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ISSN: 0874-4696
revista@sppsicossomatica.org
Sociedade Portuguesa de Psicossomática
Portugal
•
A dispersão de dados estatísticos na maioria
dos países, com raras excepções, não permi-
te uma análise mais detalhada, reclamando
a existência de registos nacionais. Este traba-
lho, referente à população portuguesa, en-
contra-se por realizar de forma sistematiza-
* Professor Auxiliar do Instituto Superior de da, embora seja evidentemente de capital im-
Psicologia Aplicada. portância.
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exigências destas relações (em vias de serem re- (quando não verdadeiramente actos
construídas), apesar de determinantes, nem agressivos);
sempre surgem expressas de forma transparen- · as reacções depressivas, com a conhecida
te para ambos os intervenientes. sintomatologia habitual, dirigindo para si
As dificuldades de adaptação a uma mudan- a agressividade e identificando-se com o
ça tão súbita como radical, favorecem a procura mau objecto (= mau corpo).
de recursos no exterior, nas instituições e profis- No processo psicoterapêutico estas dimen-
sionais de saúde onde se espera "magicamente", sões do mundo interno, confluentes na temática
que o estado actual do paciente – para ele e para da perda, real ou imaginária, obrigam a uma
a família, estado de não saúde – seja transforma- nova síntese do espaço próprio. A ruptura com
do (pelo médico, pela nova técnica terapêutica e uma identidade mais ou menos bem constituída
claro pelo psicoterapeuta) ou, em último caso até então força o confronto com o trabalho de
(de desespero insuportável), seja brutalmente luto, tornando inevitável a desorganização dos
negado, como se possível fosse também ampu- sistemas psíquicos e relacionais do sujeito. Diría-
tar e não mais se confrontar com uma parte do mos, então, que é normal, saudável e desejável
seu ego, frustrante e intolerável. uma fase de desorganização e mal estar geral.
O deslocamento periódico ao hospital e as O sujeito é obrigado, nestas circunstâncias, a
relações aí criadas, permitem ao doente sentir- fazer o luto por si próprio, procurando no en-
-se seguro, atribuindo um poder "mágico" a tanto uma linha condutora e integradora da sua
quem o trata: aquele que lhe irá possibilitar a identidade – vê-se obrigado a transformar-se
cura. A ideia de receber tratamento passa a ali- para continuar a ser quem era, mesmo que fisi-
mentar expectativa de algo que vai muito além camente diferente.
do que é racionalmente concebível. O consequente movimento de síntese e uni-
A intensidade da relação com o tratamento ficação do espaço corporal irá determinar em úl-
e profissionais de saúde não se deve ao facto de tima análise dois tipos básicos de colorido emo-
ser algo desejado, mas essencialmente porque é cional: o colorido depressivo, verdadeiro luto
identificada como algo (situação/pessoa/trata- pela perda de um objecto/membro/capacidade;
mento, etc.) que permite a transformação dese- e o colorido maníco-depressivo, tradutor das di-
jada. É uma relação percepcionada também ficuldades do movimento de síntese do novo es-
como o processo/meio que promete considerá- paço corporal.
veis "metamorfoses" do ser/corpo. Sabemos que o grau de deficiência, a sua
A característica de muitos destes doentes funcionalidade e até a tradução estética, sem
crónicos é a hostilidade com que se opõem a dúvida influentes, não determinam o sucesso ou
qualquer movimento de autonomia, prevale- fracasso deste processo, porventura essencial-
cendo longos períodos, de vários anos mesmo, mente determinado pela capacidades do funcio-
em tratamentos que estagnam em alguns me- namento mental do sujeito. O sentimento de-
ses. Desenvolver e crescer torna-se demasiado pressivo inerente, por vezes negado, ou omnipo-
doloroso para o doente, sentindo-se incapaz de tentemente desprezado, acaba expresso nas for-
suportar a frustração de enfrentar a realidade. mas mais ímpares do sujeito estar nas relações.
Esta situação de natural fragilidade interna, Os mais diversos trabalhos de investigação
assume repercussões igualmente nas interacções têm confirmado que estes pacientes se encon-
sociais, nas quais se vão manifestar dois fenó- tram largamente absorvidos pela sua doença e
menos particulares: pela tarefa de continuar vivos. A sua imagina-
· o desenvolvimento de comportamentos ção não é então estimulada, nem tão pouco esti-
regressivos, direccionados para a equipa mulante. As suas respostas são, frequentemen-
de tratamento, familiares, amigos e tam- te, concretas e os interesses e preocupações vão-
bém o psicoterapeuta; manifestam-se se estreitando e empobrecendo. Quando em psi-
através da excessiva dependência, isola- coterapia, numa fase inicial, centram-se no aqui
mento social, infantilidade ou hostilidade e agora, procurando evitar a exploração do pas-
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