Você está na página 1de 6

buracos

negros

70 SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL GÊNIOS DA CIÊNCIA STEPHEN HAWKING


informação
S IN G U L A R ID A D E E

ESSES EXTRAVAGANTES OBJETOS

SÃO ACUSADOS DE VIOLAR A LEI DA

CONSERVAÇÃO DA INFORMAÇÃO.

MAS A CIÊNCIA AINDA NÃO TEM UMA

OPINIÃO DEFINITIVA A RESPEITO

POR JORGE CASTIÑEIRAS, LUÍS C. B. CRISPINO,


GEORGE E. A. MATSAS E DANIEL A. T. VANZELLA

F undada no século III a.C., a Biblioteca


Real de Alexandria foi durante séculos o
maior centro de saber do mundo antigo.
Seu acervo, estimado na época áurea em
até 700 mil manuscritos, condensava o conhe-
cimento acumulado pela civilização desde o seu
florescer. A versão mais aceita atribui a Teófilo,
bispo de Alexandria, a responsabilidade pela
destruição de tal tesouro. As conseqüências des-
se incidente, ocorrido em fins do século IV d.C.,
ainda hoje são difíceis de avaliar. A informação
adquirida ao longo de séculos foi destruída pelas
chamas... Mas foi mesmo?
Uma característica crucial das leis funda-
mentais que acreditamos regerem a Natureza
microscópica é o fato de elas não permitirem a
destruição de qualquer informação contida em
um sistema físico fechado (ou seja, isolado). Uma
vez conhecidas, em um dado instante, todas as
características de tal sistema, podemos tanto di-

A BIBLIOTECA DE ALEXANDRIA. Será que o incêndio


© AKG BERLIM/IPRESS

criminoso que queimou seus 700 mil manuscritos destruiu


irremediavelmente a informação neles contida? Do ponto
de vista da mecânica quântica, essa informação talvez se
encontre fora de nosso alcance, mas não estaria perdida

WWW.SCIAM.COM.BR SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL 71


SEGUNDO BEKENSTEIN, TODA VEZ QUE MATÉRIA OU ENERGIA CAEM NO BURACO
NEGRO, AUMENTANDO O SEU TAMANHO, SUA ENTROPIA TAMBÉM AUMENTA,
GARANTINDO QUE A ENTROPIA DO UNIVERSO COMO UM TODO JAMAIS DIMINUA
zer como ele era no passado quanto prever como a informação tivesse sido destruída. Afinal, não
será no futuro. Assim, em princípio, o conheci- tínhamos nenhum precedente de um sistema fe-
mento detalhado de todas as características “mi- chado que destruísse informação. Essas premis-
croscópicas” das cinzas de um livro incinerado, sas foram abaladas, contudo, por descobertas
juntamente com as da fumaça produzida, seria feitas na década de 70.
suficiente para determinar o que ele era quando Como se afirmou no exemplo do livro incine-
o fogo foi ateado e recuperar as informações nele rado, a perda de informação para todos os pro-
O FÍSICO RUSSO Yakov contidas. As informações não teriam sido destruí- pósitos práticos é acompanhada pelo aumento
Zeldovich (abaixo) das pelo fogo, mas transformadas em uma forma da entropia do sistema. Em essência, essa é a se-
estudou os efeitos menos organizada. gunda lei da termodinâmica, confirmada cotidia-
que intensos campos namente nas mais diversas situações. Na presen-
gravitacionais (como
aqueles dos buracos Nível de Desordem ça de buracos negros, no entanto, essa lei parecia
negros) provocam no Esse exemplo ilustra uma propriedade perder sua validade. Poderíamos, por exemplo,
vácuo quântico. Verificou- aparentemente geral da Natureza: embora pos- jogar em seu interior os restos do livro queima-
se, então, que mudanças sa evoluir para uma forma menos organizada do, diminuindo a entropia do mundo exterior e,
no campo gravitacional e talvez inadequada aos propósitos práticos, a portanto, do Universo como um todo, já que, na
podem perturbar o vácuo
quântico a ponto de informação que caracteriza completamente um época, se assumia que buracos negros tivessem
transformar algumas sistema físico é conservada. O aumento no nível entropia nula. Isso levava diretamente à violação
partículas virtuais em de “desordem”, que quase sempre acompanha a da segunda lei da termodinâmica.
reais. Essa seria a causa evolução de um sistema, é associado ao aumento Insatisfeito com tal situação, o físico isra-
da radiação de Hawking de uma grandeza chamada “entropia”. Mas as elense Jacob Bekenstein, inspirado nas quatro
leis da Natureza, sejam elas leis mecânicas dos buracos negros, enunciadas
clássicas ou quânticas, im- em 1973 pelo americano James Bardeen, o
põem que, acessíveis ou não, australiano Brandon Carter e o inglês Stephen
as informações característi- Hawking, associou a cada buraco negro uma
cas de um sistema fechado entropia proporcional à área do seu horizonte
não sejam destruídas. Exis- de eventos (aquele que define a fronteira entre o

© PAUL MCERLANE/REUTERS
te, no entanto, uma situação que pode e o que já não pode mais retornar ao
extrema que talvez constitua mundo exterior). Bekenstein enunciou, então,
exceção a essa regra – situa- a segunda lei generalizada da termodinâmica:
ção cuja plena compreensão toda vez que matéria ou energia (e, portanto,
CORTESIA PROF. V. I. GOLDANSKII/SONOMA STATE UNIVERSITY/

aguarda por uma teoria que informação) cai no buraco, aumentando o seu
compatibilize a gravitação, tamanho, sua entropia também aumenta, ga-
descrita pela teoria da relati- rantindo que a entropia do Universo como um
DEPARTMENT OF PHYSICS AND ASTRONOMY

vidade geral, com os princí- todo nunca diminua. Mas essa atribuição ad
pios da mecânica quântica. hoc de entropia aos buracos negros não agra-
Tal situação é a evaporação dou a todos. Hawking observou que, se a en-
de buracos negros. tropia fosse associada aos buracos negros, eles
A teoria da relativida- também deveriam possuir uma temperatura, o
de geral nos mostrou que que significa que deveriam emitir radiação. E
o espaço-tempo pode estar argumentou que isso era absurdo: nada poderia
tão curvado sobre si mesmo sair de um buraco negro.
em certas regiões do Cos-
mos que nem mesmo a luz é capaz de escapar Fluxo de Partículas
de seu interior. Assim se originariam os objetos Em 1974, porém, o próprio Hawking fez
que chamamos de buracos negros. Eles seriam uma descoberta surpreendente. Ao reestudar a
não apenas devoradores implacáveis de matéria formação de buracos negros por colapso este-
e energia, mas também devoradores de informa- lar, levando em conta os princípios da mecânica
ção, pois toda a informação depositada em seu quântica, ele concluiu que, no final do processo,
interior não poderia ser recuperada por observa- observadores estáticos distantes veriam um flu-
dores externos. Porém, apesar de inacessível aos xo de partículas elementares saindo do buraco
de fora, não havia motivos para acreditar que negro. E ainda mostrou que, para buracos ne-

72 SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL GÊNIOS DA CIÊNCIA STEPHEN HAWKING


gros estáticos, tal fluxo possuía uma tempera- O vácuo é comumente associado ao estado STEPHEN HAWKING
tura bem definida, inversamente proporcional à de mínima energia que descreve a ausência to- começou a se ocupar do
massa – o que fazia com que sua entropia fosse tal de matéria e radiação em uma dada região. “paradoxo da informação”
em meados da década
de fato proporcional à área, conforme a conjec- Mas o que restaria depois de se extrair todas de 70. E sustentou,
tura de Bekenstein. A energia para o processo as partículas de matéria e radiação, levando a inicialmente, que outras
de irradiação seria fornecida pelo próprio bura- região ao mais perfeito vácuo? Segundo a me- informações além da
co negro que, em conseqüência, “evaporaria”. cânica quântica, a região continuaria povoada massa, da carga elétrica
O suposto fenômeno ficou conhecido como ra- por uma legião de partículas, denominadas vir- e do momento ângular
ficariam para sempre
diação de Hawking. E evidências teóricas su- tuais, que não podem ser removidas. Ademais, perdidas nos buracos
plementares a seu favor foram fornecidas logo elas surgem e se aniquilam aos pares, tão rapi- negros, o que configuraria
depois pelo canadense William Unruh, o inglês damente que sua detecção direta é impossível. uma “grande crise para
Paul Davies e o americano Stephen Fulling. Afi- No final da década de 60, o físico americano a física”. Em 2004, ele
nal, os buracos negros não seriam tão indes- Leonard Parker e o soviético Yakov Zeldovich surpreendeu o mundo
ao reconhecer que a
trutíveis como se acreditava. Mas como con- começaram a estudar como o vácuo quântico era superfície do buraco negro
ciliar essa radiação com a característica mais afetado pela presença de campos gravitacionais apresentaria flutuações
marcante dos buracos negros, a de que nada intensos. Verificou-se, então, que mudanças no quânticas capazes de
pode escapar de seu interior? A solução desse campo gravitacional podem perturbar suficiente- possibilitar o escape
aparente paradoxo residia no “vazio” que os mente o vácuo quântico, a ponto de transformar de toda a informação
aprisionada em seu interior
circunda: o vácuo. algumas destas partículas virtuais em reais.

WWW.SCIAM.COM.BR SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL 73


VISCA, COM BASE EM DESENHO DE JORGE CASTIÑEIRAS

74 SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL GÊNIOS DA CIÊNCIA STEPHEN HAWKING


IMAGINEMOS QUE EXISTA uma câmera diferente: ela não Que alternativas teríamos para resolver esta
registra apenas a imagem das coisas, mas também situação paradoxal? Uma possibilidade seria di-
seu exato estado microscópico. Se, com essa câmera zer que o problema reside na própria mecânica
“microestadográfica” filmarmos um livro sendo queimado,
então, em princípio, bastaria mandar o último quadro do filme quântica, que deveria ser reformulada para aco-
(que registra o estado microscópico das cinzas e da fumaça) modar situações desse tipo. Uma segunda expli-
junto com a câmera (que faz parte do sistema fechado) a cação poderia estar no fato de que, no contexto
um perito, para que este, usando as leis fundamentais da de uma teoria completa de gravitação quântica, a
Natureza, consiga reproduzir o filme inteiro, até o quadro onde radiação de Hawking exiba um pequeno desvio
está registrado o estado inicial do livro. Se, por outro lado,
em vez de atearmos fogo ao livro, o jogarmos em um buraco de termalidade, no qual estaria codificada toda
negro, não é claro que o perito seja capaz de reproduzir o a informação devorada pelo buraco negro. Uma
filme inteiro como no primeiro caso. Se isso realmente for terceira especulação, finalmente, é que o buraco
impossível, o sistema terá sofrido perda de informação negro não evapore de todo, mas deixe algum resí-

ZELDOVICH VERIFICOU QUE MUDANÇAS NO CAMPO GRAVITACIONAL PODEM


PERTURBAR O VÁCUO QUÂNTICO A PONTO DE TRANSFORMAR PARTÍCULAS
VIRTUAIS EM REAIS. ESSA É A ORIGEM DA RADIAÇÃO DE HAWKING

Essa era exatamente a origem da radiação duo, onde aquela informação ficaria depositada.
de Hawking: o horizonte de eventos do buraco Se alguma dessas possibilidades, ou a combina-
negro perturba de tal maneira o vácuo quântico ção delas, é a solução do paradoxo, este é atual-
que parte das partículas virtuais são convertidas mente motivo de controvérsia e fonte de numero-
em reais à custa da energia dele. Essas partículas, sas discussões.
produzidas na vizinhança externa do buraco ne-
gro, escapam para o espaço exterior, onde podem Mudança de Opinião
ser observadas como um fluxo térmico, conferin- Em 1997, Hawking e os físicos americanos
do temperatura e entropia ao buraco negro. A John Preskill e Kip Thorne fizeram uma apos-
título de ilustração, um buraco negro com massa ta. Enquanto Hawking e Thorne acreditavam
igual à do Sol teria uma temperatura da ordem que toda a informação depositada nos bura-
de 60 bilionésimos de grau acima do zero absolu- cos negros estaria definitivamente perdida,
to (aproximadamente -273°C). Se, por um lado, Preskill defendia que a Natureza teria algum
a descoberta da evaporação dos buracos negros mecanismo, ainda desconhecido, que permiti-
não revolucionou a astrofísica observacional, por ria recuperá-la. Em julho de 2004, Hawking
outro, as implicações conceituais que dela deri- declarou publicamente ter mudado de opinião:
vam desafiam os teóricos até hoje. os buracos negros não seriam destruidores irre-
mediáveis de informação. Apesar de a solução
Evaporação Completa apresentada por Hawking estar longe de ser
Para entender o porquê desse desafio, re- consensualmente aceita, pode ser que, de fato,
tornemos às nossas considerações acerca da con- a informação consiga escapar de sua rede e
servação da informação ao longo da evolução de não se torne irremediavelmente inacessível ao
um sistema físico fechado. Havíamos dito que universo exterior.
se esperava que a informação devorada por um É difícil dizer para onde esta jornada vai nos
buraco negro não fosse destruída se o conside- levar. Talvez nos ensine algo sobre mecânica
rássemos parte do “sistema fechado”. Porém, se quântica. Talvez nos ensine algo sobre o espaço-
admitirmos agora que um buraco negro evapore tempo. Talvez nos conduza diretamente à tão al-
por completo, concluiremos que tudo o que so- mejada gravitação quântica. Seja como for, não
bra ao final é a radiação por ele emitida. Ora, há dúvida de que os buracos negros podem ser a
sabemos que, se for exatamente térmica, a radia- porta para alguns dos mais bem guardados mis-
ção não conterá toda a informação originalmen- térios da Natureza.
te depositada no interior do objeto. Neste caso,
os buracos negros estariam destruindo informa-
ção de maneira irrecuperável. A mesma mecâni- OS AUTORES trabalham na interface da relatividade geral com
a mecânica quântica. Jorge Castiñeiras e Luís C. B. Crispino
ca quântica que leva ao efeito Hawking e salva a são pesquisadores da Universidade Federal do Pará; George
segunda lei da termodinâmica, acaba ameaçan- E. A. Matsas é pesquisador do Instituto de Física Teórica da
do um de seus próprios cânones: a conservação Unesp, em São Paulo; e Daniel A. T. Vanzella é pesquisador da
da informação. Universidade de São Paulo em São Carlos

WWW.SCIAM.COM.BR SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL 75

Você também pode gostar