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Das Cláusulas Abusivas e o Código Civil

CLÁUDIA LIMA MARQUES


Professora da Universidade do Rio Grande do Sul

A  boa-fé  (Treu und Glauben) 1 A  pesquisa  na  jurisprudência  do


deve  estar  presente  em  todas  as  rela- Tribunal  de  Justiça  do  Rio  Grande  do
ções  contratuais,  de  consumo,  civis  e Sul,  cujo foco da análise foi a utilização
entre  empresários.  Nesta  Escola  Supe- do  princípio  da  boa-fé,  levantou  as  deci-
rior  da  Magistratura,  gostaria  de sões de março de 1991, quando o Código
relembrar  que  o  tema  da  boa-fé  tem  ín- entrou em vigor, até agosto de 2001, ana-
tima  relação  com  a  sua  construção  pela lisando  estes  mais  de  dez  anos  do  Códi-
Jurisprudência  (Richterrecht).2   Assim, go  de  Defesa  do  Consumidor  na  prática.
antes de que o princípio da boa-fé incida O  resultado  da  pesquisa  foi  o  seguinte:
ainda  com  mais  força  no  Brasil,  através encontramos  2.779  decisões,  que  utili-
do  novo  Código  Civil,  gostaria  de  tecer zam  o  princípio  da  boa-fé.  O  mais  inte-
algumas  observações  sobre  a  boa-fé  no ressante  foi  a  evolução  dessa  aplicação
Código  de  Defesa  do  consumidor,  tendo ‘massificada’ do princípio da boa-fé.  Em
como  base  a  pesquisa  jurisprudencial 1991,  apenas  cinco  decisões  usavam  o
que realizamos no TJ/RS sobre o uso do referido princípio, sendo que dessas cin-
princípio da boa-fé de 1991 a 2001.3 co, duas delas utilizavam-no ainda numa
O  Código  de  Defesa  do  Consumi- visão  subjetiva:  a  má-fé  ou  a  boa-fé  do
dor  (CDC)  está  em  vigor  a  mais  de  10 indivíduo  naquele  contrato  específico  ou
anos  no  Brasil,  com  seus  princípios naquela  relação  da  vida.4
d e   boa-fé  e  equilíbrio  nas  relações Já em 2001, pelo menos até agos-
contratuais de consumo e pode servir de to,  encontramos  72  decisões  usando  o
manancial  de  jurisprudência,  inclusive princípio da boa-fé, sendo que 55 das 72
para a aplicação do novo Código Civil, Lei citavam  expressamente  os  princípios  e
10.406/2002  (a  seguir  CC/2002). as  normas  do  Código  de  Defesa  do  Con-
sumidor,  demonstrando  que  o  juiz  bra-
Palestra  proferida  no  Seminário  realizado  em
sileiro  tem  muito  mais  facilidade  quan-
14.06.2002.
1
  A  autora  agradece  o  gentil  convite  do  Desembargador
do  a  lei  expressamente  prevê  a  possibi-
Sergio  Cavalieri  e  as  interessantes  reflexões  do  deba- lidade  de  uma  decisão  aberta,  através
te,  realizado  em  tão  boa  hora  na  EMERJ.  A  forma  oral de  uma  cláusula  geral.  As  cláusulas  ge-
foi  preservada,  con  adição  de  textos  e  notas.
2
  Veja,  por  todos,  TEPEDINO,  Gustavo  (Coord.),  Direi-
rais do CDC permitem que o magistrado
to Civil-Constitucional,  Renovar,  Rio  de  Janeiro, utilize  a  boa-fé  ou  mesmo,  excepcional-
2001,  p.  11  e  12:  “as  cláusulas  gerais  que,  previstas mente,  a  eqüidade,  a  revisão  dos  con-
pelo  legislador  contemporâneo,  no  Código  de  Defesa
do  Consumidor...,  vêm  sendo  amplamente  utilizadas tratos  por  onerosidade  excessiva,  figu-
pelos  operadores.  Recupera-se,  então,  o  papel  da  ju- ras  agora  presentes  no  CC/2002.
risprudência  e  da  doutrina...” Em  outras  palavras,  não  se  diga
3
  Veja    decisão  do    TJRS,  APC  70000037408,  j.
18.10.2000,  Des.  Paulo  Augusto  Monte  Lopes,  16ª  Câm.
que  o  magistrado  brasileiro  tende  ao
Cível.:  “Em  qualquer  negócio,  seja  qual  for  a  natureza, exagero  ou  a  não  aplicação  das  cláusu-
seja  qual  for  o  regime  jurídico  aplicável,  o  direito  prote- las  gerais.  Quando  a  norma  e  seu  man-
ge  a  boa-fé.  Proteger  a  boa-fé    significa  preservar  os
contratantes de artimanhas e subterfúgios. Como o con- dato  de  concretização  da  justiça
trato  é  lei  entre  as  partes,  e  uma  delas  pode  –  por  sua contratual  são  claros,  o  juiz  brasileiro
vulnerabilidade  ou  hipossuficiência  diante  da  outra  – realmente  atende  a  essa  idéia  e  a  apli-
ter  assinado  o  instrumento  sem  compreender  por  com-
pleto  tudo  o  que  nele  se  dispôs  ou  mesmo  por  vício,  o
direito  ampara  os  interesses  desse  contratante  fazendo 4
 Veja detalhes sobre esta pesquisa em meu livro, Con-
prevalecer  sobre  a  literalidade  do  contrato  os  reais  obje- tratos no Código de Defesa do Consumidor,  4ª
tivos  pretendidos  na  contratação.”  (p.  4  do  original) ed.,RT,  São  Paulo,  2002,  p.  175  e  seg.

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ca.  Em  nosso  levantamento,  55  decisões do Consumidor traça regras que prescindem
expressamente se baseavam nas normas a situação específica de consumo, além dis-
do  Código  de  Defesa  do  Consumidor,  e so define princípios gerais orientadores do
em  seus  princípios.  Dentre  os  princípios Direito das Obrigações. Na teoria dos siste-
mais  citados  nestes  55  casos  estão:  o mas, é um caso estranho, a lei do
princípio da função social do contrato (16 microssistema enunciar princípios gerais
casos), o princípio da eqüidade contratual para o sistema como um todo, mas isto é o
(16  casos).  O  mais  interessante  é  que que está acontecendo no caso, por várias
desses  cinqüenta  e  cinco  casos  que  ci- razões, mas principalmente porque a nova
tam  o  Código  de  Defesa  do  Consumidor, lei incorporou ao ordenamento civil legisla-
em  trinta  e  sete,  a  decisão  foi  a  favor do normas que expressam o desenvolvimen-
dos  consumidores,  mas  em  17  casos  o to do mundo dos negócios e o atual estado
consumidor  não  obteve  ganho  de  causa, da ciência, introduzindo na relação
a  demonstrar  que  o  princípio  da  boa-fé, obrigacional a idéia de justiça contratual, da
ou  a  valoração  através  do  princípio  da equivalência das prestações e da boa-fé.” 5
boa-fé  não significa um ganho de causa Então,  de  um  lado,  temos  a  expe-
para o consumidor em cem por cento dos riência de dez anos de aplicação do CDC
casos.  O  importante  aqui  é  a  procu- e  de  sua  cláusula  geral  de  boa-fé  e  de
ra  da  justiça  no  caso  concreto outro  lado,  essa  pergunta:  o  que  muda
(Vetragsgerechtigkeit).  A  concretização no  Direito  civil  em  matéria  de  cláusulas
da boa-fé é, pois, um instrumento válido abusivas, com a entrada em vigor do Có-
e útil para a procura da Justiça no caso digo Civil de 2002, mesmo frente  ao pró-
concreto  ou  aequitas. prio  Código  de  Defesa  do  Consumidor?
Como  ensina  o  Prof.  Paulo  Neto Para  bem  responder  esta  per-
Lobo,  o  princípio  da  boa-fé  objetiva  vem gunta  gostaria  de  dividir  minha  expo-
refuncionalizado  no  Direito  do  Consumi- sição  em  duas  partes,  uma  mais  teó-
dor,  otimizado  na  sua  dimensão  de  cláu- rica  analisando  o  ‘diálogo’  das  fontes
sula  geral,  e  assim  serve  de  parâmetro legislativas  novas  e  velhas,  isto  é,  os
de  validade  dos  contratos  de  consumo, ‘diálogos’ possíveis entre o CDC e o CC/
principalmente  para  as  condições  gerais 2002,  para  em  uma  segunda  concen-
de  consumo  e  os  contratos  de  adesão, trar-me  em  um  destes  diálogos  possí-
hoje  também  regulados,  se  puramente veis,  o  de  influências  recíprocas,  onde
civis  ou  puramente  empresariais  no  CC/ a  jurisprudência  brasileira  já  desen-
2002, que unifica as regras sobre obriga- volvida  sobre  as  funções  da  boa-fé  ob-
ções  civis  e  comerciais. jetiva,    podem  nos  ajudar  a  enten-
Parece-me  que  essa  experiência der  como  se  dará  este  diálogo,  artigo
que  tivemos  de  dez  anos  de  Código  de por artigo do CC/2002.
Defesa  do  Consumidor  pode  nos  ajudar,
agora, a imaginar essa revolução do con- I – Os ‘diálogos’ possíveis entre o CDC
trato,  essa  sociabilização  da  teoria e o CC/2002: a superação do ‘conflito’
contratual  tão  mencionada.  O  uso  do pelo ‘diálogo’ entre fontes
Código  de  Defesa  do  Consumidor  como Segundo o § 2.o do art. 2.o da LICC,
parâmetro,  como  oxigenação  do  Direito a  lei  nova,  que  estabeleça  disposições
Civil  foi  muito  comum,  tendo  sido  até gerais  ‘a  par  das  já  existentes’,  como  o
mesmo  mencionado  em  decisões  pelo CC/2002,  ‘não  revoga  nem  modifica  a
Ministro Ruy Rosado de Aguiar. No REsp. lei  anterior’,  no  caso,  o  CDC.  Segundo
n°  80036,  de  25.03.96,  ao  explicar  esta o § 1.o do art. 2.o da LICC, a lei poste-
surpreendente  ‘oxigenação’  (expressão rior  revogará  a  anterior  quando:  1)  ex-
do  também  magistrado  Antônio  Janyr pressamente  o  declare;  2)  regule  in-
Dall’Agnol),  que  o  CDC  pôde  realizar  no
Direito Civil clássico, o Min. Ruy Rosado 5
  Assim,  Min.  Ruy  Rosado  de  Aguiar,  in  voto  no  Resp.
de  Aguiar  ensina:  “O Código de Defesa 80.036,  Min.  Ruy  Rosado  de  Aguiar,  DJ  25.03.1996.

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teiramente  a  matéria  de  que  tratava  a exemplo,  uma  lei  anterior,  como  o  Código
anterior;  3)  seja  com  ela  incompatível. de  Defesa  do  Consumidor  de  1990  e  uma
Os  dois  primeiros  casos  não  pa- lei posterior, como o novo Código Civil Bra-
recem  ocorrer  na  prática;  nem  o  CC/ sileiro  de  2002,  estariam  em  ‘conflito’,  daí
2002  revogou  expressamente  o  CDC, a  necessária  ‘solução’  do  ‘conflito’  através
nem  tratou  da  relação  de  consumo  ou da  prevalência  de  uma  lei  sobre  a  outra  e
incorporou  normas  sobre  as  ‘relações a  conseqüente  exclusão  da  outra  do  siste-
de  consumo’,  e  entre  as  duas  leis  há ma  (ab-rogação,  derrogação,  revogação).
uma  divergência  fundamental  de  cam- Em  outras  palavras,  nesta  visão
po  de  aplicação  subjetiva.  Uma  é  lei ‘perfeita’  ou  ‘moderna’,  teríamos  a  ‘Tese”
especial  anterior  e  hierarquicamente (lei  antiga),  a  “antítese”  (lei  nova)  e  a
superior  outra,  o  CC/2002,  é  lei  geral conseqüente síntese (a revogação), a tra-
posterior, lei entre iguais. O CDC uma zer  clareza    e  certeza  ao  sistema  (jurí-
lei  especial  voltada  para  a  equidade dico).  Os  critérios  para  resolver  os  con-
(aequitas),  já  o    CC/2002  é  uma  lei flitos de leis no tempo seriam assim ape-
voltada  para  a  igualdade  geral nas  três:  anterioridade,  especialidade  e
(aequalitas), 6   tanto  que  unifica  as  re- hierarquia,  a  priorizar-se,  segundo
gras  sobre  obrigações  civis  e  comerci- Bobbio,  a  hierarquia.9  A doutrina atua-
ais, mas não regula as relações de con- lizada,  porém,  está  a  procura  hoje  mais
sumo  (relações  entre  diferentes,  um da  harmonia  e  da  coordenação  entre  as
expert,  o  fornecedor  e  outro  leigo  ou normas  do  ordenamento  jurídico  (con-
vulnerável,  o  consumidor). cebido  como  sistema), 10   do  que  da  ex-
clusão.  É  a  denominada  “coerência  de-
A) A idéia de ‘diálogo das fontes’ rivada  ou  restaurada”  (cohérence
legislativas a superar a idéia de ‘con- dérivée ou restaurée), 11 que  em  um
flito’ entre leis momento  posterior  a  decodificação,  a
Em  seu  curso  Geral  de  Haia  de tópica  e  a  micro-recodificação,12   procu-
1995,  o  mestre  de  Heidelberg,  Erik ra  uma  eficiência  não  só  hierárquica,13
Jayme,  ensinava  que,  face  ao  atual mas funcional14  do sistema plural e com-
“pluralismo  pós-moderno”  de  um  Direito plexo  de  nosso  direito  contemporâneo,15
com  fontes  legislativas  plúrimas,  ressur- 9
  Veja  BOBBIO,  Norberto.  Teoria do ordenamento jurí-
ge  a    necessidade  de  coordenação  entre dico,  Ed.  Pollis/Universidade  de  Brasília,  S.  Paulo,
as  leis  no  mesmo  ordenamento,  como Brasília,  1990,  P.  92  e  BOBBIO,  Norberto,  “Des  critères
pour  résoudre  les  antinomies”,  in  PERELMAN,  CH.
exigência  para  um  sistema  jurídico  efi- (Coord.),  Les antinomies en Droit,  Bruxelas,  Ed.
ciente  e  justo. 7   Efetivamente,  cada  vez Bruylant,  1965,  p.  255.
mais  se  legisla,  nacional  e  internacio- 10
  Veja  SAUPHANOR,  Nathalie,  L’Influence du Droit
de la Consommation sur le système juridique, Pa-
nalmente,  sobre  temas  convergentes.  A ris,  LGDJ,  2000,  p.  23  a  32.
pluralidade  de  leis  é  o  primeiro  desafio 11
  Expressão  de  SAUPHANOR,  p.  32.
do  aplicador  da  lei  contemporâneo.  A 12
  Mencione-se  aqui  que  a  sempre  citada  obra  de
expressão  usada  comumente  era  a  de CANARIS,  Claus-Wilhelm,  Pensamento sistemático
e conceito de Sistema do Direito,  Gulbelkian,  Lis-
conflitos de leis no tempo8 , a significar que boa,  1989,  constroi  sua  idéia  de  sistema  justamente
haveria  uma  ‘colisão’  ou  conflito  entre  os criticando  a  tópica,  p.  255  e  seg.  Sobre  tópica  veja
campos de aplicação destas leis. Assim, por WIEHWEG,  Theodor.  Tópica e Jurisprudência,  trad.
Tércio  S.  Ferraz  Jr.,  Brasília,  Departamento  de  Impren-
sa  Nacional,  MJ-UnB,  1979.
6
  BERTHIAU,  Denis,  Le principe d’égalité et le droit 13
  Veja  sobre  a  crise  ou  neutralização  do  critério  da  hie-
civil des contrats, L.G.D.J.,  Paris,  1999,  p.  3  e  seg. rarquia e a utilização de outros critérios, GANNAGÉ, Léna,
7
  JAYME,  Erik,  “Identité culturelle et intégration: Le droit La hiérarchie des normes et les méthodes du droit
internationale privé postmoderne”  -  in: Recueil des international privé,  LGDJ,  Paris,  2001,  p.  25  e  26.
Cours de l’ Académie de Droit International de la 14
  SAUPHANOR,  p.  30.
Haye,  1995,  II,  p.  60  e  p.  251  e  seg. 15
 Veja sobre a necessidade de ‘coordinamento con altre
8
  Preferível  é  a  expressão  neutra  Direito  intertemporal, disposizioni’  do  Código  Civil  e  das  leis  especiais  de
já  usada  por  FRANÇA,  R.  Limogi,  Direito proteção  do  consumidor,  ALPA,  Guido  et  allii, La dis-
Intertemporal Brasileiro,  2.  Ed.,  Revista  dos  Tribu- ciplina generale dei contratti, 8.  ed.,  Giappichelli
nais,  São  Paulo,  1968,  p.  9    e  seg. Ed.  Torino,  2001  ,  p.  613  e  seg.

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a  evitar  a  ‘antinomia’,  a  ‘incompatibili- O  grande  mestre  de  Heidelberg
dade’  ou  a  ‘não-coerência’.16 propõe  então  a  convivência  de  uma  se-
Costumava-se  afirmar,  quanto  ao gunda  solução  ao  lado  da  tradicional:  a
tipo  de  conflitos  de  leis  no  tempo,  que coordenação  destas  fontes. 22   Uma  co-
poderiam  existir:  ‘conflitos  de  princípi- ordenação flexível e útil (effet utile) das
os’  (diferentes  princípios  presentes  em normas em conflito no sistema a fim de
diferentes  leis  em  conflito),  ‘conflitos  de restabelecer  a  sua  coerência,  isto  é,
normas’  (conflitos  entre  normas  de  duas uma  mudança  de  paradigma:  da  retira-
leis,  conflitos  ‘reais’  ou  ‘aparentes’,  con- da simples (revogação) de uma das nor-
forme  o  resultado  da  interpretação  que mas  em  conflito  do  sistema  jurídico  (ou
o  aplicador  das  leis  retirasse),  e do ‘monólogo’ de uma só norma possível
‘antinomias’  (conflitos  ‘pontuais’  da  con- a “comunicar” a solução justa), à convi-
vergência  eventual  e  parcial  do  campo vência  destas  normas,  ao  diálogo  das
de aplicação de duas normas no caso con- normas  para  alcançar  a  sua  ratio,  a
creto). 17 finalidade  “narrada”  ou  “comunicada”
Erik  Jayme 18   alerta-nos  que  os em  ambas.
tempos  pós-modernos,  onde  a Na  belíssima  expressão  de  Erik
pluralidade,  a  complexidade,  a  distinção Jayme,  é  o  atual  e  necessário  ‘diálogo
impositiva  dos  direitos  humanos  e  do das  fontes’  (dialogue de sources), 23   a
droit à la différence (direito a ser dife- permitir  a  aplicação  simultânea,  coeren-
rente  e  ser  tratado  diferentemente,  sem te  e  coordenada  das  plurímas  fontes
necessidade  mais  de  ser  ‘igual’  aos  ou- legislativas    convergentes. 24     ‘Diálogo’
tros) não mais permitem este tipo de cla- porque  há  influências  recíprocas,  ‘diálo-
reza ou de ‘mono-solução’. A solução sis- go’  porque  há  aplicação  conjunta  das
temática pós-moderna deve ser mais flu- duas normas ao mesmo tempo e ao mes-
ída,  mais  flexível,  a  permitir  maior  mo-
Pluriel-Etudes offertes au professeur Jean-François
bilidade  e  fineza  de  distinções.  Nestes
Perrin,  Helbing  &  Lichtenhahn,  Genbra,    2002,  p.
tempos,  a  superação  de  paradigmas  é 135  e  seg.  O  autor  constata  a  pouca  tolerância  que
substituída  pela  convivência dos temos  para  o  plural  e  cita  expressamente  Perrin  (“Les
relations  entre  la  loi  et  les  règles  de  la  bonne  foi:
paradigmas,19  a revogação expressa pela collaboration  ou  conflit  internormatif”?,  p.  42,  nota  4  ),
incerteza  da  revogação  tácita  indireta BELLEY, p. 136: La théorie du droit doit assumer souvent
através  da  incorporação  (veja  Art.  2.043 la délicate mission d’exprimer en termes généraux ce qui
se pratique déjà légitimement mais silencieusement. Le
do novo Código Civil), há  por fim a con- discours pluraliste n’est pas encore maîtrisé. Le dire fait
vivência  de  leis  com  campos  de  aplica- plus peur que le faire.“  No  Brasil,  veja  Fachin,  Luiz  Ed-
son,  “Transformações  do  direito  civil  brasileiro  con-
ção  diferentes,  campos  por  vezes  con-
temporâneo”, in  Diálogos sobre Direito Civil-Cons-
vergentes  e,  em  geral  diferentes,  em  um truindo a Racionalidade Contemporânea,  Org..  Car-
mesmo  sistema  jurídico,  que  parece  ser men  Lucia  Ramos,  Gustavo  Tepedino  et  alii,  Renovar,
Rio  de  Janeiro,  2002,  p.  43.
agora  um  sistema  (para  sempre)  plural, 22
  JAYME,  Recueil des Cours,  251  (1995),  p.  60.
fluído,  mutável  e  complexo.20  Não deixa 23
  JAYME,  Recueil des Cours,  251  (1995),  p.  259:
de  ser  um  paradoxo  que  o  ‘sistema’,  o “Dès lors que l’on évoque la communication en droit
todo  construído,  seja  agora  plural...  21 international privé, le phénomène le plus important est le
fait que la solution des conflits de lois émerge comme
16
  SAUPHANOR,  p.  31. résultat d’un dialogue entre les sources le plus
17
  Veja  detalhes  em  meu  livro,  Contratos no Código hétérogènes. Les droit de l’homme, les constitutions, les
de Defesa do Consumidor,  RT,  São  Paulo,  2002,  p. conventions internationales, les systèmes nationaux:
515  e  seg. toutes ces sources ne s’excluent pas mutuellement; elles
‘parlent’ l’une à l’autre. Les juges sont tenus de coordonner
18
  JAYME,  Recueil des Cours,  p.  60  e  p.  251.
ces sources en écoutant ce qu’elles disent.”
19
  GANNAGÉ,  p.  17. 24
  Como  ensina  SAUPHANOR,  p.  31,  em  direito,  a  au-
20
  Do  grande  mestre  da  USP,  vem  a  expressão  sistema sência  de  coerência  consiste  na  constatação  de  uma
hiper-complexo,  veja   AZEVEDO,  Antonio  Junqueira  de, antinomia,  definida  como  a  existência  de  uma  incom-
“O  Direito  pós-moderno  e  a  codificação”,  in  Revista patibilidade  entre  as  diretivas  relativas  ao  mesmo  ob-
Direito do Consumidor,  v.  33  (2000),  p.  124  e  seg. jeto.  No  original:  “En droit, l’absence de cohérence con-
21
  Veja  a  favor  do  pluralismo  jurídico  a  bela  análise  de siste dans la constatation d’une antinomie, définie comme
BELLEY,  Jean-guy,  “Le  pluralisme  juridique  comme l’existence d’une incompatilité entre les directives relatives
doctrine  de  la  science  du  droit”, in  Pour un Droit à un même objet.”

252 - Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil”


mo  caso,  seja  complementariamente,25 hierarquicamente’29   e  funcionalmente,30
seja  subsidiariamente,26   seja  permitin- visto hoje como ‘um complexo de elemen-
do a opção voluntária das partes sobre a tos  em  interação’31   ‘coerentes’  ou  ‘orgâ-
fonte  prevalente  (especialmente  em nicos’,32   de  ‘normas,  princípios  e  juris-
matéria  de  convenções  internacionais  e prudência’, 33   parece  importante  frisar
leis  modelos) 27   ou  mesmo  permitindo esta  visão  sistemática  do  ordenamento
uma  opção  por  uma  das  leis  em  conflito jurídico,  como  um  ‘conjunto  de  elemen-
abstrato.28   Uma  solução  flexível  e  aber- tos diversos cuja organização e interação
ta,  de  interpenetração  ou  mesmo  a  so- fornece  a  todo  a  ordem  jurídica  positiva
lução  mais  favorável  ao  mais  fraco  da reconhecida  como  tal  os  meios  para  al-
relação  (tratamento  diferente  dos  dife- cançar  sua  coerência  e  seu  funciona-
rentes). mento”. 34
Aceitando  a  definição  de  sistema Por  fim,  repita-se  que  o  novo  Có-
de  direito,  consolidada  por  Natalie digo  Civil  Brasileiro,  Lei  10.406  de  10
Sauphanor,  como  ‘um  todo  estruturado de janeiro de 2002, traz ao direito priva-
do  brasileiro  geral  os  mesmos  princípios
25
  Veja  sobre  a  aplicação  simultânea  de  várias  leis,  o já presentes no Código de Defesa do Con-
CC,  o  CDC  e  inclusive  as  leis  administrativas  sobre  o sumidor  (como  a  função  social  dos  con-
SFH,  duas  recentes  decisões  do  STJ.  Na  bela  decisão
no  Resp.  436.815-DF,  Min.  Nancy  Andrighi,  j. tratos, 35   a  boa-fé  objetiva36   etc.).  Real-
17.12.2002,  DJ  28.10.2002,  a  ementa  ensina:  “Pro- mente,  a  convergência  de  princípios  en-
cessual.  Civil....Contrato  de  compra  e  venda  de  imóvel
e  financiamento.  SFH.  Aplicação  do  Código  de  Defesa
tre  o  CDC  e  o  CC/2002  é  a  base  da
do  Consumidor.  empréstimo  concedido  por  associação inexistência  principiológica  de  conflitos
ao  associado.  Deve  ser  afastada  a  aplicação  da  cláusu- possíveis  entre  estas  duas  leis  que,  com
la  que  prevê  foro  de  eleição  diverso  do  domicílio  do
devedor  em  contrato  de  compra  e  venda  de  imóvel  e
igualdade  ou  equidade,  visam  a  harmo-
financiamento  regido  pelo  Sistema  Financeiro  da  Ha- nia  nas  relações,  civis  em  geral  e  nas
bitação,  quando  importar  em  prejuízo  de  sua  defesa. de  consumo  ou  especiais.  Como  ensina
Há  relação  de  consumo  entre  o  agente  financeiro  do
SFH,  que  concede  empréstimo  para  aquisição  de  casa a Min. Eliana Calmon: “O Código de De-
própria,  e  o  mutuário...”  E  a  igualmente  bela  decisão fesa do Consumidor é diploma legislativo
do  Resp.  387.581-RS,  Min.  Ruy  Rosado  de  Aguiar,  j.
21.05.2002,  cuja  ementa  ensina:  “Cartão  de  crédito.
que  já  se  amolda  aos  novos  postulados,
Prestação  de  contas.  Mandato.  A  administradora  deve inscritos  como  princípios  éticos,  tais
prestar contas sobre o modo pelo qual exerce o manda- como, boa-fé, lealdade, cooperação, equi-
to  que  lhe  concedeu  o  usuário  para  obter  financiamen-
to  no  mercado  a  fim  de  financiar  as  vendas  a  prazo.
líbrio  e  harmonia  das  relações.”37
Código  Civil  e  Código  de  Defesa  do  Consumidor.”
26
  Veja  aplicação  simultânea  e  subsidiária  do  CDC, B) Os três tipos de diálogos possíveis
como  lei  geral,  face  à  existência  de  lei  especial  sobre
prêmios,  na  jurisprudência    do  STJ:  “Publicidade.  Con-
entre o CDC e o CC/2002 e a aplicação
curso.  Prêmio.  Numeração  ilegível.  Código  de  Defesa subsidiária do CC/2002 em relação às
do  Consumidor...O  sistema  do  CDC,  que  incide  nessa relações de consumo
relação  de  consumo,  não  permite  à  fornecedora  -  que
se  beneficia  com  a  publicidade  –  exonerar-se  do  cum- Seguindo  os  ensinamentos  de  meu
primento  da  sua  promessa  apenas  porque  a  numera- caro  mestre  alemão,  Erik  Jayme,  cabe
ção  que  ela  mesma  imprimiu  é  defeituosa.  A  regra  do
Art.  17  do  Dec.  70.951/72  apenas  regula  a  hipótese
29
  SAUPHANOR,  p.  23.
em  que  o  defeito  tiver  sido  comprovodamente  causado 30
  SAUPHANOR,  p.  30.
pelo  consumidor.”  (STJ,  Resp.  396.943-RJ,  Min.  Ruy 31
  SAUPHANOR,  p.  24.
Rosado  de  aguiar,  j.  02.05.2002,  DJ  05.08.2002) 32
  SAUPHANOR,  p.  27.
27
  Veja  por  exemplo  o  artigo  1  do  Tratado  de  Olivos  do 33
  SAUPHANOR,  p.  28.
Mercosul,  o  qual  prevê  a  opção  possível  pelo  sistema  de
solução de controvérsias do Mercosur ou de outro forum
34
  SAUPHANOR,  p.  32.
international  (como  a  OMC  etc.)  e  a  prevalência  da  fon- 35
  Assim  o  texto  aprovado:  “Art.  421.  A  liberdade  de
te  escolhida  pelas  partes  em  conflito.  Veja  ARAÚJO, contratar  será  exercida  em  razão  e  nos  limites  da  fun-
Nádia,  “Dispute  resolution  in  Mercosur:  The  Protocol ção  social  do  contrato”.
of  Las  Leñas  and  the  case  law  of  the  Brazilian  Supreme 36 
Assim  o  texto  aprovado:  “Art.  422.  Os  contratantes  são
Court”,in  Inter-american Law Review  (University  of obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como
Miami),  Winter-Spring  2001,  v.  32,  nr.  1,  p.  25-56. em  sua  execução,  os  princípios  de  probidade  e  boa-fé.”
28
  Veja  sobre  o  tema  a  obra  de  BRIERE,  Carine,  Les 37 
CALMON,  Eliana,  “As  gerações  dos  direitos  e  as
conflits de conventions internationales en droit novas  tendências”,  in  Revista direito do Cosumidor,
privé,  LGDJ,  Paris,  2001,em  especial,  p.  266  e  seg. v.  39  (jul.-set.  2001),  p.  45.

Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 253


agora  refletir  quais  seriam  os  ‘diálogos’ campo de aplicação no caso concreto (di-
possíveis  entre  o  Código  de  Defesa  do álogo sistemático de complementariedade e
Consumidor-CDC,  como  lei  anterior,  es- subsidiariedade  em  antinomias  aparen-
pecial  e  hierarquicamente  constitucio- tes  ou  reais),  a  indicar  a  aplicação  com-
nal  (veja  mandamento  expresso  sobre plementar  tanto  de  suas  normas,  quan-
sua  criação  no  sistema  jurídico  brasi- to de seus princípios, no que couber, no
leiro  no  Art.  48  ADCT/CF  1988  e  como que  for  necessário  ou  subsidiariamente.
incluído  entre  os  direitos  fundamentais, Assim,  por  exemplo,  as  cláusulas  gerais
Art. 5, XXXII da CF/88)38  e o novo Códi- de  uma  lei  podem  encontrar  uso  subsi-
go Civil, Lei 10.406/2002, que entrou em diário  ou  complementar  em  caso  regu-
vigor  em  janeiro  de  2003,  como  lei  pos- lado  pela  outra  lei.  Subsidiariamente  o
terior,  geral  e  hierarquicamente  inferi- sistema  geral  de  responsabilidade  civil
or,  mas  trazendo  algumas  normas  de sem  culpa  ou  o  sistema  geral  de  deca-
ordem  pública,  que  a  lei  nova  mesma dência  podem  ser  usados  para  regular
considera de aplicação imperativa a con- aspectos  de  casos  de  consumo,  se  tra-
tratos  novos  e  antigos  (veja  art.  2035, zem  normas  mais  favoráveis  ao  consu-
parágrafo  único  da  Lei  10.406/2002). midor.  Este  ‘diálogo’  é  exatamente  con-
Em minha visão atual, três são os traposto,  ou  no  sentido  contrário  da  re-
tipos  de  ‘diálogo’  possíveis  entre  estas vogação ou ab-rogação clássicas, em que
duas  importantíssimas  leis  da  vida  pri- uma lei era ‘superada’ e ‘retirada’ do sis-
vada: tema  pela  outra.  Agora  há  escolha  (pelo
1)  na  aplicação  simultânea  das legislador,  veja  art.  777,41  72142  e 73243
duas  leis,  uma  lei  pode  servir  de  base da Lei 10.406/2002, ou pelo juiz no caso
conceitual  para  a  outra  (diálogo sistemá- concreto  do  favor debilis do  Art.  7  do
tico de coerência),  especialmente  se  uma CDC)  daquela  que  vai  “complementar”  a
lei  é  geral  e  a  outra  especial;  se  uma  é ratio  da  outra  (veja  também  art.  72944
a  lei  central  do  sistema39   e  a  outra  um da Lei 10.406/2002 sobre aplicação con-
microssistema  específico,40   não-comple- junta  das  leis  comerciais);
to  materialmente,  apenas  com  com- 3) há o diálogo das influências re-
pletude  subjetiva  de  tutela  de  um  grupo cíprocas  sistemáticas,  como  no  caso  de
da sociedade. Assim, por exemplo, o que uma  possível  redefinição  do  campo  de
é  nulidade,  o  que  é  pessoa  jurídica,  o aplicação  de  uma  lei  (assim,  por  exem-
que  é  prova,  decadência,  prescrição  e plo,  as  definições  de  consumidor stricto
assim  por  diante,  se  conceitos  não  defi- sensu  e  de  consumidor  equiparado  po-
nidos  no  microssistema  (como  vêm  defi- dem  sofrer  influências  finalísticas  do
nidos  consumidor,  fornecedor,  serviço  e novo  Código  Civil,  uma  vez  que  esta  lei
produto  nos  Art.  2,17,29  e  3  do  CDC), nova  vem  justamente  para  regular  as
terão  sua  definição  atualizada  pelo  en- relações  entre  iguais,  dois  iguais-con-
trada em vigor do CC/2002; sumidores  ou  dois  iguais-fornecedores
2)  na  aplicação  coordenada  das
duas  leis,  uma  lei  pode  complementar  a 41
  O  texto  é  o  seguinte : ”Art.  777.  O  disposto  no  pre-
aplicação  da  outra,  a  depender  de  seu sente  Capítulo  aplica-se,  no  que  couber,  aos  seguros
regidos  por  leis  próprias.”
38
  Observe-se  que  mesmo  BRIERE,  p.  312  e  seg.  con- 42
  O  texto  é  o  seguinte:  “Art.  721.  Aplicam-se  ao  con-
clui  que  há  uma  hierarquia  de  convenções,  se  de  di- trato  de  agência  e  distribuição,  no  que  couber,  as  re-
reito  humanos,  o  que  se  pode  transpor  para  o  direito gras  concernentes  ao  mandato  e  à  comissão  e  as  cons-
privado  como  valorando  o  critério  da  hierarquia  e  ain- tantes  de  lei  especial.”
da  mais  a  hierarquia  constitucional  dos  direitos  fun- 43
  O  texto  é  o  seguinte:  “Art.  732.  Aos  contratos  de
damentais,  como  o  direito  do  consumidor. transporte,  em  geral,  são  aplicáveis,  quando  couber,
39
  Veja  detalhes  in  PASQUALOTTO,  Adalberto,  “O  Có- desde  que  não  contrariem  as  disposições  deste  Códi-
digo  de  Defesa  do  Consumidor  em  face  do  novo  Código go,  os  preceitos  constantes  da  legislação  especial  e  de
Civil”, Revista Direito do Consumidor,  nº  43  (jul- tratados  e  convenções  internacionais.”
dez..2002),  p.  106. 44
  O  texto  é  o  seguinte:  “Art.  729.  Os  preceitos  sobre
40
  Veja  detalhes  sobre  o  CDC  como  microssistema,  in corretagem  constantes  deste  Código  não  excluem  a
PASQUALOTTO,  p.  106  e  seg. aplicação  de  outras  normas  da  legislação  especial.”

254 - Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil”


entre  si,  no  caso  de  dois  fornecedores aequalitas (igualdade, supondo a compa-
tratam-se  de  relações  empresariais  tí- ração com outro objeto), derivada por sua
picas,  em  que  o  destinatário  final  fático vez  da  expressão  aequalis  (igual)  e  de
da coisa ou do fazer comercial é um ou- aetis.  A  partir  das  evoluções  lingüísticas
tro empresário ou comerciante), ou como na  Idade  Média  estas  expressões  perde-
no caso da possível transposição das con- ram,  em  francês  e  português,  a  partícula
quistas  do  Richterrecht  (Direito  dos “qua”  (équalité-égalité-égal,  equalidade-
Juízes)  alcançadas  em  uma  lei  para  a igualdade-igual).  A  evolução  da  expressão
outra.  É  a  influência  do  sistema  especi- equidade é semelhante, do latim aequitas
al  no  geral  e  do  geral  no  especial,  um (também  aetis),47  que significava, segun-
diálogo  de  double sens45  (diálogo de co- do  pesquisas  de  Berthiau48,   justamente
ordenação e adaptação sistemática). igualdade e,  mais  precisamente,  ‘igualda-
Assim, em resumo,  haveria o diá- de  de  alma,  equilíbrio,  calma’  (égalité
logo sistemático de coerência, o diálogo sis- d’âme, calme, équilibre), era derivada por
temático de complementariedade e sua  vez  justamente  da  expressão  aequus
subsidiariedade  em  antinomias  e  o  diá- (igual-adjetivo).49
logo de coordenação e adaptação sistemáti- Esta  proximidade  etimológica,  e  a
ca. distinção  (distintio)  de  níveis  de  pen-
Mister  refletir  aqui,  ainda  que  ra- samento,  levam  a  conclusão  que  tratar
pidamente,  sobre  a  noção  de  igualdade igualmente  os  iguais,  tratar  desigual-
em direito privado e como esta noção irá mente os desiguais e tratá-los com ‘equi-
influenciar  a  aplicação  casuística  do líbrio e calma’, é mais do que o princípio
Código  Civil  de  2002,  um Código para da  igualdade,  é  eqüidade,  uma  solução
iguais ! E ainda, como esta visão da igual- justa  para  o  caso  concreto  !
dade e  do  tratamento  igual/desigual Igualdade  supõe  uma  comparação,
para  os  iguais/desiguais,  no  caso  con- um contexto, uma identificação no caso.  50
creto,  está  intrinsecamente  ligada  a A  igualdade  só  pode  ser  abordada  sob  o
noção  moderna  –  tão  importante  em ponto de vista de uma comparação. 51  Eis
matéria  contratual-  da  eqüidade  (Justiça aqui o desafio maior do Direito Civil bra-
para o caso concreto) ! Mister frisar como, sileiro  atual,  face  a  unificação  do  regi-
em  seu  espírito  e  teleologia,  o  CDC  está me  das  obrigações  civis  e  comerciais  no
ligado  a  um  novo  paradigma  de  diferen- Código  Civil  de  2002,  e  face  ao  manda-
ça,  de  tratamento  de  grupos  ou  plural, mento  constitucional  de  discriminar  po-
de  interesses  difusos  e  de  eqüidade,  em sitivamente  e  tutelar  de  forma  especial
uma visão mais nova do moderno ou pós- os  direitos  dos  consumidores  (art.  5,
moderna.  Face  ao  atual  pluralismo  de XXXII  da  CF/88),  também  em  suas  re-
fontes  no  direito  privado  brasileiro,  esta lações  civis.  Assim,  em  um  só  tipo
reflexão  pode  ser  útil  para  o  aplicador contratual  (por  exemplo,  o  contrato  de
da lei, ao determinar o campo de aplica- mandato ou de seguro), podem estar pre-
ção do CC/2002. sentes várias naturezas, vários sujeitos de
Repita-se  aqui  o  que  ensina direito,  iguais  ou  diferentes  na  compara-
Berthiau, 46   em  sua  magnífica  obra  so-
bre  o  princípio  da  igualdade  e  o  direito 47
  Veja  STOWASSER,  J.M.  et  alli,  Der Kleine
Stowasser,  G.  Freytag  ed.,  Munique,  1980,  p.  18:
civil  dos  contratos:  há  uma  ambigüida- “aequitas, ätis, aequus - 1 Geduld, Ruhe, Gliechmut,
de  original  entre  as  expressões/e/ou Gelassenheit, animi. 2. Gleicheheit [vor dem Gesetz],
noções modernas de igualdade e de eqüi- Gerechtigkeit, Billigkeit...aequitas est iustitia maxime propria.”
48
  BERTHIAU,  p.  3.
dade.  Vejamos.  A  estrutura  moderna  da 49
  Veja  STOWASSER,  J.M.  et  alli,  Der Kleine
noção  de  igualdade  advém  do  latim Stowasser,  G.  Freytag  ed.,  Munique,  1980,  p.  18:
“aequus – gleich...Subst. aequum, Recht, Billigkeit: amantior
45
  Veja  a  obra  de  SAUPHANOR,  p.  32. aequi, aequi cultor, ex aequo bonoque.”
46
  BERTHIAU,  Denis,  Le principe d’égalité et le droit
50
  Assim  conclui  BERTHIAU,  p.  3.
civil des contrats, L.G.D.J.,  Paris,  1999,  p.  3  e  seg. 51
  Frase  de  BERTHIAU,  p.  3.

Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 255


ção  entre  si,  comparação  necessaria- ender,  portanto,  que  o  CDC  tenha  hierar-
mente casuística e finalistica, comparação quia superior que o CC/2002. Efetivamen-
no  caso,  no  papel  econômico  represen- te,  todas suas normas civis são de ordem
tado  por  cada  um  naquele  contrato  em pública (ex vi do Art. 1º do CDC), e de lei
especial,  a  constatar  o  seu  status  (em- especial,  a  aplicar-se  prioritariamente  nas
presários,  civis,  consumidores)  daí  deri- relações  de  consumo.  O  CDC  está  a  pro-
vado.  Determinar  o  campo  de  aplicação cura  da  eqüidade,  do  tratamento
do Código Civil de 2002 aos contratos é, casuístico/tópico  da  justiça  contratual,
pois,  tarefa  herculana,  neste  sistema com calma e equilíbrio, não voltado para o
jurídico  altamente  complexo,  micro-co- ‘igual  geral’,  mas  para  o  ‘diferente’  a  rela-
dificado,  plural  e  fluído,  pois  os  papéis ção  civil  diferente,  entre  fracos  e  fortes,
que  os  sujeitos  de  direito  representam daí  sua  especialidade.
no  mercado  e  na  sociedade  modificam- Por  fim,  mencione-se  que  se  não
se de um ato para outro. Por exemplo, o houve  revogação  tácita,55     também  não
profissional liberal é empresário (Art. 966 houve  revogação  expressa  (Art.  2.045),56
do CC/2002) em um momento e, no pró- nem  incorporação  do  CDC  ao  CC/2002
ximo, pode ser consumidor de um servi- (Art.  2.043).  O  novo  Código  Civil  Brasi-
ço  para  sua  família  e  um  civis  perfeito, leiro  menciona  em  apenas  uma  norma
na  sua  relação  de  condomínio...52 a  expressão  ‘consumidores’,  como  sinô-
O mestre da USP, Antônio Junqueira nimo  de  fregueses,  57  e não utiliza a ex-
de  Azevedo53  alertou para este problema pressão relação de consumo. Nas demais
antes da aprovação do CC/2002, ponderan- 2.045  normas  do  CC/2002  são  mencio-
do que introduzir no sistema jurídico brasi- nadas  apenas  as  expressões  ‘consumo’,
leiro,  já  hiper-complexo,  uma  regulamen- em  seu  sentido  clássico  de  destruição,
tação  unitária  (igual)  para  as  relações  civis no Art. 86, 307, 1290 e 1392,  bens ‘des-
e  comerciais  poderia  resultar  em  um  retro- tinados à consumo’, nos Art. 206 e 592 e
cesso.  E  apontou  a  solução:  a  procura  de crimes  ‘contra  as  relações  de  consumo’,
uma igualdade com aequitas, a necessária no § 1 do Art. 1.011. Sendo assim, pode-
distinção entre o que é igual e o que é dife- mos  concluir,  com  certeza,  que  ao  CDC
rente,  na  sociedade  pós-moderna  atual. não  se  aplica  a  norma  do  Art.  2.043  do
Observando-se  o  mandamento CC/2002.  Em  outras  palavras,  podemos
constitucional  expresso  de  criação  no concluir  que  o  CDC  e  o  tema  de  defesa
sistema  jurídico  brasileiro  (Art.  48
ADCT/CF  1988)  de  um  CDC  e  o  fato  da 55
  Também  da  história  legislativa  do  projeto  podemos
proteção  do  consumidor  ter  sido  incluí- retirar  esta  conclusão.  A  redação  anterior  do  artigo  fi-
nal  do  Código  (antigo  Art.  2040)  era  mais  abrangente  e
da  entre  os  direitos  fundamentais  (Art. afirmava que ficariam: “revogados o Código Civil e a Par-
5,  XXXII  da  CF/88),54  não deve surpre- te Primeira do Código Comercial, Lei nº 556, de 25 de junho
de 1850, e toda a legislação civil e mercantil abrangida por
este Código, ou com ele incompatível...” Mas, como expli-
52
  Segundo  a  jurisprudência  majoritária  dos  Tribunais ca o relator, Deputado Fiúza, a “boa técnica legislativa”
superiores,  a  relação  de  condomínio  não  é  de  consu- o levou a Câmara a determinar quais as leis que o CC/
mo: “II - Não é relação de consumo a que se estabelece 2002  revogaria.  Veja  Câmara  dos  Deputados,  Relatório
entre  condôminos  para  efeitos  de  pagamento  de  des- final  do  Relator  Deputado  Ricardo  Fiuza,  Código  Civil,
pesas  em  comum.  III  -  O  Código  de  Defesa  do  Consu- Brasília,  2000,  p.  115.
midor  não  é  aplicável  no  que  se  refere  à  multa  pelo 56
  O  texto  original  é:  “Art.  2.045.  Revogam-se  a  Lei  nº
atraso  no  pagamento  de  aluguéis  e  de  quotas 3.071,  de  1º  de  janeiro  de  1916  -  Código  Civil  e  a
condominiais.”  (STJ,  RESP  239578/SP,  5ª  Turma,  Rel. Parte  Primeira  do  Código  Comercial,  Lei  nº  556,  de  25
Min.  Felix  Fischer,  j.  08/02/2000). de  junho  de  1850.”
53
  AZEVEDO,  Antônio  Junqueira  de,  “O  Direito  pós- 57
  Trata-se  do  inciso  I  do  Art.  1467  que  menciona  a
moderno  e  a  codificação”,  in  Revista Direito do Con- palavra  ‘consumidores’,  como  sinônimo  de  ‘fregueses’,
sumidor,  v.  33  (2000),  p.  124. dos  hospedeiros  e  dos  fornecedores  de  alimentos  e
54
  Observe-se  que  mesmo  BRIERE,  p.  312  e  seg.  con- pousada  ao  regular  o  penhor  legal.  O  texto  é  o  seguin-
clui  que  há  uma  hierarquia  de  convenções,  se  de  di- te:  “I  -os  hospedeiros,  ou  fornecedores  de  pousada  ou
reito  humanos,  o  que  se  pode  transpor  para  o  direito alimento,  sobre  as  bagagens,  móveis,  jóias  ou  dinheiro
privado  como  valorando  o  critério  da  hierarquia  e  ain- que  os  seus  consumidores  ou  fregueses  tiverem  consi-
da  mais  a  hierarquia  constitucional  dos  direitos  fun- go  nas  respectivas  casas  ou  estabelecimentos,  pelas
damentais,  como  o  direito  do  consumidor. despesas  ou  consumo  que  aí  tiverem  feito;”

256 - Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil”


do  consumidor  não  foi  “incorporado”  ao deveres  que  a  própria  boa-fé  introduziu
CC/2002.  Ao  contrário,  é  considerado naquela  relação.  Como  afirmava  antes  o
pelo  próprio  CC/2002  como  um  tema  a Prof.  Arnoldo  Wald:  a  relação  não  é  só
ser  regulado  por  lei  ‘especial’  (como  ali- mais  aquela  que  as  partes  determina-
ás  expressamente  prevê  a  Constituição ram,  havendo  também  as  cláusulas  ge-
Federal,  Art.  48  dos  ADCT). rais  da  lei.  A  cláusula  geral  da  boa-fé
Em  resumo,  mister  preservar  a faz  nascer  deveres  para  aqueles  indiví-
ratio  de  ambas  as  leis  e  dar  preferên- duos,  mesmo  que  tais  deveres  não  este-
cia  ao  tratamento  diferenciado  dos  dife- jam  escritos,  ou  haja  uma  cláusula  ex-
rentes  concretizado  nas  leis  especiais, pressa  exonerando  a  pessoa  do  dever  de
como  no  CDC,  e  assim  respeitar  a  hie- informar,  do  dever  de  cooperar,  do  de-
rarquia  dos  valores  constitucionais,  so- ver  de  cuidado.  Esses  três  deveres  de
bretudo  coordenando  e  adaptando  o  sis- conduta,    portanto,  fazeres,  nascem  di-
tema  para  uma  convivência  coerente!  A retamente  do  princípio  da  boa-fé  ou  da
convergência  de  princípios  e  cláusulas cláusula  geral  de  boa-fé,  e  estão  hoje
gerais entre o CDC e o CC/2002 e a égide na  relação  contratual,  civil,  empresari-
da  Constituição  Federal  de  1988  garan- al  e  de  consumo.  Estes  deveres  de  con-
tem  que  haverá  diálogo  e  não  retroces- duta de boa-fé vão tornar uma cláusula,
so na proteção dos mais fracos nas rela- uma  condição  geral  contratual,  uma
ções  contratuais.  Vejamos  o  diálogo cláusula do contrato, ilícita ou nula tanto
quanto à cláusula geral de boa-fé objeti- no  CDC  como  no  CC/2002  justamente
va  nos  contratos. porque  há  uma  violação  dos  deveres  da
boa-fé.  Boa-fé  é  um  princípio  de
II – Das cláusulas abusivas no CC/2002 repersonalização  da  relação  contratual.
e a cláusula geral de boa-fé Como ensina o grande mestre da UFRGS,
A  própria  idéia  de  abuso  do  di- Clóvis  do  Couto  e  Silva:  “...o  dever  que
reito,  agora  positivada  no  novo  Códi- promana  da  concreção  do  princípio  da
go Civil de 2002, está relacionada com boa-fé  é  dever  de  consideração  para  com
a  boa-fé  (Art.  187  do  CC/2002).  Se- o  ‘alter’.”58  Efetivamente, boa-fé objetiva
guindo-se  esta  idéia  (e  retirando-a  do significa  uma  atuação  “refletida”,59   uma
campo  extracontratual  para  utilizá-la atuação refletindo, pensando no outro, no
analogicamente no campo contratual), parceiro  contratual,  respeitando-o,  res-
e unindo-a a do Art. 4, III e Art. 51 IV peitando  seus  interesses  legítimos,  suas
e  §  1º  do  CDC,  poderíamos  afirmar, expectativas  razoáveis,  seus  direitos,
sucintamente,  que  cláusula  abusiva agindo  com  lealdade,  sem  abuso,  sem
é  aquela  que  viola  a  boa-fé  obrigató- obstrução,  informando-o,  aconselhando-
ria  das  relações  entre  iguais  (ex vi o,  cuidando,  sem  causar  lesão  ou  des-
novo  Código  Civil)  e  entre  desiguais vantagem  excessiva,  cooperando  para
(ex vi  Código  de  Defesa  do  Consumi- atingir o bom fim das obrigações: o cum-
dor,  que  possui  este  mesmo  princípio primento do objetivo contratual e a reali-
da  boa-fé  e  quando  a  relação  civil  ou zação  dos  interesses  das  partes.60   Boa-
empresarial  é  desequilibrada  pelo fé  é  cooperação  e  respeito,  é  conduta  es-
contrato  de  adesão,  ex vi  Art.  424  do perada  e  leal,  tutelada  em  todas  as  rela-
CC/2002). ções  sociais.
Portanto,  podemos  dizer  que  uma
cláusula  desequilibra  um  contrato  por-
58
  COUTO  E  SILVA,  Clóvis  V.  A Obrigação como Pro-
cesso,  São  Paulo,  Ed.  J.  Bushtasky,  1976  p.  29.
que  ela  viola  um  dever  principal,  ine- 59
  Veja  nosso  livro,  Contratos no Código de Defesa
rente  àquele  sistema,  àquele  tipo  de do Consumidor,  4.  edição,  2002.
contrato  (essa  idéia  está  no  artigo  51  do 60
  Sobre  boa-fé  como  regra  de  conduta,  como  limite  à
autonomia  da  vontade  e  como  fonte  de  novos  deveres
Código  de  Defesa  do  Consumidor),  mas
acessórios,  veja  a  obra  de  MENEZES  CORDEIRO,  An-
podemos  também  dizer  que  determina- tonio  M.  da  Rocha  e,  Da Boa-fé no Direito Civil,  v.  1,
da  cláusula  é  abusiva,  porque  viola  os p.  632  e  ss.

Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 257


Como  afirmamos  anteriormente, Masstab),  um  paradigma  de  conduta
boa-fé  é,  em  resumo,  um  princípio  de das  pessoas,  mas  ela  é,  sem  dúvida
materialização  da  vontade  contratual, a l g u m a ,  uma  medida  de  decisão
agora  balizada  pelas  exigências  de  con- (Entscheidungsmasstab).
siderara  as  expectativas  legítimas  do Por  vezes,  visualiza-se  a  boa-fé
outro.  61  Assim ensina o também grande apenas  como  um  ‘standard’,  uma  medi-
mestre  da  UFRGS,  Ruy  Rosado  de da  de  conduta,  uma  medida  de  efeito
Aguiar 62 :  “A  boa-fé  se  constitui  numa ‘preventivo’:  como  devo  eu  conduzir-me
fonte autônoma de deveres, independen- na  sociedade  do  futuro,  como  devo  eu
te  da  vontade,  e  por  isso  a  extensão  e  o atuar ‘de acordo’ com a boa-fé. O que os
conteúdo  da  relação  obrigacional  já  não referidos  professores  alemães  estão
se  mede  somente  nela  (vontade),  e,  sim, querendo  lembrar  é  que  esse  é  apenas
pelas  circunstâncias  ou  fatos  referen- um  lado  ‘da  moeda’,  a  boa-fé  possui  ou-
tes  ao  contrato,  permitindo-se  construir tro  ‘lado’  que  não  podemos  esquecer:  a
objetivamente  o  regramento  do  negócio boa-fé  é  sempre  também  uma  valoração
jurídico,  com  a  admissão  de  um  dina- da  conduta.  O  Direito  valora  a  atuação
mismo  que  escapa  ao  controle  das  par- do  outro  como  um  paradigma,  não  mais
tes.”  (grifo  nosso)  Para  se  ter  a  impor- subjetivamente  (não  temos  mais  a  idéia
tância  desta  visão  renovadora  dos  con- de  ‘culpa’)  mas  como  um  objetivo.  Não
tratos  envolvendo  consumidores  e  for- podemos discursar sobre a boa-fé  como
necedores,  afirma  Paulo  Luiz  Neto uma  idéia,  um  paradigma  de  conduta,  e
Lôbo:  “O  princípio  da  boa-fé  objetiva  foi deixar de utilizar a boa-fé na prática como
refuncionalizado  no  direito  do  consumi- um  instrumento  de  decisão  do  Judiciá-
dor,  otimizando-se  sua  dimensão  de rio  (é  uma  medida  de  decisão).
cláusula  geral,  de  modo  a  servir  de Neste  ponto,  gostaria  de  dividir  a
parâmetro  de  validade  dos  contratos  de minha exposição justamente nesses dois
consumo,  principalmente  nas  condições momentos:  1)  a  boa-fé  teórica  (como
gerais  dos  contratos.”63 medida  de  conduta)  e  o  Novo  Código  Ci-
Os  professores  Jauernig  e vil  (onde  está  essa  boa-fé,  pelo  menos
Volkommer,  64    na sua edição nova dos na  parte  voltada  para  as  cláusulas
Comentários ao Código Civil alemão, que abusivas);  2)  e  a  boa-fé  na  prática,  isto
sofreu  uma  grande  reforma  em  2000  e é,  a  boa-fé  como  medida  valorativa,
2001, mencionam que as funções da boa- instrumentário  para  que  o  juiz  diga  se
fé  (aquelas  clássicas  que  conhecemos  e uma cláusula é abusiva de acordo com o
que  foram  aqui  mencionadas:  a  de  esta- cumprimento  ou  não  do  paradigma  das
belecer  os  deveres  anexos,  interpre- exigências  de  boa-fé.
tadora  e  a  limitadora,  isto  é,  a  própria
idéia  de  abuso)  devem  ser  vistas  hoje A) As funções da boa-fé e a experiên-
com olhos mais voltados para o futuro.65 cia de mais de 10 anos do CDC
Boa-fé é uma medida objetiva (objektive Essa utilização ‘forte’ da boa-fé pode
61
  Assim  CANARIS,  in  Archiv für die civilistische ser  dividida  em  quatro  funções,  que  já
Praxis (AcP),  200  (2000),  p.  277  e  seg. foram  muitas  delas  aqui  mencionadas
62 
AGUIAR,  Ruy  Rosado  de,  “A  Boa-fé  na  relação  de pelo  Professor  Arnoldo  Wald,  que  me
consumo”,  in  Direito do Consumidor,  v.  14,  p.  24.
antecedeu.  A  primeira  função  é  essa  de
63
  LOBO,  Paulo  Luiz  Neto  “A  informação  como  direito
fundamental  do  consumidor”, in  Direito do Consumi- fotografia  do  que  é  e  do  que  não  é  rela-
dor  37,  p.  67. ção  contratual  hoje,  chamada  de  função
64 
Veja  JAUERNIG,  Othomar  et  alli,  Bürgerliches de  complementação  ou  concretização  da
Gesetzbuch,  7.  ed,  Beck,  Munique,  1994,  p.  172,  §
242,  1  (Vollkommer). relação  jurídica.  Através  do  princípio  da
65 
Veja  citações  e  detalhes  em  meu  artigo,  “Boa-fé  nos boa-fé objetiva, o julgador visualiza e pre-
serviços bancários, financeiros, de crédito e securitários cisa  quais  são  os  deveres  das  partes.  Se
e  o  Código  de  Defesa  do  Consumidor:    informação,  co-
operação  e  renegociação  ?”,  in  RDC  v.  43  (2002),  p.
é  uma  relação  entre  iguais  –  iguais    ci-
215-257. vis  ou    entre  comerciantes  -  há  o  novo

258 - Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil”


Código  Civil  e  aqueles  deveres  que  es- tação  pelo  juiz,  há,  sim,  concreção  de
tão  aqui  também  oriundos  da  boa-fé.  Se cláusula  geral.69  E como ensina a Corte
a  relação  é  entre  consumidores,  entre Constitucional  alemã  desde  1993,  70   na
desiguais,  um  leigo  e  um  profissional, concreção  das  cláusulas  gerais  de  boa-
então  também  o  princípio  da  boa-fé  es- fé  e  bons  costumes  (em  especial,  nos
tabelece  quais  são  os  deveres  de  infor- contratos  bancários,  financeiros  e  de
mação,  de  cuidado,  de  cooperação. crédito)  as  cortes  civis  devem  fazer  va-
Trata-se  da  função de comple- ler  os  direitos  humanos,  os  direitos  fun-
mentação ou concretização da relação damentais  recepcionados  nas  Constitui-
(Ergänzungsfunktion),  podendo  o ções, 71  impregnando o direito privado de
aplicador  da  lei,  através  do  princípio  da seu espírito de proteção da dignidade da
boa-fé  objetiva,  visualizar  e  precisar pessoa  humana,  da  privacidade,  de  pro-
quais  os  deveres  e  direitos  decorrentes teção  dos  dados,  de  direito  à  informa-
daquela  relação  em  especial  (por  exem- ção,  à  escolha  livre,  de  desenvolvimento
plo,  incluindo  as  informações  veiculadas da  sua  personalidade  etc.
em  publicidade  por  uma  seguradora  ou A  expressão  atual  alemã  também
grupo bancário, Art. 30 do CDC), 66   tam- esclarece  de  forma  pedagógica  que  a
bém  chamada  de  função  interpretativa.  67 boa-fé  é  uma  nova  fonte  de  deveres  (de-
A expressão alemã é de valorar-se e des- veres  anexos),  “descobertos”  na
tacar-se,  pois  bem  especifica  a  função complementação,  na  “fotografia”  da  re-
ativa  do  juiz,  uma  vez  que  se  trata  do lação,  que  realiza  o  magistrado:  infor-
Richterrecht  (Direito  dos  Juízes),  isto mar, cooperar, cuidar com o outro e, não
é,  há  uma  atividade  mais  completa  e só,  prestar...  Aqui,  está,  pois,  a  função
complexa 68     do  que  a  simples  interpre- primeira e mais complexa da boa-fé, que
valora  o  grau  de  informação,  de  trans-
66 
Belo  exemplo  é  a  decisão  do  TJ/RS,  já  citada:  “Pro-
paganda  enganosa.  Garantia,  incondicional,  de  finan- parência,  de  lealdade  nas  condutas  e
ciamento  para  aquisição  de  unidade  imobiliária. cláusulas  dos  fornecedores,  de  forma  a
Aplicabilidade  do  Código  de  Defesa  do  Consumidor.
Propaganda  enganosa  que  garantiu,  incondicionalmen-
visualizar/fotografar  que  relação  jurídi-
te,  financiamento  à  aquisição  de  unidade  imobiliária. ca  é  esta,  complexa,  conexa,  principal
Improvadas  as  apontadas  irregularidades  na  documen-
tação.  Com  inversão  do  ônus  sucumbencial,  condena-
ção  da  incorporadora    para  suportar,  às  suas  próprias apartamentos  residenciais.  Segundo  interpretação  que
expensas,  o  parcelamento  da  dívida  (conforme  garan- se  ostenta  a  melhor,  a  exigência,  em  casos  como  o
tido  na  publicidade).”(AC  598435063,Des.  Guinther dos  autos,  é  de  comunicação,  sim,  e  imediata,  mas
Spode,  j.  22.12.98, in  RDC  36/324).  Veja  também  de- não  necessariamente  prévia,  do  dano  em  elevador  de
cisão    e  as  já  citadas  decisões  do  TJ/RS  sobre  embala- edifício  de  apartamentos  residenciais,  pois
gem  prometendo  prêmios  (AC  596126037,  5ª  Câm.  Cív. desarrazoado  que  se  aguarde  providências  da  segura-
TJ  RS,  j.  em  22.08.96,  rel.  Des.  Araken  de  Assis)  e dora,  para,  apenas  após,  efetivar  o  conserto,  sempre
sobre  publicidade  prometendo  carros  a  quem  comple- urgente  quando  se  cuida  deste  meio  de  transporte  de
tasse  um  ‘bingo’  (AC  596116764,  5ª  Câm.  Cív.  TJ  RS, pessoas.”
j.  em  14.11.96,  rel.  Des.  Araken  de  Assis),  todas  cita-
69 
Assim  também  no  Brasil,  TEPEDINO,  Gustavo
das  e  comentadas  no  belo  artigo  de    Guinther  Spode, (Coord.),  Direito Civil-Constitucional,  Renovar,  Rio
“O  controle  da  publicidade  à  luz  do  CDC”, in  RDC 42 de  Janeiro,  201,  p.  11  e  12:  “as  cláusulas  gerais  que,
(2002),  no  prelo.  Veja  também  sobre  promessa  de  re- previstas  pelo  legislador  contemporâneo,  no  Código  de
compensa  e  premiação  de  tampa  de  vasilhame  de  re- Defesa  do  Consumidor...,  vêm  sendo  amplamente  uti-
frigerante  Resp.  289.346/MG,  DJ  25.06.2001,  min. lizadas  pelos  operadores.  Recupera-se,  então,  o  papel
Nancy  Andrighi. da  jurisprudência  e  da  doutrina...”
67
  É  o  que    MARTINS-COSTA,  Judith,  Boa-fé no Di-
70 
BVerfG  Beschl.  v.  19.101993  -  1BvR  567/89  u.la.,
reito Privado,  RT,  São  Paulo,  2001,  p.  428,  denomi- in:  NJW  1994,36.  A  ementa  original  é  a  seguinte:  “Die
na  de  ‘a  boa-fé  como  cânone  hermenêutico-integrativo’ Zivilgerichte müssen - insbesondere bei der
e  à  p.  431,  citando  Larenz,  denomina  “interpretação Konkretisierung und Anwendung von Generalklauseln wie
da  regulação  objetiva  criada  com  o  contrato”. § 138 und §242 BGB - die grundrechtlcihe Gewährleistung
68
  Belo  exemplo  pode  ser  a  decisão  do  TJ/RS,  em  caso der Privatautonomie in Art. 2,I GG beachten. Daraus ergibt
envolvendo  seguro  de  “Condomínio  Residencial”,  em sich ihre Pflicht zur Inhaltskontrole von Verträge, die einen
que cláusula contratual dava direito ao conserto do ele- der beiden Vertragspartner ungewöhnlich stark belasten
vador  somente  após  “comunicação”  à  seguradora  e in und das Egbnis strukturell ungleicher Verhandlungsstärke
APC598002079,  j.  03.06.1998,  Des.  Antônio  Janyr sind.”
Dall’Agnol  Júnior  ensinou:  “Seguro  de  dano.  Interpre-
71
  Veja  meu  artigo  “Os  contratos  de  crédito  e  a  legisla-
tação  de  cláusula.  comunicação  imediata,  não  neces- ção  brasileira  de  proteção  do  consumidor”, in  RDC  v.
sariamente  prévia.  dano  em  elevador  de  edifício  de 18,  p.  53-76.

Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 259


ou  acessória  visando  o  consumo  e  se  as uma  visão  mais  clássica  da  boa-fé  e,
exigências  desta  boa-fé  foram  ou  podem como  afirmei,  parece-me  que  essa  idéia
ser  cumpridas.  O  objetivo  é  alcançar  a de  concreção,  de  fotografia  mesmo  com-
igualdade,  o  reequilibrio  entre  as  par- pleta da relação é mais atualizada e mais
tes, e a atuação do Juiz conforme a boa- atualizadora.  Essa  função  de  interpre-
fé é ativa, como ensina o TJ/RS: “Ao ana- tar  pode  solucionar  muitos  dos  proble-
lisar o contrato, com suas diversidade, e que mas  que  também  podemos  fazê-lo  atra-
se constitui alvo especial do chamado Direi- vés  do  uso  do  instrumentário
to do Consumidor, está o juiz nesse alinha- sancionatório  das  cláusulas  abusivas.
mento bem longe da principiologia clássica Isto  é,  o  julgador  ao  interpretar  o  con-
do contrato, onde se presumia que as par- trato  ou  a  cláusula  já  o  faz  de  acordo
tes eram livres para contratar, e eram iguais, com  o  instrumento  valorativo  que  é  a
sem qualquer distinção de informação, co- boa-fé  (medida  de  decisão).  Então,  se
nhecimento e poder de cada uma. A atuação pode  interpretar  o  texto  de  forma  que  a
do magistrado, frente a uma relação de con- cláusula  examinada  não  viole  a  boa-fé  e
sumo, pode e deve ser mais dinâmica, pre- que proteja o mais fraco, ou seja favorá-
tendendo assegurar a igualdade das partes vel a quem simplesmente aderiu ao con-
ao mesmo plano jurídico.” (Ementa da APC trato  de  adesão,  estarei  utilizando  to-
197278518, 21ª CC, Des. Francisco José das  as  idéias  principiológicas  que  estão
Moesch,  TJ/RS,  j.  17.06.1998). no Código Civil de 2002 e também, estão
Destaque-se  que  o  legislador  ale- mais  fortemente  presentes  ainda,  no
mão,  ao  reformar  o  seu  Código  Civil  de artigo 47 do Código de Defesa do Consu-
1893 em 2002, incluiu uma nova norma midor.  Assim  o  julgador  pode  evitar  que
de  interpretação  no  §  241  do  BGB,  apli- aquela  cláusula,  interpretada  de  outra
cável  aos  contratos  de  consumo  (novo  § forma,  viole  a  boa-fé  e  seja  nula.  Vejam
13 c/c § 241 e § 242), que é a seguinte: que dentro dessa função temos dois mo-
“§ 241- Deveres oriundos das relações mentos:  a  simples  interpretação  e  a
obrigacionais- (1)...(2) As relações identificação  dos  deveres  que  objetiva-
obrigacionais podem, de acordo com seu mente  as  partes  deveriam  cumprir.
conteúdo (tipo), obrigar cada uma das par- A  terceira  conclusão  dos  referidos
tes a ter em conta os direitos, as coisas/ professores  alemães  e  que  me  parece
patrimônio e os interesses da outra parte.”72 interessante,  é  a  da  bilateralidade  dos
Note-se  a  beleza  desta  linha  que  amplia deveres de boa-fé. Geralmente, não men-
a visualização da relação, não só faz ‘apa- cionamos  muito  esta  característica  em
recer’  os  deveres  anexos  ao  contrato, matéria  de  Direito  do  Consumidor  por-
como ajuda a valorar as práticas comer- que  o  Código  de  Defesa  do  Consumidor
ciais  do  fornecedor.  “Ter  em  conta  os positiva  que  o  dever  de  informar  é  im-
direitos...e  os  interesses  da  outra  par- posto  ao  fornecedor,  é  um  dever  do  pro-
te”  é  visualizar  o  ‘alter’  e  valorar  a  con- fissional  e  não  do  leigo,  o  consumidor.
duta-conforme  a  boa-fé-  daquele  contra- Mas  agora,  nesse  outro  mundo,  que  é  o
tante  mais  forte,  tanto  na  formação  do Código  Civil  de  2002,  na  relação  entre
contrato  (cláusula  abusiva),  quanto  na iguais,  há  bilateralidade  dos  deveres  de
execução  do  contrato  (prática  comercial boa-fé:  um  parceiro  deve  cuidar  do  ou-
abusiva). tro,  um  deve  informar  ao  outro.  Se  são
Muitos denominam esta função de dois  comerciantes,  obviamente  que  o
‘interpretativa’  ou  ‘interpretadora’  ,  en- dever  de  informar  é  bilateral.  Há  o  de-
tretanto, não quero aqui denominar esta ver  de  cooperar,  e  como  mencionava  o
função  de  ‘interpretação’,  porque  essa  é Prof. Arnoldo Wald, a idéia da parceria é
justamente  bilateral.  A  idéia  de  não  le-
72
 No original: “§ 241. Pflichten aus dem Schuldverhältnis. var o outro à ruína, que é uma idéia bas-
(1)...(2) Das Schuldverhältnis kann nach seinem Inhalt jedn
Teil zur Rücksicht auf die Rechte, Rechstgüter und tante  antiga  da  boa-fé,  uma  exceção  da
Interessen des anderen Teils verpflichten.” ruína,  a  qual  foi  aqui  mencionada  pelo

260 - Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil”


Prof.  Arnoldo  Wald  com  a  idéia  de portante  do  que  o  verdadeiro  cumpri-
renegociação  dos  contratos,  é  um  dever mento  da  prestação  principal,  isto  é,
de  cooperar  para  evitar  a  ruína  econô- manter  uma  escrituração  ou  de  entre-
mica  do  outro,  é  um  dever  bilateral  no gar-me um bem que não sei usar, se não
Código Civil de 2002, imposto justamen- tenho  um  manual  de  informação.  Em
te  pelo  princípio  da  boa-fé  positivado  de outras  palavras,  os  deveres  de  boa-fé
forma  bilateral. potencializam-se  e  ganham  em  impor-
Já no microssistema do Código de tância  nos  dias  de  hoje,  e  aí  está  a  pos-
Defesa  do  Consumidor  essa  bila- sibilidade  de  o  direito  dos  juízes  evoluir
teralidade  se  esmaece,  porque  a  própria a  nossa  visão  do  contrato  na  prática.
norma  impõe,  por  exemplo,  em  matéria A segunda função da boa-fé, mais
de  banco  de  dados  (Art.  43  e  seg.  do típica  é  a  função  de  controle  e  de  limi-
CDC),  que  um  (fornecedores)  guarde  e tação  das  condutas.  Aqui  está  a  proibi-
cuide da informação que detêm do outro ção das cláusulas abusivas. Temos liber-
(consumidores),  que  um  (fornecedores) dade  de  contratar,  de  estabelecer  a  li-
informe ao outro (consumidores). Portan- berdade  contratual,  portanto,  de  esta-
to, neste caso, o ônus, o peso do cumpri- belecer  o  conteúdo  do  contrato,  mas
mento  dos  deveres  de  boa-fé  foi como  essa  é  uma  liberdade  formal  e
positivado,  foi  regulado  em  norma  posi- muitas  vezes  não  material,  para
tiva indisponível (Art. 1º  do CDC), e so- reequilibrar  a  situação  em  matéria  de
mente  em  poucos  momentos  existe  re- contratos  de  adesão  -  regulados  hoje
almente  uma  bilateralidade  dos  deveres pelo  Código  Civil  de  2002  -  a  lei  limita
de  boa-fé  no  Código  de  Defesa  do  Con- essa  liberdade.  Vejamos  o  que  os  arti-
sumidor.  Um  exemplo  que  foi  dado  pelo gos 423 e 424 do novo Código Civil men-
Prof.  Wald  foi  justamente  o  do  contrato cionam  sobre  isso:  “Quando  houver  no
de  seguro,  em  que  há  uma  relação  de contrato  de  adesão  cláusulas  ambíguas
consumo,  mas  em  que  também  os  deve- ou  contraditórias  dever-se-á  adotar  a
res  de  informação  do  consumidor  estão interpretação  mais  favorável  ao  aderen-
positivados  no  Código  Civil  e  mesmo  as- te”,  primeira  idéia,  primeira  função.  E
sim  são  interpretados  sempre  favoravel- no  Artigo  424:  “Nos  contratos  de  adesão
mente  a  eles  (art.  47  do  CDC  em  diálo- são  nulas  as  cláusulas  que  estipulem  a
go!). Aqui nessa primeira função da boa- renúncia  antecipada  do  aderente  a  di-
fé,  isto  é,  da  concretude,  da reito  resultante  da  natureza  do  negó-
concretização  da  relação,  está  a  maior cio”.  Nesta  norma  temos  dois  momentos
potencialidade  para  o  chamado  direito normativos,  isto  é,  limita-se  a  possibili-
dos  juízes,  isto  é,  a  verdadeira  interpre- dade  de  renúncia  por  uma  das  partes,
tação  dos  contratos,  a  visualização  da através  de  cláusulas  exonerativas,
totalidade  da  relação  que  não  é  só  con- cláusulas  de  exoneração  de  responsa-
centrada  no  cumprimento  dos  deveres bilidade.  Assim,  no  contrato  de  trans-
principais,  mas  nesse  novo  mundo  em portes,  por  exemplo,  a  cláusula
que os serviços são mais importantes que exonerativa  de  responsabilidade  vai  ser
os  dares.  É  um  mundo  tão  complexo, considerada  nula,  vai  ser  restringida,
cheio  de  riscos,  onde  há  o  dever  de  in- comple-mentando  essa  idéia.  Em  maté-
formar,  de  colocar  junto  com  o  produto, ria  de  seguros,  também,  há  artigos  es-
por  exemplo,  um  manual  de  utilização pecificamente  prevendo  que  determina-
ou de colocar junto com o serviço bancá- das  cláusulas  não  são  possíveis  nesses
rio  o  verdadeiro  preço  daquela  taxa,  da- contratos  ou  em  contratos  de  prestação
quele  extrato,  daquele  talão,  ou  do  en- de  serviço  (na  parte  especial).    Porém,
vio do talão pelo correio e as possibilida- aqui    na  parte  geral  do  novo  Código  Ci-
des  que  teria  o  consumidor  de  manu- vil,  a  idéia  é  que  a  renúncia,  se  ela  é  ao
tenção  da  conta  de  forma  diferenciada, principal,  se  ela  é  aquela  resultante  da
esta  informação  pode  ser  até  mais  im- natureza  do  negócio,  esta  renúncia  ou

Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 261


disposição per se já é nula. Aqui encon- aos  agentes  na  sociedade,  como  ensina
tra-se  o  maior  limitador,  a  melhor  defi- o  STJ,  no    Resp.  219184/RJ,  j.
nição  do  que  podem  ser  essas  cláusulas 26.10.1999, Min. Ruy Rosado de Aguiar:
abusivas que o Código Civil de 2002 con- “SERASA. Dano moral. - A inscrição do nome
sidera  nulas. da contratante na Serasa depois de propos-
O  Código  de  Defesa  do  Consumi- ta ação para revisar o modo irregular pelo
dor  também  tem  a  idéia  da  cláusula qual o banco estava cumprindo o contrato de
abusiva,  só  que  ali,  para  a  proteção  do financiamento, ação que acabou sendo
mais  fraco,  a  potencialização  do  que  é julgada procedente, constitui exercício
abuso  é  ainda  maior.  Considera-se,  no indevido do direito e enseja indenização pelo
artigo  51,  parágrafo  1°,  como  nulas  to- grave dano moral que decorre da inscrição
das  as  cláusulas  que  asseguram  uma em cadastro de inadimplentes. Recurso co-
vantagem  exagerada  para  uma  das  par- nhecido e provido.”
tes,  que  destroem  o  sistema  em  que  o A  pergunta  atual  é  como  vamos
contrato  está  e  que,  portanto,  destroem, realizar  a  interpretação  desse  artigo  424
em    última  análise,  esse  objeto  do  con- do  Código  Civil  de  2002.  A  doutrina,  em
trato,  a  expectativa  legítima  do  consu- especial  os  comentaristas    começam  a
midor. fornecer  idéias  sobre  a  interpretação
É  a  f u n ç ã o d e c o n t r o l e e d e desse  artigo.  Normalmente,  porém,  cos-
l i mitação  das condutas  (Schran- tumam  concentrar-se  não  na  cláusula
kenfunktion),  pois    o  princípio,  de  for- geral  de  boa-fé  do  Código  de  Defesa  do
ma  imanente,  está  a  limitar  as  “posi- Consumidor,  mas  no  primeiro  inciso  do
ções” jurídicas dos contraentes e o exer- artigo  51.  O  Art.  51  do  CDC,  caput dis-
cício  de  seus  direitos,  dai,  por  exemplo, põe:  “São  nulas  de  pleno  direito,  entre
a  proibição  de  cláusulas  e  práticas outras,  as  cláusulas  contratuais  relati-
abusivas  (Art.  39  e  51  do  CDC).  Como vas  ao  fornecimento  de  produtos  e  ser-
afirmamos,  a  boa-fé objetiva  é  um viços  que:  I  -  impossibilitem,  exonerem
standard,  um  parâmetro  objetivo,  gené- ou  atenuem  a  responsabilidade  do  for-
rico,  um  patamar  geral  de  atuação,  do necedor  por  vícios  de  qualquer  natureza
homem médio, do bom pai de família que dos  produtos  e  serviços  ou  impliquem
agiria  de  maneira  normal  e  razoável  na- renúncia  ou  disposição  de  direitos...”.
quela  situação  analisada.73   O  julgador Esse  inciso  I,  há  que  se  mencionar,  não
valora  a  atuação,  decidindo  se  esta  ul- termina  assim, mas possui uma segun-
trapassou  ou  não  a  razoabilidade,  os  li- da  frase  que  permite,  nos  contratos  en-
mites  impostos  por  esta  boa-fé  objetiva tre  pessoas  jurídicas,  em  pleno
qualificada, que é a de consumo. Abusiva microssistema  do  Código  de  Defesa  do
é  a  conduta  ou  a  cláusula  que  viola  a Consumidor,  a  limitação  da  responsabi-
boa-fé,  os  deveres  impostos  pela  boa-fé lidade.
Por  que  menciar  isso?  Porque  me
73
  Neste  sentido,  veja-se  exemplar  decisão  do  Min.
Carlos  Alberto  Menezes  Direito,  in  Resp.  158.728-RJ,
parece  importante  para  estabelecermos
16.03.1999,  cuja  ementa  ensina:  “Plano  de  saúde.  Li- a  diferença  entre  o  que  é  a  ‘qualidade’
mite  temporal  da  internação.  Cláusula  abusiva.  2.  O da  boa-fé  ou  a  potencialidade  de  aplica-
consumidor  não  é  senhor  do  prazo  de  sua  recuperação,
que, como é curial, depende de muitos fatores, que nem
ção  da  boa-fé  no  Código  de  Defesa  do
mesmo os médicos são capazes de controlar. Se a enfer- Consumidor  e  a  potencialidade  de  sua
midade  está  coberta  pelo  seguro,  não  é  possível,  sob aplicação  no  Código  Civil  de  2002.    O
pena de grave abuso, impor ao segurado que se retire da
unidade  de  tratamento  intensivo,  com  o  risco  severo  de Código  Civil  de  2002  é  um  Código  para
morte,  porque  está  fora  do  limite  temporal  estabelecido iguais,  relação  entre  civis  e  relação  en-
em  uma  determinada  cláusula.  Não  pode  a  estipulação
contratual  ofender  o  princípio  da  razoabilidade,  e  se  o
tre  comerciantes.  O  próprio  Código  de
faz,  comete  abusividade  vedada  pelo  art.  51,  IV,  do  Có- Defesa  do  Consumidor,  que  possui  am-
digo  de  Defesa  do  Consumidor.  Anote-se  que  a  regra plas  definições  de  quem  é  consumidor
protetiva,  expressamente,  refere-se  a  uma  desvantagem
exagerada  do  consumidor  e,  ainda,  a  obrigações  incom-
(veja  a  linha  interpretativa  dos
patíveis  com  a  boa-fé  e  a  eqüidade.” maximalistas  e  dos  finalistas,  à  qual  me

262 - Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil”


filio),  já  pensando  nisso  e  antes  do  ad- foi  trazida  para  o  Direito  Civil  interno  a
vento do Código Civil de 2002, previa que partir daquela idéia antiga da boa-fé, que
em  matéria  de  relacionamento é  a  exceção  da  ruína:  no  cumprimento
intercomerciantes,  portanto,  consumido- conforme  a  boa-fé  dos  contratos  há  de
res  pessoas  jurídicas,  era  permitida  a evitar-se  a  conduta  que  leve  à  ruína  do
cláusula  de  limitação  da  responsabili- outro,  do  parceiro  contratual.
dade,  se  ela  não  atingia  a  natureza  do O  nossa  visão  atual  do  contrato  é
contrato,  o  objeto  do    contrato,  se  real- de uma parceria, contrato é um momento
mente  não  violava  a  boa-fé  entre  comer- de  cooperação.  Porque  o  outro  me  esco-
ciantes,  isto  é,  a  cláusula  geral  do  arti- lheu  e  porque  eu  o  escolhi  -  (repita-se
go 51, IV do Código de Defesa do Consu- que  boa-fé  é  um  pensar  refletido),  não
midor.  Como  podemos  interpretar  essa posso  eu  permitir  que  a  minha
exceção  à  regra?  Podemos  interpretar vinculação  a  uma  determinada  cláusu-
através de uma visão de força, de ‘quali- la contratual leve o outro a ruína, como,
ficação’.  É  claro  que  o  princípio  da  boa- por  exemplo,  no  sistema  financeiro  da
fé  atinge  tanto  o  microssistema  do  Có- habitação. Se eu credor não permito que
digo  de  Defesa  do  Consumidor  como  o o  indivíduo  me  devolva  o  imóvel,  se  eu
Código Civil de 2002, mas aqui, em uma não  permito  que  o  indivíduo  venda-o  ou
relação  entre  iguais,  a  idéia  do  que  é que passe o imóvel e a dívida a uma ou-
abusivo, do que atinge a natureza do con- tra pessoa, se o indivíduo perde a possi-
trato  é,  de  qualquer  maneira,  de  uma bilidade  concreta  de  saldar,  se  há  uma
valoração  mais  concreta;  porém,  para  a impossibilidade subjetiva de pagar (se ele
proteção obrigatória, ex vi lege, de uma fica  desempregado  ou  doente,  por  exem-
das  partes  do  contrato,  realmente  nes- plo)  e  eu  o  mantenho  ‘preso’  como  meu
te  caso  a  boa-fé  se  ‘ilumina’/qualifica, devedor, sei que o estou levando à ruína !
sendo  portanto  muito  mais  exigente  e Eu  não  renegocio,  porque  eu  credor  ‘te-
por  isso  muito  mais  utilizada. nho’  o  contrato,  ‘tenho’  aquela  cláusula,
A  terceira  função  é  a  função  de tenho  o  ‘direito’.  Não  preciso  eu  ‘adap-
correção  e  adaptação  em  caso  de  mu- tar’,  renegociar,  mas  será  que  estou
dança  das  circunstâncias,  que  também agindo  conforme  a  boa-fé?  Obviamente,
já  foi  mencionada  aqui  pelo  Professor todos sabemos que o paradigma da boa-
Arnoldo  Wald.  Hoje,  essa  função  é  a fé  é  pensar  no  outro,  nas  suas  expecta-
idéia  de  que  há  um  direito  a  uma  ma- tivas  legítimas,  no  fato  de  que  ele  real-
nutenção  do  vínculo  (pelo  menos  um  di- mente  entrou  no  Sistema  Financeiro  de
reito  à  tentativa  da  manutenção  do  vín- Habitação  porque  não  podia  comprar
culo).  Por  isso  há,  dentro  da  moção  de através  de  outros  financiamentos.  Tra-
boa-fé,  a  idéia  de  um  dever  de ta-se  de  um  contrato  massificado,  para
renegociação  geral  dos  contratos  comer- pessoas  mais  pobres,  para  classe  média
ciais.  Este  dever  não  nasceu  no  direito da  sociedade  (se  ele  fosse  da  classe  alta
do  consumidor.  Essa  idéia  nasceu  nos compraria  à  vista  ou  faria  um  financia-
grandes  tratados  internacionais,  veja-se mento  direto  bancário).  O  dever  de
os  princípios  do  UNIDROIT,  na  chamada renegociação  nasceu  nos  contratos  in-
Lex Mercatoria, isto é, nos contratos in- ternacionais do Direito Comercial e agora
ternacionais  entre  comerciantes. 74   E, está  chegando  nesse  direito  entre
iguais,  ou  direito  entre  diferentes,  o  Di-
74
  Veja  o  estudo  de  MARTINEK,  Michael,  “Die  Lehre reito  do  Consumidor,  e  aqui  está  tam-
von  de  Neuverhandlungspflichten-  Bestandaufnahme, bém  -  em  minha  opinião  -  na  noção  de
Kritik...und  Ablehnung”, in  Archiv für die
civilistische Praxis,  198  (1998),    p.  330  e  seg.  ,  o boa-fé do Código Civil de 2002.
qual  apesar  de  negar  a  existência  deste  dever  geral  de É a função de correção e de adap-
renegociação  (Neuverhandlungspflicht)  em  todos  os
contratos  de  longa  duração,  concorda  que  a  doutrina
tação em caso de mudança das cir-
majoritária  o  identifica  em  muitíssimo  deles,  em  espe- cunstâncias (Korrekturfunktion),  a
cial  os  de  longa  duração  de  consumo,  p.  356  e  seg. permitir  que  o  julgador  adapte  e  modifi-

Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 263


que  o  conteúdos  dos  contratos  para  que  o geral,  foi  aqui  mencionado  pelo  Prof.
vínculo  permaneça  (manutenção  do  vínculo) Arnoldo  Wald,  parece-me  que  em  breve
apesar  da  quebra  da  base  objetiva  do  negó- nós  teremos  essa  idéia  de  abertura  do
cio,  por  exemplo,  com  a  desvalorização  do sistema  para  uma  decisão  casuística
dólar em contratos de leasing,75  ou imponha com base não só na função social do con-
deveres  de  renegociação76  face à quebra trato, que seria outra possibilidade, mas
subjetiva  da  base  do  negócio,  por  exemplo, com  base  no  princípio  geral  da  boa-fé.
quando o consumidor perde seu emprego. A É  a  função de autorização para a
decisão aqui é casuística, como ensina o STJ, decisão por eqüidade  (Ermächtigüngs-
no  mencionado  Resp.  200.019/SP  j. funktion),  pois  como  cláusula  geral  sua
17.05.2001,  DJ  27.08.2001,  Min.  Ari concreção  passa  pela  ativa  participação
Pargendler:”Civil. Promessa de compra e ven- do  julgador  e  não  pode  escapar  à  tópica
da. Rescisão. Ação de rescisão de compromisso e  à  procura  da  eqüidade  contratual,  ori-
de compra e venda ajuizada pelo promitente com- ginando  assim  um  direito  de  eqüidade
prador que ficou sem condições de cumprir o con- (Billigkeitsrecht)  adaptado  à  socieda-
trato. Procedência do pedido, à vista das circuns- de  e  às  necessidades  atuais.  Como
tâncias do caso concreto.. .” 77 relembra Hattenhauer,78  a fórmula “boa-
A  quarta  função,  e  com  isso  ter- f锠exige uma concretização no caso con-
mino  essa  parte  teórica,  é  de  autoriza- creto,  logo,  casuística  e  com  base  na
ção  para  decisão  por  eqüidade.  No  Bra- eqüidade  (Billigkeit).
sil,  costumamos  dizer  que  a  decisão  por
eqüidade  tem  que  ser  autorizada  ex vi B) Cláusulas abusivas no Código Civil
lege.  O  Código  de  Defesa  do  Consumi- de 2002 e no CDC: uma visão prática
dor  é  um  sistema,  um  microssistema, do diálogo das fontes
que  permite  a  decisão  por  eqüidade  em Iniciando  esta  segunda  sub-parte,  a
seu  artigo  7º.  Porém,    geralmente  não parte concreta, cabe perguntar o que signi-
concordamos  com  a  idéia  alemã  de  que fica  essa  visão  de  diálogo  e  de  funções  da
dentro  da  boa-fé  está  uma  decisão boa-fé para a prática do Código Civil de 2002?
casuística,  uma  decisão  fora  do  siste- Em  1993,  a  Corte  Constitucional
ma,  uma  decisão  inovadora.  Aqui,  real- Alemã,  em  um  contrato  bancário,  deci-
mente,  não  consegui  encontrar  nenhu- diu  que  a  concretização  da  cláusula  ge-
ma  decisão  do  Judiciário,  do  Superior ral  de  boa-fé  deveria  ser  feita  de  acordo
Tribunal de Justiça, para apoiar essa úl- com  os  direitos  fundamentais  das  pes-
tima  função  da  boa-fé.  Minha  experiên- soas.79  A decisão de 1993 abriu uma cri-
cia  é  que  realmente  essas  teorias
germânicas,  mais  dia  menos  dia,  come- trato,  que  não  aproveitou  e  a  devolução  das  parcelas
çam a ser aceitas entre nós. Assim como pagas,  mesmo  se  a  outra  parte  se  opunha,  citando
como  precedentes  os  Resp.  132.903-SP,  Min.  Ruy
a terceira, que é o dever de renegociação Rosado  de  Aguiar,  DJ  19/12/97,  Resp.  109.960-RSP,
Min.  Ruy  Rosado  de  Aguiar,  DJ  24/03/97,  Resp.
75
  Veja,  por  todos,  Resp.  361.694/RS,  j.  26.02.2002, 79.489-DF,  Min.  Ruy  Rosado  de  Aguiar,  DJ  22/04/
Min.  Nancy  Andrighi,  DJ  25.03.2002. 97      e  o  já  citado in    Resp.  109.331-SP,  DJ  31/03/
76
  A  doutrina  atual  está  estudando  fortemente  os  deve- 97.
res  de  renegociação,  tanto  na  Alemanha  (Norbert  Horn, 78
  HATTENHAUER,  Hans,  Grundbegriffe des
Jürgen  Baur,  Herbert  Kronke,  Ersnt  Steindorff,  Gabrielle Bürgerlichen Rechts,  Beck,  Munique,  1982,    p.
Fecht,  Andreas  Nelle  etc.),  na  Itália  (Giovanni  de 93.
Cristofaro,  Giuseppe  Gandolfi,  Franco  Anelli,  todos  so- 79 
BVerfG  Beschl.  v.  19.101993  -  1BvR  567/89  u.la.,
bre  cessão  dos  contratos),  nos  Estados  Unidos  (seja  nos in:  NJW  1994,36-39.  A  ementa  original  é  a  seguinte:
teóricos  da  Lw  and  Economics  –  renegotiation-,  seja  nos “Die  Zivilgerichte  müssen  -  insbesondere  bei  der
internacionalistas,  em  virtude  dos  Principíos  da Konkretisierung  und  Anwendung  von  Generalklauseln
UNIDROIT  para  os  contratos  internacionais  de  1994), wie  §  138  und  §242  BGB  -  die  grundrechtlcihe
assim relata em detalhes MARTINEK, Michael, “Die Lehre Gewährleistung  der  Privatautonomie  in  Art.  2,I  GG
von  de  Neuverhandlungspflichten-  Bestandaufnahme, beachten.  Daraus  ergibt  sich  ihre  Pflicht  zur
Kritik...und  Ablehnung”,  in   Archiv für die civilistische Inhaltskontrole  von  Verträge,  die  einen  der  beiden
Praxis  (AcP),  198  (1998),    p.  330  a  398. Vertragspartner  ungewöhnlich  stark  belasten  und  das
77
 Neste caso o STJ permitiu ao devedor (inadimplente), Egbnis  strukturell  ungleicher  Verhandlungsstärke
que  perdera  seu  emprego,  requerer  a  rescisão  do  con- sind.”

264 - Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil”


se  no  sistema  alemão  e  levou  à  modifi- (Estado-juiz,  Estado-legislador,  Estado-
cação do Código Civil, que era de 1896.80 administrador).  A  Constituição  também
Nesse  caso  concreto  de  um  contra- determinou  a  realização  de  um  Código
to  bancário  -  que  era  de  milhares  de de  Defesa  do  Consumidor,  no  artigo  48
marcos - entre um empresário e um ban- dos  atos  das  Disposições  Transitórias.
co,  o  problema  todo  se  deu  com  relação Essa  Constituição,  que  privilegia  o  con-
ao  garantidor,  o  filho  desse  empresário, sumidor,  o  diferente,  o  mais  fraco,  ago-
que  já  era  maior,  e  garantiu  (assinando ra  deve  ser  utilizada  para  guiar  a  nossa
a garantia) num valor absolutamente ex- interpretação  das  cláusulas  gerais  do
traordinário  em  relação  à  potencialidade Código  Civil  de  2002.  Não  é  que  não  co-
dele  (ele,  inclusive,  era  estudante  de nheçamos  como  aplicar  essas  cláusulas
medicina).  O  banco  na  época  argumen- gerais.  O  princípio  da  boa-fé  já  é  muito
tou que precisava evitar a ‘circulação’ da aplicado  na  prática,  o  princípio  da  fun-
riqueza na família, isto é, que se ele não ção  social  do  contrato  é  um  pouco  me-
fosse  fiador  ou  garantidor  do  pai,  o  pai nos  conhecido  mas,  de  qualquer  manei-
poderia  transferir  aqueles  valores  para ra,  sua  prática  existe.  Da  mesma  for-
ele  e  com  isso  fugir  à  pressão  do  banco. ma,  temos  já  imbuída  entre  nós  a  idéia
No  final,  no  caso  concreto,  o  pai do  Direito  Civil  Constitucional,  que  aqui
vai  à  falência,  e  porque  é  um  comerci- no Estado do Rio de Janeiro a Escola da
ante com todas os privilégios de falido, o UERJ,  sob  a  liderança  do  Prof.  Gustavo
banco  prefere  acionar  o  filho,  então  já Tepedino,  tem  frisado  muito:    a  Consti-
um  médico.  Só  que  o  valor  do  emprésti- tuição,  a  dignidade  da  pessoa  humana
mo,  que  ele  obviamente  garantiu  de  li- como  idéia  guia,    a  diferenciação  nos
vre  vontade,  era  tão  grande  que  ele  le- valores  da  ordem  econômica  e  financei-
varia  o  resto  da  vida  pagando.  O  ‘filho’ ra,  a  idéia  da  defesa  do  consumidor,  da
perdeu  em  primeiro  grau,  sob  o  argu- defesa  do  meio-ambiente,  da  defesa  do
mento da pacta sunt servanda; perdeu trabalhador,  mas  principalmente  idéia
em  segundo  grau  –  pacta sunt de  que  o  nosso  mercado  deve  levar  ao
servanda- e  chegou  à  Corte  Federal  Ci- desenvolvimento e, ao mesmo tempo, não
vil  alemã  (BGH)  e  esta  novamente  afir- excluir  pessoas  (idéia  da  solidariedade
mou:  não,  o  senhor  é  maior,  o  senhor social).  Todas  essas  noções  encontram-
obrigou-se  e  não  temos  como  reverter se  na  Constituição  brasileira  e  podem
essa situação agora, a não ser pelos exa- ser  usadas  para  concretizar  (con-
mes  de  fato.  O  filho-garantidor  recorre, cretude),  para  essa  fotografia  que  nós
então,  à  Corte  Constitucional  alemã vamos fazer do que é realmente a boa-fé
(BVerFG)  que  faz  emite  esta  decisão  que na  prática  contratual.
ficou  clássica:  “as  cortes  civis,  quando Na  parte  prática  é  de  grande  im-
da concretização das cláusulas gerais de portância  a  interpretação  das  cláusulas
boa-fé  e  bons  costumes,  deverão  consi- abusivas. Por que a interpretação? Não só
derar  os  direitos  fundamentais  do  cida- porque o artigo 421 do Código Civil come-
dão,  inclusive  o  direito  de  desenvolvi- ça  o  capítulo  impondo  que:  “A  liberdade
mento  da  sua  personalidade  (art.  2°, de contratar será exercida em razão e nos
inciso  I  da  Lei  Fundamental  de  Bonn).” limites  da  função  social  do  contrato”  e  o
O  que  quero  aqui  destacar  é  que 422  afirma:  “Os  contratantes  são  obriga-
a  Constituição  brasileira  fundamentou dos a guardar, assim na conclusão do con-
realmente  o  Código  de  Defesa  do  Con- trato, como em sua execução, os princípi-
sumidor, sua origem, no artigo 5°, inciso os  de  probidade  e  boa-fé”,  mas  também
XXXII,  que  cria  um  direito  fundamental porque a idéia que está no artigo 113 é de
do  consumidor  à  proteção  pelo  Estado que  a  boa-fé  é  a  maneira,  o  instrumento
da  interpretação  dos  contratos  hoje.
80 
Veja    a  obra  de  REINICKE,  Dietrich  e  TIEDTKE, Assim impõe o artigo 47 do Código
Klaus,  Bürgschaftsrecht, Berlim,  Luchterhand,  1995. de  Defesa  do  Consumidor:  a  interpreta-

Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 265


ção  é  a  favor  do  mais  fraco,  a  interpre- derou  que  não  se  tratava  de  um  contra-
tação é de acordo com a boa-fé. Mas qual to  de  adesão  em  virtude  da  igualdade
seria  a  diferença  entre  o  que  impõe  o econômica  e  da  possibilidade  de  recu-
Código de Defesa do Consumidor e o que sar  e  modificar  efetivamente  as  cláusu-
afirma  o  Código  Civil  de  2002?  A  dife- las.  82 Já na definição ampla do artigo 54
rença  pode  estar  no  artigo  423,  o  qual do Código de Defesa do Consumidor qua-
afirma:  “Quando  houver  no  contrato  de se  tudo  é  contrato  de  adesão.  A  juris-
adesão  cláusulas  ambíguas  ou  contra- prudência  do  Superior  Tribunal  de  Jus-
ditórias  dever-se-á  adotar  a  interpreta- tiça e do Supremo Tribunal Federal, pelo
ção mais favorável ao aderente”. Tal nor- menos  nesse  caso  Teka  versus  Aiglon,
ma  não  deixa  de  ter  o  espírito  de  prote- ao  contrário,  possibilita  o  renascimento
ção  do  aderente,  aquele  que  não  redige da  discussão  do  que  é  um  contrato  de
as  cláusulas,  mas  o  texto  exige  três  de- adesão  entre  comerciantes. 83  O  segun-
talhes  que  o  Código  de  Defesa  do  Con- do  exemplo  é  de  um  caso  de  São  Paulo,
sumidor não exige. Primeiro que seja um de  um  conflito  de  competência  decidido
contrato  de  adesão.  Nas  relações  entre no  STJ.84  Discutida é a cláusula de elei-
iguais,  entre  dois  comerciantes  ou  en- ção  de  foro,  também  uma  cláusula  co-
tre dois civis, como, por exemplo, o con- mum  em  qualquer  formulário  de  contra-
domínio  (o  próprio  Superior  Tribunal  de to  comercial,    que  poderíamos  denomi-
Justiça já afirmou que não considera esta nar  de  ‘contrato  de  adesão’.  Nesse  caso
uma  relação  de  consumo)  ou  seja,  nes- que  envolve  a  empresa  Panamá  Inter-
sas relações puramente civis e puramen- national  e  uma  unidade  cardiotoráxica
te  comerciais  (parece-me  que  haverá de  Sergipe,  tanto  o  II  Tribunal  de  Alçada
uma  modificação  da  interpretação  do de São Paulo, quanto o Superior Tribunal
Código  de  Defesa  do  Consumidor  quan- de  Justiça  (relator  Ministro  Ari
do  esse  código  entrar  em  vigor),  voltare- Pargendler),  consideraram  que  aqui  não
mos  a  uma  discussão  que  era  muito  co- se  tratava  realmente  de  contrato  de  ade-
mum  no  Judiciário:  se  é  ou  não  é  um são,  apesar  de  ser  um  contrato-formulá-
contrato  de  adesão.  Só  em  caso  de  con- rio,  porque  havia  uma  certa  igualdade
trato de adesão, permite o Art. 423 o con- entre as partes e não aplicaram o Código
trole  do  conteúdo  do  contrato  e  a  nuli- de  Defesa  do  Consumidor    e  possibilita-
dade  da  cláusula.  Onde  encontraremos ram  a  eleição  do  foro  nessa  relação  en-
a  definição  de  contrato  de  adesão? tre  comerciantes.
Não está no Código Civil de 2002, Parece-me,  pois,  que  nasce  aqui
porém,  tal  definição  pode  ser  retirada uma  grande  discussão  sobre  a  natureza
analogicamente  do  Código  de  Defesa  do e  talvez  a  impossibilidade  de  se  usar  o
Consumidor,  do  artigo  54.  Destaque-se
que  o  Supremo  Tribunal  Federal  negou-
82 
Veja  nossos  comentários,  MARQUES,  Cláudia  Lima;
TURKIENICZ,  Eduardo.  “Caso  Teka  vs.  Aiglon:  em
se  a  definir  contrato  de  adesão  entre defesa  da  teoria  finalista  de  interpretação  do  art.  2º  do
comerciantes  com  base  no  Art.  54  do CDC”  in  Revista de Direito do Consumidor,  n.  36
(out.-dez.  2000),  p.  221-240.
CDC. No caso que eu comento na Revis- 83
  Destaca  a  importância  desta  decisão  para  o  diálogo
ta de Direito do Consumidor,  o  Teka entre  o  CC/2002  e  o  CDC,  PASQUALOTTO,  Adalberto,
versus Aiglon, 81  o Supremo Tribunal Fe- “O  Código  de  Defesa  do  Consumidor  em  face  do  novo
deral,  em  um  contrato  de  importação Código  Civil”, Revista de Direito do Consumidor,  nº
43  (jul-dez..2002),  p.  104
entre  comerciantes,  apesar  de  ter  sido 84
  Conflito  de  Competência  nr.  32.270-SP,  j.
usado  um  formulário,  isto  é,  condições 10.10.2001,  Min.  Ari  Pargendler,  p.  3  (voto),  cuja
gerais  de  venda  de  algodão  da  Irlanda ementa  é:  “Conflito  de  Competência.  Foro  de  Eleição.
Prevalência.  Na  compra  e  venda  de  sofisticadíssimo
para  essa  tecelagem  brasileira,  consi- equipamento  destinado  a  realização  de  exames  médi-
cos  –  levada  a  efeito  por  pessoa  jurídica  nacional  e
81
  STF,  Pleno,  SEC  (Sentença  Estrangeira  Contestada) pessoa  jurídica  estrangeira  –  prevalece  o  foro  de  elei-
5.847-1,  Rel.  Min.  Maurício  Corrêa,  01/12/99,  veja  a ção,  seja  ou  não  uma  relação  de  consumo.  Conflito  co-
integra  da  descião  in  Revista Direito do Consumi- nhecido  para  declarar  competente  o  MM.  Juiz  de  Di-
dor,  nº  34  (abr.-jun.2000),  p.  253-263. reito  da  16ª  Vara  Cível  de  São  Paulo.”

266 - Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil”


artigo  54,  como  estão  sugerindo  os  pri- digo  de  Defesa  do  Consumidor.  A  per-
meiros comentaristas ao Código Civil, como gunta  é:  se  no  sistema  das  relações  en-
paradigma  do  que  é  um  contrato  de  ade- tre  iguais,  entre  comerciantes,  vai  ser
são  no  país,  tendo  em  vista  que  o  artigo permitida  ao  juiz  a  utilização  da  boa-fé,
54  do  Código  de  Defesa  do  Consumidor  é com toda essa potencialidade que o Judi-
um  artigo  somente  para  uso  nesse ciário brasileiro utiliza no microssistema
microssistema,  isto  é,  frente  a  um  leigo, do Código de Defesa do Consumidor para
um  consumidor  trata-se  de  um  ‘contrato beneficiar  um  dos  aderentes,  isto  é,  no
de  adesão’,  mas  o  mesmo  contrato  frente caso  do  contrato  inter-comerciantes,
a dois comerciantes (no caso, frente a dois beneficiar  um  dos  comerciantes....  Pa-
comerciantes  num  contrato  internacio- rece-me,  a  primeira  vista,  que  o  artigo
nal), talvez não seja considerado como tal. 423  não  permite  esta  linha  de  conclu-
A  segunda  diferença  é  a  menção  a são.  Volta-se  ao  sistema  antigo  de  in-
cláusulas  ambíguas    ou  contraditórias. terpretação,  que  exige  uma  contradição
Na  interpretação,  obviamente  de  acordo ou  uma  falta  de  clareza  e,  sim,  um  con-
com  a  boa-fé,  que  se  faz  com  força  no trato de adesão, isto é, um contrato onde
artigo 47 do Código de Defesa do Consu- a  liberdade  contratual  esteja  de  tal  for-
midor  não  se  exige  que  a  cláusula  seja ma  reduzida  pela  simples  adesão  de  um
ambígua ou não clara. No CDC não utili- de  forma  a  permitir  essa  interpretação
za-se o brocado: interpretatio cessat in a  favor  do  aderente.  Caso  contrário,  a
claris,  isto  é,  se  há  clareza,  não  há  ne- interpretação  é  somente  de  acordo  com
cessidade  de  interpretação.  Ao  contrário, o  princípio  geral  de  boa-fé  e,  como  afir-
a visão do Código de Defesa do Consumi- ma o artigo 421, através da função soci-
dor  é  de  incluir  todas  as  informações  e al  do  contrato.    Pode  ser  que,  havendo
que a interpretação geral de todas as clá- interesse  público  (imaginem  um  contra-
usulas,  as  claras  e  as  ambíguas  seja  a to  de  licitação,  um  contrato  de  energia
favor  do  consumidor.  A  idéia  aqui  defen- elétrica),  e    não  sendo  um  contrato  de
dida  pelo  Prof.  Arnoldo  Wald,  da  neces- consumo,  ainda  persista  a  possibilidade
sária  proteção  da  confiança  despertada de  criação  do  juiz  nesse  Código,  parece-
através  dos  atos  do  fornecedor.  Segundo me que, porém, mais reduzida.  Além dis-
o CDC, todas  as informações e mesmo a so, o artigo 112 do Código Civil novo resta-
publicidade, ex vi artigo 30, serão incluí- belece  aquela  velha  regra  do  artigo  85  do
das no contrato celebrado, como ‘cláusu- CC/1916,  quanto  à  intenção  das  partes.
las’  extras  deste  contrato.  A  publicidade, Portanto,  não  evolui  quanto  à  teoria.  Tra-
como  informação  ou  promessa  que  des- ta-se  da  teoria  da  vontade  e  não  a  teoria
pertou  a  confiança  do  consumidor,  pode da  declaração.  No  Código  de  Defesa  do
estar  em  contradição  com  uma  cláusula Consumidor,  a  idéia  é  de  expectativas  le-
clara  do  contrato. gítimas,  de  proteção  da  confiança,  que  le-
Não  existem  cláusulas  mais  cla- vava  à  utilização  da  teoria  da  declaração,
ras  do  que  as  cláusulas  abusivas.  Se, mais  especificamente  da  Teoria  da  Confi-
por  exemplo,  o  contrato  exclui  uma  de- ança:  declarou,  mesmo  que  na  publicida-
terminada  doença,  AIDS,  trata-se  de de,  deve  cumprir.
uma  cláusula  clara,  se  o  contrato  intro- Os pré-contratos (artigo 48 do Có-
duz  uma  cláusula  penal  pesadíssima, digo  de  Defesa  do  Consumidor),  os  avi-
uma  cláusula  quase  de  decaimento,  tra- sos,  os  recibos,  qualquer  documento,  as
ta-se  de  uma  cláusula  clara,  se  estipu- promessas  (artigo  34)  dos  representan-
la  o  preço  de  uma  taxa  de  administra- tes  autônomos,  todas  essas  declarações
ção  de  48%,  trata-se  de  uma  cláusula têm  uma  importância  fortíssima  no
clara. Mesmo assim essas cláusulas ‘cla- microssistema  do  Código  de  Defesa  do
ras’  podem  e  devem  sofrer  alguma  in- Consumidor.  Já  no  Código  Civil  novo  -
terpretação  para  evitar  que  elas  sejam porque  é  um  código  entre  iguais,  repi-
cláusulas  abusivas,  isso  segundo  o  Có- to -, essa importância diminui. E o pon-

Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 267


to de maior colisão, entre um sistema e o Por fim, o artigo 425, o último que
outro é o artigo 111 do Código Civil segun- devo  mencionar,  afirma  o  seguinte:  “É
do o qual o silêncio das partes pode signi- lícito  às  partes  estipular  contratos
ficar  aceitação,  segundo  os  usos  e  costu- atípicos,  observadas  as  normas  gerais
mes locais. Essa norma é uma norma per- fixadas  neste  Código”.  É  claro  que  esse
feita  para  uma  relação  entre  iguais,  rela- artigo  nada  menciona  sobre  cláusulas
ção  entre  civis  e  relação  entre  empresá- abusivas,  mas  permite  tratar  da  idéia
rios,  portanto  experts ou  igualmente  lei- da  ‘criação’  pelo  Judiciário,  da  identifi-
gos,  mas  não  pode  ser  transportada  para cação do que é ‘de acordo’ com a boa-fé
o  microssistema  do  Código  de  Defesa  do ou  contrário  a  ela,  através  da
Consumidor.  Portanto  (e  aí  eu  retorno  a concretização  que  faz  caso  a  caso.  Ve-
minha idéia inicial), parece que se as nor- jamos,  a  idéia  do  contrato  atípico  ou  tí-
mas  são  semelhantes,  se  o  princípio  é  o pico  na  noção  de  arrendamento  mer-
mesmo,  isto  é,  o  princípio  da  boa-fé,    a cantil, contrato que por muito tempo não
autorização dada ao Judiciário para inter- teve  lei  especial.  Quando  veio  a  lei,  foi
pretar o princípio da boa-fé no Código Civil o  próprio  Judiciário  que,  não  direta-
de 2002, através das suas várias normas, mente,  mas  na  prática,  fez  a  referida
é menor e está menos guiada ou indicada valoração. Por exemplo, um artigo da Lei
do  que  no  Código  de  Defesa  do  Consumi- do  Arrendamento  Mercantil  permitia  a
dor,  onde  a  atuação  de  controle  do  con- transformação  da  natureza  do  contrato
teúdo  do  contrato,  pela  própria  natureza e,  hoje,  após  a  atuação  do  Judiciário
deste,  em  uma  relação  entre  diferentes, está mais ou menos consolidada a idéia
é  maior. de  que  a  antecipação  do  VRG  transfor-
O  último  ponto  a  tratar,  antes  de ma  a  natureza  do  contrato.  Transfor-
passarmos  à  jurisprudência,  é  o  do  arti- ma,  porque  isso  já  estava  previsto  mais
go 424 do Código Civil de 2002, que esta- ou  menos  indiretamente  na  própria  lei,
beleceu:  “Nos  contratos  de  adesão  são mas  a  potencialização  veio  através  do
nulas  as  cláusulas  que  estipulem  a  re- Judiciário,  através  da  criação  e  da  in-
núncia  antecipada  do  aderente  a  direito terpretação  judicial.
resultante da natureza do negócio.”  Aqui Para  finalizar,  veremos  como  a  ju-
destaco  a  nulidade  absoluta.  Muito  se risprudência  tem  interpretado  esta  idéia
discutiu,  inclusive  no  Código  de  Defesa de que a boa-fé é o instrumento valorativo
do Consumidor, se as cláusulas abusivas do  que  é  de  acordo  ou  contra,  isto  é,  do
eram  nulas  de  forma  relativa,  tendo  em que  é  abusivo  ou  do  que  é  permitido  em
vista  que  a  nulidade  de  forma  relativa matéria  contratual.  Os  deveres  de  boa-
pode  ser  sanada.  O  Código  Civil,  e  nesse fé  principais  são:  o  dever  de  informar,  o
sentido  ele  é  bastante  coerente,  trans- dever  de  cooperar  e  o  dever  de  cuidado.
formou  algumas  nulidades  relativas  em No Resp. nº 264562 o Ministro Ari
nulidades absolutas, porque hoje interes- Pargendler,  em  decisão  de  12.06.2001,
sa  à  sociedade  como  um  todo  que  essas afirma  o  seguinte:  “Civil. Seguro de as-
cláusulas  abusivas  sejam  consideradas sistência médico-hospitalar - plano de assis-
ilícitas,  pelo  menos  que  haja  uma  san- tência integral (cobertura total), assim
ção - a  própria nulidade. Não há apenas nominado no contrato. As expressões ‘assis-
um interesse pessoal, individual, das par- tência integral’ e ‘cobertura total’ são expres-
tes que está sendo atingido, mas há tam- sões que têm significado unívoco na compre-
bém    um  interesse  da  coletividade.  Essa ensão comum, e não podem ser referidas
idéia  já  estava  no  Código  de  Defesa  do num contrato de seguro, esvaziadas do seu
Consumidor e agora foi repetida no Códi- conteúdo próprio, sem que isso afronte o
go  Civil.  Nesse  sentido,  a  sanção  nulida- princípio da boa-fé nos negócios. Recurso
de  é  a  mesma,  apesar  de  o  Código  Civil não conhecido”.  Aqui  a  idéia  de  que  o
novo  dar  menor  possibilidade,  na  minha nome do contrato (não é nem uma cláu-
opinião,  de  atuação  do  Judiciário. sula,  mas  sim  o  título  do  contrato)  já

268 - Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil”


desperta  uma  expectativa,  já  informa. res  ainda  informavam  que  era  o  único
Então,  se  realmente  o  contrato  se  cha- plano que cobria a AIDS, o que induziu a
ma  ‘assistência  integral’,  ‘cobertura  to- erro  estas  várias  pessoas.  De  qualquer
tal’,  ele  não  pode  ser  uma  assistência maneira,  a  prática  de  não  exigir  exames
‘não-integral’,  uma  cobertura  ‘não-total’, prévios  persiste  até  hoje  e,  nos  contra-
nas  cláusulas  do  contrato  de  adesão.  A tos  coletivos,  quem  preenche  aqueles
contradição,  se  fôssemos  identificar, formulários,  às  vezes,  é  o  empregador
estaria  entre  o  título  e  as  cláusulas.  O ou então o corretor, e não a pessoa con-
dever de informar é um dever de condu- sumidor  beneficária.  Depois  afirma-se
ta,  um  paradigma  de  conduta  leal  na que  houve  ‘omissão’  de  informação  por
sociedade,  como  mencionava  o  Prof. parte  do  indivíduo.  A  cláusula  sempre
Arnoldo  Wald,  há  pouco.  Assim  como  o esteve  no  contrato,  a  prática  comercial
contrato,  a  cláusula  é  um  instrumento é que vai ‘tirá-la’ daquela inércia em que
de  informação,  que  despertará  expecta- ela  se  encontra.  E  cabe  ao  Judiciário
tivas e a cláusula será abusiva ou o nome afirmar  se  esta  cláusula  é  violadora  do
violará o princípio da boa-fé, justamente princípio  da  boa-fé,  da  idéia  de  que  as
quando a cláusula não informar, o nome partes devem cooperar e não deixar den-
não  informar.  Ao  contrário  da  idéia  do tro  dos  contratos  verdadeiras  ‘armadi-
dolus malus ou bonus, a idéia aqui é a lhas’ para os seus parceiros contratuais.
de  levar  o  outro  a  uma  falsa  visão  da É  dever  informar  quais  são  ou  não  os
realidade,  que  passa  a  confiar  que  esse riscos  cobertos  pelas  seguradoras  -  e
contrato realmente assegura uma cober- aqui o Ministro menciona o dever de as-
tura  total,  uma  assistência  integral.  Por segurar-se  que    realmente  aqueles  in-
que essa cláusula foi declarada abusiva, divíduos  são  saudáveis.
ou  por  que  essa  informação  do  título  foi Por  fim,  um  exemplo  do  dever  de
assim  considerada?  Justamente  pela cuidado.  É  o  REsp.  n°  255065/RS,  Mi-
valoração que  se  fez  de  uma  conduta nistro  Carlos  Alberto  Menezes  Direito,
leal,  de  um  paradigma  na  sociedade. de  05.04.2001.  O  tema  é  o  mesmo:  “Se-
Um  outro  bom  exemplo  da  juris- guro saúde. Cobertura. Cirrose provocada
prudência  é  o  REsp.  n°  23.4219/SP,  do por vírus ‘C’. Exclusão. Precedentes. 1. Ad-
Ministro  Ruy  Rosado,  de    15.05.2001, quirida a doença muito tempo após a assi-
com  a  seguinte  ementa:    “Seguro saúde. natura do contrato, desconhecida do autor
Doença preexistente. AIDS. Omissa a segu- que, em outras oportunidades, obteve trata-
radora tocante à sua obrigação de efetuar o mento com reembolso, diante de situação
prévio exame de admissão do segurado, semelhante, não há fundamento para a re-
cabe-lhe responder pela integralidade das cusa da cobertura, ainda mais sendo de
despesas médico-hospitalares havidas com possível contaminação em decorrência do
a internação do paciente, sendo inoperante tratamento hospitalar, ocorrendo a
a cláusula restritiva inserta no contrato de internação diante de manifestação aguda,
seguro-saúde. Recurso conhecido em parte inesperada. 2. Recurso Especial conhecido
e parcialmente provido”. Aqui observamos e provido”.  Aqui  essa  cláusula  de  exclu-
uma  idéia  ainda  mais  interessante  para são  de  doença,  que  no  caso  era
a  prática  dos  magistrados:  de  que  as preexistente,  estava  no  contrato,  genéri-
cláusulas abusivas são abstratas, intrín- ca, absoluta, e o indivíduo não sabia que
secas,  estando  no  contrato  desde  o  iní- era  doente,  ou  pelo  menos,  na  prática
cio,  obviamente.  Mas  o  importante,  às comercial  ele  recebia  esse  tratamento.
vezes,  não  é  a  cláusula,  mas  a  prática, Gostaria  de  mencionar,  nessa  li-
que  são  atos  violadores  do  princípio  da nha  do  seguro-saúde,  uma  outra  deci-
boa-fé,  do  dever;  por  exemplo,  do  dever são que me parece importante, a do Resp
de  cooperar,  de  bem  informar  as  pesso- n°  229078,  do  Ministro  Ruy  Rosado,  de
as  de  que  esse  plano  não  cobre  a  AIDS, 09.11.90,  que  expressamente  considera
ou,  como  no  caso  concreto,  os  vendedo- que  as  cláusulas  podem  ser  abusivas

Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 269


mesmo  que  autorizadas  por  agências, Por  fim,  gostaria  de  focalizar  as
hoje  em  dia,  ou  antigamente  por  outros cláusulas  econômicas  dos  contratos.
órgãos  do  governo.  Conhecemos  em  ma- Como  podemos  usar  o  princípio  da  boa-
téria  de  consórcio,  o  fato  das  cláusulas fé para esta que é uma obrigação princi-
serem  consideradas  abusivas  mesmo  se pal, isto é, prestar e pagar. Só que estas
previstas  em  portarias  ministeriais.  Na obrigações  principais  (não  aqueles  de-
referida  ementa,  ensina  o  ministro: veres  anexos  de  informação,  cooperação
“Seguro saúde. Exclusão da proteção. Falta e  cuidado,  que  são  deveres  de  conduta
de prévio exame. A empresa que explora pla- oriundos  diretamente  da  boa-fé)  na  fi-
no de seguro-saúde e recebe contribuições gura de Karl Larenz, são como um edifí-
de associado sem submetê-lo a exame, não cio, mas apenas o primeiro edifício. Todo
pode escusar-se ao pagamento da sua edifício  tem  uma  sombra,  na  figura  de
contraprestação, alegando omissão nas infor- Karl  Larenz,  isto  é,  a  obrigação  primeira
mações do segurado. O fato de ter sido apro- (Schuld)  tem  uma  sombra  (Haftung),
vada a cláusula abusiva pelo órgão estatal...” que é o respondere, a responsabilidade,
(no  caso  era  a  SUNAB  ainda), “...instituí- garantia,  a  obrigação  secundária.  O  que
do para fiscalizar a atividade da seguradora, ocorre  no  contrato,  é  que  geralmente  a
não impede a apreciação da sua invalidade”. cláusula  abusiva  não  ataca  a  primeira
Outro  detalhe  importante  nessa obrigação,  isto  é,  a  obrigação  de  prestar
fotografia  da  boa-fé  é  o  da  cadeia  de  for- (ou  raramente).  Ela  geralmente  ataca  a
necimento,  que  foi  mencionado  aqui  pelo “sombra”,  isto  é,  a  responsabilidade  ou
Prof. Arnoldo Wald, isto é, quando eu vou a  garantia  em  matéria  contratual.  En-
concretizar quais são as condutas de acor- tão, o indivíduo que tem a primeira obri-
do  com  a  boa-fé,  devo  concretizar  como gação e que não nega que tem a primei-
um  todo,  em  conjunto.  Porfessor  Wald ra  obrigação,  diminui  a  sombra,  restrin-
usou a figura de linguagem segundo a qual ge a sombra ou, por vezes, chega mesmo
os  contratos  são  como  gêmeos  siameses, a acabar com a sombra através de cláu-
mas a verdade é que as cadeias de produ- sulas  de  desoneração,  ou  de  cláusulas
ção  são  muitas  e  essa  complexidade  tem penais,  que  também  relacionam-se  com
que ser vista sob  os olhos da boa-fé. Um a  responsabilidade,  ao  preverem  perdas
bom  exemplo  é  de  seguro-saúde,  assim e  danos.  Estas  cláusulas  abusivas,  as
destaque-se  o  REsp.  n°  138059/MG,  de cláusulas  exonerativas  ou  limitativas,
2001, Ministro Ari Pargendler, sobre a so- que atingem a natureza do contrato, não
lidariedade.  “Civil. Responsabilidade civil. atacam  a  primeira  obrigação,  mas  elas
Prestação de serviços médicos. Quem se com- atacam  a  sombra.  Trouxe,  então,  alguns
promete a prestar assistência médica por meio exemplos  para  os  senhores:  EDREsp.
de profissionais que indica é responsável pe- 225136/AM,  de  2001,  Ministra  Fátima
los serviços que estes prestam. Recurso Es- Nancy  Andrighi  –  “(...)É indevida a reten-
pecial não conhecido”.  Esse  leading case ção de percentual das parcelas pagas, ain-
sobre  o  que  é  realmente  essa  fotografia da que a título de compensação pelas des-
de  acordo  com  a  boa-fé,  das  relações  en- pesas cartorárias e de publicidade, quando
tre  comerciantes,  vai  ser  cada  vez  mais há reconhecimento de inadimplemento da
importante  em  um  mundo  em  que  prati- incorporadora, para o qual não contribuiu o
camente  tudo  é  oriundo  de  franquias,  de consumidor”. E assim também vários outros
sistemas de distribuição. Então, esses sis- recursos especiais que, valorando, reduzem
temas, esses modos de relacionamento en- a cláusula penal, seja pelo Código Civil anti-
tre  comerciantes  e  entre  a  cadeia  de  co- go (hoje essa permissão existe também no
merciantes e dos consumidores devem ser Código Civil novo), seja pelo artigo 53 do
visualizados  de  acordo  com  a  boa-fé,  isto Código de Defesa do Consumidor.” Inte-
é,  uma  solidariedade  oriunda  dessa  vi- ressante  nesse  momento  é  a  existência
são,  dessa  interpretação  da  relação  in- do  inadimplemento  do  consumidor.  En-
terna  entre  eles. tão  vejam:  a  primeira  obrigação  do  for-

270 - Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil”


necedor  foi  cumprida,  houve  a  sombra, tuição do título, aquela permite a cobrança
isto  é,  a  responsabilidade,  e  o pelos próprios meios do credor nos valores
inadimplemento  do  consumidor  ou  do e no momento por ele escolhidos”.
outro.  Nós  temos  três  exemplos  impor- E  para  terminar,  eu  destaco  tam-
tantes  em  matéria  de  consumidor,  que bém  em  virtude  do  princípio  da  boa-fé,  a
eu  queria  mencionar  para  os  senhores, idéia  do  adimplemento  substancial,  isto
e  que  podem  ser  usados  no  que  nós  po- é,  quando  o  devedor  fez  vários  pagamen-
deríamos  chamar:  “as  futuras  cláusu- tos,  mas  ao  final,  ele  não  consegue  fazer
las  abusivas  entre  comerciantes”. o  último;  geralmente,  mesmo  nas  rela-
O  primeiro  exemplo  é  quanto  à ções  frente  a  fornecedores,  ele  acaba  per-
penhora,  às  garantias.  É  o  do  REsp.  nº dendo  esta  última  possibilidade  de  sanar,
209410  de  99,  relator  Ministro  Ruy  Ro- de suprir a sua mora. Mencionem-se duas
sado,  mas  também  seguido  no  REsp.  nº decisões:  uma  é  do  Ministro  Ruy  Rosado
235410/99,  do  Ministro  Sálvio  de e  outra  do  Ministro  Sálvio  de  Figueiredo.
Figueiredo.  Bem,  aqui,  se  impõe  um  de- São dois casos envolvendo seguro, em que
ver  de  boa-fé  quando  o  credor  utiliza  o a última prestação é que não foi paga. Pa-
seu  direito,  por  exemplo,  de  colocar  o rece-me  que  esse  é  um  exemplo  de  coo-
bem  em  penhora  para  leilão,  ou  hasta peração,  do  dever  de  cooperar  para  evitar
pública.  Enfim,  cada  um  tem  um  direi- que  o  outro  frustre  as  suas  expectativas,
to,  e  a  idéia  do  STJ  é  assegurar  que  o legítimas  no  caso  do  consumidor.
direito de ser informado e o dever de infor-
mar,  o  direito  de  ser  previamente  comuni- Conclusão
cado, a fim de que o credor  possa acompa- Concluindo,  qual  seria  a  diferença
nhar  a  venda  e  exercer  eventual  defesa entre  o  sistema  que  temos  hoje  e  o  que
dos  seus  interesses,  é  intrínseco  no  caso vamos  começar  a  receber?  Vamos  rece-
da  penhora.  Uma  interpretação,  uma  cria- ber  um  sistema  muito  mais  ético,  muito
ção  do  juiz.  O  devedor  é  inadimplente,  ele mais  social,  ou  pelo  menos  com  cláusu-
já não tem mais nada o que fazer, mas aí, las  gerais  claras,  com  princípios
mesmo  aí,  há  uma  pós-eficácia  do  direito belíssimos, como a função social do con-
de ser informado, da idéia da atuação leal, trato,  a  boa-fé.  A  diferença  realmente
no sentido de que ele tem que ser chama- está  na  possibilidade  do  desenvolvimen-
do,  e  ele  tem  de  poder  pelo  menos  dimi- to  do  Judiciário,  deste  sistema  genérico
nuir  as  suas  perdas. que  é  o  Código  Civil  de  2002.  Para  rela-
Um  caso  interessante,  também ções  entre  iguais,  entre  comerciantes  e
relatado  pelo  Ministro  Ruy  Rosado,  que entre  civis,  parece-me  um  sistema  mui-
me parece mais claro, é o REsp. 250523/ to  positivo,  uma  evolução,  ou  uma  revo-
00,  sobre  uma  nova  espécie  de  cláusu- lução,  como  mencionou  o  professor
la-mandato  ou  cláusula  de  autorização. Arnoldo  Wald.  Comparando  com  o
A  ementa  afirma:  “Conta-corrente. Apro- microssistema  do  Código  de  Defesa  do
priação do saldo pelo banco credor. Nume- Consumidor,  que  já  era  preparado  para
rário destinado ao pagamento de salários. uma  relação  entre  diferentes,  e  que  sem
Abuso de direito. Boa-fé. Age com abuso de dúvida  não  vai  ser  afetado  pelo  Código
direito e viola a boa-fé o banco que, invocan- Civil, mas com o qual dialogará pois esta
do cláusula contratual constante do contrato lhe  dá  base  fundamental,  essa  linha  de
de financiamento, cobra-se lançando mão do cláusulas  abusivas  do  Código  Civil  é  in-
numerário depositado pela correntista que é suficiente,  e  não  deve  ser  transportada
uma empresa, em conta destinada a paga- para  ser  aplicada  no  microssistema  do
mento dos salários de seus empregados, cujo Código  de  Defesa  do  Consumidor.
numerário teria sido obtido junto ao BNDES. O que pode haver (o que acho que
A cláusula que permite esse procedimento é seria  salutar),  é  que  essas  conquistas,
mais abusiva do que a cláusula-mandato, exemplificadas na jurisprudência que eu
pois enquanto esta autoriza apenas a consti- trouxe  aqui,  a  maioria  delas  utilizando

Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 271


o Código de Defesa do Consumidor, pos- mento,  um  parâmetro  de  oxigenação  do
sam  sim,  ser  transportadas  para  escla- ordenamento  jurídico  como  um  todo,  e
recer  toda  a  potencialidade  do  princípio lembrava  esses  princípios  que  estão
da  boa-fé,  mesmo  nas  relações  entre insertos  no  Código  de  Defesa  do  Consu-
iguais.  Os  alemães,  agora  em  2000  e midor,  de  justiça  contratual,  de  equiva-
2001,  introduziram  no  Código  Civil  de lência  das  prestações,  de  boa-fé  como
1896  a  figura  do  consumidor,  parágrafo medida  de  valoração  de  conduta,  isto  é,
13.  Imaginam  possível  um  direito  civil como  medida  de  decisão.  Em  diversos
geral  e  social,  em  que  uma  das  partes trabalhos  que  o  Professor  Thomas
envolvidas  é  o  consumidor.  Na  presença Wilhemson já fez publicar na Revista de
de  um  consumidor  haverão  normas  ain- Direito do Consumidor  que,  antes  de
da  mais  protetivas,  mas  esta  proteção tudo  é  referência  necessária  na  maté-
do  consumidor  está  integrada  no  Código ria,  ele  faz  uma  distinção  entre  a  teoria
Civil,  nessa  idéia  nova  de  um  direito  ci- clássica  dos  contratos  prevista  nas  le-
vil  constitucional.  A  opção  brasileira  foi gislações  civis  de  maneira  ordinária  e
diferente:  temos  um  Código  de  Defesa aquilo  que  ele  vislumbrava  como  o  novo
do  Consumidor  e  um  novo  Código  Civil. fenômeno  da  contratação.  Ele  diz  que
Eu espero que se possa colaborar com a pelo  sistema  tradicional,  a  legislação  faz
experiência do Código de Defesa do Con- uma  abordagem  estática  do  contrato.  E
sumidor  para  interpretar  essas  normas a  nova  sistemática  adotada  pelo  Código
do Código Civil Brasileiro, e que não seja do  Consumidor  procede  a  uma  aborda-
o  contrário,  isto  é,  que  não  se  usem  as gem  dinâmica,  que  já  está  reconhecida
normas  do  Código  Civil  Brasileiro  para no  novo  Código  Civil.  Diz  também  que  a
diminuir  a  proteção  dos  consumidores, teoria  tradicional  procede  a  uma  abor-
assegurada no Código de Defesa do Con- dagem  atomística,  uma  abordagem  vol-
sumidor  e  na  Constituição  Brasileira. tada  para  o  indivíduo,  ao  passo  que  se
deve,  hoje,  conferir  uma  interpretação,
DEBATES uma  abordagem  voltada  para  o  interes-
se público, para o interesse social e, por-
Dr. Werson Rêgo tanto,  mais  abrangente.
Professora  Cláudia  Lima  Marques, Ele  também  vislumbrava  no  con-
a sua palestra foi por demais abrangente; trato  esse  instrumento  de  antagonis-
veio  da  doutrina  à  prática,  e  desaguou mo  para  a  relação  tradicional,  ao  passo
na  questão  jurisprudencial,  e  a  cada que,  modernamente  se  vê  o  contrato
pergunta que eu pretendia formular, logo como  instrumento  de  cooperação,  para
em  seguida  vinha  a  resposta.  Nós que  se  alcance  o  resultado  útil,  ou  a
estamos  numa  Escola  de  Magistratura, sua  função  social.  Pois  bem,  lembrava
uma  Escola  de  Magistrados,  e  é  impor- também  Robespierre,  que  diz  que  não
tante  termos  a  visão  de  uma se  faz  uma  revolução  sem  uma  revolu-
doutrinadora do seu peso, que tanto con- ção,  e  o  Código  de  Defesa  do  Consumi-
tribui  para  as  relações  de  consumo,  que dor  opera  esta  revolução,  muito  embo-
fez  um  estudo  bastante  detalhado  da ra  ela  não  se  tenha  feito  sentir  na  prá-
evolução jurisprudencial nos últimos dez tica  por  uma  certa  resistência  inicial
anos,  até  para  a  4ª  edição  do  seu  livro dos  aplicadores  do  direito,  que,  com  o
específico  sobre  essa  questão  dos  con- passar  dos  anos,  veio  a  ser  vencida.
tratos,  e  me  vem  então  a  seguinte  for- Diante  desta  premissa,  desta  pon-
mulação:  Durante  a  sua  exposição  foi deração  introdutória,  à  luz  do  artigo  29
colocada  uma  questão  que  talvez  não do Código de Defesa do Consumidor, que
tenha passado tão atentamente pela pla- seria  uma  norma  de  extensão  da
téia, que foi a revolução do sistema jurí- abrangência  inicial,  da  incidência  inici-
dico  brasileiro,  com  a  entrada  em  vigor al  do  Código,  eu  gostaria  de  ponderar:
do  CDC,  isto  é,  o  CDC  como  um  instru- como  ficam  os  avanços  que  foram  obti-

272 - Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil”


dos  a  partir  da  aplicação  dos  princípios al’ de uma instituição. Mas a instituição
informadores da teoria dos contratos com é  considerada  tão  importante,  que  a  li-
o  Código  de  Defesa  do  Consumidor,  di- berdade,  aqui  no  caso,  de  contratar,  só
ante  de  alguns  retrocessos  que  foram poderá  ser  exercida  com  base  na  função
reconhecidos  pela  nova  legislação  civil? social  do  contrato,  como  afirma  o  artigo
Se  são  normas  de  ordem  pública,  à  luz 421.  Realmente,  a  época  era
do  artigo  425  do  Código  Civil,  estaria  o intervencionista.  O  Código  de  Defesa  do
Estado,  autorizado  a  intervir  numa  re- Consumidor  já  é  de  outra  época,  ele  é
lação  privada,  para  assegurar  e  resga- dos  anos  80;  foi  aprovado  nos  noventa,
tar  o  equilíbrio  eventualmente  rompido? mas suas teorias  vêem dos anos 80, em
E  como  deve,  no  seu  entendimento,  se que se imaginava um Estado Social, isto
posicionar  a  Magistratura  de  uma  ma- é,  intervencionista,  mas  ao  mesmo  tem-
neira  geral  em  relação  à  aplicação  des- po  flexível  e  plural.  Por  isso,  considero
ses  princípios  do  Código  de  Defesa  do que  o  Código  de  Defesa  do  Consumidor
Consumidor,  à  luz  desse  novo regula  as  duas  crises  na  sociedade:  a
paradigma,  estabelecido  pelo  novo  Códi- crise  da  massificação,  que  é  essa  do
go  Civil,  que  nos  traz  os  princípios  da Código  de  Defesa  do  Consumidor  e  do
eticidade,  da  socialidade  e  mais  impor- Código Civil de 2002, mas também regu-
tante  do  que  esses  dois,  o  da la  a  outra  crise,  que  é  a  da  des-
operabilidade,  um  caráter  pragmático  e materialização,  a  crise  da  pós-
útil  à  nova  legislação  civil? modernidade.  Nós  hoje  já  não  mais  ‘de-
sejamos’  apenas  bens  móveis  materiais
Dra. Cláudia Lima Marques (automóveis,  geladeiras,  televisões  etc.);
Primeiro,  quero  destacar  a  idéia nem  imóveis  (como  na  Idade  Média),  na
de  que  o  Código  de  Defesa  do  Consumi- pós-modernidade,  o  que  nós  queremos
dor  foi  muito  importante  no  sistema  ju- são  os  serviços  e,  data maxima venia,
rídico  brasileiro,  uma  revolução,  menci- eu ainda considero que o Código Civil de
onada pelo Dr. Rêgo. Realmente foi uma 2002  não  está  plenamente  preparado
revolução,  uma  socialização,  enfim,  um para  esta  realidade.  A  sorte  é  que  a
momento  novo  da  teoria  contratual,  que maioria dos serviços é regulada pelo Có-
hoje  é  consolidado,  de  certa  maneira, digo  de  Defesa  do  Consumidor,  mas  vai
por  esse  Código  Civil  de  2002.  Este,  na ficar  bastante  complicado  atualizar  esse
verdade, vem dos estudos em 69, 73, 75, Código  para  o  mundo  que  está  advindo,
portanto  numa  época  muito  mais no  qual  o  que  realmente  importa  é  a  in-
intervencionista  do  Estado  nas  relações formação,  educação,  segurança,  saúde,
entre pessoas. Eu, particularmente, acho seguros,  crédito,  financiamento,  tudo  o
que  se  esse  Código  tivesse  sido  redigido que  é  tratado  no  Código  Civil  com  uma
nos  últimos  cinco  anos,  ele  não  seria  o visão  ainda  moderna.
que é hoje, porque o espírito atual é um O  Código  de  Defesa  do  Consumi-
espírito  muito  mais  liberal  do  que  o  que dor em 90 preparou o Brasil, o mercado,
está no Código. Basta ler com olhos ‘ou- para a virada do século XXI, já o Código
tros’  o  artigo  421,  que  afirma  o  seguin- Civil  (seguindo  analogicamente  Pontes
te:  “A  liberdade  será  exercida  em  razão de  Miranda,  que  afirmou  que  o  Código
da  função  social  do  contrato.”.  Liberda- Civil  de  1916  ‘fechou’  o  século  XIX,  sem
de  é  poder,  poder  é  direito.    Então,  o abrir  o  século  XX),  teria  ‘fechado’  o  sé-
direito  do  indivíduo  será  exercido  em culo  XX,  e  que  o  Código  de  defesa  do
razão da função do contrato! O professor consumidor, sim, de certa maneira, ape-
Antônio  Junqueira  de  Azevedo    critica sar  de  seu  limitado  campo  de  aplicação,
esta  norma,  pois  considera  sua  premis- teria aberto o século XXI. Dai minha pri-
sa  exagerada,  uma  vez  que  a  liberdade, meira  resposta:  particularmente,  acre-
esta  sim,  é  o  poder,  é  direito,  e  não  po- dito  que,  pela  grande  contribuição  que
deria  estar  baseada  numa  ‘função  soci- traz em relação ao de 1916, o Código Ci-

Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 273


vil  de  2002  será  bem  aplicado  nas  rela- semos,  mesmo  assim,  teríamos  -  no  sis-
ções  intercomerciantes  e  relações  civis, tema do CC/2002 - de procurar a vanta-
poucas  existentes,  como  a  de  condomí- gem  excessiva,  provar  o  enriquecimento
nio  e  o  transporte.  Na  parte  dos  contra- dessas  empresas  por  terem  feito  esse
tos  de  transporte,    o  Código  Civil  afirma leasing  em  dólar,  o  que  também  seria
querer  se  aplicar  antes  mesmo  dos  tra- uma  prova  difícil.  Entre  comerciantes,
tados  internacionais  e  das  leis  especi- parece-me  que  a  possibilidade  de  revi-
ais  (Art.  732).  Normalmente,  o  CC/2002 são é menor, como no Código Civil novo,
‘quer’  se  aplicar  depois  das  leis  especi- onde  a  possibilidade  maior  é  de  resci-
ais,  sob  reserva  as  leis  especiais  (a  não são dos contratos; já o Código de Defesa
ser  aquelas    mencionadas  pelo  colega do  Consumidor  assegura  tanto  a  possi-
Rêgo),  que  foram  incorporadas  ao  Códi- bilidade  de  modificação,  ou  de  rescisão,
go  Civil,  e  estão  revogadas.  Então,  não se  for  de  interesse  do  consumidor.  Ge-
existe  revogação  tácita  no  Código  Civil ralmente  o  que  deseja  o  consumidor  é  a
Novo, só revogação expressa; isso é uma modificação  para  reequilíbrio  do  contra-
modificação  legislativa,  ele  revoga  ex- to  e  sua  manutenção.
pressamente só o Código Civil de 1916 e Então,  respondendo  à  última  per-
uma parte do Código Comercial, e as leis gunta,  parece-me  que  hoje  temos  de  ver
que  ele  incorpora,  e  preserva  segundo  o o artigo 29 do Código de Defesa do Con-
artigo 2.043, que foi mencionado, as nor- sumidor  com  olhos  de  2002;  nesse  sen-
mas  de  natureza  processual,  administra- tido,  eu  trago  aqui  uma  citação  sobre  a
tiva,  ou  penal  das  leis  especiais  incorpo- necessidade  de  visualização  nova.  Afir-
radas. Ora, se o Código de Defesa do Con- ma  a  Desembargadora  Elaine  Harzheim
sumidor  não  foi  incorporado,  não  tem Macedo,  do  Tribunal  de  Justiça  do  Rio
nenhuma  menção  de  revogação  expres- Grande do Sul,  em um voto em 1999: “A
sa,  então  ele  continua  em  vigor.  Porém, relação  jurídica  consortil  reclama  abor-
em  matéria  de  transporte,  o  artigo  espe- dagem  sob  a  égide  das  regras  de  consu-
cífico do contrato de transporte (art. 732) mo,  em  face  da  nova  realidade,  denomi-
prevê aplicação do CC/2002 na frente das nada  de  pós-moderna,  reflexiva  da
leis  especiais,  o  que  quebra  um  pouco  o globalização  e  acúmulo  de  riquezas  e
sistema  normalmente  de  aplicação  sub- bens intangíveis...”. “... conquanto reser-
sidiária  do  CC/2002. vadas  ao  princípio  da  boa-fé  objetiva  as
Acredito  e  espero  que  o  Código funções  de    modificação,  adaptação  à
Civil  de  2002  possa  dar  respostas  eqüi- prestação  contratual  e  mesmo  à  resolu-
tativas  às  relações  interempresariais.  O ção do contrato...”, e conclui , “... se con-
exemplo  dado  pelo  professor  Arnoldo tinuarmos a olhar o novo...” -  ou seja, o
Wald  serve  para  contrapor-se  ao  Direito Código de Defesa do Consumidor, na épo-
do Consumidor: o artigo 6º do CDC - que- ca - “...com os olhos do velho, seja do Có-
bra  da  base  do  contrato  -  não  exige digo  Civil  Brasileiro,  vamos  passar  a  ser
imprevisão,  não  exige  vantagem  exces- merecedores  da  crítica  que  Pontes  de
siva,  exige  apenas  onerosidade  excessi- Miranda já fazia: ‘O Brasil se especializou
va  para  a  parte  vulnerável,  ou  consumi- em  fazer  reformas  que  nada  mudam’.”
dor. Já o artigo correspondente no Códi- Gostaria  de  terminar  assim  a  pa-
go Civil, Art. 478 exige imprevisão, exige lestra,  isto  é,  considero  que  o  artigo  29
vantagem  da  outra  parte.  No  caso  do deve  ser  interpretado,  hoje,  com  outros
leasing  em  dólar,  não  me  parece  que  as olhos,  e  olhos  finalistas,  olhos  de  prote-
empresas  tiveram  vantagem  excessiva, ção  dos  vulneráveis,  especialmente  das
os  fornecedores  queriam  era  transferir pessoas  físicas.  Nas  relações
um  risco  profissional  seu  (a  variação  do interempresariais,  em  que  o  Código  de
dólar)  para  os  consumidores.  Mas,  se  ti- Defesa  do  Consumidor  foi  de  aplicação
véssemos  que  procurar  a  imprevisão, muito  importante  nos  últimos  dez  ou
seria  bastante  difícil,  e  se  a  comprovás- doze  anos,  ele  é  hoje  menos  importan-

274 - Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil”


te:  aos  comerciantes,    o  Código  Comer- cante, sobretudo, ao princípio da boa-fé, e
cial,  agora,  aos  comerciantes,  o  Código de  cláusulas  abusivas,  mas  não  há  dúvi-
Civil! O CC/2002 traz o princípio da boa- da  alguma  de  que,  de  um  modo  geral,  as
fé,  da  lesão  enorme,  da  onerosidade  ex- diretrizes  caminham  no  mesmo  sentido:
cessiva,  mas  com  aquela  luz  tênue, vinculação  da  proposta,  preservação  da
que    tentei  mostrar  para  os  senhores, validade  do  contrato  sempre  que  puder,
reservando  esse  “holofote”,  que  é  o  Có- pelo  juiz,  a  própria  expectativa  da  boa-fé
digo  de  Defesa  do  Consumidor,  essa  luz e, sobretudo, o sistema de cláusulas aber-
fortíssima,  para  as  relações  efetivamen- tas. V. Exa. admitiria que o Código de De-
te  desequilibradas.  Se  um  dos  comerci- fesa do Consumidor teria sido apenas uma
antes  conseguir  provar  concretamente fluorescência  antecipada  de  toda  uma
que  ele  está  exposto  a  uma  prática  co- estrutura  jurídica  que  agora  emerge,  vale
mercial  abusiva,  portanto,  que  ele  é  ou dizer,  ele  é  a  ponta  do  iceberg  de  uma
foi  vulnerável,  como  os  exemplos  o  STJ estrutura que agora emerge com o Código
demonstram  (agricultores,  cooperativas, Civil  e  que  não  estaria  absorvendo,  mas
clubes  sem  fins  lucrativos),  então,  apli- se  adaptaria  a  essas  novas  diretrizes,  o
ca-se  o  artigo  29  do  CDC.  Não  deve  ha- que  facilitaria,  e  muito,  a  aplicação  pelos
ver  generalização,  porque  hoje  ele  não  é juízes  do  direito  vigente?
mais  necessário.  Preserva-se,  assim,  o
microssistema  do  Código  de  Defesa  do Dra. Cláudia Lima Marques
Consumidor.  Essa,  particularmente,  é  a Parece-me  que  a  figura  de  lingua-
minha  idéia,    a  idéia  de  que  o  Código gem utilizada é muito boa, isto é,  o Códi-
Civil  de  2002  vai  permitir  uma go  de  Defesa  do  Consumidor  foi  a  ponta
reinterpretação  do  campo  de  aplicação do  iceberg.  Eu  tenderia  a  discordar,  no
do  Código  de  Defesa  do  Consumidor,  e sentido  de  que  -  infelizmente  -  o  iceberg
não  das  normas  do  Código  de  Defesa  do do Código de Defesa do Consumidor não é
Consumidor,  essas  sim,  mantêm-se o  mesmo  do  Código  de  2002.  Apesar  da
iguais,  absolutas  e  imperativas  nas  re- mesma  linha  ideológica,  parece-me  que  a
lações de consumo stricto sensu, mas o idéia  básica  do  Código  Civil  é  a  idéia  da
campo  de  aplicação  do  CDC  tende igualdade.  Em  pouquíssimos  momentos,
a   d i minuir,  porque  as  relações ele  preocupa-se  com  a  proteção  do  mais
interempresariais  terão  respostas,  acho, fraco,  e  eu  tentei  dar  esse  exemplo  atra-
justas,  eqüitativas  e  éticas,  no  próprio vés do Código Civil Alemão, que é até mais
Código Civil de 2002. antigo  do  que  o  nosso  -  é  de  1896  -  em
que  foram  sendo  feitas  modificações  pon-
Des. Luiz Roldão de F. Gomes tuais,  até  essa  modificação  revolucioná-
 Os juízes, a partir do dia 11 de ja- ria  de  introduzir  a  figura  do  consumidor
neiro de 2003, terão diante de si o Códi- dentro  do  Código  Civil,  o  que  para  nós  já
go  Civil  e  o  Código  de  Defesa  do  Consu- não  é  mais  possível,  porque,  por  ordem
midor. Quase todos os contratos que hoje constitucional,  deveríamos  elaborar  um
recebem  a  incidência  do  Código  de  De- Código,  logo,  um  todo  construído  e  visan-
fesa  do  Consumidor,  em  vários  aspectos do somente a proteção dos consumidores.
(oferta  ao  público,  proposta,  vinculação, O  resultado  concreto  é  que  houve
resolução  por  onerosidade  excessiva)  es- uma  espécie  de  divórcio  entre  a  prote-
tão,  praticamente  todos,  no  Código  Ci- ção do mais fraco e a proteção dos iguais.
vil.  Evidentemente,  haverá  um  proble- Apesar  das  belíssimas  palavras  do  Pro-
ma  de  eventual  superposição, fessor  Miguel  Reale,  em  Direito  de  Fa-
duplicidade  de  regimes  jurídicos. mília  realmente  poder  haver  a  proteção
Então  eu  faria  a  V.  Exa.  a  seguinte das  crianças,  se  compararmos  o  Estatu-
indagação:  É  certo  que  o  âmbito  de  inci- to da Criança e do Adolescente - que, só
dência do Código Civil é maior do que o do pela  idéia  de  estatuto,  é  uma  lista  de
Código  de  Defesa  do  Consumidor,  no  to- direitos  focados  na  criança  -  constata-

Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 275


remos  que  o  Direito  de  Família  do  novo se  a  relação  é  entre  consumidores  e  co-
Código  não  está  focado  na  criança,  não merciantes,  e  uma  outra  lista  de  cláu-
está focado no mais fraco, mas sim numa sulas abusivas, se a relação é entre dois
certa  institucionalização  das  entidades. comerciantes.  Aqui  é  uma  visão  ainda
Infelizmente,  a  parte  de  Direito  de  Fa- muito  forte  do  direito  comercial,  atra-
mília  do  novo  Código  também  não  está vés do qual ocorre a proteção dos consu-
muito  unitária,  em  virtude  das  várias midores.  Mas,  infelizmente,  apesar  da
modificações.  E,  na  parte  de  contratos, atualização  dos  eminentes  professores
o  iceberg  que  sustentou  o  Código  Civil (muitos  deles  germanistas,  como  o  Mi-
são  teorias  dos  anos  70  onde,  de  certa nistro  Moreira  Alves,  o  próprio  Professor
forma,  se  imaginava  que  a  intervenção Reale), autores do novo Código Civil, eles
se  daria  de  forma  igual,  no  direito  civil não incorporaram as teorias dos anos 80
e  no  direito  comercial. e  só  o  Código  de  Defesa  do  Consumidor
O  Código  de  Defesa  do  Consumi- as  incorporou.  Sendo  assim,  realmente
dor já traz um outro pensamento, que já são  dois  sistemas  estanques,  cujo  diá-
não  mais  depende  do  Direito  Comercial. logo  das  fontes,  como  diz  o  meu  mestre,
O  iceberg  do  Código  de  Defesa  do  Con- Erik  Jayme,  terá  de  ser  construído  pela
sumidor  é  a  idéia  da  resposta  à  chama- jurisprudência,  pois  o  legislador  não  o
da  Teoria  dos  Atos  Mistos:  se  temos  um fez.
comerciante  e  um  civil,  a  relação  do A pergunta foi no sentido de o Có-
meio não é comercial; a relação tem que digo  do  Consumidor  ter  ou  não  usado  a
ser  sui generis,  é  direito  do  consumi- teoria  do  Código  Civil  de  2002.  Infeliz-
dor.  Se  temos  um  comerciante  e  outro mente não foi verdade, e posso dizer isso
comerciante,  a  relação  é  comercial.  Se de  certa  forma  por  interpretação  autên-
temos um civil e outro civil, a relação do tica, porque discuti este tema com o sau-
meio  é  civil.  Mas  se  nós  temos  um  co- doso mestre da UFRGS, o Professor Cló-
merciante  e  um  civil,  a  relação  do  meio vis  do  Couto  Silva,  que  inclusive  critica-
é  de  consumo,  de  proteção  do  mais  fra- va  o  Código  de  Defesa  do  Consumidor,
co.  Por  isso  que  essa  linha  de  proteção afirmando  que  essas  teorias  da  década
dos  mais  fracos  que  realmente  foi  de- de 80 não estavam suficientemente  pro-
senvolvida,  pelos  menos  na  Alemanha, vadas  como  boas,  e  que  o  importante
na  década  de  80,  data maxima venia, eram as teorias da década de 70 e o prin-
não foi mais incorporada ao Código Civil cípio da boa-fé. Ele considerava que todo
de  2002.  O  que  nele  foi  incorporado  -  e o  Código  de  Defesa  do  Consumidor  não
que  vai  trazer  uma  contribuição  enorme era necessário, se fosse aprovado o prin-
para  a  eticidade  das  relações  -  foram  as cípio da boa-fé. Parece-me que, realmen-
teorias da boa-fé da década de 70, teori- te,  houve  no  que  se  refere  aos  autores
as  essas  que  imaginavam  uma  interven- do Código Civil de 2002, uma certa aver-
ção  no  Direito  Civil  e  Comercial. são  ao  Código  de  Defesa  do  Consumi-
O  exemplo  maior  dessa  década  é dor,  às  teorias  que  ele  representa,  que
a  lei  alemã  de  1976  sobre  cláusulas são teorias de uma outra década. O con-
abusivas, que prevê o princípio da boa-fé trário  também  é  verdadeiro,  isto  é,  o
sendo  aplicado  nas  relações  frente  a Código  de  Defesa  do  Consumidor  não
consumidores  e  nas  relações  interco- bebeu das boas fontes do Código Civil. E
merciantes;  o  mesmo  princípio  aplicado esse  diálogo,  isto  é,  esta  construção,  o
aí  com  duas  ênfases:  uma  ênfase  mai- Código novo como base do Código de De-
or,  se  trata-se  de  consumidor,  e  uma fesa do Consumidor, como conceitos fun-
menor,  se  trata-se  de  relações  entre  co- damentais,  terá  de  ser  construído  pela
merciantes.  Ou,  por  exemplo,  a  lei  por- jurisprudência pois, infelizmente, não foi
tuguesa, também da década de 70, sobre realizada  pelo  legislador.  Na  minha  opi-
condições  gerais  contratuais,  que  apre- nião  são  dois  icebergs  flutuando  lado  a
senta  uma  lista  de  cláusulas  abusivas, lado,  infelizmente. .
276 - Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil”

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