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O cinema negro no campo visual do mundo contemporâneo

Julio Cesar de Tavares


http://www.oquinze.com.br/o-cinema-negro-no-campo-visual-mundo-
contemporaneo/

Foto de Iere Ferreira


(http://afrocariocadecinema.org.br/cerimonia-de-abertura-fotos-iere-ferreira/)

O continuado sucesso que a cinematografia negra permanece realizando a nível


internacional deveria chamar a atenção para o poder das imagens tanto como
ativadores de percepções e promotores de atitudes. Podemos lançar como exemplos
deste processo, no plano nacional as frequentes Mostras de Cinema Negro Africano e
caberia um destaque para o Encontro de Cinema negro Africano e Afrodiaspórico de
Zózimo Bulbul, que, em 2018, completou 11 anos de consistente realização e fiel
manutenção da missão que o instituiu. O criador do Encontro foi o próprio Zózimo
Bulbul, ator e cineasta, que, em um gesto pioneiro contribuiu para promoção de um
ambiente impregnado pela necessidade de valorizar a exibição e a investigação crítica
do olhar e do lugar do negro no Cinema Contemporâneo, a partir das experiências de
produção e realização no Brasil, África e Caribe. O Encontro se firmou como evento
chave na disseminação do legado do Cinema Negro Africano e Afrodiaspórico e na
formação de novas plateias, no estímulo de uma consciência crítica e analítica para este
cinema.

Movido por esta parceria, o LEECCC (Laboratório de Etnografia e Estudos em


Comunicação, Cultura e Cognição) e a Universidade Federal Fluminense acolheram o
convite do Centro Afro Carioca de Cinema para a produção conjunta deste 10º Encontro
nestes 11 anos de atividade do Centro. O propósito desta articulação interinstitucional
é contribuir com a expansão do acesso das tecnologias de comunicação junto àqueles
setores sociais que, até bem pouco tempo, quando muito, conseguiam minimamente,
integrarem salas de exibição para participarem como parte do público consumidor da
7ª. arte, que, quase sempre quase nada traziam de suas realidades cotidianas, a não ser
os estereótipos já conhecidos como disseminadores das condições de subalternidades.

No entanto, é fato visível inclusive pela grande indústria cinematográfica que o novo
milênio abre com a emergência de cineastas africanos, em conjunto com uma onda de
jovens cineastas afrodescendentes, por toda a diáspora, a promover um despertar de
atitudes e ideologias que se alastram, reforçam e sustentam uma forte adesão
identitária com caráter profissional, emocional e ético, cuja tendência aponta para a
constituição de mudanças políticas tanto na estética como no mercado. Sem dúvida,
que, uma tal condição perturba a ordem discursiva vigente no campo do cinema, o que,
gradativamente, se manifestará em projeto político no campo do imaginário destas
populações. Identificamos estas ocorrências ao longo das lutas anti-coloniais na África,
na segunda metade do século XX, às lutas pela igualdade cidadã, ações afirmativas e
reparações, conforme mais recentemente por toda a diáspora nas Américas e Europa.

O Cinema Africano e o Afrodiaspórico entronizam um modelo-design na máquina da


visão dominante. Com isso compensam o reduzido quinhão de reconhecimento à estas
populações, devido ao forte legado colonial. A produção da presença destas populações
com seus marcadores visivelmente raciais que remetem às suas origens africanas, em
um contexto mundial cada vez mais violento, xenófobo e movido por emocionaliddes
de cunho fascistas, instiga o surgimento de respostas que afirmam o que sempre a estas
populações fora negado: a fantasia antecipadora do sucesso, o desejo da reconstrução
de seu corpo-e-mente livres da imagem-prisão branca bem como a elaboração do devir
libertário, longe do destino da senzala e do colonialismo, numa palavra: auto-sustentado
econômica, política e esteticamente.

A história dos Encontros de Cinema Negro Africano e Afrodiaspórico de Zózimo Bulbul


remonta a heroica iniciativa deste cineasta em produzir “Encontros”, espaço que até era
inédito, a nos brindar com a promoção de uma educação audiovisual e debater em
múltiplas direções tendo como alvo , a população negra. Em sintonia com o que vinha
acontecendo no mundo, nos últimos 15 anos, no campo do áudiovisual, os “Encontros”
promoveram uma ousada agenda, na qual, as reflexões sobre a potência da
representação étnico-racial no audiovisual, o cinema como máquina mimética, o lugar
do olhar, o destino das imagens, a relação entre subjetividade e a força da
interculturalidade visual despontam como inegociáveis.

Assim, onze anos depois, o resultado transparece na proeza de mobilizar, fora do eixo
midiático predominante, nacional e internacionalmente, aquela multidão de jovens
negras e negros devotados a integrarem profissionalmente o campo do audiovisual com
propostas transformadoras para o mercado e ainda com a oportunidade de ouvir
profissionais de origem africana e de outros países do contexto da diáspora. E,
sobretudo, desenvolve em perspectiva comparada exibição de vários trabalhos de
diretores africanos sobre o que é fazer Cinema Contemporâneo com repercussão
Mundial. O objetivo é também provocar a reflexão sobre a formação, o modo de
produção e disseminação da imagem do negro pelos cineastas e profissionais do audio
visual. Trata-se, a partir desta perspectiva, de um projeto de re-educação etnopolítica
que, implicitamente, pauta o reconhecimento e valorização do aspecto humano do ser
negro no modo atual, em especial, por intermédio do cinema.

Não obstante o falecimento de Zózimo, em 2013, o projeto não se intimidou. Ao


contrário, nele a energia, a combatividade e a memória do cineasta imprimiram um forte
estimulo aos jovens cineastas que apostaram na continuidade, na ampliação do alcance
e em maior visibilidade das discussões sobre estética e ética no cinema. Com isso,
Zózimo, conseguiu inventar através dos “Encontros” um “lugar de memória”, ao agregar
cineastas, atores, produtores, roteiristas, críticos, intelectuais públicos e todo povo do
mundo das artes e da cultura visual, em torno da filmografia negra. Instala-se, desde
este lugar uma mobilização de espectadores interessados em cinema negro como forma
e modalidade de criação e inclusão no mercado de trabalho e contribui com a
reconfiguração do campo visual e do modo de olhar para a cultura brasileira.

Esta é uma das atribuições de uma instituição pública de ensino superior. E o Centro
Afro Carioca de Cinema e o LEECCC-UFF já se preparam para o 11º Encontro, para 2019,
fundamental no momento em que vivemos para o aprofundamento da reflexão e
demonstração das realizações no campo do audiovisual em pleno território de disputas
de narrativas restauradores das condições de máxima precariedade e subordinação das
populações afrodescendentes.

Por se perceber como um laboratório público de aprimoramento do conhecimento e


dos recursos técnicos constituídos e disponíveis no grande reservatório de elaboração estética
da nação brasileira: as periferias, o LEECCC-UFF participou desta jornada como parceiro para
contribuir com a disseminação das novas formas de representação étnico-racial, dos
regimes de representação da imagem do corpo negro no campo do audiovisual e suas
formas substantivas de inscrição.

E qual teria sido a relevância de todo este processo de produção e da realização deste
Encontro? Neste 10º Encontro, realizado 11 anos depois do primeiro, todas as
expectativas foram superadas. O número inédito de 180 obras recebidas para inscrição,
das quais 76 foram selecionadas, foi marcante, sobretudo pelo fato de a presença de
mulheres negras foi esmagador, com 29 filmes, entre curtas e longas metragens. Os
curadores do evento, Joelzito Araújo e Janaina Oliveira, imprimiram um tom estendido
ao projeto em relação aos dos anos anteriores, ao incluírem convidados internacionais
que revitalizaram em grande estilo a conexão África, Brasil e Caribe, bem como
trouxeram novas reflexões de fundo político, estético e conceitual po intermédio não
somente de filmes mas também de debates e master classes. Assim foi com a presença
de Manthia Diawara, crítico, cineasta e scholar renomado, professor titular da Escola de
Cinema da New York University. Nascido no Mali mas radicado nos EU, Diawara possui
uma obra de referência tanto para o cinema negro como para o cinema etnográfico, em
especial pelo sua obra em permanente diálogo crítico e elegantemente des-construtivo
de Jean Roush.

Também a presença de marcante de Haile Guerima, diretor do premiadíssimo Sankofa.


Guerima é etíope e radicado nos EU, onde ensina na Howard University, a conhecida
Universidade fundada por negros, em 1867, Washingon, DC., para servir a população
negra dos Estados unidos e em desvantagem em todo o mundo. Ainda muitas e muitos
cineastas convidados como a norte americana Shirkiana Aina, e Claire Diao, franco
burkinabé, entre outras. Impossivel não mencionar cineastas internacionais que
colaboraram direta e/ou indiretamente com a Curadoria Mansour Sora Wade, Cheick
Oumar Sissoki e a Consultora do Evento, a grande revelação que é Viviane Ferreira,
advogada e cineasta.

Para completar, o Encontro promoveu uma homenagem às cineastas afro-brasileiras,


das mais diversas gerações, que tornaram possível se falar de um cinema negro no Brasil
e o faz ainda hoje tornar-se renovado: Adelia Sampaio, Iléa Ferraz, Lilian Solá Santiago,
Carmem Luz, Janaina Refém e Danddara.

Foram, na verdade, 10 dias transcorridos com muita luz, ação, conhecimento e emoção
inundando as salas do Odeon, do Mar, do Centro Cultural da Justiça Federal, todos no
Rio, e do Centro de Artes da UFF, em Niterói. Um verdadeiro desafio ao regime de
visualidades vigente ao mobilizar e engajar uma multidão de jovens e potentes cineastas
negros e uma plateia extremamente politizada e participantes, sementes que vingam
depois de uma década de sementes plantadas neste chão do audiovisual afro-brasileiro.

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