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COMPREENDER

POR MEIO DA
FOTOGRAFIA
Há dois séculos, as práticas fotográficas transformam as ciências
humanas e sociais. Essa porosidade fecunda e a capacidade
de subversão constituem a força de um meio em permanente
mutação tecnológica. A história da arte moderna também não
escapa a esse fenómeno: nossa compreensão da arte tem estreita
ligação com a fotografia. Na entrevista a seguir, o filósofo e
historiador da arte GEORGESDIDI-HUBERMAN conversa com o
artista ARNOGISINGERsobre as contribuições teóricas, práticas
e metodológicas que a fotografia tem produzido em sua obra.
Exposição Atlas: como carregar o mundo nas costas?, organizada por
Georges Didi-Huberman em Hamburgo. Foto de Arno Gisinger, 2011.

teu
últimos cem anos,
A história da arte nos
desde que elajá pertence aos especialzstas.
o história do que éfotografado.
ANDRÉMALRAUX, O museu imagmário, 194'

ARNOGISINGER:A partir do fim do século 19, os gran-


O Atlas Mnemosyne, des historiadores da arte, como Heinrich Wólfflin,
de Aby Warburg, incluem com naturalidade a fotografia em suas pes-
era, ao mesmo tempo, quisas e práticas pedagógicas. Mas é sobretudoo
a invenção de uma forma famoso Atlas Mnemosyne, de Aby Warburg, que posi-
e a invenção de um ciona a fotografia no centro de um novo pensamento,
saber antropológico e de uma nova metodologia da história da arte. Quando
histórico não usual. começou a trabalhar com WarburX?
GEORGESDIDI-HUBERMAN:Comecei a trabalhar
com Warburg em 1984, quando morei na Itália:
era uma ferramenta inesperada para explorar
questões que me pareciam ignoradas pela tradição
iconográfica anglo-saxónica e por sua retomada
estruturalista na França. Inicialmente, li Warburg
quando pesquisava sobre o Renascimento italiano;
aliás, foi na tradução italiana que o descobri.Tam-
bém em 1984foi publicado um artigo importante
de Giorgio Agamben, em Roma, onde eu vivia, cha-
mado "Warburg e a ciência sem nome". Tive a feliz
oportunidade de discuti-lo com Agamben,assim
como seu livro warburgiano intitulado Estâncias.
poeta romano Ovídio (43 a.C.•18 d.C.), organizados pelo historiador da arte Aby Warburg (1866<929).
painéis dedicados ao
peia elaboração do Atlas Mnemosyne. conjunto de 63 painéis com cerca de mil imagens relacionadas
Warburg notabilizou-se
iconográfica independente da expressão verbal. Instituto Warburg, Londres, 1927.
por uma lógica

foco das
Na época, o Atlas Mnemosyne não era o No livro Invenção da histeria, vocé desconstruiu as
Warburg me apro- utilizaçóes (erróneas) da fotografia, a exemplo da
minhas preocupações. A obra de
histórica das imagens iconografia médica do hospital da Salpétriére, em
ximava de uma antropologia
ocidentais, em que o inconsciente —ou seja, o sinto- Paris. O que significava introduzir uma questão
desempenhava um papel fun- como essa na história da arte e da fotografia no iní-
ma e a sobrevivência -
que voltei à França, cio dos anos 1980?
damental. Na verdade, só depois
de pesquisa Na ocasião, não me preocupei em determinar a
e também por ocasião de temporadas
no Instituto Warburg, em Londres, compreendi o questão do campo disciplinar, como, aliás, nunca
papel decisivo de Mnemosyne,que ainda não tinha me preocupo no início, porque o objeto da pesqui-
sido publicado oficialmente. sa me obriga a um ir e vir incessante entre disci-
Uminteresse nada surpreendente: como você plinas diferentes. "Disciplina": que bela palavra se
sabe, eu partira de uma reflexão sobre o uso da foto- nela ouvimos o latim discere, que significa "receber
grafia na clínica da histeria no século 19, ou seja, um ensinamento", por oposição a docere, que sig-
de uma reflexãosituada no ponto de encontro de nifica "dispensar um ensinamento"! E que palavra
uma estética e de uma epistemologia. Mnemosyne feia se nela ouvimos a obediência a normas de pen-
era, ao mesmo tempo, a invenção de uma forma e a samento! Estudei as fotografias da Salpétriére por
invenção de um saber antropológico e histórico não uma razão muito simples: elas me fascinaram. Ou
usual. Daí resultou essa reflexão sobre o atlas de melhor, não foi por uma razão simples... porque
imagens e, mais tarde, a exposição Atlas, no museu meu fascínio por aquelas imagens vinha acompa-
Reina Sofía, de Madri, em 2010, que seguiu para nhado da percepção de que havia alguma coisa fora
Karlsruhee Hamburgo, onde você a fotografou. do lugar, algo que transparecia sem se manifestar
Uma imagem fotográfica nunca é isto ou aquilo: ela é
apenas o que se quer fazer dela, seja do ponto de vista
do produtor, seja do ponto de vista do espectador.

de todo. O que eu percebia naquelas imagens era o corpo histérico numa história da arte
antiga(via
rastro de uma dor fundamental. iconografia religiosa) e sua alienação
numa práti-
Portanto, foi bem antes de aprofundar a noção ca institucional no mínimo machista e
cruel.Por
warburgiana das "fórmulas de pathos" que me isso, acredito, meu livro foi tão utilizado
pela críti-
dediquei à questào do vínculo entre imagem e dor. ca feminista. Mas a fotografia não era
apenas um
Aliás, seria mais correto empregar o plural nos dois instrumento do poder:também apareciacomo
casos, "imagens" e "dores", tal como no belo nome meio de um questionamento generalizado
poderes, dos saberes dos
Dolores: imagens das dores, dores de imagens. e dos corpos.
A iconografia fotográficada histeria abria um
campo de pesquisa original, virgem, por assim Sua contribuição para a exposiçàoMemória
dos
dizer. Em pouquíssimo tempo, a questão se con- campos, no início dos anos 2000, desencadeou
- ou
centrou - graças, sobretudo, aos trabalhos de melhor dizendo, reavivou - a questão espinhosa
da
Michel Foucault sobre a história da clínica —no fotografia como prova no contexto da representa-
encavalamento dos protocolos médicos e dos pro- çào da Shoah. Vocêrespondeu a essa polémica
com
tocolos fotográficos. Foucault se debruçava sobre o livro Imagens apesar de tudo, publicado em
2003.
a relação, sempre problemática, entre os discursos Como vê esse debate hoje, passados 15anos?
e as práticas. Não fiz mais que adicionar a ima- A questão da prova —que "adere à pele" da fotogra-
gem, que se encontra numa posição intermediária, fia desde que ela existe - havia colocado o
debate
muito eficaz para esse fim, entre os discursos e as sobre bases falsas desde o início. De um lado,o
práticas. A situação fotográfica, da qual eu tentava, documentarista francês Claude Lanzmann dizia: se
diante de cada imagem, reconstituir algo seme- você sente necessidade de uma prova, por exemplo,
lhante a uma fenomenologia, tornava-se não ape- fotográfica, da destruição dos judeus na Europa,é
nas criadora de imagens,mas também de saberes, porque já está na vertente negacionista. De outro,
de um lado, e de sintomas, de outro. é evidente que os membros do Sonderkommando
A dor dos corpos reaparecia como um fantasma [grupo de prisioneiros judeus forçado a trabalhar
em sua representação fotográfica. O que era pertur- com os oficiais alemães nos campos de extermínio)
bador, então, bem mais que uma "história da foto- de Auschwitz-Birkenau haviam assumido o risco -
grafia" como meio específico, era observar como enorme —de tirar fotografias para apresentar algo
o meio visual funcionava como meio epistémico— que correspondesse à "prova visual" de uma açào
fato que parece evidente, mas que, bem examinado, criminosa de massa, cujo alcance o mundo inteiro
revela-se um bocado complexo —e, também, como ignorava na época, ou queria ignorar. Mas uma ima-
meio crítico. De um lado, a fotografia participava de gem fotográfica nunca é isto ou aquilo: ela é apenas
certa política, ou policiamento dos corpos no sécu- o que se quer fazer dela, seja do ponto de vista do
Io 19,situado em algum ponto entre a inclusão do produtor, seja do ponto de vista do espectador.
IMOInvenao da
Georges •Huborman
estudoua relacio entre
psiqu•atna e a fotovana no
sécu'o '9a parti' 00 matcr;aJ
voduUdo Delo
hosp.talda Sapot'&e. em
Paris. abnoavz mulheres
consideradasJoucas ou
incur&vets Sob a direç50 00
méd•coJean •Ma't'n Charcot.
a foto'rafia era usada como
p•ovacontroversa da
hastena'em.n.na Fotografia
óc Ivo Iconovaph'Que
de
('876.'877),
de
e Réonar$
a imagem fotográfica
Para os membrosdo Sonderkommando, a
funcionava como uma decisão de resistência, e isso transformava em
uma provação, não apenas uma prova.
um ato, e não um mero registro,

exemplo extremo, no, e não apenas como representação. Vejam


O que me perturbou, nesse a
o que a
imagem faz, e não apenas o que ela representa"
Sonderkommando,
foi que, para os membros do
imagemfotográficafuncionavacomouma decisà0
mais A máquina fotográfica é parte de suas ferramentas
de resistência—embutida num movimento trabalho como historiador da arte. Quando e
de
e de tentativas de
amplo, de coleta de testemunhos como
que não começou a capturar as obras fotograficamente?
levante e isso a transformava em algo Você
seguia o "modelo" de outros historiadores da arte?
tinha nada a vercom informaçãoou representação:
Daniel Arasse, talvez?
ela era um ato, e nà0 um mero registro,significava
correrum risco e era uma provação, não apenas Preciso evocar vários momentos. Primeiro: na épo-
ca de minhas pesquisas sobre a histeria, entre 1979
uma prova. Quinze anos mais tarde, tudo está ao
e 1981,eu utilizava a fotografia para solucionar a
mesmo tempo diferente e idêntico: diferente, por-
que minha análise fenomenológica da tomada da dificuldade de acesso aos documentos. Para resumir,
fotografia já não é, que eu saiba, contestada; idén- direi que quando escurecia, depois de um dia inteiro
tico, porque é muito dificil, diante de uma imagem, pesquisando na Biblioteca Charcot, eu saía levando
não querer deduzir dela um estatuto geral, uma um volume da Iconografiafotográfica da Salpétriêre—
"ontologia". A imagem é uma questão tão crucial sem autorização, evidentemente —que à noite, em
que todo mundo quer saber o que é, quando a ques- minha casa, fotografava (comprara uma mesa de
tao seria antes saber o quefaz esta imagem específi- reprodução tcheca, ou seja, robusta e barata),e que
ca, o que ela faz que outra imagem não faz. na manhã seguinte devolvia.Todas as imagensdo
meu livro Invençãoda histeria foram obtidas assim;
Na exposiçào Levantes, você apresenta as ima- também aconteceu de pedir ajuda a um fotógra-
gens do Sonderkommando. Que significado têm fo profissional para reproduzir imagens mais difi-
nesse contexto? ceis. Eu utilizava filmes IYi-Xde 400 ASA,em preto
Já aconteceu de espectadores me perguntarem: e branco. Mandava revelar no laboratório Publimod.
"Como é possível que numa exposição sobre levantes Também fiz fotografias em Paris, principalmente no
vocêinclua imagens de pessoas que avançam para a museu do Louvre - para as marcaçOesde um projeto
morte sem se revoltar, ou de cadáveres que ardem de filme que eu tinha, na época, com o cineasta Jean-
diante das câmaras de gás?". E eu era forçado a res- -André Fieschi, sempre sobre a questão da histeria.
ponder•. "Considerem que essas pessoas não tinham Segundo momento: o da viagem à Itália. Acho
absolutamente nenhum meio de fazer um levante, que eu utilizava a mesma máquina Pentaxde meus
ao passo que o agente do levante era justamente, do primeiros ensaios, só que dessa vez com filme em
lado do Sonderkommando,a própria imagem: a ima- cor, para diapositivos. Foi então —a partir de 1984
gem como ato, repito, a imagem como ato clandesti- - que constatei o quanto a prática fotográficaera
Geoves ded•ecuo
imeqens apesv de tudo as
únicas gue
documentam o processo de
esterrn'ntc em massa condutido nas
amaras de dos campos Ce
concentroç&onans:as, As
mostrem a guetma oe corpos e a
enpade de mulheres na camara 00
5 deAuschwitz Tifacas
AS escon•d'daspor um pos.or«o
judeu fo•çaao a parncmar das
atrocidades estas 'tnnaens sho um
ato de ressténoa, argumenta
Otd'•Hubetman.Memoria' e Museu
Pol$ma.

8.
Estas fotografias feitas por Marcel Gautherot em Congonhas
(antiga Congonhas do Campo), M.nas Gerais, c. '347. foram incluídas
na expossç¿o Levantes, organizada por Georges Didl.Huberman e
inspirada na pesquisa visual dos gestos desenvolvida por Aby Warbura,
importante para um historiador como o
argelino
Daniel Arasse, com quem, na época, eu conversava
muito. Isso porque, ao contrário das unisetsidades
americanas, por exemplo, as instituições
francesas
nio contavam com "diapotecas- nas quais se pudes-
sem garimpar imagens de obras de arte. Por isso
nós mesmos as fazíamos - e is vezes também para
nossos amigos Louis Marin ou Hubert Damisch,
que preferiam visitar os museus italianos com suas
Desde os anos o totoorana usada cadernetas de desenho em punho.
cot para Obrns Que nio A prática comportava um inconveniente e uma
estavam disponíveis nos bancos de magens das vantagem. O inconveniente era que precisávamos
institutçOes francesas. como este - fa•so mórmore• . tirar - e as vezes -roubar" - as fotos em locais com
oetatrv do afresco Madona das sombras (c. 1435).
má iluminaçao, fosse ela natural ou artificial, de
de 9a AngeáC0 Convento San Marco,Çbotença
Foto oe Georges Didi•Huborman, modo que essas fotos nio tinham boa qualidade,
A vantagem era que fazíamos fotografias que nin•
guém antes de nós tivera a ideia de fazer. Foi o que
aconteceu com os "falsos mármores" dos afrescos
de Fra Angelico, em Florença. Comecei fazendo dia.
positivos 35rnm com minha Pentax; depois, para
publicar um artigo na revista Mélangesde I'École
Française de Rome, em 1986,pedi ao fotógrafo Patrick
Faigenbaum - que, como eu, era hóspede da Villa
Médicis - que fizesse diapositivos 6 6, de qualida•
de cromática bem melhor. Tenho esses diapositivos
até hoje, em algum lugar.
A partir de 1986,fui morar em Florença enquan-
to trabalhava na Villa I Tatti, domicílio do famoso
historiador da arte BernardBerenson.Naquela
instituiçao compreendi, de forma muito concreta,
que toda a prática da história da arte dependia de
opçOes a princípio ligadas à reprodução fotográfica.
A fototeca de Berenson é lendária, extraordinária,
mas em preto e branco, é claro. E dedicada exclu-
O que significa "compreender"? Significa "tomar com".
portanto, tomar e trazer para si. No campo visual,
o que "com-preendemos" é o que enquadramos,
recortamos: a porção que decidimos trazer para nós.

sivamente aos elementos figurativos da arte do lhar com aquele enquadramento —e todo o restan-
Renascimento. Tive de fazer pessoalmente todas as te que vem junto: fontes, textos, questionamentos
imagens de áreas "ornamentais", que na época me teóricos, comparações —,e depois ter de voltar ao
interessavam, em sua vinculação iconológica com início para fazer um enquadramento mais correto,
as "figuras" - aliás, com o imenso prazer da explo- mais fecundo, de certa forma. É um ir e vir cons-
ração e da descoberta. tante entre uma opção de enquadramento, de corte,
de montagem, e sua posta à prova pelo pensamento.
Uma pergunta mais genérica: em que aspecto a Posso dar um exemplo brasileiro do qual você
máquina fotográfica pode ser um instrumento de foi testemunha, no Rio de Janeiro, em 2013.Na
compreensão? companhia de Tadeu Capistrano e outros ami-
Essa pergunta genérica é, na verdade, uma ques- gos, passeávamos pelos jardins do parque Lage.
tão fundamental, crucial: porque envolve, no pro- Eu pensava em Glauber Rocha, que filmara Terra
cesso da pesquisa, um momento extremamente em transe (1967)naquele lugar. Ao mesmo tempo,
importante de decisão, uma "encruzilhada" ao andava entre as raízes que brotavam de todo lado
mesmo tempo prática e teórica, estética e epis- sob nossos pés, como grandes serpentes. Fascina-
têmica. O que significa "compreender"? Signifi- do, eu fotografava aquelas raízes e me perguntava:
ca "tomar com". Portanto, tomar e trazer para si. "Mas, afinal, o que significa 'radicalidade', quando
A partir disso, fica claro que não é possível, em as raízes assumem essa forma de serpentes entre-
nenhum momento, compreender tudo: o que laçadas?" (configuração teórica que identifiquei
trazemospara nós nunca é mais do que uma em Warburg, justamente, como sendo crucial).
pequena porção do mundo. No campo visual, o podemos afirmar, então, nesse caso e em muitos
que "com-preendemos"é o que enquadramos, outros, que o ato fotográfico estava situado no exa-
recortamos: a porção que decidimos trazer para to ponto de encontro de uma percepção sensível
nós. No caso dos afrescos de Fra Angelico, minha com um questionamento filosófico.
decisão foi simplesmente enquadrar mais embai-
xo, não olhar apenas a área figurativa do alto, mas Que papel desempenham as imagens fotográficas
também a área "abstrata" de baixo, e refletir sobre em seu sistema de trabalho baseado em fichas e na
suas relações. Enquadrar é, assim, uma opção de mesa de montagem?
conhecimento, ou melhor, a escolha da pergunta Todo o meu trabalho de escrita se baseia num sis-
que você quer dirigir ao visível. tema de fichas em que a montagem - aqui está, por-
Mas o enquadramento não é uma ciência exata. tanto, depois do enquadramento, a outra operação
É uma heurística, um experimento. Mesmo intuiti- determinante - faz emergir pensamento, hipótese,
vamente, nem sempre funciona. As vezes, calha de com suas articulações e suas consequências, muitas
eu enquadrar alguma coisa, voltar para casa, traba- vezes imprevisíveis no início. Essas fichas são obti-

(971
Gostaria de imprimir todas as minhas das, muito simplesmente, recortando uma folha A4
imagensfotográficas —realizadas em quatro partes. O resultado é interessante: quase
o tamanho de um cartão-postal. Idealmente eu gos-
hoje com uma câmera digital cujos taria de imprimir todas as minhas imagens fotográ-
arquivos estão armazenados ficas —realizadas hoje com uma camera digital cujos
em meu computador —no formato arquivos estão armazenados em meu computador-
das minhas fichas de escrita e nesse mesmo formato e misturá-las com os cartões-
misturá-las com os cartões-postais -postais comprados aqui e ali e, sobretudo, com as
comprados aqui e ali e, sobretudo, fichas de textos, indiscriminadamente. De fato, meu
com as fichas de textos, tempo de trabalho é constantemente regulado pelo
indiscriminadamente. paralelismo estabelecido entre a obtenção, o enqua-
dramento e a montagem das imagens (seja por meio
da fotografia, seja pelo uso de um scanner), de um
lado, e a redaçào de textos a respeito dessas fichas e
sua montagem, de outro.

No ensaio "Cascas", lançado em 2011,depois de


uma viagem a Auschwitz-Birkenau, você publicou
pela primeira vez suas fotografias, só que num esti-
Io completamente diferente: pessoal, em preto e
branco e mantendo uma relação sutil com o texto.
com
Enquantopasseava
amigos pelo parque Lage,
no RIO de Janeiro.
Didi•Hubermanobservou as
como
raízes aue brotavam
Fascinado.
grandes serpentes.
-Mas. afinal. o
se perguntou:
'radicalidade' 7".
que significa
de aue. -nesse
ese deu conta o ato
outros.
caso e em muitos
fotográfico estava Situado
encontro
noento pontode
percepção sensivei
de uma
com um questionamento
filosófico'. Fotos de Georges
Didi•Huberman, 2013.
A escrita de Didi.Huberman se baseia num sistema
de fichas, cuja produção
se assemelha à prática fotográfica. Foto de Georges
Oidi•Huberman,2009,

Vocépoderia falar dessa experiência fotográfica? ou peregrinos perturbados. Foi a copresença des-
E você também fez leituras desse texto, acompa- sas fotografias, quando voltei para casa e as obser-
nhadas da projeçào de imagens. vei, que desencadeou a ideia de um relato daque-
Leveianos até considerar a possibilidade de ir a Ie percurso, só isso. Aqui, portanto, a experiência
Auschwitz, onde desapareceu boa parte de minha fotográfica não se associa apenas a um desejo de
família materna. Eu escrevera Imagens apesar de conhecimento, porém, mais interiormente, mais
tudo sem nem mesmo conseguir visitar o local. poderosamente, a um desejo de escrita: tentar
Como disse Diane Arbus, e certamente muitos escrever uma emoção por intermédio de uma
outros fotógrafos, a camera introduz algo seme- sequência de imagens afinal terrivelmente banais.
lhante a uma interface, um distanciamento no
impacto emocional de uma situação real. Isso é tão Você não pretende serfotógrafo no sentido lato do
verdadeiro que quase todas as fotografias que tirei termo, mas, em certos casos, publica suas próprias
em Birkenau foram às cegas: na verdade, não via fotografias. Penso no diálogo que travou recente-
nada no visor da minha cámera digital, em virtu- mente com o pintor Gerhard Richter, por ocasião
de da luminosidade específica —ao mesmo tempo da conversa que tiveram no ateliê e, depois, de for-
cinzenta e intensa —daquele dia. Fotografar, então, ma epistolar. Em que consistia seu trabalho foto-
era defender-se de um possível desmoronamento. gráfico e que lugar ele ocupa em sua análise do tra-
Nenhum projeto num gesto assim. Nenhum pro- balho de Richter?
jeto de texto. Apenas um percurso no local com a Não me vejo como fotógrafo, ainda mais falando
camera como mero atestado de efetivamente estar com você, que é um virtuoso e um artista dessa ati-
lá. Como todo mundo, portanto, turistas apáticos vidade técnica. Abordo a fotografia unicamente com
Quase todas as fotografias que tirei em Birkenau
foram às cegas: na verdade, não via nada no visor
da minha camera digital. Fotografar, então, era
defender-se de um possível desmoronamento.
4

Fotos de
Auschwitz-Birkenau,
campo de
concentração
onde Didi-Huberman
perdeu
familiares. As
imagens
fotográficassão um
dapresença atestado
do historiador
10local e a forma
que
ncontrou de descrever
emoç¿o da visita.
Fotos de
eorges Didi.Huberman,
2011.
ir. 2013
Gerhaıd RChtet me
çecqu para em
fiQueı estaıtecco ao
ele
venas teid5 em
mostran
çuactos çue ajrğd r;âû
542 pıntados Mas
comgeendi ffQC•atamente
aquilo ccnstltu;a um
cğetğ exemplv
para hiştorıadff da
Colöntğ, Fotos de Gectoes
Odı•Hubeıman, 2013.
A experiência fotográfica não se associa apenas a um desejo
de conhecimento, porém, mais interiormente, mais poderosamente,
a um desejo de escrita: tentar escrever uma emoção por intermédio
de uma sequência de imagens afinal terrivelmente banais.

as duas atitudes heurísticas do enquadramento e da


Para além da frase famosa que abre a entrevista, você
montagem, o que é bem pouco diante dos aspectos trabalhou, em 2013, no âmbito de um ciclo de cinco
formais da fotografia em geral: grão, luz, dimensão,
conferências no Louvre sobre a questão do Álbum
orientaçào, escolha do suporte etc. A prática foto-
da arte na época do Museu imaginário em Malraux.
gráfica, repito, para mim tem uma proximidade Qual é a importância do pesquisador e artista André
muito grande com essa produção intensa de fichas Malraux na relação que vocé estabelece entre fotogra-
de escrita. Nào bato uma foto com a intenção de fia e história da arte?
fazer uma bela imagem a qualquer preço, mas para Ele é importante, todo mundo sabe. Seus traba-
obter uma ficha associável a outras. Isso faz parte lhos do Museu imaginário são obras-primas da
do que Foucault chamava de hypomnêmata, as ferra- ediçào de arte, e marcaram época. Mas era um
mentas mnemónicas e heurísticas do pensamento. modelo que eu não deveria seguir. O modo como
Quando Gerhard Richter me pediu para visitá-lo Malraux usa a fotografia de arte é prescritivo,
no ateliê, fiquei estarrecido ao constatar que ele englobante, normativo, para além de suas intui-
tinha apenas quatro telas em branco para me mos- çôes fulgurantes. Depois de Walter Benjamin e
trar: quadros que ainda não haviam sido pintados. Warburg podemos, ao contrário, imaginar um uso
Era uma solicitação de palavra: ele queria conversar da fotografia na história da arte que não seja ilus-
livremente, de modo flutuante e, além disso, um trativo, mas hipotético. Diante de uma montagem
pouco constrangido, sobre a questào de Birkenau. com duas imagens, Malraux propunha que ela
Mas compreendi imediatamente que aquele ateliê respondesse a perguntas do tipo: qual é o estilo
vazio, com quatro quadros em branco e um móvel dedutível dessa associação? O que é a arte, afinal
de metal com trés potes de tinta, aquilo tudo cons- de contas? Parece-me que podemos ser ao mes-
tituia um objeto fotográfico exemplar para um mo tempo mais modestos (no plano metafísico)
historiador da arte. Assim, perguntei a Richter, no e mais operativos(no plano dos contatos ou dos
momento em que, depois da refeição, ele ia fazer contrastes entre imagens), como Georges Bataille,
uma sesta de 15 minutos, se podia ficar no ateliê e por exemplo, na extraordinária ilustração de sua
tirar fotografias. Minha carta, depois, foi o resulta- revista Documents. Existem ali bifurcações cruciais
do daquela fala apenas esboçada e daquelas ima- na "política das diferenças" a adotar quando utili-
gens de um trabalho pictórico não realizado. Como zamos as imagens fotográficas para ter uma ideia
de costume, primeiro escolhi as imagens, depois mais sensível da história. ///
as posicionei numa sequência que, em si, "dizia" TRADUZIDO00
+ AexposiçaoImantesestáem cartazno SescPinheiros,
alguma coisa - uma montagem narrativa, de cer- sao Paulo, de 19/10a 28,'V201B.
to modo e a partir daí só me restava escrever a Imagens apesar de tudo, Georges Didi-Huberman (Imago, 2012)
Invençdoda histeria:Charcote a iconografiafotográfica
da
partitura daquelas imagens e da minha memória Salp¿triére,GeorgesDidi.Huberman(Contraponto,2015)
desse dia com o pintor. CAtlas Mnemosyne,Aby Warburg (L'Écarquillé, 2012)

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