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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Paula Natanny Rocha Bezerra

TEM MULHER NA RODA? UMA PERSPECTIVA FEMINISTA SOBRE AS


RELAÇÕES DE GÊNERO NA CAPOEIRA

Recife
2010
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Paula Natanny Rocha Bezerra

TEM MULHER NA RODA? UMA PERSPECTIVA FEMINISTA SOBRE AS


RELAÇÕES DE GÊNERO NA CAPOEIRA

Monografia apresentada como


requisito parcial para a obtenção
do título de licenciada, pelo curso
de Ciências Sociais da
Universidade Federal de
Pernambuco, sob a orientação da
Professora Lady Selma Ferreira
Albernaz

Recife
2010
AGRADECIMENTOS

Tantos agradecimentos a fazer, por tantos motivos nesses tempos de curso, de

capoeira, de vida. Escreverei por núcleos (como nas novelas), pra facilitar a minha escrita.

Não por hierarquias, pois afetos não se categorizam por tempo, espaço ou qualquer medida

que nos é imposta nessa tão corrida vida.

Começo agradecendo a minha família, minha rede de proteção, que tanto segurou (e

segura) a minha onda nesse período de parto, afinal escrever uma monografia é um parto

simbólico. Agradeço Mainha e Painho por me deixarem escolher o que quis fazer num

vestibular tão precoce, e por acreditarem nessa loucura que são as Ciências Sociais na vida de

qualquer pessoa, e uma loucura na vida de um reverbera por todos e todas que nos cercam.

Agradeço a Vi, pelo apoio e por também segurar a minha onda nesses tempos difíceis e pelo

amor dedicado a minha existência. Agradeço a Dona Carminha, minha véia, minha coisa linda

do meu coração por existir. Sua existência faz da minha vida mais importante, tenha certeza.

Aos meus queridos amigos, todo o afeto do mundo pra nós é pouco. A vocês dedico

uma frase que ouvi em uma série linda, intitulada „coincidentemente‟ Queridos Amigos:

“Importante são os afetos”. Só eu sei o quanto de alegria vocês me proporcionaram desde

que os conheci, tanta beleza que vivemos juntos e viveremos ainda mais, tenho certeza. Sabe

aquelas pessoas que aparecem na sua vida e você entende que não vai ter jeito de largar nunca

mais? Aquelas criaturas que entram pra família, que partilham de grande parte de seu tempo.

A quem se dedica muito amor, e muita energia boa. Estes são: Kleiber Lira (O Ruivo), Mercês

Santos (A Nêga), Joice da Paixão (A Preta), Victor Rodrigues (Vitinho), Rafael Siqueira

(Cabeçot), Camila Rodrigues (Suchu), Ricardo Santana (Ricó), Cléo Conde (Kéo), Marília

Nepomuceno (Mirília). Amores meus, vamos viver a poesia do mundo inteiro!


Às minhas parceiras de turma e meus parceiros de turma, de copo e de cruz: Natita,

Passarinho (Rita Lee), Irene, Leandro, Magno, Grego (Gregório de Matos, meu querido Boca

do Inferno), Will, Carlos. Estamos junt@s desde o início dessa epifania, dessa vida cfchiana

que nos dá dores e delícias.

Às pessoas que só conheci porque fiz Ciências Sociais na UFPE e que partilharam dos

sombrios corredores cfchianos, dos desesperos nos finais dos semestres, das saudosas partidas

de dominó no DACS, do caos que é a parada de ônibus em dias de chuva. Das idas ao Bigode,

depois ao Cavanhaque, e atualmente ao Bar de Margarida. Helton, Lara, Ênio, Mayra (minha

cuidadora dos encontros estudantis), Beto, Lorena, Rafael Acioly, Teresa (cabelo mais lindo

das Ciências Sociais), Chicão, Nando, Felipe Chuchu, Thassia, Lud, Cárlysson, Ana Luiza,

Frances (Sarkozy), Carla Guimarães, Pedro Valadão, Torreão, Queiroz, Daira, Bella, Márcio

Soares, George Rasta Man, Rosano, Renato, Renan, Bruninho, Bob, Samuca, George

Michael, Acayne, China, Carol Índia, Gilson, Hugo... Devo ter esquecido de citar

nominalmente uma galera, no entanto é de conhecimento geral que minha memória não é das

melhores.

Agradeço ao DACS enquanto espaço que ficará na minha memória sentimental para

sempre. Quantas conversas partilhadas, quantas reuniões infindáveis aconteceram naquele

lugar. Descobri que a militância faz parte de mim há tanto tempo, e que cresci como pessoa

nesse espaço de tantas concordâncias, e de milhões de discordâncias.

Às/aos colegas de militância estudantil, minha esperança de que as coisas melhorem e

minha torcida para que não desistam das brigas que precisam ser compradas cotidianamente.

Aos meus queridos cearenses, minha gratidão eterna. Amizades construídas num

Encontro Estudantil, que quero levar pra minha vida toda. Dgeove, Citó, Edu, George, Caleb,
Valério, Fenninha, Fausto, Dig Jow, Saboya. E a tantas pessoas importantes nessa caminhada

turbulenta dos Encontros Estudantis...

À Penha, Claudinete e Márcia: agradeço pela quantidade de galhos quebrados por

vocês, em todas as instâncias. Vocês são muito importantes para nós, graduandos e

graduandas das Ciências Sociais.

À Lady Selma Ferreira Albernaz, minha querida orientadora! Que tanto me conhece e

reconhece as minhas inseguranças. Tenho tanto a agradecer: por aceitar o convite de ser

minha orientadora, convite este feito de maneira tão tímida e prontamente aceito, mesmo

antes de saber qual seria a minha pesquisa, por comprar de olhos quase cerrados as minhas

idéias, pela paciência comigo, pelas conversas sempre esclarecedoras e pelos puxões de

orelha quase sempre necessários.

À Ricardo Santiago, meu valioso Richard. Obrigada por me aturar, batendo na porta

de tua sala com os olhos cheios d‟água, desespero no coração e uma vontade louca de largar

esse curso. Incontáveis vezes eu fiz isso, e mais incontáveis ainda as vezes que tu não me

deixaste largar o curso e ainda me acalmou com essa paciência e esse jeito de ver o mundo.

Agradeço também pelas cervejas compartilhadas nos bares da vida, não foram poucas. Como

tu és querido por mim e por tanta gente que te cerca.

Alexandro Silva de Jesus, Maria Aparecida Nogueira e Maria Auxiliadora Ferraz:

obrigada por reencantar o mundo das Ciências Sociais! Vocês, que com tanta doçura e tanta

leveza encantam e reencantam e mostram que o nosso mundo pode ser diferente. Agradeço

num abraço sem tamanho.


Aos professores Brandão, Paulo Marcondes, Luiz Canuto, Gildemarks, Eniel Sabino.

Agradeço imensamente pelos exemplos de existência, cada um a sua maneira, com seus

modos peculiares.

Mas como nem tudo é lindo... Deixo um pedido para alguns professores e algumas

professoras: devolvam o tempo que me foi tirado na cara dura. Vocês, que de maneira

insípida, inodora e incolor fizeram parte de minha graduação. De alguma maneira, vocês são

exemplos. Exemplos do que não quero ser. Cuidado: uma dia a torre de marfim cai...

Ao Professor Douglas do grupo Capoeira Nagô, que com orgulho digo: é o meu

professor de capoeira. Por tantos ensinamentos compartilhados, tantas conversas

esclarecedoras. Pelos treinos instigantes e cansativos, pela amizade de longa data. Por me

deixar ser sua discípula, por cantar tão bem a nossa arte. Você é o melhor capoeirista que eu

conheço, por todos os motivos do mundo. A capoeira é tudo que a boca come, e essa frase me

remete diretamente a você, um exemplo que eu quero seguir sempre. Quando, daqui a algum

tempo você se tornar mestre, direi com muito orgulho: “foi com ele que aprendi o significado

do que é a capoeira”. Muito obrigada, meu querido!

A Gaby, que mesmo sem saber faz parte do seleto grupo de pessoas que admiro. Uma

exímia capoeirista com quem aprendi muito desde que a conheci, e pretendo aprender ainda

mais. Obrigada pela entrevista, pela ajuda e pelo carinho.

Aos/às colegas do grupo Capoeira Nagô: Guinho, Argemiro, Kalunga, Mancha, Cris,

Renatinha, Joyce, Bruninha, Sandrinha, Neto, Leo, João (valeu pelas fotos!), Midiã, Allan,

Tacinho, Mari. Vocês foram fundamentais para a realização deste trabalho. Agradeço pelas

entrevistas, pelas conversas e por me deixarem partilhar de suas companhias.


Termino estes agradecimentos com os olhos cheios d‟água e com as mãos trêmulas.

Mas tenho a sensação de dever cumprido. Vivi o curso de Ciências Sociais da maneira que

achei melhor pra mim, por vezes aos trancos e barrancos, e contei com muita gente pra me

ajudar nessa trajetória, não fiz nada sozinha. Por isso tantas páginas de agradecimento, apesar

de achar que ainda foram poucas...


Não gosto quando dizem que parei de fazer capoeira

A capoeira está e sempre esteve dentro de mim

Faz parte da minha história

É a minha vida

Um dia, ela me afastou

Mas depois, me chamou de novo

(Mestre Toni Vargas)


RESUMO

O trabalho trata de uma análise sobre as divisões de gênero vividas no mundo „capoeirístico‟,

numa perspectiva feminista. Ele se justifica porque há poucos estudos sobre o tema da

capoeira no Brasil. Metodologicamente, o trabalho foi iniciado com uma revisão bibliográfica

(acadêmica e não-acadêmica), e seguido de observação participante e entrevistas semi-

estruturadas. A análise das relações de gênero privilegiaram os espaços proporcionados pela

capoeira, tendo feito as observações sistemática dos treinos de um grupo e, mais

especificamente, durante o período da preparação para o 6º Encontro Capoeira Nagô

Pernambuco (09 e 10 de abril de 2010). Concluo que as divisões de gênero existentes na

sociedade brasileira, também estão presentes no universo „capoeirístico‟, estabelecendo

posições para homens e mulheres principalmente nas rodas, espaço de troca mais importante

da capoeira. As mulheres têm seu jogo controlado pelos colegas homens e poucas ocupam as

funções mais altas dentro da hierarquia da capoeira, revelando assim desigualdades e

assimetrias com prejuízos para elas.

Palavras-chave: CAPOEIRA; RELAÇÕES DE GÊNERO; FEMINISMO.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 11

A PESQUISA DE CAMPO .......................................................................................................... 15

CAPÍTULO 1 – ESMIUÇANDO O UNIVERSO CAPOEIRÍSTICO............................... 18

1.1 – SOBRE AS GRADUAÇÕES ............................................................................................... 18

1.2 – OS TREINOS .................................................................................................................. 20

1.3 – AS RODAS ..................................................................................................................... 21

CAPÍTULO 2 – O 6º ENCONTRO CAPOEIRA NAGÔ PERNAMBUCO ..................... 28

2.1 – OS ENCONTROS.............................................................................................................. 28

2.2 – A PREPARAÇÃO PARA O ENCONTRO ............................................................................... 30

2.3 – O EVENTO ..................................................................................................................... 32

CONSIDERAÇÕES FINAIS, QUE NEM SÃO TÃO FINAIS ASSIM ............................ 38

REFERÊNCIAS .................................................................................................................... 40

ANEXOS ................................................................................................................................ 42
INTRODUÇÃO

Me chama pra ver lê lê lê

A volta que o mundo faz

E o que a capoeira traz

De bom pra você

(Formado Douglas – Grupo Capoeira Nagô)

Neste trabalho faço uma leitura sobre gênero tendo como campo de pesquisa

etnográfica a capoeira. Mas por que a capoeira? Desde que entrei na universidade, tenho a

pretensão de escrever sobre a capoeira como forma de „unir o útil ao agradável‟. Sou

capoeirista desde 2003 e ao iniciar o curso de Ciências Sociais senti a necessidade de

aproximar o mundo acadêmico do mundo capoeirístico, talvez na tentativa de me encontrar

nessa pretensiosa junção. E por que gênero numa perspectiva feminista? Utilizar a categoria

gênero numa perspectiva feminista me faz partir da suposição de desigualdade e opressão

vivida pelas mulheres, com o cunho de uma mudança social, inegavelmente. Após estudar

autoras que se dedicam à questão, parei para pensar nas minhas experiências enquanto

capoeirista e percebi que existe uma diferenciação no que homens e mulheres são estimulados

a fazer nos treinos e rodas de capoeira.

O objetivo inicial desta pesquisa é, por meio das teorias feministas e da pesquisa

empírica, explicitar as relações de gênero existentes no ambiente da capoeira, a partir da

observação do grupo Capoeira Nagô. Para esta análise, utilizo a categoria gênero, defendida

por Joan Scott (1995: 11):

11
“a conexão integral entre duas proposições: o gênero é um elemento constitutivo de
relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é uma
forma primeira de significar as relações de poder.”

Scott (1995: 11) sistematiza o conceito de gênero:

“[...] quatro elementos relacionados entre si: primeiro, símbolos culturalmente


disponíveis que evocam representações múltiplas [...]. Segundo, conceitos
normativos que colocam em evidência interpretações do sentido dos símbolos que
tentam limitar e conter suas possibilidades metafóricas. [...] [terceiro] uma noção
do político, tanto quanto uma referência às instituições e organizações sociais.
[...] O quarto aspecto do gênero é a identidade subjetiva.” (grifo nosso)

Para analisar a capoeira, não consegui um conceito que me satisfizesse inteiramente. O

conceito que se aproxima do que eu compreendo da capoeira, enquanto capoeirista é o de

Alejandro Frigério (1989: 1):

“[...] definem a Capoeira tradicional (Angola) como uma forma artística única,
criação afro-brasileira que reflete fielmente as pautas do grupo étnico do qual
surge. Como chega até nós, tem aspectos de dança, luta, jogo, música, ritual e
mímica. A conjunção de todos esses elementos gera um produto que não pode ser
classificado atendendo apenas a uma única dessas facetas, sob pena de perder sua
originalidade como arte.”

Apesar de ele aplicar esse conceito apenas para a Capoeira Angola (considerada por ele a

capoeira tradicional), amplio este conceito para a Capoeira Regional, criada por Manuel dos

Reis Machado, o Mestre Bimba (ADORNO, 1987), que trouxe maior visibilidade para a

capoeira.

12
Frigério (1989) faz uma leitura comparativa entre a capoeira Angola e Regional a

partir de oito características: malícia; complementação; jogo baixo; ausência de violência;

movimentos bonitos; música lenta; importância do ritual e teatralidade. Ao que me parece o

autor faz um juízo de valor, onde estas características parecem sempre mais positivas na

capoeira Angola do que na Regional. Um tipo de hierarquia que, ao primeiro olhar, me parece

muito rígida. Dessa maneira o autor contribui para legitimar um tipo de capoeira em

detrimento da outra, posição esta da qual discordo.

Os estudos sobre gênero buscam analisar as relações entre homens e mulheres em

diversos ambientes, sejam eles públicos ou privados. Muitos trabalhos da área tratam de

analisar as implicações decorrentes do gênero no espaço público, espaço onde poderíamos

enquadrar a capoeira.

No tocante a capoeira, a posição das mulheres é pouco discutida nos trabalhos

acadêmicos. Buscam-se outras perspectivas não menos importantes para discutir sobre a

capoeira, entretanto a participação das mulheres nos espaços propostos pela capoeira e as

divisões de gênero não são problematizadas no campo acadêmico. Meu trabalho consiste em

tentar, em alguma medida, preencher a lacuna entre estas temáticas.

Um dos poucos trabalhos que encontrei sobre a questão que coloca aqui é o de Ilnete

Porpino de Paiva (2007), “A Capoeira e os Mestres”, onde a autora faz constatações

referentes à situação das mulheres na capoeira e ao não reconhecimento de mulheres enquanto

mestras de capoeira. O que a autora verifica é que, quão mais próximo ao topo da hierarquia

capoeirística, menor é a quantidade de mulheres nesses cargos. De acordo com ela, isso se dá

devido à recente inserção das mulheres nos espaços públicos, inclusive na capoeira, o que

13
teria ocorrido na década de 1980 em diante. A autora, para explicitar essa realidade, reproduz

uma fala de Mestre Pirajá, que diz que:

Era machismo, era machismo mesmo. Porque a sociedade brasileira sempre foi
machista. Hoje tá diminuindo. Mas, veja bem, a mulher apesar das conquistas que
já teve, mas ela sempre era vista apenas como dona de casa, criadora de menino e
parideira. Só. Esse era o pensamento daquela época antiga. Entendeu? Da época
dos meus pais, dos meus avós. Hoje em dia não. A mulher conquistou um espaço.

Brito, no artigo „Eu sou angoleiro, um estilo mandingueiro de masculinidade –

capoeira, gênero e masculinidade‟ (2007) trata das relações de masculinidade na Associação

de Capoeira Angola Forte Santo Antônio, em Londrina-PR. O autor, que também utilizou a

observação participante, faz uma leitura inovadora ao tratar sobre as masculinidades no

universo capoeirístico, diferenciando estas como masculinidade de angoleiro1 e masculinidade

de regionaleiro2, deixando claro que estas se sustentam em oposição. O autor traz uma

perspectiva de diferenciação de identidade entre angoleiros e regionaleiros, caracterizando os

primeiros como não-violentos e mais vinculados com a tradição capoeirística, enquanto os

outros são considerados violentos e modernos, na visão dos angoleiros. Para o autor, a

construção do „estilo mandingueiro de masculinidade‟ está vinculada a uma violência

dissimulada usada para sustentar, de alguma maneira, um laço com a masculinidade

hegemônica. Porém, como a violência usada na Capoeira Angola é de certo modo velada, essa

aproximação da violência com o masculino não é colocada numa relação essencialista, e sim

como criação de uma masculinidade contra-hegemônica, que flerta com o autocontrole e com

o lúdico.

1
Praticantes da capoeira Angola, divulgada por Mestre Pastinha.
2
Praticantes da capoeira Regional, criada por Mestre Bimba.

14
Acho necessário pontuar que, ao fazer esse trabalho, não tenho nenhuma pretensão de

que ele seja imparcial, pois partilho da concepção de MacKinnon (apud Sthathern, 2006),

quando esta diz que “o feminismo não considera sua visão como subjetiva, parcial ou

subdeterminada, mas como uma crítica à pretensa generalidade, imparcialidade e

universalidade das explicações anteriores.”.

Como opção metodológica, recorri à observação participante, realizando o trabalho de

campo, nos treinos do grupo Capoeira Nagô em um dos seus espaços no bairro de Candeias,

em Jaboatão dos Guararapes – PE, desde janeiro de 2010, e a realização do 6º Encontro

Capoeira Nagô Pernambuco, que aconteceu entre os dias 06 e 10 de abril de 2010. Fiz

também entrevistas semi estruturadas para compreender de maneira mais esmiuçada as

questões que não pude perceber pela observação e conversas informais. Juntei a esta

observação sistematizada, e acho necessário deixar claro aqui, minhas experiências enquanto

capoeirista e as conversas informais, que mantinha com colegas, amigos e amigas, antes ou

após os treinos e rodas do grupo.

A PESQUISA DE CAMPO

O grupo que escolhi para fazer a pesquisa de campo é o mesmo do qual faço parte

desde 2003, o grupo Capoeira Nagô, em um de seus espaços de treino no bairro de Candeias,

em Jaboatão dos Guararapes – Pernambuco. O local onde os treinos acontecem é o salão de

festas de um condomínio de prédios que é emprestado nas terças e quintas-feiras, dias em que

acontecem os treinos e algumas rodas, não é um espaço próprio do grupo. A escolha deste

grupo se deu por questões acadêmicas e pessoais. Academicamente fiz esta escolha, pois eu já

teria uma relação de confiança pré-estabelecida com os membros do grupo, isto é, a inserção

15
no campo não seria tão complicada. Segundo penso que não conseguiria observar sem

também participar dos treinos. Escolher um novo grupo traria assim, possivelmente, uma

dupla dificuldade, ganhar a confiança e me inserir como capoeirista. Por sua vez, penso que o

fato de já conhecer o grupo não interferiu negativamente no processo de pesquisa, pois em

todos os momentos me posicionei enquanto capoeirista e pesquisadora, envolvendo-me direta

e indiretamente nos espaços propiciados pela capoeira e meus e minhas colegas capoeiristas

sabiam disso e respeitaram sempre minhas decisões, ajudando-me da maneira que podiam

para colaborar com a pesquisa, seja para participar das entrevistas ou para conversar

informalmente sobre o andamento da pesquisa. O obstáculo que ocorreu durante a

sistematização da pesquisa foi a minha dificuldade com o distanciamento para fazer a

descrição de maneira detalhada sobre o universo capoeirístico, pois sou capoeirista há sete

anos e estes conhecimentos fazem parte do meu cotidiano, e sabe-se bem que para descrever o

que nos é corriqueiro é mais complicado. Mas tal dificuldade foi superada, acredito.

Meu trabalho de campo iniciou-se na primeira semana de janeiro de 2010, sem

grandes percalços. Ao chegar ao treino, fui bem recebida por meus e minhas antigos e antigas

colegas, e deixei claro que o meu intuito estava além da prática da capoeira, agora iria

também fazer a minha pesquisa. Todos que estavam no momento ficaram surpresos pela

iniciativa, com exceção do professor, que já estava ciente desta decisão. Senti uma disposição

coletiva em conversar sobre capoeira e em colaborar com o que fosse necessário para o

andamento da investigação.

Os treinos têm em média quinze pessoas, sendo bem dividida a frequência de homens

e mulheres. Porém, em alguns treinos tem mais capoeiristas do mesmo grupo, mas que

16
treinam com outro professor3. A maioria dos capoeiristas que treinam nesse espaço são

iniciantes, tendo a graduação entre a segunda e quarta corda4. Ao todo, um estagiário, três

graduados e um formado fazem parte do cotidiano destes treinos. Destes, apenas uma é

mulher, que hoje não faz mais parte do grupo Capoeira Nagô.

As pessoas que escolhi para entrevistar são aquelas que praticam capoeira há mais

tempo. O critério tempo foi o que encontrei de mais plausível, pois a vivência na capoeira

além dos treinos – o que chamo de vivência aqui é o fazer parte, saber o que acontece por trás

do cenário exposto coletivamente, é conhecer o backstage –, requer graduações mais altas,

tempo de capoeira e prestígio com o mais graduado, sendo este quem dá os treinos e quem

comanda as rodas quando não há a presença do mestre ou de alguém mais graduado que ele.

Este trabalho está dividido em três partes. No primeiro capítulo, intitulado

“Esmiuçando o universo capoeirístico”, descrevo de maneira mais pormenorizada os

elementos da capoeira, iniciando com as graduações, seguindo pelos treinos e finalizando com

as rodas. No segundo capítulo, “O 6º Encontro Capoeira Nagô Pernambuco”, começo

apresentando como funciona um encontro de capoeira, e a partir disso, discorro

especificamente sobre o 6º Encontro Capoeira Nagô Pernambuco, que aconteceu entre os dias

sete e dez de abril de 2010. Finalizando o trabalho, trago minhas considerações finais, onde

faço um apanhado das minhas conclusões sobre as relações de gênero na capoeira.

3
No grupo Capoeira Nagô em Recife, existem outros espaços onde ocorrem treinos que são ministrados por
outros professores que também fazem parte do grupo e entre eles existe um acordo tácito que permite que seus
alunos possam treinar com outro professor, desde que seja autorizado por ambos.
4
No próximo capítulo deste trabalho, explico mais detalhadamente a organização hierárquica do grupo Capoeira
Nagô.

17
CAPÍTULO 1 - ESMIUÇANDO O UNIVERSO CAPOEIRÍSTICO

Eu comecei por brincadeira, comecei sem


emoção

Mas depois a capoeira conquistou meu coração

Eu sou movido pela capoeira

Eu sou movido pelo berimbau

Eu escolhi a capoeira porque ela me escolheu

Olhei pra ela, ela sorriu

E naquele instante me acolheu

(Formado Douglas – Grupo Capoeira Nagô)

Para que as pessoas ao lerem este trabalho compreendam o universo ao qual me refiro

às vezes sem explicar detalhadamente do que falo, escrevo aqui, de maneira mais minuciosa o

universo capoeirístico que tanto me agrada e emociona, especialmente e especificamente o

universo do grupo Capoeira Nagô.

1.1 – SOBRE AS GRADUAÇÕES

O grupo Capoeira Nagô, como todos os grupos de capoeira, conta com uma hierarquia

onde o mestre está no topo. As divisões que separam o mestre do aluno iniciante mudam de

acordo com os grupos, porém não tenho como detalhar todos os grupos neste trabalho (nem é

a intenção), então me aterei ao grupo do qual faço parte e onde foi feita a pesquisa de campo.

O grupo Capoeira Nagô conta uma divisão hierárquica forte, com a definição das

cordas por cores. De maneira crescente, a ordem de hierarquia é: aluno/a iniciante da

primeira a quinta corda (crua e cinza, crua e verde claro, crua e amarela, crua e laranja, crua e
18
azul claro respectivamente); aluno/a veterano/a com a sexta e a sétima corda (laranja ou azul

claro, respectivamente); graduado/a com a oitava até a décima corda (verde escuro e laranja,

verde escuro e azul claro, verde escuro respectivamente); formado com a décima primeira

corda (azul escuro); professor com a décima segunda corda (roxa); contramestre com a

décima terceira e décima quarta cordas (marrom, marrom com preto); e finalmente o mestre

(corda preta).

Para mudar de graduação, o que é levado em conta é o tempo de capoeira e o

desenvolvimento individual a partir dos critérios colocados por quem ministra as aulas. No

entanto, não existem critérios dados objetivamente, que possam ser comparados com metas a

serem alcançadas, coisas que precisam ser feitas para alcançar as graduações. Seguindo essa

lógica, posso considerar que a subjetividade de quem ministra as aulas é colocada em

primeiro plano, e incluindo que a subjetividade está ligada a identidade e ao que toca os

afetos, é bem provável que as discriminações de gênero permeiem esses critérios, de maneira

consciente ou não.

No grupo Capoeira Nagô em Pernambuco, não existe nenhuma capoeirista graduada

atualmente5. A mulher com a graduação mais alta hoje é primeira corda de aluna veterana

(sexta corda no geral). Comparando o tempo de capoeira versus a graduação de cada

capoeirista, pude constatar que essa relação não é diretamente proporcional quando se observa

através da perspectiva de gênero. Confrontando os dados obtidos através de entrevistas e

conversas informais, pude perceber que as mulheres têm a mesma graduação que os homens

enquanto iniciantes, mas na medida em que a graduação vai se tornando mais alta, o

distanciamento vai aparecendo, e ficando cada vez maior com o decorrer desse tempo. Para

5
Durante a pesquisa de campo, a única graduada do Capoeira Nagô em Pernambuco saiu do grupo por
motivações pessoais.

19
exemplificar isso, comparo aqui as graduações de duas pessoas entrevistadas: uma mulher,

com quinze anos de capoeira e enquanto esteve no grupo Capoeira Nagô tinha a segunda

corda de graduada (nona corda); um homem com o mesmo tempo de capoeira, que tem a

corda de formado (décima primeira corda). Essa situação acontece de maneira velada, e não

se fala abertamente sobre essa temática, mostrando assim uma naturalização da hierarquia,

onde as mulheres não têm as mesmas condições que os homens para se aproximar do topo.

1.2 – OS TREINOS

Para ser um bom capoeirista é necessário bastante treino. O treino é considerado o

espaço de troca e aprendizagem inicial. É o lugar onde se aprende a gingar6, onde se aprende

os primeiros golpes, onde se acerta pela primeira vez um movimento difícil e se erra muito.

Quem dá os treinos comumente é a pessoa mais graduada, quase sempre responsável pelo

espaço físico onde ocorrem os treinos. Os treinos são iniciados com um alongamento que dura

cerca de dez minutos, seguido de aquecimento. Em seguida, todos começam a gingar como

continuação do aquecimento. A partir daí, o mais graduado presente começa a passar algumas

movimentações que são feitas inicialmente por ele, para que seja compreendida, para depois

ser repetida por todos ao mesmo tempo ou individualmente. No caso de treinar os golpes, as

repetições podem acontecer todos ao mesmo tempo, buscando uma sincronia, ou em dupla.

Fazendo uma breve análise sobre os treinos, reparei que a discriminação de gênero se

dá nas escolhas de com quem treinar um golpe mais violento, sendo na maior parte meninos

treinando com meninos e meninas com meninas. Quando se „mistura‟, os meninos não

6
Primeira movimentação que se aprende, é a base de todas as movimentações na capoeira. Para saber mais, ler
Camille Adorno, A arte da capoeira (1987).

20
treinam com tanto afinco, perpetuando a lógica do “sexo frágil”. Algumas capoeiristas

também sustentam essa lógica, quando sistematicamente pedem um treino mais leve, com

mais movimentações e menos golpes.

1.3 – AS RODAS

F IGURA 1: B ATERIA DA RODA COMPLETA & F ORMADO D OUGLAS E M ESTRE P EQUINÊS AO PÉ DO


BERIMBAU (10.04.2010)

FONTE: JOÃO LYRA

No tocante às rodas, é necessário explicar como elas se dão a partir do ritual. A roda,

para o/a capoeirista, é o momento mais importante, é o objetivo final. As rodas são formadas

por capoeiristas – independente de sua graduação ou de seu grupo7 – podendo ser roda de

academia ou roda de rua. Na parte musical da roda, contamos com uma bateria formada por

7
Em algumas rodas, há presença de capoeiristas de grupos distintos. Se for uma roda de academia, estes são
considerados convidados.

21
três berimbaus (da esquerda para a direita: gunga, médio e viola), um atabaque (ao lado

direito do berimbau gunga) e um pandeiro (ao lado esquerdo do berimbau viola). Na roda,

cada berimbau toca de uma maneira específica. O berimbau gunga é o de maior cabaça e que

rege a roda, fazendo pouca variação de toques. O berimbau médio é o com a cabaça de

circunferência mediana e que acompanha o gunga, podendo fazer mais variações de toques. O

berimbau viola é o de cabaça visivelmente menor e faz variações de toques durante todo o

tempo de roda.

E como se começa uma roda? Inicialmente, montam-se os berimbaus e posiciona a

parte instrumental da roda, como descrevi anteriormente. Após isso ser feito, o/a capoeirista

que está com o berimbau gunga começa a tocar Cavalaria, toque que aponta o início da roda.

Após a formação da roda, o gunga volta a tocar o toque que este/esta capoeirista começar,

sendo acompanhado pelo médio, e seguido pelo berimbau viola. Depois dos berimbaus, o

atabaque começa a tocar, seguido pelo pandeiro. Depois disso é que as palmas começam a ser

entoadas em uníssono, seguindo num ritmo preestabelecido. Como acho difícil falar de

capoeira sem exemplificar, e as músicas de capoeira são bastante didáticas, me utilizo de uma

música do Mestre Itapoan, chamada “Palma de Bimba”:

A palma estava errada

Bimba parou outra vez

Bata esta palma direito

A palma de Bimba é um, dois, três [...]

O/A capoeirista que está com o gunga começa a cantar uma música escolhida por ele/ela, que

pode dizer como a roda deve funcionar, pode pedir proteção divina ou alguma outra
22
informação que deve ser transmitida naquele momento. De acordo com a tradição, dois/duas

capoeiristas ficam ao pé do berimbau8 aguardando a autorização para começar a jogar. No

decorrer da roda, outros jogos podem ser feitos, sendo estes também organizados dentro do

ritual. Para jogar na roda, existem duas possibilidades: a primeira é convidar alguém que

esteja na roda para jogar. Nessa situação, as/os capoeiristas esperam o jogo que está

acontecendo acabar para entrar na roda.

A outra possibilidade é comprar o jogo. Como é isso? Durante o jogo entre duas

pessoas na roda, a/o capoeirista escolhe um dos/das que estão jogando para jogar com ele/ela.

Para fazer isso, existem algumas regras: a primeira é ir ao pé do berimbau pedir autorização a

quem está com o gunga para comprar o jogo; se permitido, o/a capoeirista busca o momento

mais oportuno para entrar no jogo. Tradicionalmente se compra o jogo com o/a capoeirista

mais graduado/graduada, mas algumas vezes é permitida a quebra desta regra. É importante

deixar claro que, se o jogo comprado estiver „duro‟, o/a capoeirista que comprou terá que

arcar com a responsabilidade, tentando ao máximo não deixar cair a qualidade do jogo.

As rodas são conduzidas tradicionalmente pelo mais graduado naquele espaço, sendo

este o que diz qual toque irá reger a roda. Para falar sobre os toques da capoeira regional,

utilizo a música do Formado Douglas, do grupo Capoeira Nagô, “Toques de Bimba”:

Ô Banguela, Idalina, Amazonas, Cavalaria

Olha Iúna, São Bento Grande, Santa Maria

Todos esses toques são fundamentais

Se você respeita a história de Bimba

Tem que aprender pra não errar

Jogar conforme o toque mandar

8
Na frente do atabaque e do pandeiro, deixando os três berimbaus livres.

23
Seu hino foi a Santa Maria

O toque de alerta a Cavalaria

Iúna restrita para formados, dia de festa, no batizado

São Bento Grande se joga em cima

Idalina um toque de variação

Tem a Banguela, que faz o intermédio

Amazonas o toque de saudação

(grifos nossos)

Tradicionalmente, os toques que regem as rodas do grupo Capoeira Nagô são Banguela e São

Bento Grande. Como fica claro na música supracitada, existem regras no tipo de jogo que

deve ser jogado dependendo do toque do gunga. Para cada um desses toques de capoeira,

existe uma maneira de jogar. O jogo da Banguela é um jogo mais „mandingueiro‟, que

possibilita uma maior quantidade de floreios e de movimentos alongados, que exigem maior

precisão estética. É um jogo bonito de ver, porém é um jogo difícil, que demanda mais

flexibilidade e controle do corpo, apesar de aparentar facilidade. Já o jogo onde o toque é São

Bento Grande, é considerado o momento auge da roda, onde instigação e velocidade estão em

primeiro plano, certamente. É o jogo mais conhecido na capoeira Regional, visto que onde

tem apresentações de capoeira tradicionalmente esse é o toque que rege a roda. Para se jogar

São Bento Grande, é necessário força, gás9, velocidade e bastante habilidade nos golpes e nas

esquivas10. É o jogo onde se mostra a desenvoltura nos saltos e a precisão dos golpes, tanto

que é o tipo de jogo considerado mais „violento‟. Acho necessário deixar registrado aqui que,

ao usar o termo violento entre aspas, compreendo a capoeira como um jogo de perguntas e

9
Dar o gás, ou seja, dar o máximo de si.
10
Movimento usado para desviar dos golpes.

24
respostas. Ao ponderar isso, considerar um jogo mais duro – desde que esteja dentro dos

fundamentos da capoeira – violento é estranho pra mim, enquanto capoeirista.

No que se refere às mulheres, a participação nas rodas é pequena se comparada a dos

homens. Quantitativamente, a frequência de mulheres em rodas – principalmente em rodas de

rua –, se confrontada a de homens, é menor. Qualitativamente, a participação de mulheres nas

rodas se dá, em grande maioria, nos jogos de Banguela, tendo como justificativa de algumas

capoeiristas o fato de não gostar de qualquer tipo de enfrentamento físico. Porém, é estranho

que quase todas as mulheres com quem treinei usem o mesmo argumento. A partir disso,

passei a questionar „o gostar‟ como resposta para essa questão, tal argumento não me pareceu

satisfatório, posto que o gosto tem uma dimensão pessoal, mas também possui uma dimensão

social que se aprende na vida em sociedade.

Uma pergunta me guiou durante todo o trabalho de campo realizado para a construção

deste trabalho: Quais as razões para essa parca presença feminina nas rodas, tanto quantitativa

como qualitativamente, levando em conta que a quantidade de mulheres que treinam é quase

equivalente em comparação aos homens? A resposta de Cordeiro (2010) me interessa

bastante, na medida em que resolve de maneira plausível este „enigma‟. De acordo com

Cordeiro (2010: 17):

“[...] vários preconceitos recaem sobre as mulheres praticantes dessa arte,


principalmente os relacionados à capoeira como prática corporal agonística (de
luta), porquanto considerada ainda “coisa de homem”, de um universo
exclusivamente ou hegemonicamente masculino, que modela corpos e mentes, com
base nesses preceitos, deixando as mulheres masculinizadas. Isso porque
historicamente apartou-se da educação feminina o enfrentamento físico. O corpo
da mulher, na educação formal, deveria ser resguardado principalmente para a
procriação e para os trabalhos ditos “do lar”, espaço este reservado para a
expressão feminina. Essa foi a concepção que predominou até muito recentemente
no Brasil.”(grifos nossos).

25
É importante deixar registrado que as mulheres que frequentam rodas, quando iniciam

algum jogo na roda, levam desvantagem em algumas situações. A primeira é que, quando tem

uma mulher e um homem jogando na roda, é assaz comum que, quando alguém compra o

jogo, tire a mulher. A outra desvantagem vista quotidianamente é o tempo reduzido que tem

para fazer o jogo antes de serem cortadas.

Uma parte na capoeira considerada também importante são os saltos. O que chamo de

salto? O salto é um tipo de movimentação inserida historicamente na capoeira, que não é

obrigatoriamente exercida, mas é geralmente bem vista no universo da capoeira. Existem

vários tipos de saltos, entre os mais conhecidos estão o salto mortal, o aú sem mão, o aú

amazonas. Os saltos são vistos comumente ao iniciar um jogo de São Bento Grande ou em

momentos específicos depois do encerramento dos jogos da roda, num momento específico

quando se cantam músicas que fazem referências aos saltos. São poucas as mulheres que já vi

pulando numa roda de capoeira. Não sei quais são os motivos para que a maioria das mulheres

não salte nas rodas e apresentações de capoeira11, mas é algo que me intriga há bastante

tempo.

Mais um espaço que pode acontecer depois que se encerram os jogos da roda de

capoeira é o samba de roda. Este é momento festivo onde todos que estão na roda podem participar.

A dinâmica é a seguinte: entram na roda um homem e uma mulher e começam a sambar. Para que um

destes saia, é necessário que outro/outra entre para dançar. Se um homem quiser dançar com a mulher

que está na roda, ele entra da roda e tira o outro homem. Para a mulher, a mesma coisa. É necessário

deixar registrado que, algumas músicas tocadas no samba de roda são muito machistas. Para

exemplificar:

11
Este é um tema que chama para outra investigação e possível continuidade deste trabalho com enfoque de
gênero.

26
“Se essa mulher fosse minha eu tirava do samba, já, já

Dava uma surra nela que ela gritava chega

Chega, oh meu amor

Eu vou m'embora prá Minas Gerais eu vou”

(domínio público)

No universo da capoeira, existem mais coisas que poderiam ser minuciosamente

descritas aqui. No entanto, para fazer isso, uma monografia seria pouco. São muitos

ensinamentos aprendidos no dia a dia, que nem sempre são transmitidos de maneira verbal ou

oficial. Acordos tácitos são muito comuns neste universo onde o corpo, os olhares, o

berimbau, a música cantada, a energia e tantas outras coisas nos ensinam como agir de

maneira correta, como caminhar nesse terreno no mínimo encantador.

Neste capítulo, descrevi de maneira detalhada três partes do mundo da capoeira,

especificamente do grupo Capoeira Nagô. Iniciei falando sobre as graduações do grupo, que

requerem tempo de capoeira e dependem da subjetividade de quem ministra os treinos e da

negociação com o mestre. Em seguida, me refiro aos treinos, onde acontecem discriminações

de gênero – de maneira velada – quando se trata de treinar golpes mais perigosos em dupla.

Finalizando este capítulo, descrevo o ritual da roda, vista como objetivo final12 por

capoeiristas e onde a invisibilização da mulher é notória.

No próximo capítulo, intitulado de O 6º Encontro Capoeira Nagô Pernambuco,

discorro sobre como ocorre um encontro de capoeira, sobre a preparação para este e

especialmente sobre o 6º Encontro Capoeira Nagô Pernambuco, onde pude constatar de

maneira mais clara o que descrevo neste capítulo que chega ao final nestas linhas.

12
Informação obtida em entrevista.

27
CAPÍTULO 2 – O 6º ENCONTRO CAPOEIRA NAGÔ PERNAMBUCO

Eu vim pra vadiar no berimbau

Eu vim pra vadiar no jogo

Eu vim pra vadiar no canto e na palma

Eu vim ver capoeira vadiar

(Formado Douglas – Grupo Capoeira Nagô)

Como neste capítulo falo diretamente sobre o 6º Encontro Capoeira Nagô

Pernambuco, dedico-me a partir daqui a detalhar o que acontece nos encontros de capoeira.

Não pretendo aqui abarcar todos, visto que cada um destes encontros tem suas singularidades,

e variam de grupo para grupo. No entanto, algumas coisas acontecem em todos eles, como a

roda de abertura, o batizado e a troca de cordas.

2.1 – OS ENCONTROS

A preparação de um encontro requer grande dedicação por parte de quem está

organizando, já que não existe uma verba para que este ocorra, exigindo a busca por

patrocínios e apoios financeiros. Para quem é capoeirista, este é o momento máximo, quando

ocorrerá o batizado e a troca de cordas. É o espaço de trocas de experiências com outros

capoeiristas do seu grupo, ou não, que moram em outros estados e países e com capoeiristas

locais. É um espaço em princípio festivo, onde todos os esforços dos treinos e rodas de um

ano serão recompensados.

28
Os encontros do grupo Capoeira Nagô acontecem habitualmente a cada ano13. Esses

encontros têm uma programação pré-definida, contando com rodas de rua, aulões e o evento

público, de batizado e trocas de corda. Nas rodas de rua, conta-se com os/as capoeiristas do

grupo e de grupos convidados. Os aulões acontecem comumente com a presença de mestres,

contramestres, professores, formados e graduados convidados, que se revezam para passar

movimentos novos para os/as capoeiristas, e no final destes, acontecem rodas com a

participação de todos/todas.

O evento público é o que considero o momento mais importante do ano capoeirístico.

É o momento em que a/o iniciante – que passou por momentos difíceis como as dores no

corpo causadas por grande esforço físico, e também por momentos mágicos como acertar o

seu primeiro movimento considerado difícil – será reconhecido enquanto capoeirista,

oficialmente. Este ritual de iniciação é o que chamamos de batizado. Para os que já passaram

por esse rito, outra cerimônia acontece no evento, que é a troca de cordas. Na troca de cordas,

o/a capoeirista aumenta a sua graduação na sequência ordinal (da primeira para a segunda

corda, da segunda para a terceira corda, e assim em diante). É um momento bem especial para

cada capoeirista, que traz consigo muita ansiedade e certo medo de “a corda pesar” 14.

Tanto no batizado quanto para a troca de cordas, o ritual é o mesmo. Funciona como

uma roda, porém as pessoas que podem jogar são as que estão sendo batizadas com os/as

capoeiristas mais antigos/antigas, a partir dos graduados e das graduadas. Para as trocas de

corda, segue-se a ordem de graduação, primeiro jogam os que passarão para a segunda corda,
13
Alguns grupos fazem batizados e trocas de corda semestralmente. Estes grupos são criticados no universo da
capoeira, sofrendo acusações fazer da capoeira “um comércio, no sentido negativo” (PAIVA, 2007: 75). Para
saber mais, ler “A Capoeira e os Mestres”, tese de doutorado de Ilnete Porpino de Paiva.
14
Quando a graduação é maior que sua habilidade enquanto capoeirista. É necessário notificar que esse conceito
é muito mais de autocobrança do que uma cobrança externa, visto que se o professor avalia que o/a capoeirista
tem condições de aumentar sua graduação, ele tem autoridade para fazê-lo. Quando isso não acontece, o
professor tem como obrigação informar anteriormente à/ao capoeirista sua impossibilidade de trocar de corda.

29
depois os que passarão para a terceira corda, e assim por diante. Após os jogos, os capoeiristas

mais graduados que jogaram entregam as cordas para os recém batizados ou que acabaram de

mudar de corda.

A diferença que existe nos dois rituais é entre os toques que regem a roda. No

momento do batizado e na primeira troca de corda, o gunga toca normalmente uma Banguela

cadenciada, para dar mais segurança aos novos capoeiristas. A partir da segunda troca de

corda, onde a/o capoeirista pegará a terceira corda, o gunga passa a tocar São Bento Grande.

Com isso, o/a capoeirista passa a ter que demonstrar uma maior habilidade com os

movimentos rápidos e com a precisão dos golpes.

2.2 – A PREPARAÇÃO PARA O ENCONTRO

Após três semanas do início do trabalho de campo, o professor informou que estava

programando o 6º Encontro Capoeira Nagô Pernambuco, que ocorreu nos dias 09 e 10 de

abril em Pernambuco e no dia 11 de abril de 2010 em Campina Grande, Paraíba15. A partir de

então, os treinos passaram a se focar para este encontro.

Durante o mês de janeiro e início de fevereiro (antes do carnaval), os treinos estavam

acontecendo com o foco menos intenso com relação ao Encontro. Após o carnaval, o

Encontro foi posto como objetivo principal dos treinos, visivelmente. A grande preocupação

dos treinos era com as performances que seriam apresentadas no evento, tornando os treinos

mais técnicos, velozes e agressivos, na medida em que a maior parte das rodas do evento

15
Refiro-me ao encontro em Campina Grande apenas como dado, pois não farei análise sobre o mesmo.

30
seriam regidas pelo toque São Bento Grande, o toque que permite um jogo mais veloz e

„violento‟.

Durante os treinos, a cobrança pra dar o gás (ou seja, dar o máximo de si) foi

aumentando a cada semana que se aproximava do evento. Ao final do último treino, já na

semana do evento, no dia 06 de abril, o professor conversou conosco para passar algumas

„recomendações‟ de comportamento nas rodas de rua e no decorrer do evento.

Nessa conversa, em todo momento ele se referiu aos capoeiristas homens. A partir

dessa conversa foi que tive o „insight‟ de como se dão as relações entre homens e mulheres na

capoeira. Nos treinos, o tratamento para homens e mulheres é quase similar, com as

desigualdades de gênero sendo vistas com menor frequência e em momentos específicos,

acontecendo principalmente quando treinamos golpes mais perigosos, com possibilidade de

machucar fisicamente16. Entretanto, nos espaços públicos e de divulgação da capoeira, a

invisibilidade da mulher capoeirista torna-se mais evidente favorecendo a observação das

relações de gênero e podendo também iluminar os processos que ocorrem nos treinos.

16
As discriminações acontecem nas escolhas de com quem treinar esse tipo de golpe. Homens treinam com
homens, e mulheres com mulheres.

31
2.3 – O EVENTO

O Encontro foi organizado oficialmente por três homens do grupo: estagiário Tacinho,

graduado Guinho e formado Douglas, que estava coordenando o evento. Eram estes os

responsáveis pelo encontro, que distribuíam as tarefas e corriam atrás dos itens necessários

para a realização deste, como os patrocínios que financiaram o evento.

Porém, por detrás das cortinas, mais pessoas estavam envolvidas direta e indiretamente para a

concretização deste evento. E é neste espaço onde as mulheres são vistas. Para abalizar esta

informação, cito Gaby, uma das entrevistadas que, ao ser perguntada sobre as posições que as

mulheres ocupam na capoeira, falou sobre essa presença por trás das cortinas e de como esse

papel não é valorizado:

Esse papel é muito importante e ele é muito esquecido, né. A gente vê,
por exemplo, um batizado não se fala muito das esposas ou das
pessoas que estão por trás da suposta cortina.

No decorrer do Encontro, a colaboração para que tudo acontecesse como planejado foi geral,

afinal o evento foi feito para todos e todas capoeiristas do grupo Capoeira Nagô Pernambuco

e seus convidados. Os convidados do encontro foram escolhidos pelo coordenador do evento,

e são estes: Mestre Pequinês, mestre do grupo Capoeira Nagô e supervisor do encontro;

Formado Kalunga – de Goiânia-GO, Formado David – de Anápolis-GO, Graduado Mancha –

de Goiânia-GO, os três fazem parte do grupo Capoeira Nagô; e o Formado Biliu – Brasília-

DF, que faz parte do grupo Candeias. Todos os convidados vieram para ministrar treinos,

aulões e para ajudar no decorrer do evento.

32
Para o Encontro, algumas atividades estavam previstas na programação17, como a

realização de dois aulões, rodas de rua, curso com Mestre Pequinês, além do batizado e troca

de cordas. Na programação que foi divulgada, este começaria o dia nove de abril (sexta-feira).

Porém, a partir da chegada dos primeiros convidados do evento, o Formado Douglas

(coordenador do 6º Encontro Capoeira Nagô Pernambuco) decidiu começar antes do previsto.

De fato, a preparação para este evento já havia começado desde o final do carnaval, quando os

treinos começaram a ficar mais focados para a realização deste Encontro, então começar o

evento dois dias antes do previsto não era nada de mais, e não prejudicou a programação já

prevista.

No dia sete de abril (quarta-feira), aconteceu uma roda de rua – a roda de abertura do

6º Encontro Capoeira Nagô Pernambuco – no bairro de Candeias para receber o Mestre do

grupo Capoeira Nagô, Mestre Pequinês e o Graduado Mancha (oitava corda), do grupo

Capoeira Nagô de Goiânia-GO e o Formado Biliu, do grupo Candeias de Brasília-DF, que

chegaram para participar do evento. A roda começou com mais ou menos quarenta pessoas,

sendo que destas apenas sete eram mulheres. A bateria começou com apenas uma mulher, que

estava tocando o pandeiro. Após mais ou menos dez minutos, tinham duas mulheres na

bateria, entretanto nenhuma estava tocando o gunga. Ainda falando da bateria, quando um dos

capoeiristas entregou o berimbau a uma mulher, esta começou a cantar uma música e outro

capoeirista tentou atravessar para cantar no lugar dela, no entanto ela prosseguiu sem abrir

mão de cantar. Porém, depois de um minuto outro capoeirista começou a cantar outra música,

mas pelo menos não atravessou.

17
Programação em anexo.

33
A roda começou com o toque da Banguela, que é mais cadenciada e dá mais

possibilidade de floreios e movimentações alongadas. O primeiro jogo com uma mulher

aconteceu após vinte minutos do início da roda e durou menos de um minuto. O segundo jogo

foi de duas mulheres, e a cena se repete; com menos de um minuto as duas mulheres tem seu

jogo comprado. Os jogos feitos por homens duraram em média dois minutos cada, e foram

uma sequência de demonstrações de agressividade. A agressividade apareceu nos primeiros

momentos da roda, e enquanto ela durou, não houve retorno para algum tipo de leveza nos

jogos. O mestre do grupo Capoeira Nagô, Mestre Pequinês, parou a roda duas vezes pra dar

pito coletivo, sendo a última delas pra falar de algo que chamei de „hierarquia geracional‟,

falando do respeito pelas pessoas mais velhas e pelas pessoas que ocupam os altos postos na

hierarquia capoeirística18.

Depois disso, o toque que rege a roda muda para São Bento Grande, que é o toque

onde o jogo fica mais veloz e „violento‟. O primeiro jogo nessa sequência é de uma mulher

com um capoeirista, e ela consegue passar um tempo até razoável jogando, mas na hora de

alguém comprar o jogo, mais uma vez o jogo foi comprado para jogar com o homem. Após

esses jogos, o Formado Douglas (coordenador do evento) disse que era a vez do pessoal mais

novo jogar. A partir disso, as outras mulheres que estavam na roda puderam jogar mais, mas

passando muito pouco tempo antes de terem seus jogos comprados.

O último momento da roda foi o dos saltos, onde apenas três mulheres pularam, sendo

que uma delas é uma garota com cerca de doze anos.

No dia oito de abril (quinta-feira), o Graduado Mancha ministrou o treino, a convite do

Formado Douglas, e esse treino foi seguido de uma roda para dar as boas vindas ao Formado

18
Este é um tema que chama para outra investigação e possível continuidade deste trabalho com enfoque de
gênero.

34
Kalunga, do grupo Capoeira Nagô de Goiânia-GO. Esse treino, onde estavam presentes

apenas capoeiristas do grupo Capoeira Nagô, aconteceu dentro dos conformes, sem nenhum

fato específico que precise ser citado aqui. Já a roda...

A roda deste dia foi muito boa, instigante e bastante proveitosa para a observação.

Como estávamos entre pessoas conhecidas, imaginei que esta roda seria mais „tranquila‟ e que

todos/todas conseguiriam jogar sem grandes percalços. Não foi isso que aconteceu.

Aconteceram situações análogas a roda do dia anterior, com exceção do pito coletivo do

Mestre Pequinês. A agressividade foi vista nos jogos com frequência, as mulheres não

conseguiram desenvolver seus jogos de maneira satisfatória sem serem cortadas, e nenhuma

mulher tocou o gunga. Ao final desta roda, o Mestre conversou conosco de maneira bastante

afável, explicando que gostava do tipo dos jogos que foram feitos e que capoeira também era

aquilo.

No dia seguinte (nove de abril), a programação começou bem cedo. Pela manhã

fizemos uma apresentação numa escola municipal no bairro de Candeias, contando com a

participação dos convidados do evento, com exceção do Mestre Pequinês. Foi um momento

mágico, onde as crianças aprenderam algumas movimentações da capoeira, como a ginga e as

esquivas. Após esse momento, aconteceu uma roda enfim amistosa. Pude perceber nesta roda,

que contou com a participação de crianças da escola, que cada roda tem sua especificidade e

que esta está sujeita ao que é permitido naquele espaço, e já que estávamos num espaço

escolar, com crianças participando, não seria adequada uma roda com jogos mais duros ali.

Após esta roda, aconteceu um samba de roda.

Na noite do mesmo dia, aconteceu uma roda de rua no bairro de Candeias. A roda

começou com atraso, e com um clima de tensão. Esta roda contou com a participação de

35
vários grupos distintos, e apresentava mais ou menos cinquenta pessoas, destas dez eram

mulheres. A roda durou por volta de uma hora e meia, com jogos bonitos e outros nem tanto.

Aconteceram alguns jogos com muita violência19, o que deixou grande parte dos/das

capoeiristas temerosos/as em entrar para jogar. Nesta roda, a maioria das pessoas que jogaram

eram homens, no mínimo, alunos veteranos. A participação de mulheres na roda foi ínfima,

visto que apenas uma mulher jogou na roda, e fez somente um jogo.

Chega, enfim, o grande dia: o dia do batizado e troca de cordas. Neste dia, aconteceu

pela manhã um curso na quadra esportiva do Colégio Paulo Paiva, localizado em Candeias-

Jaboatão dos Guararapes. O curso foi ministrado pelo Mestre Pequinês, e durou uma hora e

meia. Em seguida aconteceu a roda do aulão, que foi tranquila e de jogos bem jogados, com

uma plasticidade bela de ser vista e dentro dos fundamentos da capoeira. Mais uma vez, a

participação de mulheres foi reduzida e em certa medida, invisibilizada. É difícil participar de

uma roda quando não tem espaço para isso.

Após o curso, aconteceu o evento principal do 6º Encontro Capoeira Nagô

Pernambuco: o batizado e a troca de cordas. Esse evento aconteceu no teatro do Colégio

Souza Leão, por volta das 16h. Nesse momento especificamente, outros grupos foram

convidados a participar do evento, cerca de 30 pessoas. Mestres, contramestres, professores,

formados, graduados e estagiários de outros grupos de capoeira enriqueceram o evento.

Quantos destes convidados eram mulheres? Nenhum. As mulheres que participaram deste

evento eram as alunas, como eu, que estavam ali para trocar de corda ou para colaborar com o

evento de alguma forma. Foi interessante constatar isso para este trabalho, no entanto esse

dado me entristece muito enquanto capoeirista e enquanto feminista, já que gostaria que o

19
Neste caso, retiro as aspas da palavra violência, pois aconteceram jogos duros que desrespeitaram os
fundamentos capoeirísticos.

36
reconhecimento de mulheres no mundo da capoeira fosse equivalente ao dos homens, pois

existem muitas mulheres capoeiristas que fazem grandes trabalhos para a capoeira, enquanto

professoras de capoeira, pesquisadoras da capoeira, cantadoras nas rodas de todo o mundo.

37
CONSIDERAÇÕES FINAIS, QUE NEM SÃO TÃO FINAIS ASSIM

De acordo com Joan Scott, “gênero é uma forma primeira de significar as relações de

poder”, isto é, as relações de gênero servem também para distribuir o poder e dar sentido ao

mesmo nas mais diferentes relações. É assim que as relações políticas são significadas por

gênero, as relações nos esportes e no caso da capoeira também. Mas a distribuição de poder

não precisa ser necessariamente assimétrica e nem pender para os homens ou para as

mulheres. No caso aqui analisado e na sociedade brasileira no seu conjunto, o que ocorre é

que as relações de gênero observadas são assimétricas e trazem consigo uma discriminação e

opressão sobre as mulheres, que acarretam em prejuízos para nós de maneira visível ou

velada.

Poder-se-ia pensar que na capoeira seria diferente, porque a capoeira surgiu como

instrumento de libertação de uma minoria, a população negra, seguiu sendo proibida até 1937

e considerada vadiagem (Brito, 2007), permanecendo os preconceitos contra os/as

capoeiristas até hoje. Mas não foi isso que ocorreu. A capoeira excluiu as mulheres por muito

tempo, era um jogo predominantemente de homens. As mulheres entraram nesta seara faz

pouco tempo, inicialmente pensou-se que suas relações com os homens teriam uma dimensão

igualitária. Entretanto, como visto aqui, esta igualdade ainda precisa ser alcançada. Foi uma

grande conquista das mulheres entrarem na capoeira, mas muitas conquistas ainda precisam

ser feitas.

Isto ocorre porque as representações do masculino dentro da capoeira dificultam as

possibilidades de igualdade de gênero nos espaços públicos e de troca capoeirística.

38
Nos treinos, as oportunidades de desenvolvimento da mulher capoeirista são similares

à dos homens capoeiristas, com exceção dos treinos de golpes mais perigosos, onde treinar

com pessoas do sexo oposto só acontece por falta de opção, e onde as mulheres capoeiristas

que foram observadas não se dedicam com tanto afinco, dizendo que não gostam desse tipo de

treino. No entanto, sabemos que “historicamente apartou-se da educação feminina o

enfrentamento físico” (CORDEIRO, 2010).

Nas rodas, sejam elas de rua ou de academia, as mulheres não tem igualdade de

oportunidades para desenvolver os seus jogos, tendo os seus jogos comprados antes de

poderem fazê-los de maneira satisfatória. Nos momentos considerados como auge da roda,

não são mulheres que estão jogando. Ver uma mulher tocando o gunga é coisa rara, as

mulheres quando estão na bateria, são vistas na parte complementar, não menos importante,

no entanto com uma relevância menor.

Ou, como me disse um dos entrevistados:

“(...) tem um papel da mulher na capoeira que eu acho bastante interessante, é


suavizar. Onde você vai olhar uma roda de capoeira que tem mulher, você já vê de
maneira diferente aquele grupo de pessoas (...)”.

Em síntese, as relações de gênero dentro da capoeira são similares ao que vivemos na

sociedade brasileira. Alguns avanços podem ser vistos, e aconteceram com muita luta, com

disputa de espaço. Nada nos foi cedido de bom grado. Porém, as conquistas alcançadas não

resolveram todas as discriminações vividas no cotidiano. Nas rodas do nosso cotidiano, ainda

nos „compram o jogo‟ e nos tiram antes de desenvolvermos os nossos jogos de maneira que

nos satisfaça.

39
REFERÊNCIAS

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ALBERNAZ, Lady Selma Ferreira. Feminismo até certo ponto! Representações do


feminismo no contexto das práticas profissionais e de gênero. 1996. Dissertação (Mestrado
em Antropologia) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE.

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Chambliss Hoffnagel. (Org.). Pensando família, gênero e sexualidade. Recife: Ed.
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PAIVA, Ilnete Porpino de. A capoeira e os mestres. 2007. Tese (Doutorado em Ciências
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40
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SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para a análise histórica. Recife, SOS Corpo –
Gênero e Cidadania, 1995.

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SOARES, Carlos Eugênio Líbano. A capoeira escrava e outras tradições rebeldes no


Rio de Janeiro (1808 – 1850). Campinas: UNICAMP: Centro de Pesquisa em História
Social da Cultura, 2001.

STRATHERN, Marilyn. O gênero da dádiva: problemas com as mulheres e problemas


com a sociedade na Melanésia. Campinas: UNICAMP. 2006.

41
ANEXO A – ROTEIRO DE ENTREVISTAS

Nome

Idade

Grupo do qual faz parte

Estado e cidade do grupo

1. Como você conheceu a capoeira?

2. Há quanto tempo você faz capoeira?

3. Por que você começou a fazer capoeira?

4. Para você O que é capoeira?

5. Como você define O que é ser capoeirista?

6. Para você O que é necessário pra ser considerado um bom capoeirista?

7. Quais são as posições que existem dentro da capoeira?

8. Quais delas as mulheres ocupam? Por que é assim?

9. Qual posição você acha adequada para mulher? Por quê?

10. Qual posição você acha que ela não deve ocupar? Por quê?

11. Numa roda de capoeira como é a participação de homens e mulheres? Caso não saiba
responder, exemplifique: Por exemplo, quem fica no centro da roda mais vezes, as
mulheres começam ou podem encerrar, quando é o ponto alto da roda, neste momento
é um homem ou uma mulher que está no centro da cena?

12. Você conhece mais homens ou mais mulheres na capoeira?

13. O que você pensa sobre as mulheres que fazem capoeira?

14. E sobre os homens?

15. Sobre o que conversamos você gostaria de dizer mais alguma coisa e que eu não
perguntei ou que a nossa conversa lhe fez lembrar?

Muito obrigada!

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ANEXO B – PROGRAMAÇÃO DO 6º ENCONTRO CAPOEIRA NAGÔ PERNAMBUCO

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ANEXO C – FOTOS DO 6º ENCONTRO CAPOEIRA NAGÔ PERNAMBUCO

F IGURA 2: T REINO COM O F ORMADO KALUNGA (08.04.2010)

FONTE: JOÃO LYRA

F IGURA 3: F ORMADO KALUNGA DEMONSTRANDO UM MOVIMENTO (08.04.2010)

F ONTE : J OÃO L YRA

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F IGURA 4: O MEU MESTRE QUER VER VOCÊ BALANÇAR ( JOGANDO COM M ESTRE P EQUINÊS EM
10.04.2010)

FONTE: PAULA BEZERRA

F IGURA 5: A RODA É BOA (10.04.2010)

F ONTE : J OÃO L YRA

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