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HERZFELD, Michael. 1997. Cultural In- do autor seja ainda mais notável: como
timacy: Social Poetics in the Nation- se sabe, os principais desenvolvimentos
State. New York/London: Routledge. do “mediterranismo” sublinham exata-
226 pp. mente o papel de valores, como “hon-
ra” e “vergonha”, na singularização do
que seria esse “tipo” de sociedade. E
Marcio Goldman ainda que não seja possível explorar
Prof. de Antropologia Social, aqui os motivos que levam Herzfeld a
PPGAS-MN-UFRJ recusar essa abordagem, merece regis-
tro a enorme influência que os estudos
De origem britânica e vivendo hoje nos sobre sociedades “mediterrâneas” têm
Estados Unidos, onde é professor na exercido sobre trabalhos antropológicos
Universidade de Harvard, Michael realizados no e sobre o Brasil.
Herzfeld vem, há 25 anos, pesquisando É no interior dessa perspectiva mais
e escrevendo sobre a Grécia moderna, geral que devem ser compreendidas as
trabalho que é, simultaneamente, uma noções que balizam o livro, e que são
das reflexões mais originais e produti- objeto de detalhada discussão no capí-
vas da antropologia contemporânea. tulo 1. A “intimidade cultural”, essa
Seu último livro reúne artigos escritos proteção do espaço coletivo que o etnó-
entre 1986 e 1995 – reelaborados para a grafo tem de invadir, seria constituída
coletânea –, bem como dois inéditos justamente por esses valores que os in-
que abrem e fecham o volume. divíduos e grupos consideram como
A temática central do livro talvez “seus”, e que eles devem, ao mesmo
pudesse ser localizada na retomada im- tempo, seguir e apresentar aos demais,
plícita de uma velha questão que sem- pois a apresentação de tais valores não
pre dividiu a antropologia anglo-saxô- obedece a nenhum script rigoroso: re-
nica. Como se sabe, são inúmeros os presentam-se os valores no sentido tea-
debates opondo o privilégio concedido tral do termo (a referência aqui sendo
às relações sociais pela antropologia so- os “dramas sociais” de Victor Turner),
cial britânica, e o peso dos valores cul- mas isso só adquire sentido no quadro
turais enfatizado por boa parte da an- das interações concretas, interações
tropologia cultural norte-americana. O que, simultaneamente, produzem os
problema central de Herzfeld é justa- contextos em que se processam (e é aos
mente a investigação etnográfica do trabalhos de Erving Goffman que se re-
modo pelo qual os “valores” são agen- mete agora). Isso significa, em pouquís-
ciados na prática das “relações sociais”. simas palavras, que os “dramas” são o
Perspectiva que se opõe, por sua vez, próprio cotidiano e que a performance,
àquela que, principalmente na Grã- em sentido teatral, é “performativa”, no
Bretanha hoje, sustenta que o acesso do sentido da filosofia da linguagem de
analista à “sociedade” deve passar ne- Austin.
cessariamente pelas concepções que Aqui se situa a “poética social”, es-
seus membros dela fazem – espécie de sa “apresentação criativa do eu indivi-
“etno-sociologia” à qual Herzfeld pare- dual” (:X); se os valores são atuados,
ce opor algo como uma “sociologia da mais que meramente seguidos, parte da
cultura”. Vale a pena ainda observar vida social pode passar a ser concebida
que o fato de estudar uma sociedade nos moldes do que Jakobson denomi-
“mediterrânea” faz com que o esforço nou “função poética da linguagem”: a
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possibilidade, imanente à própria lín- sem abrir mão da nossa marca registra-
gua e à própria cultura ou sociedade, de da, que é a de compartilhar e tornar in-
“comentar” as mensagens no momento teligíveis as experiências vividas pelos
mesmo em que elas são emitidas, jo- agentes? Aqui, Herzfeld não se refugia
gando assim com os códigos – digam na solução mais fácil: abandonar o pla-
eles respeito aos valores ou às posições no mais geral para outras disciplinas e,
sociais. adaptando um velho chavão, dizer que
A “poética social” não se confunde, não estuda um Estado-nação, mas em
entretanto, com a “poesia”, e seu estu- um Estado-nação. Como se esse corte
do não consiste de forma alguma em fosse possível, como se fosse indiferen-
um “esteticismo” ou mesmo em uma te, para agentes e antropólogos, o fato
“estética”. O capítulo 7 detém-se neste de estarem, ambos, imersos em forma-
ponto, demonstrando que uma coisa ções dessa natureza.
são os modelos antropológicos “basea- Como proceder então? Trata-se – o
dos na linguagem”, e outra, muito dife- capítulo 5 e o posfácio do livro são con-
rente, aqueles “derivados da lingua- clusivos sobre esse ponto – de demons-
gem” (:145). Se os primeiros consistem trar de que modo a antropologia pode
em tentativas mais ou menos bem-su- contribuir, de forma específica, para a
cedidas de esboçar semânticas e/ou compreensão do Estado-nação. E aqui
sintaxes socioculturais, os segundos se fecha o círculo, na medida em que o
devem se concentrar nos aspectos antropólogo, que encara esse Estado-
pragmáticos da linguagem ou da socie- nação em seus planos de existência
dade, ou seja, nos agentes, suas rela- mais concretos – aqueles das experiên-
ções e suas práticas. É a retórica, na cias vividas pelos indivíduos e grupos
forma de uma “retórica social”, que de- que nele habitam –, percebe imediata-
ve servir de inspiração ao antropólogo, mente que o que se denomina com esse
não a gramática, que tende a conduzi- nome consiste, na verdade, em um con-
lo na direção de formalismos e univer- junto aberto de agentes e operações,
salismos sempre mais ou menos duvi- possuindo como denominador comum o
dosos. fato de estarem voltados para uma
Podemos compreender, assim, que “despoetização” da vida social, ou seja,
o terceiro termo do título da obra seja o para a essencialização, naturalização e
“Estado-nação”, pois Herzfeld, como literalização de experiências sociais
boa parte de nós – se não todos nós ho- sempre múltiplas e polifônicas. E aqui,
je – desenvolve suas pesquisas em uma de fato, o Estado encontra a cultura.
sociedade desse “tipo”. Quase todo o li- “O Estado” (o que não passa de um
vro gira, conseqüentemente, em torno nome) é um conjunto de instituições e
dessa questão, ainda que sejam os ca- estratégias que se apóiam nos mecanis-
pítulos 2, 3 e 4 os que abordam mais di- mos sociais mais cotidianos e, em prin-
retamente o tema. Essa situação quase cípio e ao contrário do que se gosta de
inelutável coloca, para o antropólogo, imaginar, não ignoram nada do que os
uma série de problemas mais ou menos antropólogos costumam estudar: as
conhecidos. Como manter a abordagem crenças e os mitos, o localismo e a seg-
etnográfica da disciplina sem perder os mentaridade, as identidades e os este-
grandes panoramas característicos des- reótipos… É fundamental observar, con-
sas formações sociais? Por outro lado, tudo, que ao se apoiar ou combater es-
como atingir essa visão panorâmica ses elementos de toda vida social, o Es-
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tado opera através de sua essencializa- corremos o risco de “essencializar o


ção: a ninguém será permitido possuir [próprio] essencialismo” (:171).
mais de uma religião, um pertencimen- Nada disso significa, é claro, que o
to local, uma etnia ou uma cor. “Esti- Estado seja menos “poético” do que
los”, sempre móveis e contextuais, con- qualquer outra coisa. Ao contrário, seu
vertem-se em “identidades” que, por poder de produção e manipulação da
sua vez, são cristalizadas em “etnicida- realidade é bem conhecido. Ocorre
des” que, finalmente, se enrijecem co- apenas que faz parte da “poética de Es-
mo “nacionalidades” (:42-43, e todo o tado” o esforço para apagar todos os
capítulo 4). A “labilidade semântica dos rastros de sua própria criatividade, ao
valores locais”, que faz com que per- mesmo tempo que busca impedir a de
tencimentos familiares, grupais, étnicos todos os demais. Desse modo, pode sus-
e mesmo nacionais funcionem como tentar – e há quem nele acredite – que
verdadeiros shifters (:45-46) – ou seja, suas invenções são “naturais”, semean-
só façam sentido em relação aos agen- do assim essências por toda parte. Todo
tes em interação em determinado con- cuidado é pouco por parte do antropó-
texto –, tende a ser eliminada ou limita- logo: um descuido e ele está pronto a
da pelo Estado. Ao mesmo tempo, uma aceitar como dado aquilo cuja constru-
vez substancializadas, essas variáveis ção deveria tentar demonstrar e tornar
(doravante “valores” ou mesmo “coi- inteligível. Desse ponto de vista, é pre-
sas”) retornam à vida social cotidiana e ciso observar inclusive que a “democra-
alimentam ódios, discriminações e mas- cia” não é necessariamente sinônimo
sacres (capítulos 4 e 5). de maior tolerância, ou seja, de menos
.A boa vontade da antropologia não essencialização. É o contrário que pode
é suficiente nesse caso. Não basta que mesmo ocorrer, na medida em que, em
afirmemos que as identidades são múl- nome da igualdade, toda diversidade
tiplas, que as etnias são relacionais, que tenda a ser suprimida (cf. :83 para o
o conceito de raça não possui funda- “igualitarismo essencialista”; e :111,
mento objetivo e que o “caráter nacio- para a “exclusão” em nome de “ideais
nal” é uma invenção. Não basta, tam- democráticos”).
pouco, sustentar que é preciso evitar os ....Por outro lado, e à medida que es-
dualismos e os essencialismos, nem atri- ses processos se disseminam, atingindo
buir todo o mal à quebra de supostas re- a menor das aldeias gregas, a verdadei-
lações de reciprocidade, forma de “nos- ra tarefa do antropólogo surge com cla-
talgia estrutural” que, desde Mauss, reza. Recusando a falsa separação entre
tendemos a compartilhar com nossos in- etnografia e teoria, ele deve seguir, de
formantes (cf. capítulo 6). Isto porque algum modo, contra a corrente. Acei-
estes podem não concordar conosco, tando o caráter social de suas próprias
chegando a matar ou morrer pela idéia teorias, bem como a força teórica das
de que o “sangue” define o pertenci- representações nativas, e a partir das
mento a um grupo, que o vizinho é “na- vivências mais concretas e das expe-
turalmente” inferior, e que tal ou qual riências mais profundas, deve praticar o
minoria só pode mesmo se comportar que Roland Barthes denominou certa
de determinada maneira. Ao renunciar, vez uma etimologia às avessas (capítulo
em nome do “politicamente correto”, à 3): não a que busca a “verdadeira” ori-
análise do que Herzfeld denomina “es- gem oculta das palavras, mas a que ten-
sencialismos práticos” (:26-29; 171), ta dissolver em seus múltiplos processos
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de criação aquilo, palavras e coisas, que “realidade” social. Agindo desse modo,
nos é apresentado como “natural”. ele introduz uma série de surpresas pa-
ra o leitor pouco familiarizado com a
história social e cultural da Argentina.
NEIBURG, Federico. 1997. Os Intelec- A primeira é a mudança de foco vis-à-
tuais e a Invenção do Peronismo. São vis boa parte da literatura sobre o tema,
Paulo: Edusp. 242 pp. em que o peronismo aparece como o re-
sultado de ações de grupos populares.
Neiburg, ao contrário, parte do pressu-
Regina Abreu posto de que, como todo fenômeno so-
Pesquisadora-visitante, PPGAS-MN-UFRJ cial e cultural, o peronismo resulta das
ações de diferentes agentes sociais, si-
Redigido inicialmente como tese de tuados em distintas áreas do espaço so-
doutorado para o PPGAS-MN-UFRJ, cial. Nesse sentido, os intelectuais tive-
esse livro parte de um tema amplo, po- ram desde o início papel central no pro-
lêmico e crucial para a construção da cesso de construção do peronismo, e é
identidade nacional na Argentina: o pe- justamente este o ponto investigado.
ronismo. Neiburg descarta desde o iní- No entanto, em vez de expor uma nova
cio as leituras apressadas e mais óbvias interpretação do peronismo – ou julgar
sobre o tema, explicitando a multiplici- o mérito das distintas interpretações
dade de significados que essa categoria que o tomaram como objeto –, o interes-
foi adquirindo ao longo do tempo: mo- se do autor é “compreender a lógica so-
vimento político nascido em meados da cial subjacente à existência dos deba-
década de 40 e identificado com a figu- tes, a gênese das figuras intelectuais
ra de Juan Perón; período da história da que deles participaram e seus efeitos
Argentina que se inicia em 1945 e ter- sobre a construção do próprio peronis-
mina em 1955; partido político criado mo como fenômeno social e cultural”
por Perón logo após sua vitória nas elei- (:16).
ções de 1946, que sobrevive até hoje Essa perspectiva permite uma esti-
com outras denominações; referência mulante reflexão acerca da relação
para a identidade política dos que pas- constitutiva entre “representação da
saram a invocar a figura de Perón e a realidade” e “realidade”. Ao enfatizar
recordação de seus governos para legi- o fato de que as interpretações e os in-
timar diferentes posições no campo da térpretes do peronismo foram produzi-
política. dos em uma dada sociedade e cultura,
A pesquisa é, na verdade, o estudo Neiburg amplia seu horizonte de pes-
de um período da história social e cul- quisa, a fim de compreender a lógica
tural da Argentina; ao mesmo tempo, o do funcionamento da sociedade argen-
autor revela, com intensidade cada vez tina em um dado período histórico. Ou-
maior, o papel ativo dos intelectuais na tra surpresa introduzida pelo autor diz
“invenção” do peronismo, noção que respeito ao período focalizado. Ao con-
nada tem a ver com um juízo acerca da trário do que se poderia supor, Neiburg
artificialidade das interpretações abar- não está interessado em analisar espe-
cadas pelo termo. Pelo contrário, Nei- cificamente o momento histórico da gê-
burg busca acentuar uma perspectiva nese do peronismo, com o golpe de Es-
não substancialista, atenta à dimensão tado de 1943, quando Perón passou a
produtiva das ações sociais sobre a ser identificado como o “homem forte”

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