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RESUMO
O presente estudo tem como objetivo analisar se o procedimento de doação de órgãos e
tecidos adotado pelo Brasil resguarda os direitos da personalidade do potencial doador. Para
isso, a pesquisa traçou conceitos gerais sobre o Biodireito, a evolução das ciências médicas e
a importância da preservação da dignidade humana em todos os procedimentos concernentes
à disponibilização do corpo humano. Em seguida, o trabalho analisa o histórico das
legislações brasileiras sobre doação de órgãos e tecidos e discorre os mandamentos nucleares
da legislação vigente, para, desse modo, debater o direito à realização de transplante de órgãos
e tecidos como um dos direitos da personalidade. A lei 9.434 de 1997 é plausível, entretanto
silencia a vontade do potencial doador, visto que deixa a última palavra à família em relação à
retirada dos órgãos e tecidos post mortem. Os direitos da personalidade, garantidos
constitucionalmente, são manifestação dos direitos fundamentais e, seguramente, abrangem o
direito à disponibilização do corpo ou de partes do corpo, vivo ou morto, respeitados os
limites abalizados pelo ordenamento jurídico.
INTRODUÇÃO
1
Artigo científico elaborado na disciplina de Medicina Legal do Curso de Direito do Instituto Cenecista de
Ensino Superior de Santo Ângelo - IESA, sob orientação da Professora Clarissa Bohrer.
2
Acadêmica do 4° período do Curso de Direito do IESA. E-mail: bruh_sebastianyb2@hotmail.com.
3
Acadêmico do 4° período do Curso de Direito do IESA. E-mail: carlosfvs@gmail.com.
4
Acadêmica do 4° período do Curso de Direito do IESA. E-mail: jaquelinereg@hotmail.com.
5
Acadêmica do 4° período do Curso de Direito do IESA. E-mail: tatilowe@hotmail.com.
6
Acadêmica do 4° período do Curso de Direito do IESA. E-mail: viitoriadamiao@gmail.com.
de certos limites legais e constitucionais, com o intuito de preservar valores superiores e
solidários dentro da sociedade. Logo, o direito ao corpo vivo ou ao cadáver integra a
personalidade do indivíduo, isto é, configura-se como um direito personalíssimo. No que
concerne à forma de obtenção de órgãos e tecidos, questões relevantes como a espontaneidade
no ato de doar e o respeito à vontade expressada, carecem ser resguardadas pelas ordenações
jurídicas contemporâneas.
O presente artigo tem como finalidade investigar o processo de doação de órgãos e
tecidos dentro do ordenamento jurídico brasileiro, tendo como enfoque principal a análise da
preservação da vontade de “doar” ou “não doar” expressada pelo indivíduo em vida. Para
tanto, o trabalho contempla, no primeiro momento, breves considerações sobre a evolução das
ciências da vida, o Biodireito e a dignidade humana como mandamento nuclear do Direito
moderno. Em seguida, o estudo percorre brevemente as legislações brasileiras sobre doação
de órgãos e tecidos, traçando também as principais perspectivas da legislação vigente, para
assim chegar ao ponto decisivo do trabalho, que é a analise do direito ao corpo como um dos
direitos da personalidade. A pesquisa procura demostrar, em conformidade com a doutrina
moderna, que o ato de disposição de partes do corpo humano, vivo ou morto, deve, em
primeiro lugar, considerar a volição do disponente, sob pena de violar direitos fundamentais
da personalidade humana.
Usando como base a classificação de Rita de Cássia Curvo Leite (2000), Marconi do
Ó Catão (2004) e Maria Helena Diniz (2006), pode-se classificar as modalidades de
transplantes existente em: autotransplante, xenotransplante, isotransplante e alotransplante.
No autotransplante o paciente é doador e receptor ao mesmo tempo, ou seja, transferem-se
órgãos ou tecidos de um lugar a outro na mesma pessoa. Tal modalidade pode acontecer com
a simples concordância do paciente, quando for capaz. O xenotransplante ocorre quando se
transfere órgão ou tecido animal a um ser humano. De outro modo, o isotransplante é aquele
que se dá entre pessoas com características genéticas idênticas, é o caso de gêmeos
univitelinos, por exemplo. Por fim, o alotransplante ocorre quando o doador, que pode estar
vivo ou morto, não tem as mesmas características do receptor.
A cirurgia de transplante de órgãos e tecidos com finalidade terapêutica é um ato de
disposição que envolve, pelo menos, dois sujeitos: o doador e o receptor. Um deles dispõe de
seu corpo ou parte dele, em vida ou post mortem, e o outro recebe em vida com objetivos
específicos de tratamento de saúde e manutenção da vida. Ora, para que se doe, e também
para que se receba, é necessária a manifestação positiva de vontade.
Para alguns autores, como Aline Mignon Almeida (2000), tal legislação já foi criada
condenada ao fracasso, tendo em vista que a sociedade brasileira não tinha nenhum
conhecimento sobre a retirada de órgãos para doação e, ainda, muitos tinham medo de ficar
doentes e serem mortos dentro do hospital para a coleta de seus órgãos. Outrossim, a norma
feria o direito ao próprio corpo, que é um direito personalíssimo, no qual nem o próprio
Estado tem legitimidade para atingir, da mesma maneira que ofendia outros direitos da
personalidade, como, por exemplo, a própria liberdade.
Distintamente, para outros estudiosos, a lei que estabelecia o consentimento presumido
do doador, quando não existisse manifestação em contrário, certificava a importância do
direito à saúde e a solidariedade, argumentando que na vida em sociedade cada um tem o
dever um participar e contribuir de forma solidária. De acordo com Nanni (1999), a doação de
órgãos é uma forma de participação solidária, já que doar partes do corpo que se tornam
inúteis após o falecimento é uma forma de salvaguardar o direito fundamental à vida.
Diante de muitos conflitos populares foi editada a Medida Provisória nº 1.718 em
1998 que modificou a lei 9.434/97, fixando que na ausência da manifestação da vontade do de
cujus, podem o pai, a mãe, filho ou cônjuge manifestar-se contra à doação, ou seja, se o
potencial doador não tivesse expressado sua vontade de doar em vida, a família deveria ser
consultada. A lei nº 10.211 de março de 2001 oficialmente modificou a lei 9.434/97,
instituindo a obrigatoriedade de consulta à família da pessoa falecida, mesmo que essa tenha
manifestado de forma expressa a vontade de ser doadora post mortem de órgãos e tecidos, o
que também causa muita divergência e será debatido no próximo tópico. A redação atual do
artigo 4° da lei assevera que a retirada dependerá da autorização do cônjuge ou parente, maior
de idade, obedecida a linha sucessória, reta ou colateral, até o segundo grau, firmada em
documento subscrito por duas testemunhas presentes à verificação da morte.
Vale ressaltar alguns pontos importantes da lei 9.434/97 que dispõe sobre doação de
órgãos, tecidos e partes do corpo humano dentro do território brasileiro, em vigor atualmente.
A lei citada encontra alicerce na Constituição Federal, no art. 199, § 4°, e nos artigos 13, 14 e
15. O Código Civil de 2002 autoriza a disposição do próprio corpo para fins de transplante,
bem como a disposição gratuita do próprio corpo com objetivo cientifico ou altruístico, no
todo ou em parte, para depois da morte, assegurando ainda que o ato de disposição pode ser
revogado a qualquer tempo. Indispensável salientar que a comercialização de órgãos e tecidos
do corpo humano, vivo ou morto, é terminantemente vedada pelo texto constitucional.
A lei 9.434/97 estabelece que a realização de transplantes ou enxertos de partes do
corpo humano, órgãos ou tecidos poderá ser realizado por estabelecimento de saúde, público
ou privado, por equipes médico-cirúrgicas de remoção previamente autorizadas pelo órgão de
gestão nacional do Sistema Único de Saúde (SUS). A retirada de órgãos ou tecidos post
mortem será precedida, necessariamente, de diagnostico de morte encefálica, que deve ser
constatada e registrada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e
transplante, mediante utilização de critérios clínicos definidos pela resolução 1.480/1997 do
Conselho Federal de Medicina.
A resolução define que a morte encefálica será caracterizada através de exames
clínicos e complementares durante intervalos de tempos variáveis e próprios para cada faxa
etária. O art. 5° da resolução determina os intervalos mínimos entre as duas avaliações
clínicas necessárias para a caracterização da morte encefálica, de acordo com a idade da
pessoa: de 7 dias a 12 meses incompletos – 48 horas; de 2 meses a 1 ano incompleto – 24
horas; de 1 ano a 2 anos incompletos – 12 horas; acima de 2 anos – 6 horas. Além disso, tais
exames complementares para a comprovação da morte encefálica devem demostrar de forma
inequívoca a ausência de atividade elétrica cerebral ou ausência de atividade metabólica
cerebral ou a ausência de perfusão sanguínea cerebral. A lei ainda admite a presença de um
médico de confiança da família do falecido no ato da comprovação da morte encefálica,
justamente para dar a total segurança aos familiares no que tange ao procedimento. Aqui o
legislador também teve a intenção de dificultar o tráfico de órgãos e tecidos.
A morte encefálica pode ser claramente diagnosticada e documentada através do
exame da circulação cerebral, realizado com técnicas extremamente seguras, embora
existam opiniões contrárias, justificando a opção de pessoas leigas pela não doação
dos órgãos. Por algum tempo, as condições de circulação sanguínea e de respiração
da pessoa acidentada poderão ser mantidas por meios artificiais, até que seja
viabilizada a remoção dos órgãos para transplante. Entretanto, ela já está morta
(OLIVEIRA; SPENGLER NETO, 2014, p. 64).
Antônio Chaves (1986) enfatiza que o corpo é algo que a pessoa é, e não que a pessoa
tem, ou seja, o corpo não é, de forma alguma, patrimonial. Logo, o direito ao próprio corpo
também não se concebe como patrimonial, mas sim pessoal e de caráter especial, tendo por
substância a sua livre disposição, dentro dos limites estabelecidos pela legislação vigente.
Nanni ensina que “o cadáver é o prolongamento da pessoa humana, não estando à disposição
de terceiros, com exceção se assim deliberar a pessoa” (1999, p. 283). Apesar disso, o
diploma legal que trata da doação de órgãos, tecidos e partes do corpo humano limita, em
certa medida, a autonomia e a vontade do falecido potencial doador, pois a lei deixa a ultima
palavra, no que se refere à doação post mortem, para a família do falecido.
Para que os direitos fundamentais do doador não sejam violados, se faz necessário
analisar em que medida a vontade do falecido é concretamente respeitada pelo Estado e pelos
próprios familiares. É preciso atentar para o fato de que os direitos da personalidade são
intransmissíveis e irrenunciáveis, segundo o código civil, e, segundo a doutrina, são
indisponíveis, imprescritíveis, extrapatrimoniais e intangíveis pelo Estado. A partir da analise
fria da letra da lei, art. 4° da lei 9.434/97, pode-se depreender que ainda quando em vida o
indivíduo tenha manifestado expressamente sua vontade de doar órgãos e tecidos a
autorização para a retirada depende exclusivamente da família, visto que as consignas feitas
nos documentos – “doador de órgãos” ou “não doador de órgãos” – não tem mais validade
legal. Em momento algum a lei reserva espaço para a vontade do falecido.
Sem dúvida, a aplicação pura da legislação em discussão estará encarcerando a
liberdade, a vontade e a autonomia do indivíduo. O pedido para a doação de órgãos do
paciente à família acontece, geralmente, logo após a constatação da morte encefálica,
momento em que a família está conturbada, tomada pelo medo e pela incerteza. Mesmo
sabendo da vontade do falecido em ser um doador post mortem, nessa situação, a família não
terá condições para tomar uma decisão totalmente autônoma em razão do estado de
vulnerabilidade no qual se encontram. O Código Civil de 2002 é claro em seu art. 14: é
validade a disposição gratuita do próprio corpo para fins científicos ou altruísticos, no todo ou
em parte, para depois da morte. Com isso, é indiscutível que a disposição do corpo vivo ou do
cadáver é um direito personalíssimo, devendo ser exercício pelo titular desse direito.
Como a lei 9.434/97, em sua literalidade, ceifa a autonomia da vontade do individuo,
foi aprovado em 2006, na IV Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal o
enunciado 277, que trata da prevalência da manifestação da vontade do doador de órgãos. De
acordo com o enunciado, a manifestação expressa do doador em vida deve prevalecer sobre a
vontade dos familiares, logo, a aplicação do art. 4° da lei 9.434/97 fica restrita à hipótese de
silêncio do potencial doador.
A tese levantada pela IV Jornada de Direito Civil vai totalmente de encontro com toda
a doutrina moderna, dado que os direitos da personalidade são direitos fundamentais, e devem
ser respeitados integralmente por todas as instituições sociais. Indubitavelmente que na
doação de órgãos e tecidos, seja em vida, seja após a morte, a vontade do doador deve ser
preservada ao máximo, pois a disposição de seu corpo é um direito personalíssimo, devendo o
Direito respeitar apenas estabelecer limitações que visem preservar à integridade e à vida.
Alaércio Cardoso postula que:
o sujeito tem o direito subjetivo personalíssimo de dispor de seu próprio corpo ou
apenas parte dele, com efeitos post mortem, caracterizando esse ato de disposição
negócio jurídico extrapatrimonial, decorrente do exercício da autonomia privada,
sujeito às limitações e condições impostas pelo ordenamento jurídico (CARDOSO,
2002, p. 229)
CONCLUSÃO
Nos dias que correm a humanidade conta com irrestritas condições racionais para
tutelar a vida, o que não era integralmente possível no passado. A legislação brasileira que
trata da doação de órgãos e tecidos em vigor é prospera e visa dar a maior segurança em todo
o procedimento, tanto ao doador, quanto ao receptor e às famílias. Contudo, a lei 9434 de
1997, em seu artigo 4°, fere a autonomia e a vontade do indivíduo potencial doador ao afirmar
que a doação de órgãos e tecidos post mortem depende de autorização do conjunge ou
parente, maior de idade, obedecida a ordem sucessória, em linha reta ou colateral, até o
segundo grau. O consentimento é um elemento central nos atos de disposição corporal e
emana dos direitos fundamentais à liberdade, à autonomia e à autodeterminação.
Diante do exposto, é inegável que a vontade do indivíduo é fundamental no
procedimento de retirada de órgãos e, por isso, deve ser integralmente respeitada quando
manifestada em vida. O documento legal teria de ser alterado, a fim de respeitar a dignidade
humana e os direitos da personalidade constitucionalmente protegidos e para compatibilizar-
se com os demais documentos jurídicos que salvaguardam os direitos da personalidade. A
família deve ser ouvida e considerada somente quando o falecido não tenha se manifestado
expressamente em vida favorável ou contrariamente à doação de órgãos e tecidos após sua
morte. O direito a realização de transplante de órgãos e tecidos é, sem duvida, um dos direitos
da personalidade e deve ser exercido consoante com os limites demarcados pela estrutura
jurídica vigente.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Aline Mignon. Bioética e Biodireito. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2000.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. 51. ed. São Paulo:
Saraiva, 2015.
DINIZ, Maria Helena. O Estado Atual do Biodireito. São Paulo: Editora Saraiva, 3ª edição,
2006.
MALUF, Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus Maluf. Curso de Bioética e Biodireito. 2.
ed. São Paulo: Editora Atlas, 2013.
NANNI, Giovanni Ettore. A autonomia privada sobre o próprio corpo, cadáver, os órgãos e
tecidos diante da Lei Federal nº. 9.3434/97 e a Constituição Federal. In: LOTUFO, Renan
(coord.). Direito Civil Constitucional: caderno 1. São Paulo: Max Limonad, 1999.
SÁ, Maria de Fátima Freire de. Biodireito e direito ao próprio corpo: doação de órgãos,
incluindo o estudo da Lei n. 9.434/97, com as alterações introduzidas pela Lei n. 10.211/01. 2.
ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.
SÉGUIM, Élida. Biodireito. 4. ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Júris, 2005.