos
cuidados constantes da filha, cujos esforços nunca
h aviam custado tanto a E m a . Tudo aquilo lhe
recordava o seu primeiro desconsolado «tête-à-tête»,
na noite da boda de Mrs . Weston; mas então tinha
vindo Mr. Knightley, pouco depois do chá, e dissipara
toda a melancolia do ambiente . Ai ! deliciosos mo­
mentos que tornavam H artfield toleráve l , como

436
EMA

aqueles que tais visitas proporcionavam, iam ter,


possivelmente, em breve o seu fim. O quadro que ela
então esboçara das privações que traria o próximo
Inverno, tinha-se provado falso; os amigos não os
haviam abandonado, nem os prazeres tinham faltado.
As suas previsões de agora, porém, não sofreriam -
temia-o bem - igual contradição . A perspectiva que
se lhe oferecia agora era tão ameaçadora que não podia
ser posta de parte - que nem sequer podia ali­
geirar-se. Se se realizasse tudo o que era de prever no
círculo das suas amizades, Hartfield devia ficar quase
deserta e ela seria forçada a animar o pai , tendo na
alma apenas a sensação de uma felicidade destruída.
A criança que ia nascer em Randalls havia de ser
para os pais um vínculo muito mais forte do que ela;
e Mrs . Weston teria todo o seu tempo e todo o seu
coração absorvidos pelo filho. Em Hartfield passaria
a fazer-se sentir a sua ausência e, provavelmente, até
certo ponto, também a do marido: Frank Churchill
j amais voltaria ali ; e Miss Fairfax era de supor que
cedo deixasse de pertencer a Highbury. Casar-se-iam
e estabelecer-se-iam em Enscombe ou perto . Todos os
bons se afastariam; e se a estas perdas viesse acrescer
a de Donwell, quem lhes restaria para um convívio
alegre ou aceitável? Mr. Knightley não mais vindo ali
passar seu serão ! . . . Não mais entrando ali a qualquer
hora, como quem entrava em sua casa ! . . . Como se
suportaria tal coisa? E se era verdade que o iriam
perder por causa de Harriet; se daí em diante se devia
crer que ele havia encontrado no convívio com Harriet
tudo aquilo de que necessitava; se Harriet ia ser a
preferida, a mais querida, a amiga, a esposa para quem
ele buscava todas as bênçãos da vida - que mais podia
aumentar a angústia de Ema senão a reflexão, sempre
presente no seu espírito, de que tudo isso fora obra
sua?
Ao chegar a tal declive, não podia conter-se que
não tivesse um leve sobressalto ou não emitisse um
suspiro , ou mesmo não desse alguns passos pelo
aposento - e a única fonte a que podia ir buscar um

437
JANE A USTEN

pouco de consolação ou serenidade era a resolução de


melhorar a sua maneira de proceder e a esperança de
que, por muito inferiores em alegria que os futuros
invernos da sua vida viessem a ser aos do passado,
haviam de a encontrar cada vez mais sensata, cada
vez mais conhecedora de si própria e cada vez menos
pesarosa por cada um deles que se fosse.

CAP ÍTULO XLIX

O tempo na manhã seguinte continuava pouco mais


ou menos na mesma; e a mesma solidão e a mesma
melancolia pareciam reinar em Hartfield. Mas à tarde
aclarou: o vento mudou para um quarto menos agreste,
as nuvens foram varridas e apareceu o Sol. Era
Novamente Verão . Com toda a impaciência que uma
transição deste género provoca, Ema resolveu sair
quanto ante s . Nunca o estranho espectáculo, os
aromas, o sentido da natureza, tranquila, acolhedora
e brilhante, depois da tempestade, fora para ela tão
atraente . Ema ansiava pela serenidade que tudo isso
lhe traria gradualmente; e quando Mr. Perry chegou
pouco depois do j antar, para passar uma hora com o
pai, ela apressou-se a ir até ao parque. Mal, havia
dado alguns passos, com o espírito mais animado e a
mente mais aliviada, quando viu Mr. Knightley entrar
pela porta do j ardim e dirigir-se para ela. Era a
primeira visita que fazia depois do seu regresso de
Londres . Ema estava naquele momento pensando
nele, supondo-o a dezasseis milhas de distância. Mal
teve tempo de predispor o espírito para a emergência .
Tinha d e se dominar e aparentar calma. Daí a meio
minuto estavam ao lado um do outro. O cumprimento
que trocaram foi grave e reservado . Ema pergun­
tou-lhe pelos amigos mútuos ; estavam todos bem. E
quando os tinha deixado? Nessa mesma manhã. Ele
devia ter tido uma viagem molhada. Que sim. Com
certeza não se importava de dar uma volta com ela

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EMA

- sugeriu Ema. Ele tinha acabado de espreitar para


a sala de j antar, e como visse que não era lá preciso,
preferia realmente andar por fora. Ema achava que
Mr. Knightley não parecia muito alegre, nem nos
modos nem na maneira de falar; e a principal causa
possível dessa circunstânci a , causa que os seus
temores lhe faziam imaginar, era ter ele talvez
comunicado os seus proj ectos ao irmão e haver ficado
magoado com a forma como tinham sido acolhidos.
Puseram-se a caminhar ao lado um do outro. Mr.
Knightley ia calado. Ema j ulgava vê-lo olhar muitas
vezes para ela, tentando abranger um conjunto mais
amplo do seu rosto do que lhe convinha a ela conceder.
E esta convicção produzia nela um novo receio. Talvez
que quisesse falar-lhe do seu amor por Harriet; era
possível que procurasse um sinal que o animasse a
começar . Ela não s e senti a , não podia sentir-s e ,
disposta a abrir caminho a tal assunto. Que o abrisse
ele. Contudo, Ema não podia suportar aquele sacri­
fício. Nele era muito pouco natural. Reflectiu, resolveu
e, esboçando um sorriso, principiou:
- Agora que voltou, vai ouvir uma novidade, que
o há-de surpreender um pouco.
- Sim?-disse ele, calmamente, olhando para ela.
- De que natureza?
- Oh! da melhor natureza deste mundo . . . um
casamento.
Depois de deixar passar alguns momentos, como
que para se certificar de que Ema não ia dizer mais
nada, Mr. Knightley retorquiu:
- Quer referir-se a Miss Fairfax e Frank Churchill?
Já o sabia.
- C om o é i s s o p o s sível? - exclamou E m a ,
voltando-se para ele, d e faces ruborizadas ; é, que, ao
mesmo tempo, ocorria-lhe que ele tivesse passado por
casa de Mrs . Goddard.
- Recebi esta manhã uma carta de Mr. Weston,
sobre negócios da paróquia, e, no fim, fazia-me um
breve relato de tudo o que sucedera.
Ema sentiu um completo alívio e pode pouco depois
dizer com mais serenidade:

439
JANE A USTEN

- O senhor, naturalmente , ficou menos sur­


preendido que qualquer de nós , pois j á devia ter as
suas suspeitas . . . Nunca me esqueci de um aviso que
uma vez me deu. E stou arrependida de não o ter
acatado, mas . . . - e, com voz abafada, continuou -
parecia estar cega.
Durante alguns momentos não se trocou palavra,
e Ema duvidava de que houvesse despertado especial
interesse com o que dissera, quando se achou com o
braço enfiado no dele e apertado contra o coração,
enquanto Mr. Knightley dizia em voz baixa e num
tom extremamente comovido:
- O tempo, minha querida Ema, o tempo cica­
trizará a ferida. O seu superior senso . . . os seus esforços
por amor de seu pai . . . Estou certo de que não se irá
entregar ao desalento.
E apertando-lhe novamente o braço, acrescentou
com voz mais alterada:
- Os sentimentos de amizade . . . Que indignidade! . . .
Que abominável patife ! . . .
E e m voz mais alta e mais firme, concluiu:
- Ele ir-se-á dentro de pouco tempo. Partirão para
o Yorkshire . Tenho pena dela; merecia melhor sorte.
Ema compreendeu-o; e assim que pôde tornar a si
da comoção despertada por tão ternas palavras,
replicou:
- O senhor é muito bondoso . . . mas está enganado . . .
e e u devo esclarecê-lo . Não careço desse género de
conforto. A minha ignorância de tudo o que se passava
era causa de que eu procedesse com eles de uma
maneira de que me envergonharei s e mpre ; e u
sentia-me loucamente tentada a dizer e a fazer coisas
que me expõem possivelmente a conjecturas desa­
gradáveis, mas nenhuma outra razão tenho para
lamentar o facto de não estar há mais tempo no
segredo .
- E m a ! - excl amou Mr. Knightley, olhando
ansioso para ela - fala verdade?
Mas reprimindo-se disse :
- Não , n ã o , compreendo-a . . . perdoe-me . Folgo
muito que possa falar assim. De facto, ele não merece

440
EMA

que o lastimem! E não tardará mqito, espero, que mais


algumas pessoas o reconheçam. E uma felicidade que
o seu coração não estej a comprometido nisso! Confesso
que nunca me pude certificar dos seus reais sen­
timentos . . . Apenas estava convencido de que havia
uma preferência . . . e uma preferência que eu nunca
achei que ele merecesse. Esse homem é o opróbrio dos
seus semelhantes . E redimir-se-á ele com essa doce
rapariga? . . . Jane, Jane, vens a ser uma desgraçada!
- Mr. Knightley, - disse Ema, tentando aparentar
firmeza, mas no fundo confusa - estou numa situação
extraordinária. Não posso deixá-lo continuar no seu
erro; e, contudo, talvez que, em face da impressão
causada pelas minhas atitudes, eu tenha tantas razões
para ter pej o de confessar que nunca me prendi à
pessoa de que estamos falando, como as que seriam
naturais numa mulher ao confessar exactamente o
contrário. Mas a verdade é que nunca estive cativada
dessa pessoa.
Ele escutava-a sem dizer palavra. Ema preferia que
ele falasse, mas não sucedeu assim. Presumia ela que
devia dizer mais alguma coisa para se achar com
direito à sua clemência; mas era muito duro ser
obrigada a descer mais no conceito de Mr. Knightley.
No entanto, continuou:
- Muito pouco tenho a dizer em favor da minha
forma de proceder. Eu deixava-me seduzir pelas suas
atenções e não ocultava quanto elas me agradavam.
Uma velha história, provavelmente . . . um caso vulgar . . .
e m nada diferente d o que tem acontecido a centenas
de pessoas do meu sexo; e, contudo, não é de forma
alguma desculpável em quem, como eu, se tem por
esclarecida. Inúmeras circunstâncias auxiliavam a
tentação . E l e era filho de M r . Weston . . . vinha
frequentemente aqui . . . eu achava sempre as suas
maneiras muito agradáveis . . . em resumo, - disse, com
um suspiro - os motivos aglomeravam-se de forma
tão subtil que acabaram por se concentrar nisto: a
minha vaidade sentia-se lisonj eada e eu tolerava-lhe
as atenções . Ultimamente , porém . . . há já um certo

44 1
JANE A USTEN

tempo . . . reconheci que a sua solicitude nenhum


significado tinha. Considerei-a um hábito, um artifício,
nada que atraísse qualquer sentimento sério do meu
lado. Ele tinha-me iludido, mas não me tinha afectado.
Nunca me senti enamorada del e . E agora j ulgo
compreender a sua atitude . Ele nunca pretendeu
seduzir-me; o que ele pretendia era apenas arranj ar
um véu que encobrisse a sua verdadeira posição
perante outra. O seu obj ectivo era vendar os olhos
das pessoas que o rodeavam; e ninguém, estou certa
disso, podia ser mais eficazmente enganada do que
eu . . . Unicamente, não fui enganada . . . a sorte não me
abandonou . . . em suma, fosse como fosse, salvei-me.
Ema esperava agora que lhe dissessem alguma
coisa - meia dúzia de palavras que reconhecessem a
clareza do seu procedimento , mas Mr. Knightley
continuou calado, e, tanto quanto Ema podia j ulgar,
absorto em profunda cogitação . Finalmente , quase no
seu tom de voz usual, disse:
- Nunca tive Frank Churchill em grande conceito.
Admito, porém, que o tenha julgado mal. As minhas
relações com ele têm sido muito superficiais. Apesar
do mau juízo, porém, em que o tenho, ainda o posso
modificar. Com a mulher que vai ser sua esposa, tem
ele probabilidades de melhorar. Não tenho qualquer
motivo para lhe desej ar mal . . . e, quanto mais não sej a,
no interesse dela, cuja felicidade dependerá do carácter
e do comportamento do marido, garanto que desej o
todo o bem a Frank Churchill .
- Não tenho dúvidas de que hão-de ser ambos
muito felizes - disse Ema; - estou convencida de
que gostam sinceramente um do outro.
- Ele é um homem com muita sorte ! - volveu Mr.
Knightley, com energia. -Tão novo . . . aos vinte e três
anos . . . numa idade em que, quando um homem escolhe
esposa, geralmente escolhe mal. . . Aos vinte e três anos
ap anhar aquela p e chinch a ! . . . Quantos anos de
felicidade, segundo os possíveis cálculos humanos,
aquele homem não tem diante de si ! . .. Certo do amor
de tal mulher . . . um amor desinteressado, pois o

442
EMA

carácter de Jane Fairfax é garantia do seu desin-


teresse . . . Tem tudo a seu favor - igualdade de
posição . . . refiro-me às exigências sociais, aos hábitos
e à educação , que são elementos importantes . . .
igualdade em tudo, excepto numa coisa . . . E essa coisa,
desde que se não pode pôr em dúvida a pureza do
coração de Jane, que será mais um motivo para a
felicidade de Frank Churchill, é a fortuna que ela não
possui. Um homem gosta sempre de dar a uma mulher
um lar melhor do que aquele aonde a foi buscar; e ele
que o pode fazer e tem assegurado o afecto de Jane
Fairfax, deve ser, na minha opinião, o mais feliz dos
mortai s . Frank Churchill é, de facto , o eleito da
fortuna. Tudo se conjuga para o favorecer. Encontra-se
com uma rapariga numa estância de águas, alcança o
seu afecto, não pode sequer enfastiá-la por negligência
de trato . . . e n e m que ele e toda a s u a famíl i a
percorressem o universo à procura d e uma esposa para
ele, j amais encontrariam uma superior a Jane. Dá com
uma tia; a tia morre . Ele nada mais tem do que dizer
uma palavra; os seus amigos estão ansiosos por lhe
proporcionar a felicidade. Procedeu mal com toda a
gente . . . e ,toda a gente tem o maior prazer em lhe
perdoar. E realmente um homem com muita sorte !
- O senhor fala como se tivesse invej a dele .
- E creia que o invej o , Ema. Sob determinado
aspecto, ele é alvo da minha invej a .
E m a não s e sentiu com coragem d e dizer nada mais.
Aquelas palavras , até certo ponto , pareciam de
Harriet, e Ema achou melhor desviar o assunto, desde
que fosse possível . Estabeleceu o seu plano; falaria de
qualquer coisa muito diferente . . . os garotos de
Brunswick Square , por exemplo. Estava-se prepa­
rando para começar, quando Mr. Knightley a fez
estremecer, dizendo:
- Não me pergunta sob que aspecto eu lhe tenh9
invej a? Vejo que decidiu não mostrar curiosidade. E
prudente . . . mas eu não posso ser prudente, Ema, vou
dizer-lhe o que não me perguntou, ainda que me
arrependa em seguida.

443
JANE A USTEN

- Oh ! então, não diga, não diga - exclamou ela,


impetuosamente . - Pense um bocado, reflicta, não
se arrisque.
- Obrigado - disse ele, com inflexão de profunda
mortificação; e nada mais disse.
Ema estava arrependida de o ter desgostado. Ele
ia confiar nela . . . talvez consultá-la; custasse o que
custasse, havia de o ouvir. Ajudá-lo-ia na sua resolução
ou reconciliá-lo-ia com ela; prestaria a devida j ustiça
a Harriet, ou, fazendo-lhe ver as vantagens que ele
teria na sua independência, aliviá-lo-ia desse estado
de indecisão que devia ser mais intolerável do que
qualquer alternativa, para um espírito como o dele .
Estavam ao pé de casa.
- Entra, não? - disse ele.
- Não - replicou Ema, absolutamente convencida
pelo tom de desânimo com que ele falou. - Gostaria
de dar mais uma volta. Mr. Perry ainda não se foi
embora.
E depois de ter andado alguns passos , acrescentou:
- Há pouco fui áspera consigo , Mr. Knightley,
quando disse que se c al a s s e ; temo que o tenha
magoado. Mas se desej a falar-me abertamente como
a uma amiga, ou pedir . . . como a uma amiga . . . a minha
opinião acerca de qualquer coisa que tenha em mente,
queira dizer. E stou pronta a ouvi -lo . Dir-lhe-ei
exactamente o que penso.
- Como a uma amiga! - repetiu Mr. Knightley.
- Ema, só receio uma palavra . . . Não, não quero. Mas . . .
porque hesito eu? . . . J á fu i longe d e mais. Ema, aceito
a sua oferta . Por mais extraordinário que pareça,
aceito-a; dirigir-me-ei a si como a uma amiga. Diga-me,
pois , não terei probabilidades de êxito?
Deteve-se no seu arrebatamento, como que pesando
a pergunta e subjugando-a com o olhar.
- Minha querida Ema, - continuou - querida
sê-lo-á sempre para mim, qualquer que sej a o desfecho
desta hora de conversação, minha querida, minha bem
amada Ema . . . Diga-me já . . . diga que não - se assim
o entende.

444
EMA

Mas ela não pôde dizer nada.


- Cala-se! - exclamou ele, cheio de animação -
cala-se! Não preciso de lhe perguntar mais nada.
Ema por pouco não desfalecia sob a excitação do
momento. O terror de ser despertada do felicíssimo
sonho, era talvez o sentimento que predominava.
- Não sei fazer discursos, Ema - tornou Mr.
Knightley daí a pouco; e com uma inflexão de ternura,
tão sincera e evidente como persuasiva, prosseguiu:
- Se a amasse menos , talvez pudesse dizer mais
coisas. Mas a Ema sabe como eu sou. De mim não
ouvirá senão a verdade . Censurei-a e repreendi-a, e a
Ema suportou tudo isso como mais nenhuma mulher
em Inglaterra o teria suportado. Perdoe as verdades
que agora lhe digo, querida Ema, como tem perdoado
as outras . O modo como são ditas talvez pouco as
recomende . Deus sabe que tenho sido um apaixonado
bem pouco atencioso. Mas compreenda-me . . . Sim, bem
v ê , deve compreender os meus s entimentos . . . e
retribuí-los-á se puder. Por enquanto, só peço que me
deixe ouvir a sua voz, uma vez que sej a.
Enquanto ele falava, o espírito de Ema encon­
trava-se num estado de extrema agitação, e, com toda
a sua maravilhosa presteza de raciocínio, conseguira
- e sem perder uma palavra - apreender toda a
verdade daquele arrazoado. Via que as esperanças de
Harriet eram inteiramente infundadas, eram um erro,
uma ilusão, uma rematada ilusão - via que Harriet
não era nada, que ela é que era tudo, que tudo quanto
dissera, referindo-se a Harriet, não era mais do que a
linguagem da sua própria imaginação, e que a sua
agitação, as suas dúvidas , o seu derrotismo, o seu
desânimo, eram criações exclusivamente suas . E ao
mesmo tempo que adquiria estas certezas, com todo o
seu esplendor de uma felicidade em perspectiva,
regozij ava-se por não ter deixado escapar o segredo
de Harriet, que agora também já não revelaria por
desnecessário. Era tudo quanto podia fazer pela sua
pobre amiga, pois uma coisa que Ema não tinha era o

445
JANE A USTEN

heroísmo de suplicar a Mr. Knightley que transferisse


dela para Harriet, como a mais digna das duas, o afecto
que lhe dedicava, - ou sequer a sublimidade mais
simples de o recusar imediatamente e para sempre,
sem alegar motivo algum, mas porque ele não podia
casar com ambas. Era com mágoa e contrição que se
apiedava de Harriet; mas nenhum rasgo de gene­
rosidade lhe ocorria que se opusesse ao provável ou
ao razoável . Tinha desencaminhado a amiga e isso
seria o seu remorso constante; mas o seu raciocínio
era tão forte como os seus sentimentos - tão forte
como sempre tinha sido - ao condenar uma união de
Harriet com Mr. Knightley, como extremamente
desvantaj osa e humilhante para ele. O seu caminho
estava claramente apontado, se bem que não de todo
livre de obstáculos . E, cedendo às rogativas do seu
companheiro, falou então. Que disse ela? Exactamente
aquilo que devia, naturalmente. Uma senhora sempre
assim faz . Disse o bastante para demonstrar que não
h avi a motivo para d e s e s pero . . . e que d e s ej ava
continuar a ouvi-lo. Houvera um momento em que ele
tinha deses perado ; intimado a acautelar- se e a
guardar silêncio, sentira desmoronarem-se então
todas as esperanças . Ela tinha-se recusado a ouvi-lo.
A mudança talvez tivesse sido um tanto repentina; a
proposta que ela fizera de darem mais uma volta, o
facto de renovar a conversa a que tinha acabado de
pôr termo, talvez fossem um pouco extraordinários !
Ema sentia a inconsistência desta atitude, mas Mr.
Knightley era tão condescendente que de bom grado
a aseitou, sem pedir mais explicações .
E muito raro que a verdade completa se encerre
em qualquer revelação humana; raramente sucede não
haver um pequeno disfarce ou uma ligeira fraude; mas
quando, como neste caso, só há disfarce nas atitudes
e não nos sentimentos , o inconveniente não é muito
grande. Mr. Knightley não podia exigir de Ema um
coração mais terno, nem mais disposto a compreender
o dele.

446
EMA

A verdade é que ele nunca tivera a menor suspeita


do seu prestígio. Tinha-a acompanhado ao parque sem
ideia nenhuma de o verificar. Viera, ansioso por ver
como ela encarava a questão de Frank Churchill, sem
nenhum fim pessoal, sem nenhum outro propósito que
não fosse - desde que ela lhe concedesse oportunidade
- confortá-la ou aconselhá -la. O resto tinha sido
produto do momento, o efeito imediato que as palavras
de Ema exerceram sobre os seus sentimentos . A
deliciosa certeza de que Frank Churchill lhe era
totalmente indiferente, de que o seu coração estava
completamente livre , havia feito n a s cer nele a
esperança de que, com o tempo, talvez conquistasse o
amor dela; não era uma esperança num fim imediato
- a sua única ambição, durante a momentânea vitória
da paixão sobre o raciocínio, era que ela lhe dissesse
que não lhe proibia os esforços para lhe conquistar o
afecto. As esperanças num obj ectivo superior, que
gradualmente se foram criando, eram, por isso, mais
arrebatadoras . O afecto que ele esperava um dia
alcançar era já seu! No espaço de meia hora, tinha
p a s s ado de um estado de es pírito angustioso a
qualquer coisa de tão semelhante à felicidade que
nenhum outro nome lhe podia dar.
A transformação de Ema era igual . Essa meia hora
tinha dado a cada um deles a mesma deliciosa certeza
de que era amado, tinha desembaraçado ambos , em
igual grau, da ignorância, do ciúme e da desconfiança.
Por parte dele, fora um ciúme constante, que datava
do dia em que Frank Churchill chegara, ou mesmo
antes, do período em que se estava na expectativa da
sua vinda. Começara a amar Ema e a ter ciúmes de
Frank Churchill , pouco mais ou menos na mesma
ocasião ; um sentimento tinha-lhe provavelmente
revelado o outro. O passeio a Box Hill havia-o decidido
a partir. Queria poupar-se o espectáculo de novos
galanteios, que ela permitia e animava. Tinha partido
para aprender a mostrar-se indiferente. Mas havia
ido para muito mau sítio. Em casa de seu irmão havia
demasiada felicidade doméstica; a mulher assumia

447
JANE A USTEN

nessa felicidade uma forma demasiado sugestiva;


Isabella assemelhava-se de mais a Ema - diferindo
desta unicamente naqueles pontos de inferioridade
que sempre tinham feito realçar o brilho da outra no
conceito dele; e essas circunstâncias obstavam a que
colhesse resultado com a mudança, mesmo que lá se
tivesse demorado mais tempo . No entanto, fora-se
deixando ficar dia após dia, até àquela manhã em que
o correio lhe levara a notícia referente a Jane Fairfax.
Então, com a alegria que era natural sentir, ou antes,
que não teve escrúpulo em sentir, visto que nunca
julgara Frank Churchill merecedor de Ema, reavi­
vou-se nele de tal modo a sua afectuosa solicitude, a
sua ardente ansiedade por Ema, que resolveu não se
demorar mais tempo . Regressava debaixo de chuva,
e, mal j antou, dirigiu-se logo ali, para ver como a mais
bela e a melhor de todas as mulheres, irrepreensível
a d es peito de todos os seus erro s , s uportava a
revelação .
Encontrou-a nervosa e desanimada: - Frank
Churchill era um vilão . Ouvia-a declarar que nunca o
tinha amado : - o caso de Frank Churchill j á não era
tão desesperado. Ela era a sua Ema, em corpo e
e s pírito , quando entraram em c a s a : e s e n e s s e
momento ele pudesse lembrar-se d e Frank Churchill,
tê-lo-ia considerado um excelente rapaz .

CAP Í TULO L

Que disposição tão diferente a de Ema quando


voltou para casa! Quando saíra nada mais ousara
esperar do que um pouco de alívio às suas mágoas, e
agora sentia-se tomada de estranho fluxo de alegria
- de uma alegria que, de resto , ela esperava se
tornasse ainda maior, depois de passada aquela
comoção .

448
EMA

Sentaram-se à mesa do chá - o mesmo grupo, à


mesa de sempre. Quantas vezes ali se tinham reunido!
Quantas vezes o olhar dela tinha caído sobre os
mesmos arbustos do j ardim e observado idêntico e
magnífico efeito do sol poente! Nunca, porém, naquela
disposição de espírito, nunca em circunstância como
aquela; e era com dificuldade que Ema conseguia o
habitual domínio de si própria, para desempenhar o
seu papel de dona de casa atenta, ou mesmo o de filha
solícita.
O pobre Mr. Woodhouse mal suspeitava do que se
estava planeando contra ele no peito daquele homem
que tão cordialmente acolhia e a quem tão ansiosa­
mente desej ara não tivesse alguma constipação na
viagem. Pudesse ele ver-lhe o coração, que pouco se
teria importado com o s pulmões ; m a s , longe de
imaginar a desgraça iminente, sem ao de leve perceber
o que havia de extraordinário nos olhares ou nos modos
quer de um, quer de outro , Mr. Woodhouse repe­
tia-lhes, em tom ameno, as novidades que ouvira a
Mr. Perry, e fazia sobre elas as suas considerações,
com ar de grande satisfação, inteiramente incônscio
do que eles podiam contar-lhe em troca.
Enquanto Mr. Knightley permaneceu em Hartfield,
o estado febricitante de Ema manteve-se; mas, assim
que ele se foi embora, começou ela a tranquilizar-se e
a serenar, e no decurso da noite de insónia, tributo
daquele serão, descobriu dois pontos muito graves a
considerar, que lhe lembraram que a sua felicidade
não seria totalmente isenta de perturbação: seu pai e
Harriet. Não podia estar sozinha sem sentir todo o
peso dos direitos de cada um deles; e como preservar
ao máximo os interesses de ambos? Eis o problema.
C o m respeito a seu pai , a questão foi depre s s a
resolvida. E m a mal sabia ainda o que Mr. Knightley
pretenderia; mas, de um breve diálogo com o seu
próprio coração, resultou a mais solene resolução de
nunca deixar o pai. Até verteu lágrimas ante tal ideia,
como um pecado de pensamento . Era apenas um
compromisso, enquanto ele vivesse; mas ufanava-se
de que esse compromisso, afastado o perigo de a

449
JANE A USTEN

arrebatarem, podia converter-se em mais um motivo


de conforto para o velho.
Como resolver as coisas satisfatoriamente quanto
a H arriet é que era um caso mais difícil . Como
poupar-lhe uma dor desnecessária? Como reparar o
possível dano? Como evitar que ela a tomasse por
inimiga? Em face destas embaraçosas perguntas, era
grande a perplexidade e a aflição de Ema, e o seu
espírito teve de arcar repetidas vezes com as mais
amargas censuras e os mais cruéis remorsos que
j amais o haviam as soberbado . No final , somente
chegou à conclusão de que devia continuar a evitar
um encontro com Harriet, comunicando-lhe por escrito
tudo o que fosse necessário, e de que seria extre­
mamente desej ável tê-la por um tempo afastada de
Highbury; e - entregando-se a mais um plano -
achava que não seria de todo impossível obter para
ela um convite de Brunswick Square . Isabella gostara
muito de Harriet, e algumas semanas passadas em
Londres deviam agradar a esta últi m a . E stava
convencida de que não era da índole de Harriet deixar
de beneficiar com a novidade e a variedade, com a
animação das ruas , as loj as e as crianças . De qualquer
modo, seria, da sua parte - de quem tudo era legítimo
aceitar - uma prova de atenção e de generosidade;
uma separação hoje, uma prevenção para o futuro,
quando todos tivessem de se encontrar de novo .
Levantou-se cedo e escreveu a Harriet - uma
ocupação que a deixou tão meditativa, tão triste quase,
que a chegada de Mr. Knightley, para almoçar, não
foi considerada prematura; e a meia hora que depois
fruiu na sua companhia, sempre pisando o mesmo
terreno, literal e figuradamente, foi bem necessária
para a reintegrar no seu devido quinhão de felicidade
da véspera.
Pouco tempo havia decorrido depois de ele a ter
deixado - pelo menos ainda não decorrera o tempo
suficiente para que ela pudesse ter a mais leve
disposição para pensar em mais alguém que não fosse
ele, - quando chegou, para Ema, uma carta de
Randalls , e bem volumosa. Conj ecturou logo o que

450
EMA

devia conter e não julgou necessário lê-la. Agora sentia


uma grande complacência por Frank Churchill; não
precisava de explicações , apenas lhe interessavam os
próprios pensamentos, - e quanto a compreender o
que ele escrevesse, tinha a certeza de que era incapaz
de tal coisa. No entanto, aquilo tinha de ser lido. Abriu
a carta; justificava-se a sua suposição: - por fora da
carta de Frank para Mrs . Weston, vinha um bilhete
desta para Ema:

Tenho o maior prazer, minha querida Ema, em lhe


remeter a carta anexa. Estou certa da inteira justiça
que lhe fará e poucas dúvidas tenho do seu feliz efeito.
Creio que nunca mais voltaremos a estar em desacordo
a respeito de quem a escreve; mas não a deterei com
um longo preâmb ulo. Nós estamos bem de saúde. Esta
carta foi o remédio para todo o nervosismo que tenho
sentido ultimamente. Não gostei muito do seu parecer
na terça-feira, mas a verdade é que estava uma manhã
m u i to po uco agradá v e l; e embora a Ema n u nca
confesse que o estado do tempo exerce influência em si,
eu acho que toda a gente se ressente do vento nordeste.
Senti bastante por seu pai o mau tempo de terça-feira,
à tarde, e de ontem, de manhã, mas tive a satisfação
de saber ontem, à noite, por Mr. Perry, que ele não
ficou doente. Amiga Certa,

A. W.

(A Mrs . Weston)

Minha querida senhora: - Se é verdade que ontem


mal me fiz compreender, estou certo de que esta carta
é esperada com ansiedade; mas esperada ou não, estou
convencido de que será lida com espírito imparcial e
indulgente. Em si só há bondade, e creio que toda essa
bondade irá ser necessária para desculpar alguns
aspectos do meu comportamento anterior. No entanto,
tenho sido perdoado por alguém que tem ainda mais
motivos para se ressentir. A minha coragem desperta

451
JANE A USTEN

à medida que escrevo. É muito difícil ser-se humilde


na prosperidade. Já por duas vezes colhi êxito ao pedir
perdão, e, por isso, não devo correr o risco de que o seu
me seja negado, nem o daqueles amigos a q uem eu
porventura tenha melindrado. É necessário que todos
compreendam bem a natureza da minha situação,
quando fui pela primeira vez a Randalls; convém não
esquecer que havia um segredo, que eu tinha de manter
a todo o custo. Esta é que é a verdade. O direito que eu
tinha a colocar-me numa situação q ue exigia tal
mistério, é outra questão. Não o discutirei agora. Em
justificação desse direito remeto todas as pessoas que
me critiquem a uma casa de Highbury, construída em
tijolo e com frestas na parte superior e janelas sacadas
por baixo. Não me atrevia a falar abertamente com
ela; as difíceis circunstâncias em que então me encon­
trava em Enscombe são por de mais conhecidas para
que requeiram explicação; e muita felicidade tive eu
em conseguir, antes de nos separarmos em Weymouth,
convencer o mais primoroso espírito feminino q ue há
na criação a que se submetesse a um compromisso
secreto. Tivesse-se ela recusado, e eu teria enlouquecido.
Mas é possível q ue me pergunte: «E que esperava
procedendo assim ? Quais eram as suas intenções ?».
Algumas havia e bem importantes: ganhar tempo,
confiando no acaso, nas circunstâncias, nos efeitos
lentos, nos imprevistos, tendo em conta a perseverança
e a fadiga, a saúde e a doença. Tinha diante de mim
todas as possibilidades, tinha assegurado o maior bem
que me era dado fruir - a sua promessa de fé e de
retribuição no afecto. Se deseja mais claras explicações,
dir-lhe-ei, minha querida senhora, que tenho a honra
de ser filho de seu marido e a vantagem de haver
herdado uma índole optimista, que vale infinitamente
maip do que todas as heranças de prédios e de terras.
E, pois, à luz destas circunstâncias que devo ser
visto, quando da minha primeira visita a Randalls.
E, de passagem, confesso a minha falta em não ter
feito essa visita mais cedo; mas deve recordar-se de

452
EMA

que não fu i enq uanto Miss Fairfax não chego u a


High b u ry; e como a pessoa desconsiderada foi a
senhora, estou certo de q ue não hesita rá e m me
desc u lpar. En tretan to, p reciso de apelar para a
complacência de meu pai, lembrando-lhe q ue, en­
quanto estive ausente de sua casa, não tive a felicidade
de conhecer sua esposa. A minha forma de proceder
durante a feliz quinzena que passei convosco, espero
que não tivesse dado lugar a censuras, a não ser sob
d e term inado asp e c t o . E agora v a m o s do p o n to
principal, o único aspecto do meu comportamento que,
visando-a especialmente, é causa de grande apreensão
da minha parte e requer minuciosa explicação.
É com o maior respeito e a mais sincera amizade
que me refiro a Miss Woodhouse; meu pai talvez
entenda que deva acrescentar: e com a mais profunda
humildade. Algumas palavras que lhe ouvi ontem
esclareceram-me quanto à sua opinião, e vi nelas uma
censura de q ue me reconheço merecedor. O meu
procedimento para com Miss Woodhouse foi, estou
convencido, além do que de via ir. No i n t u i to de
fortalecer um segredo tão essencial para mim, fui
levado a a b usar da intimidade que tão dep ressa
criámos. Não posso negar que Miss Woodhouse era o
meu alvo ostensivo; creio, porém, que me acreditará,
se eu lhe disser que, se não estivesse convencido da
indiferença de Miss Woodhouse, nunca continuaria
com propósitos tão egoístas. Amável e cativante como
Miss Woodhouse é, nunca me pareceu, contudo, o tipo
de mulher susceptível de se enamorar; e que ela estava
muito longe de qualquer tendência para se afeiçoar a
mim, era tanto a minha convicção como o meu desejo.
Ela colhia as minhas atenções com um tranquilo e
cordial bom humor, que era exactamente o que me
convinha. Parecia compreendermo-nos um ao outro.
Dadas as nossas respectivas posições, tais cortesias
eram-lhe naturalmente de v idas, e ambos assim o
sentíamos. Se Miss Woodhouse começou a compre­
ender-me ou não, antes de expirar essa quinzena, não

453
JANE A USTEN

o posso dizer; quando fui despedir-me dela, recordo-me


de que estive a ponto de lhe confessar a verdade e, então,
p a rece u - me q u e ela não de ixa v a de ter as s uas
suspeitas; não duvido, pois, q ue ela tenha andado
desconfiada comigo a partir de então. Não deve ter
p e rce bido t udo, mas a s u a p e rsp icácia de v e ter
vislumbrado uma parte. Não tenho a menor dúvida.
A senhora há-de verificar, quando a q uestão estiver
completamente livre da actual reserva, que não será
de todo s u rp resa p a ra e l a . Bastas vezes me fez
insinuações a tal respeito. Lembro-me de ela me ter
dito no baile que eu devia gratidão a Mrs. Elton pelas
suas atenções para com Miss Fairfax.
Espero q ue estes aspectos do meu comportamento
para com Miss Woodhouse sejam considerados pela
senhora e por meu pai como valiosa atenuante do que
viram de impróprio. Enquanto acharem que pequei
contra Ema Woodhouse, nada merecerei de um nem
de outro. Absolvei-me e procurai obter, logo que se torne
oportuno, a absolvição e o perdão de Ema Woodhouse,
a quem tributo tão fraternal afecto que só lhe desejo a
felicidade de conhecer um amor tão profundo como
aquele q ue eu conheço.
Aí tem a chave de todas as estranhas atitudes que
tomei durante essa quinzena. O meu coração, estava
em Highbury, e a minha principal preocupação era
estar ali tantas vezes q uantas p udesse, sem despertar
a menor suspeita. Se se lembrar de qualquer excentri­
cidade da minha parte, já sabe a que atribuí-la.
Quanto ao piano de que tanto se falou, apenas devo
dizer que Miss Fairfax ignora totalmente quem lho
ofereceu, v isto q ue, se conhecesse os meus intentos,
nunca me teria permitido que lho enviasse. A delica­
deza de sentimentos que ela tem revelado durante todo
este tempo, minha querida senhora, está muito acima
de, toda a justiça que eu lhe possa fazer. Espero bem
q ue não tardará em a conhecer devidamente. Não há
palavras que a possam definir. Ela já se lhe deve ter
dado a conhecer - não por palavras, pois jamais houve

454
EMA

criatura humana q ue tão propositadamente dissi­


mulasse os próprios méritos.
Depois de ter principiado esta carta, que será mais
longa do que previa, recebi notícias dela. Diz-me que
está boa de saúde, mas, como nunca se queixa, não
confio muito no que diz. Peço-lhe que me dê a sua
opinião, quanto ao seu parecer. Sei que irá brevemente
v isitá-la; ela está apreensiva quanto a essa visita.
Talvez que já tenha sido levada a efeito. Escreva-me
sem demora; estou ansioso por m i l porme nores.
Lembre -se de que estive uns escassos minutos em
Randalls e do estado de desorientação em q ue me
encontrava. E agora não estou muito melhor: continuo
meio louco de felicidade e de apreensões, ao mesmo
tempo. Quando penso na mercê que obtive, na bondade
e na paciência de Miss Fairfax e na generosidade de
meu tio, sinto-me enlouquecer de alegria; mas quando
me lembro do desassossego em que a lancei e de quão
pouco perdão mereço, julgo enlouquecer de angústia.
Se ao menos pudesse vê-la outra vez!. . . Mas não posso,
por enquanto, aspirar a tal. Meu tio foi demasiado
bom para mim, para eu ab usar.
Tenho alguma coisa mais a acrescentar a esta
extensa carta. A senhora ainda não sabe tudo quanto
deve saber. Ontem não p ude entrar em minúcias; mas
o modo inesperado e, até certo ponto, a inoportunidade
com que o caso se patenteou, exige uma explicação,
pois, não obstante o desenlace ocorrido no dia 26 do
mês passado me ter aberto, como deve supor, as mais
gra tas p e rsp e c t i v a s, eu não teria adap tado tão
prematuramente essas medidas, se não hou vesse
circunstâncias muito especiais que me não concediam
uma hora sequer de demora. Eu podia ter-me eximido
a um acto tão precipitado, que ela teria compreendido
todos os meus escrúp ulos com a devida clareza. Mas
eu não podia hesitar. O irreflectido compromisso que
ela tomara com essa mulher. . .
Nesta altura, minha querida senhora, fui obrigado
a fazer uma interrupção, para concentrar ideias. Fui

455
JANE A USTEN

dar um passeio ao campo e agora acho que estou


suficientemente apto a terminar o que ia dizendo.
Estas e vocações são, na verdade, m u i to humi­
lhantes. Comportei-me vergonhosamente. E com isto
reconheço q u e a m i n h a a t i t ude p a ra com Miss
Woodhouse, q ue desagrada va a Miss Fairfax, foi
altamente condenável. Ela desaprovava-a, e isso devia
bastar-me. Andava contrariada, e eu não lhe achava
razão para tal: disse-lhe um sem número de vezes que
a achava excessivamente escrup ulosa e cauta. Até
julguei ver nela indiferença. Mas ela tinha razão, como
sempre. Se eu ti vesse seguido a sua op inião e me
submetesse às normas que ela tinha por convenientes,
teria evitado a maior desgraça que até hoje conheci.
Zangámo-nos. Lembra-se da manhã de Donwell ? Pois
todos os pequenos contratempos que ali ocorreram
tiveram por desfecho uma crise. Eu tinha-me atrasado;
encontrei-a a caminho de casa e quis acompanhá-la;
mas ela não admitiu tal coisa. Recusou-se positiva­
mente a ir na minha companhia, o que eu então achei
absurdo. Agora, porém, apenas vejo nisso um sinal de
coerência e de discrição. Enquanto eu, para dissimular
perante os outros o nosso compromisso, perdia uma
hora a cortejar uma mulher, ia ela consentir numa
proposta que podia tornar inúteis todas as precauções
até então tomadas ? Se nos vissem juntos fazendo o
percurso de Donwell para Highbury, suspeitariam logo
da verdade. Eu, porém, estava cego de mais para a
compreender . . . D u v idava do se u afecto. E no dia
seguinte, em Box Hill, ainda mais duvidei, quando
ela, irritada pela minha forma de proceder, pelo
insolente e vergonhoso desprezo a que a votara, ao
mesmo tempo que aparentava uma tal solicitude por
Miss Woodhouse, o que qualquer mulher de senti­
m e n tos teria achado i mpossível de s uportar, -
exprimiu o seu ressentimento por uma forma assaz
clara para mim.
Em res u mo, minha querida senhora, foi uma
discussão em que ela se mostrou irrepreensível e eu
abominável; e, embora p udesse demorar-me aí até à

456
EMA

manhã seg u i n te, regressei nessa mesma noite a


Richmond, simplesmente porque estava tão zangado
com ela quanto se pode estar. Mas, mesmo assim, eu
não estava tão cego que não desejasse reconciliar-me
com ela na primeira oportunidade, mas conside­
rava-me o ofendido, ofendido pela sua indiferença, e
por isso me fui embora, esperando que fosse ela quem
tomasse a iniciativa. Sempre me congratulei por a
senhora não ter tomado parte no passeio a Box Hill.
Se tivesse presenciado a minha atitude, receio bem que
nunca mais pudesse fazer bom conceito de mim. O efeito
que o meu comportamento exerceu sobre Miss Fairfax
revela-se na resolução que ela tomou: logo que soube
que eu havia, de facto, partido de Randalls, apressou-se
a aceitar a oferta dessa obsequiosa Mrs. Elton, cujo
método de tratar Miss Fairfax, diga-se de passagem,
sempre me insp iro u indignação e ódio. Não de vo
queixar-me do espírito clemente que tão magnifica­
mente baixou até mim; mas, por outro lado, não posso
deixar de me revoltar contra a pretensão que essa
mulher tem de o querer também chamar a si.
«Oh! Jane!» . . . - A senhora deve ter notado que eu
não me permitia ainda tratar Miss Fairfax pelo nome
próprio, mesmo falando consigo. Por isso bem deve
calcular quanto me deve ter custado ver os Eltons
disp u tare m - na com toda a v u lgaridade de uma
insistência inútil e toda a insolência de uma supe­
rioridade imaginária.
Tenha paciência, terminarei em breve. Miss Fairfax
a ce i tou, p o i s, a d i ta ofe rta, res o l v ida a ro mper
completamente comigo, e escreveu-me no dia seguinte,
dizendo - me que n u nca mais nos de v íamos ver. -
Considerava o compromisso uma fonte de desgostos e
de desassossego para ambos e, portanto, desfazia-o.
- Esta carta chegou-me às mãos precisamente na
manhã em que minha tia morreu. Respondi-lhe daí a
uma hora; mas com o espírito perturbado como estava
e com as inúmeras preocupações que me assaltaram
ao mesmo tempo, a carta, em lugar de ser enviada
para o correio juntamente com a numerosa corres-

457
JANE A USTEN

pondência desse dia, ficou fechada na minha secre­


tária, e eu, convencido de que tinha dito, embora em
poucas palavras, o bastante para a convencer, fiquei
descansado. Senti-me um pouco apreensivo por não
receber notícias dela com a brevidade que esperava;
mas desculpei-a, e, além disso, andava muito ocupado,
e - devo acrescentar - demasiado contente pelas
perspectivas que se me ofereciam, para me preocupar
de mais com o caso.
Transferimo-nos para Windsor, e dois dias depois
recebi dela um pacote: eram todas as minhas cartas
que ela me devolvia! Pelo mesmo correio mandava-me
meia dúzia de linhas em que manifestava a sua enorme
surpresa por não ter recebido a menor resposta à sua
última carta; acrescentava ainda que, como o meu
silêncio a tal respeito não deixava lugar a dúvidas e
como era de extrema conveniência para ambos que a
questão se resolvesse tão depressa quanto possível, me
enviava, pelo mesmo correio, todas as minhas cartas
e me pedia que, se não p udesse mandar-lhe as dela
para Highbury dentro de uma semana, lhas mandasse
para . . . quer dizer, a direcção de Mr. Smallridge,
próximo de Bristol, saltou-me aos olhos. Nem o nome,
nem o lugar, nada me era desconhecido; por isso, vi
logo o que ela ia fazer. Esse gesto estava perfeitamente
de acordo com a firmeza de carácter q u e e u lhe
conhecia; e o sigilo que ela, na carta anterior, tinha
guardado sobre tal desígnio era bem elucidativo da
sua delicadeza de sentimentos. Por coisa alguma deste
mundo teria usado para comigo de qualquer atitude
que se parecesse com uma ameaça.
Imagine o choque q ue rece b i; imagine o m e u
desespero, convencido d a negligência dos correios,
quando afinal tinha sido minha! Que havia eu de
fazer? Uma coisa apenas: falar a meu tio. Sem a sua
sanção, eu não podia esperar que me escutassem. Falei
com ele; as circunstâncias eram a meu favor. A morte
de minha tia tinha a batido o seu orgulho e, mais
depressa do que eu teria julgado, resignou-se e deu-me

458
EMA

o seu acordo; por fim, apenas disse, dando um profundo


suspiro - coitado! -, que desejava que encontrasse
no casamento tanta felicidade como a que ele tinha
encontrado. Eu esperava que essa felicidade fosse de
um género diferente.
Compadece-se de mim pelo que eu devo ter sofrido
ao revelar tudo a meu tio, incerto do seu acolhimento,
não é verdade ? Mas não; não se compadeça de mim,
por isso. Só deve ter compaixão de mim pelo que senti
quando cheguei a Highbury e encontrei Miss Fairfax
tão doente por minha causa. Piedade merecia-a eu
quando a vi macilenta e abatida.
Cheguei a Highbury a uma hora em que, sabedor
de q uão ta rde almoça vam, tinha a ce rteza de a
encontrar só. Não me enganei; e, finalmente, também
não fiquei desiludido quanto ao objectivo da minha
jornada. Ti ve de desfazer m u ita má i mp ressão,
razoável e justa. Mas consegui o que queria; recon­
ciliámo-nos, ficámos ainda mais amigos, muito mais
amigos que dantes, e nunca mais voltara a haver o
menor desentendimento entre nós.
Agora, minha querida senhora, vou aliviá-la desta
maçada; não pude concluir antes. Mil e mil agradeci­
mentos por todas as bondades que tem tido para comigo
e dezenas de milhar por todas as atenções que o seu
coração lhe ditar em favor dela. Acha-me mais feliz do
que mereço, não é verdade ? Sou completamente da sua
opinião. Miss Woodhouse chama-me o filho dilecto da
fortuna. Creio que tem razão. Num ponto sei eu que
não se pode pôr em dúvida a minha boa sorte: o de
poder subscrever-me

Seu filho afectuoso e grato

F. C . Weston Churchill .

459
JANE A USTEN

CAP Í TULO LI

Esta carta não podia deixar de exercer a sua


influência no espírito de E m a . Viu-se forçada , a
despeito de toda a sua prévia determinação em
contrári o , a fazer-lhe a j ustiça que Mrs . Weston
antevia. Quando chegou à altura em que se citava o
seu nome, não pôde resistir; não havia linha que se
lhe referisse que não lhe oferecesse interesse, e quase
não havia uma que lhe não desse prazer. E quando
cessou o encanto, o assunto ainda se mantinha vivo
no seu espírito, graças à natural evocação da sua
antiga inclinação pelo autor da carta e à forte atracção
que todo o quadro de amor necessariamente exercia
nela nesse momento . Só agora, depois de conhecer a
questão, é que se dava por convencida; e embora fosse
impossível não reconhecer culpas no rapaz, este era,
contudo, menos culpado do que ela supusera. Tendo,
além dis so, em conta, o que havia sofrido, o seu
arrependimento , a s u a gratidão para com Mrs .
Weston, o seu amor sincero por Miss Fairfax, e a sua
própria felicidade, Ema não podia ser severa; se ele
entrasse naquele momento, ela ter-lhe-ia apertado a
mão tão cordialmente como dantes.
Ficara com tão boa impressão da carta que, quando
Mr. Knightley voltou, quis que ele a lesse . Tinha a
certeza de que a benévola disposição de Mrs . Weston
se lhe comunicaria; sobretudo a quem , como Mr.
Knightley, tinha visto tanta coisa digna de censura
no comportamento de Frank.
- Terei muito gosto em a ler, - disse ele - mas
é tão comprida! Levo-a para casa, para a ler à noite .
Mas isso não podia ser. Mr. Weston devia vir à
tardinha e ela tinha de devolver por ele a carta.
- Preferiria conversar consigo - replicou Mr.
Knightley; - mas como parece tratar-se de um caso
de consciência, vou lê-la.
Começou, para se interromper em seguida, dizendo:

4 60
EMA

- Tivessem-me dado a ler uma destas cartas


alguns meses atrás , Ema, que não a teria acolhido
com tanta indiferença.
C ontinuou a ler para si, até que , sorrindo-se,
observou, tolerante :
- Mau ! . . . Mas esta é a sua maneira de ser. Não
devemos impor aos outros a nossa forma de pensar.
Não sej amos severos.
- Não estranhe - acrescentou, pouco depois -
que faça os meus comentários em voz alta. Assim,
tenho a noção de que estou a seu lado . A perda de
tempo não será tão grande; mas se lhe desagrada . . .
- D e maneira alguma. Até gosto .
Mr. Knightley voltou à sua leitura com a maior
satisfação:
- Ele aqui desculpa-se com a tentação - disse
ele . - Sabe que errou e não tem nada que o justifique .
Fez mal; não devia ter criado esse compromisso. «A
índole do pai» . . . No entanto, é inj usto para o pai. O
feitio entusiasta de Mr. Weston alcançou todo o seu
actual bem-estar quase sem esforço. Isso é verdade;
ele não veio enquanto Miss Fairfax cá não esteve .
- E eu não me esqueci - disse Ema - de o senhor
me ter dito que ele podia muito bem ter vindo mais
cedo se quisesse . Teve a delicadeza de nunca mais
falar nisso . . . mas a verdade é que tinha toda a razão .
- Eu não era de todo imparcial no meu ponto de
vista, Ema; no entanto, creio que . . . mesmo que a Ema
não estivesse metida no caso . . . eu teria desconfiado
dele.
Quando Mr. Knightley chegou à altura em que se
falava de Miss Woodhouse, teve de ler tudo em voz
alta - tudo o que se referia a ela; e, sorrindo-se,
abanou a cabeça, deixou ouvir duas ou três palavras
de assentimento ou de desaprovação, ou simplesmente
de ternura, como o assunto requeria, e, depois de uns
momentos de reflexão, concluiu em tom sério:
- Muito mal . . . se bem que pudesse ser pior. Foi
um j ogo muito perigoso. Tem culpas de mais para

461
JANE A USTEN

poder ser absolvido. Não avalia bem a atitude que


assumiu para consigo. Sempre j oguete dos próprios
desejos e pouco se importando com o que não sej a a
c_onveniência. Supor que Ema suspeitava do segredo! . . .
E muito natural . . . com o espírito cheio d e m á fé, não
admira que a j ulgasse nos outros. Mistério . . . astúcia . . .
Como deturpam o significado das palavras . Minha
Ema, não acha que tudo isto tem a vantagem de
demonstrar cada vez mais que nada haverá tão belo
como a verdade e a sinceridade nas nossas relações
mútuas?
Ema concordou, mas, sem poder explicar clara­
mente porquê, ruborizou-se ao lembrar-se de Harriet.
- E melhor continuar - disse ela.
Mr. Knightley obedeceu, mas não tardou a deter-se
mais uma vez, dizendo:
- O piano ! . . . Ah ! bem se vê que foi um gesto de
rapaz, um gesto de pessoa nova de mais para pensar
se os inconvenientes não excederiam o prazer da
oferta. Um plano de garoto, é claro! Eu não compreendo
que um homem insista em dar a uma mulher qualquer
prova de afecto, quando sabe que ela não está disposta
a aceitá-la; e não há dúvida de que ele sabia que ela,
se pudesse, teria impedido a vinda do instrumento.
Depois destas palavras, fez Mr. Knightley, algum
progresso, sem parar uma só vez. A confissão que
Frank Churchill fazia de se ter comportado vergo­
nhosamente foi finalmente a primeira coisa que lhe
despertou mais alguns reparos .
- Concordo plenamente consigo, meu caro senhor
- foi a sua observação. -Portou-se realmente de uma
forma vergonhosa. Nunca escreveu palavras mais
acertadas .
E depois de ter lido a parte referente à desin­
teligência havida entre Jane e Frank e à obstinação
deste em se opor ao bom senso de Miss Fairfax, fez
uma pausa mais prolongada para dizer:
- Isto é muito m a u . E l e tinh a - a induzido a
suj eitar-se, por amor dele, a uma situação extrema­
mente crítica; o seu primeiro objectivo devia, pois, ser
evitar-lhe desgostos inúteis . Ela devia ter encontrado

462
EMA

muito mais dificuldades do que ele em manter a


correspondência. Ainda que os escrúpulos de Miss
Fairfax fossem absurdos, ele devia tê-los respeitado;
quanto mais sendo justificados como eram ! Se nos
lembrarmos de que o seu único erro foi consentir nesse
compromisso, não podemos admitir que ela tenha
sofrido tal expiação.
Ema via que ele estava a chegar ao passeio de Box
Hill e sentia-se nervosa. O seu modo de proceder tinha
sido tão incorrecto ! Estava profundamente enver­
gonhada e um pouco receosa do seu olhar. No entanto,
essa passagem foi atentamente lida, sem a menor
observação; e, a não ser um lance de olhos que ele lhe
deitou e que não demorou mais que um instante, por
temor de a magoar, nenhum reparo sobre Box Hill se
fez ouvir.
- Não elogia muito a delicadeza dos nossos bon�
amigos, os Eltons , - observou ele pouco depois. - E
natural que assim Pense . . . - o quê ! sempre chegou a
romper com ele? . . . Achava que o compromisso era uma
fonte de desgostos e de inquietações para ambos . . . e
desfê-lo. Que bem que ela aqui demonstra a noção que
tinha do modo de proceder dele! Olhe, ele deve ser um
refinadíssimo . . .
- Não, não, continue. Verá como ele sofreu.
- Faço ideia! - replicou Mr. Knightley, friamente,
recomeçando a ler. - «Smallridge ! » . Que quer isto
dizer. Que vem a ser tudo isto?
- Ela tinha-se comprometido para o lugar de
preceptora dos filhos de Mrs . Smallridge . . . uma amiga
de Mrs . Elton . . . sua vizinha em Maple Grove. E a
propósito . . . gostava de saber como Mrs . Elton encara
a desistência de Jane Fairfax.
- Não diga nada, minha querida Ema, enquanto
eu não acabo de ler . . . nem mesmo a respeito de Mrs .
Elton. Só falta uma página. Estou quase a terminar.
Que enorme carta que o homem escreve !
- Gostaria que a lesse com mais indulgência.
- Oh! aqui há sofrimento. Realmente parece que
ele sofreu um bocado quando a encontrou doente . . .
Evidentemente, não duvido d e que ele goste dela.

463
JANE A USTEN

«Amigos, muito mais amigos que dantes». Oxalá que


nunca deixe de sentir todo o valor de tal reconciliação.
Ele é muito liberal a agradecer . . . milhares e dezenas
de milhar de agradecimentos . . . «Mais feliz do que
mereço» . . . Vamos, nisso conhece-se ele bem . «Miss
Woodhouse chama-me o filho dilecto da fortuna» . . .
Foram, de facto, estas as palavras de Miss Woodhouse?
Bonito fim de carta . . . «Ü filho dilecto da fortuna!» Foi
realmente o nome que lhe deu?
- O senhor parece não ter ficado tão satisfeito com
a carta como eu fiquei; no entanto - pelo menos assim
me parece , - acho que devia ficar a fazer melhor
opinião dele. Espero que tenha subido alguma coisa
no seu conceito.
- Sim, não há dúvida. Ele tem grandes defeitos . . .
leviandade e negligência. E e u penso exactamente
como ele; é mais feliz do que merece; no entanto, como
não há dúvida alguma de que ama sinceramente Miss
Fairfax e de que é de esperar que, dentro de pouco
tempo, tenha a satisfação de a ter sempre a seu lado,
admito de bom grado que o seu carácter melhore e
que ele adquira a firmeza de princípios e a delicadeza
de sentimentos que ela possui . E agora deixe-me
dizer-lhe algumas palavras mais. Tenho de tal forma
presente no espírito o interesse de outra pessoa, que
não posso ocupar-me mais de Frank Churchill. Desde
que a deixei esta manhã, Ema, não me tem saído isso
da ideia.
Seguiu-se o assunto em vista; tratava-se de saber
como devia ele pedi-la em casamento, sem afectar a
tranquilidade de espírito do pai. E isto foi exposto
naquela linguagem clara, simples e correcta que Mr.
Knightley usava, mesmo com a mulher que amava. A
resposta de Ema foi pronta logo às primeiras palavras .
Enquanto o pai vivesse, era-lhe impossível modificar
a sua situação. Jamais o deixaria. No entanto, só parte
desta resposta foi aceita. A impossibilidade de
abandonar o pai, reconhecia-a Mr. Knightley tão bem
como ela; no que ele não estava de acordo, porém, era
na inadmissibilidade de qualquer outra mudança.

464
EMA

Pensara nisso aturadamente; a princípio lembrou-se


de convencer Mr. Woodhouse a transferir-se com ela
para Donwell; chegara a julgá-lo praticável, mas o
conhecimento que tinha de Mr. Woodhouse depressa
o obrigou a reconhecer o absurdo da solução. E agora
confessava a sua convicção de que tal transferência
poria em risco o bem-estar do pai de Ema, talvez até
a sua vida. Mr. Woodhouse fora de Hartfield ! . . . Não;
compreendia que não se devia tentar tal coisa. Mas
ao plano que forj ara em substituição, esperava ele que
a sua querida Ema nada encontrasse que obj ectar;
consistia em ser aceito em Hartfield, isto é, enquanto
a tranquilidade de Mr. Woodhouse - por outras
p a l avra s , a sua vida - exigi s s e que H artfield
continuasse a ser o lar de Ema, seria também o dele.
Da sua transferência para Donwell j á Ema tinha
dito o que p e n s ava . D a m e s m a forma que M r .
Knightley, tinha ela encarado e s s a hipótese, que ,
depois, rej eitara; mas esta alternativa é que lhe não
tinha ocorrido . Sensibilizou-a a prova de afecto que
ela revelava. Compreendia que, deixando ele Donwell,
sacrificava grande parte da sua independência, em
tempo e em hábitos, e que, coabitando com o pai, numa
casa que não era a dele, viveria muito mais coacto.
Ema prometeu pensar e aconselhou-o a que, entre­
tanto, reflectisse um pouco mais; mas Mr. Knightley
estava plenamente convencido de que nenhuma
reflexão podia alterar os seus desejos ou o seu ponto
de vista a tal respeito. Tinha ponderado atentamente
a questão, asseverava-lhe; tinha andado toda a manhã
fugido de William Larkins, para poder pensar bem no
caso.
- Ah ! aí está uma dificuldade a atender -
exclamou Ema. - Estou convencida de que William
não há-de gostar. Tem de obter o seu consentimento,
antes de pedir o meu.
Ela prometeu, contudo, pensar nisso; e a verdade
é que com disposição para achar o plano muito
aceitável.
É de notar que E m a , entre o s variadís simos
aspectos sob que começava agora a considerar Donwell

465
JANE A USTEN

Abbey, nunca se lembrasse do prejuízo que poderia


sofrer o seu sobrinho Henry, cuj o s direitos como
herdeiro presuntivo da propriec)ade ela com tanta
tenacidade tinha defendido . E p o s sível que lhe
ocorresse o provável dano que causaria ao pobre
garoto; mas isso apenas lhe merecia um sorriso irónico,
divertida ao descobrir a verdadeira razão da violenta
antipatia que lhe inspirara o casamento de Mr.
Knightley com Jane Fairfax, ou com qualquer outra,
e que ela atribuíra então ao seu amor de irmã e de tia.
Quanto mais meditava nesta proposta de Mr.
Knightley, neste projecto de casar com ele e ficar em
Hartfield, mais ela lhe agradava. Pareciam atenuar-se
os inconvenientes que para Mr. Knightley daí podiam
advir, aumentavam as vantagens que ela podia colher,
e o proveito que ambos daí tirariam excedia em muito
todas as desvantagens . Que companheiro em mo­
mentos de angústia e de tristeza! Que auxiliar em
todos aqueles deveres e ocupações aos quais o tempo
parece dar um acréscimo de melancolia!
Ema julgar-se-ia absolutamente feliz se não fosse
H arriet; mas cada motivo de felicidade parecia
implicar, de antemão, um motivo de dor para a sua
amiga, que, inclusivamente, devia ser excluída de
Hartfield. À deliciosa festa de família para que Ema
se preparava, devia a pobre Harriet, por simples
medida caritativa, ficar alheia. De todos os modos seria
prejudicada. Ema não podia convencer-se de que a
ausência da amiga viesse a ser causa de decréscimo
na sua alegria. Nessa festa, Harriet seria mais um
peso morto que outra coisa; mas a verdade é que para
a pobre rap ariga parecia ser uma n e c e s s i d a d e
particularmente cruel ver-se reduzida a tão imerecida
expiação .
Com o tempo, era natural que esquecesse Mr.
Knightley, isto é , que encontrasse alguém que o
suplantasse; mas não era de esperar que isto acon­
tecesse tão cedo. O próprio Mr. Knightley nada faria
para aj udar à cura; não era como Mr. Elton . Mr.
Knightley, sempre tão afável, sempre tão sensível,

466
EMA

sempre tão delicado para com todos, não merecia que


o adorassem menos do que o adoravam; e além disso,
era esperar demasiado, mesmo de Harriet, que ela
pudesse amar mais de três homens por ano.

CAPÍTULO LII

Foi de enorme alívio para Ema encontrar em


Harriet o mesmo desejo de evitar um encontro . As
suas relações j á eram bastante penosas por corres­
pondência; quanto piores não seriam se as duas
amigas fossem obrigadas a falar uma com a outra!
Harriet, como é de supor, expressava-se sem a mais
leve queixa, sem a mais ligeira mostra de animosidade;
e, contudo, Ema j ulgou notar no seu estilo uns certos
laivos de ressentimento que pareciam acentuar a
conveniência de se manterem afastadas . Podia ser
apenas a sua consciência a acusá-la; mas para que
Harriet, na realidade, não estivesse ressentida ante
tal agravo, era preciso que fosse um anj o .
E m a não teve dificuldade e m conseguir u m convite
de Isabella; e foi muito feliz em encontrar uma razão
plausível para o pedir, sem denotar que se tratava de
um artifício. Harriet, que tinha um dente em mau
estado, havia muito tempo que desej ava realmente
consultar um dentista. Mrs . John Knightley mostrou
o maior prazer em lhe ser prestáve l ; tudo que
respeitasse a falta de saúde era uma recomendação
para ela, e, embora não simpatizasse tanto com um
dentista como com Mr. Wingfield, manifestou a maior
solicitude em tomar Harriet a seu cuidado. Assim que
as coisas ficaram combinadas com a irmã, Ema fez a
proposta à amiga, em quem encontrou a mais pronta
aquiescência. Harriet iria; o convite era para quinze
dias , pelo menos, e a carruagem de Mr. Woodhouse
transportá-la-ia para Londres . Preparou-se tudo,
correu tudo na melhor ordem, até que Harriet chegou
sã e salva a Brunswick Square.

467
JANE A USTEN

Agora podia Ema saborear, enfim, o prazer das


visitas de Mr. Knightley; agora podia ela gozar
verdadeiramente a felicidade de conversar com ele,
livre daquela sensação de inj ustiça, de culpa, de um
não sei quê de penoso que a importunava sempre que
se lembrava de que, não muito longe, havia um coração
desiludido, que podia, nesse momento, estar sofrendo
por motivos que ela própria tinha provocado.
A diferença que havia entre Harriet estar em casa
de Mrs . Goddard e estar em Londres, talvez fosse uma
fantasia do espírito de Ema; mas o que é certo é que
ela não podia imaginar a amiga em Londres sem
obj ectivos de curiosidade, que, distraindo-a, deviam
fazê-la esquecer o passado, e ajudá-la a defender-se
de si própria.
Ema não queria que mais nenhum motivo de
inquietação fosse ocupar imediatamente no seu,
espírito o lugar que Harriet aí tinha ocupado. Im­
punha-se-lhe a necessidade de uma comunicação que
só ela estava indicada que fizesse - a confissão do
seu compromisso ao pai; mas, por enquanto, não se
preocuparia com tal coisa. Resolvera adiar a revelação
até Mrs. Weston se restabelecer. Durante esse período,
não queria lançar entre aqueles que amava mais
nenhum elemento de perturbação; e estava decidida
a não se inquietar antes de tempo. Tinha à sua frente
quinze dias tranquilos, pelo menos, para se preparar
para mais intensas, mas mais agitadas delícias .
Depressa resolveu, tanto por dever como por prazer,
empregar meia hora destas férias do espírito em visitar
Miss Fairfax. Devia ir e, além disso, estava ansiosa
por vê-la; a semelhança de situações reforçava todos
os outros motivos de boa vontade . No fundo, era uma
satisfação a mais ; mas essa consciência de simila­
ridade de perspectivas aumentava também o interesse
com que Ema esperava qualquer revelação que Jane
porventura lhe fizesse .
Foi; j á tinha uma vez parado à porta, - sem ter
colhido o resultado desej ado - mas ainda não havia

468
EMA

tornado a entrar desde aquela manhã de Box Hill, em


que a pobre Jane se mostrara tão aflita que lhe
despertara a compaixão, embora mal suspeitasse da
real grandeza da sua dor. O temor de ser mais uma
vez importuna decidiu-a, se bem que convencida de
que Jane estava em casa, a esperar no corredor e fez-se
anunciar. Ouviu Patty dizer o seu nome; mas agora
não se sucedeu nenhum rumor como o que a pobre
Miss Bates deixara da outra vez ouvir. Não; desta vez
apenas ouviu a resposta: «Peça-lhe que suba» , dada
sem hesitação; e um momento depois encontrava-se
na escada com a própria Jane , que se adiantava
pressurosa, como se não achasse suficiente nenhuma
outra forma de recepção . Ema nunca a tinha visto tão
afável , tão acolhedora, tão cativante . Havia nela
animação, vida, calor; havia tudo o que sempre lhe
faltara, na expressão e nos modos.
Jane adiantou-se com a mão estendida e disse, em
voz baixa, mas bastante expressiva:
- Oh! que bondade a sua, Miss Woodhouse! . . . É-me
impossível exprimir . . . Creia que . . . Desculpe-me, mas
faltam-me as palavras . . .
Ema estava radiante e depressa teria correspondido
devidamente, se a não houvesse detido a voz de Mrs .
Elton que se encontrava na saleta; isto teve o dom de
concentrar todos os seus afectuosos e congratulatórios
sentimentos num enérgico aperto de mão.
Mrs . Elton estava conversando com Mrs . Bates.
Miss Bates tinha saído, o que se podia considerar uma
garantia de quietação. Ema teria preferido que Mrs .
Elton não estivesse ali; mas o seu estado de espírito
permitia-lhe ser tolerante com todos , e como Mrs .
Elton a acolheu com desusada amabilidade , ficou
convencida de que nenhum mal adviria do encontro .
Não tardou que julgasse haver desvendado o motivo
por que Mrs . Elton se encontrava, como ela, tão bem
disposta; estava ao facto da história de Miss Fairfax
e regozij ava-se por conhecer que ainda era um segredo
para as outras pessoas . Ema viu-lhe logo os sintomas

4 69
JANE A USTEN

na fisionomia; e enquanto cumprimentava Mrs . Bates


e aparentemente escutava a velha senhora, viu Mrs .
Elton , com uma espécie de afectação de mistério,
dobrar uma carta que parecia ter estado a ler a Miss
Fairfax e metê-la num saco de costura, vermelho,
bordado a ouro, que se encontrava a seu lado, e dizer,
com um significativo menear de cabeça:
- Podemos acabar isto noutra ocasião, não acha?
Não nos faltarão oportunidades. E a menina já ouviu
o essencial . Apenas pretendia demonstrar-lhe que
Mrs . Smallridge aceita as suas desculpas e não ficou
ofendida. Vê que bem que ela escreve? Oh! é uma
criatura encantadora! Havia de gostar muito dela, se
tivesse ido. Mas não falemos mais nisso . . . Sej amos
discretas . . . como compete à nossa educação . Caluda!
Lembra-se destes versos . . . esqueci-me de que poema
se trata:
Pois quando está em causa uma senhora,
Tudo o mais deverá ficar de fora.
- Pois, minha querida, para o nosso caso, em lugar
de u m a sen hora , ponha . . . m a s silênci o ! A bom
entendedor ... Estou muito eloquente hoje, não acha?
M a s o principal é que fique de b e m com Mrs .
Smallridge . . . A minha carta, como vê, apaziguou-a.
E como Ema tivesse voltado levemente a cabeça
para olhar para a malha de Mrs . Bates , Mrs . Elton
acrescentou, num murmúrio:
- Como vê, não mencionei nomes. É que eu sou
cautelosa como um primeiro ministro. Fiz tudo como
devia.
Ema não duvidou. O facto era por de mais palpável
e repetia-se em todas as ocasiões possíveis .
Acabavam todas d e trocar algumas palavras acerca
do tempo e de Mrs . Weston, quando Ema se viu de
súbito interpelada da seguinte forma:
- Não acha, Miss Woodhouse, que a nossa graciosa
amiguinha está esplêndida? Não é de opinião que a
sua cura dá honra a Perry?
E olhando significativamente Jane , de rev é s ;
continuou:

4 70
EMA

- Palavra que Perry pô-la boa num prazo espan­


tosamente curto ! Oh! se a tivesse visto como eu vi,
quando ela esteve mal . . .
E num momento e m que Mrs . Bates dizia qualquer
coisa a Ema, acrescentou em voz baixa para Jane:
- É claro que não falo da ajuda que Perry teve,
por parte de um certo jovem médico de Windsor . . . Não;
Perry que fique com todas as honras .
Pouco depois recomeçava:
- Quase não tive o prazer de tornar a vê-la depois
do passeio a Box Hill, Miss Woodhouse . . . Foi um
passeio muito agradável ! No entanto, creio que lhe
faltou qualquer coisa. Os ânimos não pareciam . . . isto
é, parecia haver uma pequena nuvem a empanar o
espírito de algumas pessoas . Pelo menos, julguei ver
isso; mas é possível que estivesse enganada. Contudo,
acho que o êxito foi suficiente para tentarmos novo
passeio. Que dizem a reunirmo-nos mais uma vez
numa excursão a Box Hill, enquanto o bom tempo
dura? Convinha que fossemos os mesmos , não é
verdade? Os mesmos, sem uma única excepção .
Miss Bates chegou daí a pouco, e Ema não pôde
deixar de sorrir ante o embaraço da solteirona ao
cumprimentá-la, embaraço resultante, no seu enten­
der, da dúvida em que estava do que devia dizer e da
ansiedade que tinha em dizer tudo ao mesmo tempo.
- Muito obrigada,, querida Miss Woodhouse, pela
sua amabilidade . . . E impossível dizer . . . Sim, real­
mente, compreendo bem . . . as intenções da querida
Jane . . . isto é, eu não sei . . . Mas ela está completamente
restabelecida . . . E como está Mr. Woodhouse? Folgo
muito . . . Não está mais na minha mão . . . Que abençoado
grupinho que aqui se reuniu, hem ! . . . Sim, isso é
verdade . . . E um rapaz encantador! Quero dizer . . . é
tão insinuante ! . . . Refiro-me a Mr. Perry . . . Foi tão
atencioso com Jane ! . . .
E depois, ante a invulgar e grata satisfação que ela
manifestou a Mrs . E lton pela sua presença ali ,
conj ecturou Ema que tivesse havido contra Jane, por

4 71
JANE A USTEN

parte da gente do presbitério, um certo ressentimento


que era agora generosamente esquecido.
De facto, após algumas palavras murmuradas em
segredo, que confirmavam a conjectura, Mrs . Elton,
elevando a voz, disse:
- É verdade, minha boa amiga, aqui me tem; e já
cá estou há tanto tempo que noutro lado qualquer
precisaria de pedir desculpa; mas a verdade é que
estou à espera do meu senhor e amo . Prometeu vir
aqui ter comigo, para vos apresentar os seus respeitos.
- O q�ê ! Vamos ter o prazer de uma visita de Mr.
Elton? . . . E realmente uma honra . . . Como sei que os
homens não gostam de fazer visitas de manhã e Mr.
Elton tem o tempo todo tomado . . .
- Isso é verdade, Miss Bates; está sempre ocupado
de manhã à noite. Estão constantemente a procurá-lo,
para isto ou para aquilo. Ou é o juiz de paz, ou o curador
dos pobres, ou o tesoureiro da igrej a . . . estão sempre a
consultá-lo . Parece que não sabem fazer as coisas sem
ele. «Pois, Mr. Elton, - digo-lhe eu muitas vezes -
antes o senhor do que eu. Não sei o que seria dos meus
carvões e do meu piano, se tivesse metade dos seus
afazeres». E mesmo assim, esqueço-me imperdoa­
velmente deles . Creio que nestes quinze dias não
toquei uma nota . . . Bem: apesar de tudo, Mr. Elton
vem aí, e podem estar certas de que é só para as
cumprimentar.
E, levando a mão à cara, como que pretendendo
não ser ouvida de Ema, acrescentou:
- É uma visita de parabéns, sabe? . . . É absoluta­
mente indispensável .
Valia a pena ver a expressão feliz de Miss Bates.
- Ele prometeu vir, assim que acabasse de falar
com Knightley; fecharam-se ambos em conferência.
Mr. Elton é o braço direito de Knightley.
Ema, que por coisa alguma deste mundo se teria
sorrido, apenas disse:
- Mr. Elton foi a pé até Donwell? . . . Com este calor,
é uma estafa . . .
- Oh! não; a reunião é n a Coroa ; é uma reunião

4 72
EMA

periódica, a que também assistem Weston e Cole. Mas ,


como é natural, só falava daqueles que a ela presidem.
Julgo que Mr. Elton e Knightley é que orientam as
coisas a seu modo.
- Não se enganou na data? - disse Ema. - Tinha
quase a certeza de que a reunião na Coroa era só
amanhã. Mr. Knightley esteve ontem em Hartfield e
falou dela para sábado . . .
- Oh! não, é com certeza hoje - foi a resposta
secamente dada, o que denotava a impossibilidade de
qualquer confusão da parte de Mrs . Elton.
- Chego a convencer-me - continuou ela - de
que esta é a paróquia mais trabalhosa que até hoje
tem havido. Nunca vi destas complicações, em Maple
Grove . . .
- É que a sua paróquia era pequena -disse Jane.
- Palavra que não sei, minha querida; nunca ouvi
falar em tais assuntos . . .
- Mas, uma prova é a reduzida frequência da
escola, de que a senhora me tem falado como estando
sob o patrocínio de sua irmã e de Mrs . Bragge; uma
única escola, e apenas com vinte e cinco crianças . . .
- Que inteligente rapariga ! Isso é verdade . . . Que
cabeça a sua ! . . . Olhe, Jane: não acha que daríamos
um magnífico exemplar, se nos pudéssemos reunir
numa só? Da minha vivacidade e da sua inteligência
havia de sair a perfeição . Não quero com isto dizer
que não haj a pessoas que ajulguem tão perfeita . . . Mas ,
caluda ! . . . nem mais uma palavra, se faz favor.
A recomendação era desnecessária; Jane, se queria
falar, não era com Mrs . Elton, mas sim com Miss
Woodhouse, como esta claramente via. O desejo de a
distinguir, tanto quanto a delicadeza o permitia, era
evidente, se bem que muitas vezes não pudesse ir além
de um simples olhar.
Mr. Elton fez a sua aparição, e a esposa acolheu-o
com a sua costumada vivacidade .
- Muito bonito, sim, senhor! Mandar-me para aqui,
para estar a incomodar as minhas amigas, e o senhor
sem se decidir a vir . . . Mas já sabe a criatura submissa

4 73
JANE A USTEN

com quem trata . . . s abia que eu não arredaria pé


enquanto o meu senhor e amo não aparecesse . . . Há
uma hora que estou dando a estas senhoras um
exemplo da verdadeira obediência conjugal . . . e quem
sabe se não será preciso dentro de pouco tempo ! . . .
Mr. Elton estava tão suado e cansado que todo este
espírito era em pura perda. Tinha de apresentar os
seus respeitos às outras senhoras ; mas o seu primeiro
obj ectivo foi queixar-se do calor e da caminhada inútil
que tinha dado.
- Quando cheguei a Donwell, - disse ele - não
encontrei Knightley. Muito estranho ! verdadeira­
mente inconcebível ! Depois do bilhete que lhe mandei
esta manhã e da resposta que ele me deu de que
estaria, com certeza, em casa até à uma hora . . .
- Donwell ! . . . - exclamou a esposa - Meu caro
Mr. Elton, o senhor não esteve em Donwell ! . . . Deve
ser a Coroa . Então não veio da reunião na Coroa ?
- Não, não, isso é amanhã; eu é que precisava
muito de falar hoj e com Knightley a esse respeito. Está
uma manhã abrasadora! . . . Fui por atalhos , acres­
centou, num tom de voz pouco correcto - de maneira
que ainda foi pior a estafa. E depois não o encontrar
em casa! Afirmo-lhe que não estou nada satisfeito. E
nem duas linhas deixou a desculpar-se! A gove,rnanta
declarou não lhe constar que me esperassem. E muito
extraordinário! . . . E ninguém sabia para onde ele tinha
ido. Talvez para Hartfield, talvez para Abbey Mill, ou
para a mata . . . Miss Woodhouse, isto não é próprio do
nosso amigo Knightley. Pode explicar-me uma coisa
destas?
Ema, divertida, concordava que realmente era um
caso extraordinário e que não encontrava palavras com
que o defendesse.
- Não posso compreender - disse Mrs . Elton,
sentindo a ofensa, como era dever de uma boa esposa
- não posso compreender como ele procedeu dessa
forma consigo ! A última pessoa de quem seria de
esperar tal esquecimento ! Meu caro Mr. Elton, estou
convencida de que deixou qualquer bilhete para si.

4 74
EMA

Knightley não seria distraído a tal ponto; natural­


mente foram os criados que se esqueceram. Pode ter
a certeza de que não foi outra coisa; e com os criados
de Donwell é muito natural que isso suceda, porque
tenho notado que todos eles são estúpidos e des­
leixados. Eu por nada deste mundo queria o Harry a
servir à nossa mesa. E quanto a Mrs . Hodges, Wright
tem-na em muito pouca conta. Prometeu a Wright uma
receita e nunca mais lha mandou.
- Vi William Larkins - tornou Mr. Elton quando
já ia perto de casa, e ele disse-me que não encontraria
o seu amo em casa, mas eu não o acreditei . William
parecia mal-humorado. Não sabia o que sucedia de
há um certo tempo para cá ao patrão, dizia ele , que
mal conseguia arrancar-lhe palavra. Eu não tenho
nada com as queixas de William; só o que sei é que me
era imprescindível ver Knightley hoj e . Por isso é
bastante aborrecido ter apanhado uma estafa para
nada!
Ema achou que o melhor que tinha a fazer era voltar
para casa quanto antes. Era muito provável que a essa
hora estivessem lá à sua espera; além disso, escusava
de agravar as culpas de Mr. Knightley para com Mr.
Elton, senão para com William Larkins .
Ficou satisfeita quando, ao despedir-se, viu Miss
F airfax disposta a acompanhá-la à escada; isto
proporcionou-lhe uma oportunidade, que se apressou
a aproveitar, dizendo:
- Talvez fosse bom eu não poder falar à vontade
consigo. Se estivesse acompanhada doutra gente , era
possível que eu me tentasse a tocar em determinado
assunto, a fazer-lhe pergunta s , a fal ar-lhe mais
abertamente do que mandaria a boa educação . Estou
convencida de que acabaria por me tornar imper­
tinente.
- Oh! - exclamou Jane, com um rubor e um ar de
hesitação que, n o entender de E m a , lhe fi c ava
infinitamente melhor do que toda a fria serenidade
que lhe era habitual - não havia esse perigo. Perigo
devia haver de que eu a aborrecesse. Não podia dar-me
mais gosto do que exprimindo um interesse . . . A

4 75
JANE A USTEN

verdade, Miss Woodhouse, - acrescentou, com mais


calma - é que , cônscia como sou do meu mau
procedimento , do meu p é s s im o procediment o , é
particularmente consolador para mim s aber que
aquelas pessoas amiga s , cuj a boa opinião a meu
respeito mais me importa garantir, não estão enfa­
dadas a ponto de . . . Não tenho tempo nem para metade
do que quereria dizer. Estou ansiosa por me desculpar,
por me justificar de qualquer modo . Acho que é a
minha obrigação . Mas , infelizmente . . . Em resumo, se
Miss Woodhouse for assaz indulgente para perdoar
ao meu amigo . . .
- Oh ! isso é escrúpulo excessivo, creia que é de
mais - exclamou Ema, vivamente, pegando-lhe na
mão. - Não tem nada de que me pedir desculpas; e
aqueles a quem porventura suponha que as deve, estão
tão satj.sfeitos, tão contentes até . . .
- E muito bondosa, mas e u sei como procedi
consigo . . . Um tal desdém, uma tal frieza! . .. Eu tinha
sempre um papel a desempenhar. Era uma vida de
fingimento! Reconheço que devo tê-la melindrado.
- Não diga mais n a d a , por favo r . Acho que
desculpas devia eu pedi-las . Perdoemo-nos uma à
outra. Ponhamos o assunto de parte; não percamos
tempo com ele. Tem recebido boas notícias de Windsor?
- Muito boas .
- E , naturalmente, a primeira a receber agora é a
de que vamos perdê-la . . . exactamente quando eu
começava a conhecê-la.
- Oh! por enquanto, não se pode pensar nisso. O
coronel e Mrs. Campbell ainda têm direitos sobre mim.
- Que nada se possa resolver por enquanto, está
bem,- replicou Ema, sorrindo - mas . . . desculpe . . .
pensar, devia pensar.
Jane retribuiu o sorriso e retorquiu:
- Tem toda a razão; j á se pensou nisso. E devo
confessar que ficou assente passarmos a viver em
Enscombe com Mr. Churchill; estou convencida de que
é o mais acertado. Ainda haverá três meses de luto,
pelo menos; mas assim que terminar, creio que nada
mais nos estorvará.

4 76
EMA

- Obrigada, obrigada! É exactamente o que eu


pretendia saber. Ah ! se soubesse como eu gosto das
coisas resolvidas às claras! Adeus, adeus !

CAPÍTULO Lili

Foi uma alegria para os amigos de Mrs . Weston


sabê-la restabelecida; e se em Ema essa alegria podia
ser maior era por sabê-la mãe de uma menina. Tinha
sido s empre seu desej o que houvesse uma Miss
Weston. Não diria que tivesse em vista para a garota
um futuro casamento com qualquer dos filhos de
Isabella; mas estava convencida de que, tanto ao pai
como à mãe, era uma filha o que mais lhes convinha.
Seria de grande conforto para Mr. Weston, à medida
que fosse envelhecendo - e ainda que Mr. Weston
envelhecesse dez anos por e s s e motivo - ter a
alegrar-lhe o lar os folguedos e as travessuras , os
caprichos e as fantasias de uma criança que vivesse
ali constantemente ; e quanto a Mrs . Weston . . .
ninguém duvidaria de que uma filha era tudo para
ela, e além disso, seria pena que uma pessoa que tão
bem sabia educar não fizesse mais uma vez uso dos
seus dotes.
- Ela tem a vantagem de haver praticado comigo,
- dizia Ema - como a baronesa d'Almane com a
condessa d'O stali s , em «Adelaide e Teodoro», de
Madame de Genlis; e agora teremos ocasião de ver a
sua pequena Adelaide educada com mais esmero.
- Quer dizer, - retorquiu Mr. Knightley -
condescenderá ainda mais com ela do que con­
descendeu consigo, e há-de julgar que não condescende
nada. A diferença será apenas essa.
- Pobre criança! - exclamou Ema. - De qualquer
modo, qual será o seu destino?
- Não pode ser muito mau; o destino de milhares.
Há-de ser impertinente na infância e ir-se-á corrigindo

477
JANE A USTEN

à medida que for crescendo . Mas eu não tenho razão


no meu azedume para com as crianças, minha querida
Ema. Eu, que devo toda a minha felicidade à Ema,
não passaria do pior dos ingratos, se fosse severo com
elas . . .
Ema sorriu e replicou:
- Mas eu tive o auxílio de toda a sua boa vontade
em contrariar a indulgência com que os outros me
tratavam. Duvido de que a minha razão, só por si,
fosse suficiente para me corrigir.
- Sim? Pois eu não tenho quaisquer dúvidas . A
nature z a dotou-a de entendimento ; Miss Taylor
insuflou-lhe os princípios . Tinha forçosamente de se
sair bem. A minha interferência fez-lhe provavelmente
tanto mal como bem . Era muito natural que dissesse
consigo: «Que direito tem ele para me repreender?» . E
eu receio bem que Ema achasse que eu o fazia de uma
forma assaz desagradável. Não creio que tenha feito
algum bem. O benefício foi todo meu, fazendo de si o
alvo da minha mais terna afeição. Não pensaria tanto
em si, se não a amasse loucamente, com defeitos e
tudo; e à força de imaginar tantas faltas, creio que j á
a amava, ainda a Ema tinha apenas treze anos .
- Estou convencida de que foi muito útil para mim
- exclamou Ema. - Muitas vezes experimentei a sua
benéfica influência . . . mais vezes do que eu então queria
confessar. Tenho a certeza de que me fez bem. E se a
pequenina Ana Weston está destinada a ser estragada
com mimos, será um dever de humanidade da sua
parte fazer tanto por ela como fez por mim, excepto
apaixonar-se pela menina quando ela tiver treze anos.
- Quantas vezes, em criança, a Ema me disse, com
um dos seus arzinhos impertinentes: «Mr. Knightley,
vou fazer isto e mais isto; o papá diz que posso» ; ou
então: «Tenho licença de Miss Taylor . . . »; qualquer
coisa que sabia que eu não aprovava. Em tais casos a
minha interferência provocava em si dois maus
sentimentos em vez de um só.
- Que amável eu era! . . . Não admira que tenha tão
gratas recordações das minhas palavras . . .

4 78
EMA

- «Mr. Knightley» . . . A Ema chamou-me sempre


«Mr. Knightley»; e com o hábito, j á não parece um
tratamento tão cerimonioso, embora na realidade o
sej a . Queria que me tratasse doutro modo, mas não
sei como.
- Lembro-me de uma vez lhe ter chamado «George»,
quando de um dos meus amáveis caprichos , há dez
anos , pouco mais ou menos .. Tratei-o assim, porque
j ulgava ofendê-lo; mas como vi que não se importou,
nunca mais voltei a tratá-lo desse modo.
- E não pode agora tratar-me por «George»?
- Impossível! Nunca poderei tratá-lo doutra forma
que não seja por «Mr. Knightley» . Nem mesmo prometo
imitar o tom elegante de Mrs . Elton, chamando-lhe
simplesmente Mr. K. Mas prometo, - acrescentou ela,
pouco depois, rindo e corando - prometo tratá-lo uma
vez pelo seu nome próprio. Não digo quando, mas deve
calcular onde . . .
N o edifício onde o s noivos s e unem para o s bons e
para os maus dias .
Ema arrependia-se bastante de não ter dado o
devido valor ao importante serviço que Mr. Knightley
lhe poderia ter prestado, se ela tivesse seguido os
conselhos que lhe teriam evitado a maior de todas as
suas femininas loucuras - a sua obstinada intimidade
com Harriet Smith; mas isto era um assunto delicado
em demasia. Não se atrevia a discuti-lo. Nas suas
conversas com Mr. Knightley, raramente se fazia
referência a Harriet. Por parte dele , devia-se isto
simplesmente ao facto de Ema não a lembrar; mas
Ema j ulgava dever atribuí-lo a um motivo de deli­
cadeza e à suspeita, ante certos indícios, de que a sua
amizade com Harriet estivesse em declínio. Ela sabia
muito bem que, se as circunstâncias em que se haviam
separado tivessem sido diferentes, elas se teriam por
certo correspondido mais e que as notícias que Ema
recebia de Harriet não se teriam reduzido, como
sucedera quase por completo, às que Isabella mandava
nas suas cartas . Mr. Knightley tinha-o, com certeza,

4 79
JANE A USTEN

notado . A mágoa de s e ver obrigada a u s ar de


dissimulação com ele estava muito abaixo daquela que
sentia por ter causado a infelicidade de Harriet.
Isabella mandava tão boas notícias da sua hóspede
quanto se poderia esperar; achara-a mal disposta
quando da sua chegada, o que se afigurava perfei­
tamente natural, visto que ia consultar um dentista;
mas, assim que a questão ficou resolvida, Isabella não
parecia achar Harriet diferente do que era quando a
conhecera. Não havia dúvida de que a irmã de Ema
era uma má observadora; contudo, se Harriet se não
mostrasse disposta a brincar com as crianças, isso não
lhe teria passado despercebido.
A tranquilidade e as esperanças de Ema eram tanto
mais satisfatórias quanto era certo Harriet demorar-se
em Londres mais tempo do que se pensara; os quinze
dias prolongar-se-iam até um mês , pelo menos. Mr. e
Mrs . John Knightley deviam vir em Agosto e ela tinha
sido convidada a ficar até eles a trazerem consigo.
- John nem sequer fala na sua amiga - disse Mr.
Knightley. - Aqui está a resposta dele; se quiser ler . . .
Era a resposta à carta e m que Mr. Knightley lhe
comunicava o seu futuro casamento. Ema, cheia de
curiosidade , pegou na carta, impaciente por saber o
que o cunhado diria a tal respeito, e pouco s e
importando que não falasse n a amiga.
- John tom a , como irm ã o , p arte n a minha
felicidade, - tornou Mr. Knightley - mas não é muito
amigo de dar parabéns; e apesar de nutrir por si a
mais fraternal amizade, foge tanto às flores de retórica
que qualquer outra mulher era capaz de o julgar frio
de mais nos seus louvores. Mas não tenho medo de
que leia o que ele escreve .
- Ele es creve como homem sensato que é -
retorquiu. Ema, assim que acabou de ler a carta. -
Aprecio a sua sinceridade . É evidente que considera
ser eu quem tira todas as vantagens do casamento,
mas não desespera de que, com o tempo, me torne
digna do seu afecto, como o senhor julga. Se ele se

480
EMA

tivesse exprimido de maneira diferente, não o teria


acreditado .
- Minha Ema, ele não quer dizer tal coisa. Ele
apenas quer dizer . . .
- Ele e e u muito pouco diferiríamos n a apreciação
das nossas respectivas pessoas - interrompeu ela,
com um sorriso grave - . . . muito menos talvez do que
ele j ulga, se discutís semos o assunto com toda a
franqueza.
- Ema, minha querida Ema . . .
- Oh! s e julga que seu irmão me não faz justiça, -
exclamou ela, em tom j ovial - espere só até meu pai
estar no segredo e verá então a sua opinião. Pode desde
já ter a certeza de que meu pai, longe de lhe fazer a
devida justiça, achará que o senhor é que colhe todas
as vantagens e que o mérito está todo do meu lado.
Não me admirarei se me tornar logo na «pobre Ema» .
A sua terna compaixão por aqueles que considera
dignos de melhor sorte, não se exprime doutra forma.
- Ah ! gostaria que seu pai se convencesse tão
facilmente - exclamou Mr. Knightley - como John
se há-de convencer de que, para sermos felizes , temos
todas as razões que nos pode conferir a igualdade de
carácter. Acho graça a uma passagem da carta de
John . . . não reparou? . . . onde ele diz que a minha
participação não o colheu de surpresa, visto que j á
esperava, mais dia menos dia, ouvir qualquer coisa
no género.
- Se me não engano, o seu irmão apenas se refere
ao facto de o senhor ter ideias de casar; não pensava
em mim. Acho que para isso estava ele desprevenido.
- Sim, sim . . . mas ao que eu acho graça é que ele
tenha adivinhado os meus pensamentos. Que indícios
foi ele buscar? Não me recordo de ter denotado, nem
nos modos nem nas palavras, que me preparasse para
casar agora ou em qualquer outra ocasião. Mas , pelo
que vejo, dei a perceber qualquer coisa; provavelmente,
notou algu-µia diferença em mim quando estive em
casa dele . E possível que não brincasse tanto com as
crianças como costumava. Agora me lembro de um

481
JANE A USTEN

dia, à tarde, os pobres pequenos me dizerem: « O tio


parece que está sempre cansado ! » .
Aproximava-se a ocasião e m que a notícia tinha de
ser divulgada; então se veria como a acolhiam . Assim
que Mrs . Weston se achou em estado de receber a visita
de Mr. Woodhouse, Ema, tendo em vista que podiam
ser utilizados em defesa da causa os seus benéficos
argumentos, resolveu anunciar o facto, primeiramente
em casa e depois em Randalls . Mas de que forma havia
de o revelar ao pai? Propusera-se fazê-lo a determinada
hora em que Mr. Knightley estivesse ausente , de
contrário, quando chegasse ao ponto crucial , fal­
tar-lhe-ia a coragem e ela teria de pôr o assunto de
parte; mas à hora que fixara para esse fim, apareceu
Mr. Knightley, que testemunhou o princípio da narra­
tiva. Ema, então, viu-se obrigada a falar. Afectou um
modo jovial, pois não queria, com ares constrangidos,
dar ao assunto um aspecto ainda mais desagradável
para o pai . Convinha não o revestir da aparência de
desgraça. Com toda a presença de espírito que pôde
arranj ar, começou, em primeiro lugar, por o predispor
para ouvir qualquer coisa de extraordinário; e depois,
em poucas palavras, disse que, se ele não negasse o
seu consentimento e a sua aprovação - o que, estava
convencida, seria concedido sem dificuldade alguma,
visto que se tratava da felicidade de todos - era
intenção sua e de Mr. Knightley casarem e, que, desta
forma, Hartfield acolheria permanentemente sob os
seus tetos aquela pessoa que seu pai mais amava no
mundo, depois das filhas e de Mrs . Weston.
Pobre homem ! A revelação , a princípio, produ­
ziu-lhe considerável abalo, e ele tentou sinceramente
dissuadir a filha do passo que ia dar. Lembrou-lhe,
mais de uma vez, que ela sempre havia dito que jamais
casaria e lhe assegurara que teria muito mais gosto
em ficar solteira; e falou-lhe da pobre Isabella e da
pobre Miss Taylor. Mas nada conseguiu. Ema sorriu,
rodeou-o de carícias e acabou por dizer que assim tinha
de ser e que ele não devia considerá-la nas mesmas

482
EMA

c o n d i ç õ e s de I s ab e l l a e de Mrs . Weston , cuj o s


casamentos, roubando-as a Hartfield, tinham d e facto
trazido tri s t e s m o d i fi c a ç õ e s ; e l a n ã o s airia de
H artfi e l d ; não iria introduzir n a vida do s o l ar
nenhuma alteração que não fosse para melhor e estava
convencida de que o pai ainda seria mais feliz por ter
Mr. Knightley sempre ao pé de si, uma vez que se
habituasse à ideia. Não era ele amicíssimo de Mr.
Knightley? Era impossível negá-l o . Não era Mr.
Knightley quem ele costumava consultar sempre a
respeito de negócios? Quem era a pessoa que ele
encontrava sempre disposta a escrever-lhe as cartas ,
sempre pronta a ajudá-lo em tudo, mostrando-se em
todas as ocasiões jovial, atenciosa, dedicada? E não
gostaria ele então de ter Mr. Knightley sempre em
casa? Sim, tudo isso era verdade . Nunca era demais o
tempo que Mr. Knightley ali permanecesse; era com
o máximo prazer que o pai de Ema o via todos os dias;
mas acaso não o via agora também todos os dias?
Porque não haviam de continuar a viver como tinham
vivido até então?
Mr. Woodhouse não se deixava convencer muito
facilmente; mas o pior estava feito; a ideia fora dada;
o tempo e a persistência fariam o resto . Aos argu­
mentos de Ema seguiram-se os de Mr. Knightley, cuj o
apaixonado elogio da amada deu ao caso até um
carácter mais aceitável; e não tardou que o pai de Ema
acabasse por se habituar a ouvir tanto um como o outro
falar a tal respeito .
De Isabella receberam eles todo o apoio que ela
lhes podia dar, numa carta em que lhes transmitia a
sua mais entusiástica aprovação; e quanto a Mrs .
Weston, manifestou-se esta, logo de início, disposta a
consi derar o proj ecto sob o mais auspicioso dos
aspectos - em primeiro lugar, pela perfeita harmonia
entre os interessados, em segundo, pelas vantagens
que o casamento lhes traria, cônscia como estava da
influência que ambas as circunstâncias exerceriam
no espírito de Mr. Woodhouse.

483
JANE A USTEN

Chegou-se finalmente a um acordo, como não podia


deixar de ser; Mr. Woodhouse, graças à insistência
com que aqueles por quem ele estava acostumado a
deixar-se orientar lhe afirmavam ser tudo para sua
felicidade, acabando ele próprio por se afazer à ideia,
deixou-se finalmente convencer de que não seria de
todo mau que, mais dia menos dia - daí a um ano ou
dois , talvez - o casamento se realizasse.
Mrs. Weston não desempenhava nenhum papel,
nem simulava sentimentos em coisa alguma do que
dizia acerca da questão . Jamais sentira tamanha
surpresa como quando Ema lhe revelou o segredo; mas,
vendo no facto apenas um acréscimo de felicidade, não
teve por isso escrúpulo algum em defender a causa
junto de Mr. Woodhouse. Tinha essa atenção com Mr.
Knightley, visto que o achava digno da sua querida
Ema; e aquela união era a todos os respeitos tão
própri a , tão vantaj o s a , tão irrepreensível , e, sob
determinado aspecto - aspecto da mais alta im­
portância - tão particularmente aconselhável, tão
singularmente afortunada, que chegava a parecer que
Ema não poderi a , sem inconveniente , ligar-se a
qualquer outro homem, e que ela (Mrs . Weston) tinha
sido a mais estulta das criaturas por não se ter
lembrado disso há mais tempo.
Entre os homens cuj a posição social lhes permitiria
aspirar à mão de Ema, quão poucos eram os que teriam
trocado o seu próprio lar por Hartfield! E quem senão
Mr. Knightley saberia tratar com Mr. Woodhouse, de
maneira a convencê-lo do casamento? Mrs . Weston e
o marido, quando dos seus planos de casamento entre
Frank e Ema, nunca deixaram de ter em conta as
dificuldades que haveria em predispor o ânimo de Mr.
Woodhouse. Foram sempre um permanente obstáculo
os direitos de Enscombe e de Hartfield, a que Mr.
Weston dava menos valor do que e l a , por i s s o
encerrava sempre a discussão d o assunto, dizendo:
«Esse problema acabará por se resolver por si; eles
dois lá hão-de encontrar qualquer solução».

484
EMA

Mas agora não havia motivos para mais preo­


cupações; tudo se resolvera a bem e sem dissimulações;
Nenhum sacrifício digno de nota houvera de qualquer
dos lados. Era uma união que continha em si a mais
brilhante promessa de felicidade, sem que houvesse a
opor-se-lhe o menor estorvo .
Mrs . Weston, ao entregar-se a estas reflexões, com
a filhinha nos braços, era uma das mulheres mais
felizes do mundo. Se havia coisa que podia tornar mais
intensa a sua alegria, era ver que o bebé não tardaria
a estar crescido de mais para a sua primeira série de
toucas .
A notícia foi uma autêntica surpresa por onde quer
que se espalhou e Mr. Weston compartilhou também
dela durante cinco minutos; mas esses cinco minutos
foram suficientes para o seu espírito penetrante se
familiarizar com a ideia. Viu logo as vantagens do
casamento e, por isso, sentiu o mesmo regozijo da
esposa; não tardou que ficasse reduzido a nada o
espanto que a notícia lhe causara, e, ao fim de uma
hora, Mr. Weston não estava longe de acreditar que
sempre tinha previsto aquela solução .
- Suponho que é segredo . . . - disse ele . - Estas
questões são sempre segredo, enquanto se não vê que
toda a gente as conhece . Digam-me só quando poderei
falar. Gostaria de saber se Jane não terá qualquer
suspeita . . .
No dia seguinte, de manhã, foi a Highbury, onde
teve ocasião de s atisfazer os seus desej o s nesse
capítulo. Contou a novidade a Miss Fairfax. Não era
ela como se fosse sua filha, a sua filha mais velha?
Tinha de lhe contar o que havia; e como Miss Bates
estava presente, a novidade não tardou, naturalmente,
a ser conhecida de Mrs . Cole, Mrs . Perry e Mrs . Elton.
Não era nada para que os Westons não estivessem
preparados; já tinham feito os seus cálculos sobre o
tempo que a notícia levaria a e s p alha r -se por
Highbury, depois de ser conhecida em Randalls , e
previam sem grande sagacidade que, nessa noite ,
havia de ser o caso sensacional de muitas reuniões
familiares .

485
JANE A USTEN

Era um casamento que merecia a simpatia geral .


Uns consideravam Mr. Knightley o mais favorecido,
outros achavam que era Ema quem estava nesse caso.
Havia pessoas que eram do parecer que a família de
Hartfield devia transferir-se para Donwell e deixar o
solar aos John Knightleys; outras argumentavam que
podia haver desentendimentos entre a criadagem . De
uma forma geral, porém, nenhuma obj ecção séria se
levantou, a não ser numa única casa - no presbitério.
Ali, nenhuma satisfação veio suavizar a surpresa.
Mr. Elton pouco se importou com o caso; mas j á o
mesmo não sucedeu com a esposa. Ele limitou-se a
dizer que «era de esperar que o orgulho da pequena
ficasse agora satisfeito, visto que ela sempre tivera a
intenção de apanhar Knightley, desse por onde desse»;
e, referindo-se à circunstância de Mr. Knightley passar
a habitar em Hartfield, teve a ousadia de exclamar:
- Antes ele do que eu!
Mas Mrs . Elton é que ficou realmente muito
contrariada. Pobre Knightley! Pobre rapaz ! . .. Mau
negócio o dele . . . Ela é que colhia todo o benefício, pois,
embora ele fosse muito excêntrico, a verdade é que
possuía excelentes qualidades . Como é que ele se tinha
deixado a s s i m apanh ar? . . . N ã o acreditava que
Knightley estivesse realmente apaixonado ... nem coisa
parecida. Pobre Knightley ! . .. Assim terminavam todas
as relações que tão agradavelmente mantinham com
ele . . . Que alegria a sua todas as vezes que o con­
vidavam para j antar! Tudo isso ia acabar . . . Pobre
rapaz! Nunca mais haveria merendas em Donwell,
preparadas em honra del a . Ai ! não tardaria que
houvesse uma Mrs . Knightley a deitar um balde de
água fria em tudo isso . . . Extremamente desagra­
dável ! . . . Mas não estava de modo algum arrependida
de ter dito mal da governanta no outro dia. Péssimo
sistema, esse de ficarem a viver todos j untos ! Não
podia dar bom resultado . Conhecia uma família de
Maple Grove que o tinha experimentado e que se vira
obrigada a separar-se antes de terminado o primeiro
semestre .

486
EMA

CAPÍTULO LIV

Passou-se tempo . Alguns dias mais e chegaria a


família de Londres. Era uma mudança assustadora; e
estava Ema uma manhã pensando no caso, que lhe
devia trazer motivos de inquietação e pesar, quando
chegou Mr. Knightley, que veio distraí-la das suas
angustiosas reflexões. Depois de trocadas algumas
amabilidades, Mr. Knightley calou-se; mas , pouco
depois, com intenção mais grave, tornou:
- Tenho uma notícia a dar-lhe, Ema.
- Boa ou má? - perguntou ela, vivamente, ao
mesmo tempo que o fixava, atenta.
- Não sei como lhe deva chamar.
- Oh ! com certeza é boa. Vej o-o na sua cara. O
senhor está fazendo esforços para não se rir.
- Tenho receio, - disse ele, voltando a pôr-se sério
- tenho até muito receio de que a minha querida Ema
não tenha muita vontade de rir quando souber do que
se trata.
- Sim? . . . Mas porquê? . . . Não creio que haj a alguma
coisa que lhe agrade ou o divirta, que não me agrade
ou divirta também.
- Uma coisa há, - replicou ele - e espero que
sej a a única em que nós não sentimos de igual forma.
Calou-se um momento e, sorrindo de novo, não
tirava os olhos de Ema.
- Não calcula o que sej a? . . . Não faz uma ideia?
Harriet Smith . . .
Ema corou ao ouvir este nome e temeu qualquer
coisa, embora não soubesse o quê.
- Não soube nada dela hoje? - disse ele . - Com
certeza j á sabe do que se trata . . .
- Não, não sei nada; diga-me o que é . . .
- Vej o que e s t á preparada para o pior . . . e
realmente não é nada bom . Harriet Smith vai casar
com Roberto Martin.
Ema deu um salto, o que demonstrava não estar
bem preparada como julgavam; e se bem que conser-

487
JANE A USTEN

vasse os lábios cerrados, o seu olhar atónito parecia


dizer: �É impossível ! » .
- E verdade ! - prosseguiu M r . Knightley; -
soube-o pelo próprio Roberto Martin. Falei com ele
ainda não há meia hora.
Ema continuava a olhá-lo com o espanto pintado
no rosto.
- Vej o que a novidade lhe agradou tão pouco como
eu temia, Ema. Gostava que tivéssemos as mesmas
opiniões ; mas com o tempo lá chegaremos . O tampo,
pode estar certa, acabará por fazer com que um de
nós pense de maneira diferente do que pensa hoje.
Mas , entretanto , não há necessidade de falarmos
muito no assunto .
- Está enganado a meu respeito, completamente
enganado - retorquiu Ema, fazendo um esforço sobre
si própria. - Essa circunstância, hoje, não me causa
pesar algum; simplesmente, custa-me a acreditar nela.
Parece-me impossível. Com certeza não quer dizer que
Harriet Smith aceitou Roberto Martin . . . Não quer
dizer que ele se lhe tenha novamente proposto . . . apesar
de tudo! Apenas manifestou essa intenção , não é
verdade?
- Não; afirmo-lhe que já o fez, - respondeu Mr.
Knightley, sorrindo, mas sem hesitar - e foi aceite.
- Meu Deus ! - exclamou ela. - Ainda bem !
Depois, enquanto recorria ao cesto da costura, como
pretexto para baixar a cabeça, ocultando assim o
estranho sentimento de prazer e de triunfo que ela
sabia estar reflectindo-se-lhe no rosto, acrescentou:
- Bem, conte-me a história; explique-me como as
coisas se passaram. Como, onde e quando . . . Ponha-me
ao facto de tudo . Nunca houve coisa que mais me
surpreendesse . . . mas não me desgosta de maneira
algum,a, asseguro-lhe. Como . . . como foi isso possível?
- E muito simples . Roberto Martin foi há três dias
a Londres tratar de negócios , e eu, aproveitando a
oportunidade, encarreguei-o de levar a John uns
documentos que precisava de lhe fazer chegar às mãos .
Martin dirigiu- s e , pois , a casa de John, a quem

488
EMA

entregou os papéis , e foi por ele convidado a ir com a


família nessa mesma noite ao Astley's . Iriam John,
Isabella, Henry, John . . . e Miss Smith. O meu amigo
Roberto não pôde resistir. De caminho, passaram pelo
hotel onde ele estava hospedado e levaram-no; iam
todos extremamente animados e o meu irmão con­
vidou-o a j antar com ele no dia seguinte, o que Roberto
aceitou. Foi no decurso desta visita, creio eu, que
Martin encontrou oportunidade de falar com Harriet;
e certamente não foi em vão. O acolhimento favorável
que dela recebeu fê-lo mesmo tão feliz como merecia.
Regressou na diligência de ontem, e esta manhã, logo
depois do almoço, veio falar comigo, p·a ra, em primeiro
lugar, me dar c o n t a da incumbência de que o
encarregara, e depois, relatar-me o que se passara
com ele. Aqui tem tudo quanto lhe posso dizer. A sua
amiga Harriet contar-lhe-á uma história muito mais
comprida quando a vir. Repetir-lhe-á o facto com os
pormenores que só a linguagem de uma mulher pode
tornar interessantes. Nós, os homens, costumamos dar
apenas as ideias gerais. No entanto, devo dizer que
Roberto Martin me pareceu não caber em si de
entusiasmo; e o que é facto é que contou, sem que isso
viesse muito a propósito, que, ao deixarem o camarote
do Astley's, meu irmão tomou conta de Mrs . John
Knightley e do pequeno John, e ele acompanhou Miss
Smith e Henry, e que a certa altura se viram tão
apertados no meio da multidão que Miss Smith se
sentiu um pouco incomodada.
Mr. Knightley calou-se. Ema não se atrevia a dizer
palavra. Se falasse, tinha a certeza, não poderia deixar
de denunciar uma alegria fora das marcas . Tinha de
esperar um momento para que ele a não julgasse louca.
Mas o seu silêncio inquietou-o; e depois de a ter fixado
por alguns instantes, Mr. Knightley tornou:
- Ema, meu amor, disse-me que esta notícia em
nada a desgostava, mas receio bem que lhe tenha
causado mais pesar do que esperava. A posição dele é
desvantaj osa . . . mas lembre-se de como a sua amiga

489
JANE A USTEN

está satisfeita com ela; e eu estou convencido de que


a Ema fará dele um juízo cada vez melhor, à medida
que o for conhecendo. O seu bom senso e os seus bons
princípios hão-de agradar-lhe . Como carácter, não se
podia desej ar melhor para a sua amiga. Quanto à sua
posição social, de boa vontade eu a modificaria, se
pudesse; e isto quer dizer muito, Ema. Costuma rir-se
de mim por causa de William, Larkins; pois fique certa
de que os meus escrúpulos em me privar de Roberto
Martin seriam os mesmos.
Queria Mr. Knightley que ela olhasse para ele e se
sorrisse; e se bem que com sorriso não muito aberto,
Ema respondeu alegremente:
- Não preci s a de s e dar ao trabalho de me
congraçar com ess� casamento . Acho que Harriet faz
muitíssimo bem. E possível que a sua origem sej a
ainda pior que a dele. Em respeitabilidade d e carácter,
estou convencida de que ela não é superior a Roberto
Martin . O meu silêncio era apenas causado pela
surpresa, pela excessiva surpresa. Não pode calcular
como isso me tomou de improviso! Como el! estava
desprevenida para ouvir uma coisa dessas ! E que eu
tinha razões para supor que Harriet, de algum tempo
para cá, e stava menos predisposta que nunca a
aceitá-lo.
- Devia conhecer melhor a sua amiga - replicou
Mr. Knightley; - quanto a mim, ela é uma rapariga
simples e terna de mais para não aceitar qualquer
rapaz que lhe diga que a ama.
Ema, sem poder conter o riso, retorquiu:
- Palavra que começo a crer que a conhece tão
bem como eu! Mas, Mr. Knightley, tem a certeza
absoluta de que ela o aceitou realmente com gosto?
Com o tempo, não digo que não . . . mas já . . . Não o teria
compreendido mal? Como estiveram a falar de várias
coisas . . . negócios, exposições de gado, novas semen-
teiras . . . não podia, no meio da confusão de tantos
assuntos, tê-lo, entendido mal? Talvez não fosse à mão
de Harriet que ele se referisse com tanta certeza . . .
mas às dimensões de qualquer touro de raça.

490
EMA

Ao espírito de E m a ofereci a- se de forma tão


evidente o contraste entre as feições e o todo de Mr.
Knightley e os de Roberto Martin, era tão viva a
recordação de tudo o que ultimamente se passara com
Harriet, tão nítido o eco daquelas palavras tão
enfaticamente pronunciadas: «Agora há quem me
preocupe mais que Mr. Martin» , que, realmente ,
esperava que a informação fosse, de certo modo ,
prematura. Não podia ser doutra forma.
- Como ousa dizer tal coisa? -exclamou Mr.
Knightley. - Atreve-se a supor-me tão obtuso que
n ã o perceba o que u m a p e s s o a me d i z ? . . . Q u e
tratamento merece?
- Oh ! só posso merecer o melhor de todos os
tratamentos, visto que nunca suportei outro; portanto,
é preciso que me dê uma resposta clara, sem rodeios .
Tem a certeza de que conhece bem os termos em que
agora estão Mr. Martin e Harriet?
- Tenho a absoluta certe z a - replicou M r .
Knightley, distintamente - d e ele m e ter dito que ela
o aceitava; e não houve nada de obscuro , nada de
duvidoso, nas palavras que empregou. De resto, posso
dar-lhe uma prova disso. Ele pediu a minha opinião
sobre o que devia agora fazer. Além de Mrs . Goddard,
não conhecia ninguém a quem pudesse dirigir-se para
se informar acerca da família da rapariga. Que tinha
eu de melhor para lhe indicar senão que fosse ter com
Mrs . Goddard? . . . Declarei-lhe que mais nada podia
fazer, e ele, então, disse-me que ia ver se falava com
ela ainda hoje.
- Estou plenamente satisfeita - replicou Ema,
com o mais luminoso dos sorrisos ; - só me resta
desej ar-lhes do coração todas as felicidades .
- A E m a mudou radicalmente desde a última vez
que conversámos sobre este assunto .
- Creio que sim . . . Nesse tempo estava louca.
- E eu também mudei ; agora sinto-me muito
disposto a reconhecer todas as qualidades de Harriet.
Tive algumas contrariedades por causa da intimidade
que tanto a Ema como Roberto Martin mantinham

491
JANE A USTEN

com ela. Diga-se de passagem que sempre tive razões


para julgar Martin tão apaixonado então como em
qualquer outra altura. Tenho tido muitas ocasiões de
conversar c o m H arri e t , como deve ter notado .
Realmente tenho-me lembrado algumas vezes de que
a Ema desconfiasse que eu estava advogando a causa
do pobre Martin, coisa que nunca aconteceu; a verdade
é que, pelo que tenho observado, estou persuadido de
que Harriet é uma rapariga simples e bondosa, dotada
de bom senso e de excelentes princípios, e que põe a
sua felicidade nos afectos e nas vantagens da vida
doméstica. Não tenho dúvidas de que em grande parte
o deve a si .
- A mim ! . . . - excl amou E m a . - O h ! pobre
Harriet !
Reprimiu-se, contudo, e, docemente, entregou-se a
um sentimento de vaidade um bocadinho mais forte
do que era justificável .
Daí a pouco, a entrada de Mr. Woodhouse veio pôr
fim ao diálogo. Ema não o lamentou. Precisava de estar
só. Encontrava-se num estado de exaltação que a
impos sibilitava de manter a serenidade . Por sua
vontade ter-se-ia posto a dançar, a cantar, a gritar; e
enquanto não fizesse algum exercício, enquanto não
falasse sozinha, risse e meditasse, não estaria capaz
de fazer nada de razoável .
O pai vinha anunciar que James tinha ido engatar
os cavalos, para o passeio que davam agora diaria­
mente a Randall s ; E m a aproveitou , p oi s , e s s a
circunstância para sair d a sala.
Pode imaginar-se a alegria, a congratulação , o
delicioso prazer que ela sentia. Desfeita assim a única
nuvem que ensombrava o futuro de Harriet, Ema
corria realmente o risco de enlouquecer de felicidade.
Que mais desej ava ela? Nada, senão tornar-se cada
vez mais digna do noivo, cuj a inteligência, cuj o senso
tinham sempre sido muito superiores aos seus . Nada,
senão que as loucuras passadas lhe servissem de lição
de humildade e de circunspecção .
Por muito sincera que fosse a sua gratidão ao céu,
por muito solenes que fossem as suas disposições, Ema

492
EMA

não podia deixar de se rir ante semelhante desfecho !


Quem teria previsto que a triste situação de cinco
semanas atrás descambaria naquilo? Aquele coração
de Harriet! . . .
Agora até seria com prazer que esperaria pelo seu
regresso. Em tudo encontraria prazer. Teria até muita
satisfação em conhecer Roberto Martin.
À frente de todos os mais sagrados motivos de júbilo
figurava a reflexão de que , dentro em pouco tempo, j á
não haveria necessidade d e ocultar o que quer que
fosse a Mr. Knightley. O disfarce, a dissimulação, o
mistério, tão odiosos a Ema, cedo acabariam. Podia
agora antever- s e us ando para com ele daquela
absoluta franqueza que ela olhava como um dever e
que era própria da sua índole.
Foi no mais alegre e ditoso estado de espírito que
saiu com o pai; nem sempre o escutava, mas acatava
tudo quanto ele dizia, e, ou por palavras ou por gestos,
concordava com Mr. Woodhouse quando este afirmava
que era seu dever ir a Randalls todos os dias , senão a
pobre Mrs . Weston ficaria muito magoada.
Chegaram. Mrs . Weston estava sozinha na sala;
mal se haviam informado da saúde do bebé, mal a
dona da casa tinha apresentado os agradecimentos
que ele tanto apreciava, quando viram de relance,
através das gelosias, passar dois vultos .
- São Frank e Miss Fairfax - disse Mrs . Weston.
- Ia agora mesmo dizer-lhes a agradável surpresa
que tivemos esta manhã ao vê-lo chegar. Fica cá até
amanhã, e Miss Fairfax acedeu em passar o dia
connosco. Creio que vêm aí.
Meio minuto depois entravam na sala. Ema estava
bastante contente por vê-lo; notava-se, porém, de
ambos os lados um certo embaraço, causado por uma
série de perturbadoras recordações . Cumprimenta­
ram-se, sorridentes , mas com um enleio que poucas
palavras permiti a ; e, depois de todos se terem
novamente sentado, fez-se sentir durante algum
tempo um tal constrangimento entre os circunstantes

493
JANE A USTEN

que Ema chegou a duvidar de que a satisfação daquele


seu desejo, há tanto tempo alimentado, de vez Frank
Churchill uma vez mais e na companhia de Jane ,
oferecesse o seu correspondente de prazer. Contudo,
logo que Mr. Weston se lhes reuniu e se foi buscar o
bebé, não mais se fez sentir a falta de assunto nem de
animação, nem mesmo de coragem e oportunidade, a
Frank Churchill, para se aproximar dela e dizer:
- Tenho de lhe agradecer, Miss Woodhouse, as
bondosas e indulgentes palavras que me endereçou
em uma das cartas de Mrs . Weston . Espero que o
tempo a não tenha tornado menos disposta a per­
doar-me . Não se retrata do que então disse, pois não?
- Não - exclamou Ema, satisfeitíssima - de
maneira alguma. Tenho o maior prazer em o ver e em
lhe apertar a mão . . . e felicitá-lo pessoalmente .
Frank agradeceu-lhe calorosamente e, durante
algum tempo, falou, comovido, da ventura com que a
Providência o contemplara.
- Não a acha com magnífico aspecto? - disse ele,
olhando para Jane. - Está melhor do que nunca. Vej a
como meu pai e Mrs . Weston gostam dela.
Não tardou, porém, a retomar os seus modos joviais,
e foi com o riso no olhar que ele, depois de se referir ao
anunciado regresso dos Campbells, citou o nome de
Dixon. Ema corou e proibiu-o de pronunciar tal nome
na sua presença.
- Não posso pensar nesse nome - exclamou -
sem a maior vergonha.
- A vergonha - retorquiu ele - é toda minha . . .
o u devia ser. Mas é possível que não suspeitasse de
nada? . . . ultimamente, é claro. Antes, sei eu que não
tinha qualquer desconfiança.
- Asseguro-lhe que nunca tive a menor suspeita.
- É espantoso ! Estive uma vez quase a dizer-lho . . .
e oxalá que lho tivesse dito; teria sido melhor. D e todos
os erros que eu tenho cometido, esse foi o pior, e
nenhum benefício me trouxe . Teria valido muito mais
que eu tivesse violado o segredo, contando-lhe tudo .

494
EMA

- Agora não vale a pena arrepender-se - disse Ema.


- Tenho algumas esperanças - disse Frank - de
que meu tio se resolva a vir fazer uma visita a
Randalls; ele quer ser apresentado a Miss Fairfax.
Quando os Campbells regressarem, iremos ter com
eles a Londres e ali permaneceremos, julgo eu, até
que possamos levá-la para o norte . Mas agora estou
tão longe dela . . . é tão custoso, não é, Miss Woodhouse?
Até hoje, ainda não nos tínhamos tornado a ver depois
do dia da reconciliação. Não tem pena de mim?
Ema manifestou-se tão compassiva que ele, em
troca, como se lhe ocorresse de súbito uma ideia,
exclamou:
- Ah! - a propósito . . . - e baixando a voz e com
um fingido ar de gravidade , acrescentou : - Mr.
Knightley está bem, não?
Dito isto, calou-se . Ema corou e sorriu-se.
- Sei que leu a minha carta; j ulgo que se recorda
dos votos que eu fazia por si . . . Permita-me que lhe
retribua as felicitações. Afirmo-lhe que foi com o maior
interess� e a mais sincera satisfação que recebi a
notícia. E um homem que está muito acima de todos
os meus elogios.
Ema estava contentíssima e nada mais desej ava
senão que ele continuasse no mesmo tom; mas Frank,
que já tinha o pensamento virado para os seus próprios
interesses e para a sua Jane, quando voltou a falar foi
para dizer:
- Já viu uma pele como aquela? Que mimosa! Que
delicada! . .. E, no entanto, não se pode chamar uma
formosura. Mas tem umas feições pouco comuns, com
aquele cabelo negro e aquelas pestanas escuras . . . umas
feições interessantíssimas ! Dão-lhe um ar verdadeira­
mente distinto. E a tez que possui imprime-lhe um
certo cunho de beleza.
- Sempre lhe admirei a cor do rosto, - retorquiu
Ema, com ar malicioso - mas já se não lembra do
tempo em que achava que dizer, por ser tão pálida?
Quando falámos a respeito dela pela primeira vez . . .
J á s e esqueceu?

495
JANE A USTEN

- Ah ! não . . . Que cachorro sem vergonha que eu


era! Como eu me atrevi . . .
Mas riu-se com tanta vontade que Ema não pôde
conter-se que não dissesse:
- Desconfio bem de que o senhor, à mistura com
as suas apreensões de então, se divertia à grande a
enganar-nos a todos . Ninguém me convence do
contrário. Estou persuadida de que era para si uma
compensação .
- Oh! não, não . . . Como pode julgar-me capaz de
uma coisa dessas? . . . Eu era o maior desgraçado!
- Não era tão desgraçado que não gostasse de se
divertir . . . Estou convencida de que, para si, era uma
esplêndida distracção ver que andava a iludir-nos a
todos . Sinto-me bem inclinada a desconfiar disso,
porque, para lhe dizer a verdade, creio que também
me teria divertido se estivesse no seu lugar. Acho que
há uma certa semelhança entre nós .
Frank fez uma vénia.
- S e não na índole , - acrescentou Ema, em
segui d a , com u m a expre s s ão verdadeiramente
sentimental - pelo menos no nosso destino: o destino
que determinou que nos uníssemos a dois espíritos
tão superiores aos nossos.
- Tem razão - retorquiu ele, com entusiasmo; -
mas não . . . no que se refere a si, não tem razão. Miss
Woodhouse não tem ninguém que lhe sej a superior;
mas comigo já se não pode dizer o mesmo. Ela é um
perfeito anj o . Olhe para ela: não é um anj o em todos
os seus gestos? Repare na curva daquela garganta.
Vej a aqueles olhos, quando ela olha para meu pai . . .
Há-de gostar de saber - continuou ele, em tom grave,
inclinando-se para Ema e baixando a voz - que meu
tio tenciona dar-lhe todas as jóias de minha tia. Serão
transformadas em novos adereços. Estou resolvido a
mandar fazer com algumas um diadema. Não acha
que há-de ficar bem naqueles cabelos pretos?
- Maravilhosamente ! - replicou Ema. E deu a
esta palavra uma intonação tão afectuosa que Frank
cheio de gratidão, exclamou:

496
EMA

- Não calcula como estou contente por vê-la outra


vez ! E vê-la com essa expressão radiante ! . . . Não
trocaria este momento por coisa alguma deste mundo .
Fique certa de que teria ido a Hartfield, se Miss
Woodhouse não tivesse cá vindo .
O s outro s , entretanto , falavam a respeito da
menina; Mrs . Weston contava o susto que tivera na
véspera, à noite, por lhe parecer que a criança não
estava boa. Reconhecia a sua tolice, mas a verdade é
que se tinha assustado e estivera vai não vai para
mandar chamar Mr. Perry. Talvez fosse caso para rir,
mas Mr. Weston também estivera quase tão inquieto
como ela. Daí a dez minutos , porém, a filha já não
tinha nada.
Era esta a história; e por sinal que interessava
particularmente Mr. Woodhouse, que louvava Mrs .
Weston por ter pensado em mandar chamar Perry,
lamentando apenas que o não tivesse feito . Ela devia,
em todo o caso, ter chamado Perry, desde que a criança
tivesse o mais leve incómodo, nem que fosse por curtos
instantes. Nenhum susto era prematuro de mais, não
eram demais as vezes que ela chamasse Perry. Talvez
fosse pena que ele não tivesse vindo a noite anterior;
a petiz agora parecia boa, mas, pensando bem, teria
sido melhor que Perry a visse.
Frank Churchill ouviu o nome e disse para Ema:
- Perry! - e ao mesmo tempo que tentava chamar
a atenção de Miss Fairfax, acrescentou: - o meu amigo
Mr. Perry! . . . Que estão eles dizendo a respeito de Mr.
Perry? Esteve cá esta manhã? E como dá ele agora as
suas voltas? Já arranj ou carruagem? . . .
Ema, recordando-se, percebeu logo ao que ele se
referia; e enquanto ela se ria, fazendo coro com Frank,
via-se na expressão de Jane que esta também o estava
ouvindo, embora pretendesse fingir o contrário.
- Que sonho tão extraordinário o meu ! - exclamou
Frank. - Nunca me lembro disso que me não dê
vontade de rir. Ela está a ouvir-nos, Miss Woodhouse . . .
Vejo-lhe n a cara, n o sorriso, n o esforço que e m vão faz
para franzir o sobrolho . Olhe para ela: neste instante

497
JANE A USTEN

está ela a ver aquela passagem da carta em que me


contava a novidade . . . desenrola-se-lhe diante dos olhos
toda a intriga . . . não vê outra coisa, embora finj a que
escuta os outros .
Jane , por u m momento, viu-se forçada a sorrir
abertamente, e ainda se lhe notava um leve sorriso
quando ela se voltou para Frank e disse em voz baixa,
mas firme:
- Que l�mbrança a sua estar a recordar-me essas
coi sas ! . . . As vezes vêm-nos à ideia, sem que as
chamemos . . . Para quê despertá-las? . . .
Ele tinha muito que lhe dizer e m resposta, e com
bastante espírito; mas Ema estava ao lado de Jane
nessa questão, e quando, ao deixar Randalls, se viu
naturalmente levada a estabelecer comparação entre
os dois homens, reconheceu que, conquanto satisfeita
por ver Frank Churchill e não obstante toda a amizade
que ele lhe merecia, nunca ela sentira mais a alta
superioridade de carácter de Mr. Knightley. O encanto
deste glorioso dia teve o seu remate na contemplação
ao vivo daquela proeminência resultante da compa­
ração.

CAPÍTULO LV

Se Ema ainda nutria, a intervalos , apreensões por


Harriet, momentâneas dúvidas de que esta estivesse
realmente curada do seu fraco por Mr. Knightley e
capaz de acolher outro homem com um afecto livre de
preconceitos, não foi por muito tempo que ela teve de
sofrer esses acessos de incerteza. Daí a poucos dias
chegou a família de Londres, e ainda não decorrera
uma hora de conversa com Harriet, já Ema estava
absolutamente persuadida - por muito inconcebível
que fosse - de que Roberto Martin havia suplantado
Mr. Knightley por completo e constituía agora para
Harriet toda a perspectiva de felicidade .

498
EMA

Harriet parecia constrangida: a princ1p10, mos­


trou-se até um pouco desorientada; mas, uma vez
confessada a presunção, a insensatez, a ilusão de que
estivera possuída, a sua angústia e o seu embaraço
pareciam desaparecer com o desabafo, ao mesmo
tempo que ela se libertava de preocupações quanto ao
passado e se entregava à mais plena exultação quanto
ao presente e ao futuro ; é verdade que Ema, com
grande regozij o da amiga, também lhe varrera do
espírito todos os temores, acolhendo-a logo de início
com as mais sinceras congratulações.
Harriet estava ansiosa por descrever com todos os
pormenores a noite no Astley's e o j antar do dia
seguinte, e foi com indescritível prazer que se espraiou
sobre o assunto. Mas como explicar tais minúcias? A
verdade é que - como Ema agora verificava - Harriet
nunca deixara de gostar de Roberto Martin e que a
perseverança deste acabara por triunfar. Além disto,
tudo o mais era ininteligível para Ema.
Era, porém, uma circunstância extremamente feliz,
e cada dia lhe oferecia novas razões para pensar assim.
Descobriu-se , finalmente , quem era a família de
Harriet. Soube-se que era filha de um lojista, bastante
rico para lhe proporcionar a confortável mantença que
sempre desfrutara e bastante discreto para desej ar
conservar o anonimato. Tal era a aristocrática origem
que Ema tão peremptoriamente lhe atribuíra em
tempos! Era provável, porém, que fosse de sangue tão
puro como o de muitos fidalgos: mas que parentesco
que ela ia arranj ando para Mr. Knightley, para os
Churchills , ou até para Mr. Elton! . .. A mancha de
ilegitimidade, não disfarçada por qualquer grau de
nobreza ou de opulência, teria sido realmente uma
mancha bem negra.
Nenhuma objecção se levantou por parte do pai de
Harriet; o rapaz foi tratado com toda a consideração
e tudo correu como devia; e quando Ema conheceu
Roberto Martin, que, finalmente, foi apresentado em
Hartfield, não pôde deixar de reconhecer nele todos

499
JANE A USTEN

aqueles dotes de bom s e n s o e de mérito que o


recomendavam como digno da sua amiguinha. Não
duvidava de que Harriet fosse feliz com qualquer
homem de coração; mas com Roberto Martin, e no lar
que ele lhe oferecia, ainda mais garantias havia de
estabilidade e de incremento na sua felicidade. Iria
conviver com pessoas que a amavam e que tinham
um s e n s o m a i s apurado que o de l a : u m a vida
suficientemente retirada para a livrar do mal, um meio
atraente bastante para lhe proporcionar alegrias .
Jamais seria levada à tentação, nem as circunstâncias
permitiriam que esta fosse ter com ela. Ema consi­
derava-a a mais virtuosa criatura deste mundo, por
ter despertado em tal homem um tão firme e constante
afecto, - ou, senão a mais feliz, pelo menos com
condições de o ser.
Harriet, necessariamente presa pelos seus com­
promi s s o s com os M arti n , ia cada vez menos a
Hartfield, o que não era case para se lastimar. A
intimidade entre ela e Ema tinha de afrouxar: a sua
amizade tinha de se transformar numa espécie de
benevolência mais branda. Felizmente que o que tinha
de ser, o que estava indicado que fosse, j á parecia ter
tido o seu início, exercendo-se gradualmente e do modo
mais natural .
Antes de Setembro haver terminado, pôde Ema
acompanhar Harriet à igrej a, onde a viu dar a mão, a
Roberto Martin com tão evidente satisfação que não
havia recordações, nem mesmo as que se relacionavam
com M r . E l t o n , que e s tava diante deles , que a
pudessem diminuir. Talvez que, nesse momento, ela
mal reparasse em Mr. Elton, mas , se o via, era como
sacerdote de quem ia receber a bênção junto do altar.
Roberto Martin e Harriet Smith, dos três pares de
noivos o mais recente, eram os primeiros a casar-se.
Jane j á tinha saído de Highbury, regressando ao
conforto do seu querido lar, junto dos Campbells. Os
Churchills também estavam na capital e apenas
esperavam que chegasse o mês de Novembro .

500
EMA

O mês intermédio foi aquele que havia sido fixado,


até onde as circunstâncias o permitiam, por Ema e
por Mr. Knightley. Tinham res olvido que o seu
casamento se efectuasse enquanto John e Isabella
estivessem em Hartfield, para, de acordo com o que
haviam proj ectado , poderem ausentar-se durante
quinze dias , num passeio pelo litoral . John e Isabella,
assim como todas as outras pessoas amigas, apro­
vavam a ideia. Mas Mr. Woodhouse . . . Como conseguir
que Mr. Woodhouse desse o seu assentimento? Ele
que nunca encarara o casamento senão como um
acontecimento longínquo ! . . .
Quando pela primeira vez s e lhe tocou n o assunto,
ficou tão aflito que deixou todos quase desanimados.
Uma segunda alusão, no entanto, j á lhe causou menos
abalo. Começava a convencer-se de que assim tinha
de ser e de que não estava na sua mão evitá-lo - um
prometedor passo para a resignação. Mesmo assim,
não andava satisfeito; pelo contrário, parecia tão triste
que a filha sentia perder a coragem . Não podia vê-lo
sofrer, j ulgando-se desprezado, e não obstante ambos
os Knightleys lhe afirmarem, e ela quase assim o
compreender, que, uma vez levado a efeito o casa­
mento, o pai depressa se conformaria, Ema hesitava
- não se atrevia a dar um passo.
No meio desta indecisão, socorreu-os, não qualquer
raio de luz que iluminasse o espírito de Mr. Wood­
house, nem qualquer maravilhosa modificação no seu
sistema nervoso, mas uma circunstância que exerceu
o seu efeito sobre o mesmo sistem a . Uma noite
roubaram todos os perus da capoeira de Mrs . Weston,
- feito evidentemente devido ao génio do homem. As
outras capoeiras das imediações sofreram igual sorte .
Para o espírito timorato de Mr. Woodhouse, um furto
de criação assumia as proporções de um roubo com
arrombamento . Este facto deixou-o bastante inco­
modado e, se não fosse a certeza da protecção do seu
genro , teria ficado sob terror constante todas as
restantes noites da sua vida. A energia, a calma, a
presença de espírito dos Knightleys incutiram-lhe a

501
JANE A USTEN

convicção de que a sua segurança dependia deles.


Enquanto qualquer deles o protegesse, a si e aos seus,
Hartfield nada teria a recear. Mr. John Knightley,
porém, tinha de regres s ar a Londres no fim da
primeira semana de Novembro.
O resultado deste incidente fo i , graças a um
consentimento muito mais espontâneo e jovial do que
a filha j amais teria esperad o , poder Ema fixar,
finalmente , o dia da boda. E um mês depois do
casamento de Mr. e Mrs . Roberto Martin, Mr. Elton
foi convidado a unir pelos laços do matrimónio Mr.
Knightley e Miss Woodhouse .
A boda foi mais ou menos como as outras bodas ,
em que os noivos nenhum gosto demonstraram pelo
luxo ou pelo estadão; por isso, Mrs . Elton, informada
de todos os pormenores pelo marido, achou-a extre­
mamente mesquinha e muito inferior à sua. «Que
pobreza de cetim branco e de véus de renda! Uma coisa
bem d e s p r e z ível ! S e l i n a h avi a de p a s m a r se o
soubesse» . Mas a despeito dessas deficiências, os votos,
as esperanças, a confiança, os vaticínios do pequeno
grupo de verdadeiros amigos que a s s i s tiram à
cerimónia foram plen amente confirmados p ela
p erfei ta felicidade que s empre r ein ou en t r e o s
cônjuges.
Na colecção « Clássicos» da Europa-América publicamos aquelas obras que
ultrapassaram o ordálio temporal e que são hoje património da Humanidade

:
•• Abadia de Northanger (A), Jane Austen, 8 7 :
·· Em Busca do Tempo Perdido III - O Lado de
:
•• Alicedo Outro úulo do Espelho, LewisCarroll, 1 1 1 Guermantes, Marcel Proust, 8 1
<• Alice no País dos Maravilhas, Lewis Carroll, 1 1 O :
•• Em Busca do Tempo Perdido I V - Sodoma e
!
•• Amor e Amizade, Jane Austen , 93 Gomorra, Marcel Proust, 82
)
• Ana Karenina, Leão Tolstoi, 4 1 !
•• Em Busca do Tempo Perdido V -A Prisioneira,
!
•• Anos Felizes, Louisa M ay Alcott, 73 Marcel Proust, 8 3
!
•• Argonáutica (A), Apolónio de Rodes, 7 !
•• Em Busca do Tempo Perdido VI - A Fugitiva,
!
•• Armance, Stendhal, 7 1 Marcel Proust, 84
!
•• Asno de Ouro (O), Lúcio Apuleio, 1 2 !
•• Em Busca do Tempo Perdido VII - O Tempo
!
•• Aventuras de Huckleberry Finn (As), Mark Redescoberto, Marcel Proust, 8 5
Twain, 1 1 2 !
•• Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de la Mancha
!
•• Aventuras de Tom Sawyer (As), Mark Twain, 1 1 4 (0), Miguel de Cervantes, 74
!
•• Ben-Hur - Uma Narrativa de Cristo, Lew -> Ensaio Sobre o Princípio da População, Thomas
Wallace, 5 5 Malthus, 56
!
•• Cabana do Pai Tomás (A), H arriet Beecher !
•• Eurico, o Presbítero, Alexandre H erculano, 1 1 5
S rowe, 63 !
•• Fábulas de La Fontaine, 1
!
•• Caminhos do Amor (Os), Charlotte Brome, 1 O 1 !
•• Feira dos Vaidades (A), William Thackeray, 54
!
•• Canção de Rolando (A), Desconhecido, 2 !
•• Filosofia na Alcova (A), Sade, 1 0
!
•• Carta de Pêro Vaz de Caminha a El-Rei D. Ma­ :
•• Filhos e Amantes, D . H . Lawrence, 1 1 6
nuel Sobre o Achamento do Brasil, estudo crítico !
•• Flecha Negra (A), Robert Louis Scevenson, 72
e notas de Ana Masia Azevedo, Masia Paula Cae­ !
•• Frankenstein, M ary Shelley, 2 8
tano e Neves Águas, 5 8 :
•• Gargântua, Rabelais, 3
-> Casa e o Mundo (A), R . Tagore, 1 7 !
•• Grande Gatsby (O), F. Scott Fitzgerald, 1 1 9
!
•• Código de Honra do Samurai, Tiira Shigésuké, 94 !
•• Grandes Esperanças, Charles Dickens, 43
!
•• Coelho Pedro e Outras Histórias (0), 96 :
•• Guerra e Paz, Leão Tolstoi, 65
!
•• Conde de Monte-Cristo (0), Alexandre Dumas, 5 1 !
•• Injància, Adolescência e juventude, Leão Tols-
!
•• Conselhos aos Políticos para Bem Governar, Plu- toi, 78
tarco, 1 03 )
• Ilíada (A), Homero, 78
-> Contos de Cantuária, G. Chaucer, 1 8 :
·· Inquilina de Wildft!! Hall (A), A. Brome , 47
!
•• Crime e Castigo, Dostoiewski, 8 !
•• Kama Sutra, Vatsyayana, 1 4
!
•• Da História da Destruição de Tróia, Dares !
•• Letra Escarlate (A), N. H awthorne , 32
F rígio, 1 0 5 !
•• Livro de Shang Yang (0), Shang Yang, 50
!
•• Da Terra à Lua, J úlio Verne, 1 04 !
•• Livro dos Cinco Anéis (0), Miyasnoto Musashi, 97
!
•• Diálogos dos Deuses, Luciano de Samósata, 9 8 -> Loja de Antiguidades (A), C. Dickens, 4
!
•• Diário do Ano da Peste, Daniel D e fo e , 67 !
•• Longe da Multidiw, Thomas Hasdy, 52
!
•• Divina Comédia (A) - O Infamo, Dante, 24 -> Lusíadas (Os), Luís Vaz de Camões, 76
-> Drácula, B ram S tocker, 1 9 )
• Madame Bovary, Gustave Flaubert , 26
-> Ema, Jane Austen, 1 20 :
·· Maias (Os), Eça de Queirós, 75
!
•• Em Busca do Tempo Perdido 1 - Do Lado de !
•• Mais Belas Poesias Religiosas (As), 3 5
Swann, Marcel Proust, 79 !
•• Manual do Líder - Aforismos, Napoleão, 1 00
!
•• Em Busca do Tempo Perdido I I -À Sombra das )
• Médico e o Monstro (0), Robert Louis S teven-
Jovens em Flor, Marcel Proust, 80 son, 3 1
•• ! Mensagem e Outros Poemas Afins, Fernando Pes- )
• Regras do Método Sociológico (As), Émile Durk-
soa, 1 1 heim, 1 1 7
•• ! Miseráveis (Os), Victor H ugo, 4 5 :
·· Retrato de Uma Senhora, H e n ry James, 37
•• ! Moby Dick, Herman Melville, 66 )
• Rob Roy, S i r Wal ter Scott, 6 8
•• ! Monte dos Vendavais (0), Emily Brome, 23 <- Romance da Rosa (O), Guillaume d e Lorris e Jean
!
•• Morte de Artur (A) - I , Sir Thomas Maloiy, 20 de Meun, 64
)
• Morte deArtur (A) - I I , Sir Thomas Malory, 2 1 !
•• Roteiro da Primeira Viagem de Vasco da Gama, 46
:
·· Morte de Artur (,4) - I I I , Sir Thomas Maloiy, 22 !
•• Satíricon (0), Petrónio, 60
!
•• Mulherzinhas, Louisa M ay Alcott, 29 !
•• Sensibilidade e Bom Senso, Jane Austen, 33
:
•• Nana, Emílio Zola, 9 5 !
•• Sete Pilares da Sabedoria (Os), T. E. Lawrence, 6
!
•• Obra Poética Completa, Mário d e Sá-Carneiro, 1 3 !
•• Sweeney Todd - O Terrível Barbeiro de Fleet
!
•• Odisseia, Homero, 27 Street ou O Colar de Pérolas, Anónimo, 99
)
• Oliver Twist, Charles Dickens, 90 !
•• Três Mosqueteiros (Os), Alexandre D umas, 77
!
•• Orgulho e Preconceito, Jane Austen, 34 !
•• Trinta e Seis E'stratégim(As) - Manual Secreto
)
• Origem das Espécies (A), Charles Datwin, 8 9 da A rte da Guerra, Anónimo, 1 07
!
•• Pai Goriot, Honoré de Balzac, 57 :
·· Tristão e Isolda, Anónimo, 9 1
:
·· Paixão de fane Eyre (A), Charlotte Brome, 69 :
·· Último dos Moicanos (0), James Fenimore Coo­
<• Parque de Mansfield (0), J ane Austen, 70 per, 38
!
•• Perceval ou o Romance do Graal, Chrétien de <· Um Conto de Natal e Outros Contos, Charles
Troyes , 48 Dickens, 1 0 9
:
·· Perseguição, Louisa M ay Alcott, 40 )
• Utopia, Thomas More, 3 9
!
•• Persumão, Jane Austen, 36 !
•• Velhice do Padre Eterno (,4), Guerra Junqueiro,
!
•• Poesias de Álvaro de Campos, Fernando Pessoa, 30 1 18
!
•• Poesias Eróticas, Burlescas e Satíricas, Bocage, 1 5 !
•• Viagem ao Centro da Terra, Júlio Verne, 1 02
)
• Prima Bette (A), Honoré de Balzac, 5 9 !
•• Viagem Maravilhosa de Nils Holgerson (A), Selma
!
•• Príncipe (0), Maquiavel, 2 5 Lagerlêif, 5
!
•• Prindpio e Outros Conws, Mário de Sá-Carneiro, 1 6 !
•• Viagens na Minha Terra, Almeida Garrett, 49
!
•• Processo (0), F ranz Kafka, 4 2 !
•• Vida Amorosa de Mo!! Flanders (A), Daniel De­
:
·· Profecias, Leonardo da V i n c i , 92 foe, 44
!
•• Pupilas do Sr. Reitor (As), J úlio Dinis, 8 8 <• 20 000 Léguas Submarinas, Júlio Verne, 53
!
•• Recordações da Casa dos Mortos, Fédor Dos­ !
•• Volta da Lua (À), J úlio Verne, 1 0 8
toiewski, 6 1

A nu meração após o nome do autor representa a ordem de publicação do título na colecção

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