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ALBA PAULO DE AZEVEDO

CORNÉLIO ALVES DE AZEVEDO NETO


KEITY MARA FERREIRA DE SOUZA E SABOYA
MARCO BRUNO MIRANDA CLEMENTINO
SANDRA SIMÕES DE SOUZA DANTAS ELALI
VIRGÍNIA DE FÁTIMA MARQUES BEZERRA

LEITURAS DE DIREITO
POR OCASIÃO DOS CURSOS DE
APERFEIÇOAMENTO DE MAGISTRADOS
(2013-2014)

Keity Mara Ferreira de Souza e Saboya


(Organizadora)

Natal 2014
ESCOLA DA MAGISTRATURA DO RIO GRANDE DO NORTE

MOSSORÓ NATAL
Av. Dix-Sept Rosado, 56 Av. Promotor Manoel Alves Pessoa
Centro – Mossoró/RN - Brasil Neto, 1000 - Candelária – Natal/RN
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DIRETORIA

DIRETOR
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VICE-DIRETOR
Desembargador Virgílio Fernandes de Macêdo Junior

COORDENADORA ADMINISTRATIVA
Juíza Ticiana Maria Delgado Nobre

COORDENADOR ADMINISTRATIVO ADJUNTO


Juiz João Afonso Morais Pordeus

COORDENADOR DE ENSINO
Juiz Ricardo Tinoco de Goés

COORDENADOR DE ENSINO ADJUNTO


Juiz Andreo Aleksandro Nobre Marques

COORDENADORA DE CURSOS DE FORMAÇÃO, ATUALIZAÇÃO E


APERFEIÇOAMENTO DE MAGISTRADOS
Juíza Keity Mara Ferreira de Souza e Saboya

COORDENADOR DE CURSOS DE FORMAÇÃO, ATUALIZAÇÃO E


APERFEIÇOAMENTO DE MAGISTRADOS ADJUNTO
Juiz Francisco Seráphico da Nóbrega Coutinho
COORDENADOR DOS CURSOS DE FORMAÇÃO, ATUALIZAÇÃO E
APERFEIÇOAMENTO DE SERVIDORES
Juiz José Undário Andrade

COORDENADORA DOS CURSOS DE FORMAÇÃO, ATUALIZAÇÃO E


APERFEIÇOAMENTO DE SERVIDORES ADJUNTA
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COORDENADOR DE ASSUNTOS INSTITUCIONAIS


Desembargadora Maria Zeneide Bezerra

COORDENADOR DE ASSUNTOS INSTITUCIONAIS ADJUNTO


Juiz Everton Amaral de Araújo

COORDENADOR REGIONAL – NÚCLEO MOSSORÓ


Juiz José Herval Sampaio Júnior

COORDENADOR REGIONAL – NÚCLEO CAICÓ


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COORDENADOR REGIONAL – NÚCLEO PAU DOS FERROS


Juiz Osvaldo Cândido de Lima Júnior

CONSELHEIROS PEDAGÓGICOS
Juiz Fábio Wellington Ataíde Alves
Juíza Sandra Simões de Souza Dantas Elali
ALBA PAULO DE AZEVEDO
CORNÉLIO ALVES DE AZEVEDO NETO
KEITY MARA FERREIRA DE SOUZA E SABOYA
MARCO BRUNO MIRANDA CLEMENTINO
SANDRA SIMÕES DE SOUZA DANTAS ELALI
VIRGÍNIA DE FÁTIMA MARQUES BEZERRA

LEITURAS DE DIREITO
POR OCASIÃO DOS CURSOS DE
APERFEIÇOAMENTO DE MAGISTRADOS
(2013-2014)

Natal 2014
© Copyright by ESMARN

Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte.

L784

Leituras de direito: por ocasião dos cursos de aperfeiçoamento de


magistrados (2013-2014) / Alba Paulo de Azevedo ... [et al.]; Keity
Mara Ferreira de Souza e Saboya (Org). – Natal: ESMARN, 2014.
108 p.

Livro digital.
ISBN (digital):

1. Processo penal – E-book. 2. Nulidades – E-book. 3. Direito à saúde


– E-book. 4. Judicialização da saúde – E-book. 5. Estado Democrático
de Direito – E-book. 6. Apuração criminal – E-book. 7. Hermenêutica
concretizadora – E-book. 8. Princípio da insignificância – E-book. 9.
Sistemas de Saúde – E-book. 10. Ativismo Judicial – E-book. I. Azevedo,
Alba Paulo de Azevedo. II. Azevedo Neto, Cornélio Alves de. III. Saboya,
Keity Mara Ferreira de Souza e. IV. Clementino, Marco Bruno Miranda.
V. Elali, Sandra Simões de Souza Dantas. VI. Bezerra, Virgínia de Fátima
Marques. II. Título.

RN/ESMARN/BDJGC CDU 34

Larissa Inês da Costa (CRB 15 / 657)


SUMÁRIO

PROCESSUAL PENAL: JUNTADA TARDIA DE LAUDO PERICIAL E A


RELATIVIZAÇÃO DA NULIDADE ABSOLUTA
Alba Paulo de Azevedo ...................................................................................................9

A IMPORTÂNCIA DA CÂMARA TÉCNICA PARA A DECISÃO JUDICIAL NAS


DEMANDAS DA SAÚDE
Cornélio Alves de Azevedo Neto ...................................................................................19

A QUESTÃO DA REINCIDÊNCIA
Keity Mara Ferreira de Souza e Saboya ........................................................................27

A QUESTÃO DA (IN)DEPENDÊNCIA DAS INSTÂNCIAS ADMINISTRATIVA E PENAL


Keity Mara Ferreira de Souza e Saboya.........................................................................39

A SEGUNDA INSTÂNCIA HOSPITALAR, A JURISMEDICINA, A CÂMARA TÉCNICA


E O COMPROMISSO COM A SAÚDE
Marco Bruno Miranda Clementino.................................................................................47

A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA EM CRIMES FISCAIS PELO


SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: UM ESTUDO DE CASO
Sandra Simões de Souza Dantas Elali...........................................................................59

A JUDICIALIZAÇÃO DOS SISTEMAS DE SAÚDE: SOLUÇÃO DE COMPROMISSO


RUMO ÀS CORES DA VIDA.
Virgínia de Fátima Marques Bezerra ..............................................................................75

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PROCESSUAL PENAL: JUNTADA TARDIA DE LAUDO PERICIAL
E A RELATIVIZAÇÃO DA NULIDADE ABSOLUTA

Alba Paulo de Azevedo1

RESUMO: Não é de hoje que o controvertido tema das nulidades processuais exsurge no
Processo Penal Brasileiro, notadamente em decorrência de inexistir na doutrina uma classi-
ficação correta ou incorreta quanto ao tema, além de haver muitas classificações, de modo
que a matéria finda sendo resolvida pelos Tribunais. A presente análise de caso concreto faz
abordagem acerca de precedente do Supremo Tribunal Federal (STF) enfrentando a ques-
tão da juntada tardia de laudo definitivo de exame toxicológico, em momento posterior
à sentença absolutória. Objetiva-se demonstrar o fenômeno da relativização das nulida-
des processuais, em mudança de paradigma da jurisprudência pátria, ao se entender que
nulidades tidas classicamente por absolutas, para serem reconhecidas, passaram a exigir a
comprovação do prejuízo a uma das partes. Ratifica-se o enfraquecimento da dicotomia da
nulidade absoluta e nulidade relativa, além de uma necessária atuação saneadora de prote-
ção dos direitos fundamentais do acusado, de ofício, pelo juiz, quando preciso for para a
efetiva tutela da liberdade.

Palavras-chave: Processo penal. Nulidades. Relativização. Laudo pericial. Juntada tardia.


Prejuízo. Comprovação.

1 PRECEDENTE

Ementa: PENAL. PROCESSUAL PENAL. RECURSO OR-


DINÁRIO EM HABEAS CORPUS. CRIME DE TRÁFICO
DE DROGAS (ART. 12 DA LEI 6.368/76). LAUDO DE-
FINITIVO DE EXAME TOXICOLÓGICO. JUNTADA
TARDIA, POSTERIOR À SENTENÇA ABSOLUTÓRIA.
CONDENAÇÃO EM SEGUNDA INSTÂNCIA. CON-
JUNTO PROBATÓRIO INDEPENDENTE. EXERCÍCIO
DO CONTRADITÓRIO. PRINCÍPIO DA INSTRU-
MENTALIDADE DAS FORMAS. AUSÊNCIA DE PREJU-
ÍZO. RECURSO DESPROVIDO. 1. A nulidade decorrente

1 Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Professora de Direito Proces-
sual Penal na Escola da Magistratura do Rio Grande do Norte (ESMARN). Juíza de Direito do Poder Judiciário
do Rio Grande do Norte.

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PROCESSUAL PENAL: JUNTADA TARDIA DE LAUDO
ALBA PAULO DE AZEVEDO
PERICIAL E A RELATIVIZAÇÃO DA NULIDADE ABSOLUTA

da juntada tardia do laudo de exame toxicológico no crime


de tráfico de drogas tem como pressuposto a comprovação
do prejuízo ao réu. (Precedentes: HC 104.871/RN, Relator
Min. Dias Toffoli, Primeira Turma, DJe 7/10/2011); HC
82.035/MS, Relator Min. Sydney Sanches, Primeira Turma,
DJ 4/4/2003; HC 85.173/SP, Relator Min. Joaquim Barbosa,
Segunda Turma, DJe 15/2/2005; HC 69.806/GO, Relator
Min. Celso de Mello, Primeira Turma, DJ 4/6/1993). 2. In
casu: a) o recorrente foi denunciado (fls. 9) como incurso nas
sanções do art. 12 da Lei 6.368/76, porque, em 27/9/2005,
ao final do banho de sol dos detentos da cadeia pública da
Comarca de Ponte Nova/MG, tentava esconder dos policiais
7 (sete) invólucros contendo substância vegetal esverdeada co-
nhecida como “maconha”, de peso aproximado de 8,57g (oito
gramas e cinquenta e sete centigramas); b) o Juiz de Direito
de primeira instância proferiu sentença absolutória, por julgar
que, para se aferir a materialidade delitiva, imprescindível
seria a elaboração de laudo toxicológico definitivo, sendo
insuficiente o laudo de constatação preliminar; c) o laudo
definitivo, embora tenha sido elaborado antes da sentença,
somente veio a ser juntado aos autos após a sua prolação;
houve apelação pelo Ministério Público, que restou provida
para condenar o réu, decisão confirmada em sede de embar-
gos infringentes; d) a condenação fundou-se em conjunto
probatório independente do laudo definitivo consistente em:
laudo preliminar assinado por perito oficial não contestado
pela defesa, bem como a confissão do acusado de que a droga
era de sua propriedade; e) o contraditório foi oportunizado
à defesa no momento das contrarrazões de apelação, e pela
posterior interposição de embargos infringentes. 3. O pro-
cesso penal rege-se pelo princípio da instrumentalidade das
formas, do qual se extrai que as formas, ritos e procedimentos
não existem como fins em si mesmos, mas como meios de se
garantir um processo justo, equânime, que confira efetividade
aos postulados constitucionais da ampla defesa, do contradi-
tório, e do devido processo legal. 4. É cediço na Corte que:
a) no processo penal vigora o princípio geral de que somente
se proclama a nulidade de um ato processual quando há a
efetiva demonstração de prejuízo, nos termos do que dispõe

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PROCESSUAL PENAL: JUNTADA TARDIA DE LAUDO
ALBA PAULO DE AZEVEDO
PERICIAL E A RELATIVIZAÇÃO DA NULIDADE ABSOLUTA

o art. 563 do CPP, verbis: Nenhum ato será declarado nulo,


se da nulidade não resultar prejuízo para a acusação ou para
a defesa; b) nesse mesmo sentido é o conteúdo do Enunciado
da Súmula nº 523 do Supremo Tribunal Federal: No processo
penal, a falta de defesa constitui nulidade absoluta, mas a sua
deficiência só o anulará se houver prova de prejuízo para o réu;
c) precedentes: HC 93.868/PE, Rel. Ministra Cármen Lúcia,
Primeira Turma, Julgamento em 28/10/2008; HC 98.403/
AC, Rel. Ministro Ayres Britto, Segunda Turma, Julgamento
em 24/8/2010, HC 94.817, Rel. Ministro Gilmar Mendes,
Segunda Turma, Julgamento em 3/8/2010. 5. Recurso or-
dinário desprovido. (RHC 110429, Relator(a): Min. LUIZ
FUX, Primeira Turma, julgado em 06/03/2012, ACÓRDÃO
ELETRÔNICO DJe-058 DIVULG 20-03-2012 PUBLIC
21-03-2012).

2 ANÁLISE DISCURSIVA

O controvertido tema das nulidades processuais no ordenamento jurí-


dico brasileiro ainda se ressente de males que o afligem, notadamente diante
da insistência de alguns em tentar submetê-lo aos princípios das nulidades
dos atos jurídicos de direito material, aliada à falta de sistematização e ao
casuísmo. Não se trata de venerar a forma por ela mesma, contudo a estru-
turação do processo adequado que afirme às partes suas garantias e a correta
aplicação da lei requer a previsão de um modelo ao qual se submetam todos
os sujeitos do processo, uma vez que a forma que limita a atividade de um,
semelhantemente, preserva o espaço do outro (GRECO FILHO, 2010, p.
285).
Doutrina e jurisprudência divergem quanto ao conceito de nulidade,
terminologia, espécies, dentre outras questões acerca da matéria. A posição
majoritária, tanto da doutrina quanto na jurisprudência, define a nulidade
como a sanção (MARQUES apud CAPEZ, 2013, p. 711) aplicada ao ato
processual defeituoso, em decorrência de não ter sido observada a forma
prescrita em lei, ensejando a decretação da nulidade, o que implica decre-
tação da ineficácia do ato.

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PROCESSUAL PENAL: JUNTADA TARDIA DE LAUDO
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PERICIAL E A RELATIVIZAÇÃO DA NULIDADE ABSOLUTA

Nessa perspectiva, Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar defi-


nem nulidade como:

A sanção aplicada pelo juiz em razão da verificação de um ato


processual defeituoso. A sua imposição terá lugar toda vez que
o desatendimento de norma processual penal cause prejuízo
a direito das partes ou quando haja a presunção legal de tal
prejuízo por se cuidar de formalidade essencial (TÁVORA;
ALENCAR, 2010, p. 941).

Outra corrente enxerga a nulidade como uma qualidade ou caracte-


rística do ato processual ou do processo, conceituando-a como o defeito ou
falta do ato processual ou de todo o processo. Desse modo, a sanção passa
a ser a ineficácia do ato processual ou do processo, por não ter sido obser-
vada a forma prescrita em lei, sendo a nulidade sinônimo de defeito, vício,
eiva ou imperfeição (FEITOZA, 2010, p. 1050).
Sob essa ótica, Guilherme de Souza Nucci define nulidade como sendo
“os vícios que contaminam determinados atos processuais, praticados sem a
observância da forma prevista em lei, podendo levar à sua inutilidade e con-
sequente renovação” (NUCCI, 2012, p. 823).
Haveria, portanto, segundo Fernando da Costa Tourinho Filho, a
necessidade de o ato realizar-se conforme a lei para ser perfeito e produzir
seus efeitos jurídicos, o que se denominou de tipicidade do ato processual,
sob pena de a atipicidade do ato gerar-lhe a nulidade (absoluta e relativa),
a simples irregularidade ou a própria inexistência (TOURINHO FILHO,
2010, p. 524).
Diversos princípios norteiam a sistemática das nulidades, entretanto
toda a matéria acerca do tema precisa ser analisada tendo como sustentá-
culo um princípio que reúne e resume a plenitude das tarefas atribuídas aos
atos e formas processuais e/ou procedimentais. Trata-se do princípio da ins-
trumentalidade das formas, uma tradução do antigo pas de nullité sans grief,
pelo qual, “para o reconhecimento e a declaração de nulidade de ato proces-
sual, haverá de ser aferida a sua capacidade para a produção de prejuízos aos

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interesses das partes e/ou ao regular exercício da jurisdição (art. 563, CPP)”
(OLIVEIRA, 2008, p. 665).
A rigor, não há na doutrina uma classificação correta ou incorreta
quanto às nulidades, sobretudo em face das múltiplas classificações que difi-
cultam a compreensão do assunto. Entretanto, ainda que passível de críticas,
a mais recomendada à realidade brasileira diante das dificuldades e impreci-
sões em torno da matéria (TAVORA; ALENCAR, 2010, p. 955), é a clássica
elaborada por Grinover, Scarence e Gomes Filho (2011, p. 20-21).
a) Atos inexistentes: a desconformidade com o modelo legal é tão
intensa que se chega a falar em inexistência do ato. São verdadeiros “não atos”
processuais porque não se cogita de invalidação, pois a inexistência cons-
titui um problema que antecede a qualquer consideração sobre a validade.
Exemplos: a falta de investidura legal, a sentença que falte a parte disposi-
tiva, a sentença apócrifa, que a jurisprudência ora considera ato nulo, ora
considera ato inexistente.
b) Nulidade: é a sanção passível de ser aplicada em face do defeito do
ato (desvios de forma), possibilitando que se retire do ato a aptidão de pro-
duzir efeitos. As nulidades distinguem-se em absoluta e relativa.
I- Nulidade absoluta: ocorre quando a gravidade do ato viciado é
flagrante e manifesto o prejuízo que sua permanência acarreta para a efe-
tividade do contraditório ou para a justiça da decisão, porquanto o vício
atinge o próprio interesse público, daí a razão pela qual, uma vez perce-
bida a irregularidade, o próprio juiz, de ofício, deve decretar a invalidade.
Exemplos: a falta de capacidade processual ou postulatória não suprida no
tempo oportuno, o processo instaurado perante juiz impedido ou absolu-
tamente incompetente.
II – Nulidade relativa: o legislador facultou à parte prejudicada pedir
ou não a invalidação do ato irregularmente praticado, subordinando o reco-
nhecimento do vício à efetiva demonstração do prejuízo sofrido. Exemplos:
o processo instaurado perante juiz suspeito ou relativamente incompetente,
a intimação do advogado, que se realiza por publicação, da qual não conste
o nome do réu.

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c) Atos meramente irregulares: quando o desatendimento às prescri-


ções legais não compromete os objetivos pelos quais a forma foi instituída,
sem prejudicar a sua eficácia, não acarretando qualquer prejuízo às partes.
Exemplos: falta da assinatura das partes nos termos de depoimento ou decla-
rações judiciais, perfeitamente, suprida pela fé pública do escrevente de sala
que subscreve ata ou assentada.
O fato é que não existe uma sistematização entre os ramos do direito
quanto ao tema dos vícios dos atos processuais e, por outro lado, a lei, quando
arrola os vícios dos atos, não revela quais atos acarretam tais vícios, cabendo
ao intérprete fazê-lo, de modo que a matéria finda sendo resolvida pelos tri-
bunais, distante, assim, de uma uniformidade.
No Direito Processual Penal, as normas que o disciplinam são sem-
pre cogentes, em razão da natureza do interesse público em jogo, e ainda
que a ação penal seja privada, haverá o interesse público secundariamente.
Assim, a nulidade do ato processual não é automática, havendo a necessi-
dade que o juiz se manifeste expressamente para que cessem os efeitos do
ato processual viciado, salvo impossibilidade natural ou lógica de produ-
ção de seus efeitos normais. Importante notar que, atualmente, a tendência
da jurisprudência é não se apegar a fórmulas sacramentais, deixando, por-
tanto, de decretar a eiva quando o ato acaba atingindo a sua finalidade, sem
causar gravame às partes.
Explicitando a finalidade da lei e a questão das nulidades, Guilherme
de Souza Nucci assinala que, quando o ato processual deixou de ser prati-
cado conforme a fórmula legalmente prevista, contudo, atingiu o espírito
da lei, não há plausibilidade para ser anulado, e argumenta que:

Varas repletas de processos, tribunais sobrecarregados de re-


cursos e um aparelho judiciário ainda antiquado transformam
o princípio da economia processual, por vezes em ficção jurí-
dica. Uma das formas de se combater a lentidão exagerada em
relação ao trâmite processual é evitar, sempre que possível, a
decretação de nulidades, pois tal medida implicará no refa-
zimento dos atos já praticados, acarretando, por óbvio, um
atraso significativo na conclusão do feito. Por isso, quando o

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ato processual deixou de ser praticado conforme a fórmula


legalmente prevista, porém, terminou por atingir a finalidade
da lei (ou o espírito da lei), inexiste plausibilidade para ser
anulado. Necessita-se mantê-lo, por uma questão de lógica e
praticidade (NUCCI, 2013, p. 977-978.).

Noutro viés, a propósito da atuação discricionária do juiz para que o


ato seja extirpado do processo, em marcante preocupação com a relativiza-
ção das nulidades Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar ponderam que:

Apesar do acerto dessas ideias, elas permitiram a abertura de


espaço para o fenômeno da relativização das nulidades pro-
cessuais, que prestigia a discricionariedade e o subjetivismo do
juiz, em detrimento do sistema acusatório, o que é por demais
perigoso (TÁVORA; ALENCAR, 2010, p. 952).

O certo é que o precedente acima ementado traz a mudança de para-


digma da jurisprudência pátria ao se entender que a nulidade decorrente
da juntada tardia do laudo de exame toxicológico no crime de tráfico de
drogas tem como pressuposto a comprovação do prejuízo ao réu. Extrai-se,
ademais, a firme interpretação de que o processo penal rege-se pelo princí-
pio da instrumentalidade das formas, onde os procedimentos não existem
como fins em si mesmos, mas como meios de se assegurar um processo justo
e com efetividade aos princípios constitucionais da ampla defesa, do con-
traditório, e do devido processo legal.
Na esteira da fundamentação doutrinária até aqui deduzida, eviden-
cia-se essa relativização da nulidade antes tida por absoluta, uma vez que
a relativização implica exatamente dizer que nulidades tidas classicamente
por absolutas - prejuízo não precisa ser demonstrado por ser presumido
legalmente –, para serem reconhecidas processualmente, passaram a exigir,
de igual modo, a comprovação de prejuízo a uma das partes, prestigiando-
-se, assim, a celeridade processual (TÁVORA; ALENCAR, 2010, p. 952).
Em lúcida observação, Eugênio Pacelli de Oliveira encaminha, ainda,
que se configuram vícios passíveis de nulidades absolutas com consequente

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nulidade absoluta do processo penal as violações aos princípios fundamentais


do processo penal, como nas seguintes hipóteses: a) juiz natural; b) contra-
ditório e ampla defesa; c) imparcialidade do juiz; inexistência de motivação
das sentenças judiciais ((TÁVORA; ALENCAR, 2010, p. 952).
Nulidades absolutas referem-se a vícios de vultosa gravidade, que atin-
gem o processo como um todo, por não terem sido respeitados princípios
constitucionais, enquanto as nulidades relativas, via de regra, dependem do
interesse e iniciativa da parte que foi prejudicada, nos termos do art. 565 do
CPP (ROMANO, 2013, p. 3.), uma vez que nenhuma das partes poderá
arguir nulidade a que haja dado causa, ou para que tenha concorrido.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Anteriormente abraçando a nulidade absoluta, é cediço que a jurispru-


dência pátria perfilhava o entendimento no sentido de ser imprescindível à
condenação que o laudo pericial definitivo da droga fosse positivo, no sentido
de comprovar a materialidade do delito de tráfico de drogas, demonstrando
que realmente se tratava de substância entorpecente ou que determinava
dependência física ou psíquica, e sua juntada aos autos deveria ocorrer antes
da sentença, sobretudo porque se entendia que a prova da materialidade do
crime se fazia com exclusividade por intermédio do exame clínico-toxico-
lógico.
Entretanto, a atividade saneadora de salvaguarda dos direitos funda-
mentais do acusado requer do juiz uma atuação, de ofício, quando preciso
for para a efetiva tutela da liberdade, com pacífica convivência entre o sis-
tema acusatório e a iniciativa da parte, como ocorre na ação de habeas corpus,
renunciando-se a dicotomia de nulidade absoluta e nulidade relativa (BIN-
DER apud ALMEIDA; DUCLERC, 2013, p. 9-10), que inclusive não se
revela com clara nitidez na teoria das nulidades.
A relativização da nulidade absoluta atestada no caso em análise con-
firma o enfraquecimento da dicotomia da nulidade absoluta e nulidade
relativa, que tem sido recorrente na trilha da jurisprudência das Cortes Supe-
riores, predominando o entendimento de que a juntada tardia do laudo
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PERICIAL E A RELATIVIZAÇÃO DA NULIDADE ABSOLUTA

definitivo - posterior à prolatação de sentença -, por si só, não tem o con-


dão de tornar nulo o feito, mormente levando em consideração se tal fato
não trouxer qualquer prejuízo aos acusados, na medida em que o laudo defi-
nitivo tão-somente confirmar o já atestado pelo laudo preliminar devendo
incidir, assim, a norma contida no art. 563 do CPP.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Cibelle Barretto; DUCLERC, Elmir. As nulidades no


processo penal, conforme uma lógica garantista. Disponível em:
<http://www.ibadpp.com.br/wp-content/uploads/2013/01/artigo_
nulidades_2.pdf?05470b>. Acesso em: 24 jun. 2013.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Ordinário em Habeas


Corpus: RHC 110429, Relator Min. Luiz Fux, Primeira Turma, Julgado
em 06/03/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-058, Divulgado
20/03/2012, Publicado 21/03/2012. Disponível em: <http://stf.jusbrasil.
com.br/jurisprudencia/21419481/recurso-ordinario-em-habeas-corpus-
rhc-110429-mg-stf>. Acesso em: 24 jun. 2014.

CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 20. ed. São Paulo: Saraiva,
2013.

FEITOZA, Denilson. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. 7.


ed. Niterói: Ímpetus, 2010.

GRECO FILHO, Vicente. Manual de processo penal. 8. ed. São Paulo:


Saraiva, 2010.

GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antônio Scarence;


GOMES FILHO, Antônio Magalhães. As nulidades no processo penal.
7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.

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PROCESSUAL PENAL: JUNTADA TARDIA DE LAUDO
ALBA PAULO DE AZEVEDO
PERICIAL E A RELATIVIZAÇÃO DA NULIDADE ABSOLUTA

NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado.


12. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução


penal. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.

OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 10. ed. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2008.

ROMANO, Rogério Tadeu. Nulidades no processo penal. Disponível


em: <http://www.jfrn.gov.br/institucional/biblioteca/doutrina/
doutrina253_NulidadesNoProcessoPenal.pdf>. Acesso em: 24 jun. 2013.

TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito


Processual Penal. 7. ed. Salvador: JusPodivm, 2010.

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de processo penal.


13. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

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A IMPORTÂNCIA DA CÂMARA TÉCNICA PARA A
DECISÃO JUDICIAL NAS DEMANDAS DA SAÚDE

Cornélio Alves de Azevedo Neto1

RESUMO: O presente paper busca, após uma abordagem conceitual e histórica sobre os
direitos sociais, em especial a saúde, ressaltar a similitude entre o instituto do amicus curiae
e as Câmaras Técnicas da Saúde ou Núcleos de Apoio Técnicos, propostos pelo Conse-
lho Nacional de Justiça como instrumentos de aperfeiçoamento da tutela jurisdicional nas
demandas relativas ao direito à saúde. Além disso, pretende-se demonstrar a importância
de medidas deste jaez para a superação da atual problemática da judicialização da saúde e
para a manutenção da harmônica interação entre os Poderes da República, sugerindo, por
fim, sem pretender esgotar a matéria, uma composição teoricamente ideal dos núcleos de
apoio aos Magistrados, nesta área que atualmente desafia e sobrecarrega todo o Judiciário.

Palavras-chave: Direitos sociais. Direito à saúde. Judicialização da saúde. Protagonismo


judicial. Amicus curiae. Câmaras Técnicas da Saúde.

Partindo-se da constatação de que falhara o Estado Liberal em tratar


seus cidadãos de forma justa, chegou-se, em meados do Século XX, a um
novo paradigma: não bastava que o indivíduo fosse protegido da intervenção
do Estado na vida privada, sintetizado fielmente no princípio do laissez-faire2.
Em linhas gerais, costuma-se distinguir o Estado Liberal deste novo
modelo de Estado com base no grau de atuação do Poder Público: enquanto
no antigo modelo preponderava o absenteísmo estatal, ou seja, a não inter-
ferência do Estado na esfera privada, essa nova concepção vaticinava que o
Poder Público deveria interferir ativamente (prestações positivas) para garan-
tir a eficácia dos direitos fundamentais.

1 Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte, titular da 5ª Vara Criminal da Comarca
de Mossoró e, por designação, da Vara Única da Comarca de Portalegre/RN.
2 Ao pé da letra, laissez-faire, em francês, significa “deixe fazer”. A expressão se refere à política de um governo de
não controlar a economia ou as empresas e deixar que as coisas se resolvam sozinhas, sem interferência. O princípio
foi teorizado pelos franceses no século XVIII e muito defendido pelo famoso economista escocês Adam Smith
(1723-1790). Da área da economia, a expressão passou ao uso geral, sem tradução das palavras francesas para o
inglês, indicando uma atitude de deixar as coisas tomarem seu próprio caminho, sem interferir nas atividades ou
no comportamento de outras pessoas, nem tentar influenciá-las.

19
A IMPORTÂNCIA DA CÂMARA TÉCNICA PARA A
CORNÉLIO ALVES DE AZEVEDO NETO
DECISÃO JUDICIAL NAS DEMANDAS DA SAÚDE

As primeiras Constituições a abarcarem esta compreensão de Estado,


e que serviram de moldes para as que se sucederam, foram a mexicana, em
1917 e a alemã, em 1919. Fábio Konder Comparato, embora tenha, a nosso
ver, supervalorizado-as, assim descreve o valor simbólico dessas Constituições:
O Estado da democracia social, cujas linhas-mestras já haviam sido
traçadas pela Constituição mexicana de 1917, adquiriu na Alemanha de
1919 uma estrutura mais elaborada, que veio a ser retomada em vários paí-
ses após o trágico interregno nazi-fascista e a Segunda Guerra Mundial.
A democracia social representou efetivamente, até o final do século XX, a
melhor defesa da dignidade humana, ao complementar os direitos civis e
políticos – que o sistema comunista negava – com os direitos econômicos e
sociais, ignorados pelo liberal-capitalismo. De certa forma, os dois grandes
pactos internacionais de direitos humanos, votados pela Assembléia Geral
das Nações Unidas em 1966, foram o desfecho do processo de institucio-
nalização da democracia social, iniciado por aquelas duas Constituições do
início do século (COMPARATO, 2007, p. 192-193).
De fato, em comparação ao período anterior, a inserção dos direitos
sociais3 na normatividade constitucional foi um tremendo avanço rumo a
consecução do ideal igualitário. Nesta senda, o Estado era obrigado (pode-
ria ser compelido) a garantir direitos sociais, também decorrentes da própria
condição do ser humano (como a saúde, educação, lazer, etc.), mesmo àqueles
indivíduos que, por força de fatos arbitrários ou das contingências da vida em
sociedade, se encontrassem em posição desfavorável em relação aos demais.
Segundo o constitucionalista José Afonso da Silva, neste “Estado
Democrático de Direito”:

[...] os direitos sociais, como dimensão dos direitos funda-


mentais do homem, são prestações positivas proporcionadas
pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas

3 Segundo Paulo Gilberto Leivas, os direitos sociais são [...] direitos a ações positivas fáticas, que, se o indivíduo
tivesse condições financeiras e encontrasse no mercado oferta suficiente, poderia obtê-las de particulares; porém,
na ausência destas condições e, considerando a importância destas prestações, cuja outorga ou não-outorga não
pode permanecer nas mãos da simples maioria parlamentar, podem ser dirigidas contra o Estado por força de
disposição constitucional (LEIVAS, 2006. p. 89).

20
A IMPORTÂNCIA DA CÂMARA TÉCNICA PARA A
CORNÉLIO ALVES DE AZEVEDO NETO
DECISÃO JUDICIAL NAS DEMANDAS DA SAÚDE

constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida


aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de
situações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se ligam
ao direito de igualdade. Valem como pressupostos do gozo
dos direitos individuais na medida em que criam condições
materiais mais propícias ao auferimento da igualdade real,
o que, por sua vez, proporciona condição mais compatível
com o exercício efetivo da liberdade (SILVA, 2006, p. 229).

No Brasil, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, os


direitos sociais ganharam proeminência nunca antes vista em nossa matriz
constitucional. O direito a saúde, neste contexto, vem previsto em toda uma
seção, emergindo, com clareza solar, da dicção do Art. 196 da Carta Magna:
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido
mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de
doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e ser-
viços para sua promoção, proteção e recuperação (BRASIL, 1988).
Entretanto, mesmo passados mais de vinte e cinco anos do surgimento
desta nova ordem constitucional, o que se vê é o esfacelamento da assistên-
cia pública à saúde. Lênio Streck, discorrendo, há quase dez anos, sobre este
fenômeno em nosso país, aduzia, de forma absolutamente assertada, que:

No Brasil, a modernidade é tardia e arcaica. O que houve (há)


é um ‘simulacro de modernidade’. Como muito bem assinala
Eric Hobsbawn, o Brasil é um “monumento à negligência so-
cial”, ficando atrás do Sri Lanka em vários indicadores sociais,
como mortalidade infantil e alfabetização, tudo porque o Esta-
do, no Sri Lanka, empenhou-se na redução das desigualdades.
Ou seja, em nosso País as promessas da modernidade ainda
não se realizaram. E, já que tais promessas não se realizaram,
a solução que o establishment apresenta, por paradoxal que
possa parecer, é o retorno do Estado (neo)liberal. Daí que
a pós-modernidade é vista como a visão neoliberal. Só que
existe um imenso déficit social em nosso País, e, por isso,
temos que defender as instituições da modernidade contra
esse neoliberalismo pós-moderno. [...] Tudo isso acontece na

21
A IMPORTÂNCIA DA CÂMARA TÉCNICA PARA A
CORNÉLIO ALVES DE AZEVEDO NETO
DECISÃO JUDICIAL NAS DEMANDAS DA SAÚDE

contramão do que estabelece o ordenamento constitucional


brasileiro, que aponta para um Estado forte, intervencionista
e regulador, na esteira daquilo que, contemporaneamente, se
entende como Estado Democrático de Direito (STRECK,
2005, p. 24-25).

Diante da inercia, principalmente, do Poder Executivo (expresso em


todas as esferas do Pacto Federativo), foi se impondo, gradual e exponencial-
mente, ao Poder Judiciário, que é o último “Guardião” da Constituição, a
tarefa de garantir àqueles que “batem às portas” da Justiça, o direito à saúde
que lhes é constitucionalmente assegurado.
Para se ter uma ideia, tramitavam, no início de 2011, segundo o CNJ,
mais de 240 mil processos judiciais nesta área e não seria temeroso estimar
que, hoje, tais ações passem de 300 mil (BRASIL, 20014).
Esta “judicialização da saúde”, não obstante tenha permitido a efetiva-
ção dos direitos fundamentais de milhares de cidadãos, não deve ser encarada
como sintoma benéfico e exige dos julgadores, cada vez mais, a ponderação
entre a coletividade e o indivíduo, na medida em que, um indiscriminado
protagonismo judicial poderá levar a um engessamento das políticas públi-
cas relativas à saúde que poderiam beneficiar uma maior gama de pessoas,
inclusive aquelas que, por inúmeros motivos, não puderam buscar seu direito
pelas vias judiciais.
Somente em São Paulo, estado mais rico e povoado da Federação, a
Secretaria de Estado da Saúde gastou, em 2007, cerca de R$ 400 milhões
para atender a 8 mil ações judiciais que determinavam a compra de medica-
mentos e produtos diversos relacionados à saúde. Em 2008, este valor quase
dobrou, chegando à marca de R$ 700 milhões, para 25 mil processos (O
ESTADO..., 2011). É insofismável, pois, que, neste ritmo, a judicialização
da saúde, que já causa certo desarranjo no orçamento público, inviabilize
políticas de alcance coletivo, como a farmácia básica.
A solução é, portanto, dotar os Magistrados do conhecimento téc-
nico necessário à prestação jurisdicional que mais se coadune com o universo
de demandas sociais ligadas à saúde, por meio do acesso a corpos técnicos,

22
A IMPORTÂNCIA DA CÂMARA TÉCNICA PARA A
CORNÉLIO ALVES DE AZEVEDO NETO
DECISÃO JUDICIAL NAS DEMANDAS DA SAÚDE

que analisem se a pretensão levada ao Poder Judiciário é, do ponto de vista


médico/farmacêutico, a única alternativa possível e/ou, principalmente, se
há algum instrumento igualmente eficaz e menos oneroso ao Poder Público.
Diga-se, oportunamente, que não é nova a ideia de que um ente,
alheio ao processo, auxilie o Poder Judiciário na tomada das decisões, escla-
recendo matérias demasiadamente técnicas ou, simplesmente, subsidiando
o magistrado com um entendimento sob a perspectiva de outra área do
conhecimento.
Nesta senda, as Câmaras Técnicas da Saúde teriam, a exemplo dos
amici curiae atuantes no âmbito do Pretório Excelso, a natureza de “cola-
borador informal das partes, como base de aperfeiçoamento do processo”4.
Como se trata de um mecanismo relativamente recente, vindo pas-
sar a integrar recomendações do CNJ a partir do ano de 2010, ainda não
se chegou a uma sintonia fina no que toca a composição de tais Câmaras,
nem de que forma elas poderiam dar maior contribuição.
É cediço, contudo, que devem atuar nas causas que envolvam medi-
camentos, próteses e instrumentos médicos de qualquer tipo e, ainda, nas
que tratem de intervenções cirúrgicas ou tratamentos.
Serviriam, pois, de instância consultiva, esclarecendo ao magistrado
se o medicamento, prótese ou procedimento requerido pelo demandante
já consta na matriz de responsabilidade dos entes demandados e, em caso
negativo, se têm correspondentes igualmente eficazes e mais baratos ou,
ainda, se são admitidos pelos órgãos técnicos da área respectiva como meio
reconhecidamente apto para garantir a restauração/manutenção da saúde
do requerente.
Imperativo ressaltar que sua atuação deve pautar-se por critérios exclu-
sivamente médicos/farmacológicos, não havendo espaço, portanto, para teses
jurídicas, como, por exemplo, a reserva do possível.
Além desta função primordial, se poderia avançar ao ponto de tornar
as Câmaras uma espécie de segunda “porta de entrada” para a prestação posi-

4 Permanece até os dias de hoje a definição de amicus curiae dada pelo Min. Celso de Mello, na ADIn nº 748 AgR/
RS, em 18 de novembro de 1994 (BRASIL, 1994).

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A IMPORTÂNCIA DA CÂMARA TÉCNICA PARA A
CORNÉLIO ALVES DE AZEVEDO NETO
DECISÃO JUDICIAL NAS DEMANDAS DA SAÚDE

tiva do Estado, como, por exemplo, viabilizar junto ao ente demandado o


atendimento do pleito na seara administrativa. Sugere-se, nesta senda, que
sejam tais corpos técnicos compostos por profissionais da medicina, farma-
cologia, enfermagem e, pelo menos no número de um, do direito, a fim de
promover a interação entre o Judiciário e o Executivo e, ainda, evitar que
os pareceres técnicos se revelem tão ou mais obscuros aos Juízes quanto os
documentos médicos colacionados pelas partes.
Mesmo que não se atinja, num primeiro momento, a composição e
atribuições ideais, tratam-se estas de questões menores, que podem ser supe-
radas com o tempo, sendo certo que a implementação desta modalidade
de amicus curiae, no 1º Grau, representará gigante avanço para a jurisdi-
ção brasileira.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Brasil tem mais de 240 mil


processos na área de Saúde. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/
noticias/cnj/14096-brasil-tem-mais-de-240-mil-processos-na-area-de-
saude>. Acesso em: 08 jun. 2014.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa


do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 01 jan. 2013.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ag. Reg. na Ação Direta de


Inconstitucionalidade: ADI-AgR 748 RS. 01/08/1994. Relator
Min. Celso de Mello. Disponível em: <http://stf.jusbrasil.com.br/
jurisprudencia/747786/agregna-acao-direta-de-inconstitucionalidade-adi-
agr-748-rs>. Acesso em: 8 jun. 2014.

COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos


humanos. São Paulo: Saraiva, 2007.

24
A IMPORTÂNCIA DA CÂMARA TÉCNICA PARA A
CORNÉLIO ALVES DE AZEVEDO NETO
DECISÃO JUDICIAL NAS DEMANDAS DA SAÚDE

LEIVAS, Paulo Gilberto Cogo. Teoria dos direitos fundamentais


sociais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.

O ESTADO DE SÃO PAULO. Em 4 anos, SP duplica gastos


com remédios por determinação judicial. Clipping – 3/12/2011.
Disponível em <http://clippingmp.planejamento.gov.br/cadastros/
noticias/2011/12/3/em-4-anos-sp-duplica-gastos-com-remedios-por-
determinacao-judicial> Acesso em: 08 jun. 2014.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo. 27.


ed. São Paulo: Malheiros, 2006.

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma


exploração hermenêutica da construção do Direito. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2005.

25
A QUESTÃO DA REINCIDÊNCIA

Keity Mara Ferreira de Souza e Saboya1

RESUMO: Com a virada paradigmática após a Segunda Grande Guerra, o Estado (re)toma
seu papel na concretização de direitos, estabelecendo novos marcos em termos de valores
jurídicos. Alinhado a essas mudanças, o Estado Democrático de Direito tem por finalidade
a garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos, concretizados principalmente pela força
normativa da Constituição. Neste contexto, o presente trabalho tem por objetivo a análise
da decisão proferida no Recurso Extraordinário nº 453.000 do Supremo Tribunal Federal,
que reconheceu a constitucionalidade da aplicação da reincidência como agravante da pena
em processos criminais. Sob esse viés, questionar-se-á se a referida decisão reflete o prin-
cípio da individualização da pena e da culpabilidade, utilizando-se, para tanto, conceitos
doutrinários e os novos aspectos da hermenêutica e aplicação do direito.

Palavras-chave: Estado Democrático de Direito. Reincidência. Secularização. Garantismo.


Culpabilidade. Individualização da pena.

1 ASPECTOS INTRODUTÓRIOS: EPICENTRO DOS DIREITOS


FUNDAMENTAIS

Os tempos presentes são de profundas mudanças, facilmente perce-


bidas, principalmente quando em contraste com as dos séculos anteriores2.
E no campo jurídico não poderia ser diferente. A magnitude das alterações

1 Doutora em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestre e Bacharel em Direito pela
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Foi pesquisadora visitante na Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG), no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Strafrech (MPI) e na Uni-
versidad de Castilla-La Mancha (UCLM), nestes com bolsas do MPI e CAPES (PDEE). Professora adjunta de
Direito Penal e Direito Processual Penal na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Juíza de
Direito do Poder Judiciário do Rio Grande do Norte.
2 Para Bauman, a sociedade dos tempos atuais desmonta a realidade herdada, sem perspectiva de nenhuma per-
manência. Por isso sugere “a metáfora da liquidez para caracterizar o estado [hodierno] da sociedade moderna,
que, como os líquidos, se caracteriza por uma incapacidade de manter a forma”. “Nossas instituições, quadros de
referência, estilos de vida, crenças e convicções mudam antes que tenham tempo de se solidificar em costumes,
hábitos e verdades auto-evidentes”. Disponível em: <http://www.fronteirasdopensamento.com.br/portal/entrev-
istas/a-sociedade-liquida-entrevista-com-zygmunt-bauman>. Acesso em: 13 ago. 2011. Ainda sobre o assunto:
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

27
A QUESTÃO DA REINCIDÊNCIA KEITY MARA FERREIRA DE SOUZA E SABOYA

estabelecidas no final da primeira metade do século XX é bem significativa.


O vendaval ético representado pelo retorno do bárbaro, na Segunda Grande
Guerra, levou o Ocidente a estabelecer novos marcos em termos de valores
jurídicos, consubstanciados na Declaração Universal dos Direitos Huma-
nos, de 1948 e contemporânea ao surgimento do sistema da Organização
das Nações Unidas (ONU).
Com essa viragem paradigmática, o Estado (re)toma seu papel essencial
na concretização de direitos. O juspositivismo, até então reinante, é tomado
com a expressão de um risco – dos regimes totalitários e desumanos – e sua
crítica elevada em potência e em tom, de modo a buscar-se alternativas teó-
ricas para sua insuficiência ética.
Volta à baila a necessária conexão entre direito e valores, emergindo-se
um novo marco, com consistentes aportes dos jusfilósofos constitucionalis-
tas, cujo contributo mais emblemático corresponde à reação hermenêutica
ao método de aplicação e de interpretação característicos dos juspositivitas.
Nesse novo cenário – conhecido pela expressão pós-positivismo –, evoca-
-se a inclusão de princípios e argumentos axiológicos, dando-se primazia às
influências da Filosofia do Direito e menos repercussão aos recursos da téc-
nica e da ciência, o que lhe concede características mais universais, fazendo
prevalecer padrões de entendimento que suplantam o âmbito de um direito
nacional.
A respeito do movimento pós-positivista, percucientes são as obser-
vações de Barroso (2005):

[…] O fracasso político do positivismo abriram caminho para


um conjunto amplo e ainda inacabado de reflexões acerca do
Direito, sua função social e sua interpretação. O pós-positi-
vismo busca ir além da legalidade estrita, mas não despreza
o direito posto; procura empreender uma leitura moral do
Direito, mas sem recorrer a categorias metafísicas. A interpre-
tação e aplicação do ordenamento jurídico hão de ser inspi-
radas por uma teoria de justiça, mas não podem comportar
voluntarismos ou personalismos, sobretudo os judiciais. No
conjunto de ideias ricas e heterogêneas que procuram abrigo

28
KEITY MARA FERREIRA DE SOUZA E SABOYA A QUESTÃO DA REINCIDÊNCIA

neste paradigma em construção incluem-se a atribuição de


normatividade aos princípios e a definição de suas relações
com valores e regras; a reabilitação da razão prática e da ar-
gumentação jurídica; a formação de uma nova hermenêutica
constitucional; e o desenvolvimento de uma teoria dos direitos
fundamentais edificada sobre o fundamento da dignidade
humana. Nesse ambiente, promove-se uma reaproximação
entre o Direito e a filosofia3.

Daí afirmar-se que, nos tempos presentes, exige-se um olhar mais


amplo sobre as questões humanísticas, abandonando-se as disciplinaridades
estanques, tão características do século XIX e, de certa forma, dos pensa-
mentos fragmentados peculiares do século XX.
Alinhadas a essas significativas mudanças surge uma nova concep-
ção de Estado, por muitos denominada Estado democrático de Direito,
cuja finalidade precípua é a garantia dos direitos fundamentais dos cida-
dãos, encontrando-se seus poderes limitados por deveres jurídicos, relativos
não apenas à forma, mas também aos conteúdos de seu exercício. Assim, ao
mesmo tempo em que a lei é condicionante, uma vez que determina o agir
dos poderes públicos, é igualmente condicionada, pois esse agir é direcio-
nado à efetivação dos direitos fundamentais.
Isso porque todas as feições jurídicas estão alicerçadas na dimen-
são material da Constituição, como estatuto básico do sistema de direitos
fundamentais. E mesmo sendo difíceis de ser sintetizados, hão de ser compre-
endidas como direitos fundamentais todas as posições jurídicas concernentes
às pessoas, que foram, por seu conteúdo e importância (fundamentalidade,
em sentido material), integradas ao texto da Constituição e, portanto, reti-
radas da esfera de disponibilidade dos poderes constituídos. Igualmente, são
dessa natureza aquelas posições que, por seu conteúdo e significado, possam

3 Ainda como diz Barroso, “a ideia de constitucionalização do Direito aqui explorada está associada a um efeito
expansivo das normas constitucionais, cujo conteúdo material e axiológico se irradia, com força normativa, por
todo o sistema jurídico. Os valores, os fins públicos e os comportamentos contemplados nos princípios e regras
da Constituição passam a condicionar a validade e o sentido de todas as normas do direito infraconstitucional.
Como intuitivo, a constitucionalização repercute sobre a atuação dos três Poderes, inclusive e notadamente nas
suas relações com os particulares”. (BARROSO, 2005). Também sobre a matéria, ver Binenbojm (2006, p. 26-ss).

29
A QUESTÃO DA REINCIDÊNCIA KEITY MARA FERREIRA DE SOUZA E SABOYA

ser equiparadas aos direitos fundamentais, agregando-se a um rol de direitos


que tenham fundamento numa Constituição material, existindo, ou não,
assento na Constituição positivada (SARLET, 2003, p. 85).
Nesse ambiente de compreensão é que também merece realce o
atributo bidimensional dos direitos fundamentais, pois constituem, simul-
taneamente, tanto fonte de direitos subjetivos - que podem ser reclamados
em juízo -, quanto a base fundamental da ordem jurídica, que se expande
para todo o direito positivo (SAMPAIO, 2004, p. 254).
Ainda a respeito da centralidade dos direitos fundamentais, destaca-se
que para sua concretização, exige-se, além da força normativa da Constitui-
ção e da expansão da jurisdição constitucional, o desenvolvimento de uma
nova dogmática da interpretação.
É, pois, nesse contexto que o presente trabalho se propõe a analisar a
decisão do Supremo Tribunal Federal, tomada no julgamento do Recurso
Extraordinário nº 453.000, no qual se reconheceu a constitucionalidade da
aplicação da reincidência como agravante da pena em processos criminais
(BRASIL, 2013c).
Pretende-se aferir se a solução adotada pelo Supremo Tribunal Fede-
ral sobre a questão é a que melhor reflete o princípio da individualização da
pena e, consequentemente, do princípio da culpabilidade, tendo como base
os novos aspectos da hermenêutica e aplicação do direito.

2 A CONFORMAÇÃO CONSTITUCIONAL DA REINCIDÊNCIA


NA INTERPRETAÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

De início, registra-se que o conceito de reincidência varia de acordo


com a moldura legal a ela atribuída nos ordenamentos jurídicos que a admi-
tem, podendo, todavia, ser sintetizado, em termos gerais, como o efeito
jurídico mais grave ou que implique mais privação de direitos, proveniente
da circunstância de um sujeito ter sido anteriormente condenado por outro
delito.
Acerca da matéria, o Código Penal brasileiro, em seu art. 63, dispõe que
ocorre a reincidência “quando o agente comete novo crime, depois de transi-

30
KEITY MARA FERREIRA DE SOUZA E SABOYA A QUESTÃO DA REINCIDÊNCIA

tar em julgado a sentença que, no País ou no estrangeiro, o tenha condenado


por crime anterior”, prevendo o inciso I, do art. 61 do mesmo diploma legal,
a agravação da pena por tal circunstância (BRASIL, 1984).
A propósito desses dispositivos legais, para a jurisprudência brasileira
“o recrudescimento da pena imposta ao paciente resulta de sua opção por
continuar a delinquir”4 ou pela “maior reprovabilidade à conduta de quem
reitera a prática infracional, após o trânsito em julgado de sentença condena-
tória anterior”5.
Recentemente, o Supremo Tribunal Federal reconheceu que essa maté-
ria apresentava repercussão geral6, havendo declarado, em julgamento afeto ao
Plenário, a constitucionalidade da reincidência como agravante da pena, de
acordo com o princípio da individualização da pena e em face da maior repro-
vabilidade ao agente que reitera na prática delitiva. Além disso, por maioria,
foi autorizada aos Ministros a decisão de casos idênticos monocraticamente7.

4 “HABEAS CORPUS. DOSIMETRIA DA PENA. [...] A valoração da reincidência, na segunda fase do processo
judicial de dosimetria da pena, por si só, não configura bis in idem. De parelha com o mandamento constitucio-
nal de individualização da reprimenda penal (inciso XLVI do art. 5º da CF), tal agravante genérica repreende por
modo mais gravoso aquele que optou por continuar delinquindo” (BRASIL, 2010). No mesmo sentido: BRA-
SIL (2008).
5 “HABEAS CORPUS. [...]. OBRIGATORIEDADE DA CONSIDERAÇÃO DA CIRCUNSTÂNCIA AGRA-
VANTE DA REINCIDÊNCIA. RECONHECIMENTO DE MAIOR REPROVABILIDADE DA CONDUTA
DE QUEM REITERA NA PRÁTICA INFRACIONAL. PRECEDENTES. [...]. A tese de que a reincidência
acarreta dupla penalização pelo mesmo fato não encontra respaldo na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal
e desta Corte, porquanto é uníssono o entendimento de que a aplicação da agravante no momento da individu-
alização da pena, não importa em bis in idem, mas apenas reconhece maior reprovabilidade à conduta de quem
reitera a prática infracional, após o trânsito em julgado de sentença condenatória anterior” (BRASIL, 2011).
6 Instrumento processual inserido na Constituição Federal de 1988, cujo objetivo é possibilitar que o Supremo Tri-
bunal Federal selecione os Recursos Extraordinários que irá analisar, de acordo com critérios de relevância jurídica,
política, social ou econômica. Uma vez constatada a existência de repercussão geral, o STF analisa o mérito da
questão e a decisão proveniente dessa análise será aplicada posteriormente pelas instâncias inferiores, em casos
idênticos (BRASIL. 2013a).
7 “É constitucional a aplicação da reincidência como agravante da pena em processos criminais (CP, art. 61, I).
Essa a conclusão do Plenário ao desprover recurso extraordinário em que alegado que o instituto configuraria bis
in idem, bem como ofenderia os princípios da proporcionalidade e da individualização da pena. Registrou-se que
as repercussões legais da reincidência seriam múltiplas, não restritas ao agravamento da pena” (BRASIL, 2013c).

31
A QUESTÃO DA REINCIDÊNCIA KEITY MARA FERREIRA DE SOUZA E SABOYA

A despeito do acórdão desse julgamento ainda não ter sido publicado (RE
453.000/RS), por já fundada em tal precedente, traz-se à colação a decisão profe-
rida no HC 93815/RS, da relatoria do Ministro Gilmar Mendes, assim ementada:

Habeas corpus. Roubo. Condenação. 2. Pedido de afastamen-


to da reincidência, ao argumento de inconstitucionalidade. Bis
in idem. 3. Reconhecida a constitucionalidade da reincidência
como agravante da pena (RE 453.000/RS). 4. O aumento
pela reincidência está de acordo com o princípio da individu-
alização da pena. Maior reprovabilidade ao agente que reitera
na prática delitiva. 5. Ordem denegada (BRASIL, 2013c).

Dos argumentos invocados nessa última decisão, a fim de subsidiar o


debate no próximo item, insta a transcrição dos seguintes trechos:

[…] Se pode justificar a exacerbação da pena, ao segundo crime,


pela maior culpabilidade do agente, pela maior reprovabilidade
que sobre ele recai em razão de sua vontade rebelde particu-
larmente intensa e persistente, que resistiu a ação inibidora da
ameaça de sanção penal e mesmo da advertência pessoal, mais se-
vera, da condenação afligida, que para um homem normalmente
ajustável à ordem de Direito, isto é, de temperamento e vontade
menos decisivamente adversos aos impeditivos da norma, seria
estímulo suficiente para afastá-lo da prática de novo crime.

A reincidência é instituto que visa a tratar de forma desigual os desi-


guais, realizando o princípio constitucional da individualização da pena.
[…]. Assim, ao agravar a pena do indivíduo reincidente, o magistrado
não o está punindo duas vezes pelo mesmo fato e, ao fazê-lo, com base
na condição subjetiva que a reincidência revela, não está desviando-se do
comando constitucional. Ao contrário, o juiz do caso, ao assim proceder,
estará individualizando a pena (CF, art. 5º, XLVI), atribuindo maior grau
de reprovabilidade àquele que já foi repreendido pela Justiça, em razão da
prática de fato criminoso. Pune-se o contumaz, o recalcitrante, o repetente
de forma mais severa que o novel criminoso, o eventual delinquente.

32
KEITY MARA FERREIRA DE SOUZA E SABOYA A QUESTÃO DA REINCIDÊNCIA

[…] O agravamento da pena em razão da reincidência, portan-


to, não se confunde com dupla punição em relação ao crime
anterior e, tampouco, com ‘maior juízo de periculosidade’ do
sujeito. Há, sim, uma maior reprovabilidade de sua conduta
ao violar a lei penal de forma reiterada. Pelo contrário, até por
uma questão de justiça, não seria proporcional que o criminoso
primário receba, pelo mesmo fato, idêntica pena em relação
àquele que é contumaz violador da lei penal (BRASIL, 2013c).

3 DECOMPOSIÇÃO DAS QUESTÕES ENVOLVIDAS

Considerando-se que o tema envolve alguns princípios, que, por sua


própria natureza apresentam indeterminação semântica, exige-se do intérprete
a adoção de novas técnicas de interpretação, como forma, entre outras, de ser
assegurado, no maior grau possível, a essencialidade dos direitos fundamentais.
No caso discutido, utilizou-se o Supremo Tribunal Federal, como dimen-
são hermenêutica, a interpretação conforme a constituição. E, em que pese esse
modelo ser direcionado mais diretamente a uma interpretação da lei, não deixa
de ser uma forma de interpretação da constituição, pois o parâmetro utilizado,
para tanto, é a constituição. Com efeito, definindo-se a constituição como para-
digma, ainda que como forma de ser interpretada a lei, não há como escapar de
um mínimo de interpretação da própria constituição.
Por isso que, como bem destacado por Virgílio Afonso da Silva, quando
se fala em interpretação conforme a constituição, “quer-se com isso dizer que,
quando há mais de uma interpretação possível para um dispositivo legal, deve
ser dada preferência àquela que seja conforme a constituição”8.

8 Ainda sobre o tema, interessante a seguinte a crítica: “A interpretação conforme a constituição desempenha uma
função de sutil legitimação da centralização da tarefa interpretativa – não só da constituição, mas de todas as leis
– nas mãos do Supremo Tribunal Federal. […]. Basta que o Supremo Tribunal Federal dê o nome de interpre-
tação conforme a constituição a qualquer esclarecimento de significado de qualquer termo de qualquer dispositivo
legal, na forma como já vista acima, para que qualquer interpretação divergente, ainda que seja também no sen-
tido de manter a constitucionalidade de uma lei, torne-se impossível. Com isso, o Supremo Tribunal Federal não
somente desempenha sua função de guardião da constituição de forma cada vez mais centralizada, como passa a
ter a possibilidade quase que ilimitada de excluir qualquer ‘desobediência’ interpretativa por parte de quase todos
os órgãos estatais. Para tanto, a interpretação conforme a constituição cai como uma luva” (SILVA, 2013).

33
A QUESTÃO DA REINCIDÊNCIA KEITY MARA FERREIRA DE SOUZA E SABOYA

No caso concreto, ao ser discutida a recepção da agravação da pena prevista


no Código Penal pela ordem constitucional vigente, entende-se que o Supremo
Tribunal Federal não possibilitou a concreção do princípio da individualização
da pena e, mais especificamente, do princípio da culpabilidade.
É que, da leitura de trechos do acórdão relativo ao HC 93815/RS acima
citados, verifica-se certa dissociação com esses princípios, além da utilização de
perspectivas pensadas em contextos com déficit democrático, como, por exem-
plo, os escólios positivistas do jurista Aníbal Bruno, sem a necessária filtragem
constitucional.
Na análise em comento, a Corte não poderia ter se esquecido do cariz
ditatorial do Código Penal brasileiro de 1940, que, a despeito da reforma da
sua parte geral em 1984 e das modificações pontuais posteriores, ainda reflete
marcantemente a presença de ideias autoritárias, nas quais a figura do Estado
ocupa posições de privilégios frente ao cidadão.
Até em cumprimento ao princípio da secularização, também não poderia
ter deixado de compreender o princípio da culpabilidade como a responsabili-
dade pelo fato e fundado na capacidade de autocondução de impulsos psíquicos
e na resultante dirigibilidade normativa de um sujeito em determinada situa-
ção, ou seja, no que diz respeito exclusivamente à atitude do autor frente à ação
típica e antijurídica cometida9.
Daí não se aceitar o caráter moralizante costumeiramente atribuído
– intrínseca ou extrinsecamente – à reincidência e, infelizmente, validado
pelo Supremo Tribunal Federal. A injusta invasão no foro íntimo do acusado
não mais se coaduna com um direito penal de um Estado Democrático de
Direito, de ultima ratio, fragmentário e subsidiário, fundado na culpabili-
dade pelo fato, que se limita a castigar os indivíduos que lesionam ou põem

9 A culpabilidade não fundamenta a necessidade de pena, mas tão somente limita sua admissibilidade, reconhe-
cendo Roxin que, apesar de seu conceito ser controvertido, não há como renunciar a ele, por representar as balizas
da pena. E, por culpabilidade, entende Roxin, como citado acima, que seria a capacidade de autocondução de
impulsos psíquicos e a resultante dirigibilidade normativa de um sujeito em determinada situação. Desse modo,
atua culposamente quem dolosa ou imprudentemente realiza um injusto jurídico-penal, em que pese na con-
creta situação de decisão poder atuar de maneira diversa. Essa seria a culpabilidade de fundamentação da pena,
informando a culpabilidade de medida da pena a gradação desses fatores, além do grau da lesão ao bem jurídico,
a atitude interna do sujeito ante o fato, dentre outras circunstâncias. (ROXIN, 1986, p. 681-688).

34
KEITY MARA FERREIRA DE SOUZA E SABOYA A QUESTÃO DA REINCIDÊNCIA

em perigo bens jurídicos de extrema importância, e não em mera atitude


interna do agente que não afeta nem a forma, tampouco o eventual dano
produzido (MIR PUIG, 1974, p. 539).
Na medição da pena, somente justifica-se um plus de reprovabilidade
quando fundado na conduta que se está a julgar, segundo as valorações do
fato em concreto, não em razão da qualidade de ser o agente reincidente
ou em atenção ao comportamento delitivo anterior do condenado, sendo
vedadas reprovações éticas ou morais contra o acusado. Pensar ao contrário
seria permitir a punição pelo que se é e não pelo que se fez.
E é por isso que se entende que a agravação da pena pela reincidência,
iure et de iure,10 levando-se em consideração apenas a repetição material de
infrações, é incompatível com o princípio da culpabilidade. Sendo também
incompatível com o princípio da individualização da pena, pois o julga-
dor, de forma obrigatória e automática, fica adstrito à consideração de uma
hipótese formal – o trânsito em julgado de condenação criminal anterior –
muitas vezes irrelevante para a gradação da pena do fato que se está a julgar.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS: SOLUÇÃO QUE MELHOR


REFLETE OS PRINCÍPIO DA INDIVIDUALIZAÇÃO DA PENA E
O PRINCÍPIO DA CULPABILIDADE

Na tarefa de (re)composição do princípio da culpabilidade no direito


brasileiro, sugere-se uma filtragem hermenêutica, fundada em referenciais
axiológicos não apenas vigentes, mas também válidos. E, desse modo, devem
ser revisadas as premissas teórico-dogmáticas no plano interno acerca da
aplicação do princípio da culpabilidade, com uma adequada interpretação
dos seus enunciados, como forma de salvaguardar tão precioso direito fun-
damental.
Isso porque, conforme acima aduzido, há indicações de que o plus de
gravidade da pena pela reiteração criminosa traspassa o direito penal fundado
na culpabilidade do fato para um direito penal que julga a conduta de vida

10 Presunção de pleno e absoluto direito, que não admite ser refutada ou não admite prova em contrário.

35
A QUESTÃO DA REINCIDÊNCIA KEITY MARA FERREIRA DE SOUZA E SABOYA

do agente, consistindo a agravante da reincidência em uma autêntica culpa-


bilidade pelo caráter do condenado ou por seu modo de condução de vida.
E a melhor solução, portanto, a que mais concretizaria os princípios de
um direito penal de garantias, a mais compatível com a tessitura constitucio-
nal, seria pela não conformação da agravação obrigatória pela reincidência.
É que, como bem decidido pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul,
o acusado reincidente nem sempre é o mais perverso, mais culpável, mais
perigoso, em confronto com o acusado primário (BRASIL, 2000).

REFERÊNCIAS

BARROSO, Luis Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização


do Direito. O triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. Jus
Navigandi, Teresina, ano 9, n. 851, 1 nov. 2005. Disponível em: <http://
jus2.uol.com.br>. Acesso em: 04 abr. 2010.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Tradução de Plínio


Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo:


direitos fundamentais, democracia e constitucionalização. Rio de Janeiro:
Renovar, 2006.

BRASIL. Declaração Universal dos Direitos Humanos: Adotada e


proclamada pela resolução 217 A (III) da Assembleia Geral das Nações
Unidas em 10 de dezembro de 1948. Brasília, 1998. Disponível em:
<http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001394/139423por.pdf>.
Acesso em: 13 maio 2013.

BRASIL. Lei nº 7.209, de 11 de julho de 1984: Altera dispositivos


do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal,
e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/leis/1980-1988/l7209.htm>. Acesso em: 13 maio 2013.

36
KEITY MARA FERREIRA DE SOUZA E SABOYA A QUESTÃO DA REINCIDÊNCIA

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC 154.244/RS, Rel. Ministro


Napoleão Nunes Maia Filho, 5ª Turma, julgado em: 26 abr. 2011,
DJe: 23 maio 2011. Disponível em: <http://stj.jusbrasil.com.br/
jurisprudencia/6516543/habeas-corpus-hc-154244 >. Acesso em: 13 maio
2013.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC 94.361/RS, Rel. Min.


Gilmar Mendes, 2ª Turma, julgado em: 04 abr. 2013. Disponível
em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoPeca.
asp?id=137839367&tipoApp=.pdf.>. Acesso em: 13 maio 2013.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 93194/RS, 2ª Turma, Rel. Min.


Eros Grau, DJU: 25 abr. 2008. Disponível em: <http://stf.jusbrasil.com.
br/jurisprudencia/754391/habeas-corpus-hc-93194-rs >. Acesso em: 13
maio 2013.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <http://www.stf.


gov.br>. Acesso em: 30 abr. 2013.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 93815. Rel. Min. Gilmar


Mendes, Tribunal Pleno, julgado em 04/04/2013, Acórdão Eletrônico
DJe-083. Divulgado 03.05.2013. Publicado 06.05.2013. Disponível em:
<http://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/23275710/habeas-corpus-hc-
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BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 96871. Rel. Min. Ayres Britto.


2ª Turma. Julgado 24/08/2010. DJe-190. DJU: 25 abr. 2008. Disponível
em: <http://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/16548900/habeas-corpus-
hc-96871-rs>. Acesso em: 30 abr. 2013.

37
A QUESTÃO DA REINCIDÊNCIA KEITY MARA FERREIRA DE SOUZA E SABOYA

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 453000/RS. Rel. Min.


Marco Aurélio, Julgado 4/4/2013. Informativo STF. Brasília, 1º a 5 de
abril de 2013 – Nº 700. Disponível em: <http://stf.jusbrasil.com.br/
jurisprudencia/24806856/recurso-extraordinario-re-453000-rs-stf>.
Acesso em: 30 abr. 2013.

BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação nº


70001014810. Sexta Câmara Criminal, Rel. Des. Sylvio Baptista Neto.
Julgado 08/06/00.

MIR PUIG, Santiago. La reincidencia en el Código Penal. Barcelona:


Bosch, 1974.

ROXIN, Claus. Que queda la culpabilidad en derecho penal?:


Cuardenos de Politica Criminal, 1986.

SAMPAIO, José Adércio Leite (coord.). Jurisdição constitucional e


direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 3. ed.


Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.

SILVA, Virgílio Afonso. Interpretação conforme a constituição: entre


a trivialidade e a centralização judicial. Disponível em: <http://direitogv.
fgv.br/sites/direitogv.fgv.br/files/rdgv_03_p191_210.pdf>. Acesso em: 13
maio 2013.

38
A QUESTÃO DA (IN)DEPENDÊNCIA DAS
INSTÂNCIAS ADMINISTRATIVA E PENAL

Keity Mara Ferreira de Souza e Saboya1

RESUMO: O presente paper tem por objetivo a análise da suposta (in)dependência das
instâncias administrativa e penal, no que se refere à vinculação do exame administrativo na
apuração criminal. Partindo-se do conceito de que o direito penal e o direito administra-
tivo sancionador são extensões do ius puniendi estatal, proceder-se-á ao exame de reflexões
invocadas no julgamento do Habeas Corpus 245.916/RJ (STJ), que considerou a decisão
administrativa como critério decisivo para a subsunção de referido evento penal. Sob esse
viés, questionar-se-á se a decisão administrativa, acerca da licitude de determinada hipó-
tese, tem o condão de interferir na criminalização, ou não, desse mesmo recorte de fato,
quando em exame judicial, utilizando-se, para tanto, da aplicação de princípios basilares
do direito penal e de conceitos doutrinários sobre o assunto invocado.

Palavras-chave: Comunicabilidade. Instâncias. Exame administrativo. Apuração crimi-


nal. Vinculação.

1 INTRODUÇÃO

A despeito da remansosa ­posição dos tribunais brasileiros, no sentido


da independência das esferas penal e administrativa, não se deve olvidar de
que o direito penal e o direito administrativo sancionador são extensões de
um mesmo – e único – poder imanente do Estado, o ius puniendi. Até por-
que, como destacado por Delmas-Marty e Teitgen-Colly (1992, p. 7), nunca
foi monopólio dos juízes o exercício do ius puniendi, da mesma forma que o
direito penal nunca encerrou a integralidade das sanções com caráter puni-
tivo. Aliás, já observara Rosseau (2012, p. 100) que as leis penais “no fundo,
são menos uma espécie particular de leis do que a sanção de todas as outras”.
1 Doutora em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestre e Bacharel em Direito pela
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Foi pesquisadora visitante na Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG), no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Strafrech (MPI) e na Uni-
versidad de Castilla-La Mancha (UCLM), nestes com bolsas do MPI e CAPES (PDEE). Professora adjunta de
Direito Penal e Direito Processual Penal na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Juíza de
Direito do Poder Judiciário do Rio Grande do Norte.

39
A QUESTÃO DA (IN)DEPENDÊNCIA DAS
KEITY MARA FERREIRA DE SOUZA E SABOYA
INSTÂNCIAS ADMINISTRATIVA E PENAL

Nesse contexto pretende-se examinar acórdão do Superior Tribu-


nal de Justiça, que, apesar de insistir em não reconhecer a interface entre o
direito penal e o direito administrativo sancionador, ao afirmar que o exame
administrativo não vincula a apuração criminal, acabou por reconhecer a
comunicabilidade entre tais instâncias repressivas.
Assim, resumir-se-ão, em seguida, as principais reflexões invocadas
no julgamento do Habeas Corpus 245.916/RJ para, adiante, analisar-se se a
licitude administrativa de determinada hipótese há de interferir na crimi-
nalização ou não desse mesmo recorte de fato (BRASIL, 2013).

2 CASO JULGADO

Como acima referido, o Superior Tribunal de Justiça, por meio de sua


6ª Turma, no ano de 2013, julgou habeas corpus impetrado por Técio Lins
e Silva e outros, cuja conclusão restou ementada com os seguintes termos:

HABEAS CORPUS. CRIME CONTRA O SISTEMA


FINANCEIRO. GESTÃO FRAUDULENTA DE INSTI-
TUIÇÃO FINANCEIRA. CONDUTAS APRECIADAS
PELOS ÓRGÃOS TÉCNICOS. CONCLUSÃO PELA
INEXISTÊNCIA DE ILICITUDE OU DESVIO. TIPO
DO ART. 4º DA LEI N.º 7.492/86. PEÇA DE ACUSAÇÃO
QUE REPETE A ACUSAÇÃO ADMINISTRATIVA. AU-
SÊNCIA DE JUSTA CAUSA. NECESSIDADE DE COM-
PROVAÇÃO MÍNIMA DOS ATOS FRAUDULENTOS.
TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL.
1. A gênese do tipo penal contido no art. 4º da Lei n.º
7.492/86 pressupõe a existência de atos fraudulentos, por-
tanto, contrários às normas do mercado, que exponham a
risco o patrimônio da instituição financeira.
2. No caso, o julgamento do procedimento administrativo
demonstrou que os atos praticados pelos gestores da insti-
tuição financeira obedeceram à lógica do sistema de ações e
que, ao invés da imputação, não houve o deliberado prejuízo
conforme se apontou inicialmente.
3. Conquanto o exame administrativo não vincule a apuração

40
A QUESTÃO DA (IN)DEPENDÊNCIA DAS
KEITY MARA FERREIRA DE SOUZA E SABOYA
INSTÂNCIAS ADMINISTRATIVA E PENAL

criminal, mesmo assim resta evidente que, uma vez analisada


a conduta pelos órgãos técnicos, os quais comprovaram a
licitude dos atos, a denúncia deveria apontar circunstâncias
especiais para se ter como possível a prática de atos fraudu-
lentos a permitir o enquadramento do tipo penal do art. 4º
da Lei n.º 7.492/86.
4. Ordem concedida para trancar a ação penal n.º
2002,5101.533192- 7, em curso na 4ª Vara Federal Crimi-
nal da Seção Judiciária do Rio de Janeiro. (BRASIL, 2013).

De acordo com o que consta de tais autos, foi imputa aos pacientes
a prática do tipo incriminador previsto no art. 4º da Lei n.º 7.492/1986
(BRASIL, 1986), porque, enquanto representantes do Banco Meridional
S.A., realizaram, no ano de 1999, operações lesivas ao patrimônio da insti-
tuição, de modo a configurar, segundo a peça acusatória, hipótese de gestão
fraudulenta.
E para a relatora do caso, a regularidade das condutas imputadas aos
pacientes por parte da Comissão de Valores Mobiliários, Receita Federal e,
ainda, pelo Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional, implicou
no reconhecimento de que os fatos descritos na denúncia não caracteriza-
vam nenhum tipo de ilegalidade diante das normas que regem o mercado
financeiro. Desse modo não se haveria de admitir o enquadramento deles
no tipo penal do art. 4º da Lei n.º 7.492/1986.

3 OS ACERTOS E DESACERTOS

Inegável o acerto da decisão ao revogar o entendimento do Tribunal


Regional Federal da 2ª Região proferido no HC n.º 2012.02.01.002017-
0. segundo o qual:

[…] Embora a incerteza seja própria do mercado de deri-


vativos, a negociação de determinadas ações entre empre-
sas de um mesmo grupo com aparente subpreço, aliada à
posterior alienação a terceiro por valores muito superiores
à cotação, tudo em curto período de tempo, lança dúvidas

41
A QUESTÃO DA (IN)DEPENDÊNCIA DAS
KEITY MARA FERREIRA DE SOUZA E SABOYA
INSTÂNCIAS ADMINISTRATIVA E PENAL

sobre a transparência e a lisura das operações, situando-se


no âmbito de proteção da norma penal do art. 4º da Lei n°
7.492/86 (BRASIL, 2012).

Com efeito, restou evidente a ausência das condutas criminosas no


caso concreto. Isso porque a decisão administrativa declaratória da lisura das
condutas representou, in casu, critério decisivo para a subsunção de refe-
rido evento penal, “máxime porque o resultado da atuação dos autores dos
fatos foi abonado por quem, de fato e de direito, regula, fiscaliza e aprecia
as relações do mercado financeiro” (BRASIL, 2013).
Importante também mencionar que, como bem reconheceu a Minis-
tra Maria Thereza de Assis Moura, “como considerar a figuração dos crimes
em relação aos mesmos fatos enfocados pela discussão administrativa, os
quais não foram tidos como antijurídicos?” (BRASIL, 2013).
A propósito, destaca-se a doutrina de Nelson Hungria, acolhedora
desse mesmo viés integrativo. Para ele a ilicitude jurídica é uma só, do mesmo
modo que um só, em sua essência, é o dever jurídico, razão pela qual não
se haveria de falar em um ilícito administrativo ontologicamente distinto
de um ilícito penal.2
Afirmava Nelson Hungria que a única diferença que poderia ser reco-
nhecida entre as duas espécies de ilicitude é de quantidade ou de grau; na
maior ou menor gravidade de uma em cotejo com a outra, até porque “o
ilícito administrativo é um minus em relação ao ilícito penal” (HUNGRIA,
1995, p. 17).
Na verdade, isso se dá em razão da ultima ratio de atuação do direito
penal frente aos demais ramos do direito, pois o fato de uma mesma con-
duta – ou parte dela – encontrar-se inserta tanto em tipo administrativo
como em tipo penal, ou seja, em normatividades distintas, desde que não

2 “A identidade essencial entre o delito administrativo e o delito penal é atestada pelo próprio fato histórico, aliás
reconhecido por GOLDSCHMIDT, de que existem poucos delitos penais que não tenham passado pelo estádio
do delito administrativo” (HUNGRIA, 1995, p. 17).

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A QUESTÃO DA (IN)DEPENDÊNCIA DAS
KEITY MARA FERREIRA DE SOUZA E SABOYA
INSTÂNCIAS ADMINISTRATIVA E PENAL

se trate de eventual tutela de bens jurídicos diversos, há de ser aplicada ape-


nas nas situações mais graves, em razão do princípio da subsidiariedade3.
Entretanto, não se pode deixar de registrar o desacerto da decisão
tomada pelo Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do HC 245.916/
RJ. É que, apesar de ter-se reconhecido a possibilidade de intromissão do
julgamento da via administrativa na hipótese ora analisada, a Ministra Maria
Thereza de Assis Moura insistiu em repetir que estava decidindo a questão
fundada na ausência de justa causa para o regular exercício da ação penal
e não na possibilidade de permeabilidade de decisões da esfera administra-
tiva na esfera penal.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Finalizando-se o breve estudo do caso julgado pelo Superior Tribunal


de Justiça, por meio de sua 6ª Turma (HC 245.916/RJ), há de se reconhecer
a dependência da decisão administrativa que reconhece a licitude de com-
portamento interfere diretamente na seara criminal.

3 Roxin (2007, p. 71), Ainda sobre o assunto, bastante esclarecedor são os seguintes trechos do julgado examinado:
“[...] sempre tenho em mente os ensinamentos do Mestre Alberto Silva Franco: [...] como adverte Antonio Gar-
cía-Pablos de Molina (Idem, p. 558⁄559), o Direito Penal não pode ser a prima ratio, nem a unica ratio para fazer
face às tensões sociais: "é a ultima ratio, não a solução ao problema do crime, como sucede com qualquer técnica
de intervenção traumática, de efeitos irreversíveis; cabe apenas a ela recorrer em casos de estrita necessidade, para
defender os bens juridicamente fundamentais, dos ataques mais graves e somente quando não ofereçam garantia
de êxito as demais estratégias de natureza não penal". O princípio da intervenção mínima encontra expressão em
duas perspectivas diversas: o princípio da fragmentariedade e o princípio da subsidiariedade. […] Já o princípio
da subsidiariedade põe em destaque o fato de que o Direito Penal não é único controle social formal dotado de
recursos coativos, embora seja o que disponha, nessa matéria, dos instrumentos mais enérgicos e traumáticos. A
gravidade intrínseca desse instrumental, posto à disposição do Direito Penal, recomenda, no entanto, que só se
faça dele uso quando não tenham tido êxito os meios coativos menos gravosos, de natureza não penal. "A cirurgia
penal, por seus efeitos traumáticos e irreversíveis - por sua nocividade intrínseca - só pode ser prescrita in extremis,
isto é, quando não se dispõe de outras possíveis técnicas de intervenção ou estas resultam ineficazes como ultima
ratio. O princípio da subsidiariedade expressa, portanto, uma exigência elementar: a necessidade de hierarquizar,
otimizar e racionalizar os meios disponíveis para responder ao problema criminal adequada e eficazmente. Uma
autêntica exigência de economia social que optará sempre a favor do tipo de intervenção menos lesiva ou limitativa
dos direitos individuais dado que o Direito Penal é o último recurso de uma sã política social" (Antonio Garcia-
-Pablos de Molina, Idem, p. 563). O princípio da subsidiariedade limita, portanto, o ius puniendi na medida em
que só autoriza a intervenção penal se não houver outro tipo de […] de intervenção estatal […] menos custosa
aos direitos individuais (FRANCO, 2007, p. 49)”. (BRASIL, 2013).

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A QUESTÃO DA (IN)DEPENDÊNCIA DAS
KEITY MARA FERREIRA DE SOUZA E SABOYA
INSTÂNCIAS ADMINISTRATIVA E PENAL

Isso porque, diante do princípio da subsidiariedade, as esferas admi-


nistrativa e penal não são absolutamente estanques, admitindo-se, inclusive,
sua estreita comunicabilidade, mormente nas hipóteses nas quais um único
recorte de fato pode subsumir-se concomitantemente a crime e a infração
administrativa.

REFERÊNCIAS

BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Independência das esferas administrativa e


penal é mito. Conjur. 21/05/2013. Disponível em: <http://www.conjur.
com.br>. Acesso em: 15. fev. 2014.

BRASIL. Supremo Tribunal de Justiça. HC 245.916/RJ, Rel. Ministra


Maria Thereza de Assis Moura, 6ª turma, julgado em 11/04/2013a,
DJe 13/09/2013. Disponível em: <http://www.jusbrasil.com.br/
diarios/39158841/stj-01-08-2012-pg-10711>. Acesso em: 15. fev. 2014.

BRASIL. Tribunal Regional Federal da 2ª Região. HC nº


2012.02.01.002017-0. Rel. Juíza Federal Convocada Márcia Maria
Nunes de Barros. Julgamento: 05/06/2012. Disponível em: <http://
trf-2.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/22212151/habeas-corpus-hc-
201202010020170-rj-20120201002017-0-trf2>. Acesso em: 15. fev.
2014.

BRASIL. Lei nº 7.492, de 16 de junho de 1986: Define os crimes contra


o sistema financeiro nacional, e dá outras providências. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/l7492.htm>. Acesso em: 15.
fev. 2014.

DELMAS-MARTY, Mireille; TEITGEN-COLLY, Catherine. Punir


sans juger?: Répression administrative au droit administratif penal. Paris:
Economica, 1992.

44
A QUESTÃO DA (IN)DEPENDÊNCIA DAS
KEITY MARA FERREIRA DE SOUZA E SABOYA
INSTÂNCIAS ADMINISTRATIVA E PENAL

FRANCO, Alberto Silva. Código Penal e sua interpretação. 8 ed. São


Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

GARCIA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Introducción al derecho


penal. Madrid: Ramón Areces, 2005.

HUNGRIA, Nelson. Ilícito administrativo e ilícito penal. Revista de


direito administrativo: Seleção histórica, 1945-1995. Rio de Janeiro:
Renovar, 1995.

ROSSEAU, J. J. Do contrato social: princípios de direito político. 3. ed.


Revista da tradução e comentários de J. Cretella Júnior, Agnes Cretella.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.

ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general = La estructura de la teoría


del delito. Traducción de la 2. ed. alemana. Madrid: Civitas, 2007.

45
A SEGUNDA INSTÂNCIA HOSPITALAR, A JURISMEDICINA, A
CÂMARA TÉCNICA E O COMPROMISSO COM A SAÚDE

Marco Bruno Miranda Clementino1

RESUMO: O presente paper tem por objetivo analisar as câmaras técnicas instituídas, com
base na Recomendação nº 31/2009 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), para auxí-
lio do juiz no processamento de demandas relacionadas ao direito à saúde, em particular
quanto à respectiva composição. Demonstra-se, no texto, a importância na implementa-
ção dessas câmaras técnicas em face da interdisciplinaridade exigida na cognição realizada
nos processos que tratam do direito à saúde, advertindo-se para os riscos de que demandas
dessa espécie sejam tratadas de forma massificada. Conclui-se que não existe óbice jurídico
ou ético-profissional a que essas câmaras técnicas sejam compostas por profissionais cedi-
dos aos tribunais pelas secretarias de saúde estaduais e, portanto, vinculados ao Sistema
Único de Saúde (SUS).

Palavras-chave: Direito à saúde. Judicialização. Cognição. Interdisciplinaridade. Câmara


técnica.

Não é uma afirmação apressada, tampouco exagerada: a saúde – e seus


aspectos jurídicos – é o novo grande tema do Poder Judiciário brasileiro na
(re)produção de demandas de massa. O juiz cível brasileiro, diariamente, é
levado a apreciar pretensões das mais diversas na área de saúde, no âmbito
público ou privado, envolvendo desde a definição de terapias até a conces-
são de medicamentos. Não bastasse o caráter eminentemente técnico dos
fatos jurídicos que circunstanciam os pedidos, o juiz, nesses processos, é
normalmente obrigado a examinar a matéria com extrema urgência, tendo
em vista o bem jurídico tutelado. Sob pressão, o juiz tende naturalmente a
prestigiar a vida como valor, ciente de que corre o risco de subverter o fun-
cionamento do sistema de saúde, colocando em xeque, de forma indireta, a
vida de outros cidadãos que dele necessitem.

1 Doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Mestre em Direito pela Universidade Federal do
Rio Grande do Norte. Professor Adjunto da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Diretor do Núcleo
da Escola da Magistratura Federal no Rio Grande do Norte. Juiz Federal da 6ª Vara da Seção Judiciária do Rio
Grande do Norte .

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MARCO BRUNO MIRANDA CLEMENTINO
A CÂMARA TÉCNICA E O COMPROMISSO COM A SAÚDE

O fenômeno do controle jurisdicional de políticas públicas no Bra-


sil não é um dado recente. Com a Nova República, o déficit democrático
até então vivenciado produziu um movimento de busca pela afirmação de
direitos. Esse processo teve como marco a Constituição Federal de 1988,
que tem como característica, em função do seu denso caráter princípio-
lógico, a aptidão para absorção de novos direitos. Daí porque, legitimada
pelo texto constitucional, a sociedade brasileira vem se tornando cada vez
mais politizada quando se trata da discussão sobre a incorporação e a efeti-
vação de direitos.
No direito à saúde, a pedra de toque para a discussão de novos direitos
e garantias dos existentes é, indiscutivelmente, o princípio da integralidade,
previsto no enunciado do artigo 198, II, da Constituição Federal. Com
base nele, o cidadão não tem descurado de provocar o Poder Judiciário nas
hipóteses de não cobertura pelo Sistema Único de Saúde (SUS), seja nos
casos de desabastecimento (controle da execução da política pública), seja
nos de definição da própria cobertura (controle jurisdicional da legitimi-
dade jurídica da política pública). É que, na maioria das vezes, essa busca
incessante por direitos não tem sido acompanhada de uma discussão mais
madura sobre as respectivas possibilidades materiais de efetivação. Como
resultado: o sistema oferece muito, porém entrega pouco. Por outro lado,
como o sistema é juridicamente regulado, essa dissintonia representa tam-
bém um problema jurídico.
É comum ouvir críticas sobre o grau de acesso à justiça no Estado bra-
sileiro. Todavia, sem levar em consideração outros aspectos relevantes para
a definição do sistema de justiça, o certo é que as possibilidades de provo-
cação do Poder Judiciário são amplas, quiçá absolutas, assim como o são
as matérias por ele sindicáveis, com o detalhe de que litigar no Brasil não é
tão dispendioso quanto ocorre em outros sistemas judiciários. Se isso não
bastasse, as Defensorias Públicas têm funcionado cada vez melhor como
forma de assegurar a assistência jurídica gratuita, a gratuidade judiciária é
assegurada aos necessitados e, em alguns casos, até mesmo a assistência por
advogado é dispensada.

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A CÂMARA TÉCNICA E O COMPROMISSO COM A SAÚDE

No campo do direito à saúde, outra consequência não poderia haver:


o Poder Judiciário, atualmente, tornou-se uma espécie de segunda instân-
cia hospitalar. A saúde então se juridiciza e o juiz, entre a cruz e a espada, é
obrigado a exercer algo para o que não foi capacitado: a jurismedicina! De
fato, hoje o juiz brasileiro, de forma indireta, prescreve tratamentos, pres-
creve e dispensa medicamentos, interna pacientes e até mesmo é levado a
definir o agendamento de centros cirúrgicos. Num contexto sobremaneira
desconfortável, do ponto de vista técnico e até mesmo psicológico, o juiz se
torna responsável (e, consequentemente, responsabilizado) pela vida e pela
morte, pela higidez operacional e pela desorganização do SUS, pela legiti-
midade da despesa e por gerar um tornado orçamentário.
O contexto é agravado quando se verifica que o juiz, ao substituir ao
mesmo tempo a administração pública e o próprio médico, é obrigado a
decidir, pelas circunstâncias, em caráter de urgência e, tendo em vista a quan-
tidade de demandas e repetição de muitas idênticas, a imprimir um caráter
massificado ao processamento das causas. Como resultado, numa questão
tão massificada, realiza-se uma espécie de cognição fast-food no exame des-
sas demandas, colocando em risco a vida do cidadão e a higidez do sistema
de saúde. Se isso não bastasse, decidindo com menos celeridade ou simples-
mente não sindicando essas matérias, os mesmos riscos permanecem. Assim,
o juiz torna-se vítima tanto de sua ação, quanto de sua inação.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) não desconhece esse con-
texto, já amplamente debatido em eventos interdisciplinares e até mesmo
em audiência pública realizada, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), sob
a presidência do Ministro Gilmar Mendes, em abril e maio de 2009. Diante
disso, algumas iniciativas têm surgido no âmbito do CNJ a fim de aprimo-
rar a resposta judicial nesses casos. Uma delas é a Recomendação 31, de 30
de março de 2010, cujo item I, a, assim dispõe:

I. Recomendar aos Tribunais de Justiça dos Estados e aos


Tribunais Regionais Federais que:
a) até dezembro de 2010 celebrem convênios que objetivem
disponibilizar apoio técnico composto por médicos e far-

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A CÂMARA TÉCNICA E O COMPROMISSO COM A SAÚDE

macêuticos para auxiliar os magistrados na formação de um


juízo de valor quanto à apreciação das questões clínicas apre-
sentadas pelas partes das ações relativas à saúde, observadas
as peculiaridades regionais.

Visando a atender a recomendação do CNJ, em alguns Estados foram


efetivamente criadas câmaras técnicas com o objetivo de oferecer subsídios
ao juiz no momento de decidir sobre demandas de saúde. No Rio Grande do
Norte, essa estrutura ainda não foi disponibilizada, porém sua implantação se
encontra em fase de tratativas no âmbito do Comitê Estadual de Demandas
de Saúde. A princípio, a idéia é que a câmara técnica possa absorver deman-
das ajuizadas em unidades jurisdicionais tanto estaduais, quanto federais.
Não existe, nesse comitê, divergência quanto à conveniência e opor-
tunidade de ser implementada a câmara técnica. O aspecto mais polêmico,
na verdade, diz respeito à sua estrutura de pessoal, isso porque, pragmatica-
mente, tendo em vista a inexistência de cargos de médicos para esse fim nos
tribunais, a alternativa que tem se afigurado mais viável é a cessão de servi-
dores da Secretaria de Estado da Saúde para formação do comitê, o que tem
gerado questionamentos quanto à imparcialidade dos profissionais, pelo fato
de integrarem os quadros da administração pública.
A análise desse questionamento envolve a interpretação das hipóteses
de suspeição previstas na legislação processual civil, sistematicamente com
os preceitos que regulam o exercício das profissões de saúde do ponto de
vista ético. Ora, uma vez cedidos, ainda que pelo Poder Executivo, a uma
unidade do Poder Judiciário, os profissionais de saúde passam a integrar o
quadro de servidores deste, aplicando-se-lhes, pois, as regras de impedimento
e suspeição previstas no Código de Processo Civil, mais especificamente nos
artigos 134, 135 e 138:

Art. 134. É defeso ao juiz exercer as suas funções no processo


contencioso ou voluntário:
I - de que for parte;
II - em que interveio como mandatário da parte, oficiou
como perito, funcionou como órgão do Ministério Público,

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A CÂMARA TÉCNICA E O COMPROMISSO COM A SAÚDE

ou prestou depoimento como testemunha;


III - que conheceu em primeiro grau de jurisdição, tendo-lhe
proferido sentença ou decisão;
IV - quando nele estiver postulando, como advogado da par-
te, o seu cônjuge ou qualquer parente seu, consangüíneo ou
afim, em linha reta; ou na linha colateral até o segundo grau;
V - quando cônjuge, parente, consangüíneo ou afim, de al-
guma das partes, em linha reta ou, na colateral, até o terceiro
grau;
VI - quando for órgão de direção ou de administração de
pessoa jurídica, parte na causa.
Parágrafo único. No caso do no IV, o impedimento só se
verifica quando o advogado já estava exercendo o patrocínio
da causa; é, porém, vedado ao advogado pleitear no processo,
a fim de criar o impedimento do juiz.
Art. 135. Reputa-se fundada a suspeição de parcialidade do
juiz, quando:
I - amigo íntimo ou inimigo capital de qualquer das partes;
II - alguma das partes for credora ou devedora do juiz, de seu
cônjuge ou de parentes destes, em linha reta ou na colateral
até o terceiro grau;
III - herdeiro presuntivo, donatário ou empregador de alguma
das partes;
IV - receber dádivas antes ou depois de iniciado o processo;
aconselhar alguma das partes acerca do objeto da causa, ou
subministrar meios para atender às despesas do litígio;
V - interessado no julgamento da causa em favor de uma
das partes.
Parágrafo único. Poderá ainda o juiz declarar-se suspeito por
motivo íntimo.
Art. 138. Aplicam-se também os motivos de impedimento
e de suspeição:
I - ao órgão do Ministério Público, quando não for parte, e,
sendo parte, nos casos previstos nos ns. I a IV do art. 135;
II - ao serventuário de justiça;
III - ao perito;
IV - ao intérprete.
§ 1o A parte interessada deverá argüir o impedimento ou a
suspeição, em petição fundamentada e devidamente instruída,

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A CÂMARA TÉCNICA E O COMPROMISSO COM A SAÚDE

na primeira oportunidade em que Ihe couber falar nos autos;


o juiz mandará processar o incidente em separado e sem sus-
pensão da causa, ouvindo o argüido no prazo de 5 (cinco) dias,
facultando a prova quando necessária e julgando o pedido.
§ 2o Nos tribunais caberá ao relator processar e julgar o inci-
dente (BRASIL, 1973).

Analisando as hipóteses, o questionamento quanto à imparcialidade


do profissional de saúde, na espécie, somente faria sentido naquela prescrita
no artigo 135, V, do Código de Processo Civil. Seria, basicamente, colocar
em xeque o desinteresse do profissional de saúde cedido pela administração
pública nas causas em que se discuta a concepção e a execução do SUS. Em
outras palavras, questiona-se se o profissional vinculado ao SUS, embora
dele afastado provisoriamente em face da cessão ao Poder Judiciário, teria
isenção suficiente para analisar a pretensão deduzida do ponto de vista estri-
tamente técnico, sem defender indiretamente a política pública.
Em que pese interessante, o questionamento não se sustenta juridica-
mente, porque não leva em consideração a autonomia dos profissionais de
saúde. No Código de Ética Médica (Resolução CFM 1931/2009), por exem-
plo, figura, no capítulo I, VII, como princípio fundamental da medicina que:

O médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo


obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua
consciência ou a quem não deseje, excetuadas as situações de
ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência,
ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente
(BRASIL, 2009).

Da mesma forma, no capítulo II, IX, prevê-se como direito do médico,


“recusar-se a realizar atos médicos que, embora permitidos por lei, sejam
contrários aos ditames de sua consciência” (BRASIL, 2009). Não é por
outra razão que mesmo o médico vinculado ao SUS tem autonomia para
prescrever terapias ou medicamentos não cobertos pela política pública: o
profissional médico atua com autonomia e, nos termos do capítulo I, II, “o
alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício da
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qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade pro-
fissional” (BRASIL, 2009).
No que se refere, ainda, ao profissional farmacêutico, embora não
tão enfático quanto à autonomia, também o Código de Ética da Profissão
Farmacêutica (Resolução CFF 417/2004) assim estabelece o rigoroso com-
promisso com a saúde do paciente:

Art. 2° - O farmacêutico atuará sempre com o maior respeito


à vida humana, ao meio ambiente e à liberdade de consciência
nas situações de conflito entre a ciência e os direitos funda-
mentais do homem.
Art. 3° - A dimensão ética da profissão farmacêutica é determi-
nada, em todos os seus atos, pelo benefício ao ser humano, à
coletividade e ao meio ambiente, sem qualquer discriminação.
Art. 11 - O farmacêutico, durante o tempo em que per-
manecer inscrito em um Conselho Regional de Farmácia,
independentemente de estar ou não no exercício efetivo da
profissão, deve:
[...]
VII. respeitar a vida humana, jamais cooperando com atos
que intencionalmente atentem contra ela ou que coloquem
em risco sua integridade física ou psíquica;
[...]
IX. contribuir para a promoção da saúde individual e coletiva,
principalmente no campo da prevenção, sobretudo quando,
nessa área, desempenhar cargo ou função pública (BRASIL,
2004).

Na verdade, a tônica do exercício profissional na área da saúde é, sem


dúvida, o compromisso com o bem-estar do paciente. Ainda que algum
profissional convictamente defenda a política pública de saúde, se assim age
eticamente, isso ocorre também pensando na saúde coletiva e não na pura
defesa institucional do Estado. É essa interpretação que se extrai do Jura-
mento de Hipócrates, que inspira em geral a atividade desempenhada pelo
profissional da saúde:

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A CÂMARA TÉCNICA E O COMPROMISSO COM A SAÚDE

Eu juro, por Apolo, médico, por Esculápio, Higeia e Panaceia,


e tomo por testemunhas todos os deuses e todas as deusas,
cumprir, segundo meu poder e minha razão, a promessa que
se segue:
Estimar, tanto quanto a meus pais, aquele que me ensinou
esta arte; fazer vida comum e, se necessário for, com ele par-
tilhar meus bens;
Ter seus filhos por meus próprios irmãos; ensinar-lhes esta
arte, se eles tiverem necessidade de aprendê-la, sem remunera-
ção e nem compromisso escrito; fazer participar dos preceitos,
das lições e de todo o resto do ensino, meus filhos, os de meu
mestre e os discípulos inscritos segundo os regulamentos da
profissão, porém, só a estes.
Aplicarei os regimes para o bem do doente segundo o meu
poder e entendimento, nunca para causar dano ou mal a al-
guém. A ninguém darei por comprazer, nem remédio mortal
nem um conselho que induza a perda. Do mesmo modo não
darei a nenhuma mulher uma substância abortiva.
Conservarei imaculada minha vida e minha arte.
Não praticarei a talha, mesmo sobre um calculoso confirmado;
deixarei essa operação aos práticos que disso cuidam.
Em toda a casa, aí entrarei para o bem dos doentes, manten-
do-me longe de todo o dano voluntário e de toda a sedução
sobretudo longe dos prazeres do amor, com as mulheres ou
com os homens livres ou escravizados.
Àquilo que no exercício ou fora do exercício da profissão e no
convívio da sociedade, eu tiver visto ou ouvido, que não seja
preciso divulgar, eu conservarei inteiramente secreto.
Se eu cumprir este juramento com fidelidade, que me seja
dado gozar felizmente da vida e da minha profissão, honrado
para sempre entre os homens; se eu dele me afastar ou infrin-
gir, o contrário aconteça (JURAMENTO..., 2014).

Se isso não bastasse, é importante ressaltar que a realidade mostra que


o profissional de saúde transita regularmente pelo SUS e pela saúde pri-
vada, pelo que sequer faz sentido que possa ser influenciado pela política
pública pelo fato de nela atuar. Ademais, mesmo nos casos em que se trate
de profissional médico exclusivo do SUS, o Código de Ética Médica pres-

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creve, no capítulo I, V, que “compete ao médico aprimorar continuamente


seus conhecimentos e usar o melhor do progresso científico em benefício
do paciente” (BRASIL, 2009). Quanto ao farmacêutico, disposição seme-
lhante consta do Código de Ética da Profissão Farmacêutica, no artigo 7º:
“O farmacêutico deve manter atualizados os seus conhecimentos técnicos e
científicos para aperfeiçoar, de forma contínua, o desempenho de sua ativi-
dade profissional” (BRASIL, 2004).
Juridicamente, pois, não existe inviabilidade a que a câmara técnica
referida na Recomendação nº 31 do CNJ seja composta por profissionais
médicos cedidos pelo Poder Executivo e, portanto, vinculados ao SUS. A
rigor, o questionamento parece embutir um certo preconceito, tal como
havia quando se postulou ao CNJ fosse reconhecida a impossibilidade
de cessão de procuradores da Fazenda Nacional para assessorar magistra-
dos, rejeitada no âmbito do Procedimento de Controle Administrativo nº
0000706-90.2012.2.00.0000, com base no voto do relator, Conselheiro
Rubens Curado (BRASIL, 2013).
Por fim, é preciso enfatizar uma obviedade: a câmara técnica será um
auxiliar do juízo e não substituirá o juiz, que não se lhe vincula sequer quanto
aos aspectos técnicos. Seu objetivo será apenas oferecer ao juiz os subsídios
técnicos para que possa decidir com mais segurança, evitando-se – ou pelo
menos minimizando – o exercício da jurismedicina e a cognição fast-food.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Conselho Federal de Fármacia. Resolução nº 417 de 29 de


setembro de 2004: Aprova o Código de Ética da Profissão Farmacêutica.
Disponível em: <http://www.cff.org.br/userfiles/file/resolucoes/417.pdf>.
Acesso em: 25 set. 2014.

BRASIL. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº


1931/2009: Aprova o Código de Ética Médica. Disponível em: <http://
www.portalmedico.org.br/resolucoes/cfm/2009/1931_2009.htm>. Acesso
em: 25 set. 2014.

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BRASIL. Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Disponível em: <http://


www.cnj.jus.br/>. Acesso em: 25 set. 2014.

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Recomendação nº 31,


de 30 de março de 2010. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/
atos-administrativos/atos-da-presidencia/322-recomendacoes-do-
conselho/12113-recomendacao-no-31-de-30-de-marco-de-2010>. Acesso
em: 25 set. 2014.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa


do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 25 set. 2014.

BRASIL. Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973: Institui o Código de


Processo Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
leis/l5869.htm>. Acesso em: 25 set. 2014.

BRASIL. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990: Dispõe sobre


as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a
organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras
providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 25 set. 2014.

BRASIL. Portal da Saúde. Sistema Único de Saúde (SUS). Disponível


em: <http://portalsaude.saude.gov.br/index.php/cidadao/entenda-o-sus>.
Acesso em: 25 set. 2014.

BRASIL. Procedimento de controle administrativo 0000706-


90.2012.2.00.0000. Requerente: Ordem dos Advogados do Brasil
- Seção do Estado do Rio de Janeiro. Requerido: Tribunal Regional
Federal 2ª Região. 2013. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/
arquivo_artigo/art20130626-04.pdf>. Acesso em: 25 set. 2014.

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MARCO BRUNO MIRANDA CLEMENTINO
A CÂMARA TÉCNICA E O COMPROMISSO COM A SAÚDE

BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). Disponível em: <http://


www.stf.jus.br/portal/principal/principal.asp/>. Acesso em: 25 set. 2014.

JURAMENTO DO MÉDICO. Disponível em: <http://www.facene.


com.br/wp-content/uploads/2009/10/juramento_do_medico.pdf>.
Acesso em: Acesso em: 25 set. 2014.

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A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA EM CRIMES
FISCAIS PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: UM ESTUDO DE CASO

Sandra Simões de Souza Dantas Elali1

RESUMO: Considerando-se a supremacia princípiológica e os novos rumos da interpretação


constitucional, dúvida não há de que os princípios constitucionais são os condicionantes
da interpretação jurídica. E na aplicação das normas ao caso concreto deve-se utilizar o
método de hermenêutica que melhor concretize as normas constitucionais, conciliando-se
o texto aos valores e à realidade da comunidade (hermenêutica concretizadora). O estudo
adiante analisa essa perspectiva em julgado do Supremo Tribunal Federal sobre a aplicação
do princípio da insignificância em crimes fiscais.

Palavras-chave: Hermenêutica concretizadora. Tutela penal. Proporcionalidade. Crimes


fiscais. Princípio da insignificância.

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Muito se debate na atualidade sobre a hermenêutica concretizadora,


na qual se busca o equilíbrio entre a atividade do intérprete – com sua per-
cepção dos fenômenos sociais, jurídicos e políticos –, o sistema jurídico e
a realidade objetiva. Nessa busca, adota-se o método de hermenêutica que
melhor concretize as normas constitucionais em cada caso, conciliando-se
o texto aos valores e à realidade da comunidade.
Sobre os valores que orientam os tempos atuais, importante relem-
brar que após a 2ª Guerra Mundial surgiram as novas declarações de direitos
fundamentais, destacando-se, no plano internacional, a Declaração Univer-
sal dos Direitos do Homem (ONU, 1948) e a Declaração de Direitos da

1 MBA em Poder Judiciário pela Fundação Getúlio Vargas/Escola da Magistratura do Rio Grande do Norte. Espe-
cialista em Direito Processual Civil e Penal pela Universidade Potiguar/Escola da Magistratura do Rio Grande do
Norte. Professora de Técnicas de Sentenças Criminais na Escola da Magistratura do Rio Grande do Norte. Foi
membro do Tribunal Regional Eleitoral do Estado do Rio Grande do Norte e da Primeira Turma Recursal dos
Juizados Especiais Cíveis e Criminais – Natal/RN. Juíza de Direito do Poder Judiciário do Estado do Rio Grande
do Norte.

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A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA EM CRIMES
SANDRA SIMÕES DE SOUZA DANTAS ELALI
FISCAIS PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: UM ESTUDO DE CASO

OEA (1966). A partir daí, os direitos fundamentais - ou direitos humanos -


ganharam ampla eficácia, surgindo, posteriormente, tribunais especializados.
Referindo-se aos direitos fundamentais, Ricardo Lobo Torres citado
por França, Elali e Bonifácio (2011, p. 32) relacionou algumas das caracterís-
ticas marcantes de tais direitos, que têm como base a liberdade, aplicabilidade
erga omnes, são universais, negativos – protegendo o cidadão contra a cons-
trição do Estado ou de terceiro –, criam o status positivus libertatis, postulam
garantias institucionais e processuais que provocam custos gerais para o
Estado. São, assim, “plenamente justiciáveis”, independem de complemen-
tação legislativa, têm eficácia imediata e positivam-se, entre outros, no art.
5º da Constituição Federal, nas diversas Constituições nacionais e na Decla-
ração Universal dos Direitos do Homem da ONU.
E sem embargo das contribuições de Rawls, Dworkin e Habermas,
Ricardo Lobo Torres ressaltou que a mais completa estruturação do pensar
sobre a Teoria dos Direitos Fundamentais deve-se a Robert Alexy, que equa-
cionou os direitos mínimos e máximos ao propor o modelo de ponderação,
objetivando a transformação dos direitos prima facie, abertos, indetermina-
dos ou excessivos, em direitos definitivos (FRANÇA; ELALI; BONIFÁCIO,
2011, p. 32).
Discorrendo acerca do pós-positivismo e princípios de direito, José
Luiz Borges Horta (2002, p. 246-256) conectou o pós-positivismo ao Estado
democrático de Direito, identificando os seguintes pontos centrais no dis-
curso jurídico da atualidade:

a) a consagração da ‘compreensão do Direito em termos axio-


lógicos’ constante dos ‘padrões reflexivos da Jurisprudência
dos Valores, dos Princípios e dos Problemas’;
b) a presença constante dos movimentos intelectuais da ‘Axio-
logia Jurídica da Tridimensionalidade e do Culturalismo’;
c) a irrupção da Hermenêutica Jurídica, fortalecida na polê-
mica entre o objetivismo de Emílio Betti e o subjetivismo de
Hans-Georg Gadamer.

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A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA EM CRIMES
SANDRA SIMÕES DE SOUZA DANTAS ELALI
FISCAIS PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: UM ESTUDO DE CASO

Destacou que, com o pós-positivismo jurídico, os princípios jurídicos


adquiriram total primazia hermenêutica e, nessa questão da supremacia prin-
cípiológica e dos novos rumos da interpretação constitucional, invocou ainda
o magistério de Luís Roberto Barroso, que, em sua tese de cátedra, Inter-
pretação e Aplicação da Constituição, reafirmou os princípios constitucionais
como condicionantes da interpretação jurídica, registrando que “o ponto de
partida do intérprete há que ser sempre os princípios constitucionais, que
são o conjunto de normas que espelham a ideologia da Constituição, seus
postulados básicos e seus fins” (BARROSO, 2009b, p. 141).
Em suma, como bem observou José Luiz Borges Horta:

Se atingimos, como pretende Paulo Bonavides, a idade do


pós-positivismo, em que a teoria dos princípios se transforma
no coração das constituições (BONAVIDES, 1994, p. 253),
então é preciso trabalharmos a teoria da interpretação cons-
titucional no sentido de dar total preferência hermenêutica
aos princípios constitucionais. Somente na via dos princípios
constitucionais poderemos atingir o que Peter Häberle chama
de efetividade prática dos direitos fundamentais – a rigor,
um problema central da jurisdição constitucional (PINA,
1991, p. 339).

Assim é que o novo paradigma do pós-positivismo, consagrando a


busca de fundamentos para uma aplicação do direito com ampla análise
dos interesses envolvidos, objetivando assegurar os direitos morais e funda-
mentais das pessoas, deu novo realce ao ato de julgar, na medida em que as
sentenças, para garantir os direitos, devem conter as razões do convencimento
– exigência do Estado Democrático de Direito e mecanismo de controle de
legalidade –, e a demonstração de que a melhor decisão, do ponto de vista
ético, foi efetivamente adotada.
O fato é que, nesse novo cenário de atuação do julgador, a argumen-
tação ganha relevo, devendo ser dado especial importância à aferição dos
princípios, inclusive com a ponderação dos interesses que se incorporam às

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A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA EM CRIMES
SANDRA SIMÕES DE SOUZA DANTAS ELALI
FISCAIS PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: UM ESTUDO DE CASO

normas concorrentes, na busca pela decisão comprometida com a justiça e


a democracia.
Nesse contexto, propõe-se, adiante, a análise dos argumentos invo-
cados pelo Supremo Tribunal Federal quando da aplicação do princípio da
insignificância em matéria fiscal. Antes, porém, há de se destacar, ainda que
resumidamente, a distinção entre regras e princípios, e, a seguir, a tutela
penal e o princípio da proporcionalidade.

2 REGRAS E PRINCÍPIOS

Como ressaltou Ronald Dworkin (1997, p. 24), que introduziu o


paradigma contemporâneo da teoria dos princípios, objetivando proce-
der à distinção por meio do modo de operação e aplicação das regras e dos
princípios, os princípios têm uma dimensão que as regras não possuem – a
dimensão de peso ou de importância.
Para Alexy (1997), a diferença entre regras e princípios é de índole
qualitativa e os princípios são espécie de norma jurídica por meio da qual
são estabelecidos “deveres de otimização”, aplicáveis em vários graus, de con-
formidade com as possibilidades fáticas e normativas.
E de conformidade com Humberto Bergmann Ávila (1999, p. 180),
as regras são normas:

Imediatamente descritivas, primariamente retrospectivas e


com pretensão de decidibilidade e abrangência, para cuja apli-
cação se exige a avaliação da correspondência, sempre centrada
na finalidade que lhes dá suporte e nos princípios que lhes são
axiologicamente sobrejacentes, entre a construção conceitual
da descrição normativa e a construção conceitual dos fatos.

Já os princípios, são por ele definidos como “normas imediatamente


finalísticas, primariamente prospectivas e com pretensão de complementari-
dade e de parcialidade”, as quais, para aplicação, “demandam uma avaliação
da correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorren-
tes da conduta havida como necessária à sua promoção”.

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A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA EM CRIMES
SANDRA SIMÕES DE SOUZA DANTAS ELALI
FISCAIS PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: UM ESTUDO DE CASO

3 A TUTELA PENAL E O PRINCÍPIO DA PROPORCIONA-


LIDADE

O sistema penal atua buscando realizar uma espécie de controle social,


que se refere à repressão do delito. E tal mecanismo de controle atua quando
as outras formas de controle demonstram-se insuficientes para a tutela de
bens jurídicos considerados relevantes, cuja proteção, por ser considerada
necessária, fundamenta a criação da tipificação legal dos delitos.
Evidentemente que, para punir, existem condições que o Estado há de
observar e, uma dessas condições é justamente o processo, que, como ins-
trumento para a realização do Direito Penal, deve tornar viável a aplicação
da pena e servir como efetivo instrumento de garantia dos direitos e liber-
dades individuais constitucionalmente previstos.
Em se falando em um sistema de controle penal, Cézar Roberto Biten-
court (1999, p. 39) registrou que todos os princípios:

Hoje insertos, explícita ou implicitamente, em nossa Consti-


tuição (art. 5o), têm a função de orientar o legislador ordinário
para a adoção de um sistema de controle penal voltado para
os direitos humanos, embasado em um Direito Penal da cul-
pabilidade, um Direito Penal mínimo e garantista.

Nessa diretriz, além de princípios como o da legalidade, culpabilidade


e igualdade, merece destaque a proporcionalidade, pauta informativa da ati-
vidade penal substantiva no ordenamento democrático. É que encaminha
para a norma penal e sua aplicação judicial “o restrito grupo de valores fun-
dantes do critério democrático de legitimidade, entre eles a dignidade da
pessoa humana, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento,
a igualdade e a justiça” (GOMES, 2003, p. 232).
Sobre a importância do princípio da proporcionalidade, afirma-se que
está relacionada à verificação de que, num Estado Democrático de Direito,
a liberdade constitui o bem primordialmente tutelado juridicamente, o
que traz como consequência o fato de qualquer limitação sua deve, neces-

63
A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA EM CRIMES
SANDRA SIMÕES DE SOUZA DANTAS ELALI
FISCAIS PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: UM ESTUDO DE CASO

sariamente, ser balanceada, para que ocorra apenas quando se apresentar


claramente necessária, idônea e proporcional à proteção de determinado bem
jurídico-constitucional. E essas três exigências constituem, nas palavras de
Mariângela Gama de Magalhães Gomes (2003, p. 76 e 232), “o conteúdo
informador do princípio da proporcionalidade em sentido amplo (princí-
pios da necessidade, idoneidade e proporcionalidade em sentido estrito), a
serem observadas no processo de elaboração legislativa”.
Castanho de Carvalho (apud GOMES, 2003, p. 34) ainda obser-
vou que a doutrina e a jurisprudência estabeleceram que os pressupostos
da intervenção estatal sob o pálio do princípio da proporcionalidade são a
legalidade e a justificação teleológica. Já os requisitos extrínsecos são a judicia-
lidade (requisito subjetivo) e a motivação (requisito formal). E os requisitos
intrínsecos são constituídos por subprincípios da idoneidade, necessidade e
da proporcionalidade em sentido estrito.
Afinal, referindo-se à proporcionalidade como proibição do excesso,
Luciano Feldens (2005, p. 191-193) destacou que “provavelmente não exista
hipótese mais evidente de aplicação do princípio da proporcionalidade, no
âmbito do Direito Penal, do que quando invocado o princípio da insigni-
ficância”. E ponderou que:

Embora seguidamente reconduzido ao plano exclusivo da dog-


mática penal, a constatação acerca da insignificância jurídico-
-penal de uma conduta determinada não é senão a realização
de um juízo concreto de desproporcionalidade que se realiza
acerca da potencial incidência de uma medida legalmente
prevista (a sanção penal) a uma situação de fato.

4 O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A APLICAÇÃO DO


PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA

Na definição de Maurício Antonio Ribeiro Lopes (2000, p. 38), o


princípio da insignificância decorre “de uma especial maneira de se exigir a
composição do tipo penal a ser preenchido”, não apenas por aspectos for-

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A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA EM CRIMES
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FISCAIS PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: UM ESTUDO DE CASO

mais, mas também, e essencialmente, “por elementos objetivos que levem à


percepção da utilidade e da justiça de imposição de pena criminal ao agente”.
E sobre a aplicação desse princípio em crimes tributários, o Supremo
Tribunal Federal assim decidiu:

EMENTA: PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. IDEN-


TIFICAÇÃO DOS VETORES CUJA PRESENÇA LEGI-
TIMA O RECONHECIMENTO DESSE POSTULADO
DE POLÍTICA CRIMINAL. CONSEQUENTE DESCA-
RACTERIZAÇÃO DA TIPICIDADE PENAL EM SEU
ASPECTO MATERIAL. DELITO DE DESCAMINHO
(CP, ART. 334, ‘CAPUT’, SEGUNDA PARTE). TRIBU-
TOS ADUANEIROS SUPOSTAMENTE DEVIDOS NO
VALOR DE R$ 4.541,33. DOUTRINA. CONSIDERA-
ÇÕES EM TORNO DA JURISPRUDÊNCIA DO STF.
PEDIDO DEFERIDO.
O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA QUALIFI-
CA-SE COMO FATOR DE DESCARACTERIZAÇÃO
MATERIAL DA TIPICIDADE PENAL – O princípio da
insignificância - que deve ser analisado em conexão com os
postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima
do Estado em matéria penal - tem o sentido de excluir ou de
afastar a própria tipicidade penal, examinada na perspectiva de
seu caráter material. Doutrina. Tal postulado - que considera
necessária, na aferição do relevo material da tipicidade penal,
a presença de certos vetores, tais como (a) a mínima ofensi-
vidade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade
social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade
do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica
provocada - apoiou-se, em seu processo de formulação teórica,
no reconhecimento de que o caráter subsidiário do sistema
penal reclama e impõe, em função dos próprios objetivos por
ele visados, a intervenção mínima do Poder Público.
O POSTULADO DA INSIGNIFICÂNCIA E A FUN-
ÇÃO DO DIREITO PENAL: DE MINIMIS, NON CURAT
PRAETOR. – O sistema jurídico há de considerar a relevan-
tíssima circunstância de que a privação da liberdade e a res-
trição de direitos do indivíduo somente se justificam quando

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A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA EM CRIMES
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estritamente necessárias à própria proteção das pessoas, da


sociedade e de outros bens jurídicos que lhes sejam essenciais,
notadamente naqueles casos em que os valores penalmente
tutelados se exponham a dano, efetivo ou potencial, impreg-
nado de significativa lesividade.
APLICABILIDADE DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFI-
CÂNCIA AO DELITO DE DESCAMINHO – O direito
penal não se deve ocupar de condutas que produzam resul-
tado, cujo desvalor - por não importar em lesão significativa
a bens jurídicos relevantes - não represente, por isso mesmo,
prejuízo importante, seja ao titular do bem jurídico tutelado,
seja à integridade da própria ordem social. Aplicabilidade do
postulado da insignificância ao delito de descaminho (CP,
art. 334), considerado, para tanto, o inexpressivo valor do
tributo sobre comércio exterior supostamente não recolhido.
Precedentes. (BRASIL, 2010, grifo nosso).

Esse caso trata de habeas corpus impetrado contra decisão monocrá-


tica do Min. Arnaldo Esteves Lima, do Superior Tribunal de Justiça, que
negou seguimento ao agravo de instrumento que o paciente interpôs con-
tra decisão que negou seguimento a recurso especial.
Relatou o impetrante que o paciente foi condenado pela prática do
crime descrito no art. 334, § 1º, alínea c, do Código Penal, “à pena de 2
(dois) anos e 6 (seis) meses de reclusão, em regime aberto, substituída por restri-
tiva de direitos, consistente em prestação de serviços à comunidade ou a entidades
públicas e 10 (dez) dias-multa” (BRASIL, 2014).
Informou que interpôs apelação a qual, por unanimidade de votos,
foi negado provimento. Alegou que tal decisão colegiada teria violado a lei,
razão pela qual interpôs recurso especial, o qual não foi admitido. Final-
mente, contra a decisão que negou seguimento ao recurso especial interpôs
o agravo de instrumento já referido, ao qual foi negado seguimento.
Argumentou que o crime atribuído ao paciente comporta aplicação do
princípio da insignificância, “tendo em vista não ser sequer possível o pros-
seguimento de execução fiscal para a cobrança do suposto valor devido”. E
requereu a concessão da ordem de habeas corpus, com o reconhecimento do

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princípio da insignificância, e a absolvição do paciente, em face da mani-


festa atipicidade da conduta a ele imputada.
As questões analisadas no caso concreto estão detalhadas na própria
ementa do Acórdão, havendo sido ali assentado que o princípio da insignifi-
cância deve ser analisado em conexão com os postulados da fragmentariedade
e da intervenção mínima do Estado em matéria penal, tendo sido excluída
a própria tipicidade penal.
Na aferição do relevo material da tipicidade penal, foi constatada a pre-
sença dos seguintes vetores: a mínima ofensividade da conduta do agente, a
nenhuma periculosidade social da ação, o reduzidíssimo grau de reprovabi-
lidade do comportamento e a inexpressividade da lesão jurídica provocada.
E foi destacado que o caráter subsidiário do sistema penal reclama e impõe,
em função dos próprios objetivos por ele visados, a intervenção mínima do
Poder Público em matéria penal.
Dessa forma, consta da decisão que o sistema jurídico há de considerar
a relevantíssima circunstância de que a privação da liberdade e a restrição de
direitos do indivíduo somente se justificarão quando estritamente necessárias
à própria proteção das pessoas, da sociedade e de outros bens jurídicos que
lhes sejam essenciais, notadamente naqueles casos em que os valores penal-
mente tutelados se exponham a dano – efetivo ou potencial – causado por
comportamento impregnado de significativa lesividade.
E consta, ainda, do Acórdão, “o magistério de Edilson Mougenot Bon-
fim e de Fernando Capez (2004, p. 121-122)”:

Na verdade, o princípio da bagatela ou da insignificância


[...] não tem previsão legal no direito brasileiro [...], sendo
considerado, contudo, princípio auxiliar de determinação da
tipicidade, sob a ótica da objetividade jurídica. Funda-se no
brocardo civil minimis non curat praetor e na conveniência da
política criminal. Se a finalidade do tipo penal é tutelar um
bem jurídico quando a lesão, de tão insignificante, torna-se
imperceptível, não será possível proceder a seu enquadramen-
to típico, por absoluta falta de correspondência entre o fato
narrado na lei e o comportamento iníquo realizado. É que,

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no tipo, somente estão descritos os comportamentos capazes


de ofender o interesse tutelado pela norma. Por essa razão, os
danos de nenhuma monta devem ser considerados atípicos.
A tipicidade penal está a reclamar ofensa de certa gravidade
exercida sobre os bens jurídicos, pois nem sempre ofensa
mínima a um bem ou interesse juridicamente protegido é
capaz de se incluir no requerimento reclamado pela tipicidade
penal, o qual exige ofensa de alguma magnitude a esse mesmo
bem jurídico (BRASIL, 2004).

Em assim sendo, o habeas corpus foi deferido para determinar a extin-


ção definitiva do procedimento penal que resultou na condenação imposta
ao ora paciente, invalidando todos os atos processuais, desde a denúncia,
inclusive, por ausência de tipicidade material da conduta que lhe foi impu-
tada, considerado, para esse feito, o princípio da insignificância.
Com a aplicação de tal princípio, introduzido por Claus Roxin, o que
se pretende é que a sanção penal, como última instância de controle social,
seja reservada para os casos em que não haja outra solução possível, redu-
zindo-se, assim, seus efeitos.
O que se evidencia é que a adequação da conduta do agente ao tipo
penal ocorreu apenas formalmente. E a tipicidade material, que tem seu
fundamento nos princípios da intervenção mínima, da lesividade e da insig-
nificância, não se configurou, já que o bem jurídico tutelado, a ordem
tributária, entendida como o interesse do Estado na arrecadação de tribu-
tos, para a consecução de seus fins, não foi ofendido ao ponto de justificar
a ingerência do Direito Penal.
Registre-se que a tipicidade penal, necessária à caracterização do fato
típico, divide-se em formal e conglobante. No caso, há a tipicidade formal
- a adequação perfeita da conduta do agente ao tipo previsto na lei penal -,
já que o legislador fez previsão expressa para o delito descrito na denúncia.
Entretanto, não há a tipicidade conglobante, em que se verifica se a
conduta do agente é antinormativa e se o fato é materialmente típico. E é na
denominada tipicidade material, vertente da tipicidade conglobante, que se
analisa o princípio da insignificância, onde se leva em consideração a rele-

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FISCAIS PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: UM ESTUDO DE CASO

vância do bem que está sendo objeto de proteção, para que se analise se a
conduta do agente se amolda com perfeição ao tipo penal. Devem ser con-
siderados, portanto, à luz do espírito do legislador, os prejuízos relevantes
que o comportamento incriminado possa causar à ordem jurídica e social,
merecendo a proteção do Direito Penal.
No caso em análise o Supremo Tribunal Federal adotou a melhor deci-
são, evidenciando-se que, com efeito, a conduta em questão é irrelevante
para a administração e se impõe a aplicação do princípio da insignificância.
É que o art. 20 da Lei nº 10.522/02 determina o arquivamento das exe-
cuções fiscais cujo valor consolidado for igual ou inferior a R$10.000,00. E é
inadmissível que a conduta seja irrelevante para a Administração Fazendária
e não para o direito penal, já que o Estado, vinculado pelo princípio de sua
intervenção mínima em direito penal, somente deve ocupar-se das condu-
tas que acarretem grave violação ao bem jurídico tutelado (BRASIL, 2002).
Dessa forma, em caso de acusação de descaminho, a relevância penal
da conduta deverá ser investigada a partir das diretrizes do referido art. 20
da Lei nº 10.522/2002 (BRASIL, 2002).
Há de se aplicar, na hipótese, o princípio da insignificância penal,
segundo o qual para que haja a incidência da norma incriminadora não
basta a mera adequação formal do fato empírico ao tipo, sendo necessário
que esse fato empírico se contraponha, em substância, à conduta normati-
vamente tipificada.
É preciso que o agente passivo experimente efetivo desfalque em seu
patrimônio, com real prejuízo material, de forma diversa do caso em aná-
lise, em que a supressão de um tributo com reduzido valor pecuniário sequer
justifica a respectiva execução fiscal.
Em sendo o montante dos impostos, supostamente devidos pelo acu-
sado, inferior ao mínimo legalmente estabelecido para a execução fiscal e
não constando da denúncia a referência a outros débitos em seu desfavor,
em possível continuidade delitiva, verifica-se hipótese de ausência de justa
causa para a ação penal, diante da inexistência de lesão ao bem jurídico
penalmente tutelado.

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Isso porque, conforme já destacado, uma conduta administrativa-


mente irrelevante não pode ter relevância criminal.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

No estudo de caso acima analisado entende-se que, com a utiliza-


ção do método hermenêutico concretizador, foi encontrada a solução mais
adequada à situação e, acertadamente, foi aplicado o princípio da insignifi-
cância, ao se aferir o relevo material da tipicidade penal, diante da mínima
ofensividade da conduta do agente, da nenhuma periculosidade social das
suas ações, do reduzidíssimo grau de reprovabilidade do seu comportamento
e da inexpressividade da lesão jurídica que provocou.
O que se verifica é que a sanção penal prevista para o crime em questão
é manifestamente excessiva e, dessa forma, a incidência da medida - que, em
tese, é adequada e necessária à proteção do bem jurídico - não passará pelo
exame da proporcionalidade em sentido estrito, tendo em vista o descom-
passo entre a lesividade da conduta no caso concreto e o direito fundamental
restringido (a liberdade), especialmente porque outros meios menos invasi-
vos podem restaurar o interesse público protegido.
Em face do exposto, dúvida não há de que a melhor decisão foi encon-
trada, tendo sido assegurado o direito fundamental da liberdade.

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73
A JUDICIALIZAÇÃO DOS SISTEMAS DE SAÚDE: SOLUÇÃO
DE COMPROMISSO RUMO ÀS CORES DA VIDA.

Virgínia de Fátima Marques Bezerra1

RESUMO: O presente trabalho apresenta uma visão diferenciada dos conflitos acerca dos
planos de saúde e de alguns tratamentos específicos. O direito à saúde constitui decorrên-
cia do princípio da dignidade da pessoa humana. Aborda-se o advento da Lei 12.401, de
28 de abril de 2011, com um enfoque de solidariedade na promoção, proteção e recupera-
ção da saúde. Verifica-se que o questionado ativismo judicial tem justificativa atualmente
na inabilidade do gestor público de atuar de forma eficiente no combate e na promoção
das medidas necessárias ao suprimento da necessidade dos pacientes, por meio de políticas
públicas. Para evitar o ativismo, faz-se necessária a aplicação eficaz das inovações trazidas
pela Lei 12.4012/2011, sobretudo a garantia de terapêutica integral, novos procedimen-
tos de incorporação e exclusão, pelo SUS, de novos medicamentos e prazo máximo de 180
dias para os conflitos decorrentes do fornecimento de medicamentos e serviços de saúde.
Dentro da experiência que o exercício da judicatura permite, faz-se sugestões à tomada de
algumas medidas, entre elas a adoção, como no país vizinho, a Argentina, de regulamen-
tação da produção pública de medicamentos e vacinas, visando tornar mais acessíveis os
custos em benefício da população e promover o desenho e a fabricação destes insumos em
laboratórios estatais.

Palavras-chave: Sistemas de Saúde. Ativismo Judicial. Políticas Públicas.

1 INTRODUÇÃO

A vida é o bem jurídico mais relevante, e sua importância decorre da


característica da vulnerabilidade. Por e pela vida, as pessoas e as instituições
travam lutas, promovem debates, levantam discussões e geram polêmicas.

1 Graduada em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte em 1987. Especialista em “Direito e
Cidadania”, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte em 2000. Especialista em “Derechos Sociales,
Ambientales y Económicos”, por la Facultad de Derecho de la Universidad de Buenos Aires, Argentina em 2008.
Mestranda em Magistratura por la Facultad de Derecho de la Universidad de Buenos Aires, Argentina. Juíza de
Direito do Poder Judiciário do Rio Grande do Norte desde 1990. Durante os 24 anos dedicados à Magistratura,
foi Titular durante 13 anos da 8ª Vara Cível não Especializada da Comarca de Natal e há 1 ano é Titular da 6ª
Vara de Família, também da Comarca de Natal.

75
A JUDICIALIZAÇÃO DOS SISTEMAS DE SAÚDE:
VIRGÍNIA DE FÁTIMA MARQUES BEZERRA
SOLUÇÃO DE COMPROMISSO RUMO ÀS CORES DA VIDA

Nesse contexto, o advento da Lei 12.401, de 28 de abril de 2011, sob a


perspectiva desenvolvida neste trabalho, adotou como filosofia legislativa uma
Solução de Compromisso rumo às Cores da Vida, em alusão às cores dos laços
que são símbolos de luta, solidariedade e compromisso contra as patologias, que
ganhou força e significado a partir da iniciativa do ator Jeremy Irons na entrega
do prêmio Tony Awards, em 1991.
O enfoque que nos coube foi analisar um precedente à luz da Lei
12.401/2011. Inicialmente, é importante que se frise que a edição da lei em
comento somente foi pensada porque vivemos em um Estado Democrático de
Direito, cujo direito à saúde foi consagrado na Carta Magna como um direito
fundamental.
A partir do momento que o direito à saúde foi erigido e alçado a essa con-
dição, e o Estado não conseguiu viabilizar o acesso aos fármacos e tratamentos
mais inovadores, surgiu a necessidade de demandar ao Judiciário no afã de obter
provimento jurisdicional tendente a resguardar esses direitos constitucionais.
Sensível no enfrentamento da questão, o Poder Judiciário, através dos
Magistrados, em sua grande maioria, vislumbraram que ao julgar estas demandas
era uma oportunidade para construir uma decisão cujo mérito fosse participado,
onde cada um, nesse momento, pudesse trazer para o processo sua parcela de
colaboração, aproximando-se, portanto, da democracia, que pressupõe coope-
ração, confrontando o modelo representativo com o modelo participativo.

2 DIREITO FUNDAMENTAL À VIDA E À SAÚDE. MÍNIMO


NECESSÁRIO A UMA VIDA DIGNA. DIGNIDADE DA PESSOA
HUMANA. IMPORTÂNCIA. FOCO CONSTITUCIONAL.

A saúde de todos constitui um direito fundamental indisponível con-


sagrado no art. 196 da Constituição Federal de 1988, incumbindo ao Estado
(União, Estado e Municípios, na qualidade de entes federativos) a prestação
de toda assistência necessária para garantir e alcançar a saúde do cidadão
que não possua condições de custear seu tratamento, consoante dicção do
referido texto constitucional, in verbis:

76
A JUDICIALIZAÇÃO DOS SISTEMAS DE SAÚDE:
VIRGÍNIA DE FÁTIMA MARQUES BEZERRA
SOLUÇÃO DE COMPROMISSO RUMO ÀS CORES DA VIDA

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, ga-


rantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à
redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso
universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção,
proteção e recuperação (BRASIL, 1988).

Cumpre colacionar os julgados que expressam o entendimento do


Supremo Tribunal Federal (STF):

[...] Direito à saúde, positivado como um dos primeiros dos di-


reitos sociais de natureza fundamental (art. 6º da CF) e também
como o primeiro dos direitos constitutivos da seguridade social
(cabeça do artigo constitucional de nº 194). Saúde que é ‘direito
de todos e dever do Estado’ (caput do art. 196 da Constituição),
garantida mediante ações e serviços de pronto qualificados como
‘de relevância pública’ (parte inicial do art. 197) [...]. (BRASIL,
2008)
O direito à saúde é prerrogativa constitucional indisponível, garan-
tido mediante a implementação de políticas públicas, impondo ao
Estado a obrigação de criar condições objetivas que possibilitem
o efetivo acesso a tal serviço (BRASIL, 2010).
Consolidou-se a jurisprudência desta Corte no sentido de que,
embora o art. 196 da Constituição de 1988 traga norma de ca-
ráter programático, o Município não pode furtar-se do dever de
propiciar os meios necessários ao gozo do direito à saúde por todos
os cidadãos. Se uma pessoa necessita, para garantir o seu direito
à saúde, de tratamento médico adequado, é dever solidário da
União, do Estado e do Município providenciá-lo (BRASIL, 2014).

A Lei nº 8.080/90, que dispõe sobre as condições para a promoção,


proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos ser-
viços correspondentes, determina, no art. 2º, o dever do Estado em dar
condições para o exercício do direito à saúde, conforme se observa a seguir:

Art. 2º A saúde é um direito fundamental do ser humano, de-


vendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno
exercício.

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SOLUÇÃO DE COMPROMISSO RUMO ÀS CORES DA VIDA

§ 1º O dever do Estado de garantir a saúde consiste na for-


mulação e execução de políticas econômicas e sociais que
visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos e no
estabelecimento de condições que assegurem acesso universal
e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção,
proteção e recuperação.
§ 2º O dever do Estado não exclui o das pessoas, da família,
das empresas e da sociedade (BRASIL, 1990).

O direito à saúde constitui decorrência do princípio da dignidade da


pessoa humana, porquanto o “bem estar bio-psíquico e social” do indivíduo
é pressuposto ínsito a uma vida digna. Desse modo, inegável a sua relevân-
cia nos sistemas jurídicos atuais, em que o povo é reconhecido como titular
do poder político (Estado Democrático de Direito).

3 CONTEXTO. ATIVISMO JUDICIAL. A LEI 12.401/2011.


OBJETIVOS. INOVAÇÕES.

Ocorre que, embora ostente status constitucional, a norma contida no


art. 196 apresenta caráter programático, e que, mesmo decorridos mais de
20 (vinte) anos de sua promulgação, ainda não possui a efetividade almejada
pelo Poder Constituinte. No entanto, não obstante as falhas institucionais
do Estado que geram carência da eficácia constitucional do direito funda-
mental mencionado, o Estado não pode nem deve se furtar à obrigação de
prestar serviços médicos e hospitalares de qualidade aos cidadãos beneficiá-
rios do Sistema Público de Saúde.
Acertada e apropriadamente, é o que tem decidido a mais alta Corte de
Justiça do País, a saber, o Supremo Tribunal Federal, consoante se observa da

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ementa do Recurso Extraordinário n° 271.286-AgR de Relatoria do Minis-


tro Celso de Mello2, abaixo colacionado:

O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa


jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas
pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz
bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integri-
dade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a
quem incumbe formular – e implementar – políticas sociais
e econômicas idôneas que visem a garantir, aos cidadãos,
inclusive àqueles portadores do vírus HIV, o acesso universal
e igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar.
O direito à saúde – além de qualificar-se como direito funda-
mental que assiste a todas as pessoas – representa consequência
constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Pú-
blico, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação
no plano da organização federativa brasileira, não pode mos-
trar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob
pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave
comportamento inconstitucional. A interpretação da norma
programática não pode transformá-la em promessa constitu-
cional inconsequente. O caráter programático da regra inscrita
no art. 196 da Carta Política – que tem por destinatários
todos os entes políticos que compõem, no plano institucio-
nal, a organização federativa do Estado brasileiro – não pode
converter-se em promessa constitucional inconsequente, sob
pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele
depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima,
o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto
irresponsável de infidelidade governamental ao que determina
a própria Lei Fundamental do Estado. [...] O reconhecimento
judicial da validade jurídica de programas de distribuição
gratuita de medicamentos a pessoas carentes, inclusive àque-

2 No mesmo sentido: AI 550.530-AgR, rel. min. Joaquim Barbosa, julgamento em 26-6-2012, Segunda Turma,
DJE de 16-8-2012; RE 368.564, Rel. p/ o ac. Min. Marco Aurélio, julgamento em 13-4-2011, Primeira Turma,
DJE de 10-8-2011; STA 175-AgR, Rel. Min. Presidente Gilmar Mendes, julgamento em 17-3-2010, Plenário,
DJE de 30-4-2010. Vide: AI 734.487-AgR, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 3-8-2010, Segunda Turma,
DJE de 20-8-2010.

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las portadoras do vírus HIV/Aids, dá efetividade a preceitos


fundamentais da Constituição da República (arts. 5º, caput,
e 196) e representa, na concreção do seu alcance, um gesto
reverente e solidário de apreço à vida e à saúde das pessoas,
especialmente daquelas que nada têm e nada possuem, a não
ser a consciência de sua própria humanidade e de sua essencial
dignidade. Precedentes do STF (BRASIL, 2000).

Assim, com o passar dos anos, desde a promulgação da Constituição


em 1988 e instituição do SUS em 1990 com a Lei n° 8.080, o manejo da
máquina judiciária tem sido o meio mais eficaz para que os cidadãos pos-
sam ter maior acesso aos serviços de saúde pública e medicamentos de alto
custo, o que tem elevado a cada ano os índices de ajuizamento de ações de
tal natureza e acalorado a discussão sobre o ativismo judicial e sua possível
intervenção na esfera do Poder Executivo, uma vez que aos juízes coube a
necessidade de atuar como “supridores” das lacunas institucionais de polí-
ticas públicas em saúde.
Observa-se, portanto, que se trata de temática afeta a políticas públi-
cas e à discussão acerca da possibilidade do Poder Judiciário adentrar em
questões macroestruturais, sem caracterizar indevida ingerência na esfera de
atribuição do Executivo.
Vários são os autores que defendem uma postura proativa do Poder
Judiciário. Diante da inatividade do Estado em cumprir sua missão, o ati-
vismo judicial se apresenta como uma solução. Dentre eles Robert Alexy
(2008), para quem na hipótese de eventual conflito entre normas-princí-
pio, propõe o método de ponderação denominado “lei do sopesamento”.
O caso concreto em exame, através do precedente trazido à colação,
coloca em confronto o direito fundamental à saúde, previsto no artigo 196,
da Constituição Federal, e de que meios pode valer-se o Poder Judiciário
para garantir este mínimo existencial, sem que sua intervenção represente
um adentrar na esfera do Executivo.
A definição dos níveis essenciais das prestações sociais, seguramente,
constitui um problema, porque sua definição determina aquilo que poderá
ou não chegar a esfera do Poder Judiciário, com o objetivo de obter efeti-

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vidade através da via da judicialização. Deste modo, como o problema não


tem sido solucionado pelos demais poderes, resta aos Juízes aplicar as nor-
mas existentes e chamar a atenção do Estado sobre sua responsabilidade de
conferir efetividade aos direitos.
Um trabalho recente elaborado por um grupo de expertos, em Bolo-
nha, Itália, intitulado “Welfare e federalismo”, mostra que o objetivo dos
autores era assegurar a efetividade da disciplina constitucional no nível das
prestações sociais (CANOTILHO, 2008, p. 263), de modo que a efetivi-
dade recorresse aos esquemas tradicionais de legislação e regulação, porque
se considerava que era necessário uma lei que disciplinasse as prestações, os
destinatários, os indicadores, o sistema informativo, os recursos financeiros,
as ações estaduais de suporte, os programas de intervenção extraordinária e
o remédio para a inobservância dos requisitos, e um regramento de execu-
ção que devia especificar a lista dos indicadores, individualizando, para cada
um deles, o valor objetivo que as administrações devem respeitar.
O ilustre constitucionalista português, J. J. Gomes Canotilho, asse-
vera ainda:

O que há de novo nesse modelo é a tentativa de introduzir


guias de boas práticas, ou de standards, que deem a possibi-
lidade de controle e que, principalmente, se refiram aos me-
canismos de governo e de responsabilidade, mas que possam
constituir também elementos de fato para a eventual judi-
cialização dos conflitos que envolvam prestações de direitos
(CANOTILHO, 2008, p. 263).

O pensamento da citada autoridade em Direito Constitucional revela


que a possibilidade de descartar a via da judicialização está longe, pois o
mecanismo de concretização judicial continua a ser um âmbito onde se pode
medir os níveis das prestações sociais.
Atualmente, a estratégia de interpretação da Constituição, por parte
da Magistratura, tem como parâmetro no direito, o mínimo necessário para
uma existência digna baseada no direito fundamental da dignidade da pessoa.

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Não se pode negar que o Juiz participa da política, inclusive das políti-
cas públicas de saúde, porque desempenha um papel considerado adequado
para assumir a intervenção ao partilhar os valores e interesses dos grupos e
dos indivíduos que, diante dele, reivindicam direitos e prestações negados
ou bloqueados pelos “decisores político-representativos”, na expressão cunhada
por Canotilho (2000).
Enquanto continuam as discussões acadêmicas, os problemas sur-
gem e reclamam soluções, nascendo uma instância de equação que mescla
várias tendências.
Ora, o Poder Judiciário não pode (e nem deve) furtar-se de julgar e
apresentar soluções aos casos que lhe são trazidos pela sociedade. É o que
decorre do princípio da inafastabilidade da jurisdição consagrado no artigo
5º, inciso XXXV, da Carta Magna, ou seja, de que o Poder Judiciário não
pode deixar de decidir sobre a lesão ou ameaça a direito (BRASIL, 1988).
E, de fato, não há como negar a existência de lesão a direito de cará-
ter constitucional quando o Estado é omisso em prestar os serviços e meios
necessários à efetivação do direito à saúde dos cidadãos.
Todavia, observa-se a necessidade de adequação dos comandos deci-
sórios aos demais aspectos que a lei define e considera suficientes em termos
de prestações sociais, aliado à razoabilidade que obedece aos requisitos eco-
nômicos e financeiros.
Foi nesse contexto que o legislador pátrio editou a Lei nº 12.401/2011,
para dispor sobre a assistência terapêutica e a incorporação de tecnologia em
saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde – SUS.
As principais inovações trazidas pela referida Lei nº 12.4012/2011
consistiram: a) na definição de assistência terapêutica integral (art. 19-M);
b) de protocolo clínico e diretriz terapêutica (art. 19-‘N); c) as especifica-
ções a serem abordadas nos protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas, de
modo que estejam atualizadas (art. 19-O); d) os critérios e procedimentos
para incorporação, exclusão pelo SUS de novos medicamentos, procedimen-
tos e produtos (art. 19-P); e) a competência para as alterações e criação da
Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias do SUS (art. 19-Q); f )
definição do processo administrativo a ser observado, com a aplicação da

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Lei nº 9.784 e prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias, prorrogável por
90 (noventa) dias (art. 19-R); e, por fim, g) casos de vedações de ressarci-
mento e reembolso (art. 19-T) (BRASIL, 2011).
O estabelecimento de critérios de avaliação para a inclusão ou exclu-
são de medicamentos ou produtos das listas do SUS foi uma das alterações
que mais deu ensejo a debates jurídicos, mormente quanto ao critério de
“custo-efetividade”, conforme se observa nos arts. 19-O, parágrafo único e
art. 19-Q, § 2º:

Art. 19-O. Os protocolos clínicos e as diretrizes terapêuticas


deverão estabelecer os medicamentos ou produtos necessários
nas diferentes fases evolutivas da doença ou do agravo à saúde
de que tratam, bem como aqueles indicados em casos de
perda de eficácia e de surgimento de intolerância ou reação
adversa relevante, provocadas pelo medicamento, produto ou
procedimento de primeira escolha.
Parágrafo único. Em qualquer caso, os medicamentos ou
produtos de que trata o caput deste artigo serão aqueles
avaliados quanto à sua eficácia, segurança, efetividade e
custo-efetividade para as diferentes fases evolutivas da doença
ou do agravo à saúde de que trata o protocolo.
Art. 19-Q. A incorporação, a exclusão ou a alteração pelo
SUS de novos medicamentos, produtos e procedimentos,
bem como a constituição ou a alteração de protocolo clínico
ou de diretriz terapêutica, são atribuições do Ministério da
Saúde, assessorado pela Comissão Nacional de Incorporação
de Tecnologias no SUS.
[...]
§ 2º O relatório da Comissão Nacional de Incorporação de
Tecnologias no SUS levará em consideração, necessaria-
mente:
I - as evidências científicas sobre a eficácia, a acurácia,
a efetividade e a segurança do medicamento, produto ou
procedimento objeto do processo, acatadas pelo órgão com-
petente para o registro ou a autorização de uso;
II - a avaliação econômica comparativa dos benefícios e dos
custos em relação às tecnologias já incorporadas, inclusive

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no que se refere aos atendimentos domiciliar, ambulatorial


ou hospitalar, quando cabível (BRASIL, 2011, grifo nosso).

Conforme se depreende dos dispositivos legais acima citados, a Comis-


são Nacional de Incorporação de Tecnologias deve, na análise da inclusão
de novas tecnologias no serviço público de saúde, considerar a eficácia, acu-
rácia, efetividade e segurança do medicamento ou produto (art. 19 – Q,
§2º, I), além de realizar a avaliação econômica comparativa dos benefícios
e custos, comparando-as com as já existentes no SUS (art. 19 – Q, §2º, II)
(BRASIL, 2011).
Desse modo, a legislação vem incluir o critério de custo-efetividade
para a recepção de novas tecnologias no âmbito do Sistema Único de Saúde, o
que consiste em uma espécie de limite financeiro, de caráter um tanto discri-
cionário, em que o SUS poderá analisar os impactos econômicos decorrentes
da inclusão de uma nova tecnologia e se eventuais investimentos nesse sen-
tido seriam razoáveis.
Nesse caso, é exigível da Comissão de Análise, uma visão humanitá-
ria e científica das tecnologias que vêm surgindo no mercado. Deve haver
um sopesamento de valores para que se possa chegar a uma conclusão razo-
ável em que se possa atender o direito à saúde de determinados cidadãos,
sem que inviabilize o atendimento de outros, pois os recursos destinados à
saúde devem abranger o maior número possível de pessoas, além da neces-
sidade de observância dos limites financeiros, pois se tratam de recursos
escassos e limitados.
Assim, verifica-se uma verdadeira colisão de princípios, em que de
um lado se encontra a necessidade de maximização na utilização dos recur-
sos públicos e de outro, o direito à vida, pressuposto básico do princípio da
dignidade da pessoa humana, cabendo uma análise quanto à proporcionali-
dade das medidas a serem tomadas, quer seja pela inclusão de determinado
tratamento ou pela sua exclusão do Sistema Único de Saúde.
Trata-se de uma atividade deveras difícil, senão impossível, pois a pes-
soa que está acometida de enfermidade grave, em risco de vida, buscará todos
os meios possíveis para alcançar o restabelecimento da sua saúde e não irá

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se curvar perante a negativa do Estado em fornecer-lhe o tratamento apro-


priado em razão do seu elevado custo.
Caberia aqui, uma comparação do critério do custo-efetividade com o
famigerado Princípio da Reserva do Possível, tão invocado pelos entes federa-
tivos em sede de fundamentação à negativa do fornecimento de tratamentos
ou medicamentos. O argumento da Reserva do Possível somente é defensá-
vel quando presente prova cabal de ausência de previsão orçamentária para
tal finalidade. Sustentar justificação similar para negar dispensação de medi-
camentos, significa violação ao direito constitucional do direito à saúde.
Nesse particular, é louvável a iniciativa do nosso vizinho latino-ame-
ricano, a Argentina. Esse país conta com a Lei n.º 26.688, que regulamenta
a produção pública de medicamentos e vacinas, e que aponta no sentido
de alcançar dois objetivos: tornar mais acessíveis os custos em benefício da
população e promover o desenho e a fabricação destes insumos em labora-
tórios estatais.
Segundo o Doutor Claudio Capuano, Coordenador da cátedra de
Direitos Humanos e Saúde da Universidade de Buenos Aires, instituição
federal, “trata-se de uma lei marco-estratégica, porque promove o desenvol-
vimento e a pesquisa” (ORGANIZAÇÃO..., 2010).
Na Argentina há 39 (trinta e nove) laboratórios estatais de produção
de medicamentos, vacinas e insumos médicos em 13 (treze) Estados. Desde
2006, essas instituições armaram uma Rede Nacional de Laboratórios Públi-
cos (RELAP), de articulação voluntária.
O Ministério da Saúde da Argentina, por sua vez, tem desde o ano
2002 o “Programa Remediar”, o qual é responsável pelo abastecimento de
medicamentos e vacinas destinados a aproximadamente 15 milhões de pes-
soas, que consomem em torno de 500 milhões de comprimidos ao ano,
providos por hospitais e centros sanitários.
O “Programa Remediar”, do governo federal argentino, é financiado
com créditos do Banco Interamericano de Desenvolvimento e do Banco
Mundial e é obrigado a convocar licitações para obter o provimento. Para
participar da licitação é necessário ter sua produção certificada.

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Com a lei em comento, os laboratórios públicos “serão um suporte


para a cobertura de necessidades sociais”, consoante opinião do médico
Martín Isturiz, Coordenador do Grupo de Gestão de Políticas de Estado
em Ciência e Tecnologia.
Conforme estimativa de Martín Isturiz (2011), que além do cargo já
mencionado, também é pesquisador do Instituto de Pesquisas Hematoló-
gicas da Academia Nacional de Medicina, 85% (oitenta e cinco por cento)
do vade-mécum pode ser coberto pela produção dos laboratórios integran-
tes da Rede Nacional de Laboratórios Públicos (RELAP).
No momento os laboratórios fabricam medicamentos com patentes
quebradas, ou seja, não elaboram novos princípios ativos.
Porém a timidez de atuação do modelo argentino, segundo Isturiz
(2011), pode ganhar fôlego a partir desta nova norma, uma vez que prevê
convênios entre os laboratórios das universidades e organismos de ciência,
todos do âmbito estatal, que pode gerar novas frentes de trabalho, novos
desafios e conquistas.
Nesse contexto, o médico Martín Isturiz (2011) assegura que o nosso
país está elaborando princípios ativos e colocou o Brasil como política de
desenvolvimento em matéria de indústria farmacêutica de controle público.
Aqui, em conformidade com seu pronunciamento, são fabricados vários
medicamentos, alguns essenciais, como os destinados ao tratamento do
vírus da imunodeficiência humana, que provoca a síndrome da imunode-
ficiência adquirida (Aids).
A aprovação da inovadora lei argentina somente foi possível porque
fundada na tese do “medicamento como bem público”.
Entender o medicamento como “bem social”, como esclareceu a farma-
cêutica e socióloga argentina Mercedes Salamano (2014), “implica fortalecer
a indústria nacional para evitar a dependência, regular a comercialização, as
publicidades, os ensaios clínicos e tudo que permite aos cidadãos ter acesso
a um medicamento de qualidade a preço justo”.
No mesmo sentido é o pensamento de Pier Paolo Balladelli, represen-
tante da Organização Panamericana da Saúde e da Organização Mundial
da Saúde, expressado durante sua intervenção na XXX Reunião do Con-

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selho Federal Legislativo de Saúde, realizado no dia 12 de agosto de 2014,


em Buenos Aires, Argentina:

Se bem que em sua fase de produção e comércio o medica-


mento poderia ser considerado um bem privado, em seu aces-
so e uso por parte da população, o medicamento é em todos
os seus efeitos um bem público já que, conectado à noção de
direito à saúde e à vida, permite realizar os cuidados médicos
e proteger e recuperar a saúde (ORGANIZACIÓN..., 2014,
tradução nossa).

4 CASO CONCRETO

O estudo do caso concreto, em anexo, confrontado com a Lei n°


12.401/2011 revela que, na argumentação, o Magistrado destacou o problema
do desabastecimento de medicamentos, qualificando-o como frequente.
Este aspecto demonstra que, apesar da existência de políticas públi-
cas, é patente a existência de carência de planejamento na organização do
Sistema Único de Saúde, que no caso, subsiste no âmbito municipal.
O comando sentencial autorizou a dispensação dos medicamentos
insulina NPH 100 UI/mL e insulina humana regular 100 UI/mL (LAN-
TUS e APIDRA), elenco de medicamentos previstos pela Portaria GM
2.583/2007 aos usuários portadores de diabetes mellitus, além das insuli-
nas excepcionais “glargina” ou “determir” e “lispro” ou “asparte”, em suas
respectivas apresentações (BRASIL, 2007).
A menção à Portaria GM 2.583/2007 e o próprio reconhecimento do
ente municipal de sua responsabilidade quanto ao fornecimento dos medi-
camentos e insulinas solicitados, demonstra a ineficiência da Administração
Pública Municipal em planejar a contento o abastecimento da sua central
de medicamentos.
Observa-se do caso posto em exame que uma das insulinas solicitadas
foi objeto de Termo de Ajustamento de Conduta – TAC entre o Município
de Natal e o Ministério Público do Rio Grande do Norte – MPRN, mas
não vem sendo cumprido.

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Diante desta constatação, vê-se que, embora uma das conclusões do


I Workshop do Comitê do Rio de Janeiro do Fórum Nacional de Saúde
do CNJ “Os desafios da tutela judicial do direito público à saúde”, seja
de que “deve-se buscar a coletivização do conflito sempre que a pretensão
individual tiver por fundamento algum comportamento administrativo de
interesse geral referente à prestação de serviço ou produto de saúde, tais
como os pedidos que questionem os protocolos de hierarquização de prio-
ridades (ou a falta deles) e a insuficiência de leitos para internação junto à
rede hospitalar pública, e os pedidos de fornecimento de medicamentos não
incluídos nas listas oficiais do SUS ou, se incluídos, não estejam sendo for-
necidos regularmente”, o Termo de Ajustamento de Conduta não tem tido
a força suficiente para compelir o Município a cumprir o ajustado, inde-
pendentemente de novas provocações ao Judiciário. Quando, em verdade,
o TAC seria mais que suficiente, pois sequer há a exigência, segundo alguns
autores, de necessidade de homologação para sua validade, ou seja, a priori,
o TAC em si teria o condão de gerar o cumprimento.
No caso específico, a sentença obedece à orientação da Filosofia do
Direito de que o reparto deve ser justificado, isso significa que o juiz deve
fazer o que é mais justo.
Nesse diapasão, o comando sentencial se harmoniza com o art. 19 – N
da Lei nº 12.401 de 28 de Abril de 2011 (BRASIL, 2011), de que a assis-
tência terapêutica integral compreende o tratamento preconizado, com os
medicamentos e demais produtos apropriados.
O exame detido do dispositivo sentencial revela a preocupação do
Magistrado prolator do decisum com a inclusão de agulhas para caneta, fitas
para glicosímetro e lancetas para a realização de glicemias capilares. Esta
última providência demonstra a sensibilidade do juiz sentenciante em dis-
ponibilizar ao paciente uma técnica de controle de glicose menos invasiva,
a chamada tecnologia “point of care”.

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5 CONCLUSÕES

Ao transitar sobre o tema “A Judicialização dos Sistemas de Saúde”, nos


deparamos com as causas, esbarramos nos limites e nos compete, na quali-
dade de agentes de transformação social, enfrentar os problemas e encontrar
caminhos que conduzam às melhores soluções.
Nesse diálogo interativo entre os poderes e as instituições, vimos que
a efetividade não é alcançada por falta de diagnóstico da questão, tampouco
de ausência de legislação.
Todo esse arsenal se ressente de efetividade porque não é suficiente
apenas o diagnóstico, o amparo legal e profissionais que avoquem para si
a responsabilidade de, mediante provimento jurisdicional, na qualidade de
Estado-juiz, traduzir mens legislatoris e dicção legal em prestação de serviço
médico-hospitalar de qualidade, tratamento de ponta e fármacos de alto
custo, na busca da promoção, proteção e recuperação da saúde, na quali-
dade de direito fundamental consagrado constitucionalmente.
Dentro da proposta apresentada, de COMPROMISSO RUMO ÀS
CORES DA VIDA, creio que esse compromisso seria o resgate da dignidade
humana, de não ver a vida esperando em filas; em não ver a vida ancorada
em macas em corredores de hospitais; em não ver a vida em compasso de
espera por liminares judiciais.
O compromisso é do cidadão consigo mesmo. Não aceitar passiva-
mente o status de “paciente”, mas sentir-se “gente” e acolhido como pessoa
digna de direitos. Sair da esfera restrita do preto da morte, da dor do luto,
da cor cinza da depressão, para o arco-íris que é a vida, com todos os tons
e nuances, de lutas, de batalhas, de muralhas, mas que são transponíveis.
O que falta, a meu ver, não é sucumbir diante dos questionamentos,
nem se abismar diante da impotência, mas sim mobilizar a população a fazer
valer seus direitos através dos legitimados para propor ações coletivas; educar
a população pelas melhores escolhas políticas para que o interesse privado
de cada família de paciente passe a ser considerado como generalidade, e se
harmonize com o interesse público.

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SOLUÇÃO DE COMPROMISSO RUMO ÀS CORES DA VIDA

O compromisso do Executivo seria fazer um melhor planejamento


na organização do Sistema Único de Saúde; promover o abastecimento
adequado das Centrais de Distribuição e Dispensação de Medicamentos;
fomentar a produção de medicamentos com patentes quebradas por labora-
tórios estatais; incrementar a elaboração de princípios ativos em laboratórios
estatais; celebrar convênios entre laboratórios, universidades e organismos
de ciência para gerar novos núcleos de produção científica, produção de
insumos e de medicamentos, mediante a aliança de forças de trabalho e de
intelectualidade, mola propulsora para outras iniciativas; respeitar os Termos
de Ajustamento de Conduta, neles reconhecendo força cogente; promo-
ver intercâmbio de experiência entre o Brasil e a Argentina, para fins de
conhecimento e adoção do modelo; analisar custos de produção local ver-
sus importação de medicamentos, no sentido de constatar se a adoção de
novas políticas públicas representará economia para o Estado, inclusive com
repercussão na diminuição do endividamento externo.
Por meio desse compromisso, a judicialização seria evitada se hou-
vesse uma maior seriedade em relação aos caminhos já trilhados, ou seja, se
os Termos de Ajustamento de Conduta (TAC) celebrados não fossem des-
considerados, de modo que esse passo não fosse perdido; que houvesse uma
revisão no rol dos medicamentos padronizados, de modo a incluir equipa-
mentos e medicamentos de baixo custo, mas de largo uso.
Acolher a solução argentina, trabalhando no sentido de abolir o dogma
de que a “saúde é cara e para poucos”. Promover a mudança do conceito de
saúde, de modo que o direito fundamental a saúde, referente à prestação de
serviço ou produto de saúde, como, por exemplo, fornecimento de medi-
camentos, passe a ver visto e considerado como um bem social.
A experiência do nosso país vizinho, a Argentina, pode ser adotada
como modelo pelo Brasil, como base e ponto de partida para a organiza-
ção da política de saúde pública. O Senado daquele país transformou em
lei um projeto no qual declara que o medicamento é um bem social, que
sua produção em laboratórios estatais é de interesse nacional e que por isso
deve ser promovida a fim de prover os hospitais e centros de saúde pública.

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SOLUÇÃO DE COMPROMISSO RUMO ÀS CORES DA VIDA

Embora o Conselho Nacional de Justiça tenha abraçado a causa,


realizado workshop e dado ênfase a providências no intuito de minimizar
o problema, a conclusão que se extrai é de que suas orientações não são
cumpridas porque apesar do avanço legislativo e dos fundamentos cons-
titucionais do direito à saúde, os Poderes Legislativo e Executivo se fazem
surdos à legislação, resultando em uma delegação do Executivo ao Judiciá-
rio em solucionar conflitos oriundos do fato da Administração não cumprir
os direitos fundamentais.
A solução, sob a minha ótica, seria avaliar a produção legislativa, em
especial as normas programáticas, constatando sua:

Baixa efetividade social e jurídica e sua controversa vocação


para gerar direitos subjetivos públicos para a população, fazen-
do uma interpretação de ruptura com a doutrina clássica, em
que figuravam como enunciados políticos, meras exortações
morais, destituídas de eficácia jurídica, atribuindo a estas
eficácia vinculante e imediata, levando em consideração que
toda norma constitucional é sempre obrigatória, já que deriva
do Poder Constituinte, sendo dotadas de supra legalidade
(BARROSO, 1993, p. 281).

Por último, considero que se debruçar sobre este palpitante tema, é


ter um outro olhar, é avaliar com um juízo crítico, é fazer uma escuta tera-
pêutica, e produzir um discurso capaz de sensibilizar a classe política, os
gestores públicos, reivindicando direitos e prestações negados ou bloque-
ados pelos “decisores político-administrativos”, na expressão cunhada por
Canotilho (2000).
O próprio Professor J.J. Gomes Canotilho (2000), em seu livro “Rever
ou romper com a Constituição Dirigente – defesa de um constitucionalismo
moralmente reflexivo”, aponta nesse sentido.
Na minha leitura, o questionamento do mencionado mestre constitu-
cionalista português é uma invocação à fraternidade, que intui a colaboração
para a consecução de objetivos comuns, atributo presente no preâmbulo da
Constituição da República Federativa do Brasil, de carga ideológica, mas

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VIRGÍNIA DE FÁTIMA MARQUES BEZERRA
SOLUÇÃO DE COMPROMISSO RUMO ÀS CORES DA VIDA

que na forma de Lei, o corpo do texto constitucional, tem conteúdo pro-


gramático e pragmático, demonstrando que as desigualdades sociais não são
unicamente de ordem subjetiva e sim objetiva, e que para remover os obstá-
culos de ordem econômica e social que limitam a liberdade e igualdade dos
cidadãos, é necessário articular politicamente, dar atenção especial e deta-
lhar prioridades em cláusulas que garantam o seu cumprimento.
No dia que a vulnerabilidade da vida não seja confundida com a vul-
nerabilidade da saúde, nem com a hipossuficiência do cidadão; viveremos
a concretude do “Estado Democrático de Direito”, deixando essa expressão
de figurar como de cunho ideológico no preâmbulo da Constituição Fede-
ral, deixando de ser mera norma constitucional de natureza programática,
para se converter, de fato e de direito, em direito fundamental do homem,
integrando, com a merecida atenção e dimensão, a previsão orçamentária e
o planejamento dos programas de governo dos entes federados, ostentando,
verdadeiramente, a qualidade de direito fundamental.

REFERÊNCIAS

ALEXY, Robert. Teoria dos direito fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso


da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008.

BARROSO, Luís Roberto. O Direito constitucional e a efetividade de suas


normas-limites e possibilidades da Constituição Brasileira. 2. ed. Rio de
Janeiro: Renovar, 1993

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil


de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/
Constituicao.htm>. Acesso em: 13 set. 2014.

BRASIL. Lei Federal n.º 8.080, de 19 de setembro de 1990: Dispõe sobre as


condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o
funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Disponível

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A JUDICIALIZAÇÃO DOS SISTEMAS DE SAÚDE:
VIRGÍNIA DE FÁTIMA MARQUES BEZERRA
SOLUÇÃO DE COMPROMISSO RUMO ÀS CORES DA VIDA

em: <http://conselho.saude.gov.br/legislacao/lei8080_190990.htm>. Acesso em:


13 set. 2014.

BRASIL. Lei nº 12.401, de 28 de abril de 2011: Altera a Lei no 8.080, de 19


de setembro de 1990, para dispor sobre a assistência terapêutica e a incorporação
de tecnologia em saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS. Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12401.
htm>. Acesso em: 13 set. 2014.

BRASIL. Portaria nº 2.583 de 10 de outubro de 2007: Define elenco de


medicamentos e insumos disponibilizados pelo Sistema Único de Saúde, nos
termos da Lei nº 11.347, de 2006, aos usuários portadores de diabetes mellitus.
Disponível em: <http://www.saude.rs.gov.br/upload/20130926101322_
portaria_2583_07.pdf>. Aceso em: 13 set. 2014.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade


3.510 – DF. Rel. Min. Ayres Britto, Julgado 29/05/2008. Tribunal do
Pleno. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.
jsp?docTP=AC&docID=611723>. Acesso em: 13 set. 2014.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo no Recurso Extraordinário


n. 271.286 – RS. Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 12/9/2000.
2ª Turma. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.
jsp?docTP=AC&docID=335538>. Acesso em: 13 set. 2014.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Agravo de


Instrumento 734.487 – PR. Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 3/8/2010.
2ª Turma. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.
jsp?docTP=AC&docID=613652>. Acesso em: 13 set. 2014.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Agravo de


Instrumento 550.530 – PR. Rel. Min. Joaquim Barbosa, julgamento em

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VIRGÍNIA DE FÁTIMA MARQUES BEZERRA
SOLUÇÃO DE COMPROMISSO RUMO ÀS CORES DA VIDA

26/6/2012. 2ª Turma. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/


paginador.jsp?docTP=TP&docID=2555288>. Acesso em: 13 set. 2014.

CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Estudos sobre direitos fundamentais.


Coimbra: Coimbra, 2008.

CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Rever ou romper com a constituição


dirigente?: Defesa de um Constitucionalismo moralmente reflexivo. Revista dos
Tribunais, São Paulo, abr./jun. 2000.

GRINOVER, Ada Pellegrini... [et al]. Código brasileiro de defesa do


consumidor: Comentado pelos autores do anteprojeto. 6. ed. Rio de Janeiro:
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ISTURIZ, Martín. Agência de Notícias. Inter Press Service. 2011. Disponível


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ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS IBERO-AMENRICANOS.


Medicamentos: ¿BIEN PÚBLICO O BIEN DE MERCADO?. Divulgación
y Cultura Iberoamericana. Organización de Estados Iberoamericanos. 2010.
Disponível em: <http://www.oei.es/divulgacioncientifica/noticias_598.htm>.
Acesso em: 13 set. 2014.

ORGANIZACIÓN PANAMERICANA DE LA SALUD. El medicamento


como bien social fue el eje de la XXX Reunión del Consejo Federal Legislativo
de Salud. Disponível em: <http://www.paho.org/arg/index.php?option=com_
content&view=article&id=9757:me. Acesso em: 13 set. 2014.

SALAMANO, Mercedes. Medicamento como “bem social”. Disponível em:


<http://www.cei.es/divulgacioncientifica/noticias_598.htm>. Acesso em: 13 set.
2014.

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ANEXO A – SENTENÇA: CASO PARADIGMA

INFORMACÕES SOBRE ESTE DOCUMENTO

Nr. do Processo
0515128-61.2011.4.05.8400S
Autor
RAPHAEL MARINHO CARVALHO

Data da Validação
11/12/2011 17:36:20
Réu
Município de Natal e outros

Juiz(a) que Validou


MARCO BRUNO MIRANDA CLEMENTINO

SENTENÇA

I – RELATÓRIO
 
Trata-se de ação proposta por RAPHAEL MARINHO CARVALHO,
com pedido de tutela antecipada, contra a UNIÃO, ESTADO DO RIO
GRANDE DO NORTE e do MUNICÍPIO DO NATAL, requerendo o
fornecimento de medicamento não disponibilizado pelos entes réus e indis-
pensável ao tratamento da patologia que o acomete.
 
II – FUNDAMENTAÇÃO

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 Defiro o pedido de justiça gratuita.


Inicialmente, torna-se interessante discorrer acerca da questão preli-
minar suscitada pela União, tendo em vista que, a priori, os entes públicos
das três esferas federativas poderiam responder, já que há uma sucessão de
atos para o efetivo cumprimento dos serviços públicos de saúde prestados
à população, seja quanto à origem dos recursos, os repasses legais, até a sua
distribuição, demonstrando uma cadeia complexa de atos que resulta na
legitimidade dos entes da federação.
Sendo assim, há legitimidade passiva da União, Estado e Município,
sendo a questão referente à efetiva averiguação sobre quem recai a responsa-
bilidade de custeio/fornecimento direto do medicamento matéria atinente
ao mérito da demanda.
Outrossim, rejeito a preliminar de falta de interesse de agir suscitada
pelo Município do Natal. Com efeito, a demora injustificada no forne-
cimento do medicamento é hábil a configurar o interesse processual no
ajuizamento da demanda, sendo certo que o problema do desabastecimento
vem ocorrendo de forma bastante freqüente.
Devem ser desacolhidas, portanto, as prefaciais suscitadas.
No mérito, verifica-se que a parte autora pleiteia tutela judicial que
lhe assegure o direito a tratamento de saúde, mediante o fornecimento de
medicamento. Embasa a pretensão no direito constitucional e fundamen-
tal à vida, previsto genericamente no art. 5º da CRFB, e detalhado nos art.
196 e 198 da Carta Magna.
De acordo com a Constituição Federal a saúde é direito fundamen-
tal, assegurado conforme o disposto no seu art. 196:

“Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado,


garantido mediante políticas sociais e econômicas que
visem à redução do risco de doença e de outros agravos e
ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para
sua promoção e recuperação.”
 

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SOLUÇÃO DE COMPROMISSO RUMO ÀS CORES DA VIDA

Com efeito, não poderia a Lei Maior dispor diferentemente, haja vista
que o direito à saúde é expressão do direito fundamental à dignidade humana
e deve ser prestado, como expresso no texto constitucional, de forma igua-
litária a todas as pessoas.
No mesmo diapasão, dispõe a Lei nº 8.080/90:
 
“Art. 2º. A saúde é um direito fundamental do ser humano,
devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao
seu pleno exercício.
§ 1º O dever do Estado de garantir a saúde consiste na for-
mulação e execução de políticas econômicas e sociais que
visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos
e no estabelecimento de condições que assegurem acesso
universal e igualitário à ações e aos serviços para a sua
promoção, proteção e recuperação.”
 
A jurisprudência pátria tem expressamente entendido, a partir do
precedente do STJ no RESP nº 212346/RJ, que acolheu pedido de for-
necimento de medicamento formulado contra o Estado, o dever público
constitucional à integralidade da cobertura e o acesso universal e igualitá-
rio. “O Sistema Único de Saúde pressupõe a integralidade da assistência,
de forma individual ou coletiva, para atender cada caso em todos os níveis
de complexidade, razão pela qual, comprovada a necessidade do medica-
mento para a garantia da vida da paciente, devera ser ele fornecido” (RESP
1999/0039005-9, 2ª Turma, rel. Min. Franciulli Netto, j. Em 09/10/2001,
DJ de 04/02/2002, p. 321, LEXSTJ vol. 153, p. 00171, RJADCOAS vol.
34, p. 71. in. Simone Barbisan Fortes. Direito da Seguridade Social. 2005,
p. 321). Acentue se tratar de procedimento clínico à custa do SUS.
Destarte, a não inclusão de determinado medicamento no Compo-
nente Especializado da Assistência Farmacêutica ou outro programa no
âmbito do SUS, em lista prévia, constitui-se em mera formalidade que
não pode, por si só, obstaculizar o fornecimento gratuito de medicamento
necessário para o tratamento da saúde de portador de moléstia grave com-
provada nos autos (STJ – REsp n. 684646/RS. 1ª Turma, Rel. Min. Luiz

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Fux, j. 05/05/2005, DJ 30.05.2005), não se configurando hipótese de ofensa


à discricionariedade administrativa o fornecimento do medicamento, pelo
simples fato de não constar do referido Programa nem em outro programa do
Ministério da Saúde. Certo que não há regulamentação da assistência farma-
cêutica na legislação ordinária, contudo, sendo um direito fundamental, há
que se abstrair um mínimo existencial deste direito da própria Constituição.
Referindo-se à questão da saúde, seja mediante tratamento cirúrgico,
medicamentoso, ou para a realização de exames necessários e complementa-
res ao tratamento, deve-se observar o mínimo existencial que é identificável,
basicamente, pela essencialidade do medicamento/serviço, e indispensabi-
lidade deste para manutenção da vida, e para a garantia que esta vida seja
digna, já que nos termos da jurisprudência do STF o direito a saúde/vida
não é limitado a medidas protetoras do risco de morte, mas também da
qualidade e dignidade de vida. O mínimo existencial, portanto, deve ser con-
siderado, como faz a doutrina dominante, pela análise objetiva, de acordo
com o bem jurídico a ser tutelado.
Quanto à situação de hipossuficiência econômica da parte autora, não
se faz necessária tal comprovação, atendendo a sua essencialidade e indis-
pensabilidade, e observando-se a razoabilidade do pleito.
Por outro lado, quanto à autonomia dos Poderes, é verdade que não
cabe ao Judiciário a formulação e a execução de políticas públicas, atribuições
inerentes aos Poderes Executivo e Legislativo. Porém, surgida uma ofensa a
bem jurídico constitucionalmente tutelado por cuja integralidade deve velar
o Poder Público – conforme aqui evidenciado –, cabe ao Poder Judiciário
determinar a atuação do Estado, no caso, na salvaguarda do direito público
subjetivo à saúde.
Ademais, na busca da efetivação dos direitos fundamentais não pode
o Poder Público converter em promessa constitucional, sem eficácia impo-
sitiva, o disposto no art. 196 da Constituição Federal, diante do caráter
programático da norma, frustrando justa expectativa de garantia constitu-
cional à saúde.

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SOLUÇÃO DE COMPROMISSO RUMO ÀS CORES DA VIDA

Descabe falar-se também em ofensa ao princípio da legalidade orça-


mentária e da reserva do possível, ou do financeiramente possível, tenho que
não se caracteriza na espécie.
É evidente que há limitações financeiras e jurídicas à efetivação dos
direitos fundamentais, atendendo a reserva do possível. Mais, ainda, nos
Estados onde há uma grande desigualdade social, com uma massa muito
grande de pessoas vivendo na linha da pobreza, quiçá na miséria, depen-
dendo, primordialmente, da assistência do Estado, com muita facilidade
surgem óbices à satisfação dos direitos fundamentais, sejam limitações de
cunho financeiro ou mesmo jurídico, diante das imposições das leis orçamen-
tárias e de responsabilidade fiscal. Com efeito, a apreciação desta realidade
fática não pode ser desconsiderada pelo Judiciário, sob pena proferir deci-
sões inexeqüíveis ou inócuas.
Como, então, conciliar a necessidade de efetivação dos direitos fun-
damentais e a reserva do possível? Penso que somente diante da situação
concreta, com o auxílio dos princípios da dignidade da pessoa humana e da
proporcionalidade, lastreado pela regra de que o postulante somente pode
pedir prestações que sejam necessárias, úteis e razoáveis, e o demandado
somente pode prestar aquilo que está ao seu alcance material, pode-se che-
gar a uma conclusão possível a cada caso concreto.
Diante destes parâmetros, verificando o Poder Judiciário, no caso
concreto, a existência de omissão na concretização de direitos fundamen-
tais, em flagrante violação ao mínimo existencial inerente à dignidade da
pessoa humana, seara em que não há espaço de discricionariedade para o
gestor público diante do encargo ético-político-jurídico, impõe-se a atuação
do Judiciário, que somente encontrará limites na situação fática concreta
mediante prova cabal do Poder Público de incapacidade material para a satis-
fação do direito fundamental perseguido, o que não é o caso.
Mesmo assim, observando esta ponderação, quando se discute cer-
tos direitos fundamentais – como a vida e a saúde – não basta uma simples
alegação da reserva do possível, sem qualquer comprovação efetiva, para
desincumbir o Estado da prestação, já que se constata de forma pública e

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A JUDICIALIZAÇÃO DOS SISTEMAS DE SAÚDE:
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SOLUÇÃO DE COMPROMISSO RUMO ÀS CORES DA VIDA

notória que os entes políticos gastam valores bastante consideráveis em áreas


secundárias, como, por exemplo, a propaganda governamental.
Como ressaltado pela Ministra Eliana Calmon, no REsp. nº 784241,
“tem prevalecido no STJ o entendimento de que é possível, como amparo
no art. 461, § 5º, do CPC, o bloqueio de verbas públicas para garantir o
fornecimento de medicamentos pelo Estado”, ressaltando a ilustre Ministra,
que “embora venha o STF adotando a ‘Teoria da Reserva do Possível’ em
algumas hipóteses, em matéria de preservação dos direitos à vida e à saúde,
aquela Corte não aplica tal entendimento, por considerar que ambos são
bens máximos e impossíveis de ter sua proteção postergada”.
Neste sentido, posicionou-se a Suprema Corte, em julgado assim
ementado:

“EMENTA: PACIENTES COM ESQUIZOFRENIA


PARANÓIDE E DOENÇA MANÍACO-DEPRESSIVA
CRÔNICA, COM EPISÓDIOS DE TENTATIVA DE SUI-
CÍDIO. PESSOAS DESTITUÍDAS DE RECURSOS FI-
NANCEIROS. DIREITO À VIDA E À SAÚDE. NECESSI-
DADE IMPERIOSA DE SE PRESERVAR, POR RAZÕES
DE CARÁTER ÉTICO-JURÍDICO, A INTEGRIDADE
DESSE DIREITO ESSENCIAL. FORNECIMENTO
GRATUITO DE MEDICAMENTOS INDISPENSÁVEIS
EM FAVOR DE PESSOAS CARENTES. DEVER CONS-
TITUCIONAL DO ESTADO (CF, ART’S 5º, CAPUT, E
196). PRECEDENTES DO STF. ABUSO DO DIREITO
DE RECORRER. IMPOSIÇÃO DE MULTA. RECURSO
DE AGRAVO IMPROVIDO.”
(STF – AgRg no RE 393.175-0/RS, Rel. Min. Celso de Mello,
2ª Turma. j. 12.12.2006).
 
No caso dos autos, entendo que restou demonstrada a indispensa-
bilidade do uso dos medicamentos requeridos, tendo em vista os laudos
médicos acostados aos autos, dando conta da necessidade de utilização dos
fármacos em questão.

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A JUDICIALIZAÇÃO DOS SISTEMAS DE SAÚDE:
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SOLUÇÃO DE COMPROMISSO RUMO ÀS CORES DA VIDA

De outra banda, deve-se haver o direcionamento da responsabilidade


pela falha na prestação de serviço de saúde ao ente competente.
Na realidade, nada obstante os medicamentos solicitados pela parte
autora (LANTUS e APIDRA) não constarem em lista prévia do SUS,
entendo que a responsabilidade para fornecimento de tais medicamentos é
do Município do Natal.
De fato, a dispensação de medicamentos e insumos para o controle
da diabetes mellitus encontra-se no âmbito da atenção básica, consoante se
depreende da Portaria GM nº 4.217, de 28 de dezembro de 2010.
Por seu turno, embora a União seja responsável por financiar a aqui-
sição e a distribuição às Secretarias de Saúde dos Estados dos medicamentos
insulina humana NPH 100 UI/mL e insulina humana regular 100 UI/mL,
cabendo aos gestores estaduais a distribuição aos Municípios, nos moldes
do art. 6º e parágrafo único da mencionada portaria, é certo que pode haver
pactuação para descentralização de tais recursos, a exemplo do constante na
Portaria GM 427, de 23 de fevereiro de 2006, que aprovou a descentrali-
zação de recursos financeiros do Ministério da Saúde para municípios do
Estado do Rio Grande do Norte, destinados ao custeio de medicamentos
dos grupos de hipertensão e diabetes e asma e rinite.
Atualmente, inclusive, quanto ao Município do Natal, existe Termo
de Ajustamento de Conduta entre o Ministério Público do Rio Grande do
Norte e o mencionado ente municipal, em razão da qual fica a cargo do
Município, através da Secretaria Municipal de Saúde, dispensar em sua rede
de atendimento, de forma regular e contínua, o elenco de medicamentos
previstos pela Portaria GM 2.583/2007 aos usuários portadores de diabe-
tes mellitus, além das insulinas excepcionais glargina ou determir e lispro
ou asparte, em suas respectivas apresentações.
Dessa forma, constata-se que o fornecimento de medicamentos e
insumos relativos ao tratamento da diabetes mellitus encontra-se sob res-
ponsabilidade do Município do Natal, sendo, inclusive, uma das insulinas
ora solicitadas objeto de TAC entre o referido ente municipal e o Ministé-
rio Público do Rio Grande do Norte.

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A JUDICIALIZAÇÃO DOS SISTEMAS DE SAÚDE:
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SOLUÇÃO DE COMPROMISSO RUMO ÀS CORES DA VIDA

Ademais, o próprio ente municipal, em sua peça de defesa, reconheceu


a responsabilidade quanto ao fornecimento dos medicamentos e insumos
solicitados, conforme se observa do anexo nº 19.
Diante do exposto, tenho que há fundamentos fáticos e jurídicos para
o acolhimento do pleito autoral, já que demonstrado, com parecer médico
que instrui o processo, a gravidade da enfermidade que aflige a parte autora
e a necessidade da utilização dos medicamentos pleiteados.

III – DISPOSITIVO

Com essas considerações, ratificando a decisão de antecipação dos


efeitos da tutela, JULGO PROCEDENTE o pedido formulado à inicial,
para determinar ao Município do Natal que forneça as insulinas LANTUS
e APIDRA, bem como agulhas para caneta, fitas para glicosímetro e lancetas
para realização de glicemias capilares, na quantidade que lhe foram prescri-
tas através de receituário médico acostado aos autos (anexo 03).
A dispensação ocorrerá segundo os parâmetros de gestão do Municí-
pio do Natal, podendo ser exigida periodicamente renovação do receituário
médico.
Dispensado o pagamento de custas e honorários advocatícios, nos ter-
mos do artigo 55 da Lei nº 9.099/95.

Intimações necessárias, na forma da Lei nº 10.259/2001.

Natal/RN, 09 de dezembro de 2011.

 
MARCO BRUNO MIRANDA CLEMENTINO
Juiz Federal Titular da 3ª Vara/RN.

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ANEXO B – LEI FEDERAL N. 12.401/2011

Presidência da República
Casa Civil
Subchefia para Assuntos Jurídicos

LEI Nº 12.401, DE 28 DE ABRIL DE 2011.

MENSAGEM DE VETO
VIGÊNCIA

Altera a Lei no 8.080, de 19 de setembro de 1990, para dispor


sobre a assistência terapêutica e a incorporação de tecnologia
em saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS.

A PRESIDENTA DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso


Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei: 
Art. 1o O Título II da Lei no 8.080, de 19 de setembro de 1990, passa
a vigorar acrescido do seguinte Capítulo VIII: 

“CAPÍTULO VIII – DA ASSISTÊNCIA TERAPÊUTICA E DA


INCORPORAÇÃO DE TECNOLOGIA EM SAÚDE” 

“Art. 19-M. A assistência terapêutica integral a que se refere a alínea d do


inciso I do art. 6o consiste em: 
I - dispensação de medicamentos e produtos de interesse para a saúde,
cuja prescrição esteja em conformidade com as diretrizes terapêuticas definidas
em protocolo clínico para a doença ou o agravo à saúde a ser tratado ou, na falta
do protocolo, em conformidade com o disposto no art. 19-P; 

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A JUDICIALIZAÇÃO DOS SISTEMAS DE SAÚDE:
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SOLUÇÃO DE COMPROMISSO RUMO ÀS CORES DA VIDA

II - oferta de procedimentos terapêuticos, em regime domiciliar, ambula-


torial e hospitalar, constantes de tabelas elaboradas pelo gestor federal do Sistema
Único de Saúde - SUS, realizados no território nacional por serviço próprio,
conveniado ou contratado.” 

“Art. 19-N. Para os efeitos do disposto no art. 19-M, são adotadas as


seguintes definições: 
I - produtos de interesse para a saúde: órteses, próteses, bolsas coletoras
e equipamentos médicos; 
II - protocolo clínico e diretriz terapêutica: documento que estabelece
critérios para o diagnóstico da doença ou do agravo à saúde; o tratamento preco-
nizado, com os medicamentos e demais produtos apropriados, quando couber;
as posologias recomendadas; os mecanismos de controle clínico; e o acompa-
nhamento e a verificação dos resultados terapêuticos, a serem seguidos pelos
gestores do SUS.” 

“Art. 19-O. Os protocolos clínicos e as diretrizes terapêuticas deverão esta-


belecer os medicamentos ou produtos necessários nas diferentes fases evolutivas
da doença ou do agravo à saúde de que tratam, bem como aqueles indicados
em casos de perda de eficácia e de surgimento de intolerância ou reação adversa
relevante, provocadas pelo medicamento, produto ou procedimento de pri-
meira escolha. 
Parágrafo único. Em qualquer caso, os medicamentos ou produtos de que
trata o caput deste artigo serão aqueles avaliados quanto à sua eficácia, segurança,
efetividade e custo-efetividade para as diferentes fases evolutivas da doença ou
do agravo à saúde de que trata o protocolo.” 

“Art. 19-P. Na falta de protocolo clínico ou de diretriz terapêutica, a dis-


pensação será realizada: 
I - com base nas relações de medicamentos instituídas pelo gestor federal
do SUS, observadas as competências estabelecidas nesta Lei, e a responsabili-
dade pelo fornecimento será pactuada na Comissão Intergestores Tripartite; 

104
A JUDICIALIZAÇÃO DOS SISTEMAS DE SAÚDE:
VIRGÍNIA DE FÁTIMA MARQUES BEZERRA
SOLUÇÃO DE COMPROMISSO RUMO ÀS CORES DA VIDA

II - no âmbito de cada Estado e do Distrito Federal, de forma suplemen-


tar, com base nas relações de medicamentos instituídas pelos gestores estaduais
do SUS, e a responsabilidade pelo fornecimento será pactuada na Comissão
Intergestores Bipartite; 
III - no âmbito de cada Município, de forma suplementar, com base nas
relações de medicamentos instituídas pelos gestores municipais do SUS, e a
responsabilidade pelo fornecimento será pactuada no Conselho Municipal de
Saúde.” 

“Art. 19-Q. A incorporação, a exclusão ou a alteração pelo SUS de novos


medicamentos, produtos e procedimentos, bem como a constituição ou a altera-
ção de protocolo clínico ou de diretriz terapêutica, são atribuições do Ministério
da Saúde, assessorado pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias
no SUS. 
§ 1o A Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS, cuja
composição e regimento são definidos em regulamento, contará com a parti-
cipação de 1 (um) representante indicado pelo Conselho Nacional de Saúde e
de 1 (um) representante, especialista na área, indicado pelo Conselho Federal
de Medicina. 
§ 2o O relatório da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias
no SUS levará em consideração, necessariamente: 
I - as evidências científicas sobre a eficácia, a acurácia, a efetividade e a
segurança do medicamento, produto ou procedimento objeto do processo, aca-
tadas pelo órgão competente para o registro ou a autorização de uso; 
II - a avaliação econômica comparativa dos benefícios e dos custos em
relação às tecnologias já incorporadas, inclusive no que se refere aos atendimen-
tos domiciliar, ambulatorial ou hospitalar, quando cabível.” 

“Art. 19-R. A incorporação, a exclusão e a alteração a que se refere o art.


19-Q serão efetuadas mediante a instauração de processo administrativo, a ser
concluído em prazo não superior a 180 (cento e oitenta) dias, contado da data
em que foi protocolado o pedido, admitida a sua prorrogação por 90 (noventa)
dias corridos, quando as circunstâncias exigirem. 

105
A JUDICIALIZAÇÃO DOS SISTEMAS DE SAÚDE:
VIRGÍNIA DE FÁTIMA MARQUES BEZERRA
SOLUÇÃO DE COMPROMISSO RUMO ÀS CORES DA VIDA

§ 1o O processo de que trata o caput deste artigo observará, no que couber,


o disposto na Lei no 9.784, de 29 de janeiro de 1999, e as seguintes determi-
nações especiais: 
I - apresentação pelo interessado dos documentos e, se cabível, das amos-
tras de produtos, na forma do regulamento, com informações necessárias para
o atendimento do disposto no § 2o do art. 19-Q; 
II - (VETADO); 
III - realização de consulta pública que inclua a divulgação do parecer emi-
tido pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS; 
IV - realização de audiência pública, antes da tomada de decisão, se a rele-
vância da matéria justificar o evento. 
§ 2o (VETADO).” 

“Art. 19-S. (VETADO).” 

“Art. 19-T. São vedados, em todas as esferas de gestão do SUS: 


I - o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso de medicamento, pro-
duto e procedimento clínico ou cirúrgico experimental, ou de uso não autorizado
pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA; 
II - a dispensação, o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso de medi-
camento e produto, nacional ou importado, sem registro na Anvisa.” 
“Art. 19-U. A responsabilidade financeira pelo fornecimento de medica-
mentos, produtos de interesse para a saúde ou procedimentos de que trata este
Capítulo será pactuada na Comissão Intergestores Tripartite.” 
Art. 2o Esta Lei entra em vigor 180 (cento e oitenta) dias após a data de
sua publicação.

Brasília, 28 de abril de 2011; 190o da Independência e 123o da República. 

DILMA ROUSSEFF
Guido Mantega
Alexandre Rocha Santos Padilha
Este texto não substitui o publicado no DOU de 29.4.2011

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