Você está na página 1de 5

Nicolau Sevcenko, um historiador em missão da

vida (1952-2014)
É difícil expressar apenas em algumas palavras
a força do impacto que a historiografia brasileira
recebeu das brilhantes e sofisticadas interpretações
realizadas pelo professor Nicolau Sevcenko, falecido
em 13 de agosto de 2014, aos 61 anos. Filho de
imigrantes ucranianos, que fugiram para o Brasil em
função da Guerra Civil Russa e da perseguição
Bolchevique, nasceu em São Vicente, litoral do Estado
de São Paulo, em 1952. Mudou-se para a capital
paulista, onde cresceu no bairro do “Belenzinho”,
junto a uma colônia de eslavos. Desde muito jovem,
trabalhou com o irmão
O professor Nicolau Sevcenko (Foto oficial de seu perfil no site da
editora Companhia das Letras). recolhendo sucatas das
indústrias do ABC e
posteriormente como office boy. Sua experiência como imigrante,
vivendo na periferia de uma cidade como São Paulo marcaria para
sempre sua percepção sobre a sociedade brasileira, sobretudo, sua
relação com o espaço urbano, o que seria definitivo para suas futuras
reflexões como historiador da cultura. Graduou-se em história na
USP entre 1972 e 1975, período marcado pela Ditadura Militar. Sua Literatura como missão, fruto de sua tese de
doutoramento defendida em 1981, lançado
pela Editora Brasiliense em 1983.
formação, orientada pela professora Maria Odila Leite da Silva Dias, Posteriormente, foi reeditado pela
Companhia das Letras em 2003, acrescido de
foi direcionada por uma visão da história completamente imagens e um posfácio.

diferenciada. Segundo Elias Thomé Saliba, “já partilhávamos com nossa mestra muitas outras
coisas, esforçando-nos por observar o passado com desprendimento, considerando toda
singularidade histórica como objeto de conhecimento de igual relevância. O que nos atraía para uma
visão mais libertária da história, uma história fluida, ligada aos fluxos da vida, constantemente
inventada e reinventada e distante, muito distante dos blocos graníticos das velhas ideologias”.
Nicolau Sevcenko é considerado um dos historiadores de maior expressão e originalidade
dos últimos trinta anos. Autor de importantes estudos no campo da história da cultura, como:
Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República (1983) e Orfeu
extático na metrópole: São Paulo, cultura e sociedade nos frementes anos 20 (1992). Além de
outros ensaios significativos como: A Revolta da Vacina: mentes insanas em corpos rebeldes
(1983); O Renascimento (1983); Primeira Página - Folha de São Paulo, 1925-1985 (1985); Arte
1
moderna: desencontro entre dois continentes (1995); Pindorama
revisitada: cultura e sociedade em tempos de virada (2000) e A
corrida para o século XXI: no loop da montanha russa (2001).
Também organizou o terceiro volume da Coleção História da Vida
Privada no Brasil (vencedor do Prêmio Jabuti, 1999), cujo
subtítulo bastante sugestivo é da belle époque à era do rádio
(1998), no qual contribuiu com o importante ensaio: “A capital
irradiante: técnica, ritmos e ritos no Rio”, além da estimulante e
magistral introdução “O prelúdio republicano, astúcias da ordem e
Orfeu extático na metrópole, apresentado como ilusões do progresso”.
tese de livre-docência à FFLCH da USP, e
editado pela Companhia das Letras em 1992. É
considerada uma das mais importantes
Traduziu “Alice no País das Maravilhas” de Lewis Carrol
interpretações sobre transformações
tecnológicas do espaço urbano no período do (1986) – vencedor do Prêmio FNLIJ Monteiro Lobato, de melhor
modernismo paulista.

tradução para criança – e o livro de contos “Histórias Para


Aprender a Sonhar” (1996), do poeta e romancista inglês Oscar
Wilde, também vencedor do Prêmio FNLIJ. Além de suas obras e
traduções – o que lhe conferiu importantes premiações – elaborou
uma série de capítulos de livros e artigos científicos para as mais
diversas revistas especializadas brasileiras e internacionais. Foi
destaque na imprensa paulista a partir de 1987, por meio do
chamado "jornalismo cultural", escrevendo inúmeros textos sobre
os mais diversos assuntos em sua coluna semanal na revista Carta
Capital, colaborando também para o jornal Folha de S. Paulo, no A Revolta da Vacina, publicado pela primeira
vez em 1984 pela Editora Brasiliense. Devido ao
sucesso, ganhou uma seguda edição em 1993
qual foi editorialista, participando publicamente de debates políticos pela Scipione, acrescida de imagens. Em 2010, é
relançado pela Cosac Naif, com um posfácio.
e culturais da sociedade brasileira. Contribuiu com menor
frequência para os jornais Mulheres e o Leia Livros da editora Brasiliense, além de outros como a
revista Veja. Em 2001 participou do programa Provocações da TV Cultura, oportunidade valiosa
que aproveitou para discutir juntamente com Antonio Abujamra temas e problemas de máxima
relevância para a virada do século XXI, como globalização, cultura e políticas públicas.
Foi professor nas universidades FFCLM (1981-1985), PUC-SP (1982-1985), UNICAMP
(1983-1984) e na USP (1985-2012), na qual fez carreira a frente das cadeiras de História Moderna e
História Contemporânea, ministrando ainda disciplinas com enfoque em História da Cultura. Entre
1986 e 1990, Nicolau fez seu pós-doutorado na University of London e logo começou a dar aulas no
King’s College London, onde foi membro do Center For Latin American Cultural Studies,
estabelecendo-se como professor convidado, conciliando suas atividades docentes entre São Paulo e
Londres. Nesse período obteve contato com importantes figuras da historiografia inglesa, como
2
Jonh Lynch, Leslie Bethell, Ian Roxborough e Eric Hobsbawm. Além de estabelecer uma
importante rede de relações para o diálogo intelectual internacional com Willian Howe, Jonh
Gledson e David Treece. Foi professor convidado na University of Georgetown em Washington DC
e na University of Illinois (Urbana-Champaign), indo lecionar definitivamente em Harvard
University a partir de 2009, como professor de História e Cultura da América Latina e do Brasil do
Department of Romance Languages and Literatures, ministrando
cursos temáticos abrangentes, como: Urban Space as Cultural
Spheres: Rio, São Paulo, Brasilia; Brazillian Poetry, from Barroque
to “Barroso” e Tropicalismo: Brazilian Culture Upside Down.
Em suas aulas e palestras, para além da erudição de um grande
pensador e professor, Nicolau Sevcenko demonstrava-se como um ser
humano incrível, dotado de uma singular
sensibilidade machadiana (como o
definiu seu amigo, John Gledson) e um
História da vida privada volume 3,
forte senso crítico à dinâmica e as organizado por Nicolau. A coleção dirigida
por Fernando A. Novais apresentou
transformações que o capitalismo perspectivas significativas para
historiografia brasileira no final do século
XX. Foi lançado pela Companhia das Letas
produziu na vida cotidiana e cultural das em 1998.

sociedades contemporâneas. Seu ensaio sobre a Revolta da Vacina de


1904 foi um dos mais citados na área de ciências humanas entre as
décadas de 1980 e 1990, como ressaltou seu colega de trabalho e
Lançado na virada para o século XXI,
Pindorama revisitada aborda temas seminais
da história brasileira como escravidão,
amigo Elias Thomé Saliba. Em 2004, participou do projeto
colonialismo, barroco, paisagens, urbanismo
e artes plásticas. Editado pela Peiropolis em desenvolvido pela CIEE (Centro de Integração Empresa-Escola) sobre
2000, é um importante registro sobre o
pensamento de Nicolau.
a história de São Paulo, do qual resultou num importante artigo
intitulado “A cidade metástase e o urbanismo inflacionário: incursões na entropia paulista”,
publicado pela Revista USP e posteriormente em livro organizado pela professora Ana Maria de
Almeida Camargo, São Paulo: uma viagem no tempo (2005). Participou do ciclo de palestras “Anos
70: trajetórias”, transformado em livro com título homônimo organizado pela Itaú Cultural, no qual
contribuiu com o artigo “Configurando os anos 70: a imaginação no poder e a arte nas ruas”.
Além de suas fortes influências literárias, como Franz Kafka, T.S. Eliot, Lima Barreto e
fundamentalmente Machado de Assis (que o inspirara a perceber o movimento da história e da
vida), possuía uma forte interlocução com conceitos e teorias da Geografia Urbana, Arquitetura,
Filosofia e Artes Plásticas. Suas maiores preocupações estavam centradas no desenvolvimento
tecnológico e seus efeitos nas diversas esferas de sociabilidade de um mundo globalizado e ao
mesmo tempo fragmentado pela lógica do capital, chamando a atenção para os efeitos caóticos
produzidos nas artes, no meio ambiente e nas percepções e expectativas dos indivíduos em relação à
3
velocidade tecnológica que passou a movimentar e dominar o espaço urbano de forma
incontrolável.
Em seu clássico já mencionado Literatura como missão, vencedor do Prêmio Moinho
Santista Juventude (1983), que hoje circula entre os cânones da historiografia dos anos 1980,
Nicolau nos apresenta com uma sensibilidade ímpar, como se deram as transformações na cidade do
Rio de Janeiro na passagem do século XIX para XX, destacando a
introdução compulsória do Brasil na "modernidade", país até então
caracterizado como uma sociedade atrasada, marcada pela ruralidade
e as sombras do colonialismo e da escravidão, mas que seria forçado
a se adequar aos quadros do capitalismo que nesse período já
operava por meio de uma lógica mundial.
Nesse processo, a percepção, angustia e expectativas dos
indivíduos se refletem por meio do comportamento e, sobretudo, da
linguagem. Nicolau vai buscar responder, por meio das
transfigurações presentes na literatura de Euclides da Cunha e Lima A corrida para o século XXI ensaio escrito
para a coleção Virando Séculos, lançado
Barreto, como os anseios trazidos por essa nova realidade pela Companhia das Letras em 2001.
Importante contribuição sobre o
desenvolvimento tecnológico do último
republicana, que fora inaugurada de maneira caótica, modificaram as século, que Nicolau compara a um passeio de
montanha-russa.
diferentes esferas sociais e culturais, produzindo sensações e mazelas
que refletiram na (de)formação da cidadania, democracia e nos projetos políticos futuros do país.
Literatura como missão se apresenta para
os historiadores de maneira geral, como
referência imprescindível.
Em escala maior, suas pesquisas
destacaram os vertiginosos projetos de
urbanização das grandes metrópoles
modernas, sobretudo São Paulo e Rio de
Janeiro, fenômeno que segundo Sevcenko,
resultou numa massa refratária e
deslocada, submersa no espetáculo
tecnológico, mas que busca trazer suas
O professor Nicolau Sevcenko em Harvard University, 2010 (Foto: divulgação
Stephanie Michell, Harvard Unversity). vozes a superfície como um grito
desesperado de socorro ante o progresso excludente. Suas últimas pesquisas, que infelizmente
ficaram inacabadas, estavam voltadas para a compreensão das transformações culturais do pós-
guerra, nutrindo especial interesse sobre a figura irreverente de Hélio Oiticica, artista plástico de
maior importância da cultura marginal, de uma genialidade que inspirou o espírito criativo da
4
Tropicália no final da década de 1960, contexto marcado pelos impasses autoritários da Ditadura
Militar. Um de seus últimos artigos publicados, já em Harvard University no ano de 2009,
intitulado: Brazilian Concretismo, introductory remarks on postwar history and culture,
demonstram os caminhos de suas mais recentes reflexões. No ano de 2012, em entrevista realizada
por Martin Cezar Feijó e Christopher Dunn para a revista Trama Interdisciplinar da Universidade
Presbiteriana Mackenzie (EAHC-UPM), Nicolau discutiu sobre a dinâmica do movimento
Tropicália e seu impacto revolucionário na cultura brasileira: “Através do tropicalismo, os signos da
cultura pop internacional, os ritmos internacionais ligados à herança da cultura negra, tanto quanto o
Samba brasileiro, como eram o Jazz, o Blues, o Rhythm and Blues, o Rock ‘n’ Roll, foram, de
alguma maneira, cruzados com ritmos brasileiros e deram aquele momento prodigiosamente
criativo que foram os anos iniciais da Tropicália. Num certo sentido, eu tenho também a impressão
de que a Tropicália foi curta aqui no Brasil, como o Punk foi curto na Inglaterra e nos Estados
Unidos. Caetano Veloso tem essa mesma opinião, porque a Tropicália começou em 1967, o que,
mais ou menos, corresponde com o Summer of love nos Estados Unidos e terminou no final de
1968, com o Ato Institucional n. 5 (AI-5). Depois disso, o que há – e aí a diferença é notável – é
tropicalismo e não mais Tropicália”.
Sua trajetória como intelectual público, professor e historiador foi bruscamente
interrompida em 2014. Com certeza ainda havia muitas pesquisas a fazer, muitos textos a escrever e
contribuir para a historiografia da cultura brasileira. Sua genialidade marcou de maneira
incalculável a área das ciências humanas no Brasil e no exterior, colocando-o ao lado de figuras
proeminentes do pensamento nacional, como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio
Prado Júnior, Florestan Fernandes, Antonio Candido, Fernando Novais e Emília Viotti da Costa.
No dia 13 de agosto de 2015, exatamente um ano após seu falecimento, foi inaugurado o
“Anfiteatro Nicolau Sevcenko” na FFLCH da USP, em cerimônia realizada com uma bela
homenagem de colegas de trabalho, funcionários e amigos que conviveram com ele ao longo dos
anos de sua trajetória. Participaram os professores Elias Thomé Saliba, Ulpiano T. Bezerra de
Menezes, Jorge Grespan, Nelson Schapochnik, Osvaldo Coggiola, Maria Cristina Wissenbach,
Francisco Foot Hardman, José Arbex Jr. Além da esposa Cristina Carleti, que trouxe depoimento
bastante enriquecedor sobre a vida cotidiana de Nicolau. Os jovens historiadores de hoje podem
encontrar em Nicolau uma inspiração, um exemplo de seriedade e compromisso intelectual a ser
seguido. Nas palavras de sua colega e admiradora confessa, Laura de Mello e Souza, ele foi o
orgulho de uma geração. Nutrimos a esperança de que seu pensamento sobreviva aos
obscurantismos de nosso tempo.
Por Matheus Valdemir Germino
Mestrando em História e Sociedade pela UNESP/Assis-SP

Você também pode gostar