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© desta ediyáo, Boitempo, 201 G

© Editions La Découvenc, París, France, 2009, 2010

Tí mio original: La Nouvdle raisM du mond~. Esraí sur la société rtéolihérale

Coordenardo editorial lwma Jinlúngs


EdirJo lsabella Matcatti
Arristfncia editorial lhaisa Burani
Coordenardo de produrJo Livia Campos SUMÁRIO
Tradurdo Mariana Echalar
Preparafáo l;rederico Ventura
&visdo lhais RimktiS
Capa Ronaldo Alves
sobre foto de Tracy Olson (2005)
Diagramafáo Antonio Kehl
Equipe de apoio
Allan Jones, Ana Yumi Kajiki, Arrur Rcnzo, Bibiana Lcme, Eduardo Marques, Elaine Ramos, Giselle Porto, Ivam Oliveira,
K.im Doria, Leonardo Fabri, Marlene Baptista, .Maurício Barbosa, Renato Soarcs, Thaís Barros, 'Ihlio Candiotto

CIP-BRASIL. C.J\TALOGAC::ÁO NA PUBLICAC::ÁO


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ Prefácio aedic;:áo brasileira ............................ ;.......................................... 7
D229n
Dardot, Pierre
Agradecimentos .................................................................................... 11
A nova razáo do mundo : ensaio sobre a sodedade neoliberal/ Pierre Dardot ; lntrodus:ao aedis:ao inglesa (2014) ....................................................... 13
Christian Laval; traduc;.áo Mariana Echalar.- l. cd.- Sáo Paulo: Boitempo, 2016.
(Estado de sido)
Tradw;:áo de: La nouvelle raison du monde: essai sur la société néolibérale l A REFUNDAyÁO INTELECTUAL .................................................... 35
Indui índice
ISBN 978-85-7559-484-1 ' 1' Crise do liberalismo· e nascimento do neo liberalismo ...................... 37
l. Filosofia marxista. 2. Comunismo. l. Laval, Christian. II. Echalat, Mariana. III. Série.
t 2 O Colóquio Walter Lippmann ou a reinvens:ao do liberalismo ......... 71
16-30315 CDD: 320.ül
3 O ordoliberalismo entre "política económica'' e "política
CDU: 321.01
de sociedade" ................................................................................ 1O1
4 O hornero empresarial ................................................................... 133
Evedada a reproduc;:áo de qualquet parte deste livro sem a expressa autoriza,:ao da editora.
5 Estado forre, guardiao do direito privado ...................................... 157
Cet ouvrage a bénéficié du soutien a
Cet ouvrage, publié dans le cadte du Programrne d'Aide la Publication
a
des Programmes d'.Aide la Publication 2014 Carlos Drummond de Andrade de la médiath&quc, bénélicie du soutien du II A NOVA RACIONALIDAD E ........................................................... 187
de l'Institut franc;ais. Ministere franc;a.is des Affaires ÉtrangCres et du Développemem international.
Este livro comou com o apoio do Este livro, publicado no ámbito do Programa de Apoio aPublicayáo 2014 6 A grande virada ............................................................................. 189
Programa de Apoio aPublicao;áo do Carlos Drummond de Andrade da mediatcca; como u com o apoio do .Minlstério
Instituto Franci:s. france.s das Relayócs Exteriores e do Desenvolvimenro InternacionaL 7 As origens ordoliberais da constru~ao da Europa ........................... 245
8 O governo empresarial .................................................................. 271
.41l\ MéDJaTHtQUe
W MaisondePr:ance 9 A fábrica do sujeito neoliberal ....................................................... 321

Conclusáo- O esgotamento da democracia liberal ............................. 377


1' edi,:ao: abril de 2016

BOITEMPO EDITORIAL
Índice onomástico .............................................................................. 403
Jinkings Editores Assodados Ltda. Índice analítico ................................................................................... 409
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PREFÁCIO ÁEDigAO BRASILEIRA

U m sistema pós-democrático
O neo liberalismo tem urna história e urna coerencia. Combate-lo exige
náo se deixar iludir, fazer urna análise lúcida dele. O conhecimento e a
crítica do neoliberalismo sáo indispensáveis. A esquerda radical e alternativa
'Páo' pode contentar-se com denúncias e slogans, muitas vezes confusos,
Parciais o u at~mporai~: Assim; é errado dizer ··que estamos lidando com
o "capitalismo", sempre igual a ele mesmo, e com suas co:rltradi<;:óes, que
inevitavelmente levariam a ruína final. Eficácia política pressupóe urna
análise precisa, documentada, circunstanciada e atualizada da situayáo.
{:· O capitalismo é indissociável da história de suas metamorfoses, de seus
descarrilhamentos, das lutas que o transformam, das estratégias que o
renovam. O neoliberalisrno transforrnou profundamente o capitalismo,
transformando profundamente as sociedades.
Nesse sentido, o neoliberalisrno náo é apenas urna ideologia, urn tipo
de política econOrnica. É urn sistema normativo que amplio u sua influencia
ao mundo inteiro, estendendo a lógica do capital a todas as relayóes sodais
e a todas as esferas da vida.
A obra que voce lerá, e que finalmente está disponível em portugues gra-
a
yas editora Boitempo, foi escrita no periodo de gestayáo da crise financeira
mundial de 2008. Foi publicada no momento ern que se podia constatar
a arnplidáo dos estragos causados pelo neoliberalisrno. A convicyáo que
tínhamos ao escreve-la posstÚa fundamento: a crise náo foi suficiente para
fazer o neoliberalismo desaparecer. Muito pelo conirário, a crise apareceu
para as classes dominantes como urna oportunidade inesperada. Melhor,
como um modo de governo. Ficou demonstrado q~e o neoliberaliSmo,
8 Q A nova razáo do mundo Prefácio aedi¡;:áo brasileira @ 9

apesar dos desastres que engendra, possui urna notável capacidade de au- Além dos fatores sociológicos e políticos, os própri_os móbeis subjetivos
tofortalecimento. Ele fez surgir um sistema de normas e instituiyóes que da mobilizayáo sáo enfráquecidos pelo sistema neoliberal: a ayáo coletiva
comprime as sociedades como um nó de Jorca. As crises náo sáo para ele urna se tornou mais difí_cil, porque os indivíduos sáo subinetidos a um regime
ocasiáo para limitar-se, como aconteceu em meados do século XX, mas um de concorréncia em. todos os níveis. As formas de gestáo na empresa, o de-
meio de prosseguir cada vez com mais vigor sua trajetória de ilimitaráo. O semprego e a precariedade, a dívida e a avaliayáo, sáo poderosas alavancas
capitalismo, com ele, náo parece mais capaz de encontrar compensayóes, de concorrénda interindividual e-definem novas modos de subjetivayáo. A
contrapartidas, compromissos. A maneira como a crise de 2008 foi provi- polarizayáo entre os que desistem e os que sáo bem-sucedidos mina a solida-
soriamente superada, com urna inundayáo de moeda especulativa emitida riedade e a cidadania. Absten<_;:áo eleitoral, dessindicalizayáo, racismo, tuda
pelos bancos centrais, mostra que a lógica neoliberal escapa de maneira a
parece conduzir destruityáo das condiyóes do coletivo e, por consequéncia,
extraordinariamente perigosa. ao enfraquecimento da capacidade de agir contra o neoliberalismo.
O acúmulo de tensóes e problemas náo resolvidos, o refor<_;:o de ten- O sofrimento causado por essa subjetivayáo neo liberal, a mutilayáo que
déncias desigualitárias e desequilíbrios especulativos preparam dias cada ela opera na vida comum, no trabalho e fora dele, sáo tais que náo. podemos
vez mais difíceis para as populayóes. No entamo, o caráter sistémico do excluir a possibilidade de urna revolta antineoliberal de grande amplitude
dispositivo neoliberal torna qualquer inflexáo das políticas conduzidas ern -muitos paíseS. Mas náo devemos ignorar as mutayóes subjetivas pro-
muito difícil, ou mesmo impossível, no próprio ámbito do sistema. Com- vocadas pelo neoliberalismo que operarn no sentido do egoísmo social, da
preender politicamente o neoliberalismo pressupóe que se compreenda a' nega<_;:áo da solidariedade e da redistribuiyáo e que podern desembocar em
natureza do pro jeto social e político que ele representa e promove desde rnovimentos reacionários ou até mesmo neofascistas. As condiyóes de um
os anos 1930. Ele traz em si urna ideia multo particular da democraciai¡. ~onfronto de grande ~plitude-entre lógicas contrárias e foryas adversas em
que, sob muitos aspectos, deriva de um antidemocratismo: o direito pri;, escala mundial estáo se avolumando.
vado deveria ser isentado de qualquer deliberayáo e qualquer controleú A esquerda somente poderá tirar partido disso se souber remediar a
mesmo soba forma do sufrágio universal. Essa é a razáo pela qual a lógica pane de imaginaráo que vem sofrendo. A faléncia histórica do comunismo
náo controlada de autofortalecimento e radicalizayáo do neoliberalismct;, de Estado contribuiu em multo para sua ruína. Se quisermos ultrapassar o
obedece, hoje, a um cenário histórico que náo é o dos anos 1930, quando neo liberalismo, abrindo urna alternativa positiva, ternos de desenvolver urna
ocorreu urna revisáo das do u trinas e das políticas do "laissez-foire". Esse capacidade coletiva que ponha a imaginayáo política para trabalhar a partir
sistema fechado impede qualquer autocorreyáo de trajetória, em particular ~das experimentayóes e das lutas do presente. O princípio do comum que ema-
em razáo da desativa<_;:áo do jogo democrático e até mesmo, sob certos as- na hoje dos movimentos, das lutas e das experiéncias remete a um sistema
pectos, da política como atividade. O sistema neoliberal está nos fazendo a
de práticas diretamente contrárias racionalidade neoliberal e capazes de
entrar na era pós-democrática. revolucionar o conjunto das relayóes sociais. Essa nova razáo que emerge das
Na auséncia de margens de manobra, o confronto político com o práticas faz prevalecer o uso comum sobre a propriedade privada exclusiva,
sistema neo/ibera! enquanto tal é inevitável. -Mas esse confronto taffibém o autogoverno democrático sobre o comando hierárquico e, acima de tuda,
é problemático, porque é difícil reunir as condiyóes em que ele se dá. O torna a coatividade indissociável da codecisáo - náo há obriga<_;:áo política
sistema neoliberal é instaurado por for<_;:as e poderes que se apoiam uns nos sem participayáo em urna mesrna atividade. Como escrevemos nas últimas
outros em nível nacional e internacional. Oligarquias burocráticas e polí- linhas deste livro, precisamos trabalhar por urna outra razáo do mundo.
ticas, multinacionais, atores financeiros e grandes organismos econ6micos
Pierre Dardot e Christian Lava!
internacionais formam urna coalizayáo de poderes concretos que exercem
Fevereiro de 2016
certa funyáo política em escala mundial. Hoje, a relayáo de fon;:as pende
inegavelmente a favor desse bloca oligárquico.
AGRADEClMENTOS

Este livro é devedor, em prirneiro lugar, de todas aquelas e todos aqueles


que participaram nos últimos anos do seminário "Question Marx", no qual
foram apresentadas e discutidas nossas pesqUisas sobre o neoliberalismo.
Queremos agradecer especialmente aos participantes que enriqueceram
nossa reflexio coletiva com suas apresentayóes, em particular Gilles Dostaler,
Agnes Labrousse, Dominique Plihon, Pascal Petit e Isabelle Rochet. Deve-
mos· muito a nosso editor, Hugues Jallon, que acompanha d€sde o início a
pequena aventura do seminário "Question Marx'' e nos ajudou enormemente
com seus conselhos para a composiyáo da obra. Agradecernos igualmente a
Bruno Auerbach, pela releitura atenta e paciente do original.
Mas nada disso teria sido possível serna amizade fiel e o apoio intelectual
de El Mouhoub Mouhoud, que se associou desde o início a redayáo deste
livro, tampouco sem a ajuda táo constante quanto preciosa deAnne Dardot,
que várias vezes releu e organizo u o original, sem nunca medir esforyos.
INTRODUgÁO Á EDI<;;ÁO INGLESA (2014) *

''Ainda náo terminamos com o neo liberalismo" era a primeira frase da


Introduyáo aprimeira ediyáo francesa deste livro, publicada em janeiro de
2009. Na época, ·queríamos dissipar o quanto antes as ilusóes que surgiram
coma falencia do banco Lehman Brothers, em setembro de 2008. Muitos
pensavam, na Europa e nos Estados Unidos, que a crise financeira soara as
bad~adas finai~ do neoliberalisrno e que seria. a vez do "retorno do Estado"
e da regulayáo dos mercados. Jos~ph Stiglitz perc~rria o mundo anunciando
"o fim do neoliberalismo", e autoridades políticas, como o presidente frances
Nicolas Sarkozy, proclamavam a reabilitayáo da intervenyáo governamental
na econornia.
Perigosas, urna vez que poderiam suscitar urna desmobilizayáo política,
essas ilusóes náo tinham razóes para nos deixar admirados: baseavam-se
num erro de diagnóstico amplamente compartilhado, o qual nossa obra
tinha o objetivo de combater. Engarrar-se sobre a verdadeira natureza do
neoliberalismo, ignorar sua história, náo enxergar suas profundas motivac;:óes
sociais e subjetivas era condenar-se acegueira e continuar desarmado diante
do que náo ia demorar a acontecer: longe de provocar o enfraquecimento
das políticas neoliberais, a crise conduzíu a seu brutal fortalecimento, na
forma de planos de austeridade adotados por Estados cada vez mais ativos

* Originalmente publicado na Franqa, ero 2009, este livro teve runa ediyáo inglesa,
reduzida e adaptada em 2013 e revista em 2014. Embora a presente traduc;áo tenha
sido feita a partir do original frances, a ediyáo que ora se apiesenta ao leitor brasileiro
incorporou, por meio de cotejo e coma supervisáo dos autOres, a reduyáo, as adap-
tayóes e as correqóes da ediyáo inglesa de 2014, entre elas, esta introduyáo revista e
ampliada. (N. E.)
Introdw;:áo aedis:áo inglesa (2014) • 15
14 ~ A nova razáo do mundo

na promo~o da lógica da concorréncia dos mercados financeiros. Parecia- Se admitirmos que sempre há "intervenc;:áo", esta é unicamente no
-nos, e boje nos parece mais do que nunca, que a análise da génese e do sentido de urna ac;:áo pela qual o Estado mina os alicerces de sua própria
funcionamento do neoliberalismo é condiyáo para urna resisténcia eficaz existéncia, enfraque~~~_do a missáo do servic;:o público previamente confiada
em escala europeia e mundial. Ainda que pretenda respeitar os critérios da a ele. "Intervencionismo" exclusivamente negativo, poderíamos dizer, que
pesquisa científica, este livro nao é académico no sentido tradicional do nada mais é que a face política ativa da preparayáo da retirada do Estado
termo, mas pretende-se primeiro, e acima de tuda, urna obra de esdareci- por ele próprio, portante, de um-anti-intervencionismo como prindpio.
mento político sobre essa lógica normativa global que é o neoliberalismo. Náo é nossa intenc;:áo contestar a existéncia e a difusáo dessa ideologia,
Ero urna palavra, a compreens:lo do neoliberalismo é, a nosso ver, urna tampouco negar que ela tenha alimentado as políticas económicas impulsio-
questao estratégica universal. nadas macic;:amente a partir dos anos Reagan e Thatcher e encontrado emAlan
Greenspan, o "maestro de Wall Street", seu adepto mais fervoroso - com as
consequéncias que todos conhecemos3• O que Joseph Stiglitz chamou com
U m erro de diagnóstico justic;:a de "fanatismo do mercado" é, aliás, o que os periódicos Wáll Street
A partir do fim dos anos 1970 e do início dos anos 1980, o neoliberalismo ]ournal, Ihe Economist e todos os equivale.rites ao redor do mundo sabem
foi interpretado em geral como se fosse ao mesmo tempo urna ideologia e fomentar melhor entre seus leitoreé. Mas o neoliberalismo está muito dis-
urna política económica diretamente inspirada nessa ideologia. O núcleo duro tante de se resumir a um ato de fé fanático na naturalidade do mercado. O
dessa ideo logia seria constituído por urna identificac;:áo do mercado coro., grande erro cometido por aqueles que anunciam a "morte do liberalismo" é
urna realidade natural 1 • Segundo essa ontologia naturalista, bastada deixar · c.<;mfundir a rep~·esentay:lo ideológica que aconipanha a implantac;:áo· das po-
essa realidade por sua própria canta para ela alcanc;:ar equilíbrio, estabilida-',.· líticas neoliberals coma ~ormatividade prática que caracteriza propriamente
de e crescimento. Qualquer intervenyáo do governo só poderia desregulan o neoliberalismo. Por isso, o relativo descrédito que atinge h~je a ideologia
e perturbar esse curso espondneo, logo convinha estimular urna atitude ~;_ do /aissez:foire náo impede de forma alguma que o neoliberalismo predomine
abstencionista. O neo liberalismo compreendido dessa forma apresen ta-se. mais do que nunca enquanto sistema normativo dotado de cena eficiéncia,
como reabilitas;áo pura e simples do laissezjaire. Considerado do ponto de Í; isto é, capaz de orientar internamente a prática efetiva dos governos, das em-
vista de sua implantac;:áo política, foi analisado de pronto de forma muito presas e, para além deles, de milhóes de pessoas que náo tém necessariamente
estreita, segundo a perspicaz observac;:áo de Wendy Brown: consciénda disso. Este é o ponto principal da questáo: como é que, apesar
das consequéncias catastróficas a que nos conduziram as políticas neoliberais,
Como instrumento da política económica do Estado, como desmantelamen-
essas políticas sáo cada vez mais ativas, a ponto de afundar os Estados e as
to dos auxílios sociais, da progressividade do imposto e out~as ferramentas
de redistribuü;:áo de riquezas de um lado e como estÍmulo da atividade sem sociedades em crises políticas e retrocessos sociais cada vez mais graves? Como
entraves ao capital mediante a desregulamenta<;:áo do sistema de saúde, do é que, há mais de trinta anos, essas mesmas políticas vém se desenvolvendo
trabalho e do meio ambiente de ourro. 2 e se aprofundando, sem encontrar resisténcias suficientemente substanciais
para colocá-las em xeque?

Esse credo naturalista, que era o de Jean-Baptiste Say e Frédéric Bastiat, foi per-
feitamente formulado nos seguintes termos pelo ensaísta francCs Alain Mine: "O
3
capitalismo nao pode ruir, ele é o estado natural da sociedad e. A democracia náo é A lei, de Frédérlc Bastiat [trad. Ronaldo da Silva Legey, 2. ed., Rio de Janeiro,
o estado natural da sociedade. O mercado, si m" (Cambio 16, Madri, 5 dez. 1994). Instituto Liberal, 1991], era o livro de cabeceira de Ronald Reagan no início dos
2 anos 1960. Ver Alain Laurent, Le libéralísme amérícaín- (Paris, Les Belles Lettres,
Wendy Brown, Les habits neufi de la polítíque mondíale, néolibéralisme et néoconser-
2006), p. 177.
vatísme (trad. Christine Vivier, Philippe Mangeot e lsabelle Saint-Saens, Paris, Les
4
Prairies Ordinaires, 2007), p. 37. Esse ensaio incisivo nos ajudou muito a formular }oseph Stiglitz, Un autre monde: contre le fonatísme du marché (trad. Paul Chemla,
nossa própria compreensio do neoliberalismo. Paris, Fayard, 2006).
16 • A nova razáo do mundo Introdu!Táoaedls;áoinglesa(2014) • 17

A resposta náo é e náo pode ser limitada apenas aos aspectos "negativos" O neoliberalismo como racionalidade
das políticas neoliberais, isto é, a destrui¡;:áo programada das regularnentayóes
A tese defendida por esta obra é precisamente que o neoliberalisrllo,
e das instituiyóes. O neoliberalisrno náo destrói apenas regras, instituiyóes,
antes de ser urna ideologia ou urna política económica, é em primeiro lugar
direitos. Ele tambérn produz certos tipos de relayóes sociais, certas maneiras
e fundamentalmente urna raciona!idade e, como tal, tende a estruturar e
de viver, certas subjetividades. Em outras palavras, Corn Oneoliberalismo,
organizar náo apenas a a¡;:áo dos govequntes, mas até a própria conduta dos
o que está ern jogo é nada mais nada menos que a forma de nossa existéncia,
governados. A racionalidade neoliberal tem como característica principal a
isto é, a forma como somos levados a nos comportar, a nos relacionar corn
generalizayáo da concorréncia como norma de conduta e da. empresa como
os outros e com nós mesmos. O neoliberalismo define certa norma de vida
modelo de subjetivayáo. O termo racionalidade náo é ernpregado aqui como
nas sociedades ocidentais e, para além dela, em todas as sociedades que as
uro eufemismo que nos permite evitar a palavra "capitalismo". O neolibera-
seguern no caminho da "modernidade". Essa norma impóe a cada um de
lismo é a razáo do capitalismo contemporáneo, de um capitalismo desimpedido
nós que vivamos num nniverso de cornpetiyáo generalizada, intima os assa-
de suas referéncias arcaizantes e plenamente. assumido como construyáo
lariados e as populayóes a entrar erri luta econürnica uns contra os outros,
histórica e norma geral de vida. O neo liberalismo pode ser definido como
ordena as relayóes sociais segundo o modelo do mercado, abriga a justificar
o conjunto de discursos, práticas e dispositivoS que determinam urn novo
desigualdades cada vez mais proflUldas, muda até o indivíduo, que é instado a
modo de governo dos homens segundo o princípio universal da concorréncia.
conceber a si mesmo e a comportar-se corno urna empresa. Há quase um teryo
O conceito de "racionalidade políticá' foi elaborado por Michel Foucault
de século, essa norma de vida rege as políticas públicas, comanda as relayóes .,
econümicas mundiais, transforma a sociedade, rernodela a subjetividade. & .
ern rela,<;io direta coro as pesquisas que dedicou a.questio da "governamen-
tali,tlade". Assim, ~·ncontram'üs na explanayáo do CU,!-'SO dado no College de
circunstáncias desse sucesso normativo foram descritas inúmeras vezes. Ora,,
France em 1978-1979 - publicado com o título de Nascimento'da biopolí-
sob seu aspecto político (a conquista do poder pelas foryas neoliberais), ora sob
ticé - urna apresentayio do "plano de análise" escolhido para o estudo do
seu aspecto económico (o rápido crescimento do capitalismo financeiro glo-
neoliberalismo: trata-se, diz Foucault, ern resumo, "de um plano de análise
balizado), ora sob seu aspecto social (a individualizayáo das relayóes sociais
possível- o da 'razio governarnental', isto é, dos tipos de racionalidade que
as expensas das solidariedades coletivas, a polarizayáo extrema entre ricos e J'
sao empregados nos procedirnentos pelos quais se dirige, através de urna
pobres), ora sob seu aspecto subjetivo (o surgirnento de um novo sujeito,
adrninistrayáo de Estado, a conduta dos homens" 7• Urna racionalidade
o desenvolvimento de novas patologias psíquicas). Tuda isso sao dimensóes
política é, nesse sentido, urna racionalidade "governarnental".
complementares da nova razáo do mundo. Devemos entender, por isso, que
essa razáo é global, nos dais sentidos que pode ter o termo: é "mlUldial", no
sentido de que vale de lmediato para o mundo todo; e, ademais, longe de
limitar-se a esfera económica, tende a totalizayáo, isto é, a "fazer o ffilUldo" obra dedicada ao caráter "relativo" e "impessoal" do amor ao próximo no calvinis-
por seu poder de integrayáo de todas as dimensóes da existéncia humana. mo, encontramos a expressio "configuras;áo racional do cosmo social" (ibidem,
p. 175). Nesse sentido, e desde que o social náo seja reduzido a apenas ma.is urna das
Razáo do rnnndo, mas ao mesmo tempo urna "razáo-mundo" 5 •
dimensóes da existénda humana, poderíamos dizer que a razáo neoliberal é muito
precisamente a raza o de nosso "cosmo social".
6
5
A ideia de urna razáo configuradora do mundo encontra-se em Max Weber, embota Michel Foucault, Naissance de la biopolitique (Paris, Seuil!Gallimard, 2004) [ed.
se refira essencialmente a ordem económica capitalista, esse "imenso cosmo" que bras.: Nascimento da biopolitica, trad. Eduardo Brandáo, Sáo Paulo, Martins Fontes,
"impóe ao indivíduo pego nas armadilhas do mercado as normas de sua atividade 2008]. Esse curso constitui a referéncia central pela qua! se ordena toda a análise do
económica" (L'éthique protestante et !'esprit du capitalisme, trad. Isabel! e Kalinowski, neoliberalismo ensaiada nesta obra. -
7
Paris, Champs Flammarion, 2000, p. 93-4 [ed. bras.: A ética protestante e o espírito Ibidem, p. 327; reproduzido em Dits etécrits JI (1976-1988) (Paris, Gallimard, 2001),
do capitalismo, trad. José Marcos Mariani de Macedo, ed. AntOnio Flávio Pierucd, p. 823. Sobre a nos;áo de racionalidade política, ver ainda esta última obra, p. 818
Sáo Paulo, Companhia das Letras, 2012]). Contudo, numa passagem dessa mesma e L645-6,
Introdw;:áo aedi<;:áo inglesa (2014) " 19
18 o A nova razáo do mundo

nder ainda sobre o sentido dessa no'tio de "governo": requer liberdade como condi'táO de possibilidade: governar náo é governar
D evemos noS este
" 'rata-se [... J na~ 0 da instituic;áo 'governo', mas da atividade que consiste em contra a liberdade o u a despeito da libetdade, mas governar pela liberdade,
1
reger a Conduta dos homens no interior de um quadro e com instrumentos de isto é, agir ativamente-no espa'to de liberdade dado aos indivíduos para que
Estado"s. Foucault retoma várias vezes essa ideia do governo como atividade, estes venham a conformar-se por si mesmos a certas normas.
e náo como institui'táo. Assim, no resumo do curso do College de France Abordar a questáo do neoliberalismo pela via de urna reflexáo política
intitulado Do governo dos vivos*, essa no'táo é "entendida no sentido amplo sobre o modo de governo modifica necessariamente a compreensáo que se
de técnicas e procedimentos destinados a dirigir a conduta dos homens" 9• tem dele. Em primeiro lugar, permite refutar análises simplistas em termos de
Ou entáo, no prefácio a História da sexualidade**, há este esclarecimento "retirada do Estado" diante do mercado, já que a oposiyáo entre o mercado
retrospectivo de sua análise das práticas punitivas: ele se diz interessado, e o Estado aparece como um dos principais obstáculos i caracteriza'táo exata
acima de rudo, nos procedimentos do poder, ou seja, "na elaborayáo e na do neo liberalismo. Ao contrário de certa percepyáo imediata, e de certa ideia
implantayáo desde o século XV1I de técnicas para 'governar' os indivíduos, demasiado simples, de que os mercados conquistaram a partir de fora os
isto é, para 'conduzir sua conduta', e isso em domínios táo diferentes quanto Estados e ditam a política que estes devem seguir, foram antes os Estados,
a escala, o Exército, a fábrica'' 10 . O termo "governamentalidade" foi intro- e os mais poderosos em primeiro lugar, que introduziram e universalizaram
duzido precisamente para significar as múltiplas formas dessa atividade pela na economia, na sóciedade e até neles próprios a lógica da concorrencia e
qual homens, que podem o u náo pertencer a um governo, buscam conduzir o modelo de empresa. Náo podemos esquecer jamais que a expansáo das
a conduta de o u tras homens, isto é, governá-los. ' _finan'tas de mercado, assirn como o financiamento da divida pública nos
É certo que o governo, longe de remeter adisciplina para alcan'tar o mais ni'ácados de titul9s, s~o fruto de políticas deliberadas. Como se vé até mesmo
íntimo do indivíduo, visa na verdade a obter um autogoverno do indivíduq,; na atual crise na Europa, os EstadOs adotam políti~as altamente "interven-
isto é, produzir cerro tipo de relayáo deste consigo mesmo. Em 1982, Foucaul,t cionistas", que visam a alterar profundamente as relayóes sociais, mudar o
dirá que se interessa cada vez mais pelo "modo de ayáo que um indivídu~ papel das institui'tóes de proteyáo social e educayáo, orientar as condutas
exerce sobre si mesmo por meio das técnicas de si", a ponto de ampliar sua criando urna concorrencia generalizada entre os sujeitos, e isso porque eles
primeira concep'táo de governamentalidade, excessivamente centrada na~ próprios estáo inseridos num campo de concorréncia regional e mundial que
técnicas de exercício do poder sobre os otltros: "Chamo de 'governamenta- os leva a agir dessa forma. Mais urna vez, comprovamos as grandes análises
lidade' o encontro entre as técnicas de domina~o exercidas sobre os outros e de Marx, Weber ou Polanyi segundo as quais o mercado moderno náo atua
as técnicas de si" 11 • Assim, governar é conduzir a conduta dos homens, desde sozinho: ele foi sempre amparado pelo Estado. Em segundo lugar, a via da
que se especifique que essa conduta é tanto aquela que se tem para consigo reflexáo política permite compreender que é urna rnesma lógica normativa
mesmo quanto aquela que se tem para com os outros. É nisso que o governo que rege as rela'tóes de poder e as maneiras de governar em níveis e domínios
muitos diferentes da vida econ6mica, política e social. Ao contrário de urna
leitura do mundo social que o divide em campos aut6nomos, o fragmenta em
s Michel Foucault, Naissance de la bíopolitíque, cit., p. 324; reproduzido em Dits et
microcosmos e tribos separadas, a análise em termos de governamentalidade
écrits JI, cit., p. 819.
destaca o caráter transversal dos modos de poder exercidos no interior de
* Trad. Eduardo Brandáo, Sáo Paulo, Martins Fontes, 2014. (N. E.)
urna sociedade numa mesma época.
'! Michel Foucault, Dits et écrits JI, cit., p. 944.
** Trad. Maria Thereza da CostaAlbuquerque, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2014-2015,
3 v. (N. E.)
Os limites do marxismo
10 Michel Foucault, Dits etécrits JI, cit., p. 1.401.
11 Idem, "Les techniques de soi", em Dits et écríts JI, cit., p. 1.604. É nesse sentido Enfatizando o regime disciplinar imposto a todos pela lógica normativa
amplo que será tomado aqui o termo "govcrnamentalidade". que se encarno u ern instituiyóes e dispositivos de poder cujo alcance boje é
il
20 " A nova razáo do mundo
Introduc_;:.áo aedis:áo inglesa (20 14) • 21

mundial, nosso pensamento difere um pouco de muitas das interpretayóes a f6rceps a lei táo pouco natural da concorréncia e o modelo da empresa.
do neo liberalismo dadas até o momento. Náo contestamos que as políticas Para isso, é preciso en&aqÚecer as institui'tóes e· os direit?s que o movimento
neoliberais foram impostas primeiro pela rnais crirninosa das violéncias no operário conseguiu implantar a partir do fim do século XIX, o que pressupóe
Chile, na Argentina, na Indonésia e em outros lugares, corno apoio decisi- urna guerra langa, contínua e muitas vezes silenciosa, qualquer que seja a
vo dos países capitalistas, a comeyar pelos Estados Unidos. O trabalho de amplidáo do "choque" que sirva de pretexto para determinada ofensiva.
Naomi Klein, muito bern documentado a respeito desse ponto, continua Portante, é fundamental compieender como se exerce hoje a violéncia
obrigatório 12 • Nesse aspecto, há urna frase de Marx que náo envelheceu: comum, rotineira, que pesa sobre os indivíduos, amaneira de Marx tal vez,
"Na história real, corno se sabe, o papel principal é desernpenhado pela quando observava que a dominayáo do capital sobre a· trabalho recorria
conquista, a subjugayáo, o assassínio para roubar, ern suma, a violéncia" 13 • apenas excepcionalmente a violéncia extraeconómica-- e exercia-se mais
Esse parto na violéncia revela, em prirneiro lugar, o fato de que se trata de comumente na forma de urna "coeryáo muda'' inserida nas palavras e nas
urna guerra que se trava por todos os meios disponíveis, inclusive o terror; coisas 14 . Todavia, náo se trata mais de se perguntar como, de maneira geral,
e que se aproveita de todas as ocasióes possíveis para implantar o novo as relayóes capitalistas impóem-se aconsciéncia operária como "leis naturais
regime de poder e a nova forma de existéncia. Por isso, se reduzíssernos o evidentes"; trata-se de compreender, mais especificamente, corno a gover-
neo liberalismo aaplicayáo do programa económico da Escala de Chicago namentalidade neoliberal escora-se num quadro normativo global que, em
pelos métodos da ditadura militar, enveredaríarnos pelo caminho errado. no me da liberdade e apoiando-se nas rnargens de manobra concedidas aos
Convém náo confundir estratégia geral corn métodos particulares. Esú:~s indivíduos, orienta de maneira nova as condutas, as escolhas e as práticas
dependem das circunstancias locais, das relayóes de foryas e das fases desses indivídwps.
históricas: podern tanto empregar a brutalidade do putsch militar cornq' a Assirn, náo 'podernos nos coütentar com as 'liyóes de Karl Marx nem
seduyáo eleitoreira das dasses rnédias; podem usar e abusar da chantagem de Rosa Luxemburgo para desvelar o segredo dessa estranha faculdade do
do ernprego e do crescimento e aproveitar os déficits e as dívidas como pré- neoliberalismo de se estender por toda a parte, apesar de suas crises e das
texto para as "reformas estruturais", como fazern há muito ternpo o Fun4o revoltas que suscita em todo o mundo. Por razóes teóricas básicas, a inter-
Monetário Internacional (FMI) e a Uniáo Europeia. O questionamento pretayáo marxista, por mais atual que seja, revela-se de urna insu:ficiéncia
da democracia toma caminhos diversos, que nem sernpre tém a ver corn gritante nesse caso. O neoliberalisrno emprega técnicas de poder inéditas
a "terapia de choque", mas, sirn, e sobretudo, com o que Wendy Brown sobre as condutas e as subjetividades. Ele náo pode ser reduzido aexpansáo
chamou, corn justiya, de processo de "desdemocratizayáo", que consiste espontánea da esfera mercantil e do campo de acumulayáo do capital. Náo
ern esvaziar a democracia de sua substincia sem a extinguir formalmente. que se deva defender, contra o determinismo monocausal de certo marxismo,
Náo há dúvida de que há urna guerra senda travada Pelos grupos oligár- a relativa autonomia da política, simplesmente porque o neoliberalismo,
quicos, na qual se rnisturarn de forma específica, a cada ocasiáo, os interesses por muitos de seus aspectos doutrinais e nas políticas que desenvolve, náo
da alta administrayáo, dos oligopólios privados, dos economistas e das rnídias separa "a economia" do quadro jurídico-institucional que determina as
(sem mencionar o Exército e a Igreja). Mas essa guerra visa náo aPenas a práticas próprias da "ordem concorrencial" mundial e nacional.
mudar a economia para "purificá-la'' das más ingeréncias públicas, como Embora tenham previsto a crise financeira de 2008, as interpretayóes
também a transformar profundamente a própria sociedade, impondo-lhe marxistas nem sempre conseguem captar a novidade do capitalismo neo li-
beral: fechando-se numa concepyáo que faz da "lógica do capital" um motor
aut6nomo da história, elas reduzem a história a urna repeti'táo dos mesmos
12
Nao mi Klein, The Shock Doctrine: The Rise ofDisaster Capitalism (Londres, Penguin,
roteiros, com as mesmas personagens vestidas com 'novas figurines e as
2008).
13 Karl Marx, O capitaL crítica da economía política, Livro I: O processo de produráo do
capital (trad. Rubens Enderle, Sáo Paulo, Boitempo, 2013), cap. 24, p. 786. 14
Ibídem, p. 808.
22 s A nova razáo do mundo Introdw;:áo aedis:áo inglesa (2014) o 23

mesmas intrigas situadas em novas cenários. Em o u tras palavras, a história a


ou seu foco genuíno e como se o recurso intencionalidade de um su jeito
do capitalismo nunca é rnais do que o desenvolvimento de urna mesma fosse o princípio último de toda inteligibilidade histórica.
esséncia sempre idéntica a si mesma, aquém de suas formas fenomenais e Mas, se a expl~c_ayáC? ~ sedutora, é justamente porque, contrariando as
fases, e, no fundo, leva de crise em crise até a ruína final. O neo liberalismo, liyóes de Marx, ela toma os resultados históricos de wn processo por objetivos
entendido desse modo, é a um só tempo a más-Cara e o instrumento das decididos lago de início com plena consciéncia. A incontestável polarizayio
finanyas, as quais sáo o sujeito histórico real. Para Gérard Duménil e Domi- de riqueza e pobreza a que levou a implantayao das políticas neoliberais basta
nique Lévy, o neoliberalismo "restaurou as regras mais estritas do capitalismo" por si só para explicar sua natureza. Esta, no fundo, seria apenas a eterna
("Neoliberalism has restored the strictest rules of capitalism")15, permitindo tendéncia do capital de se autovalorizar mediante a expansio da mercado tia.
ao poder do capital continuar sua marcha multissecular sob formas que Nio teria acontecido nada de muito diferente desde 1867, quando Marx
se renovam por meio das crises. O próprio David Harvey, embora muito exp6s o jogo das leis da acwnulayio capitalista, fazendo a mercado da, forma
mais cuidadoso com a novidade do neoliberalismo, continua a aderir a um elementar da riqueza burguesa, remontar aacumulayáo original que produz
esquema explicativo muito pouco original 16 • Para ele, a crise da acumulayáo as condiyóes históricas da transformayio da rnercadoria e do dinheiro em
nos anos 1960, marcada pela estagflayao e pela diminuiyáo dos lucros, teria capital. Na medida em que a análise de Marx faz da relayáo salarial como
incitado a burguesia a ir a"desforra", empregando por ocasiáo dessa crise, relayio mercantil sui generis o corayáo do capitalismo, essa crítica tende
e para sair dela, o projeto social formulado pelos teóricos da Sociedade logicamente a privilegiar a relayáo mercantil como modelo de toda relayao
Mont-Pelerin. O Estado neoliberal, para além de seus trayos específicos., e social - o neoliberalismo equivaleria, assim, a mercantilizayio implacável
a despeito de seu intervencionismo, continua a ser visto como um simple>s de;}oda a socied~de. É o q1:1e Duménil e Lévy silstentam quando esc'revem:
instrumento nas maos de urna classe capitalista desejosa de restaurar u~a "Final/y neoliberalism is indeed the bearer ofa processofgeneral commodification
relayao de forya favorável vis-lt-vis aos trabalhadores e, desse modo, aumeG-- ofsocial relationships" ["em última análise, o neoliberalismo é ~ portador de
tar sua parte na distribuiyao de renda. O aumento das desigualdades e ·b um processo de mercantilizayio generalizada das relayóes sociais"] 19 •
crescimento da concentrayao de renda e patrimOnio que podernos constatar David Harvey concorda largamente com essa tese. O que ele designa
hoje confirmam a existéncia dessa vontade inicial 17 • No fundo, rudo resick corno "acumulayio por despossessáo", expressio que sob sua caneta reme-
na resposta de Duménil e Lévy a perguma "Quem lucra com o crime?" te ao significado mais profundo de "neoliberalizayáo" da sociedade, tem
("W'ho benefits from the crime?") 18 : como sao as finanyas que lucram, sao como efeito a expansáo a priori ilimitada da rnercantilizayáo20 • Contudo,
elas que desde o princípio estio no comando da manobra. Ternos aqui um ele acrescenta urna pincelada ao quadro- mérito que lhe deve ser reconhe-
paralogismo recorrente que consiste em confundir o beneficiário do crime cido - quando sublinha que os métodos da "suposta acumulayáo original"
com seu autor, como se O surgimento de wna nova fofrna social devesse perduraram muito além do surgimento do capitalismo industrial e quando
ser reconduzido a consciéncia de um o u mais estrategistas como sua fonte considera Karl Polanyi o historiador do capitalismo mais pertinente para
se compreender como, ainda hoje, a intervenyio pública é necessária para
construir mercados e criar "mercadorias fictícias". Mas o verdadeiro motor
15
Ver Gérard Duménil e Dominique Lévy, Capital Resurgent: Roots of the Neo/ibera! da história continua a ser o poder do capital, que subordina o Estado e a
Revolution (trad. DerekJeffers, Cambridge, Harvard University Press, 2004), p. l. sociedade, colocando-os a serviyo de sua acurnulayio cega.
¡r, Ver David Harvey, ABriefHistory ofNeoliberalísm (Oxford, Oxford University Press,
2005) [ed. bras.: O neoliberalismo: história e implicapóes, Sáo Paulo, Loyola, 2008].
17
Harvey toma amplamente esse quadro explicativo de Dwnénil e Lévy, utilizando os
19
gráficos construídos pelos autores para mostrar a evolw;:áo da distribuis:áo de renda lbidem, p. 2.
no capitalismo neoliberal. 20
Ver a ses:áo intitulada "The Commodificacion of Everything", em David Harvey, A
18
Título do capítulo 15 de Gérard Dum~nil e Dominique Lévy, Capital Resurgent, cit. BriefHistory ofNeoliberalism,. cit., p. 165 e seg.
Imrodw;:áo aedi!;:áo inglesa (2014) • 25
24 .. A nova razio do mundo

Esse esquema, amplamente compartilhado pelo movimento altermun- económico a partir de dentro. "O inconsciente dos economistas", como diz
dialista, rem algumas fraquezas. Além de fazer da economia a única dimeri- Foucault, que é na verdad~ o inconsciente de todo econopücismo, seja liberal,
sáo do neoliberalismo, pressupóe que a burguesia é um sujeito histórico seja marxista, é preci:¡:a_mente a instituiyáo, e é justamente a institui~o que
que perdura no tempo, que preexiste as relayóes de Juta que engaja coro as o neoliberalismo, em particular em sua versáo ordoliberal, quer reconduzir
outras dasses e que semente preciso u alertar, influenciar e corromper os a wna posiyáo determinante21 •
políticos para que estes abandonassem as políticas keynesianas e as fórmu- Tocamos aqui num ponto fund3mental, cuja implicayáo política tem a
las de compromisso entre o trabalho e o capital. Em Harvey, esse cenário ver com a questáo da possibilidade de sobrevivencia do capitalismo alérn de
entra em contradiyáo com o reconhecimenro de que as dasses mudaram suas crises, urna possibilidade que, como bem sabemos, fOi discutida nova-
profundamente ao longo do processo de neoliberalizayáo- a ponto de novas mente no auge da crise de novembro de 2008. Se nos Colocarmos sob urna
burguesias terem surgido diretamente dos aparelhos comunistas em certos perspectiva marxista, a lógica única e necessária da acumulayáo do capital
países (oligarcas na Rússia, príncipes vermelhos na China)- e é incoerente determina a unicidade do capitalismo: "Há na verdade apenas um capitalis-
coro a análise bastante precisa das formas específicas de intervenyáo do mo, porque há apenas uma lógica do capital", como observa Foucaul-f2 • As
Estado neoliberal. contradiyóes que a sociedade capitalista manifesta em todas as épocas sáo as
Na realidade, náo houve um grande compló nem urna doutrina pré- contradiyóes do capitalismo tout court. Por exemplo, se seguirmos a análise
-fabricada que os políticos teriam aplicado com cinismo e determinayáo para do Livro I de O capital, a consequencia da lei geral da acumulayáo capitalista
satisfazer as expectativas de seus poderosos amigos do mundo dos negócios.''A é uma tendéncia acentralizayáo dos capitais, da qual a concorrencia, junta-
lógica normativa que acabo u se impendo constituiu-se ao longo de batalhas mepte como cré<;lito, é a p,dncipal alavanca. A tendéncia acentralizayáo está,
inicialmente incertas e de políticas frequentemente tateantes. A sociedad-e portante, na prÓpria lógica da cüncorréncia com.O urna "lei natural",. a da
neoliberal em que vivemos é fruto de wn processo histórico que náo ~oi "atrayáo do capital pelo capital" 23 • Mas se pensarmos como os ordoliberais-
integralmente programado por seus pioneiros; os elementos que a compóe.Q-l e, depois deles, como os economistas "regulacionistas" 24 - que a figura atual
reuniram-se pouco a pouco, interagindo uns com os outros, fortalecendo do capitalismo, longe de poder se deduzir diretamente da lógica do capital,
uns aos ourros. Da mesma forma como náo é resultado direto de Ulll:<l náo passa de "urna figura económico-institucional" historicamente singular,
doutrina homogenea, a sociedade neoliberal náo é reflexo de urna lógica do devemos convir, entáo, que a forma do capitalismo e os mecanismos da crise
capital que suscita as formas sociais, culrurais e políticas que Ihe convém a sáo efeito contingente de certas regras jurídicas, náo consequencia neces-
medida que se expande. A explicayáo marxista clássica esquece que a crise sária das leis da acumulayáo capitalista. Por conseguinte, sáo suscetiveis de
de acumulayáo a que o neoliberalismo supostamente responde, Ionge de ser ser superadas acusta de transformayóes jurídico-institucionais. Ern última
urna crise de um capitalismo sernpre igual a si mesmo, terh a particularidade análise, o que justifica o intervencionismo jurídico reivindicado pelo neo-
de estar ligada as regras institucion~s que até entáo enquadravam cerro tipo liberalismo é que, quando se lida com um capitalismo singular, é possível
de capitalismo. Consequentemente, a originalidade do neoliberalismo está
no fato de criar um novo conjunto de regras que definem náo apenaS outro 21
Paremos aqui urna observas:áo que tem sua importánda. Muitos críticos do neolibe-
"regime de acumulayáO'', mas também, mais amplamente, outra sodedade. ralismo tratam com enorme desprezo o objeto de seus ataques, como se náo tivessem
Tocamos aqui num ponto fundamental. Na concepyáo marxista, o capita- nada para aprender com seus adversários teóricos. Evidentemente, essa é urna atitude
m nito contrária aque Marx adotou em rela¡¡áo aos defensores do capitalismo liberal,
lismo é, antes de rudo, um "modo de produyáo" económico que, corno tal,
assim como a de Foucault coro relayio aos neoliberais.
é independente do direito e gera a ordern jurídico-política de que necessita 22
Michel Foucault, Naíssance de la biopolitique, cit., p. 170.
a cada estágio de seu autodesenvolvimenro. Ora, longe de pertencer a urna 23 Karl Marx, O capital, Livro I, cit., cap. 23, p. 702.
"superestrutura'' condenada a exprimir o u obstruir o económico, o jurídico 2
,¡ Ver Robert Boyer e Yves Saillard, Regulation 1heory: lhe State of the Art (Londres,
pertence de imediato as relayóes de produyáo, na medida em que molda o Roudedge, 2002).
26 ~ A nova razáo do mundo lntrodw;:áo aediqáo inglesa (2014) ~ 27

intervir nesse conjunto de maneira a inventar outro capitalismo, diferente do termo. E é precisamente o que se pode observar por- toda a parte. A
do primeiro, o qual constituirá urna configurayáo singular determinada por exigéncia de "competitividade" torno u-se um. princípio político geral que
wn conjunto de regras jurídico-políticas. Em vez de um modo econ6mico comanda as reformas em todos os domínios, mesmo os mais distantes dos
de prodw;:áo cujo desenvolvimento é comandado por urna lógica que age enfrentamentos conierdais no mercado mundial. Ela é a expressáo mais clara
a maneira de urna "leí natural" implacável, o capitalismo é um "complexo de que estamos lidando náo coro urna "mercantilizayio sorrateira'', mas com
económico-jurídico" que admite urna multiplicidade de figuras singulares. urna expansáo da racionalidade de_ mercado a toda a· existéncia por meio da
É por isso também que devemos falar de sociedade neo liberal, e náo apenas generalizayáo da forma-empresa. É essa "racionalizayáo da existéncia" que,
de política neoliberal o u economia neo liberal - embora seja inegavelmente afinal, como dizia Margaret Thatcher, pode "mudar a alma e o corayáo".
urna sociedade capitalista, essa sociedade diz respeito a urna figura singular Nesse sentido, basta pensarmos nos profundos estragos subjetivos que vinte
do capitalismo que exige ser analisada como tal em sua irredutível espedfi- anos de "berlusconismo" produziram na Itália para termos urna ideia bastante
cidade. Vemos, pois, que a análise da governamentalidade neoliberal atinge precisa dessas transformayóes. Embora se distinga de um marxismo estreito,
indiretamente, como que por tabela, a concepyáo marxista do capitalismo essa análise vai ao encontro de urna das intuiyóes mais profundas de Marx,
ero seu essencialismo. que compreendeu muito bem que um sistema econ6mico de produc;:áo era
Náo é só isso. A interpretayáo marxista do neoliberalismo nem sempre também um sistema antropológico de produyio.
compreendeu que a crise dos anos 1960-1970 náo era redutível a urna "crise
econ6mica'' no sentido clássico. Nesses termos, ela é estreita demais paia
captar a extensáo das transformayóes sodais, culturais e subjetivas intro-
A crise generalizada de um modo de governar os homens
duzidas pela difusáo das normas neoliberais em toda a sociedade. Porqu~, o , Enfatizan:do/ a di'ffie~~áo produtora do neo liberalismo, essa análise nos
neoliberalismo nio é apenas urna resposta a urna crise de acumulayáo, ~le permite pensar a crise atual náo mais como consequéncia de u'm "excesso de
é urna resposta a urna crise de governamentalidade. É, na verdade, nes~e finanyas", um efeito da "ditadura dos mercados" ou, entáo, urna "colonizayáo"
contexto muito específico de contestayáo generalizada que Foucault situa dos Estados pelo capital. A crise que arravessamos aparece como aquilo que
o advento de urna nova maneira de conduzir os indivíduos que preten~e é: urna crise global do neoliberalismo como modo de governar as sociedades.
satisfazer a aspirayáo de liberdade em todos os domínios, tanto sexual e cul- A crise atual do euro náo é urna simples crise "monetária", as crises dos
tural como econ6mico. Para resumirmos, ele teve a intui<;:áo de que o que se países do sul da Europa náo sáo simples crises "oryarnentárias", assim como a
decidia naqueles anos era urna crise aguda das formas até entáo dominantes crise mundial que comeyou no outono de 2008 náo é urna simples crise "eco-
de poder. Compreendeu, contra o economicisrno, que nio se podem isolar nO mica''. Considerada isoladamente, a primeira pode aparecer como urna es-
as lutas dos trabalhadores das lutas das mulheres, dos estudantes, dos artis- pécie de réplica atrasada da crise dos subprimes, urna transiyáo entre runa crise
tas e dos doentes, e pressentiu que a reformulayáo dos modos de governo da dívida privada e urna crise da dívida pública, sob o efeito de mercados
dos indivíduos nos diversos setores da sociedade e as respostas dadas as especulativos náo controlados. Mas essa visáo é estreita, ou mesmo engano-
lutas sociais e culturais estavam encontrando, com o neoliberalismÓ, urna sa. A crise mundial é urna crise geral da "governamentalidade neoliberal",
possível coeréncia teórica e prática. Interessando-se de perta pela história isto é, de um modo de governo das economias e das sociedades baseado na
do governo liberal, ele mostra que aquilo que chamamos desde o século generalizayáo do mercado e da concorréncia. A crise financeira está profun-
XVIII de "economía'' está no fundamento de um conjunto de dispositivos damente ligada as medidas que, desde o fim dos anos 1970, introduziram
de controle da populayáo e de orientayáo das condutas (a "biopolítica") na esfera das finanyas norte-americanas e mundiais novas regras baseadas na
que váo encontrar no neoliberalismo urna sistematizayáo inédita. Coro generalizayáo da concorréncia entre as instituiyóes bari,cárias e os fundos de
este último, a concorréncia e o modelo empresarial constituem um ~odo investirnentos, o que os levo u a aumentar os níveis de risco e espalhá-los pelo
geral de governo, muito além da "esfera económica'' no sentido habitual resto da economía para embolsar lucros especulativos colossais.
28 ~ A nova razáo do mundo lntrodw;:áo aedi~áo inglesa (2014) e 29

Tornou-se comum relacionar a crise ao "novo regime de acumula~áo nível dos descontos compulsórios. Enquanto princípio geral de governo, a
financeira", caracterizado por urna instabilidade crónica que assiste a for- "competitividade" representa precisamente a extensáo da norma neoliberal
mayáo sucessiva de "bolhas especulativas" e a seu esto uro, mas é raro que se a todos os países, a todos os seto res da ayáo pública, a todos os domínios da
diga que a financeirizayáo do capitalismo em escala mundial é apenas um vida social, e é a iiñplementayáo dessa norma que leva a diminuiyáo _da
dos aspectos de um conjunto de norffias que envolverarn progressivamente demanda por toda parte simultaneamente, sob o pretexto de tornar a
todos os aspectos da atividade económica, da vida social e da política dos oferta mais "competitiva'', e aconcorréncia entre Os assalariados dos países
Estados desde o fim dos anos 1970. A autonomia e o inchayo da esfera europeas e dos outros países do mundo, o que acarreta deflayáo salarial e
financeira náo sáo as causas primeiras e espontáneas de um novo modo de desigualdades crescentes. A atitude da Renault na Espanh~ é muito esclare-
acumulayáo capitalista. A hipertrofia financeira é antes o efeito historicamen- cedora nesse sentido: apesar de elogiar a competitividade dos funcionários
te identificável de políticas que estimularam a concorréncia entre os atores espanhóis diante dos funcionários franceses, na Espanha a direyáo do grupo
nacionais e mundiais das finanyas. Acreditar que os mercados financeiros náo hesita em exaltar o exemplo da Roménia para pedir aos funcionários
escaparam um belo dia da influéncia política é puro e simples conto da que trabalhem de gra10a aos sábados 25 •
carochinha. Foram os Estados e as organizayóes económicas mundiais, em Como explicar essa corrida suicida para ver quem será o campeáo da
estreita conivéncia com os atores privado?, que criaram as regras favoráveis austeridade? Devem:os culpar a falta de lucidez ou, mais profundamente,
a esse rápido crescimento das financ;:as de mercado. vé-la como consequéncia de urna engrenagem concorrencial? No interior
Se a crise financeira norte-americana m ostro u sobre que bases instáveis de um sistema europeu baseado na concorréncia e numa moeda única, a
e desigualitárias funcionava o novo capitalismo mundial (especulayáo cínica pr~ssáo especula~iva dos investidores privados. sobre o mercado da dívida
das finanyas de mercado, sucessáo de bolhas cada vez maiores, polarizac;:&o p~blica e a pressio da:s agéricias de classificayáo de.risco, sem falar da impos-
crescente entre as classes, submissáo a dívida bancária das populayóes d~s sibilidade de desvalorizayáo da moeda, sio todos aspectos de urna mesma
dasses pobres e dos países periféricos etc.), a atual crise europeia most;í¡l lógica disciplinadora com urna temível eficácia para rebaixar os salários e
que os fundamentos da conúruyáo europeia ("a ordem da concorrénd~ diminuir a proteyáo social.
livre e náo distorcida") conduzem a assimetrias cada vez maiores enrie É incompreensível a obstinayáo, ou mesmo o fanatiSmo, com que os
países mais o u menos "competitivos". Porque é exatamente o imperativ~ especialistas dos governos, da Uniáo Europeia e do FMI perseguem essa tal
da "competitividade", enaltecida por toda a parte como o único "remédio", política de "austeridade", se náo levarmos em canta que eles estáo presos a
que explica a especificidade da atual crise europeia. A corrida acompetitivi- um quadro normativo, tanto europeu como mundial, composto de regras
dade, na qual a Alemanha se lanyou no início dos anos 2000 com sucesso de direito públicas e privadas e "consensos" com valor de compromisso para
crescente, nada mais é do que o efeito da implementayáo de um princípio o futuro que eles próprios construíram ativamente durante décadas. Náo
inserido na "Constituiyáo europeia": a competiyáo entre as economias eu- paciendo e náo querencia romper com esse quadro, sáo empurrados para
ropeias, combinada com a existéncia de urna moeda única gerida por um adaptar-se cada vez mais aos efeitos de sua própria política anterior. Nesse
banco central que garante a estabilidade dos prec;:os, constitui na vérdade sentido, os planos de austeridade que diminuem a renda da grande massa da
a própria base do edifício comunitário e o eixo dominante das políticas populayáo sáo inseparáveis da vontade de gerir as economias e as sociedades
nacionais. Isso significa que todo país-membro é livre para usar o dumping como empresas "lanyadas na competiyáo mundial".
fiscal mais agressivo a fim de atrair as multinacionais e os contribuintes Aqui e ali, nos espayos ande a crítica ainda é possível, condenam-se os
mais ricos, é livre para diminuir os salários e a proteyáo social a fim de criar "erras" das políticas europeias de austeridade, que, repetindo os equívocos
empregos a custa de seus vizinhos, é livre para tentar baixar os custos de
produc;:áo deslocando toda o u parte de sua produyáo e é livre para redúzir 25 Ver "En France, Renault veut une compétitivité espagnole", Le Monde, Paris, 8 nov.
as despesas públicas, inclusive com saúde e educayáo, a fim de reduzir o 2012.
30 " A nova razáo do mundo Introdu¡;:áo aedi¡;:áo inglesa (2014) • 31

dos anos 1930, agravam a depressáo onde quer que sejam adoradas e lev'am de indivíduos: o movimento dos estudantes do Québec pós em evidéncia a
sociedades inteiras a urna regressáo social que até pouco tempo atrás era lógica infernal do endividamento para toda a vida que -seria imposto pela
inimaginável. Paul Krugman aconselha há anos um aumento da despesa alta brutal das taxas de matrícula. O que está em jogo nesses exemplos é a
pública para pór a máquina novamente em movimento26 . Mas devemos ir construyáo de urna-nova subjetividade, o que chamamos de "subjetivayáo
mais longe na análise para compreender por quais encadeamentos fatais contábil e financeira", que nada mais é do que a forma mais bem-acabada
os governos "técnicos" da Grécia, da Espanha, de Portugal ou da Itália, da subjetivayáo capitalista. Trata-se, na verdade, de 'produzir urna relayáo
mas também o governo "socialista" da Franya, foram levados a implantar do sujeito individual com ele mesmo que seja homóloga a relayáo do ca-
políticas táo contrárias ao "bom senso", já que reduzem a demanda e ani- pital com ele mesmo ou, mais precisamente, urna relayáo do sujeito com
quilamos empregos quando deveriam ser expansionistas e gerar atividade. ele mesmo como um "capital humano" que deve crescer indefinidamente,
Boas almas keynesianas ou pós-keynesianas podem até alegar que essas isto é, um valor que deve valorizar-se cada vez mais. Como podemos ver,
políticas violentamente aplicadas no sul da Europa sáo náo apenas contrá- náo sáo tanto as teorias falsas que devem ser combatidas, ou as condutas
rias ao bem-estar da maioria, como fatais para o crescimento e até para a imorais que devem ser denunciadas, mas é todo um quadro normativo
sobrevivéncia da construyáo europeia, mas náo conseguiráo convencer com que deve ser desmantelado e substituído potoutra "razáo do mundo". Esse
simples argumentos os dirigentes europeus, os meios financeiros e todos é o desafio das luras sociais atuais, que decidiráo a continuayáo - ou até
os especialistas e os jornalistas que se encarregaram de justificar o suicídio mesrno a radicalizayáo - dessa lógica neoliberal o u, ao contrário, seu fim.
coletivo. Continuar a acreditar que o neoliberalismo náo passa de urna Quanto ao Estado, coro o qual alguns ainda contam ingenuamente
"ideologia", urna "crenya", um "estado de espírito" que os fatos objetivos, . "fJa.ra '-'controlar", os mercados, a crise m ostro u até que ponto ele se fez o
devidamente observados, bastariam para dissolver, como o sol dissip<:l a coProdutor volu:'ntário dás normas de competitividade, acusta de todas as
névoa matinal, é travar o combar~ errado e condenar-se a impoténcia.''.o considerayóes de salvaguarda das condiyóes mínimas de bem-estar,.saúde
neoliberalismo é um sistema de normas que hoje estáo profundame~Í:e e educayáo da populayáo. Mas a crise mostrou também que o Estado, pela
inscritas nas práticas governamentais, nas políticas institucionais, nos ~~­ defesa incondicional que fazia do sistema financeiro, era parte interessada
tilos gerenciais. Além disso, devemos deixar claro que esse sistema é ran;so nas novas formas de sujeiyáo do assalariado ao endividamento de massa
mais "resiliente" quanto excede em muito a esfera mercantil e financefi·a que caracteriza o funcionamento do capitalismo contempodneo. O Estado
em que reina o capital. Ele estende a lógica do mercado muito além das neoliberal náo é, portante, um "instrumento" que se possa utilizar indi-
fronteiras estritas do mercado, em especial produzindo urna subjetividade ferentemente para finalidades contrárias. Enquanto "Estado-estrategista",
"conrábil" pela criayáo de concorréncia sistemática entre os indivíduos. codecididor dos investimentos e das normas, ele é urna peya da máquina
Pense-se em particular na generaliza<;áo dos métodos de avalia<;áo no ensino que se deve cornbater.
público oriundos da empresa: a longa greve dos professores de Chicago Atingindo a Europa, a crise mundial agiu como um indicador brutal
em setembro de 2012 obsrruiu, ao menos momentaneamente, um projeto e impiedoso. Pós a nu as ilusóes sobre as quais a Europa se construiu até
de avaliayáo dos professores de acordo com o desempenho de seus al unos hoje: a crenya de que se podia construir a Europa política sobre o éxito
em testes elaborados sob medida para permitir a avaliayáo dos professores econümico e a prosperidade material, "constitucionalizando" as normas
por meio da avaliayáo dos alunos, coro a possibilidade de demissáo do do equilíbrio oryamentário, da estabilidade monetária e da concorrencia.
professor cujos alunos náo apresentassem resultados satisfatórios. Pense-se A crise da EUropa é urna crise de seus fundamentos. Náo basta "reorientar"
igualmente como o endividamento crOnico é produtor de subjetividade e a Europa em dire<;áo ao crescimento, ou "resolver o déficit democrático"
acaba se tornando um verdadeiro "modo de vida" para centenas de milhares da Europa, comando o grande mercado com a superestrutura institucional
de um Estado federal sem mexer em suas fundayóes. NáÜ é o telhado da "casa
26
Paul Krugman, End this Depression Now (Nova York, W. W Norton & Co., 2012). Europa" que é frágil, mas suas fundayóes, que estáo rachando de todos os
32 " A nova razáo do mundo Imrodw;ao aedis:ao inglesa (2014) 33

lados. É preciso compreender quáo íntimamente os tres aspectos da Europa por definic;áo a- ou antiliberal, é um dever apoiá-la, sem levar em canta
atual estáo ligados entre si: constitucionalizayáo da concorrencia e da regia seu conteúdo o u, pior airida, prejulgando favoravelmente esse conteúdo28 •
de ouro orc;amentária, "federalismo executivo" consagrando a supremacia O "primeiro ~ib_e:r?lismo", aquel e que toma carpo no século XVIII,
do intergovernamental e a importancia secundária dos direitos sociais27• Em caracteriza-se pela elaborac;áo da questáo dos limites do governo. O governo
particular, o fato de que o Parlamento náo tenha nenhum poder de iniciativa liberal é enquadrado por "leis", mais ou menos conjugadas: leis naturais
no campo legislativo, que a Comissáo Europeia, instancia náo eleita, seja a que fazem do homem o que ele é ''naturalmente" e devem servir de marco
única habilitada a propor leis e disponha de poder de veto em matéria de para a ac;áo pública; leis económicas, igualmente "naturais", que devem
legislac;áo e que essa mesma Comissáo Europeia e o Conselho dos Ministros circunscrever e regular a decisáo política. Contudo, por mais finas e Bexíveis
(que náo tem nenhuma responsabilidade ern relac;áo ao Parlamento) sejam que sejam as do u trinas do direito natural e da dogmática do laissez-faire, as
considerados órgáos independentes, encarregados de promover o "interesse técnicas utilitaristas do governo liberal tentam orientar, estimular e combinar
geral", náo é em absoluto um concurso fortuito de circunstancias; ao contrá- os interesses individuais para faze-Ios servir ao bem geral. Ernbora nesse
rio, existe nisso wna coerencia institucional fone, que repousa no prindpio primeiro liberalismo haja cena concepc;áo comum do homem, da sociedade
antidemocrático seglUldo o qual a independencia em relac;áo aos cidadáos é a e da história, e a questáo da limitac;áo da a~áo governamental seja central,
melhor garantia para perseguir o interesse geral. Assim, é preciso refundar a unidade do liberalismo "clássico" será cada vez mais problemática, como
a Europa, isto é, no sentido exato do termo, dar a ela novas fundac;óes. A mostram os camihhos divergentes que os liberais seguiráo no século XIX,
diferenc;a dos tratados precedentes, esse ato náo pode ser negociado e im- entre o dogmatismo do laissez-faire e ceno reformismo social, urna diver-
plantado por urna instancia intergovernamental, nem mesmo depender do g~p.cia que resultará num~ crise cada vez mais triar cada das amigas ceftezas29 •
rnonopólio de um Parlamento. Ele só pode ser um ato dos cidadáos europ~us. A primeira p~rte &~sta obra mostra que, desde s·eu registro de nascimento,
na grande crise dos anos 1930, o neoliberalismo introduziu ~ma distáncia,
o u até um claro rompimento, em relac;áo aversáo dogmática do liberalismo
Liberalismo clássico e neoliberalismo que se impós no século XIX. A gravidade da crise desse dogmatismo forc;ava
Para além da questáo política, abordar o estudo do neo liberalismo pela wna revisáo explícita e assumida do velho laissez-faire. Combater o socialismo
governamentalidade náo deixa de levar a certos desvíos em relac;áo as aborda- e todas as versóes do "totalitarismo" exigía um trabalho de refundac;áo das
gens dominantes o u as linhas de divagem estabelecídas. Esta obra propóe-se bases intelectuais do liberalismo. É nessa conjuntara de crise económica,
examinar os caracteres diferenciais que especificam a governamentalidade política e doutrinal que se opera urna refundac;áo "neoliberal" da doutrina
neoliberal. Portanto, náo se trata aqui de procurar restabelecer urna simples que também náo conduz a urna doutrina completamente unificada. Duas
continuidade entre liberalismo e neoliberalismo, coffio se costuma fazer, grandes correntes váo se esboc;ar a partir do Colóquio Walter Lipprnann,
mas sublinhar o que constitui propriamente a novidade do neoliberalismo, em 1938: a corrente do ardo liberalismo alemáo, representada sobretudo por
o que implicar ir contra a tendencia que consiste em apresentar o neolibe- Walter Eucken e Wilhelm R6pke, e a corrente austro-americana, represen-
raJismo como um "retorno" ao liberalismo original ou urna "rest~urac;áo" tada por Ludwig von Mises e Friedrich A. Hayek.
a
deste último após o longo eclipse que se seguiu crise dos anos 1890-1900. A segunda parte do livro nos permitirá estabelecer que a racionalidade
As consequencias políticas dessa confusáo para a esquerda sáo facilmente neo liberal que realmente se desenvolve nos anos 1980-1990 náo é a simples
discerníveis. Como toda regulamentac;áo da vida económica é considerada
28
Esse füi um dos argumentos mais invocados pelos líderes sodalistas que tomaram a
defesa daracifica~áo do Tratado Europeu durante a campanha do referendo na Franya.
27
Lembramos que o Artigo 210-2 da Parte III do Tratado de lisboa proíbe que os 19
A edi~áo francesa desea obra tem quatro capítulos iniciais, que foram exduídos das
Estados tornero medidas que váo no sentido de urna harmonizayáo social. ediyóes inglesa e brasileira, dedicados ao primeiro liberalismo ..
34 • A nova razáo do mundo

implementa~táo da doutrina elaborada nos anos 1930. Náo passamos com


ela da teoria para a prática. Urna espécie de filtro, que náo se deve a urna
sele~táo consciente e deliberada, retém alguns elementos em detrimento do
resto, em fun~táo de seu valor operatório ou estratégico em dada situa~táo
histórica. Trata-se aqui náo da ac;:áo de urna monocausalidade (da ideologia
para a economia ou vice-versa), mas de urna multiplicidade de processos
heterogeneos que resultaram, em razáo de "fenómenos de coagulac;:áo,
apoio, reforc;:o recíproco, coesáo, integrac;:áo", nesse "efeito global" que
é a implantac;:áo de urna nova racionalidade governamental, no sentido
definido anteriormente30 .
O neoliberalismo, portanto, náo é o herdeiro natural do primeiro libera-
lismo, assim como náo é seu extravio nem sua traiyáo. Náo retoma a questáo
dos limites do governo do ponto em que ficou. O neoliberalismo náo se
pergunta mais sobre que tipo de limite dar ao governo político, ao mercado
1
(Adam Smith), aos direitos Qohn Locke) o u ao cálculo da utilidade Qeremy A REFUNDAQÁO INTELECTUAL
Bentham), mas, sim, sobre como fazer do mercado tanto o princípio do
governo dos homens corno o do governo de si (Parte I). Considerado urna
racionalidade governamental, e náo urna doutrina mais o u menos heteróclip,
o neo liberalismo é precisamente o_ desenvolvimento da lógica do merca~o
como lógica normativa generalizada, desde o Estado até o rnais íntimo da
subjetividade (Parte II). É essa coerencia prática e normativa, mais do q~e
a das fontes históricas e das teorias de referencia, que fundamenta nos~o
argumento. Este último, esclarecendo a forma como se irnpóe e funciona
em todos os níveis um certo sistema de normas, náo tem outro objetivo
além de contribuir para a renovayáo do pensamento crítico e a reinvenyáo
das formas de !uta.

30
Michel Foucault, Sécurité, territoire, population (Paris, Seuil/Gallimard, 2004, Coleo;:áo
Hautes Études), p. 244. Nessa passagem, o autor substitui a questáo da atribuio;:áo
de urna causa ou urna fome única pela da constituio;:áo o u da composio;:áo dos efeitos
globais como meio privilegiado de estabeledmento da inteligibilidade na história.
1
CRTSE DO LffiERALISMO E NASCIMENTO
DO NEOLIBERALISMO

O liberalismo é um mundo de tensóes. Sua unidade, desde o princípio, é


problemática. O direito natural, a liberdade de comércio, a propriedade privada
e as virtudes do e(¡uilíbrio do mercado sáo certamente alguns dos dogmas
do pensamento liberal dominante em meados do século XIX. Modificar os
- -princfpios seria quebrar a máquina do progresso e romper o equilíbrio social.
Mas esse whiggiSmo triunfante n~o será o único a. ocupar terreno nos países
ocidentais. & críticas mais variadas floresceráo, tanto no plano doutrinal
como no político, ao langa do século XIX. Isso porque em nenhuma parte, e
em nenhum os domínio, a "sociedade" se deixa reduzir a urna soma de tracas
contratuais entre indivíduos. A sociologia francesa náo cansará de repetir isso,
ao menos desdeAuguste Comte, sem mencionar o socialismo que denuncia a
mentira de urna igualdade apenas ficticia. Na Inglaterra, o radicalismo, depois
de inspirar as reformas mais liberais de assistenda aos pobres e ajuda promo- a
<ráo do livre-cirnbio, alimentará certa contestayáo dessa metafísica naturalista
e até estimulará as reformas democráticas e sociais em favor da maioria.
A crise do liberalismo é também urna crise interna, o que é esquecido
de bom grado quando se assume a tarefa de fa?"'r a história do liberalismo
como se se tratasse de um corpo nnificado. A partir de meados do século XIX,
o liberalismo expóe linhas de fratura que váo se aprofnndando até a Primeira
Guerra Mnndial e o entreguerras. A tensáo entre dais tipos de liberalismo, o
dos reformistas sociais que defendem um ideal de bem comum e o dos parti-
dários da liberdade individual como fim absoluto, na realidade nnnca cessou 1.

1
Para a apresentayáo dessas duas formas de liberalismo, ver Michael Freeden, Liberalism
Divided: A Study in British Political1hought 1914-1939 (Oxford, Clarendon, 1986).
1

Crise do liberalismo e nascimento do neoliberalismo 9 39


38 e A nova razáo do mundo

Essa dilacerayáo que reduz a unidade do liberalismo a um simples mito re- internacionais é que póe "em crise" o liberalismo dogmático 4 • Solidarismo
troativo consritui propriamente essa langa "crise do liberalismo" que vai dos e radicalismo na Franya, fabianismo e liberalismo social na Inglaterra, nas-
anos 1880 aos anos 1930 e que pouco a pouco vé a revisáo dos dogmas em cimento do "liberalismo" no sentido norte-americanO do termo sáo tanto
todos os países industrializados ande os reformistas sociais ganham terreno. os sintomas dessa cdse do modo de governo como 'algwnas das respostas
as
Essa revisáo, que vezes parece conciliar-se comas ideias socialistas sobre a que foram dadas para enfrentá-la.
direyáo da economia, forma o contexto intelectual e político do nascimento
do neoliberalismo na primeira metade do século XX.
Urna ideología muito estreita
Qual é a natureza dessa "crise do liberalismo"? Marcel Gauchet
certamente tem raz:lo de identificar entre seus aspectos um problema Muito antes da Grande Depressáo dos anos 1930, a doutrina do livre
eminente: como a sodedade que se libertou dos deuses para descobrir- mercado náo conseguia incorporar os novas dados do capitalismo tal como
-se plenamente histórica poderia abandonar-se a um curso fatal e, assim, este se desenvolvera durante a langa fase de industrializayáo e urbanizayáo,
perder o controle de seu futuro? Como a autonomia humana poderia ser ainda que alguns "velhos liberais" náo quisesse desistir de suas proposiyóes
sinónimo de impoténcia coletiva? Como pergunta Marcel Gauchet: "O mais dogmáticas.
que é urna autonomia que náo se comanda?". O sucesso do socialismo se A constatayáo· da "débdcle do liberalismo" ia muito além dos meios so-
deveria precisamente ao fato de que ele soube aparecer, senda nisso um cialistas ou readónários mais hostis ao capitalismo. Todo um conjunto de
digno sucessor do liberalismo, como a encarnayáo da vontade otimista' de tendéncias e realidades novas exigiram urna revisáo a fundo da representayáo
construir o futuro 2 • Mas isso somente é verdade se reduzirmos o liberalismo d:;¡ eéonomia e da política. O "capitalismo histórico" correspondia cada vez
acrenya nas virtudes do equilíbrio espontáneo dos mercados e situar111os menos aos esqtiemas teó.ricos da:s escalas liberais, quando elas inventavam
as contradiyóes na esfera das ideias. Ora, já no século XVIII, a questáo histórias em torno da idealizayáo das "harmonias económic~". Em outras
da ayáo governamental apresentou-se de forma muito mais complexa. ·Na palavras, o triunfo liberal de meados do século XIX náo duro u. Os capita-
realidade, o que se costurna chamar de "crise do liberalismo" é urna crise lismos norte-americano e alemáo, as duas poténcias emergentes da segunda
da governamentalidade liberal, segundo o termo de Michel Foucault, metade do século XIX, demonstravam que o modelo atomístico de agentes
isto é, urna crise que apresenta essencialmente o problema prático da económicos independentes, isolados, guiados pela preocupayáo com seus
intervenyáo política em matéria econ6mica e social e o da justificayáo próprios interesses, é claro, e cujas decisóes eram coordenadas pelo mercado
doutrinal dessa intervenyáo 3 . concorrencial quase náo correspondia mais as estruturas e as
práticas do
O que era pasto como urna limitayáo externa a essa ayáo, em particular sistema industrial e financeiro realmente existente. Este último, cada vez
os direitos invioláveis do indivíduo, tornou-se um pu~o e simples fator de mais concentrado nos ramos principais da economia, dominado por wna
bloqueio da "arte do governo", num momento em que este último se vé oligarquia estreitamente imbricada com os dirigentes políticos, era regido por
confrontado precisamente com questóes económicas e sociais novas e ao mes- "regras do jogo" que náo tinham nada a ver comas concepyóes rudimentares
roo tempo prementes. A necessidade prática da intervenyáo goverr{amental da "leida oferta e da procura'' dos teóricos da economia ortodoxa. O reinado
para fazer frente as mutayóes organizacionais do capitalismo, aos conflitos de uns poucos autocratas a frente de empresas gigantescas, controlando o
de classe que ameayam a "propriedade privada" e as novas relayóes de forya setor das ferrovias, do petróleo, dos bancos, do ayo e da química nos Estados
Unidos - os que foram qualifi.cados na época de "baróes ladróes" (robber
2
Ver Marcel Gauchet, La crise du libéralisme: l'avenement de la démocratíe, v. 2 (Paris,
Gallimard, 2007), p. 64 e seg. e 306. Cada país teve, segundo suas tradi;yóes políticas, seu própirio modo de restauraqáo
3
Ver Michd Foucault, Naissance de la biopolitique (Paris, Seuil/Gallimard, 2004), do liberalismo. A Franc;a certamente tomou do republicanismo jin-de-siecle e das
p. 71. doutrinas solidaristas sua forma singular de repensar as tare~s governamentais.
40 o A nova razáo do mundo Crise do liberalismo e nasdmento do neoliberalismo o 41

barons) - fez surgir talvez a mitologia do selfmade man, mas ao rnesrno partir das primeiras reformas de Bismarck, no firn dos apos 1870 e início
ternpo desacreditava a ideia de urna coordenayáo harrnoniosa de interesses dos anos 1880, assistiu-se· na Europa a um movimento ascendente de
particulares 5• Multo antes da elaborayáo da "con correncia irnperfeita", da dispositivos, regula~en_t~y!)es, leis destinadas a consolidar a condiyáo dos
análise das estratégias de empresa e da teoria dos jogos, o ideal do mercado assalariados e a evitar tanto quanto possível que eles continuassem a cair
perfeitarnente concorrencial já parecia multo longe das realidades do novo no pauperismo que afligiu todo o século XIX: legislayáo sobre o rrabalho
capitalismo de grande escala. infantil, lirnitayáo da jornada de-- trabalho, direito de greve e associayáo,
O que o liberalismo dássico náo incorporou adequadarnente foi preci- indenizayáo por acidente, aposentadoria para operários. Essa pobreza nova,
samente o fenOrneno da empresa, sua organizayáo, suas formas jurídicas, gerada no ciclo dos negócios, deveria ser baldada por medidas de proteyáo
a concentrayáo de seus recursos, as novas formas de cornpetiyáo. fu novas coletiva e seguranya social. Cada vez mais, a ideia de que a relayáo salarial
necessidades da produyáo e de vendas exigiam urna "gestáo científica", que era um contrato entre duas vontades in dependen tes e iguais aparecia corno
mobilizasse exércitos industriais enquadrados num modelo hierárquico urna ficyáo absolutamente distante das realidades sociais naquela época de
de tipo militar por pessoal qualificado e dedicado. A empresa moderna, grandes concentrayóes industriais e urbanas. O movimento operário, ern
integrando múltiplas divisóes, gerida por especialistas em organizayáo, pleno desenvolvimento tanto no plano sindical como no plano político,
tornara-se urna realidade que a ciencia económica dominante ainda constituía nesse sentido urna advertencia constante da dimensáo coletiva
náo conseguia cornpreender, mas que rnuitos espíritos menos preocupa- e ao rnesrno ternpo conflituosa da relayao salarial, um desafio a concepyáo
dos com os dogmas, ern particular entre os economistas "institucionalis.:. _estritamente individual e "harrn6nica'' do contrato de trabalho tal corno o
tas", comeyaram a examinar. pen?aVa a dogmá~ica libe~~·
O surgirnento dos grandes grupos cartelizados rnarginalizava o capitalis.;- No plano inte·rnaci~nal, o fim do século XIX ·náo se parecia multo com
mo de pequenas unidades; o desenvolvimento das técnicas de venda debilita,_, essa grande sociedade universal e pacífica, organizada segundo ¿s prindpios
va a fé na soberania do consumidor; e os acordos e as práticas dominadoras e: racionais da divisáo do trabalho, que Ricardo irnaginava no início do sécu-
manipuladoras dos oligopólios e dos monopólios sobre os preyos destruíarn lo. Proteyáo alfandegária e crescimento dos nacionalismos, imperialismos
as representayóes de urna concorréncia leal, que beneficiava a todos. Parte dq: rivais e crise do sistema monetário internacional apareciam como violayóes
opiniáo pública comeyava a ver os homens de negócios como escroques de da ordem liberal. Nem parecia mais verdade que o livre-cárnbio deveria
alto gabarito, náo como heróis do progresso. A democracia política parecia ser a fórmula da prosperidade universal. As teses de Friedrich List sobre a
definitivamente comprometida pelos fen6menos rnaciyos de corrupyáo em "proteyao educadora'' pareciam ser mais confiáveis e corresponder melhor
todos os escalóes da vida política. Os políticos faziam sobretudo o papel de as novas realidades: tanto a Alemanha como os Estados Unidos ofereciam
marionetes nas máos dos que detinharn o poder do dinheifo. A "máo visível" igualmente a face de um capitalismo de grandes unidades protegidas por
dos empresários, dos financistas e dos políticos ligados a eles enfraqueceu barreiras alfandegárias elevadas, enquanto a Inglaterra via serem postas em
formidavelmente a crenya na "máo invisível" do mercado. questao suas próprias posiyóes industriais.
A inadequayáo das fórmulas liberais as necessidades de regulayáo d~ con- A concep~áo do Estado "vigia no turno", difundida na Inglaterra pela
diyáo salarial e sua própria incompatibilidade corn as tentativas de reformas Escala de Manchester e na Franya pelos economistas doutrinários que
sociais realizadas aqui ou ali constituírarn outro fator de crise no liberalis- sucederam a Jean-Baptiste Say, dava urna visáo singularmente estreita das
mo dogmático. Desde meados do século XIX, com certa intensificayáo a funyóes governamentais (manutenyáo da ordem, cumprimento dos con-
tratos, eliminayáo da violencia, proteyáo dos bens e das pessoas, defesa do
território contra os inimigos externos, concepyáo individUalista da vida social
5 Ver sobre esse ponto Marianne Debouzy; Le capitalisme "sauvage" aux États-Unis,
e económica). O que no século XVIII constittúa urna crítica as diferentes
1860-1900 (Paris, Seuil, 1991) [ed. port.: O capitalismo "selvagem" nos Estados Uni-
dos, 1860-1900, trad. Maria de Lurdes Almeida Mela, Lisboa, Estudios Cor, 1972]. formas possíveis do "despotismo" tornara-se progressivamente urna defesa
Crise do liberalismo e nascimento do neoliberalismo ~ 43
42 • A nova razao do mundo

conservadora dos direitos de propriedade. Essa concep¡;;:áo, fortemente res- Essas ideias, elaboradas por Tocqueville durante a viagem a Inglaterra,
tritiva até mesmo em rela¡;;:áo aos campos de intervenyáo das "leis de polícia'; encontram-se desenvolvidas no seglllldo volume de A democracia na Amé-
imaginadas por Adam Smith e aos domínios de administrayáo do Estado rica, de 1840, e em _I?<l!ticular no capítulo 2 do Livro IV: "Que as ideias
benthamiano, parecia cada vez mais defasada em relayáo as necessidades de dos povos democd.tic.os em matéria de governo sáo naturalmente favoráveis
organizayáo e regulayáo da nova sociedade urbana e industrial do :fim do a concentrayáo dos poderes". Partindo da constatayáo de que os pavos
século XIX. Em outras palavras, os liberais náo dispunham de urna teoria democráticos apreciam as "ideias simples e gerais", de deduz a preferéncia
das práticas governamentais que haviam se desenvolvido desde meados do por um poder único e central e urna legislayáo uniforme. A igualdade das
século. Pior, eles se isolavam, parecencia conservadores obtusos e incapazes condiyóes leva os indivíduos a querer um poder central forte, oriundo da
de compreender a sociedade de seu tempo, embora pretendessem encarnar forya do pavo, que os conduza pela máo ern todas as circunstancias. Urna
seu movimento. das características dos poderes políticos modernos é, portanto, a auséncia
de limite da ayáo governamental, é o "direito de fazer tuda". A sociedade,
representada pelo Estado, é todo-poderosa, em detrimento dos direitos do
A preocupa1=áo precoce de Tocqueville e Mili indivíduo. Os próprios soberanos acabam ·compreendendo que "a forya
central que repres~nram pode e deve administrar por si mesma, e num plano
Essa "crise do liberalismo" no :fim do século, que foi chamada por al-
uniforme, todos os assuntos e todos os homens". É assim que, sejam quais
guns de sentimento de "paraíso perdido do liberalismo", náo estourou de
forem suas oposiyóes políticas, "todos concebem o governo sob a imagern
repente. Aparte socialistas ou defensores declarados do conservadoris~o,
d~, urn poder ú~co, simples, providencial e criador" 8 •
houve, no próprio interior da grande corrente liberal, espíritos suficiente-
E.Ssa forya se,.creta·-·im.Pele o Estado a apoderar-se de todos os domínios,
mente preocupados para desde cedo pór em dúvida a crenya nas virnides
aproveitando-se do recolhimento dos indivíduos a seus negóéios privados.
da harmonia natural dos interesses e no livre desabrochar das ayóes e das
Consequentemente, aumenta a demanda de cada um por proteyáo, educa-
faculdades individuais.
¡;;:áo, auxüios, adrninistrayáo da justiya, do mesmo modo que coma indústria
A correspondéncia intelectual entre Alexis de Tocqueville e John Stuart
crescem a regulamentayáo das tracas e das atividades e a necessidade de pro-
Mili, para citar apenas um exemplo, ilustram essa lúcida preocupayáo. Erlhe
duzir obras públicas. Esse novo despotismo, como o denomina Tocqueville,
1835 e 1840, esses dais homens conversaram sobre as tendéncias profun-
esse "poder imenso e tutelar", mais amplo e mais brando ao mesmo rempo,
das das sociedades modernas e, em particular, a tendéncia de o governo
é rolerável do ponto de vista do indivíduo, porque é exercido em no me de
intervir de forma mais extensa e detalhada na vida social. Mais talvez do
todos e provérn da soberania do pavo. Esse instinto da centralizayáo e esse
que a viagem aos Estados Unidos, foram os contaros. que Tocqueville fez
na viagem a Inglaterra em 1835 que lhe permitiram estabelecer a relayáo
a
avanyo do domínio da administrayáo cusra da esfera daliberdade individual
náo derivam de urna perversáo ideológica qualquer, mas dizem respeito a
entre democracia, centralizayáo e uniformidadé. Para ele, essa relayáo está
ligada a sociedade democrática, ainda que, em sua opiniáo, cert()S países
urna tendéncia inscrita no movimento geral das sociedades rumo igualdade. a
É sobre esse ponto que John Stuart Mili manifesta sua concord:lncia,
como Inglaterra oü Estados Unidos pudessem resistir melhor em razáo da
embora formule algumas obje<;óes. A rea¡;áo de J. S. Mill marca certa inflexáo
vitalidade das liberdades locais7

6 Ver Alexis de Tocqueville, Voyage en Angleterre et en Irlande de 1835, em CEuvres I os pobres é precisamente, para ele, um modelo dessa pondera0o entre o Estado e as
(Paris, Gallimard, 1991, Coles:ao La Pléiade), p. 466 e seg. comunas (ibidem, ap~ndice II, p. 597).
8 Alexis de Tocqueville, De la démocratie enAmérique, v. 2, livl'o N, cap. 2, em CEuvres
7 Aliás, Tocqueville apela para um jogo de ponderas:ao entre o centro e o loe~, para
urna neutralizas:ao recíproca dos dois prindpios opostos, o da centralizas:ao dos Es- JI (Paris, Gallimard, 1992, Coles:ao La Pléiade), p. 810 e seg. [ed. bras.: A democracia
tados modernos e o da liberdade local. A lei inglesa de 14 de agosto de 1834 sobre na América, trad. Eduardo Brandao, Sao Paulo, Martins Font.es, 2000].
44 • A nova razáo do mundo Crise do liberalismo e nascimento do neoliberalismo ~ 45

em relac;:áo as perspectivas militaristas de seu pai, James Mili, e do próprio Com Tocqueville e Mill, concebe-se melhor a dúvida que tomou canta
Jeremy Bentham quando imaginavam urna democracia representativa ca- do campo liberal desde cedo e, sobretudo, a partir de dentro. Que os po-
paz de corrigir a si mesma9 • Ele sustenta ainda, obviamente, que os perigos deres governamen~ai?__ ~~!llentem com a civilizac_;:áo mefcantil, essa é urna
concebidos por Tocqueville encontram fundamento numa ideia errünea da observayáo que atesta o fato de que os dogmas do laissezjaire náo eram
democracia. Esta náo é o governo direto do povo: mas a garantia de que o objeto de urna crenc;:a un;lnime. Muito pelo contrário, náo entenderíamos
povo será governado em conformidade com o bem de todos, o que supóe nada do século XIX se nos contentássemos preguiyosamente em ler apenas
o controle dos governantes por eleitores capazes de julgar sua ayáo. Mas a triunfante história intelectual e política das virtudes do livre-cámbio e da
acusa Tocqueville sobretudo de ter confundido a igualdade das condi,óes e propriedade privada absoluta. Foi precocemente que o otirnismo no advento
a marcha para urna "civilizac;:áo mercantil", na qual a aspirayáo aigualdade da sociedade da liberdade individual, do progresso e da paz foi objeto de
é apenas um dos aspectos. Para Mili, é em primeiro lugar o progresso eco- grandes ressalvas. Mas foi desde cedo também que a tradiyáo do radicalismo
nO mico e a "multiplicayáo dos que ocupam as posiyóes intermediárias" que abriu brechas no dogma da náo intervenc;:áo. A trajetória de Mili é em si
constituem a tendéncia fundamenta1 10 • mesma significativa dessa evoluc;:áo.
Mas essa igualdade crescente é so mente um dos elementos do movimento Mili, em On Socialism, texto tardio de 1869, publicado postumamente,
da civilizas;áo; um dos efeitos acidentais do progresso da indústria e da embora fizesse urna crítica severa ao ideal socialista do controle total da eco-
riqueza: um efeito dos mais importantes, e que, como mostra nosso autor, nomia, sustentava· igualmente, num capítulo com um título muito fiel ao
age de volta sobre os ounos de mil maneiras, mas náo deve ser confundido . espírito de Bentham ("The Idea ofPrivate Property not Fixed but Variable"
com a causa. 11
[Aideia da propriedade privada nao fixa, mas variável]), que "as leis de pro-
Para Mili, a principal transformac;:áo reside na predominincia da bu-5ca priedade devem ·depende·; de considerayóes de natureza pública'' 14 • Para ele,
12
da riqueza , princípio do dedínio de cerros valores intelectuais e morais. a sociedade tem plena justificayáo para mudar ou até mesmo allular direitos
Fazendo eco de cerro modo as preocupac;:óes de um Thomas Carlyle, ele de propriedade que, após o devido exame, náo sejam favoráveis ao bem
deplora o esmagamento do indivíduo de valor sobo peso da opiniáo pública, público 15 . Encontramos o que, desde o fim do século XVIII, já era motivo
descreve a charlatanice generalizada que toma o comércio, denuncia a des- debate. Deve-se considerar o direito de propriedade como um direito natural
valorizayáo de rudo que há de mais elevado e nobre na arte e na literatura. sagrado ou é preciso vé-lo de acordo com os efeitos que tem sobre a felicidade
Se o novo estado da sociedade é marcado pelo irreversível poder das massas do maior número de indivíduos, isto é, segundo sua utilidade relativa?
e pela extensáo das interferéncias políticas, entáo é preciso examinar quais O fato de que o utilitarismo tenha podido desembocar numa justificac_;:áo
poderiam ser os meios de remediar a impoténcia do indivíduo. Ele vislumbra da intervenyáo política e até numa relativizac_;:áo do direito de propriedade
dois meios principais: um, já promovido por 10cqueviÜe, é a "combinayáo" foi logo ressaltado, e de forma polémica, por Herbert Spencer. Sua violenta
dos indivíduos formando associac;:óes para adquirir a forya que falta a cada reac;:áo, no fim do século XIX, contra o intervencionismo económico e social,
átomo isolado; o outro é urna educayáo concebida para revigorar o caráter e contra o "utilitarismo empírico" que, segundo ele, era seu fundamento
pessoal a fim de resistir a opiniáo da massa 13 • " doutrinal, é um sinroma maior dessa crise da governamentalidade liberal. Seu
evolucionismo é também urna primeira tentativa de refundayáo filosófica do
9
Ver John Stuart Mill, Essais sur Tocqueville et la société américaine (Paris, Vrin, 1994). liberalismo que náo poderla ser negligenciada, apesar do esquecimento em que
10
Ibidem, p. 195. soc;:obrou. O "spencerismo" introduziu alguns dos temas mais importantes do
11
Idem. neoliberalismo, em particular a primazia da concorréncianas relac;:óes sociais.
12
John Stuart Mill, "Civilization'', em .ESsays on Politics and Culture (Gloucester,·Peter
Smith, 1973), p. 45 e seg. 14
John Stuart Mili, On Socialism (Buffalo, Prometheus Books, 1987), p. 56.
13
Ibidem, p. 63. " Ibidem, p. 145-6.
46 o A nova razáo do mundo Crise do liberalismo e nascimento do neoliberalismo e 47

A defesa do livre mercado corpos de inspetores e controles nas usinas de gás, as que sancionam pro-
O spencerismo faz parte de urna contraofensiva dos "individualistas" prietários de minas que émpregam crianyas Com menos de doze anos, as
que denunciam como traidores e acusam de "socialismo" os defensores das que ajudam rende_i_rQ~ irlandeses a comprar sementes, todas essas leis que ele
reformas sociais que visam ao bem-estar da populas:áo 16 • Por volta de 1880, considera exemplos do que náo se deve fazer tém de ser revogadas, porque
os velhos liberais sentem que o triunfo de 1860 ficou para trás, levado por querem fazer o bem diretamente, organizando a coopera<ráo de mandra
um vasto movimento contra o laissezfaire. Reunidos na Liberty and Property coerciva. Seu caráter obrigatório-é-·retrógrado e insuportáveP 9• A lista das
Defence League, fundada em 1882, perderam rnuito da inRuéncia intelectual "leis de coeryáo" denunciadas por ele é em si muito significativa, já que se
e política que tinham em meados da era vitoriana. refere aos domínios sociais, médicos e educacionais: trabalho, moradia,
Spencer acredita ser necessário refundar o utilitarismo sobre novas bases saúde, higiene, educayáo, pesquisa científica, museus, -bibliotecas etc. 20 •
para enfrentar os desvios do "utilitarismo empírico". É sabido que a @osofia Spencer explica essa traiyáo pela infeliz precipitayáo em querer socorrer
spenceriana foi extremamente popular na Inglaterra e nos Estados Unidos os pobres. Tomaram o carninho errado. De fato, há duas maneiras de obter
no fim do século XIX17 . Para Émile Durkheim, Spencer, que foi seu grande um bem: o u pela diminuiyáo da coer<ráo, isto é, indiretamente, ·o u pela
adversário nos planos teórico e político, é o protótipo do utilitarista. Mas coers:áo, ou seja, diretamente.
de qual utilitarismo se trata? Spencer reivindica um utilitarismo muito mais Sendo a aquisic;áo de uro bem para o pavo o trayo externo visível comum
evolucionista e biológico do que jurídico e econ6mico 18 . Suas consequéncias nas medidas liberais nos tempos antigos (e esse bem consistia essencialmente
numa diminuiyáo da coen;:áo), resultou que os liberais viram o bem do
políticas sáo explícitas: trata-se de mudar as bases teóricas do utilitarismo
povo náo conio um objetivo que era necessário atingir indiretamente·pela
para opor-se a tendéncia reformadora do benthamismo. Spencer procura,
diminuü;::io da coen;:á'O, mas como o objetivo .que era necessário atingir
na verdade, baldar a "trais:áo" dos reformadores que querem tomar medidas direrameme. E, procurando atingi-lo diretamente, empregaram métodos
coercitivas cada vez rnais nwnerosas apelando para o bem do povo. E~ses intrinsecamente contrários aos que haviam sido empregados originalmente. 21
falsos liberais apenas atravancam a marcha da história rumo a urna sociecÍide
Respondendo ademanda de melhoria social das populayóes necessitadas,
em que deveria prevalecer a cooperas:áo voluntária de tipo contratualista, em
esses liberais reformistas destruíram o sistema de liberdade e responsabilidade
detrimento das formas militares de coordenayáo. ·"'
que os old whigs quiseram implantar22 • Isso é particularmente visível no que
É em funyáo de urna "lei de evolus:áo" que Spencer se ergue contra toda
diz respeito ao auxílio aos pobres, contra o qual Spencer náo poderia ter
intervenyáo do Estado, mesmo quando feita por responsáveis do Estado que
sido mais duro.
proclamam seu liberalismo. Elevé as disposiyóes legislativas e as instituis:óes
públicas que estendem as proteyóes da lei aos mais fracos apenas como
19
Patrick Tort, Spencer et l'évolutionnisme philosophique, cit., p. 13.
"ingeréncias" e "restris:óes" que atravancam a vida dos cidadáos. As leis que
20
Ibidem, p. 13-9. Karl Polanyi dará grande importancia a essa lista, julgando-a parti-
limitam o trabalho de mullieres e crianyas nas manufaturas de tingimenro o u
cularmente indicativa do "contramovimento" que se desenhou a partir de 1860 (La
nas lavanderías, as que impóem a vacinayáo obrigatória, as que estabelec;em grande transformatíon, Paris, Gallimard, 1983, p. 197) [ed. bras.: A grande transfor-
mardo: as origens da nossa época, trad. Fanny Wrobel, 2. ed., Rio de Janeiro, Elsevier,
2012]. Esse ponto é desenvolvido adiante, p. 64.
16
Michael W Taylor, Men versus the State: Herbert Spencer and Late Victorian Individ- 21
Herbert Spencer, L'individu contre l'État (Paris, Alean, 1885), p. 10. Distinc;áo que
ualism (Oxford, Clarendon, 1992), p. 13.
confirma amplamente a diferenya entre liberdade positiva e liberdade negativa que
17
Ver Patrick TOrt, Spencer et l'évolutionnisme philosophique (Paris, PUF, 1996). Isaiah Berlin popularizará e que vimos em ac;áo na obra do próprio Bentham.
18
Aliás, o próprio Spencer observa como ele "evoluiu" em relac;áo a Bemham, por efeito 22
Encontramos o mesmo esquema de explicayáo ("a impai::i~ncia das massas") em
dos progressos da ciéncia da natureza. Poderíamos acrescemar que a dout'rina de Friedrich Hayek, O caminho da serviddo (trad. Anna Maria Capovilla, José Ítalo
Spencer deve muito a Saim-Simon e Comte, ainda que tenha mudado suas doutrinas Stelle e Liane de Morais Ribeiro, Rio de Janeiro, Biblioteca do Exérdto/Instituto
e invertido as consequéndas políticas que eles tiravam delas. Liberal, 1994).
48 ,. A nova razáo do mundo Crise do liberalismo e nasdmento do neo liberalismo • 49

Ele retoma os argumentos malthusianos contra esse tipo de auxílio: Contra a superstis;áo do Estado
querem lastimar "as misérias dos pobres meritórios, em vez de representá:..
Urna das fontes da deriva socialista do utilitarismo empírico é a crenya
-las- o que na maioria dos casos seria mais correto- como as misérias dos
metafísica na instancia- soberana. O Estado e as categorias políticas que
pobres demeritórios" 23 • Ele propóe, ainda, como regra de conduta, um ditado
fundam sua legitimidade sáo urna "grande superstiyáo política". Assim,
"cristáo" que tem apenas urna rela¡;:áo distante com o dever de caridade:
Spencer mostra o quanto Hobbes -~-' depois, Austin tentaram justificar a
Ero minha opiniáo, pode-se considerar que uro ditado cuja verdade é soberania sobre a base do direito divino. O que significa que esses filósofos
aceita igualmente pela crenya comum e pela crenya da ciéncia goza de
foram incapazes de fundar a soberania sobre si mesma, isto .é, sobre a ftmyáo
urna autoridade incontestável. Pois bem! O mandamento: "Se urna pessoa
n:io deseja trabalhar, n:io deve comer" é simplesmente o enunciado crist:io que ela deveria cumprir. Todavia, é toda a teoria política que visa a fundar a
dessa lei da natureza sob império da qua! a vida atingiu seu grau atual, a democracia moderna que deve ser revisada. A onipoténcia governamental,
lei segundo a qual urna criatura que náo é suficientemente enérgica para que a caracteriza, repousa sobre a superstiyio de um direito divino dos
se bastar deve perecer. parlamentos que é também um direito divino das maiorias, o qual so mente
Mas essa assisténcia aos pobres é apenas um aspecto dos malefícios da prolonga o direito divino dos reis 25 •
ingeréncia do Estado sem limites, se ela tenciona remediar todos os males Náo nos causará surpresa, portanto, ver Spencer atacar Bentham e seus
da sociedade. Essa tendéncia quase automática a ilimitayáo da intervenyáo discípulos a propóSito da criayáo dos direitos pelo Estado. Spencer lembra
do Estado é reforyada pela educayáo, que intensifica os desejos inacessíveis o teor dessa teoria, mostrando que ela implica urna criayáo ex nihilo de
a grande massa, e pelo sufrágio universal, que impele as promessas políti- · ·d~reitps, a náo ser que ela apenas queira dizer .que, antes da forma((áO do
cas. Spencer quer ser o profeta da desgraya dessa "escravidáo futura'' gue gÜVe-rno, o povo: nán ·po·ssuía a t9talidade dos direitos de forma indivisa.
é o socialismo. Tenciona impedir seu advento por urna obra de socioiQgia Para Spencer, a teoria benthamiana e austiniana da criayáo dos direitos é
científica que exporá as verdadeiras leis da sociedade. Porque a socied~de falsa, ilógica e perigosa, porque utiliza urnafallacj6 • O Estado, na verdade,
tem leis fundamentais, como rudo na natureza. Os militaristas, o u melli~r, apenas molda o que já existe.
os "falsos militaristas", ignoram as leis do contrato, da divisáo do trabalho, A referéncia ao "direito natural", portante, náo tem mais o sentido que
da limitayáo ética da ayáo. Por ignodncia e superstiyáo, tomam a via do tinha no jusnaturalismo dos séculas XVII e XVIII. Como vimos, o direito
socialismo sem saber. Esses falsos militaristas conservaram-se empiristas de é fundado, a partir de enrio, tanto nas condiyóes da vida individual como
visáo muito curta. Sua compreensáo empírica da utilidade "impede que nas condiyóes da vida social, que dependem da mesma necessidade vital.
partam dos fatos fundamentais que ditam os limites da legislayáo". A ciéncia Com respeito a estas últimas, lembramos que é a "experiéncia das vantagens
sociológica, ao contrário, poderá dizer o que é a verdadeira utilidade, isto é, possíveis da coopera<;:áo" que impele os primeiros homens a viver em grupos.
fundamentada em leis exatas: ''Assim, a utilidade, náo avaliada empiricamen- Ora, essa cooperayáo, atestada por Spencer pelos costumes das sociedades
te, mas, determinada racionalmente, prescreve a manutenyáo dos direitos selvagens, tero como condiyáo de existéncia contratos tácitos que a partes
individuais e, por implica¡;:áo, proíbe rudo que lhes pode ser contfirio" 24 • se comprometem a respeitar. A "evoluyáo" testemunha aqui a favor da an-
terioridade imemorial do direito dos contratos em relayáo a toda legislayio
positiva. A missáo do Estado é, por isso, estreitamente circunscrita: ele apenas
garante a execuyáo de contratos livremente consentidos; náo cria de modo
algum novas direitos ex nihilo.

23
Herbert Spencer, L'individu contre l'État, cit., p. 26 (em ediqáo mais recente: Le droit
d'ignorer l'État, París, Les Belles Lettres, 1993, p. 43-4). " Ibidem, p. 116 e 122 (ibidem, p. 121 e 132).
" Ibidem, p. 156 (ibidem, p. 201). " Ibidem, p. 132 (ibidem, p. 153).
Crise do liberalismo e nascimento do neo liberalismo ~ 51
50 '" A nova razáo do mundo

A funyáo do liberalismo no passado foi p6r wnlimite aos poderes dos Com essa última ideia da passagem observável por toda parte do homogéneo
reis. A funyáo do liberalismo no futuro será limitar o poder de parlamentos para o heterogéneo29 , Spencer estende o princípio da divisáo do trabalho ao
submetidos apressáo impaciente das massas incultas27 . Atacando Bentham, conjunto das realidad~s __f~sicas, biológicas e humanas; ele o transforma num
Spencer vai araiz teórica das tendencias intervencionistas do liberalismo e princípio da marcha universal da matéria e da própria vida.
do radicalismo ingles oriundo do utilitarismo. Ele ataca urna interpretayáo Comte, assim como mais tarde Darwin, ressaltou a especificidade da
que consiste em fazer do bem-estar do povo o fim supremo da intervenyáo espécie humana, e ambos demostraram, por caminhos diferentes, o que
do Estado, sern levar suficientemente ern coma as leis naturais, isto é, as Comte chamou de "inversáo radical da economia individual", que fazia
relayóes de causalidade entre os fatos. prevalecer os motivos simpáticos sobre o instinto egoísta. Embora retome a
ideia da diferenciayáo das funyóes económicas, Spencer recusa-se a admitir
A questáo essenciallevantada diz respeito averdade da teoria utilitária, tal
como é geralmente recebida, e a res posta a contrapor aqui é que, tal como a necessidade, para a espécie humana, de um centro político dedicado a
é geralmente recebida, ela náo é verdadeira. Pelos tratados dos moralistas regulayáo das atividades diferenciadas. É claro que, quando examina a
utilitários, e pelos atas dos homens políticos que consciente ou inconscien- evoluyáo do espírito humano, comparando as "rayas superiores" e as "rayas
temente seguem a orientayáo deles, está implicado que a urilidade deve ser inferiores", ele náo se esquece da liyáo comtiana que fazia do altruísrno
determinada diretamente pela simples ~nspeyáo dos fatos presentes e pela urna reayáo ao avanyo egoísta da economia liberal30 , mas se nega a tirar
avaliay:io dos resultados prováveis; ao passo que o utilitarismo, se bem
disso a conclusáo de que o governo tem cerro dever regulador. Parece-lhe,
compreendido, implica que nos guiemos pelas conclusóes gerais fornecidas
pela análise experimental dos fatos já observados. 28 _ao contrário de Comte e mais tarde de Durkheim, que a "cooperayáo
vol~ntária", tal como se desenvolve nas sociedades mais evoluídas sob a
Essa carreta compreensáo da utilidade no imbito de urna sociologia
forma do contrato, asseg~ra urna· dependencia rn-útua entre as unidades
evolucionista permitirá evitar a e~cravidáo socialista, que nunca é rnais . .do
suficientemente consistente para manter o "superorganisrno s'ocial". Essa
que um retrocesso a um estado anterior da evoluyáo, a era militar. Pira
" premissa vai levá-lo a reinterpretar, aprópria maneira, a teoria darwiniana
evitá-la, o liberalismo deve afastar-se da lógica mortal das leis sociais aqiial da seleyáo natural e integrá-la a sua síntese evoludonista31 .
o levou urn reformismo benthamiano cientificamente inepto.
Darwin publicara em 1859 A origem das espécies*, fazendo da sele1=áo na-
tural, corno todos sabemos, o princípio da rransformayáo das espécies. Alguns
anos depois, prestando homenagem a Darwin, Spencer criará em seus Principies
O nascimento do concorrencialismo fin-de-siecle
ofBiology [Princípios de biologia] (1864) afamosaexpressáo "sobrevivénciados
O evolucionismo biológico de Spencer, ernbora pareya muito datado a
cerros neoliberais, a ponto de frequenternente "se esquecerern'' de mencioná-lo
29
entre suas fontes de referéncia, exceto para rejeitá-lo, deixou wna marca pro- Ver Herbert Spencet, "Progress: lts Law and Causes", The Westminster Review, v. 67,
funda no curso posterior da doutrina liberal. Podernos até mesmo dizer que o 1857.
00
spencerismo representa urna verdadeira virada. Dissemos antes o quanto Spencer, · ldem, "Esquisse d'une psychologie comparée de l'homme", Revue Philosophique de
la France et de lÉtranger, t. 1, 1876.
por intermédio de Comte, fez da divisáo fisiológica do trabalho urna das pe<;as
31
Sobre todos esses pontos, ver a tese clássica do historiador norte-americano Richard
principais de sua "síntese filosófica". Num prirneiro momento, a evoluyáo é
Hofstadter, escrita em 1944, Social Darwinism in American Thought (Bastan, Beacon,
explicada como um fenómeno geral que obedece a dois processos: a integrayáo 1992). Foi essa obra que popularizou o termo "darwinismo social", raramente utilizado
a wn "aglomerado" e a diferenciayáo das partes mutuamente dependentes. até enrio. Notemos que essa expressáo surgiu em 1.879 num artigo da revista Popular
Science, soba pluma de Osear Schmidt, e foi utilizado por um anarquista, Émile Gautier,
num texto publicado em Paris, em 1880, intitulado Le darwin4me social.
" Ibidem, p. 158 (ibidem, p. 206). * Trad. Aulyde Soares, Sáo Paulo/Brasília, Melhoramentos/Editora da UnB, 1982.
" Ibidem, p. 154 (ibidem, p. 198). (N. E.)
52 " A nova razáo do mundo Crise do liberalismo e nascimento do neoliberalismo " 53

mais aptos" (survival ofthe jittest) 31 , que será retornada por Darwin na quinta vital geral, que é preciso deixar que se desenvolva para _que a evolu¡;:áo náo
ediyáo de A origem das espécies, na qual ele a apresenta corno equivalente da seja interrompida; daí as principais consequencias que examinamos antes,
expressáo "seleyáo natural". Sem detalhar as razóes desses cruzamentos e dos em especial as que -~~n4enavam a ajuda aos mais necessitados, que deveriam
mal-entendidos mútuos que os caracterizam, notaremos que, para Spencer, a a
ser abandonados própria sorte.
teoria darwiniana parecia corroborar a teoria do laissez-faire da qual ele se fez Spencer vai deslocar, assim, o centro de gravidade do pensamento li-
arauto, como indica o paralelo entre a evoluyáo económica e a evoluyáo das beral, passando do modelo da divisáo do trabalho para o da concorrencia
espécies em geral que ele estabelece em seus Princípios de biología. Para ele, como necessidade vital. Esse naturalismo extremo, além de satisfazer inte-
a prirneira é apenas urna variedade da "luta pela vida", que faz prevalecer as resses ideológicos e explicar lutas comerciais ferozes entre empresas e entre
espécies mais bem adaptadas a seu meio. Esse paralelo conduzia diretarnente econornias nacionais, faz a concepyáo do motor do progresso passar da
a urna deformayáo profunda da teoria da seleyáo, na medida em que náo era especializaráo para a seleráo, que náo tem as mesmas consequencias, como
rnais a heranya seletiva das características rnais adaptadas asobrevivencia da bem podemos imaginar.
espécie que importava, mas a luta direta entre rayas e entre classes que era No prirneiro modelo, que encontramos de forma exemplar em Smith e
interpretada ern termos biológicos. A problemática da competiyáo levava a Ricardo, mas é muito anterior a eles, a livre· troca favorece a especializayáo
rnelhor sobre a da reproduyáo, dando origem, assim, ao que foi charnado de das atividades, a divisáo das tarefas nas oficinas, assim como a orienta¡;:áo
rnaneira muito imprópria de "darwinismo social". Corno mostrou Patrick da produyáo nacional. O mercado, nacional ou internacional, com seu jogo
Tort, Darwin, de sua parte, sustentava que a civilizayáo se caracterizavasobre- próprio, é a mediayáo necessária entre as atividades, o mecanismo de sua
tudo pela prevaléncia de "instintos sociais" capazes de neutralizar os aspectos coordenayáo. A ~onsequéncia primeira desse modelo comercial e mercantil
eliminatórios da seleyáo natural e acreditava que o sentirnento de simpatia é que, pelo aumento gerai da produtividade média que decorre da especiali-
estava destinado a estender-se indefinidamente33 • zayáo, todo mundo ganha na troca. Essa náo é urna lógica elfminatória do
Convérn sublinhar a virada que o pensarnento de Spencer represen~a na pior dos sujeitos económicos, mas urna lógica de complementaridade que
história do liberalismo. O ponto decisivo que permite a passagern da lei da melhora a eficácia e o bem-estar do pior dos produtores. É claro que aquele
evoluyáo biológica para suas consequencias políticas é a prevaléncia na, vida que náo quiser obedecer a essa "regra do jogo" deve ser entregue aprópria
social da luta pela sobrevivéncia. Sern dúvida, a referéncia a Malthus ainda é sorte, mas aquele que participa do jogo náo pode perder. No segundo mo-
rnuito importante em Spencer: nem todos os homens sáo convidados para o delo, ao contrário, nada garante que aquele que participa da grande lutada
grande "banquete da natur~za''. Aessa influencia, porérn, sornou-se a ideia seleyáo natural irá sobreviver, apesar de seus esforyos, de sua boa vontade,
de que a cornpetiyáo entre os indivíduos constituía para a espécie humana, de suas capacidades. Os menos aptos, os mais fracos, seráo eliminados por
as
que nisso é assimilável outras espécies, o próprio princípio do progresso aqueles que sáo mais adaptados, mais fortes na luta. Náo se trata mais de
da humanidade. Daí a assimilayáo da concorréncia econümica a urna luta urna lógica de promoyáo geral, mas de urn processo de eliminayáo seletiva.
Esse modelo náo faz mais da troca um meio de se fortalecer, de melhorar; ele
faz dela urna prova constante de confronto e sobrevivéncia. A concorrencia
32
Na parte 3, capítulo 12, de Principies ofBíology, v. 1 (Londres/Edimburgo, Williams/
náo é considerada, entáo, corno na econornia ortodoxa, clássica o u neoclás-
Northgate, 1864), § 165, p. 445, Spencer escreve que: "Jhis survival ofthe jittest [... ]
ís that whích Mr. Darwín has called 'natural selection, or the preservatíon offavoured sica, urna condiyáo para o bom funcionamento das rrocas no mercado; ela
races in the struggle for lije"' ["Essa sobrevivénda dos mais aptos (... ) é o que o sr. é a lei irnplacável da vida e o mecanismo do progresso por elirninayáo dos
Darwin chamou de 'sele~áo natural, ou preserva~áo das ras:as favorecidas na luta pela mais fracos. Profundamente marcado pela "lei da populayáo" de Malthus,
vida'"] (ed. fr.: Príncipes de biologie, Paris, Germer Baillitre, 1880, t. 1, p. 539).
o evolucionismo spenceriano conclui bruscamente qtie o progresso da so-
33 Ver Patrick Tort, Spencer et l'évolutíonnísme philosophique, cit. Remeto o'leitor ao
ciedade e, rnais amplamente, da humanidade supóe a destruiyáo de alguns
esdarecimento completo dessa questáo em Patrick Tort, L'ejfet Darwin: sélection
naturelle et naissance de la civilísatíon (Paris, Seuil, 2008). de seus componentes.
54 • A nova razáo do mundo Crise do liberalismo e nascimento do neoliberalismo e 55

Sem dúvida, esses dois modelos continuaráo a sobrepor-se nas argu- os primeiros botóes que brotam em torno dela. O mesrpo acontece na
mentafóes do liberalismo ulterior. No próprio Spencer, a delimitayáo vida económica. lsso é apeüas a aplicayáo de urna leida natureza e de urna
entre a cooperayáo voluntária que caracteriza a sociedade industrial e a lei lei de Deus. 36

da selefáO náo é simples. De todo modo, a "reafáo" de Spencer a crise do Essa ideo logia concorrencialista renovou o dogffiatismo do laíssezfaire,
liberalismo, com o deslocamento que ele faz do inodelo da traca para o da com prolongamentos políticos significativos nos Estados Unidos, que pu-
concorréncia, constitui um evento teórico que terá efeitos múltiplos e du- seram em questáo algumas leis de ptótec;:áo dos assalariados.
radouros. O neoliberalismo, em seus diferentes ramos, será profundamente No plano teórico, foi o sociólogo norte-americano e professor do Yale
marcado por esse evento, mesmo quando o evolucionismo biológico for College William Graham Sumner (1840-1910) quem estabeleceu mais
abandonado. Será evidente que a concorréncia é, como luta entre rivais, o explícitamente as bases desse concorrencialismo 37 • No ensaio Ihe Cha!lenge
motor do progresso das sociedades e que todo entrave que se coloca a ele, ofFacts [O desafio dos fatos], dirigido contra o socialismo e todas as tenta-
em particular pelo amparo as empresas, aos indivíduos o u mesmo aos países yóes do pensamento social "sentimental", Sumner tenciona lembrar que o
mais fracos, deve ser considerado um obstáculo a marcha contínua da vida. homem, desde o prindpio dos tempos, está em luta por sua existéncia e pela
Infelizes dos vencidos na competifáo económica! existéncia de sua mulher e seus filhos. Essa l~ta vital contra urna natureza
O táo mal denominado "danvinismo social" está mais para um "con- que distribuí com parcimónia os meios de subsisténcia abriga os homens a
correncialismo social" 3\ que instituí a competiyáo como norma geral da trabalhar, a disciplüiar-se, a moderar-se sexualmente, a fabricar ferramentas,
existénda individual e coletiva, tanto da vida nacional como da vida inter- _a constituir um capital. A escassez é a grande educadora da humanidade. Mas
nacionaP5. A adaptafáo a urna situas:áo de concorréncia vista como natural a·humá.nidade tetp tendén,cia a reproduzir-se além de suas capacidades de
torno u-se, assim, a palavra de ordem da conduta individual, assimilada a l¡lffi subsisténcia. A lu!a contra a natureZa é ao mesmo tehlpo, .e inev~tavelmente,
combate pela sobrevivéncia. Prolongando o malthusianismo que, na graqde LUlla luta dos homens entre si. Essa tendéncia está na origem do progresso.
época vitoriana, fazia da pobreza um efeito fatal da fecundidade irresponsá~el É próprio da sociedade civilizada, caracterizada pelo reino das liberdades
das classes populares, esse concorrencialismo fez muito sucesso na Europa civis e da propriedade privada, transformar essa luta numa competis:áo livre
e, sobretudo, nos Estados Unidos. Respondendo as acusas:óes de preda9áo e pacífica, da qual resulta urna distribuiyáo desigual das riquezas, que, por
e pilhagem, grandes industriais norte-americanos como Andrew Carnegie sua vez, produz necessariamente ganhadores e perdedores. Náo há razáo
ou John D. Rockefeller usaram essa retórica selecionista para justificar para deplorar as consequéncias desigualitárias dessa luta, como fazem desde
o crescimento dos grupos capitalistas gigantes que vinham construindo. Rousseau os filósofos sentimentais, sublinha Sumner. A justis:a nada mais
Rockefeller resumiu a ideologia, declarando: é do que a justa recompensa do mérito e da habilidade na luta. Os que
A variedade de rosa "American Beauty" só pode ser produzida coro o es- fracassam devem isso apenas a sua fraqueza e a seu vício. Um dos ensaios
plendor e o perfume que entusiasmam quem a contempla sacrificando-se mais significativos de Sumner afirma que
a propriedade privada, que como vimos é característica de urna sociedade orga-
34
Patrick Tort rnostrou de maneira definitiva que a teoria da1winiana era o oposto exato nizada segundo as condiyóes naturais da luta pela existéncia, tarnbém produz
desse concorrencialismo, runa vez, que, para o hornero social, a sele~o biol6gica é desigualdades entre os homens. A luta pela existéncia é dirigida contra a natu-
substitllida por "tecnologías de compensas:áo" que reduzem artificialmente as causas de reza. Devernos conseguir os rneios de satisfazer nossas necessidades a despeito
debilidade dos indivíduos menos favorecidos (Patrick Tort, L'effit Darwin, cit., p. 11 O).
o polémico termo "darwinismo social", empregado por seus oponentes, contérn ern si
urna falsificas:áo. A repeti<yáo das expressóes "luta pela vida'' ou "sobrevivéncia dos inais 36
Rockefdler citado ern John Kenneth Galbraith, "Derritre la fatalité, 1' épuration
aptos" náo é suficiente para lhe garantir um fundamento s6lido na teoria de Darwin. social. Lart d'ignorer les pauvres", Le Monde Diplomatique, Púis, ·out. 2005.
3
5 Mike Hawkins, Social Darwínism in European andAmerican Thought, 1860-1945: 37
Ver William Graham Sumner, The Challenge ofFacts and Other .E"ssays (org. Albert
Nature as Model and Nature as Threat (Cambridge, Cambridge University Press, 1997). Galloway Keller, New Haven,.Yale University Press, 1914).
56 "' A nova razáo do mundo Crise do liberalismo e nascimento do neoliberalismo e 57

de sua avareza, mas nossos companheiros sáo nossos competidores no dispar muitos, o Estado aparecia como wn interventor náo sornente legítimo, mas
dos parcos recursos que ela nos oferece. A competi~áo, por consequencia, é também necessário na ecünomia e na sociedade. Em todo caso, a questáo
urna leida natureza. A natureza é inteiramente neutra, sub mete-se iquele que
da "organizayáo" ~-o-~~pitalismo e da melhoria da condic;:áo dos pobres,
a ataca de forma mais enérgica e resoluta. Ela concede suas recompensas aos
que náo erarn todos p.reguic;:osos e cheios de vícios, tornara-se urna questáo
mais aptos, lago, sem atentar para ourras considera~óes de qualquer espécie
que sejam. Portanto, se existe liberdade, o que os homens obtém dela está na central desde o fim do século XIX.
exata propor~áo de seus trabalhos, e aquilo de que tem a posse e o gozo está A Primeira Guerra Mundial. e -as crises que vieram depois dela apenas
na exata propor~áo do que sáo e fazem. Talé o sistema da natureza. Se náo a aceleraram urna revisáo geral dos dogmas liberais do século XIX. O que
amamos e se tentamos corrigi-la, existe apenas um meio de fazé-lo. Podemos fazer com as velhas imagens idealizadas da livre rroca, quando todo o equi-
tomar do melhor e dar ao piar. Podemos desviar as puni~óes dos que fizeram
líbrio social e económico parece abalado? As repetidas crises económicas,
mal para os que fizeram bem. Podemos tomar as recompensas dos que fizeram
bem e dá-las aos que fizeram menos bem. Desse modo, diminuiremos as de- os fenómenos especulativos e as desordens sociais e políticas revelavam a
sigualdades. Favoreceremos a sobrevivencia dos mais inaptos [the survival of fragilidade das democracias liberais. O período de crises múltiplas gerava
the unjittest] e faremos isso destruindo a liberdade. É preciso compreender que urna ampla-desconfianya em relac;:áo a urna doutrina económica que pregava
náo podemos escapar da alternativa: liberdade, igualdade, sobrevivencia dos liberdade total aos atores no mercado. O laiSsezjaire foi considerado ultra-
mais aptos [survival of the jittest]; náo liberdade, igualdade, sobrevivencia
passado, até mesmo no campo dos que reivindicavam o liberalismo. Afora
dos mais inaptos [survival ofthe unjittest]. O primeiro caminho leva a sociedade
um núcleo de economistas universitários irredutíveis, aferrados adoutrina
para a frente e favorece seos melhores membros. O segundo caminho leva a
sociedade para trás e favorece seos piares membros. clássica e essencialmente hostis a intervenc;:áo do Estado, cada vez mais
·aU-tores esperavam urna transformac;:áo do sistema liberal capitalista, náo
Ternos aqui urna síntese perfeita desse "darwinismo social", q"!le de
pa~a destruí-io, bas par~·salvá-ln. O Estado parecia o único em condic;:óes
darwiniano só tem o no me que atribuíram a ele. Mas náo foi apenas 'nesse
de recuperar urna situac;:áo económica e social dramática. Dé acordo com
sentido que o liberalismo mudo u para sair da crise. .,
a fórmula proposta por Karl Polanyi, a crise dos anos 1930 soou a hora de
uro "reencastramento" do mercado em disciplinas regulamentares, quadros
legislativos e prindpios morais.
O "novo liberalismo" e o "progresso social"
Se a Grande Depressáo foi ocasiáo para urna revisáo mais radical da
Por mais importante que tenha sido essa reayáo violenta do spence- representayao liberal, nos países anglo-saxóes, como vimos, a dúvida já
rismo, significativa por si mesma das mudanc;:as em curso e prenhe das era oportuna muito antes. O New Deal foi preparado por um trabalho
transformac;:óes ulteriores do liberalismo, na segunda metade do século XIX crítico considerável, que foi muito além dos meios tradicionalmente hostis
muitos deram razáo as observayóes de Tocqueville quando ele descreveu o ao capitalismo. Aliás, desde o fim do século XIX, nos Estados Unidos, o
crescimento da intervenc;:áo governamental e aos argumentos económicos significado das palavras liberalism e liberal comec;:ava a mudar para designar
e sociológicos de John Stuart Mill. Muitos também, inclusive nas fileiras urna doutrina que rejeitava o laissezfaire e visava a reformar o capitalismo-19 •
dos que reivindicavam o liberalismo, fizeram dos instintos de "simpatia e U m "novo liberalismo" mais consciente das realidades sociais e económicas
solidariedade a mais alta expressáo da civilizac;:áo, prolongando Comte ou procurava definir havia muito tempo urna nova maneira de compreender
Darwin. Num livro famoso na época, John Atkinson Hobson fez do cresci- os prindpios do liberalismo, que emprestaria certas críticas do socialismo,
mento das funyóes governamentais wn dos temas principais de sua reflexáo, mas para melhor realizar os fins da civilizac;:áo liberal.
assim como, na Alemanha, o "socialista de cátedra" AdolfWagner38 . Para

39
Alguns autores veem esse deslocamento como urna trai~áo oll um "desvirtuamento"
38
Ver John Atkinson Hobson, The Evolution ofModern Capitalism (Londres, The Walter do liberalismo. É o caso de Alain Laurent, Le libéralisme américain: histoire d'un
Scott Publishing Co., 1894). détournement (Paris, Les Belles Lettres, 2006).
58 ., A nova razáo do mundo Crise do liberalismo e nascimento do neoliberalismo ~ 59

O "novo liberalismo" repousa sobre a constatayáo da incapacidade dos seria conceber, dentro do quadro democrático, formas de governo que fossem
42
dogmas liberais de definir novos limites para a intervenyáo governamentai. capazes de p6r as agendas em execuyáo.
Em nenhum outro lugar le-se melhor essa incapacidade dos dogmas amigos Keynes náo deseja-P_Ór em questáo todo o liberalismo, mas sua deriva
do que no pequeno ensaio de John Maynard Keynes cujo título já é por si dogmática. Assim, quando propóe que "o essencial para um governo náo
só urna indica~áo do espirito da época: O fim do "laissezfoire"* (1926). Se é fazer um pouco melhor o u um pouco pior o que os indivíduos já fazem, mas
Keynes se tornará mais tarde o alvo preferido dos neoliberais, náo devemos nos fazer o que atualmente náo é feito· dé"-maneira alguma'' 43 , náo se poderla ser
esquecer de que keynesianismo e neoliberalismo compartilharam as mesmas mais claro sobre a natureza da "crise do liberalismo": como reformular teórica,
preocupayóes durante algum tempo: como salvar do próprio liberalismo o moral e politicarnente a distinyáo entre agenda e ndo agenda? Isso significava
que é possível do sistema capitalista? Esse questionamento interessa a todos retornar urna questáo antiga, sabendo que a resposta náo poderla mais ser a
os países, com variayóes notáveis conforme o peso da tradiyáo do liberalismo dos fundadores da economía liberal, em particular a de Adarn Smith.
a
econOmico. Obviamente, a moda estava procura de uma terceira via entre Keynes quer estabelecer a distinyáo entre o que os economistas disseram
o puro liberalismo do século anterior e o socialismo, mas seria um engano de fato e o que a propaganda respondeu. Para ele, o laissezfoire é um dogma
imaginar essa "terceira via'' como o "justo meio". Na realidade, essa procura social simplista que atnalgamou tradiyóes e épocas diferentes, sobretudo a
adquire todo sentido quando a reinserimos no ámbito da questáo central da apologia da livre cdncorrencia do século XVIII e o "darwinismo social" do
época: sobre que fundamentos deve-se repensar a interven<;á-o governamental40 ? século XIX.
Toda a forya de Keynes proveio justamente de ter sabido colocar esse
Os_ economistas ensinavam que a riqueza, o comércio e a indústria eram
problema da época em termos de governamentalidade, como fará pouco
'· fiuto da livre ¿oncqrrencia - que a livre concorrencia fundara Londres.
depois, allás, seu amigo Walter Lippmann, embora num sentido diferepte. Mas os darwirlistas iam mais longe: a livre concoriencia criara o homem.
Após lembrar as palavras de Edmund Burke' 1 e a distin~áo de Bent\¡am A humanidade náo era mais fruto da Criaqáo, ordenando milagfosamente
entre agenda e ndo agenda, Keynes escreve o seguinte: todas as coisas para o melhor, mas fruto, supremo, do acaso submetido as
condiyóes da livre concorrencia e do laissezfaire. O princípio mesmo da
A tarefa essencial dos economistas hoje, sem dúvida, é repensar a distinyáo
sobrevivencia do mais bem adaptado podia ser considerado, assim, wna
entre agenda do governo e náo agenda. O complemento político dessa tarefa, 44
vasta generaliza<;áo dos prindpios económicos ricardianos.

Keynes sublinha que essa creny:t dogmática é largamente rejeitada pela


* EmJohn Maynard Keynes, Keynes (org. Tamás Szmrecsányi, 2. ed., Sáo Paulo, Ática, maioria dos economistas desde meados do século XIX, embora continue a
1984, Coleqáo Economia). (N. E.)
ser apresentada aos estudantes como propedeutica. Ainda que talvez exagere
40 Gilles Dostaler apresenta da seguinte maneira a visáo política de Keynes: ''A visáo
a extensáo da revisáo, omitindo a constituiyáo da economia de inspirayáo
política de Keynes se delineia, nwn primeiro momento, em termos negativos. Ela é
mais clara naquilo que rejeita do que no que prega. De um lado, Keynes trava urna
"marginalista'' que faz da concorréncia a condiyáo mais perfeita do funcio-
luta contra o liberalismo dássico, que se tornou apanágio de wn conservadorismo e narnento ideal dos mercados, ele aponta um momento de refnndayáo da
que, em sua forma extrema, pode rransformar~se em fascismo. Por ourro; ele rejeita doutrina que foi chamada de "novo liberalismo" e que ele próprio reivindica
as formas radicais do socialismo, que ele denomina ora leninismo, ora bolchevismo,
para si. Esse novo liberalismo visava a controlar as foryas econOrnicas para
ora comunismo. Trata~se, portanto, de navegar entre a reayáo e a revoluyáo. Essa é a
missáo de uma 'terceira via', alternadamente denominada novo liberalismo, liberalismo
evitar a anarquia social e política, reapresentando a questáo da agenda e
social e socialismo liberal, do qual ele se faz propagandista''. Gilles Dostaler, Keynes a
da náo agenda em sentido favorável intervenyáo política. O Estado se ve
et ses combats (París, Albin Michel, 2005), p. 166.
41
Edmund Burke considerava que "wn dos problemas mais sutis do direito" era "a 42 John Maynard Keynes, The End oJLaísserjaíre (Marselha, Agone, 1999), p. 26.
definiyáo exata do que o Estado deve tomar a seu encargo e gerir segundo b desejo
da opiniáo pública e do que deve ser deixado para a iniciativa privada, resguardado, 43 Ibidem, p. 31.
tanto quanto possível, de qualquer ingerencia". 44
lbidem, p. 9.
60 ~ A nova razáo do mundo Crise do liberalismo e nascimento do neoliberalismo • 61

encarregado de um papel regulador e redistribuidor fundamental naquilo é necessária para que essa realizayáo pessoal seja efetiva: cada indivíduo
que se apresenta também como um "socialismo liberal"4 5. deve ter condiyóes de participar da instaurac;:áo das regras que asseguraráo
Como mostra Gilles Dostaler, isso significava sobretudo reatar com o sua liberdade efetiva47 . É que a liberdade ganha urna concepyáo nova
radicalismo inglés, que sempre defendeu a intervenc;:áo do Estado quando e mais concreta c¿~_-a-legislayáo protetora dos trabalhadores. Segundo
esta era necessária. É nessa tradiyáo que se inseriam, no fim do século XIX Hobhouse, no século XIX pareceu necessário reequilibrar as tracas sociais
e no início do século XX, autores como John Hobson e Leonard Hobhouse. em benefício dos mais fracos mediante urna intervenyáo da legislayáo: "O
Estes últimos defendiam urna democracia social, vista como o prolonga- verdadeiro consentimento é um consentimento livre, e a plena liberdade
mento normal da democracia política. Na pluma desses partidários das do consentimento implica igualdade das duas partes comprometidas na
reformas sociais, os princípios da liberdade de comércio e de propriedade transayáo" 48 • Cabe ao Estado assegurar essa forma real de liberdade que o
tornavam-se wn meio como outro qualquer, e náo rnais urn firn ern si, o velho liberalismo náo concebera; cabe a ele garantir essa "liberdade social"
que evidentemente náo deixa de lembrar Bentham e Mili. Mais ainda, esse a
(socialfteedom), que ele opóe "liberdade náo social" (unsocialfteedom) dos
movimento pretendia travar urna luta doutrinal contra o individualismo na mais fortes. Ainda de forma bentharniana, Hobhouse explica que a liberdade
compreensáo dos mecanismos económicos e sociais, criticando frontalmente real somente pode ser assegurada pela coer~áo exercida sobre aquele que
a ingenuidade dogmática do velho liberalismo, que conduzia aconfusáo do é mais ameayador para a liberdade dos outros. Essa coeryáo, longe de ser
Estado moderno corn o Estado monárquico despótico. atentatória a liberdáde, proporciona a cornunidade um ganho de liberdade
Hobhouse propós em 1911 urna releitura sistemática da história do ·_ em todas as condutas, evitando a desarmonia social49 • Liberdade náo é o
liberalismo46. Esse movimento lento e progressivo de libertac;:áo do indi- Cqptrário de coeryáo, antes é a combinayáo das· coeryóes exercidas sobre os
víduo em relac;:áo as dependéncias pessoais era, para ele, um fenórp.eno que sáo forres cÓm aS- proÚyóes.dos que sáo mais fracos.
eminentemente histórico e social. Este levou a certa forma de organi:z;ac;:áo Dessa perspectiva, a lógica liberal auténtica pode ser faci'lmente resu-
que é irredutível a reuniáo imaginária de indivíduos inteirarnente formados mida: a sociedad e moderna multiplica as relayóes contratuais, náo apenas
fora da sociedade. Essa organizac;:áo social visa a produzir coletivamente as no campo econ6mico, mas em toda a vida social. Portanto, convém
condi<;óes de pleno desabrochar da personalidade, inclusive no plano,eco- multiplicar as ayóes de reequilíbrio e proteyáo para garantir a liberdade
nómico. Isso somente é possível se as relayóes múltiplas que cada indivíduo de todos, sobretudo dos mais fracos. O liberalismo social assegura, assim,
mantém com os outros obedecem a regras coletivamente estabelecidas. A por sua legislayáo, urna extensáo máxima da liberdade ao maior número
democracia mais completa, baseada na proporcionalidade da representayáo, de indivíduos. Filosofia plenamente individualista, esse liberalismo dá ao
Estado o papel essencial de assegurar a cada indivíduo os meios de realizar
45 seu próprio projeto 50 .
Gilles Dostaler descreve esse "novo liberalismo" da seguinte maneira: "Trata-se, em
última análise, de transformar profundamente um liberalismo económico que havia
custado socialmente muito caro no período vitoriano e corría o risco de provocar urna 47
Pode-se notar que esse novo liberalismo é um movimento fundamentalmente demo-
revolta da dasse operária. O novo liberalismo apresenta-se como urna alternativa ao
crático, que deixa de lado a desconfianya que ainda se encontrava em Mili acerca da
socialismo coletivista e marxista. Os novas liberais rejeitam a luta de dasses como
"tirania da maioria". Mais próximo de Bentham nesse aspecto, ele tem mais receio
motor de transformao;:áo social. Aderem de preferencia a urna forma de socialismo
da reconstituiyáo das oligarquías do que do poder das massas.
liberal que podemos qualificar de social-democrata, ao menos no sentido que tomará a
48
expressáo após as dsóes nos partidos operários no início da Segunda Guerra Mundial. LeÜnard Hobhouse, Liberalism and Other Writings, cit., p. 43.
49
Naturalmente, esse novo liberalismo é o exato oposto daquilo que boje chamamos de Ibidem, p. 44.
neoliberalismo, que é, em primeiro lugar, urna reao;:áo ultraliberal contra o interven- 50
Evidentemente, essa "retomada'' liberal deve ser articulada atradiyáo republicana no
cionismo keynesiano". Gilles Dostaler, Keynes et ses combats, cit., p. 179. mundo euro-atlántico. Seu equivalente na Frano;:a é o projeto republicano moderno,
4
G Ver Leonard Hobhouse, Liberalism and Other Writings (org. James Meadowcroft, escudado por Jean-Fabien Spitz, Le moment républicain en France (Paris, Gallimard,
Cambridge, Cambridge University Press, 1994). 2005, Coleo;:áo NRF Essais).
62 ., A nova razáo do mundo Crise do liberalismo e nascimento do neoliberalismo o 63

No enrreguerras, esse novo liberalismo terá desdobramentos impor- queria "um novo utilitarismo em que as satisfayóes físicas, intelectuais e
tantes nos Estados Unidos 51 . John Dewey, nas conferencias que fez erri morais teráo seu lugar justo" 54.
1935, reunidas em Liberalismo e al{áo social, mostrou a impotencia do Ver nisso um "desvirtuamento" do verdadeiro liberalismo seria, eviden-
liberalismo clássico para realizar seu.projeto de liberdade pessoal no século temente, um erro ba:s-eado no postulado de urna identidade fundamental do
XIX, sendo incapaz de passar da crítica das formas antigas de dependencia liberalismo 55 • É esquecer que, desde o início do século XIX, o radicalismo
para urna organizacráo social inteiramente fundada sobre os princípios li- benthamiano teve suas zonas de cantata com o movimento socialista nas-
berais. Reconhece em Bentham o mérito de ter visto a grande ameacra que cente, tanto na Inglaterra como na Franya. É esquecer que, anos depois, o
pesava sobre a vida política nas sociedades modernas. A democracia que ele utilitarismo doutrinal foi progressivamente.conduzido a opor urna lógica
queria implantar era pensada como forma de impedir os políticos de usar hedonista pura a urna ética da maior felicidade para o maior número de
seu poder em interesse próprio. Mas Dewey acusa-o, a ele e ao conjunto pessoas, como em Henry Sidgwick. Mas também é desconhecer o sentido
dos liberais, de náo ter reconhecido que o mesmo mecanismo agiria na das inflexóes aparentes dadas por John Stuart Mil! a sua própria doutrina,
economia e, consequentemente, de náo ter previsto "travas" para evitar como lembramos antes.
esse desvirtuamento 52 . Em suma, para Dewey, assim como anos antes
para Hobhouse, o liberalismo do século XX náo poderia mais contentar-
-se com os dogmas que permitiram a crítica da ordem antiga, mas deve
A dupla a~áo do Estado segundo Karl Polanyi
colocar-se imperativamente o problema da construcráo da ordem social e A questáo da natureza da interVenyáo governamental deve ser distinguida
da ordem econ6mica. É exatamente a isso que se dedicaráo- em sentido d~ questáo das fronteiras entre o Estado e o mercado. Essa distinyáo permite
oposto - os neoliberais modernos. apre~nder melhor:' um 'problema apresentado em A grande transformal{áo,
Hobhouse, Keynes o u Dewey encarnam urna corren te, ou melhor, !J-ffi livro em que Karl Polanyi afirma que o Estado liberal conduziu·urna dupla
meio difuso do fim do século XIX e inicio do século XX, no cruzamento ayáo com sentidos contrários no século XIX. De um lado, agiu em favor da
do radicalismo com o socialismo, que se empenha em pensar a reforma do criayáo dos mecanismos de mercado e, de outro, implantou mecanismos que
capitalismo53 • A ideia de que a política é guiada por um bem comum e deve o límitaram; de um lado, apoiou o "movimento" na direyáo da sociedade de
ser submetida a finalidades morais coletivas é fundamental nessa corrente , o mercado e, de outro, levou em considerayáo e reforyou o "contramovimento"
que explica as intersecyóes possíveis com o movimemo socialista. O fabia- de resistencia da sociedade aos mecanismos de mercado.
nismo, por intermédio de círculos e revistas, constitui um dos polos desses Polanyi mostra que a entrada no mercado dos fatores económicos é
encontros. Mas esse novo liberalismo deve ser situado sobretudo na história a condiyáo para o crescimento capitalista. A Revoluyáo Industrial teve
do radicalismo inglés. Hobson deve ser levado a sério 'quando declara que como condiyáo a constituiyáo de um sistema mercantil em que os homens
devem conceber-se, "sobo aguilháo da fome", como vendedores de serviyos
51 para poder adquirir recursos vitais para a traca monetária. Para tanto, é ne-
Segundo Alain Laurent, os "liberais modernos" conduzidos por John Dewey teriam
realizado urna operayáo muito semelhante nos anos 1920 nos Estados Unidos, o que cessário que a natureza e o trabalho se tornero mercadorias, que as relayóes
teria sido determinante para o significado que adquiriu o termo "liberal' no léxico que o hornero mantém com seus semelhantes e com a natureza tomem
político norte-americano. a forma da relayáo mercantil. Para que a sociedade inteira se organize de
52
Ver John Dewey, "Liberalism and Social Action", em The Later Works (1935-1937), acordo coro a ficyáo da mercadoria, para que se constitua como urna grande
v. 11 (Carbondale, Southern Illinois University Press, 1987), p. 28 [ed. bras.: "Libe-
ralismo e ayáo social", em Liberalismo, liberdade e cultura, trad. Anísio Teixeira, Sáo
54
Paulo, Editora Nacional, 1970]. John A. Hobson, Wealth and Lije, citado em Michael FreedeD., Liberalism Divided,
5
·' Ver Peter Clarke, Liberals and Social Democrats (Cambridge, Cambridge University cit., extraído de John A. Hobson, Wealth and Life (Londres, Macmillan, 1929).
Press, 1978). 5
5 Ver Alain Laurem, Le libéralisme américain, cit.
64 .. A nova razáo do mundo Crise do liberalismo e nascimento do neoliberalismo " 65

máquina de prodw;:áo e traca, a intervenyáo do Estado é indispensável, náo autodefesa espontánea, como diz Polanyi, prava que a sociedade de mercado
apenas no plano legislativo, para fixar o direito de propriedade e contrato, total é impossível, que os sofi:imentos que acarreta sao tals que os poderes
mas tambérn no plano administrativo, para instaurar nas relayóes sociais públicos sáo abrigados a estabelecer "diques" e "muralhas':.
regras múltiplas necessárias ao funcionamento do mercado concorrencial Todo desequilíbl'icn-¡gado ao funcionamento do mercado ameaya a
e fazer com que sejam respeitadas. O mercado autorregulador é fruto de sociedade submetida a ele. Inflayáo, desemprego, crise de crédito inter-
urna ayáo política deliberada, da qual um dos principais teóricos foi, segun- nacional, crash financeiro, todos ess_es fenómenos económicos atingem
do Polanyi, precisamente Bentham. Citamos aqui um trecho decisivo de diretamente a sociedade e, portanto, exigem defesas políticas. Porque náo
A grande transformariío: compreenderam essa liyáo que poderia ter sido tirada do p~ríodo anterior
O laissezfaire náo tinha nada de natural; os mercados livres nunca poderiam aPrimeira Guerra Mundial, os responsáveis políticos que surgiram após o
ter nascido se as coisas tivessem sido simplesmente abandonadas a si mes mas. fundas hostilidades quiseram reconstruir urna ordem liberal mundial muito
[... ]Entre 1830 e 1850, vi u-se náo apenas uma explosáo de leis ab-rogando frágil, acumulando tensóes entre o movimento de reconstruyáo do mercado
regulamenros restritivos, mas também um enorme aumento das funyóes (em particular no nível mundial, com o desejo de restaurayáo do sistema
administrativas do Estado, que é entáo dorado de uma burocracia central
do padráo-ouro) e o movimento de autodefesa social. Essas tensóes, que
capaz de cumprir as tarefas estabelecidas pelos partidários do liberalismo.
Para o utilitarista típico, o liberalismo econ6mico é um projeto social que
tém a ver com a contradiyáo interna a "sociedade de mercado", passaram
deve ser posta em ayáo para a maior felicidade do maior número de pessoas; da esfera económica para a social, e desta para a política, da cena nacional
o laissez-faire náo é um método que permite realizar urna coisa, ele é a coisa para a internacional e vice-versa, o que, por fim, provoco u a reayáo fascista
que se deve realizar.5 6 é á ~egunda Guerra Mundial.
Es.se Estado administrativo, criador e regulador da economia e da,¡so- A "grande trarlsforma'~áo" que caracteriza os_ anos 1930 e 1940 é
ciedade de mercado, é imediatamente, sem que se possa distinguir bem o urna resposta de grande envergadura ao "desaparecimento da·civilizayáo
alcance das intervenyóes, um Estado ad~inistrativo que reprime a dinámica de mercado" 58 e, mais precisamente, urna reayáo a tentativa derradeira e
espondnea do mercado e protege a sociedade. Esse é o segundo paradoxo desesperada de restabelecer o mercado autorregulador nos anos 1920: "O
da demonstrayao de Karl Polanyi, formulado da seguinte maneira por ele: liberalismo económico fez um lance alto para restabelecer a autorregulayáo
"Enquanto a economia do laissez-faire era produzida pela ayáo deliberada do sistema, eliminando todas as políticas intervencionistas que comprome-
do Estado, as restriyóes posteriores principiaram espontaneamente. O tiam a liberdade dos mercados de terra, trabalho e moeda'' 59 • Desse lance
laissez-foire era planejado, a planificariío niío" 57 Após 1860, e para o pesar de alto, em que a moeda desempenhou o papel principal, a grande transfor-
Herbert Spencer, um "contramovimento" generalizou-se em todos os países mayáo, a consequencia é direta. O imperativo da estabilidade monetária e
capitalistas, tanto na Europa como nos Estados UnidOs. Inspirando-se nas da liberdade do comércio mundiallevou a melhor sobre a preservayáo das
ideologias mais diversas, ele respondia a wna lógica de "proteyáo da socieda- liberdades públicas e da vida democrática. O fascismo foi o sintoma de
de". Esse movimento de reayao contra as tendencias destruidoras do mercado urna "sociedade de mercado que se recusava a funcionar" 60 e o sinal do fim
autorregulador tomou duas formas: o protecionismo comercial na¿ional e o do capitalismo liberal tal como fora inventado no século XIX. A grande
protecionismo social que se instalou no fim do século XIX. Portanto, a história reviravolta política dos anos 1930 manifesta-se como urna ressocializayáo
deve ser lida segundo wn "duplo movimento" de sentido contrário: o que violenta da economia61 • Por toda parte, a tendencia é a mesma: subtraem-se
leva acriayáo do mercado e o que tende a resistir a ele. Esse movimento de
58
lbidem, p. 285.
59
lbidem, p. 299.
56 60
Karl Polanyi, La grande transformation, cit., p. 189; grifo nosso. lbidem, p. 308.
57 61
lbidem, p. 191; grifo nosso. Ver Prefádo de Louis Dumont, em ibidem, p. l.
66 .. A nova razáo do mundo Crise do liberalismo e nascimento do neo liberalismo ., 67

do mercado concorrencial as regras de fixayáo dos preyos do trabalho, da a fon;:a da lei, ele pode até mesmo recorrer a violéncia, a guerra civil, para
terra e da moeda para submete-las a lógicas políticas que visam a "defesa instaurar as condiyóes prévias para um mercado autorregulador. 63
da sociedade". O que Polanyi chama de "grande transformayáo" é, para
Essa passagem 111,Ui_tQ_p_quco citada, notável pelo fato de antecipar certas
ele, o fim da civilizayáo do século XIX, a morte do liberalismo económico
"cruzadas" recentes, distancia-nos da "disjunyáo" entre Estado e mercado que
e de sua utopia.
é vista como típica do liberalismo. A realidad e histórica é muito diferente,
Polanyi, todavia, precipitou-se acreditando na morte definitiva do
como mostra Polanyi quando cita -a guerra que o Norte travou contra o Sul
liberalismo. Por que cometeu esse erro de diagnóstico? Podemos avanyar
para unificar as regras de funcionamento do capitalismo norte-americano.
a hipótese de que subestimo u um dos principais aspectos do liberalismo,
Essa forma constante de intervenyáo para "manutenyáo" do mercado
embora ele mesmo o tenha posta em evidencia. Vimos antes que, entre
lanya urna nova luz sobre o erro de P~lanyi, bem como sobre os que vieram
as diferentes formas de intervencionismo do Estado, havia duas que se
depois dele. Ela é apenas a presunyáo otimista de um fim ardentemente
contrariavam: as intervenyóes de criaráo do mercado e as de proteráo da
desejado ou apenas o resultado de urna confusáo de pensamento, cujo risco
sociedade, o "movimento" e o "contramovimento". Mas existe um terceiro
foi identificado pelo próprio Polanyi64 • O liberalismo económico náo se
tipo, do qual ele fala mais brevemente: as intervenyóes de funcionamento
confunde como !aissezfaire, náo é contrário ao "intervencionismo", como
do mercado. Embora indique que estas náo sáo facilmente distinguíveis
ainda se pensa com frequencia.
das outras, ele as menciona como urna constante da ayáo do governo
Na realidade, é' entre os diferentes tipos de intervenyóes do Estado
liberal. Essas intervenyóes destinadas a assegurar a autorregulayáo do
qtJe é preciso fazer urna distinyáo. Elas podem dizer respeito a princípios
mercado tentam fazer com que o princípio de concorrencia que deve
heteróiwmos a mercantil~~ayáo e obedecer a piindpios de solidariedade,
regé-lo seja respeitado. Polanyi cita como exemplos as leis antitrust:s e
compartilhament6, respeito a tradii;:óes o u normaS i'eligiosas. N~sse sentido,
a regulamentayáo das associayóes sindicais. Nos dois casos, trata-se d,~ ir
participam do "conrramovimento" atendencia principal do grande merCado.
contra a liberdade (na situayáo em questáo, a liberdade de coalizáo) p~ra
Mas também podem ser da ordem de um programa que visa a estender a
fazer funcionar melhor as regras concorrenciais. Polanyi cita, aliás, esses
insen:;:áo no mercado (o u quasi-mercado) de seto res inteiros da produyáo e da
"liberais consequentes com eles mesmos", entre os quais Walter Lippmann,
vida social, mediante certas políticas públicas ou certas despesas sociais que
que náo hesitam em sacrificar o laissezfaire em benefício do mercado
vem proteger o u apoiar o desenvolvimento das empresas capitalistas. Polanyi,
concorrencial62 • Isso porque estes últimos termos náo sáo sinónimos,
quando se quis "profeta", ficou como que fascinado coma contradiyáo entre
apesar da linguagem comum que os confunde. Citamos urna passagem
esse movimento mercantil e esse contramovimento social, contradiyáo que,
particularmente eloquente:
para ele, levou afinal a"explosáo" do sistema. Mas esse fascínio, explicável
Estritamente falando, o liberalismo econOmico é o princípio diretor de tanto pelo contexto como pelas intenyóes demonstrativas de sua obra, fez
urna sociedade em que a indústria é baseada na instituiyáo de um mercado
com que ele se esquecesse das intervenyóes públicas para o funcionamento
autorregulador. É verdade que, urna vez que esse sistema esteja mais ou
menos realizado, necessita-se de menos intervenc;:áo de certo tipo. Confudo,
do mercado autorregulador que, no entamo, ele pusera em evidencia.
isso náo quer dizá, longe disso, que o sistema de mercado e a intervenc;:áo Esse erro de Polanyi é importante porque tende a obscurecer a na-
sejam termos que se exduam mutuamente. Pois, enquanto esse sistema tureza específica do neoliberalismo, que náo é simplesmente urna nova
náo é implantado, os partidários da economia liberal devem exigir- e n:io reayáo a "grande transformayáo", urna "reduyáo do Estado" que prece-
hesitaráo em fazé-lo - que o Estado intervenha para estabelecé-lo e, urna deria um "retorno do Estado". Ele se define melhor como certo tipo de
vez estabelecido, que intervenha para mamé-lo. O partidário da economia
liberal pode portanto, sem nenhuma incoeréncia, pedir ao Estado que utilize

63 Ibidem, p. 20 l.
61
lbidem, p. 200. 64
ldem.
68 o A nova razáo do mundo Crise do liberalismo e nascimento do neoliberalismo o 69

intervencionismo destinado a moldar politicamente relayóes económicas em reexaminar o conjunto dos meios jurídicos, morais, políticos, econó-
e sociais regidas pela concorrencia. micos e sociais que permitiam a realizayáo de urna "sociedade de liberdade
individual", em prov~_!~g_de todos. Duas propostas poderiam resumi-lo: 1)
as agendas do Estado devem ir além dos limites que o dogmatismo do laíssez-
O neoliberalismo e as discordáncias do liberalismo -foire impós a elas, se se deseja salvaguardar o essencial dos benefícios de urna
A "crise do liberalismo" revdou a insuficiéncia do princípio dogmático sociedade liberal; 2) essas novas_agendas devem pór em questáo, na prática,
do laíssez-faire para a conduyáo dos negódos governamentais. O caráter fixo a confianya que se depositou até entáo nos mecanismos autorreguladores
das "leis naturais" tornou-as incapazes de guiar um governo cujo objetivo do mercado e a fé na justiya dos contratos entre indivíduos supostos iguais.
declarado é assegurar a maior prosperidade possível e, ao mesmo tempo, Em outras palavras, a realizayáo dos ideais do liberalismo exige que se saiba
a ordem social. utilizar meios aparentemente alheios ou opostos aos princípios liberais para
Entre os que permanecem apegados aos ideais do liberalismo dássico, defender sua implementas:ao: leis de protes:áo do trabalho, impostos pro-
foram formulados dois tipos de resposta que devem-se distinguir, ainda gressivos sobre a renda, auxílios sociais obrigatórios, despesas oryamentárias
que, historicamente, elas tenham se misturado algumas vezes. A primeira ativas, nacionalizayóes. Mas, se esse reformismo aceita restringir os interesses
em ordem cronológica é a do "novo liberalismo", a segunda é a do "neo- individuais para proteger o interesse coletivo, ele o faz apenas para garantir
liberalismo". Os no mes dados a essas duas vias náo se impuseram de ime- as condiyóes reais de realizayáo dos fins individuais.
diato, como se pode imaginar. Foi o uso que se fez delas, os conteúdos que O "neoliberalismo" vem mais tarde. Em certos aspectos, aparece como
foram elaborados, as linhas políticas que se destacaram pouco a pouco ütna·decantayáo do "novo liberalismo" e, em mitras, como urna alternativa
que nos permitem distingui-las retroativamente. A proximidade dos nemes aos tipos de in!etienyáo ec~nómica e reformismo social pregados pelo "novo
traduz, em primeiro lugar, urna comunidade de projeto: trata-se nos,dois liberalismo". Ele compartilhará amplamente a prirneira proPosiyáo com
casos de responder a urna crise do modo de governo liberal, de superar as este último. Mas, ainda que admitam a necessidade de urna intervenyáo do
dificuldades de todos os tipos que surgiram das mutayóes do capitalismo, Estado e rejeitern a pura passividade governamental, os neoliberais opóern-
dos conflitos sociais, dos confrontas internacionais. Trata-se até, mais -se a qualquer ayáo que entrave o jogo da concorrénda entre interesses
fundamentalmente, de fazer frente ao que apareceu em dado momento privados. A intervenyáo do Estado tern até urn sentido contrário: trata-se
como o "fim do capitalismo", fim esse que foi encarnado pela ascensáo náo de limitar o mercado por urna ayáo de correyáo ou cornpensayáo do
dos "totalitarismos" após a Primeira Guerra Mundial. Essas duas corren tes Estado, mas de desenvolver e purificar o mercado concorrencial por um
descobriram progressivamente que tinham em comum, dito brutalmente, enquadramento jurídico cuidadosamente ajustado. Náo se trata rnais de
um inimigo: o totalitarismo, isto é, a destruiyáo da sociedade liberal. postular urn acordo espond.neo entre os interesses individuais, mas de
Sem dúvida, foi isso que as levou a criar um discurso ao mesmo tempo produzir as condiyóes ótirnas para que o jogo de rivalidade satisfaya o in-
teórico e político que dá razáo, forma e sentido aintervenyáo governamen- teresse coletivo. A esse respeito, rejeitando a segunda das duas proposiyóes
tal, um discurso novo, que produz urna nova racionalidade gover~amental. mencionadas antes, o neoliberalismo combina a reabilitayáo da intervenyáo
O que supunha revisar, de um lado e de outro, o naturalismo liberal tal pública com urna concepyáo do mercado centrada na concorréncia, cuja
como fora transmitido ao longo do século XIX. fonte, como vimos, encontra-se no spencerismo da segunda rnetade do
A distinyáo dos nomes, "novo liberalismo" e "neoliberalismo", por mais século XIX65 • Ele prolonga a virada que deslocou o eixo do liberalismo,
discreta que seja na aparéncia, traduz urna oposiyáo que náo foi percebida de
imediato, as vezes nem mesmo pelos atores dessas formas de renova,yáo da 65
Michel Foucault apontou essa passagem da traca para a concotrénda, que caracteriza
arte do governo. O "novo liberalismo", do qual urna das expressóes tardías o neoliberalismo em rela~áo ao liberalismo dássico. Ver Michel Foucault, Naissance
e mais elaboradas no plano da teoria económica foi a de Keynes, consistiu de la biopolítique, cit., p. 121-2.
70 ., A nova razáo do mundo

fazendo da concorrf:ncia o princípio central da vida social e individual,


mas, em oposiyáo a fobia spenceriana de Estado, reconhece que a ordein
de mercado náo é um dado da natureza, mas um produto artificial de urna
2
história e de urna construyáo política.
O COLÓQUIO WAL:TER LIPPMANN OU
A REII\V'ENgAO DO LIDERALISMO

Se é verdade que a crise do liberalismo teve como sintoma wn· refor-


mismo social cada vez mais pronunciado a partir do fim do século XIX,
o neoliberalismo é ·urna resposta a esse sintoma, ou ainda, urna tentativa
de entravar essa orientayáo as políticas redistributivas, assistenciais, plani-
-ficadoras, reguladoras e protecionistas que se desenvolveram desde o fim
d~:·séc~lo XIX, u~a orientayáo vista como urna degradayáo que coriduzia
diretamente ao coletivismo.
A criayáo da Sociedade Mont-Pelerin, em 1947, é citada com frequen-
cia, e erroneamente, como o registro de nascimento do neoliberalismo 1 •
Na realidade, o momento fundador do neoliberalismo situa-se antes,
no Colóquio Walter Lippmann, realizado durante· cinco dias em Paris,
a partir de 26 de agosto de 1938, no ambito do Instituto Internacional
de Cooperayáo Intelectual (antecessor da Unesco), na rue Montpensier,
no centro de Paris2 • A reuniáo de Paris distingue-se pela qualidade de
seus participantes, que, na maioria, marcaráo a história do pensamento
e da política liberal dos países ocidentais após a guerra, quer se trate de
Friedrich Hayek, Jacques Rueff, Raymond Aron, Wilhelm Ropke, quer
se trate de Alexander van Rüstow.

1
A respeito da história da Sociedade Mont-Pelerin, ver Ronald Max Hartwell, A History
ofthe Mont Pelerin Society (Indianápolis, Liberty Fund, 1995).
2
Para mais detalhes, ver Franyois Denord, "Aux origines du néolibérahsme en France:
Louis Rougier et le Colloque Walter Lippmann de 1938", Le Mouvement Social,
n. 195, 2001, p. 9-34, e, mais recente, o livro abundantemente documentado de
Serge Audier, Le Colloque Lippmann: aux origines du néolibéralisme (Latresne, Le
Bord de l'Eau, 2008).
72 @ A nova razáo do mundo
O Colóquio Walter Lippmann ou a reinvent¡áo do liberalismo ~ 73

Escolher urna dessas duas datas como momento fundador náo é in-
Todavia, o "novo liberalismo" náo é o principal eixo.do colóquio, que
diferente, como veremos adianre. A análise que se faz do neoliberalismo
é muito rnais o momento em que é decantado um modo diferente de re-
depende dessa escolha.
construyáo, que ter~ ~m comum com o "novo liberalismo" a aceitayáo da
Esses dois acontecimentos, allás, estáo correlacionados. O Colóquio Walter
intervens:áo, mas tentará dar a ela urna nova definiyáo e, por conseguinte,
Lippmann encerrou-se com a declaras:áo de cria<;:áo de um Centro Interna-
novos limites. Isso, porérn, é simplificar as coisas. Outras divergencias dizem
cional de Estudos para a Renovayáo do Liberalismo, cuja sede acabou sendo
respeito ao próprio sentido desse -"neOliberalismo" que se deseja construir:
o Museu Social, na rue Las Cases, em Paris, instituiyáo que foi concebida
trata-se de transformar o liberalismo, dando-lhe um novo fundamento, ou
na época como urna sociedade intelectual internacional que deveria realizar
ressuscitar o liberalismo clássico, isto é, operar um "retorno ao verdadeiro
sessóes regulares sempre em países diferentes. Os acontecimentos na Europa
liberalismo" contra os desvios e as heresias que o perverteram? Em face dos
decidiram o contrário. Sob esse ángulo, a Sociedade Monr-Pelerin aparece
inimigos comuns (o coletivismo em suas formas comunista e fascista, mas
como wn prolongamento da iniciativa de 1938. Um de seus pontos em co-
também as tendencias intelectuais e as correntes políticas reformistas que
mum, que náo foi de pouca importáncia para a difusáo do neoliberalismo, é
supostamente levavam a ele nos países ocideritais, a corneyar pelo keynesia-
seu cosmopolitismo. O Colóquio Walter Lippmann é a primeira tentativa de
nismo), essas divergencias váo parecer secundárias, sobretudo quando vistas
crias:áo de urna "internacional" neoliberal que se prolongou em curros orga-
de fora. Durante a travessia do deserto político e intelectual dos neoliberais,
nismos, entre os quais, nas últimas décadas, a Comissáo Trilateral e o Fórum
0 que importa, na verdade, é o por um front unido ao "intervencionismo
Económico Mundial de Davos. Ourro ponto em comum é a importJ.ncia que
_de Estado" e a"escalada do coletivismo". Foi essa oposiyáo que a Sociedade
se dá ao trabalho intelectual de refunda<;:áo da doutrina para melhor assegurar
1Yf'0n:t~Pelerin copseglliu ,encarnar, reunindo as diferentes correntes do
sua vitória contra os prindpios adversários. A reconstruyáo da do u trina liperal
neoliberalisrno, a: corren te norte-ainericana (forterilente influe?ciada pelos
vai beneficiar meios academicos bem financiados e de prestígio, comeyé"\lldo
"neoaustríacos" Friedrich Hayek e Ludwig von Mises) e a corrente alerná e
nos anos 1930 pelo Institut Universitaire des Hautes Études Internationales
permitindo, desse modo, que se apagassem as linhas divergentes tais como
[Instituto Universitário de Altos Estudos lnternacionais], fundado em 1927, em
haviam se firmado antes da guerra. Sobretudo, essa juns:áo dos neolibe-
Genebra, pela London School ofEconomics e pela Universidade de Chicago,
rais ocultou um dos aspectos principais da virada que se deu na história
para mencionarmos apenas os mais famosos, e destilando-se em seguida em
do liberalismo moderno: a teorizayáo de um intervencionismo propriamente
algumas centenas de think tanksque difundiráo a doutrina ao redor do mWldo.
a
liberal. Era precisamente isso que trazia luz o Colóquio Walter Lippmann.
O neoliberalismo vai desenvolver-se segundo várias linhas de forya,
Nesse sentido, este último náo é somente um registro de nasdmento, mas
submetendo-se a tensóes das quais devemos reconhecer a importáncia. O
um elemento revelador.
colóquio de 1938 revelou discordáncias que, desde d prindpio, dividiram
os intelectuais que reivindicavam para si o neoliberalismo. Aliás, ele mostra
bem as divergencias que, após a Segunda Guerra Mundial, continuaráo a Contra o naturalismo liberal
agir de forma cada vez mais patente. Essas divergencias sáo de vários tipos
O colóquio realizou-se de 26 a 30 de agosto de 1938. O organizador
e náo devem ser confundidas. O Colóquio Walter Lippmann mostra, em
dessa reuniáo internacional com 26 economistas, @ósofos e funcionários
primeiro lugar, que a exigencia comum de reconstruyáo do liberalismo ainda
do alto escaláo de vários países foi Louis Rougier, filósofo hoje esquecido.
náo permite, em 1938, distinguir completamente as tendencias do "novo
Na época, ele era professor de filosofia em Besanyon, adepto do positivismo
liberalismo" e as do "neoliberalismo". Corno rnostrou Serge Audier, alguns
lógico, membro do Círculo de Viena e já havia escrito várias obras e artigos
participantes franceses sáo tipicarnente da prirneira corrente quand? se re-
que pregavam wn "retorno do liberalismo" sobre novas bases. ·Essa reuniáo foi
ferern a um "liberalismo social", como Louis Marlio, ou a um "socialismo
urna dupla ocasiáo para o lan~arnento da tradu~áo francesa do livro de Walter
liberal", como Bernard Lavergne.
Lippmann, An Inquiry into the Principies ojthe Good Society[Uma investiga9\o
74 '" A nova razáo do mundo O Colóquio Walter Lippmann ou a reinvenyáo do liberalismo " 75

sobre os princípios da Grande Sociedade], como título de La cité líbrt}, e a


Rougier pretendia dar reuniáo da qual fora o promotor, sublinhando que
para a presenya do autor em Paris. O livro é apresentado pelo organizador do a ambiyáo do colóquio era condensar um movimento intelectual difuso 6• Ao
colóquio como wn manifesto de reconstruyáo do liberalismo, em torno do mesmo tempo, esse c?l~g_l}-io é para ele o ato inaugural de Urna organizayáo
qual podem reunir-se espíritos diferentes trabalhando na mesma dire¡;:áo. A internacional destinada a construir e difundir urna doutdna liberal de novo
ideia que anima Rougier é bastante simples: náo haverá "retorno do liberalis- género: o Centro Internacional de Estudos para a Renovayáo do Liberalismo,
mo" se náo houver urna refundayáo teórica da doutrina liberal e se dela náo o qual mencionamos anteriormente.--Esse centro ainda organizará algumas
se deduzir urna política liberal ativa, que evite os efeitos negativos da crenya reunióes temáticas, mas desaparecerá em consequéncia da dispersáo de seus
metafisica no laíssezjaíre. A linha que Rougier deseja estabelecer no colóquio membros causada pela guerra e pela ocupayáo.
é wn prolongamento da convic¡;:áo que Lippmann afirma firmemente em sua Em seu discurso de abertura, Rougier lembra também a importancia
obra quando define a "agenda'' do liberalismo a ser reinventado: da tese de Lippmann, segundo a qual o liberalismo náo se identifica com
o laíssezjaíre. De fato, essa assimilayáo demonstrou todas as suas conse-
A agenda prova que o liberalismo náo é a apologética estéril em que se trans-
quéncias negativas, já que, diante da evidéncia dos males do laíssezjaíre,
a
formo u durante sua sujei¡;áo ao dogma do laissezjaire e incompreensáo
dos economistas clássicos. Ela demonstra, acredito eu, que o liberalismo é a opiniáo pública lago conclui que apenas a· socialismo pode salvar do
náo urna justificayáo do status quo, mas urna lógica de reajustamento social fascismo ou, invers~ente, apenas o fascismo pode salvar do socialismo,
que se tornou necessária pela Revoluyáo Industrial. 4 embora um e outro sejam variedades de urna mesma espécie. Ele enfatiza
Rougier, no discurso que abriu os trabalhos do colóquio, assinala que igualmente a crítica de Lippmann ao naturalismo da do u trina "manches-
esse esforyo de refundayáo ainda náo tem um nome oficial: deve-se falar tefia.t-:li'·. La cité libre possuía o grande mérito, em sua opiniáo, de lembrar
em "liberalismo construtor", "neocapitalismo" o u "neo liberalismo", termo que o regime libefal é res~Ítado de urna ordem legal que pressupóe um
que, segundo ele, parece prevalecer no uso corrente5? Refundar o liberalismo intervencionismo jurídico do Estado. Ele resume da seguinte 'maneira a
para melhor combater a grande ascensáo dos totalitarismos é a meta que tese central da obra:
A vida econ6mica acorre dentro de um quadro jurídico que estabelece o
regime da propriedade, dos contratos, das patentes, da faléncia, o estatuto
3 Walter Lippmann, La cité libre (trad. Georges Blumberg, Paris, Librairie de Médicis,
das associa¡;óes profissionais e das sociedades comerciais, o dinheiro e os
1938). Lippmann, jornalista e editorialista norte-americano, famoso pelas análises
bancos, todas as coisas que náo sáo dadas pela natureza, como as leis do
de opiniáo pública e política estrangeira norte-americana, esteve entre as duas
equilibrio econ6mico, mas sáo criayóes contingentes do legislador?
guerras no cruzamento do "novo liberalismo" como neoliberalismo. Em Drift and
Mastery (1913), ele se pronuncia a favor de um controle científico da economia e da Essa é a expressáo da linha dominante do colóquio, que será objeto de
sociedade. Mais tarde, seus escritos sobre a Grande Depressáo e o New Deal daráo
ressalva, ou até mesmo de contestayáo, por parte de alguns convidados,
continuidade a sua tese de que náo existem liberdades sem intervenyáo governamental.
Em The New Imperative (1935), salienta que o "novo imperativo" político, que foi em particular dos "neoaustríacos" Van Mises e, deceno, Hayek, que, em-
posta em prática comas políticas de resposta acrise, consiste em o Estado "assumir bora náo se manifeste durante as discussóes, concorda com aquele que
a responsabilidade pela condiyáo de vida dos cidadáos". Ero sua opiniáo, essas polí-
ticas, adoradas tanto por Hoover como por Roosevelt, inauguraram uro "New Deal
6
permanente" em ruptura coma ideologia do laissez{aire anterior a 1929, dando Louis Rougier vé as discussóes do colóquio como a continuayáo de urna série de
ao governo uma nova funyáo, que consiste em "usar de todos os seus poderes para trabalhos já publicados que se identificavam como liberalismo e cujo tema em ca-
regular o ciclo dos negócios". Se o governo da economia moderna é indispensável, muro era a "crise do capitalismo". Ele menciona as obras de Jacques Rueff, La crise du
resta determinar a melhor política possível. Todos os seus esforyos visaráo a repensar capitalisme (1935), Louis Marlio, Le sort du capitalisme (1938), e Bernard Lavergne,
um modo de governo liberal. Ver Ronald Steel, Walter Lippmann and the American Grandeur et déclin du capitalisme (1938).
Century (Boston, Little Brown, 1980). 7
Travaux du Centre Internacional d'Études pour la Rénovation: du Libéralisme, Le
4 Colloque Lippmann (Paris, Librairie de Médids, 1939), p. 15. A ata do colóquio foi
Walter Lippmann, La cité libre, cit., p. 272.
Aexpressio jáhaviasido utilizada antes do colóquio, em particular por Gaetan Pirou. publicada recentemente por Serge Audier, Le Colloque Lippmani-1,, cit.
76 o A nova razao do mundo O Colóquio Walter Lippmann ou a reinvens;áo do liberalismo o 77

considera seu mestre. Mas todos os participantes compartilham incontes- Para os primeiros, os fatores principais do caos devem ser buscados na
tavelmente da rejei~áo dos "neoaustríacos" ao coletivismo, ao planismo e rrais:áo progressiva dos prindpios do liberalismo clássico (Robbins, Rueff,
ao totalitarismo, em suas formas comunista e fascista. Há também urna Hayek, Von Mises); para os segundos) as causas da crise- sáo encontradas
rejei~:lo amplamente compartilhada as reformas de esquerda que visam a no próprio liberalismo-d~ssico (Rougier, Lippmann e Os teóricos alemáes
r~distribui~áo de renda e a prote~:lo
social, como aquelas adoradas pela do ordoliberalismo 11 ).
8
Frente Popular na Fran~a • Mas o que fazer para combater essas tenden- Em La Grande Dépression, 1929c1934, Robbins explica também que
cias? Reatualizar o liberalismo dentro de um novo contexto ou revisá-lo a crise é consequé:ncia das intervens:óes políticas que desregularam o me-
profundamente? Essa alternativa está estreitamente ligada ao diagnóstico canismo autocorretivo dos pre~os. Como sublinha Rueff no prefácio que
da "grande crise" e suas causas. fez ao livro, foram as boas intens:óes dos reformistas sociais que levaram ao
fu divergencias manifestadas entáo rem rela~áo com urna diferen~a desastre. A rea~áo de Robbins e Rueff revela urna nostalgia de um mercado
importante de interpreta~áo dos fen6menos econ6micos, políticos e sociais espontaneamente autorregulado que teria funcionado em urna era dourada
do entreguerras, que alguns autores de diferentes horizontes políticos e das sociedades ocidentais. É o que Rueff traduz muito bem no opúsculo
doutrinais pensam como urna "crise do capitalismo". Resta pouca dúvida, La crise du capitalisme, quando opóe o quase equilíbrio do período anterior
como vimos anteriormente, que a situa~áo mudou profundamente com a Primeira Guerra Mundial ao caos da grande crise 12 • Antes, escreve ele:
rela~áo a "be !le époque do liberalismo", táo bem descrita por Karl Polanyi. Os homens agiam 'independentemenre uns dos outros, sem nunca se preo-
Duas interpreta~óes radicalmente opostas do "caos" do capitalismo cupar com as repercussóes de seus atos sobre o estado geral dos mercados.
conflitam durante esses dias. Allás, elas dividem mais amplamente os meios E, no entanto, dq caos das trajetórias individuais nasce essa ordem coletiva
liberais na Europa nessa época. Para uns, a doutrina do laissez-faire el-eve tiaduzida pelo qllase equilíbrio que_ os fatos revelava_rp_. 13
ser renovada, sem dúvida, mas deve sobretudo ser defendida daqueles que Mas, depois, as interven¡;:óes públicas, todas as formas de 'dirigisino,
pregam a ingerencia do Estado. Destes últimos, Lionel Robbins na Ingla- as taxa~óes, as planificas:óes e as regulamenta~óes "possibilitaram a alegre
terra e Jacques Rueff na Fran~a, juntamente com os "austríacos" Von Mises queda da prosperidade" 14 • O postulado desses autores, que encontramos
e Hayek, estáo entre os autores mais conservadores em matéria doutrinal9• também em Von Mises ou Hayek, é que a intervens::lo política é um pro-
Para outros, o liberalismo deve ser integralmente refundado e favorecer o cesso cumulativo. Urna vez iniciada, leva necessariamente a coletiviza~áo
que já é chamado de "intervencionismo liberal", segundo o termo utiliza- total da economia e ao regime policial totalitário, já que é preciso adaptar
do por Von Rüstow e Henri Truchy10 • fu divergencias sobre as análises da os comportamentos individuais aos mandamentos absolutos do programa
grande crise sao particularmente significativas dessas duas op~óes possíveis. de gest:lo autoritária da economia. A conclusáo é clara: náo se pode falar de
falencia do liberalismo, porque foi a política intervencionista que gerou a
crise. O mecanismo dos pre~os, quando funciona livremente, resolve todos
O consenso em torno desse ponto nao é geral. Prava da "complexidade do neoli-
os problemas de coordena~áo das decisóes dos agentes económicos.
beralismo francé:s", segundo Serge Audier, é que alguns participantes do~Colóquio
Walter Lippmann sao partidários dos "progtessos sociais" e do "liberalismo social". Rueff, por exemplo, na sessáo de domingo, 28 de agosto, dedicada as
É o caso já citado de Louis Marlio e Bernard Lavergne. Serge Audier, Le Colloque relas;óes entre o liberalismo e a questáo social, sustenta da maneira mais
Lippmann, cit., p. 140-57 e 172-80.
9 Veremos mais adiante o quanto autores como Von Mises e, sobretudo, Hayek desen-
volveram refiexóes originais que nao podem ser simplesmente assimiladas ao velho 11
Fazemos wna apresentas;áo destes últimos no capítulo 3.
laissez-foire. 12
Jacques Rueff, La crise du capitalisme (Paris, Éditions de la Rev1re Bleue, 1936).
10
Henri Truchy, "Libéralisme économique et économie dirigée", L'Année Politique 13
Frantaise et Étrangtre, dez. 1934, p. 366, citado em Frans;ois Denord, ''Aux origines Ibidem, p. 5.
14
du néolibéralisme en France", cit. Ibidem, p. 6.
78 ., A nova razáo do mundo O Colóquio Walter Lippmann ou a reinvenyáo do liberalismo " 79

ortodoxa que a inseguranya social sofrida pelos trabalhadores deve-se a causa do mal: "Náo foi o livre jogo das foryas económicas, mas a política
aos desequilíbrios económicos periódicos contra os quais nada se pode antiliberal dos governos que ériou as condiyóes favoráveis ao estabelecimento
fazer, e que eles náo sáo táo graves quanto parecem, na medida em que dos monopólios. Foi _ª- legislayáo, foi a política que criou a tendencia ao
há automaticamente um retorno ao equilíbrio quando o mecanismo dos monopólio" 19 •
preyos náo é desregulado. Por outro lado, o Estado, se intervérn, emperra Essa linha de náo intervenyáo absoluta que se expressa no colóquio revela
a máquina automática: nesse plano a persistencia de urna ortOdoxia aparentemente intocada. Mas
O sistema liberal tende a assegurar as classes mais necessitadas o máximo de o que Foucauh: acertadamente chamará de "fobia do Estado" náo resume o
bem-estar. Todas as intervenyóes do Estado no plano económico tiveram o mais inovador propósito do colóquio.
efeito de empobrecer os trabalhadores. Todas as intervenc;óes dos governos
pareceram melhorar as condic;óes da maioria, mas para isso náo há outro
meio senáo aumentar a massa dos produtos que devem ser partilhados. 15 A originalidade do neoliberalismo
Ao questionarnento cético de Lippmann sobre os benefícios sociais da Através do discurso dos numerosos participantes, irnpóe-se urna redefi-
liberdade de mercado ("é possível aliviar o sofrimento que a mobilidade de niyáo do liberalismo que deixa os ortodoxos particularmente desarmados.
um sistema de mercados privados comporta? Se o equilíbrio deve ser d~ixado Essa liriha de for~a do colóquio une a perspectiva de Rougier, de ordem
sernpre por conta própria, isso comporta grandes sofrimentos" 16), Rueff essencialmente epistemológica, a de Lippmann, que lembra a importáncia
responde pouco depois com a sentenya definitiva: "O sistema liberal dá ao da_ construyáo jurídica no funcionarnento da econornia de mercado, e, por
sistema económico urna flexibilidade que permite lutar contra a inseguran- fiffi',:aq_Uela, muito.:próxima. .dos "sociólogos liberais" alemáes ROpke e Von
ya''17. Von Mises ainda lembrará, a propósito do seguro-desemprego, que Rüstow, que enfatizam a sustenta~io social do merCado, que pqr si só náo
o desemprego, enquanto fenómeno macic;o e duradouro, é consequéncia:' é capaz de assegurar a integrayáo de todos.
de urna política que visa a manteros salários em um nível mais elevado do Aparentemente, os participantes do colóquio tinham plena consciencia
que aquele que resultaria do estado do mercado. O abandono dessa política das clivagens que os dividiarn. Assim, Von Rüstow afirma:
redundaria muito rapidamente numa diminuiyáo considerável do número
de desempregados. 18 É inegável que aqui, em nosso círculo, estáo representados dais pontos de
vista diferentes. Uns náo veem nada de essencial para criticar ou mudar no
Na véspera, a pergunta "o declínio do liberalismo é devido a causas en- liberalismo tradicional [... ]. Outros, como nós, procuram a responsabilidade
dógenas?" também mostrava a tensáo. Para o pensador ordoliberal ROpke, a pelo declínio do liberalismo no próprio liberalismo; e, consequentemente,
concentrayáo industrial que destrói a concorrencia deve-se a causas técnicas procuram a saída numa renovas:áo fundamental do liberalismo. 20
(peso do capital fixo), ao passo que Von Mises sustefita que os cartéis sáo Sáo sobretudo Rougier e Lippmann que definem durante o colóquio
produto do protecionismo, que fragmenta o espayo económico mundial, o que se deve entender, segundo eles, por "neoliberalismo" e quais tarefas
freia a concorrencia entre países e, portanto, favorece os acordos ern nível lhe competem. Ambos os autores haviam desenvolvido antes, ern suas
nacional. Segundo ele, seria absurdo, portanto, pregar a interv~n<;:áo do
a
Estado em relayáo concentrayáo, porque é precisamente essa intervenyáo
19
Ibidem, p. 37.
2
° Franyois Denord comenta essas palavras da seguime maneira: "Em público, Rüstow
15 SergeAudier, Le Colloque Lippmann, cit., p. 69. respeita as regras do decoro universitário, mas, em particular, confessa a Wilhelm
16
Idem. Rüpke a péssima opiniáo que tem de Friedrich Hayek e Ludwíg van Mises: o lugar
deles é no museu, conservados em formol. Sáo pessoas desse tipo que sáo responsáveis
17
Ibidem, p. 71.
pela grande crise do século XX". Frans:ois Denord, "Aux origines du néolibéralisme
18
Ibidem, p. 74. en France", cit., p. 88.
80 " A nova razáo do mundo O Colóquio Walter Lippmann ou a reinvenr;:áo do liberalismo 0 81

respectivas obras, ideias bastante semelhantes e, sobretudo, a mesma von- desenvolvida por Lippmann22 , mas também consta no famoso livro que
tade de reinventar o liberalismo. Para compreender melhor a natureza dessa Hayek publicará após a gÚerra, O caminho da Servidáo*.
reconstruyáo, convém examinarmos um pouco mais de perta os escritos de A ideia decisiv_~ _d_9__c:olóquio é que o liberalismo clássico é o principal
Rougier e, principalmente, de Lippmann. responsável pela crise- por que ele passava. Os erras de governo aos quais ele
O "retorno ao liberalismo" pregado por Rougier é, na verdade, urna conduziu favoreceram o planismo e o dirigismo. De que natureza eram esses
refundayáo das bases teóricas do liberalismo e a definiyáo de urna nova erros? Consistiam essencialrnente-efil confundir as regras de funcionamento
política. Rougier parece guiado sobretudo por sua rejeicráo a metafísica de um sistema social coro leis naturais intangíveis. Rougier, por exemplo,
naturalista. O importante para ele é afirmar de saída a distincráo entre ve na fisiocracia francesa a expressáo mais clara desse tipo·de confusáo 23 • O
um naturalismo liberal de estilo antigo e um liberalismo ativo, que visa que charna de "mística liberal", o u crenya numa natureza imutável, que ele
a criacráo consciente de urna ordem legal no interior da qual a iniciativa pretende distinguir cuidadosamente da ciencia econ6mica verdadeira, deriva
privada, submetida a concorrencia, possa desenvolver-se com toda a da passagem da observayáo das características científicas de urna ordem
liberdade. Esse intervencionismo jurídico do Estado contrapóe-se a um regida pela livre concorrencia para a ideia de que essa ordern é intocável e
intervencionismo administrativo, que estorva ou impede a liberdade de perfeita, urna vez que é obra de Deus 24 • O se.gundo erro metodológico, que
acráo das empresas. O quadro legal, ao contrário da gestáo autoritária da está ligado a essa confusáo, é a crenya na "primazia do económico sobre o
economia, deve deixar que o consumidor arbitre no mercado entre os político". Esse duplo erro pode ser resumido, segundo Rougier, na seguinte
produtores concorrentes. sentencra: "O melhor legislador é aquele que sempre se abstém de intervir no
A grande diferencra entre esse neoliberalismo e o liberalismo antigo, -jógo ·das forc;:as ~conómi~as e subordina a elas todos os problemas inorais,
segundo Rougier, é a concepcráo que eles tem da vida econümica e social. sociais e polítiCos". Essa subrnis"sáo a urna ordetn supostamente natural,
Os liberais tendiam a ver a ordem estabeledda como wna ordem natural, o que está no princípio do laissezfaire, é urna ilusáo baseada n~ ideia de que
que os levava a sistematicamente tomar posicróes conservadoras, tendendo a economia é um domínio a parte, que náo seria regido pelo direito. Essa
a manter os privilégios existentes. Náo intervir era, em resumo, respeitar a independencia da economia corn relacráo as instituicróes sociais e políticas é
natureza. Para Rougier, o erro básico da mística liberal que leva ao náo reconhecimento do caráter
ser liberal náo é em absoluto ser conservador, no sentido da manutenyáo construído do funcionamento do mercado.
dos privilégios de fato resultante da legislayáo anterior. É, ao contrário, ser Lippmann, em La cité libre, fez urna análise muito semelhante dos
essencialmente "progressista'', no sentido de urna contínua adaptayáo da erras dos "últimos liberais", como os denomina. O "laissez-faire", do qual
ordem legal as descobertas científicas, aos progressos da organizayáo e da ele recorda a origern ern Gournay, era urna teoria negativa, destruidora,
técnica econ6mica, as mudanyas de estrutura da sociedade, as exigencias
revolucionária, que por sua própria natureza náo poderia guiar a política
da consdéncia contemporánea. Ser liberal náo é, como o "manchesteria-
no", deixar os automóveis circularem em todos os sentidos, seguindo seus dos Estados. Tratava-se náo de um programa, mas de urna palavra de
caprichos, donde resultariam incessantes engarrafamentos e acidentes; náo
é, como o "pianista'', estabelecer para cada automóvel urna hora de saída e 22
Lippmann explica em La cité libre (cit., p. 335-6) que os funcionários públicos existem
um itinerário; é impar um código de trdnsito, admitindo ao mesmo tempo para fazer o código de tránsito ser respeitado, náo para dizer aonde devemos ir.
que ele náo é na época dos transportes rápidos o mesmo que era na época * Trad. Anna Maria Capovilla, José halo Stdle e Liane de Morais Ribeiro, 5. ed., Rio
das diligéncias. 21 de Janeiro, Instituto Liberal, 1994. (N. E.)
23
Essa metáfora com o código de tdnsito é urna das imagens mais usa- Ver Louis Rougier, Les mystiques économiques: comment l'on passe des démocraties
libérales aux États totalitaires (Paris, Librairie de Médicis, -1938).
das pelo neoliberalismo, é quase urna assinatura oficial. Ela é longamente
24
Segundo Rougier, a crenya naturalista é um misticismo, porém menos grosseiro
que a doutrina coletivista, que é pura crenc;a mágica nos poderes absolutos da razáo
21
Serge Audier, Le Colloque Lippmann, cit., p. 15-6. humana sobre os processos ~ociais e políticos. Logo, existem graus no misticismo.
82 "' A nova razáo do mundo O Colóquio Walter Lippmann ou a reinven:;:áo do liberalismo ~ 83

ordem, que "náo passava de urna objeyáo histórica a leis caducas" 25 • Essas Todas essas transac;óes dependiam de urna lei qualquer, da disposic_;:áo do
Estado de fazer valer certos·direitos e proteger cenas garantias. Consequen-
ideias inicialmente revolucionárias, que permitiram derrabar os vestígios
temente, significava náo ter nenhum senso de realidade perguntar-se ande
do regime social e político antigo e instaurar urna ordem de mercado, se situavam os limites-do domínio do Estado.2 8
"transformaram-se ero uro dogma obscurantist~ e pedantesco" 26 • O natu-
ralismo que impregnava as teorias jurídico-políticas dos primeiros liberais Os direitos de propriedade, os contratos mais variados, os estatutos ju-
estava destinado a essa mutayáo dogmática e conservadora. Se ero cena rídicos das empresas, enfim, todo o enorme edifício do direito comercial e do
época os direitos naturais foram ficyóes liberais que permitiram garantir direito do trabalho era uro desmentido em ato da apologética do laissezjaire
a propriedade e, portanto, favorecer os comportamentos acumuladores, dos "últimos liberais", que se tornaram incapazes de refletir a,cerca da prática
esses mitos se fixaram em dogmas inalteráveis que impediram qualquer efetiva dos governantes e do significado da obra legisladora. O eqllivoco é até
reflexáo sobre a utilidade das leis, explica ele. Vetando a reflexáo sobre o mais profundo. Esses liberais foram incapazes de compreender a dimensáo
alcance das leis, esse respeito absoluto a "natureza" fortalecia a situayáo institucional da organizayáo social:
adquirida pelos privilegiados. Apenas reconhecendo que os direitos legais sáo proclamados e aplicados pelo
Essa análise náo deixa de ter certo parentesco coma posiyáo dos funda- Estado é que se pode sub meter a um exame raCional o valor de um direito
particular. Os últimos liberais náo se deram coma disso. Cometeram 0 grave
dores franceses da sociologia do século XIX. O grande defeito do liberalis-
erro de náo ver qu~ a propriedade, os contratos, as sociedades, assim como os
mo económico, como Auguste Comte m ostro u ero sua época, derivava da governos, os parlamentos e os tribunais, sáo criaturas da lei e existem apenas
impossibilidade de se construir urna ordem social viável a partir de urna enq_uanto urna pilha de direitos e dcveres cuja aplicac;áo pode ser exigida. 29
teoria essencialmente negativa. A novidade do neoliberalismo "reinven-
'vemos por ess~s senten·~as como a crítica neoliberal de Lipprnann resgata
tado" reside no fato de se poder pensar a ordem de mercado como urna
o solo 'da governamentalidade tal corno foi pensada por Bentham, aquém
ordem construída, portanto, te.r condiyóes de estabelecer um verdadeiro
das fórmulas naturalistas que haviam invadido a literatura apologética do
programa político (urna "agenda") visando a seu estabelecimento e sua
mercado. Sem estabelecer completamente o elo entre a crítica que faz a
conservayáo permanente.
ilusáo jusnaturalista e a maneira como Bentham pensava as relayóes entre a
A ideia mais equivocada dos "últimos liberais", como John Stuart Mill
liberdade de a~áo e a ordem jurídica, Lippmann analisa a evolu~áo doutrinal
ou Herbert Spencer27 , consiste em afirmar que existem domínios em que há
como urna degradat¡áo que ocorreu entre o fim do século XVIII e o fim do
urna lei e outros em que náo há lei nenhuma. Foi essa crenya na existencia
XIX, entre Bentham e Spencer.
de esferas de ayáo "naturais", regióes sociais de náo direito, como seria, na
A ignorancia demonstrada pelos liberais tardios com rela~áo ao traba-
opiniáo deles, a econornia de mercado, que deturpo u a inteligencia do curso
lho dos juristas para definir, enquadrar, melhorar o regime dos direitos e
histórico e impediu o prosseguimento das políticas necessárias. Como ainda
obriga~óes referentes apropriedade, as tracas e ao trabalho tem razóes que
observa Lippmann, no século XIX a dogmática liberal descolou-se pouco
Lippmann pretende explicar. Esse náo reconhecimento do fato de que "todo
a pouco das práticas reais dos governos. Enquanto os liberais discutiam
o regime da propriedade privada e dos contratos, da empresa individual, da
sentenciosamente a extensáo do laissezjaire e a lista dos direitos ~aturais, a
associa<;áo e da sociedade anónima faz parte de um conjunto jurídico do qual
realidade política era a da invenyáo de leis, instituiyóes e normas de todos
ele é inseparável" é explicado pelo modo de fabrico do direito ern questáo.
os tipos, indispensáveis para a vida económica moderna:
Segundo ele, é porque esse direito é mais o produto da jurisprudencia que
sanciona os usos do que urna codificayáo feita conforme. as regras que eles
25 Walter Lippmann, La cité libre, cit., p. 221 e seg.
26 Ibidem, p. 228.
28
27
Walter Lippmann, La cíté libre, cit., p. 230.
Lippmann náo faz dlstim;:áo entre esses dais autores porque náo leva em canta as
29
dúvidas e nem as inflexóes de Mili. Ibidem, p. 293.
84 " A nova razáo do mundo O Colóquio Walter Lippmann ou a reinveno:;:áo do liberalismo o 85

puderam ve-lo erronearoente como expressáo de urna "espécie de direito do direito que reinava nesse domínio. Tornaram-se, assim, apologistas reco-
natural fundado na natureza das coisas e coro um valor, por assim dizer, nhecidos de todos os abusos e de todas as misérias que ele continha. Tendo
admitido que náo existiam leis, mas urna ordem natural- vinda de Deus,
supra-humano". Essa ilusáo naturalista levo u-os a ver em cada disposi<;áo
só podiam ensinar- a --alegre adesáo ou a resignac;:áo" estoica. Na realidade,
jurídica que náo lhes agradava urna ingerencia intolerável do Estado, urna defendiam uro sistema composto de vestÍgios jurídicos do passado e inova-
violayáo inadmissível do estado de natureza30 • N-áo reconhecer o trabalho da o:;:óes interesseiras, introduzidas pelas classes mais afortunadas e poderosas
criayáo jurídica é o erro inaugural que se encontra no princípio da retórica da sociedade. Além do mais, tendo presumido a náo existencia de urna lei
de denúncia da intervenyáo do Estado: humana regendo os direitos de propriedade, os contratos e as sociedades,
naturalmente náo puderam interessar-se em saber se essa l~i era boa ou
O tÍtulo de propriedade é urna criac;:áo da lei. Os contratos sao instrumentos ruim nem se podia ser reformada ou melhorada. Foi com toda razáo que
jurídicos. As sociedades sáo criaturas do direito. Consequentemente, co- se ridicularizou o conformismo desses liberais. Eles tinham provavelmente
mete-se um erro quando se considera que elas possuem existencia fora da tanta sensibilidade quanto os outros, mas o cérebro deles parara de funcionar.
lei e depois se pergunta se é lícito "intervir" nelas [... ].Toda propriedade, Afirmando em bloca que a economia de traca era "livre", isto é, situada fora
todo contrato e toda sociedade existem so mente porque existem direitos e daal¡;ada da jurisdic;:áo do Estado, meteram-se num impasse. [... ] É por isso
garantias cuja aplicac;:ao pode ser assegurada, quando sáo sancionados pela que perderam o domínio intelectual das grandes nao:;:óes, e o movimento
lei, apelando para o poder de coerc;:ao do Estado. Quando se fala em nao progressista viro u as costas para o liberalismo. 33
mexer em nada, fala-se para náo dizer nada. 31
Náo somente liberalismo e progressismo separaram-se, como se viu,
Urna fonte adicional de erro consistiu em ver as simplificayóes neces-
s_obretudo, o surgimento de urna contestayáo cada vez mais forte do
sárias da ciencia econ6mica como uro modelo social a ser aplicado. Para
capitalismo libet~l e das desigualdades que ele engendrava. o socialismo
Lippmann, assim como para Rougier, é normal que o trabalho científico
desenvolveu-se aProv~ltando o empedernimento conservador da doutrina
elimine os resíduos e as hibridayóes da realidade das sociedades para deCluzir
liberal, a serviyo dos interesses econ6micos dos grupos dominan' tes. O C¡ues-
por abstrayáo relayóes e regularidades. Mas os liberais viram essas leis como
tionamento da propriedade é, para Lippmann, particularmente sintomático
criayóes naturais, urna imagem exata da realidade, e aquilo que escapava ao
desse desvio: "Se a propriedade privada está táo gravemente comprometida
modelo simplificado e depurado era tido por eles apenas como imperfeiyóes
no mundo moderno, é porque as classes favorecidas, resistindo a qualquer
ou aberrayóes32 • A conjunyáo dessa interpretayáo epistemológica equivocada
mudanya em seus direitos, provocaram um movimento revolucionário que
coro essa ilusáo naturalista explica a forya duradoura do dogmatismo liberal
tende a aboli-las" 34 •
até o início do século XIX.
O liberalismo que continha o ideal de emancipayao humana no século
XVIII transformou-se progressivamente num conservadorismo estreito, A agenda do liberalismo reinventado
contrário a qualquer avanyo das sociedades em no me do respeito absoluto
Os "últimos liberais" náo entenderaro que, "longe de ser abstencionista,
aordem natural: a economia liberal pressupóe urna ordem jurídica ativa e progressista'' que
k consequencias desse erro foram catastróficas. Porque, imaginando esse a
visa adaptac;áo permanente do hornero a condiyóes sempre cambiantes.
domínio daliberdade inteiramente hipotético e ilusório, em que os homens
É necessário um "intervencionismo liberal", um "liberalismo construtor",
supostamente trabalham, compram e vendem, fazem contratos e possuem
bens, os liberais renunciaram a qualquer crítica e tornaram-se defensores LUn dirigismo do Estado que convém distinguir de um intervencionismo
coletivista e pianista. Apoiado na evidéncia dos benefícios da competiyáo,

30
Ver ibidem, p. 252.
33
31
lbidem, p. 320-1. Ibidem, p. 234-5.
34
32
lbidem, p. 244. Ibidem, p. 329.
86 @ A nova razáo do mundo O Colóquio Walter Lippmann ou a reinven-;áo do liberalismo o 87

esse intervencionismo abandona a fobia spenceriana do Estado e combina Para Rougier, existem foryas na sociedade que induzem ao desvirrua-
a heranya do concorrencialismo social e a promoyáo da ayáo do Estado. Seu mento do jogo da concor~encia em proveito próprio, a comeyar pelas
objetivo é restabelecer incessantemente as condiyóes da livre concorrencia fon;as políticas, qw::_Jlª.r.a__ conquistar o voto dos eleitores nao hesitam em
ameayada por lógicas sociais que tendem a reprimi-la para garantir a "vitória praticar políticas demagógicas. A Frente Popular francesa é em si mesma
dos mais aptos". um exemplo perfeito. Existem também lógicas sociais que induzem a essas
O dirigismo do Estado liberal implica que ele seja exercido de maneira que deturpayóes, que náo sáo levadas ertl--conta por um pensamento económi-
a liberdade seja protegida, náo sub jugada; de maneira que a conquista do co limitado: "[ ... ] nós náo somos moléculasde gás, mas seres pensantes
benefício seja o resultado da vitória dos mais aptos numa comperi<;:áo leal, e sociais; nós coligamos nossos interesses, somos submetidos a práticas
náo 0 privilégio dos mais protegidos ou dos mais ricos, em consequencia gregárias, sofremos pressóes externas de grupos organizados (sindicatos,
do apoio hipócrita do Estado. 35 organizac;:óes políticas, Estados estrangeiros etc.)" 38 . Um Estado forre,
Esse liberalismo "mais bem compreendido", esse "liberalismo verdadei- protegido das chantagens e pressóes, é necessário para garantir igualdade
ro", depende da reabilitayáo do Estado como fonte de autoridade imparcial de tratamento diante da lei.
sobre os particulares. Ele também sustenta outro argumento. O Estado nao deve proibir-se

Quem quiser retornar ao liberalismo terá de dar autoridade suficiente aos de intervir para fazer as engrenagens da economia funcionarem melhor. O
governos para que resistam aascensáo dos interesses privados sindicalizados, liberalismo consrrutor significa
e essa autoridade lhes será dada por meio de reformas constitucionais apenas lubrificar a máquina econ6mica, desengripar os farores autorreguladores
na medida em que o espírito público for reerguido através da denúncia dos ·dO ~quilíbrio; p·ermitir que pw;os, taxas de juro, disparidades ajustem a
malefícios do intervencionismo, do dirigismo e do planismo, que em ge~al produyáo as neCessidades reais do cOnsumo, tornadas Solventes; a poupanya,
sáo apenas a arte de desregular ~istematicamente o equilíbrio económico em as necessidades de investimento dali em diante justificadas pela demanda;
detrimento da grande massa dos cidadáos-consumidores para o benefício o comércio exterior, adivisáo natural do trabalho internacional; os salários,
momentáneo de um pequeno número de privilegiados, como se ve com as possibilidades técnicas e a rentabilidade das empresas. 39
extrema abundáncia na experiencia russa. 36
Essa ingerencia adaptadora chega ao ponto de induzir cerros comporta-
Sem dúvida, náo é simples distinguir a intervenyáo que mata a con-
mentos desejáveis nos agentes a fim de restabelecer equilíbrios que, embora
correncia daquela que a fortalece. Em todo caso, quando se constata que
"naturais", nao se constituiriam por si sós.
a
existem foryas políticas e sodais que induzem desregulayáo da máquina,
deve-se aceitar que urna forya contrária visa a devolver-lhe o devido lugar O intervencionismo liberal deve preocupar-se, em períodos de supero-
37 ferta, em estimular o consumo, que é a única coisa que permite valorizar
e poder por "gasto do risco e da responsabilidadC:' . Rougier rem duas
a produ-;áo, pois, se o volume da produyáo é funs:áo do preyo de custo,
posiyóes diferentes, na verdade. Na primeira, o intervencionismo do Estado apenas a demanda solvente determina seu valor comercial e social; e isso
deve ser essencialmente jurídico. Trata-se de impor regras universais a todos náo pelos procedimentos esterilizan tes da venda a crédito, mas distribuin-
os agentes económicos e resistir a todas as intervenyóes que deturpam a do a maior parte dos benefícios de urna empresa na forma de dividendos
concorrencia, dando vantagens ou concedendo privilégios e proteyóes a para os acionistas e salários para os operários. Com isso, o Estado náo terá
como objetivo criar equilíbrios artificiais, mas restabelecer os equilíbrios
determinadas categorias. O perigo é que o Estado fique na mao de grupos
naturais entre a poupanya e os investimentos, a produyáo e o consumo, as
coligados, seja dos mais ricos, seja das massas pobres. exportayóes e as imporrayóes. 40

35 Louis Rougier, Les mystiques économiques, cit., p. 84. 3R Idem.


36 39 Ibidem, p. 194.
Ibidem, p. 10.
37 Ibidem, p. 192. .Jo Ibidem, p. 85.
O Colóquio Walter Lippmann ou a reinvenyáo do liberalismo ., 89
88 ., A nova razio do mundo

Neoliberalismo e revoluyáo capitalista


O capitalismo concorrencial nao é um produto da natureza: ele é
urna máquina que exige vigiláncia e regulayáo constantes. Percebe-se, no Lippmann, por sua vez, vai desenvolver urna argumentac;:J_o rnuito diferente
entamo, a falta de clareza em torno do "intervencionismo liberal" na ver- e, sem dúvida, mais consistente para justificar o neoli-beralismo e explicar seu
sáo dada por Rougier, que só poderia inquieta,r os liberais mais próximos significado histórico. A seu ver, o coletivismo é wna "contrarrevoluyao", urna
da ortodoxia. Rougier mistura rrés dimensóes diferentes na legitimayáo da "reayáo" a revoluyáo verdadeira, surgida nas sociedades ocidentais. Porque,
política pública: o estabelecimento de um Estado de direito, wna política de para ele, a verdadeira revoluyáo é a da economia capitalista e comercial esten-
adaptayáo as condiyóes cambiantes e urna política que auxilia a realizayao dos dida a todo o planeta, a do capitalismo que altera continuamente os modos
"equilíbrios naturais". Elas náo sáo da mesma ordem. Urna coisa é romper de vida, transformando o mercado no "regulador soberano dos especialistas
com a "fobia do Estado", tal como esta se manifestava exemplarmente em numa economia baseada nwna divisáo do trabalho muito ·especializada''43 .
Spencer, outra é estabelecer o limite que separará a intervenc;áD legítima É o que os últimos liberais esqueceram e que torna obrigatória urna
da ilegítima. Como evitar cair nos vícios dos "políticos demagogos" e dos "redescoberta do liberalismo". O liberalismo, na verdade, náo é urna ideo-
"doutrinários ihuninados"? O critério absoluto é o respeito aos princípios logia semelhante as outras, e menos ainda esse "enfeite descarado" do
da concorréncia. Ao contrário de todos aqueles que explicam que "a con- conservadorismo social no qual se transformou pouco a pouco. Ele é, para
corréncia mata a concorréncia", Rougier sustenta- como todos os liberais, Lippminn, a única filosofia que pode conduzir a adaptayáo da sociedade e
aliás - que as distoryóes da concorréncia sáo consequéncia sobretudo das dos hornens que a compóem a mutayáo industrial e comercial baseada na
ingeréncias do Estado, náo de um processo endógeno. Desde o protecio- divisao do trabalho e na diferenciayáo dos interesses. É a única doutrina
nismo alfandegário até a instaurayáo de wn monopólio, é sempre o Estado que';--,be'm compre~ndida, pode construir a "Grande Sociedade" e fazé-la
que, exclusivamente ou náo, está na origem da limitayáo ou da supressáo funcionar com ha~monia: "O liberálismo náo é, colno o coletiv,ismo, urna
do regime concorrendal, em d-etrimento dos interesses do maior número rea<;:áo a Revolu<;:áo Industrial; ele é a própria @osofia dessa Revoluyáo In-
de indivíduos. O que, todavia, introduz urna diferenya entre essas posiyóes dustrial"44. O caráter necessdrio do liberalismo, sua inseryáo no movimento
é que, para Rougier, a concorréncia só pode ser estabelecida pela ingeréncia das sociedades, acaba aparecendo como o correspondente da tese marxiana
do Estado. Esse é também o principal eixo do neo liberalismo alemáo, como que faz do socialismo outra necessidade da história.
indica Von Rüstow durante o colóquio: A economia baseada na divisáo do trabalho e regulada pelos mercados
Náo é a concorrénda que mata a concorréncia. É antes a fraqueza intelectual é um sistema de produyáo que nao pode ser fundamentalmente modifica-
e moral do Estado, que primeiro ignora e negligencia seus deveres de poli- do. Trata-se de wn dado da história, urna base histórica, da mesma forma
cial do mercado e deixa a concorréncia degenerar e depois deixa cavaleiros que o sistema económico dos cayadores-coletores. Mais ainda, trata-se de
rapinadores abusarem dos direitos dessa concorrénci.l degenerada para lhe urna revoluyao muito semelhante aquela por que passou a humanidade no
dar o golpe de misericórdia. 41
período Neolítico. O erro dos coletivistas é acreditar que se pode anular
Para Rougier, o "retorno ao liberalismo" somente tem sqnido pelo essa revoluyáo social pelo domínio total dos processos económicos; o erro
valor que se dá a !'vida liberal", que náo é a selva dos egoísmos, mas o jogo dos manchesterianos é pensar que esse é um estado natural que náo exige
regulado da realizayáo de si mesmo. Por isso ele prega o "gasto da vida que intervenyóes políticas.
resulta do fato de ela comportar wn risco, mas dentro do quadro ordenado A palavra mais importante na reflexáo de Lippmann é adaptaráo. A
de um jogo cujas regras sáo conhecidas e respeitadas" 42 • agenda do neoliberalismo é guiada pela necessidade de urna adaptayáo

43
Walter Lippmann, La cité libre, cit., p. 209.
41 Serge Audier, Le Colloque Lippmann, cit., p. 41.
« Ibidem, p. 28 5.
42 Louis Rougier, Les mystiques économiques, cit., p. 4.
O Colóquio Walter Lippmann ou a reinvenc;iio do liberalismo ~ 91
90 .. A nova razáo do mundo

homens e das instituiróes a urna ordem econ6mica intrin- nocas comerciaís. Longe de negar a necessidade de um quadro social, moral e
permanen te dos Y A • • ,

secamente variável, baseada numa concorrenc1a generalizada e sem tregua~ ·político para melhor deixar funéionarem os mecanismos supostameme naturaís
A política neo liberal é requerida para favorecer esse funcionamento, comba- da economia de mercadp, o neoliberalismo deve ajudar a redefinir um novo
renda os privilégios, os monopólios ~os rentistas. Ela visa a criar e preservar quadro que seja compatível com a nova estrurura econ6mica.
as condiyóes de funcionamento do sistema conCOrrenCial. Mais ainda, a política neoliberal deve mudar o próprio homem. Numa
A revoluyáo permanente dos métodos e das estruturas de produyáo economia em constante movimento;·a·adaptayáo é urna tarefa sempre atual
deve corresponder igualmente a adaptayáo permanente dos modos de vida para que se posSa recriar urna harmonia entre a maneira como ele vive e
e das mentalidades. O que torna obrigatória urna intervenyáo permanente pensa e as condicionantes econ6micas as quaís deve se submeter. Nascido
da forya pública. Foi o que entenderam claramente os primeiros liberais, num estado antigo, herdeiro de hábitos, modos de consciéncia e condicio-
inspirados pela necessidade de reformas sodais e políticas, mas foi também namentos inscritos no passado, o homem é um inadaptado cr6nico que
o que esqueceram os "últimos liberais", mais preocupados com a manuten- deve ser objeto de políticas específicas de readaptayáo e modernizayáo. E
¡;áo do que com a adapta¡;áo. A bem da verdade, os adeptos do laissez-foire essas políticas devem chegar ao ponto de mudai a própria maneira conio o
supunham que esses problemas de adaptayáo se resolviam por magia ou, homem concebe sua vida e seu destino a fim de eVitar os sofrimentos morais
melhor, que nem existiam. e os conflitos inter ou intraíndividuais:
O neoliberalismo repousa sobre a dupla constatayáo de que o capitalismo Os verdadeiros problemas das socieclades modernas colocaro-se em qualquer
inauguro u um período de revoluyáo permanente na ordem econ6mica, mas , l~gar ande a ordem social náo seja compatível comas necessidades da divisáo
que os homens náo se adaptam espontaneamente a essa ordem de mercado do· ~rabalho. Um exame dos problemas atuais náo seria mais do que um
cambiante, porque se formaram num mlUldo diferente. Essa é a justi~ca­ catáÍogü dessas incÓmpatibiÚdades. O catálogo come~atia pela hereditade-
dade, enumerada todos os costumes, as leis, as institui<róes e as políticas e
~0 de urna política que deve visar a vida individual e social como um todo,
someme terminada após tratar da no<ráo que o hornero tern de sen destino
como diráo os ordoliberaís alemáes depois de Lippmann. Essa política de sobre aTerra, de suas ideias sobre sua alma e a de todos os outros homens.
adaptayáo da ordem social a divisáo do trabalho é urna tarefa imensa, diz Pois todo conflito entre a heran<ra social e a forma como os homens devem
a
ele, que consiste em "dar humanidade um novo tipo de vida'' . Lippmann
45
ganhar a vida acarreta necessadamente urna desordem em seus negócios
é particularmente explícito acerca do caráter sistemático e completo da e urna divisáo ern seus espíritos. Quando a heran¡;;:a social e a economia
náo formam um todo homogftneo, há necessariaroeme revolta contra o
transfotmayáo social que se deve operar:
mundo ou renúncia ao mundo. Por isso, em épocas como a nossa, em que
A má adapta<ráo se deve ao fato de que houve urna revolu<ráo no modo de a sociedade se encomra em conflito com as condi¡;;:óes de sua existéncia, o
produ<ráo. Como essa revolu<ráo se deu entre homens que herdaram um tipo descontentamento leva alguns a violéncia, e outros ao ascetismo e ao culto
de vida radicalmente diferente, o reajuste necessário deve estender-se a toda do além. Quando os tempos sáo conturbados, uns erguem barricadas e
a ordem social. Provavelmente, ele deve prosseguir enquanto durar a própda outros entrampara o convento. 47
Revolu<ráo Industrial. Náo pode haver um momento nele em que a "nova
ordem" esteja realizada. Pela natureza das coisas, urna economia din~mica Para evitar essas crises de adaptayáo, convém pOr em prática um conjunto
.
deve necessanamente estar alop . 46
. da numa ordem soct'al progress1sta. de reformas sociais, que sáo urna verdadeira política da condiráo humana
nas sociedades ocidentais. Lippmann aponta dais aspectos propriamente
É precisamente ao Estado e a legislayáo produzida o u garantida por ele que
cabe inserir as atividades produtoras e comerciais em relayóes evolutivas, enqua-
a
humanos dessa política global de adaptayáo competiyá'o: a eugenia e a edu-
cayáo. A adaptayáo exige novas homens, dotados de qualidades náo apenas
drá-las em normas harm6nicas coma especializayáo produtiva e a ex:tensáo das
diferentes, mas também superiores das que dispunham os· amigos homens:

45 Ibidem, p. 272.
47
46 Ibidem, p. 256. Ibidem, p. 256-7.
90 o A nova razáo do mundo O Colóquio Walcer Lippmann ou a reinvenc;áo do liberalismo 91

permanente dos homens e das instituiyóes a urna ordem económica intrin- rrocas comerciais. Longe de negar a necessidade de um quadro social, moral e
secamente variável, baseada nwna concorré:nda generalizada e sem trégua. pOlítico para melhor deixar fundo harem os mecanismos supostamente naturais
A política neoliberal é requerida para favorecer esse funcionamento, comba- da economia de mercado, o ?~?_liberalismo deve ajudar a redefinir um novo
renda os privilégios, os monopólios e os rentistas. Ela visa a criar e preservar quadro que seja compadvel .com a nova estrutura económica.
as condiyóes de funcionamento do sistema concori-encial. Mais ainda, a política neoliberal deve mudar o próprio homem. Numa
A revolw;áo permanente dos métodos e das estrururas de produyáo economia em constante movimento, aadaptayáo é urna tarefa sempre atual
deve corresponder igualmente a adaptayáo permanente dos modos de vida para que se possa recriar urna harmonia entre a maneira como ele vive e
e das mentalidades. O que torna obrigatória urna intervenyáo permanente pensa e as condicionantes económicas as quais deve se submeter. Nascido
da forya pública. Foi o que entenderam claramente os primeiros liberais, num estado antigo, herdeiro de hábitos, modos de consciencia e condicio-
inspirados pela necessidade de reformas sociais e políticas, mas foi também namentos inscritos no passado, o homem é um inadaptado crónico que
o que esqueceram os "últimos liberais", mais preocupados coma manuten- deve ser objeto de políticas específicas de readaptayáo e modernizayáo. E
s:áo do que com a adaptas:iio. A bem da verdade, os adeptos do laissez-foire essas políticas devem chegar ao ponto de mudar a própria maneira como o
supunham que esses problemas de adaptayáo se resolviam por magia ou, homem concebe sua vida e seu destino a fim de evitar os sofrimentos morais
melhor, que nem existiam. e os conflitos inter ou i~traindividuais:
O neoliberalismo repousa sobre a dupla constatayáo de que o capitalismo Os verdadeiros problemas das sociedades modernas colocam-se em qualquer
inaugurou um período de revoluyáo permanente na ordem económica, mas lugar ande a ordem social náo seja co~pativel com as necessidades da divisáo
que os homens náo se adaptam espontaneamente a essa ordem de mercado d6 t~:abalho. U m exame dos problemas atuais náo seria mais do que um
cambiante, porque se formaram num mundo diferente. Essa é a justific<;I-- catál~go dessas incoÚJpatibilid'ades. O catálogo comec;aria pela hereditarie-
dade, enumeraría todos os costumes, as leis, as instituic;óes e as polítkas e
yáo de urna política que deve visar -a vida individual e social como um todo,
somente terminaria após tratar da noyáo que o homem tem de seu destino
como diráo os ordoliberais alemáes depois de Lippmann. Essa política de
sobre aTerra, de suas ideias sobre sua alma e a de todos os outros homens.
a
adaptayáo da ordem social divisáo do trabalho é urna tarefa imensa, diz Pois todo conflito entre a herans;a social e a forma como os homens devem
a
ele, que consiste em "dar humanidade um novo tipo de vida'' 45 • Lippmann ganhar a vida acarreta necessariamente urna desordem em seus negócios
é particularmente explícito acerca do caráter sistemático e completo da e urna divisáo em seus espíritos. Quando a heranya social e a economia
transformayáo social que se deve operar: náo formam um todo homogéneo, há necessariamente revolta contra o
mundo o u renúncia ao mundo. Por isso, em épocas como a nossa, em que
A má adaptac;áo se deve ao fato de que houve urna revolw;:ao no modo de a sociedade se encomra em conflito com as condic;óes de sua existéncia, o
prodw;:áo. Como essa revolw;:áo se deu entre homens que herdaram um tipo descontemamento leva alguns avioléncia, e outros ao ascetismo e ao culto
de vida radicalmente diferente, o reajuste necessário deve estender-se a toda do além. Quando os tempos sáo conturbados, uns erguem barricadas e
a ordem social. Provavelmente, ele deve prosseguir enquanto durar a própria outros entrampara o convento. 47
Revolw;:áo Industrial. Náo pode haver um momento nele em que a "nova
ordem" esteja realizada. Pela natureza das coisas, urna economia dinin;üca Para evitar essas crises de adaptayáo, convém pór em prática um conjunto
deve necessariameme estar alojada numa ordem social progressista. 46 de reformas sociais, que sáo urna verdadeira política da condiráo humana
nas sociedades ocidentais. Lippmann aponta dais aspectos propriamente
É precisamente ao Estado e alegisla<;áo produzida ou garantida por ele que
cabe inserir as atividades produtoras e comerciais em relayóes evolutivas, enqua-
a
humanos dessa política global de adaptas:iio competis:iio: a eugenia e a edu-
cayáo. A adaptayáo exige novas homens, dotados de qualidades náo apenas
drá-las em normas harmónicas coma especializac;-áo produtiva e a extensáo das
diferentes, mas também superiores das que dispunham os -a~tigos homens:

45
Ibidem, p. 272.
46 47
lbidem, p. 256. Ibidem, p. 256-7.
92 .. A nova razáo do mundo O Colóquio Walter Lippmann ou a reinven!Táo do liberalismo ~ 93

A economia necessita náo apenas que a qualidade da espécie humana, que de homens, tirando-os de seus lares ancestrais e juntando-os em grandes su-
o equipamento dos homens diante da vida, seja mantida num grau mínimo búrbios sombrios e anónimOs, repletos de casebres superpovoados"52. Assim
de qualidade, mas também que essa qualidade seja progressivamente melho-
como os ordoliberais__al~_máes do pós-guerra, Lippmann náo ve contradic;:áo
rada. Para viver com sucesso num mundo de interdependéncia crescente do
trabalho especializado, é preciso um crescimento contínuo das faculdades de entre o tipo de economia que deseja ver perdurar, na medida em que a
adapta!Tao, da inteligencia e da compreensáo esclarecida dos direitos e dos considera um dado histórico insuperável, e as consequtncias sociais que ela
deveres recíprocos, dos benefícios e das possibilidades desse tipo de vida. 48 pode gerar. A seu ve1~ a defesa de urna -sociedade integrada e estabilizada é da
É preciso, em particular, urna grande política de educas:áo das massas alc;:ada da política social, exatamente da mesma maneira como a luta contra
que prepare os homens para as funt;:óes econümicas especializadas que os o coletivismo das grandes holdings é necessária para mantera concorrtncia.
aguardam e para o espírito do capitalismo a que devem aderir para viver "em Sob certos aspectos, esse neoliberalismo, que se pretende urna política de
paz numa Grande Sociedade de membros interdependentes" 49 : adaptat;:áo, leva a certa hostilidade em relas:áo as formas adquiridas pelo
capitalismo das grandes unidades. É desse modo que podemos compreender
Educar grandes massas, equipar os homens para urna vida em que devem
a vontade de lutar contra a manipulac;:áo dos monopólios e o desejo de ver
especiali7..ar-se, mas ao mesmo tempo ainda ser capazes de mudar de especia-
lidade, eis o imenso problema ainda nao resolvido. A economia da divisáo do ampliada a vigil:lncia sobre as transac;:óes comerciais e financeiras: "Numa
trabalho exige que esses problemas de eugeniae educa\áO sejam efetivamente sociedade liberal, o aprimoramento dos mercados deve ser objeto de estudo
tratados, e a economia clássica supóe que eles o sejam. 50 incessante. Trata-se de um vasto domínio de reformas necessárias"53
Náo devemos nos esquecer, porém, que essa reinvenc;:áo do liberalismo
O que torna necessária essa grande política de educayáo praticada em
náo·.~e deixa iludir.,.:sobre as _necessidades políticaS ligadas ao funcionainen-
benefício das massas, e náo mais apenas de urna pequena elite cultivada,
to dos mercados, em particular no ·plano da mobilizac;:áo, da format;:áo da
é que os homens teráo de mudar de cargo e empresa, adaptar-se as rlovas
fon;:a de trabalho e de sua reprodw;:áo em estruturas sociais e in~titucio'nais
técnicas, enfrentar a concorrtncia generalizada. A educayáo, em Lippmann,
estáveis e eficazes. Essa é, sem dúvida, a principal preocupac;:áo de La cité
náo é da ordem da argumentac;:áo republicana tradicional, mas da ordem da
lógica adaptativa, que é a única coisa que justifica o custo escolar: "É para
libre, como indica a justificac;:áo do imposto progressivo destinado, entre
outras coisas, a educac;:áo dos produtores, mas também a SUa indeniZa((áO,
tornar os homens aptos ao novo tipo de vida que o liberalismo pretende
51 em caso de demissáo, afim de ajudá-los a reciclar-se e reposicionar-se: "Náo
consagrar parte considerável do orc;:amento público a educayáo" •
há nenhuma razáo para que um Estado liberal náo assegure e náo indenize
A política que Lippmann promove tem outros aspectos que a aproxi-
os homens contra os riscos do progresso dele próprio. Ao contrário, ele tem
mam, como veremos adiante, dos temas da sociologia ordoliberal de Rüpke
todas as razóes em faze-lo''5 4 •
e Von Rüstow: protes:áo do contexto de vida, da natureza, dos bairros e das
cidades. Os homens devem ter mobilidade eco nO mica, mas náo devem viver
como nümades sem raízes, sem passado. A questáo da integrayáo social nas
O império da lei
comunidades locais, muito presente na cultura norte-americana, faz parte
dos contrapesos necessários ao desenvolvimento da economia mercantil: Dissemos anteriormente como a crítica neoliberal de Lippmann ao na-
"Náo há dúvida de que a Revoluyáo Industrial descivilizou grandes massas turalismo ia ao encontro da concept;:áo benthamiana do papel criador da lei,
em particular no campo da as:áo económica. A ideia de que a propriedade

os lbidem, p. 258.
49
Ibidem, p. 285. 52
lbidem, p. 260.
50
Ibidem, p. 258. s-J lbidem, p. 268.
51 54
Ibidem, p. 285. Ibidem, p. 270.
i
94 o A nova razio do mundo O Colóquio Walter Lippmann o u a reinvens:áo do liberalismo ,. 95

náo está inscrita na natureza, mas é produto de um entroncamento de di- se esforya para definir o que um homem pode esperar dos outros, inclusive
reitos complicado, variável, diferenciado, é incontestavelmente comuin a dos funcionários do Estado, e assegurar a realizayáo dessa expectativa."56
ambos. Encontramos a mesma preocupayáo coma mudanya do arcabouyo Essa concepyáo das relayóes sodais define o único modo de governo pos-
legal em funyáo das evoluyóes sociais e económicas, contra as concepyóes sível de urna cidade--livre-que limita a arbitrariedade e rtáo pretende dirigir
conservadoras do jusnaturalismo. Num sistema económico em permanen- os indivíduos.
te evoluyáo, a lei deve ser modificada quando necessário. Mas Lippmann Urna lei é urna regra geral das rdayóes entre indivíduos privados, ela
demonstra muito mais simpatia que Bentham pela prática jurisprudencia! expressa apenas as relayóes gerais dos homens entre si. Náo é nern ernanayáo
da Common Law e muito mais desconfianya acerca da criayáo parlamentar de urna poténcia transcendente nern propriedade natural do jndivíduo. É um
da lei. Mostra, muito antes de Hayek, que há urna afinidade de espírito modo de organizayáo dos direitos e dos deveres recíprocos dos indivíduos
entre o modo de criayáo da lei na prática anglo-saxá e as necessidades de em relayáo uns aos outros, objetos de mudanyas contínuas em funyáo da
coordenayáo dos indivíduos nas sociedades modernas. evolus:áo social. O governo liberal pela lei comum, explica Lippmann, "é
A questáo da arte do governo é central. Os adeptos do coletivismo e os o controle social exercido náo por urna autoridade superior que dá ordens,
do laissez-foire equivocam-se por razóes contrárias sobre a ordem política mas por urna lei comum que define os direitos e os deveres recíprocos das
correspondente a um sistema de divisáo do trabalho e traca. Uns querem pessoas e as convida a fazer cumprir a lei, subiuetendo seus casos específi-
administrar todas as relayóes dos homens entre eles, e os outros gostariam cos a um tribunal"~ 7 . Essa concepyáo da lei estende o campo dos direitos
de acreditar que essas relayóes sáo livres por natureza. A democracia é o -_privados ao conjunto do direito como instituiyáo das obrigayóes relativas
império da lei para todos, é o governo pela lei comum feita pelos homens: dO$. indivíduos em relayáo uns aos outros.
"Nurna sociedade livre, o Estado náo administra os negócios dos homens. Üppmann i:et6ma·a cóilcepyáo. relacional da lei~ que era a dos primeiros
Ele administra a justiya entre os homens, que conduzem eles mesmos seus liberais. Explica que náo somos pequenas soberanias in dependen tes, como
próprios negócios" 55 • É verdade que náo se chegou facilmente a essa con- Robinsons Crusoés numa ilha; somos ligados a um conjunto denso de obri-
cepyáo, como atestam os debates desde o fim do século XVIII. gayóes e direitos, que estabelecem cena redprocidade em nossas relayóes.
Como organizar o Estado numa época em que o pavo é o detentor Esses direitos náo sáo copiados da natureza, tampouco deduzidos de um
legítimo do poder para faze-lo servir aos interesses das massas? Esse é o dogma proclamado de urna vez por todas, e menos ainda urna produyáo
grande problema da constituiyáo que os founding fathers impuseram a si de um legislador onisciente. Eles sáo produto de urna evoluyáo, de urna
mesmos - e é igualmente o dos republicanos franceses e dos demacraras experiéncia coletiva das necessidades de regulamentayáo surgidas da multi-
radicais ingleses. Segundo Lippmann, o modo de governo liberal náo tem plicayáo e da modificayáo das transayóes interindividuais. Muito antes de
relayáo coma ideologia, mas coma necessidade de estrutura, como dissemos Hayek, Lippmann, herdeiro dos escoceses Hume e Ferguson, apresenta a
anteriormente. Ele resulta da própria natureza dos layas sociais dentro da formayáo da sociedade civil como resultado de urn processo de descoberta
sociedade mercantil. da regra geral que deve governar as relayóes recíprocas dos homens e, por isso
A divisáo do ttabalho impóe ceno tipo de política liberal e veda a mesmo, contribui para civilizd-los, no sentido de que a aplicayáo do direito
arbitrariedade de um poder ditatorial que dispóe dos indivíduos como civil obedece ao princípio geral e simples da rejeiyáo da arbitrariedade em
suas relayóes. Esse princípio de civilizayáo assegura a cada urn urna esfera
1

bem entende. No plano político, urna sociedade civil composta de agentes


económicos é impossível de ser dirigida por ordens e decretos, como se se de liberdade, fruto de restriyóes no exercício do poder arbitrário do hornero
tratasse de urna organizayáo hierarquizada. O que se pode fazer é ~onciliar sobre o homem. O desenvolvimento da lei, que é a negayáo da possibilidade
interesses diferenciados, determinando urna lei comum. "O sistema liberal
56
lbidem, p. 343.
57
55 Ibidem, p. 318. Ibidem, p. 316.
96 • A nova razáo do mundo O Colóquio Walter Lippmann ou a reinvem;:áo do liberalismo e 97

de agressáo do outro, é o que permite liberar as faculdades produtoras e as O ponto essencial em Lippmann é, sern dúvida, que náo se podem
energías criadoras. · pensar independentemente a economía e o sistema normativo. A implicac;:áo
Para Lippmann, a nova governamentalidade é essencialmeme judiciária: recíproca entre eles parte da considerac;:áo da interdependencia generalizada
a
mais do que curvar-se forma de administrac;:áo da justiya em toda a sua do~ interesses na soCíidade Civil. A descoberta progressiVa dos princípios do
extensáo e todos os seus procedimentos, ela cumpre urna operac;:áo integral- direito é sirnultaneamente produto e fator dessa "Grande Sociedade", na
mente judiciária em seu conteúdo e seu alcance. A oposic;:áo simplista entre qual cada um é ligado aos outros para a satisfac;:áo de seu próprio interesse:
intervenc;:áo e náo intervenc;:áo do Estado, táo pregnante na tradic;:áo liberal,
Os homens tornados dependentes uns dos outros pela troca de trabalho
impediu a compreensáo do papel efetivo do Estado na criac;:áo jurídica e especializado em mercados cada vez mais estendidos deram-se como ar-
inibiu as possibilidades de adaptac;:áo. O conjunto de normas produzidas cabow;o jurídico um método de controle social que consiste em definir,
pelos costumes, pela interpretac;:áo dos juízes e pela legislac;:áo, com a ga- julgar e corrigir direitos e obrigayóes recíprocos, e náo mandar por decreto. 58
rantia do Estado, evolui por um trabalho constante de adaptac;:áo, por urna
O exercício desse novo modo de governo acabo u aumentando o campo
reforma permanente que faz da política liberal urna func;:áo essencialmente de interdependéncia, fazendo entrar cada vez mais indivíduos e povos na
judiciária. Náo há diferenc;:a de natureza nas operac;:óes dos poderes Executivo,
rede de transac;:óes e competis:óes, a ponto de ser possível imaginar urna
Legislativo ou propriamente Judiciário: todos devem julgar, em cenários "Grande Sociedade" em escala planetária, resultado lógico da divisáo mundial
diferentes e de acordo com procedimentos distintos, reivindicac;:óes muitas do trabalho. Longe de constituir urn governo mundial o u um império, a nova
vezes contraditórias de grupos e indivíduos com interesses diferentes. A lei S~ciedade civil estabelecerá relac;:Óes pacíficas entre povos independentes,
como regra geral visa a assegurar obrigac;:óes equitativas entre indivíduos com
gtay~s a:o fortalecitp-ento d~, divisáo mundial do tfabalho, ela própria ligada
interesses particulares. Todas as instituic;:óes liberais exercem um julga~ento a "aceit:as:áo crescellte no mundo inteiro dos princíp'íos essenciais de urna lei
sobre os interesses. Adorar urna lei é decidir entre interesses em conflito.
comum que todos os parlamentos representantes das diferentes c~letividades
O legislador náo é urna autoridade que ordena e impóe, mas um juiz que
a
humanas respeitam e adaptam diversidade de suas condic;:óes" 59 •
decide entre interesses. O modelo mais puro é, pois, o da Common Law, em
oposic;:áo ao direito romano, do qual provém a teoria moderna da soberania.
A administrac;:áo da justic;:a, essencialmente comutativa, tem um lugar U m governo das elites
vital num universo social em que os conflitos de interesse sáo inevitáveis.
O que distingue o coletivismo do Estado forre liberal? Os coletivistas
Porque os interesses particulares se diferenciaram na "Grande Sociedade",
se iludem a respeito de sua capacidade de dominar o conjunto das relac;:óes
urna imagem cara aos primeiros liberais, é que o modo de governo deve
econümicas numa sociedade táo diferenciada como a sociedade moderna.
mudar, passando do "método autoritário" para o "método recíproco" do
A experiencia da Primeira Guerra Mundial e da Revolus:áo de 1917 levou
controle social. Os arranjos normativos servem para tornar compatíveis
as reivindicac;:óes individuais pela definic;:áo e pelo respeito das obrigac;:óes
a crenc;:a na possibilidade de urna gestáo direta e total das relayóes econ6-
micas. No entanto, os homens náo podern dirigir a ordem social, dadas a
recíprocas, de acordo com urna lógica essencialmente horizontal. O so-
complexidade e a sobreposic;:áo dos interesses: "Quanto mais complexos
berano náo governa por decreto, náo é a expressáo de um fim coletivo
os interesses que se devem dirigir, menos possível é dirigi-los mediante a
nem mesmo o da "maior felicidade para o maior número de pessoas".
coeryáo exercida por urna autoridade superior" 60 •
A regra liberal do governo consiste em confiar na ac;:áo privada dos indi-
víduos e náo apelar para a autoridade pública para determinar o que é
melhor fazer o u pensar. Esse é o prindpio do limite da coerc;:áo do Estado. 58
Ibidem, p. 385.
O que, como veremos adiante, pressupóe urna desconfianc;:a com.relac;:áo 59
Ibidem, p. 383.
ao poder do povo pelo pavo. 60
Ibidem, p. 57.
98 " A nova razáo do mnndo O Colóquio Walter Lippmann ou a reinvens:áo do liberalismo 0 99

Mas náo nos engarremos. Náo se trata de diminuir a for~a dessa auto- de um governo das elites64 . Encontraremos essa redefiniyáo da democracia
ridade. Trata-se de mudar o tipo de autoridade, seu campo de exercício. na concepc;:áo hayekiana de·"demarquia'' 65 . Muito antes de La cité libre,. em
Ela terá de se satisfazer em ser fiadora de urna lei comum que governará textos sobre a opiniáo pública e os problemas de governO nas democracias,
indiretamente os interesses. Apenas um Estado forte terá condi~óes de fazer Lippmann examinOU--IOllg~mente a impossibilidade de conciliar um siste-
respeitar essa lei comum. Como sublinha Lippinann em todas as suas pu- ma imparcial de regras do jogo e o princípio efetivo da soberania popular
blica~óes, é preciso voltar atrás na ilusáo de um poder governamental fraco, segundo o qual as massas poderiam ditar seus desejos aos governantes.
tal como esta se difundiu durante o século XIX. Essa grande cren~a liberal A opiniáo pública, objeto de duas obras importantes de Lippmann nos
no Estado discreto, supérfluo, náo é mais admissível desde 1914 e 191.7: anos 1920, impede os governantes de tomar as medidas que se impóem,
especialmente com relac;:áo aguerra o u apaz. o fato de. que os pavos tem
Enguanto a paz parecia assegurada, o bem público residia no agregado de influencia demais por intermédio da opiniáo pública e do sufrágio universal
transas:óes privadas. Náo havia necessidade de um poder que excedesse os constitui a fraqueza congenita das democracias. Esse dogma democrático
interesses particulares e os mantivesse nwna ordem dada, dirigindo-os. considera que os governantes devem seguir a opiniáo majoritária, os inte-
Isso, como sabemos agora, era apenas um sonho de um dia excepcionalmente
resses do maior número de indivíduos, o que é ir no sentido do que é mais
ensolarado. O sonho acabo u quando estourou a Primeira GuerraMundial. 61
agradável e menos penoso. É preciso, ao contrário, deixar os governantes
A tese do Estado forte leva os neoliberais a reconsiderar o que se entende a
governarem e limitar o poder do povo nomea~áo dos governantes, segundo
por democracia e, mais particularmente, por "soberanía do pavo". O Estado ·_uma linha "jeffersoniana". O ess"encial é proteger o governo executivo das
forte semente pode ser governado por urna elite competente, cujas quali- irit~rferencias cap.dchosas da popula~áo, que é a causa do enfraquecimento
dades sáo o exato oposto da mentalidade mágica e impaciente das massas: e da,instabilidadeidos fegiffi~s democráticos. O pavo deve nomear quemo
É preciso que as democracias se reformulem constitucionalmente de maneira dirigirá, e náo dizer a cada instante o que deve ser feito. Essa é a condic;:áo
que aqueles aos quais elas confiam as responsabilidades do poder considerem- para evitar que o Estado seja conduzido a urna intervenyáo generalizada e
-se náo os representantes dos interesses económicos e dos apetites populares, ilimitada. Daí a necessidade de urna tecnologia política que o impeya de ser
mas os garantidores do interesse geral contra os interesses particulares; náo submetido aos interesses particulares, como é o caso do parlamentarismo.
instigadores de promessas eleitorais, mas moderadores das reivindicas:óes
sindicais; atribuindo-se como tarefa fazer todos respeitarem as regras co- Lippmann, do qual já se disse que em política era "plat6nico", em todo caso
muns da competis:áo individual e das expectativas coletivas; impedindo que tero o mérito da coerencia66.
minorias ativas ou maiorias iluminadas desvirtuem a seu favor a lealdade do O quadro geral do neoliberalismo foi esbos:ado nos anos 1930, antes
combate que deve assegurar, para o benefício de todos, a seles:áo das elites. de Friedrich Hayek tomar a frente do movimento na esteira de O caminho
É preciso que elas inculquem nas massas, pela voz dos novas professores, da servidáo. & relac;:óes entre essa fase inaugural e a evoluyáo do neoli-
o respeito das competencias, a honra de colaborar numa obra comum. 62
beralismo após 1947 e a crias:áo da Sociedade Mont-Pelerin náo podem
Esse é um tra~o comum entre as teses políticas de Rougier, que as desen-
volveu em La mystique démocratiqu! 3, e as posi~óes de Lippma"nn a favor 6
~ Ver Francis Urbain Clave, "Walcer Lippmann et le néolibéralisme de La cité libre",
Cahiers d'Économie Politique, v. 48, 2005, p. 79-110.
65
Ver capítulo 4 deste volume.
66
6J Walter Lippmann, Crépuscule des démocraties? (trad. Maria Luz, Paris, Fasquelle, Sua admiras:áo e amizade por Charles de Gaulle baseavam-se nessa encarnas:áo do
1956), p. 18. Estado acimados interesses particulares. Notaremos, aliás, que muitos outros liberais,
62 em especial na Frans:a, consideravam De Gaulle um modelo' político tipicamente
Louis Rougier, Les mystiques économiques, cit., p. 18-9.
neoliberal, de Jacques Rueff a Raymond Barre, passando por Raymond Aran. Ver
6
3 Idem, La mystique démocratique (ses origines, ses illusions) [1929] (Paris, Albatros, Francis Urbain Clave, "Walcer Lippmann et le néolibéralisme de La cité libre", cit.,
1983). p. 91.
100 " A nova razáo do mundo

ser compreendidas apenas em termos de "radicalizayao" ou "retorno ao


liberalismo clássico" em oposiyao aos desvios intervencionistas surgidos em
1938 67 • O desenvolvimento do pensamento de Hayek, em particular, nao
pode ser entendido simplesmente como urna "reafirmayao" dos princípios
3
antigos, já que integrará de forma singular a crítíca do velho laíssezfaire e a
O ORDOLIBERAUSMO ENTRE "POLÍTICA
necessidade de um "código de trinsito" firme e rigoroso. Esse pensamento, ECONÓMICA" E "POLÍTICA DE SOCIEDADE"
que pode ser visto como urna resposta original aos problemas pastos pela
redefiniyao do liberalismo, tenta articular as posiyóes da maioria e da minoria
do Colóquio Walter Lippmann, permitindo ao menos por um tempo que
ordoliberais alemaes e austro-americanos se mantenham na mesma corrente.

Nascido nos anos 1930 em Freiburg im Br.eisgau pela aproximayao de


economistas como Walter Eucken (1891-1950) e juristas como Franz Bohm
(1895-1977) e Hans Grossman-Doerth (1884-1944), o ordoliberalismo é a
forma alema do neoliberalismo, a.que vai impor-se após a guerra na Repú-
hlica Federal da Alemanha. O termo "ordoliberalismo" resulta da énfase em
comám desses teóri,tos na ordem constitucional e procedmal que se encontra
na base de urna sociedad e e de urna. economia de mercado.

A "ordem'' ( Ordo) como tarefa política


A própria palavra "ordem" deve ser entendida em dois sentidos: um
sentido propriamente epistemológico o u sistemico, que é da alyada da análise
dos diferentes "sistemas" económicos, e um sentido normativo, que acaba
determinando certa política económica. No último capítulo dos Grund-
lagen der Nationalokonomie [Fundamentos da economia nacional] (1940),
Eucken distingue entre "ordem económica" ( Wirtschafisordnung) e "ordem
da economia'' ( Ordnung der Wirtschaft): o primeiro conceito se insere numa
tipologia das "formas de organizayáo"; o segundo tem um alcance normativo
a a
na medida em que remete realizayáo e defesa de urna ordem económica
capaz de superar os múltiplos aspectos da crise da vida moderna, a saber, a
ordem da concorrencia (Wettbewerbsordnung) 1• Dessa· última perspectiva, se

67 Essa é a interpretac;:áo equivocada de Alain Laurent em Le libéralisme américain: histoire


1
d'un détournement (Paris, Les Bdles Lettres, 2006), p. 139 e seg. O erro de Laurent, Rainer Klump, "On the Phenomenological Roots ofGerman Or'dnungstheorie: W'hat
como o erro simétrico dos "antiliberais", reside na incompreensáo da natureza do Walter Eucken Owes to Edmund Husserl", em Patricia Commun (org.), L'oTtioli-
"intervencionismo liberal", o que os impede de compreender a maneira como Hayek béralisme allemand aux sources de l'économie sociale de marché (Cergy-Pontoise, Cirac/
prolonga e muda a orientaoyáo do neoliberalismo. Cicc, 2003), p. 158.
102 ~ A nova razáo do mundo O ordoliberalismo entre "política económica" e "política de sociedade" 103

revela que a ordem da concorrénda, longe de ser urna ordem natural, deve essa análise: a "ordem liberal" é testemunha da capacidacj_e humana de criar
ser constituída e regulada por urna política "ordenadora'' o u "de ordenayáo" de forma voluntária e conSciente urna ordem social justa, condizente com
(Ordnungspolitik) 2 • O objeto próprio dessa políticaé o quadro institucional, a dignidade do homem. A cria<;áo de um Estado de direito (Rechtsstaat)
que é o que pode assegurar o bomfuncionamento dessa "ordem econümica" é a condic;:áo dessa ¿-rdem -liberal. Isso significa que o estabelecimento e- o
específica. De fato, na auséncia de um quadio institucional adequado, as funcionamento do capitalismo náo sáo predeterminados: eles dependem
medidas de política econümica, mesmo as mais bem-intencionadas, estáo das ac;:óes políticas e das instituiyóes-jurídicas. Michei Foucault insiste com
a
condenadas ineficáda. toda razáo na importáncia de confrontar essa concepc;:áo com a concepc;:áo
Num artigo de 1948 intitulado "Das ordnungspolitische Problem" [O marxista da história do capitalismo domininte na época~. De fato, o or-
problema político da ordena<;ao], Eucken toma o exemplo daAlemanha pós- doliberalismo rejeita com vigor toda forma de reduyáo do jurídico a urna
-guerra para ressaltar a importáncia decisiva desse quadro. Em 1947, leis de simples "superestrutura'', assim como a ideia correlativa da economía como
dissoluyáo de cartéis foram promulgadas para desconcentrar o poder econO- "infraestrutura''. É particularmerite testemunha disso este trecho do artigo
mico. Mas essas leis foram instauradas quando o controle do processo eco- de 1948 que acabamos de mencionar:
nümico estava nas máos das agéncias do governo central. No contexto dessa
Falsa seria a visáo segundo a qual a ordem econ6mica seria como a infraes-
"ordem econürnica'', o de wna economía dirigida, essas medidas náo tiveram trutura (der Unterbau) sobre a qual se ergueriam as ordens ·da sociedade,
efeito algum: produtos como cimento, ac;:o, carváo ou cauro continuaram do Estado, do direito e as o u tras ordens. A história dos tempos modernos
a ser repartidos por intermédio do governo, de modo que a direc;:áo da eco- ensina táo claramente quamo as épocas mais antigas que as ordens do
nomía continuou essencialmente inalterada. Mas, se a "ordem econümica'' , Est_ado ou as ordens jurídicas também tem influencia sobre a formayáo.da
· ordem econ6mica.
fosse diferente, ou seja, se os prec;:os servissem corno reguladores, náo há
dúvida de que o resultado da-lei antimonopólio teria sido completamente Eucken esclarece suas palavras referindo-se de novo asituác;:áo da Ale-
diferent¿. Assirn, a tarefa política do momento era estabelecer urna ordem de manha após 1945. De um lado, a transformac;:áo da ordem eco nO mica por
concorréncia baseada no mecanismo dos prec;:os e, para isso, criar um quadro causa do surgimento de grupos monopólicos de poder pode influenciar de
institucional específicamente adaptado a urna economía de concorréncia. modo considerável a tomada de decisáo no Estado; de outro) a formayáo
Nascido nos círculos intelectuais contra o nazismo, o ordoliberalismo de monopólios pode ser encorajada pelo próprio Estado, em especial
é urna doutrina de transforrnac;:áo social que apela para a responsabilidade por intermédio de sua política de patentes, de sua política comercial, de
dos homens. Como agir para refundar urna ordem social liberal depois dos sua política de taxas, como aconteceu regularmente nos últimos tempos,
erras do estadismo totalitário? Essa foi a pergunta que se fizeram, desde o aponta Eucken:
início, os principais representantes do ordoliberalismo. Para des, trata-se Primeiro o Estado favorece a formayáo do poder econ6mico privado e depois
de reconstruir a economía de mercado com base numa análise científica da se torna parcialmente dependente dele. Assim, náo há urna dependencia
sociedade e da história4 • Mas certa dimensáo moral é consubstancial com unilateral das outras ordens em relayáo a ordem econ6mica, mas urna de-
pendencia recíproca, urna "interdependencia das ordens" (Interdependenz
der Ordnungen). 6
2
O termo alemáo Ordnung deve ser entendido em sentido ativo: náo o arranjo dos
elementos que dá a um sistema já constituído urna coeréncia própria, mas a ativi- Essa análise comporta wna consequénda decisiva: o devir do capitalismo
dade de pór em ordem ou mesmo de estabelecer urna ordem. Traduzimos o sentido
náo é inteiramente determinado pela lógica econümica de acumulac;:áo do
sistémico por "ordem" e o sentido político ativo por "ordenat;:áo".
3 Walter Eucken, "Das ordnungspolitische Problem", Ordo-jahrbuch für die Ordnung
5
dcr Wirtschaft und Gcsel&chaft, v. 1 (Freiburg,]. B. C. Mohr, 1948), p. 65. Michel Foucault, Naissance de la biopolitique (Paris) Seuil/Gallimard, 2004), p. 169
4
Ver Jean-Frant;:ois Poncet, La politique économique de !'Allemagne occidentale (Paris, e seg.

Walter Eucken, "Das ordnun~politische Problem", cit., p. 72.


6
Sirey, 1970), p. 58.
104 " A nova razáo do mundo O ordoliberalismo entre "política económica'' e "política de sociedade" e 105

capital, ao contrário do que dizia um discurso marxista amplamente difundido autorrealiza~áo da ordem natural era grande demais (Das Vertrauen auf die
na época. Desse último ponto de vista, "existe na verdade apenas um capi- Selbstverwirklichung der natürlichen Ordnung war zu groj?). 8
talismo, já que existe apenas urna lógica do capital"; mas, do ponto de vista De forma aind_a_mais -categórica, Rüpke resume bem o espírito da
ordoliberal, que já era o de Rougier, "a história do capitalismo so mente pode doutrina em Civitas humana, em que recupera, fazendo eco ao Colóquio
ser urna história económico-institucional", o que significa que o capitalismo Lippmann, a rejeiyáo do laissezjaire:
tal como o conhecemos depende da "singularidade histórica de urna figura
Náo é empenhando-nos em náo fazer nada que suscitaremos urna economia
económico-institucional", e náo da figura que dita a lógica da acumulayáo
de mercado vigorosa e satisfatória. Muito pelo contrário, essa economia é
do capital. A implicayáo política dessa considera<;:á_o é manifesta: longe de o urna forma~áo academica, um artifício da civiliza~áo; ela tem ero comwn
impasse dessa figura do capitalismo ser o impasse do "capitalismo tout couri', coma democracia política o fato de ser particularmente difícil e pressupor
abre-se todo um campo de possibilidades diante deJa, desde que trabalhe em muitas coisas que devemos nos esfor~ar obstinadamente para atingir. Isso
favor de certas transformayóes económicas e políticas7. constitui um amplo programa de rigorosa política económica positiva, com
urna lista que impóe tarefas a ser cumpridas. 9
Obra da vontade, e náo produto de urna evoluyáo cega, a ordem de mer-
cado é, pois, parte de um conjunto coerente de instituiyóes conformes coma Particularmente eloquente aqui é a aprüximayáo que se faz entre eco-
moral. Os ordoliberais náo sáo os únicos na época a romper com a.: perspec- nomia de mercado e democracia política- tanto urna como a outra fazem
tiva naturalista do velho free trade, mas caracterizam-se por ter sistematizado parte do domínio· do artifício, náo da narureza.
teoricamente esse rompimento, mostrando que toda atividade de produ<;:áo e Mas esse amplo acordo sobre a crítica as ilusóes naturalistas da econo-
troca exercia-se no quadro de urna constituiyáo económica específica e de urna ··ruiapolítica clássica náo consegue dissimular certas diferenyas, ou mesmo
estrutura social construída. A crítica da economia política clássica é formulada di~ergéncias, sobre a na1:~·reza do remédio que se deve dar aos males que
de maneira particularmente clara por Eucken em 1948, no artigo citado: atingem a sociedade moderna. É com razáo, portante, que os Comentadores
Os dássicos reconheceram claramente que o processo económico da divisáo chamaram muitas vezes atenyáo para o fato de que a unidade da corrente
do trabalho impóe wna tarefa difícil e diversificada de diw;:áo. Isso já foi era problemática. É possível distinguir esquemaricamente dois grupos prin-
um resultado eminente, em rela~áo ao qual a época ulterior ficou para trás. cipais: de um lado, o dos economistas e dos juristas da Escola de Freiburg,
Viram também que esse problema sornen te poderia ser resolvido por urna entre os quais os mais importantes eram Walter Eucken e Franz Bühm; de
ordem económica (Wirtschaftsordnung) adequada. Esse foi outro reconhe-
outro lado, o de um liberalismo de inspirayáo "sociológica", cujos principais
cimento novo e de grande alcance, que também se perdeu posteriormente.
Apesar disso, a política económica, por mais que tenha sido influenciada representantes foram Alfred Müller-Armack, Wilhelm Ropke e Alexander
pelos dássicos, náo foi suficientemente orientada para o problema da or- von Rüstow10 • Os fundadores da Escola de Freiburg transformam o quadro
dena~áo (Ordnungsproblem). Os dássicos viam a solw;:áo do problema de jurídico-político em principal fundamento da economia de mercado e ob-
dire~áo na ordem "natural", na qual os pre~os de concorrencia condliZem jeto da constituiyáo econ6mica. fu "regras do jogo" institucionais parecem
automaticamente o processo. Acreditavam que a ordem natural se realiza monopolizar sua atenyáo. Os autores do segundo grupo, que náo tinham
espontaneamente e que o carpo da sociedade náo precisa de um "regime
menos inRuéncia do que os primeiros sobre as autoridades políticas, daráo
alimentar rigorosamente determinado" (Smith), portanto, de urna política
determinada de ordena~áo da economia (Wirtschaftsordnungspolitik), para
prosperar. Chegaram, a partir daí, a urna polícica do "laissez-faire" e, com
ela, ao nascimento de formas de ordem dentro das quais a dire~áo do 8 Walter Eucken, "Das ordnungspolitische Problem", cit., p. 80.
processo económico deixou aparecer danos importantes. A confianya na 9 Wilhelm Rnpke, Civitas humana ou les questions fondamentales de la réforme économique
et sociale (trad. Paul Bastier, Paris, Librairie de Médicis, I946), p. 65.
10
Já falamos dos dois últimos autores no capítulo precedente, com rela¡;áo ao papel
7 Sobre todo esse desenvolvimento, ver Michel Foucault, Naissance de la biopolitique, que tiveram nos debates do Colóquio Walter Lippmann; qUamo ao terceiro, nós o
cit., p. 170-1. apresentaremos adiante neste capítulo.
106 e A nova razao do mundo O ordoliberalismo entre "política económica'' e "política de sociedade" " 107

muito mais énfase ao quadro social em que a atividade econümica deve Estado e, desse modo, permite-se voltar contra ele a crítica que ele sempre
desenvolver-se. É o caso dos economistas com preocupa<;óes sociológicaS a
dirigiu sociedade burguesa individualista- segundo os ordoliberais, náo é
mais pronunciadas, assim como religiosas e morais, como ROpke e Von de fato a economia de ~erc~4o que é responsável pela disscilw;áo dos la<;os
Rüstow. Em poucas palavras, enquanto o primeiro grupo dá prioridade ao orgiDicos tradicionais e pela atornizayáo dos indivíduos, mas, sim, o cresci-
crescimento econ6mico, que supostamente traz em si mesmo o progresso mento do poder do Estado, cujo efeito foi destruir os lac;:os de cornunidade
social, o segundo é multo mais atento aos efeitos de desintegrayáo social entre os indivíduos 14 . É ainda a Rüpke--que caberá fornecer um fundamento
do processo do mercado e, consequentemente, atribui ao Estado a tarefa filosófico a essa crítica ao nazismo: do ponto de vista do ordoliberalismo, o
de instaurar um "rneio social" (soziale Umwelt) próprio para reintegrar os nazismo apenas levo u ao extremo a aplicac;:áo na economia e na.sociedade do
indivíduos nas comunidades. O prirneiro grupo enuncia os princípios de tipo de racionalidade que valia nas ciéncias da natureza. O coletivismo eco-
urna "política econümica'' (Wirtschaftspolitik); o segundo tenta elaborar urna n6mico aparece nessa perspectiva corno a extensáo da "eliminayao dentística
verdadeira "política de sociedade" ( Gesellschaftspolitik) 11 • a
do hornero'' prática econümica e política. Esse "napoleonismo econ6rnico"
"a
so mente pode prosperar sombra da corte rnarcial" 15 , na medida ern .que
busca o dornínio total da sociedade por intermédio de um planejamento ao
A legitimayáo do Estado pela economía qual cada indivíduo é. constrangido a obedecer. Coletivismo econ6rnico e
e seu "suplemento social" coeryáo tiriDica do Estado estáo ligados, como está.o economia de mercado e
O ordoliberalismo forneceu a justificativa doutrinal da reconstru<;áo liberdade individual. A economia de mercado é, ao contrário, um obstáculo
política alemá ocidental, fazendo da economia de mercado a base de um redibitório aqualquer "politizac;:áo da vida econ6mici'; ela impede que o poder
Estado liberal-democrático. Essa justificayáo comporta dois aspectos, um ne- polític~ decida p~lo ~onswnid~r. O princípio da "livre escolha'' aparece aqui
gativo e outro positivo. náo apenas como um princípio de eficácia econ6rnica, mas tambtrn como
Ern primeiro lugar, e esse é o aspecto negativo, a crítica ordoliberal ao wn antídoto contra qualquer desvio coercitivo do Estado.
nazismo faz deste último o resultado natural e a verdade da econornia plani- Considerada agora sob seu aspecto positivo, a originalidade doutrinal
ficada e dirigida. Longe de constituir urna "monstruosidade" ou um "carpo do ordoliberalismo, no contexto histórico da reconstruyáo das instituiyóes
estranho", o nazismo foi corno o fator revelador de urna espécie de invariante políticas alemás após a guerra, é operar, segundo a expressao de Foucault,
que une necessariamente certos elementos entre eles: economia protegida, um "duplo circuito" entre o Estado e a econornia. Se o primeiro fornece
econornia de assisténcia, economia planificada, economia dirigid~12 • Significa- o quadro de um espas:o de liberdade dentro do qua! os indivíduos podem
tivamente, Rüpke chegará a designar a economia planificada como "economia buscar seus interesses particulares, o livre jogo econ6rnico criará e legitimará
de comando" (Kommandowirtschaft) 13 ! Mas essa crítica vai ainda mais longe. em outro sentido as regras de direito público do Estado. Em outras palavras,
Ela denuncia no nazismo wna lógica de crescirnento infinito do poder do "a economia produz legitirnidade para o Estado que é fiador dela'' 16 • Nesse
sentido, o problema dos ordoliberais é rigorosamente o inverso daquele
que enfrentavam os liberais do século XVIII: nao é o de abrir espac;:o para a
11
É o que sublinha Michel Senellart, que discerne na superestimaqáo da homogeneida- liberdade econ6rnica dentro de um Estado existente que já tem legitimidade
de do discurso ordoliberal urna das limitaqóes do trabalho de Michel Foucault. Ver própria, mas, sim, o de fazer um Estado existir a partir do espa<;o preexis-
Michel Senellart, "Michel Foucault: la critique de la Gesellschaftspolitik ordolibéralc",
em Patricia Commun (org.), L'ordolibéralisme allemandaux sources de l'économie socíale
de marché, cit., p. 48.
11
Michel Foucault, Naissance de la biopolitíque, cit., p. 113.
1
' Michel Foucault, Naissance de la biopolitique, cit., p. 117.
15
10
Patricia Commun (org.), L'ordolibéralisme a!lemand aux sources de l'économie sociale Wilhelm Rüpke, Civitas humana, cit., p. 51.
de marché, cit., p. 196, nota 59. 16
Michel Foucault, Naissance de la biopolitique, cit., p. 86.
108 " A nova razáo do mundo O ordoliberalismo entre "política económica'' e "política de sociedade" • 109

ten te da liberdade econ6mica17 . Para ser compreendida, a importáncia dessa que influencio u diretamente Erhard foi Rüpke. De volta ~ Alemanha ero
legitimac;:áo do Estado mediante o crescimento econ6mico e o aumento dO 1947, depois de doze anos de exílio, ele faz a mesma análise que Eucken:
padráo de vida deve evidentemente ser reinserida na história política da o principal problema da economia alemá é a "perda da fun~áo dos pre~os
Alemanha e, ero particular, na experiencia traumatizan te do Terceiro Reich. como indicadores de escassez" 20 Em abril de 1948, Erhard visita Ropke,
Para Foucault, é isso que explica o arnplo e constante "consenso" em torno que na época residía em Genebra e, segundo urn de seus biógrafos, tomo u
dos objetivos econ6micos apresentados pelas autoridades alernás ocidentais a decisáo de fazer a reforma monetária assim que voltou da Suíc;:a21 •
em 1948. De fato, em abril de 1948, o Conselho Científico criado junto Contado, por sisó a promoc;:áo da economia ainstancia de legitimac;:áo
ao departamento de economía alernáo na zona anglo-americana- do qual náo resolve a questáo de qual exatarnente deve ser a forma da organizac;:áo
faziam parte ern especial Eucken, Bührn e Müller-Armack- envia a esse política do Estado por reconstruir. A instituic;:áo do mercado náo é suficiente
departamento uro relatório que afirma que a direc;:áo do processo econ6- para determinar a forma da construc;:áo constitucional. Embora possamos
rnico deve ser feita pelo mecanismo de prec;:os. Alguns dias depois, Ludwig admitir a tese proposta por Foucault de urna legitimac;:áo do Estado pela eco-
Erhard18 , responsável pela adrninistrac;:áo econ6mica da "bizona'', toma nomia, náo podemos nos esquecer de que no ordoliberalismo, o u ao menos
esse prindpio para si e pede que a economía seja liberada das restric;:óes do no segundo dos dais grupos discernidos antes, há também urna tentativa de
Estado. De fato, a liberalizac;:áo dos prec;:os vai ser atrelada a urna reforma legitimac;:áo da autoridade política por sua "missáo social". Considerac;:óes
rnonetária a partir de junho de 1948. Essa decisáo política vai contra a tanto morais como sociais váo permitir que se mude significativamente a
corrente do clima dirigista e intervencionista que prevalecía na época em O_rientac;:áo da doutrina. Isso porque náo se trata apenas de dizer quais sáo
toda a Europa, principalmente ero virtude das exigencias da reconstruc;:áo. os di~eitos e as libe~dades dos indivíduos; é preciso situar também as raízes
Dais homens tiveram um papel decisivo na conversáo de Erhard, e o meio concreto dos deve~~s que -eles teráo de cumprir.
reticente a esse tipo de medida-. O primeiro foi ninguém menos que o Rüpke sublinhou particularmente o fato de que wna das dinlensóes da
próprio Eucken. Em 1947, ele publica um texto com um título significa- grande crise civilizacional que levou ao totalitarismo adquire o aspecto de crise
tivo: "A rniséria econ6rnica alerná" ("Die deutsche Wirtschaftsnot"). Ele de legitimidade do Estado. Sobre o que repousar a legitimidade política? U m
mostra no artigo como a economia dirigida conduz a desintegrac;:áo do Estado legítimo é uro Estado que se indina ao direito, respeita o princípio de
sistema produtivo e aponta a responsabilidade dos Aliados nesse estado liberdade de escolha, é claro, mas tambérn é um Estado que obedece ao princí-
de coisas. A seu ver, a política aliada aparece corno continuac;:áo direta da pio de subsidiaridade, tal como defendido pela doutrina católica, isto é, respeita
política nazista: controle de prec;:os e distribuic;:áo, desmontes, confiscas o rneio de integrac;:áo dos indivíduos em esferas naturais hierarquizadas. O
etc. Ele preconiza que o sistema de economía dirigida seja revogado, atre- fundamento da ordem política náo é somente econ6mico, mas é também
lando a reforma monetária a liberalizac;:áo dos prec;:~s. Manifestamente, sociológico. Se é preferível adatar um Estado descentralizado de tipo federal,
o trabalho de persuasáo de Eucken ao longo de 1947 explica em grande que respeita o princípio de subsidiaridade baseado na ideia dessa hierarquia
parte a rapidez de execuc;:áo da reforma monetária 19 • O segundo I?ensador de "comunidades naturais", é porque apenas essa forma institucional fornece
aos indivíduos uro quadro social estável, seguro, mas também moralizante.
É essa integrac;:áo na família, na vizinhanc;:a, no bairro o u na regiáo que lhes
17
Ibidem, p. 88. dará o sentido de suas responsabilidades, o sentimento de suas obrigac;:óes
18
Ludwig Erhard, que se tornará ministro da Economia de Adenauer em 1951, é
considerado o pai do "milagre económico alemáo".
19
reabsorver o excedente do poder de compra, aumentar a veloddade da drculac;:áo da
Patricia Commun (org.), L'ordolibéralisme allemand aux sources de l'économie sociale de
moeda e restabelecer um padrao monetário de tracas (ibidem, p·, 207 -8).
marché, cit., p. 194. Iniciadaern 20 de junho de 1948, essareformamonetáriasllbstitui
20
o anrigo Reichsmark pelo Deutsche Mark e estabelece o Bank Deutscher Linder na Ibidem, p. 195.
fun~áo de banco de emissáo. Ela tem tres objetivos: diminuir a massa monetária para 21
Idem.
11 O ., A nova razáo do mundo O ordoliberalismo entre "política econOmica" e "política de sodedade" e 111

para com o outro, o gosto pelo cumprimento de seus deveres, sem os quais respeitosa da dimensáo moral do hornero, wna "organizay:io capaz de
nao há nem layo social nem felicidade verdadeira. Como veremos adiante, é funcionar e digna do Ho1Ílem" 23 . Essa organizayáo só pode ser a de urna
necessária urna política específica, de tipo "sociológico", para assegurar essa economia de mer~a~o: ?~b esse aspecto, a Ordnungspolitik visa, acima de
base moral e social do Estado, de modo que podemos falar, também nesse rudo, por meio de urna legislac_;:áo econ6mica apropriada, a determinar um
caso, em uro "duplo circuito" entre a sociedade e o Estado. A descentralizayáo "quadro" estável em que poderá desenvolver-se de modo ótimo um "proces-
a
é integrada aqui doutrina liberal de limita<;áo do poder do Estado. Ropke so" econ6mico baseado na livre concorrencia e na coordenayáo dos "planos"
explica da seguinte maneira o "princípio da hierarquia'': dos agentes econ6micos pelo mecanismo de prec;:os. Em consequencia, ela
a
Partindo de cada indivíduo e retornando central estatal, o direito original en- faz da soberania do consumidor e da concorrencia livre e náo distorcida os
contra-se no escaláo inferior, e cada escaláo superior entra em jogo subsidiaria- princípios fundamentais de toda "constituic_;:áo econ6mica''. O que funda,
mente, no lugar do escaláo imediatamente inferior, apenas quando urna tarefa entáo, a superioridade a um só tempo econ6mica e moral da economia de
ultrapassa o domínio deste último. Constitui-se, assim, um escalonamento mercado em relac_;:áo as outras ordens econ6micas possíveis?
do indivíduo, além da talha e da comuna, até o cantáo e, finalmente, até
A superioridade da economia de mercado deve-se, segundo eles,.ao fato
o Estado central, um escalonamento que, ao mesmo tempo, limita o próprio
Estado ao qual ele contrapóe o direito dos escalóes inferiores, com sua esfera
de que ela é a única forma suscetível de superar a escassez de bens (primeiro
inviolável de liberdade. Portanto, nesse sentido largamente entendido da critér-io, o u critério.da "capacidade de funcionamento") e, ao mesmo tempo,
"hierarquii', o prindpio da descentraliza~o política já implica o programa do deixar os indivíduos livres para conduzir a própria vida como bem entende-
liberalismo em seu sentido mais estendido e mais geral, um programa que, rem (segundo critério, ou critér!o da "clignidade do homern''). O princípio
desse modo, faz parte das condiyócs essenciais de um Estado sáo, de um
que, se encontra no
'
cerne ' dessa
. ordem econ6mica náo é outro senáo o prin-
Estado que estabelece para si mesmo as limitayóes necessárias e, respeitando
cípio .da concorré:ncia, e é precisamente por isso que essa ordem é superior a
as esferas livres do Estado, adquire sua saúde, forya e estabilidade. 22
todas as outras. Segundo as palavras de Bühm, o sistema concOrrencial é "o
Que ninguém se engane, portanto, como sentido que Rüpke dá a qualifi- único que dá chance total aos planos espontineos do indivíduo" e consegue
cayáo dessa base social como "natural"- o adjetivo está aí apenas para significar "conciliar os milhóes de planos esponrJ.neos e livres com os desejos dos
seu caráter de condiy:io para urna "integrac;:ao sá" do indivíduo em seu meio. consumidores", isso sem comando nem coerc;:ao legal24 • Como vimos ante-
A evoluyao das sociedades ocidentais desde o século XIX engendrou urna riormente, essa promoyao do princípio da concorrencia acaba introduzindo
desintegrac_;:áo patológica crescente dessas comunidades. Consequentemente, uro deslocamento importante coro relac_;:áo ao liberalismo clássico, na medida
compete ao Estado operar urna adaptac_;:áo permanente desses quadros sociais em que o mercado náo é mais definido pela traca, mas pela concorréncia. Se
mediante urna política específica, a qual tem dois objetivos, apresentados por a troca funciona pela equivalencia, a concorrencia implica desigualdade 25 •
Rüpke como conciliáveis e complementares: a consolidac;:ao social da economia O mais importante, porérn, é a atitude essencialrnente antinaturalista
de mercado e a integrac_;:áo dos indivíduos em comunidades locais. e antifatalista que decorre desse reconhecimento da lógica da concorrencia

A ordem da concorréncia e a "constituis:áo económica"


23
Walter Eucken, Grundsiitze der Wirtschaftspolitik (6. ed., Tübingen, J. C. B. Mohr
[Paul Siebeck], 1952), p. 239, citado por Laurence Simonin, "Le choix des regles
Assim como vimos, em seu sentido propriamente normativo, ~'ordo" constitutionnelles de la concurrence: ordolibéralisme et théorie contractualiste de
designa urna organizayáo economicamente eficaz e, ao mesmo tempo, l'État", em Patricia Commun (org.), L'ordolibéralisme allemand aux sources de l'éco-
nomie socia/e de marché, cit., p. 71.
24
Franz Bühm, "Die Idee des Ordo im Denken Walter EuCkens", Ordo, v. 3, 1950,
22
Wilhelm Rüpke, Civitas humana, cit., p. 161. Sabemos que lugar a constrúyáo euro- p. 15, citado por Laurence Simonin, "Le choix des regles constitutionnelles de la
peia reservou ao prindpio de subsidiaridade. Sobre a relayáo dessa construyáo com concurrence", cit., p. 71.
25
o ordoliberalismo, ver capítulo 7 deste volume. Ver capítulo 1 deste volume.
112 ~ A nova razáo do mundo O ordoliberalismo entre "política económica" e "política de sociedade" " 113

que rege a economia de mercado: enguanto os velhos economistas liberais experts que elaboram seus "princípios constituintes" (konstituierende Prinzi-
concluíram pela necessidade de urna náo intervenc;:áo do Estado, os ordoll- pien). Como já indica o no me·, esses princípios téni a func;:áo de constituir a
berais transformaram a livre concorréncia em objeto de urna escolha política ordem como estrutura {2_~q¡al. Sáo seis: prindpio da estabilidade da política
fundamental. É porque, para eles, a concorréncia náo é um dado natural, econ6mica, prindpio da. estabilidade monetária, princípio dos mercados
mas urna "esséncia" evidenciada pelo método da "abstrac;:áo isolante" 26 • abertos, princípio da propriedade privada, princípio da liberdade dos con-
A "reduc;:áo eidética" elaborada por Husserl é posta em prática no campo tratos e princípio da responsabilidade-dos agentes econ6micos30 •
da ciéncia económica. O objetivo é extrair o necessário do contingente,
fazendo um objeto qualquer variar pela imaginac;:áo, até que seja isolado
um predicado que náo pode ser separado dele: o invariante obtido revela Política de "ordenas:áo" e política "reguladora"
a esséncia ou eidos do objeto examinado, daí o nome de "eidética" dado Postas as regras institucionais, como definir precisamente a política
ao método. Assim, longe de repousar sobre a observac;:áo de fatos naturais, que compete ao governo conduzir? Essa política deve ser exercida em dais
o liberalismo rompe coro qualquer atitude de "ingenuidade naturalista" 27 , níveis de import<lncia: num primeiro nível, por um sólido enquadramento
justifica sua preferéncia por cena organizac;:áo económica através de urna ou mesmo por urna educac;:áo da sociedade pela 'legislac;:áo e, num segundo
argumentac;:áo racional que convida aconstruc;:áo jurídica de um Estado de nível, pela ayáo vigilante de urna "polícia dos mercados".
direito e urna ordem de mercado. Os neoliberais alemaes estáo muito distantes de urna hostilidade de
Na realidade, a política ordoliberal depende inteiramente de urna decisáo pri11cípio a qualquer intervenc;:áo do Estado. Em compensac;:áo, preten-
constituinte: trata-se de institucionalizar a economia de mercado na forma deffi'distlnguir as b9as intetvenc;:óes das más, de acordo como critério' de
de urna "constituic;:áo económica'', ela própria parte integrante do direito conformidade destds ao "modelo" proposto pela constituic;:áo. A .distinc;:áo
constitucional positivo do Estado, de maneira a desenvolver a forma de ordoliberal entre ac;:óes "conformes" e ac;:óes "náo conformes" a ordem de
mercado mais completa e mais coerente 28 • Como explicamos economistas mercado náo deve ser assimilada adistinc;:áo benthamiana de agendas e náo
e os juristas de Freiburg, o direito económico da concorréncia é urna das agendas. O critério discriminador náo é o resultado da ayáo, mas o respeito
partes importantes do sistema jurídico estabelecido pelo legislador e pela o u náo das "regras do jogo" fundamentais da ordem concorrencial. A lógica
jurisprudéncia. Eucken e Erhard chamaráo essa constituic;:áo económica de é mais procedural do que consequencialista.
"decisáo de base" o u "decisáo fundamental". Seu princípio é simples: ''A A distinc;:áo fundamental entre o "quadro" e o "processo" fundamenta
realizac;:áo de um sistema de prec;:os de concorréncia perfeita é o critério para a distinc;:áo entre os dois níveis da política ordoliberal, a saber, a política
qualquer medida de política económica'' 29 • de "ordenayáo" e a política "reguladora": as ac;:óes conformes podem per-
Todos os artigos da legislac;:áo económica devem corltribuir para assegurar tencer ao "quadro" e, nesse caso, definem urna política "ordenadora", o u
o bom funcionamento dessa lógica da "concorréncia perfeita". As diferentes de "ordenac;:áo", mas podem também pertencer ao "processo" e, nesse caso,
pec;:as do modelo ajustam-se urnas as o u tras grac;:as ao trabalho dos ~ientistas correspondem a urna política "reguladora''. Segundo Eucken, o "quadro" é
o produto da história dos homens, de modo que o Estado pode continuar
a moldá-lo por urna política ativa de "ordenac;:áo"; o "processo" da atividade
26
O original alemáo diz exatamence: "pointiert hervorhebende Abstraktion".
2
a
pertence ayáo individual, por exemplo, a iniciativa privada no mercado,
7 De acordo com a expressáo husserliana utilizada muito a propósito por Michel
Foucault, Naissance de la biopolitique, cit., p. 123.
28
Ver Fran¡_;.ois Bilger, La pemée économique libérale dans l'Allemagne contemporaine 30
Sylvain Broyer, "Ordnungstheorie et ordolibéralisme: les les:ons Cle la tradition. Du
(Poris, LGDJ, 1964), cap. 2. caméralisme al'ordolibéralisme: ruptutes et continuités?", em Patricia Commun
29
Ver Jean-Fran¡_;.ois Poncet, La politique économique de l'Allemagne occidentale, cit., (org.), L'ordolibéralisme allemand aux sources de l'économie sociale de marché, cit.,
p. 60. p. 98, nota 73.
114 e A nova razáo do mundo O ordoliberalismo entre "política económica'' e "política de sociedade" "' 115

e deve ser exclusiva e estritamente regida pelas regras da concorréncia na como func;:áo "regular" as estruturas existentes de maneira a fazé-las evoluir
economia de mercado. ·no sentido da ordem da concórréncia ou garantir -sua conformidade a essa
A política de "ordenac;:áo" visa a criar as condic;:óes jurídicas de urna or- ordem contra qualqu~~- desvi9. Consequentemente, longe -de contrariar a
dem concorrencial que funcione com base em ~m sistema de prec;:os livres. lógica da concorrénda, ela tema tarefa de afastar todos os ~bstáculos ao livre
Para retomarmos urna expressáo de Eucken, convém moldar os "dados" jogo do mercado por intermédio do exercício de urna verdadeira polícia dos
globais, aqueles que se impóem ao indivíduo e escapam ao mercado, a fim mercados, da qual é um exemplo a lura -contra os cartéis. A política conjun-
de construir o quadro da vida económica de tal forma que o mecanismo tural náo é descartada, portanto, mas deve obedecer a regra constitucional
de prec;:os possa funcionar regular e espontaneamente. Esses dados sáo as suprema da estabilidade dos prec;:os e do controle da infla~áo; e nao causar
condic;:óes de existéncia do mercado nas quais o governo deve intervir. Eles dan o a livre fixac;:áo dos prec;:os. Nema preservac;:áo do poder de compra nem
podem ser divididos em dais tipos: dados da organizac;:áo social e econó- a manuten~áo do pleno emprego nem o equilíbrio da balanc;:a comercial
mica e dados materiais. Os primeiros sáo as regras do jogo que devem ser poderiam ser os principais objetivos, necessariamente subordinados aos
impostas aos atores económicos individuais. O livre-d.mbio mundial é um "princípios constituintes".
exemplo desse tipo de dado. Também devemos incluir entre eles a ac;:áo sobre Alei de 1957 sobre a crias;áo do Bundesbanké um exemplo perfeito dessa
a mente, o u mesmo o condicionamento psicológico (o que foi chamada por orientac;:á-o, quando especifica que o Banco Central é independente e náo se
Erhard de "Seelen Massage" 11 ). Os dados materiais compreendem, de um sub mete as diretivas do governo e que sua missao principal é salvaguardar a
lado, as infraestruturas (os equipamentos) e, de outro, os recursos humanos m9eda. É preciso, portante, negar-se a intervir no "processo", em particular
(demográficos, culturais, morais e escolares). O Estado tarnbém pode agir por'iin)a política mor:tetária laxista, que se aproveitaria abusivamente da baixa
sobre as técnicas, favorecendo o ensino superior e a pesquisa, assim como dos juros para obter b pleno e~prego. Por princípio, éf política ativa de tipo
pode estimular a poupanc;:a pessoal grac;:as a sua ac;:áo sobre o sistema fiscal keynesiano é incompatível com os princípios ordoliberais. Ela favo~ece a in-
e social. Rüpke dirá que essa política de enquadramento, típica do "inter- flac;:áo e enrijece os mercados, ao passo que a política estrutural deve visar, ao
vencionismo liberal", apoia-se em contrário, a flexibilidade de salários e prec;:os. De maneira geral, seráo vedados
a
instituis:óes e disposis:óes que garantem concorréncia esse quadro, essas todos os instrumentos aos quais recorre a planificac;:áo, como fixac;:áo de prec;:os,
regras do jogo e esse aparelho de vigilllicia imparcial das regras do jogo, das apoio a dado setor do mercado, criac;:áo sistemática de empregos e investi-
quais a concorréncia tem tanta necessidade quanto um torneio, sob pena de mento público. Além de se subordinar as leis da constituic;:áo económica, a
transformar-se numa rixa feroz. De fato, urna ordenas:áo de concorréncia política reguladora é comandada por alguns princípios específicos, definidos
genuína, justa, leal, flexível em seu funcionamento, náo pode existir sem
precisamente como "reguladores" (regulierende Prinzipien): criac;:ao de urna
um quadro moral e jurídico bem concebido, sem urna: vigilancia constante
das condis:óes que permitem aconcorréncia produzir seus efeitos enquanto agéncia de controle dos cartéis, política fiscal direta e progressiva, controle
verdadeira concorréncia de rendimento. 32 dos efeitos náo desejados susceptíveis de serem causados pela liberdade de
planejamento concedida aos agentes económicos, vigilancia específica do
Quanto mais eficaz é essa política de ordenac;:áo, menos import-ante deve
mercado de trabalho 34 • Para resumirmos, a política de ordenac;:áo intervém
ser a política reguladora do processo 33 . De fato, a política "reguladora" tem
diretamente no "quadro" ou nas condic;:óes de existéncia do mercado de
modo a realizar os princípios da constituic;:áo económica; a política reguladora
31
intervém náo diretamente no "processo" em si, mas por intermédio de um
Literalmente, "massagem das almas"!
32
controle e de urna vigilancia cujo intuito é afastar todos oS obstáculos ao
Wilhelm Rüpke, Civitas humana, cit., p. 66.
livre jogo da concorréncia e, assim, facilitar o "processo".
33
Como escreveu Jean-Franyois Poncet: "Quanto mais ativa e esclarecida for á política
ordenadora, menos a política reguladora terá de se manifestar" (La politique écono-
mique de l'Allemagne occídentale, cit., p. 61). 34
Sylvain Broyer, "Ordnungstheorie et ordolibéralisme: les le~ons del~ tradition", cit.
116 • A nova razáo do mundo O ordoliberalismo entre "política económica'' e "política de sociedade" $ 117

O cidadao-consumidor e a "sociedade de direito privado" para todos uniformemente. Ao contrário, os interesses dos indivíduos
· como consumidores sáo consénsuais e comuns, mesmo que se concentrem
O ordoliberalismo visa a fundar urna ordem social e política sobre
em mercados difere~~~s: to9.os os consumidores tém, e~quanto tais, 0
um tipo determinado de relayáo social: a concorréncia livre e leal entre
mesmo interesse pelo processo concorrencial e pelo respeito as regras da
indivíduos perfeitamente soberanos de suas- vidas.- Qualquer distoryáo concorréncia. Desse ponto de vista, a "constituic;:áo econümica'' da ordem
da concorréncia traduz urna dominayáo ilegítima do Estado ou de um da concorréncia parece estar ligada -a urna espécie de contrato entre 0
grupo de interesses privados sobre o indivíduo. Ela pode ser assimilada a
consumidor-eleitor e o Estado, na medida em_ que consagra o interesse
tirania e a explorayáo. geral consagrando a soberania do consumidor3G. ·
A principal questáo para o ordoliberalismo é a do poder: a do poder Evidentemente, o Estado deve cornec;:ar por respeitar- a igualdade de
de direito de que cada indivíduo dispóe sobre sua vida - nesse sentido, a
chances no jogo concorrencial, suprimindo tuda que possa parecer privi-
propriedade privada é compreendida como um meio de independéncia -
légio ou protec;:áo concedidos a tal interesse particular ern detrimento de
e, ao mesmo tempo, a do poder ilegítimo de todos os grupos de interesses
outros37 • U m dos principais argumentos da doutrina, que encontramos em
susceptíveis de causar dano a esse poder dos indivíduos mediante práticas outras correntes liberais, diz que um dos princif,ais vieses do capitalismo,
anticoncorrenciais. O ideal social -_as vezes extremamente arcaizante,
a concentrayáo excessiva e a cartelizayáo da indústria, náo é de natureza
como em Rüpke - remete simultaneamente a urna sociedade de pequenos
endógena, mas se origina em políticas de privilégio e protec;:áo praticadas
empreendedores dos quais nenhum tem coildiyóes de exercer um poder
p~l? Estado quando se encontra sobo controle de alguns grandes interesses
exclusivo e arbitrário sobre o mercado e a urna democracia de consumidores
priVadps.'Por isso é qecessári?, um "Estado forre", cipaz de resistir a todoS os
que exercem diariamente seu poder individual de escolha. A ordem política
grupos de pressáo, livre dos dogmas-"inanchesterianoS" do Estado mínimo.
mais perfeita parece ser a que satisfaz urna multidáo de soberanos individuais
Erhard resumiu muito bem o espírito dessa doutrina ern La Prospérité
que teriam a última palavra tanto na política como no mercado. Erhard
pour tous [A prosperidade para todos]. O Estado tem um papel essencial a
ressaltava que "a liberdade de consumo e a liberdade de produyáo sáo, no
desempenhar: ele é o protetor supremo da concorréncia e da estabilidade
35
espírito do cidadáo, direitos fundamentais intangíveis" . monetária, considerada um "direito fundamental do cidadáo". O direito
Devemos notar que essa promoyáo política do consumidor, longe de
fundamental de gozar da igualdade de direitos e chances e de um "quadro
ser anódina, deve ser diretamente vinculada ao princípio constitucional estável" - sern os quais a concorréncia seria distorcida -legitima e orienta a
da concorréncia. Obviamente, os indivíduos sáo ligados entre si por ayóes
intervenc;:áo pública. A seu ver, a política consiste ern ater-se a regras gerais,
económicas nas quais intervém tanto corno produtores quanto como
sem jamais privilegiar um grupo em particular, porque isso seria introduzir
consumidores. A diferenya é que o indivíduo como produtor procura
distorc;:óes graves na destinac;:áo dos rendimentos o u na alocac;:áo dos recursos
satisfazer urna demanda da sociedade - portanto, de certo modo ele é o no conjunto da economia. Esta última é um todo cujas partes sáo ligadas
"criado" -, ao passo que como consumidor ele está em posiyáo de "co-
entre si de maneira coerente.
mandar". A tese dos ordoliberais é que existem "interesses constitucionais
Os interesses particulares e o apoio a grupos bem definidos devem ser
comuns" nos consumidores que náo exisrem nos produtores. De fato, os
proscritos, nem que seja por causa da interdependéncia de todo os fen6~
interesses dos indivíduos como produtores sáo do tipo protecionista, na menos econ6micos. Toda medida especial tero repercussóes em domínios
medida em que visam a obter um tratamento particular para pessoas ou
grupos determinados, o u seja, um "privilégio", e náo regras que valham
36 Par.a o desenvolvimento inteiro, ver Laurence Simonin, "Le choix des regles consti-
tunonnelles de la concurrence", cit., p. 70.
35 Ludwig Erhard, La prospérité pour tous (trad. Francis Briere, Paris, PloÓ, 1959),
p. 7 [ed. bras.: Bem-estar para todos, trad. Ana de Freitas, Rio de Janeiro, Livros de
37
Ve.r V~tor ~an,berg, ''LÉcole de Freiburg", em Philippe Nemo eJean Petitot (orgs.),
Portugal, 1984]. Htstozre du lzberalisme en Europe (Paris, PUF, 2006), p. 928 e seg.
118 " A nova razáo do mundo O ordoliberalismo entre "política econbmica" e "política de sociedade" " 119

que poderiam parecer absolutamente distintos, nos quais jamais se poderia É particularmente importante ressaltar esse ponto na medida em que o
imaginar que pudessem ocorrer tais incidéncias. 38
· funcionamento do sistema de 'direyáo da economi-a de mercado pressupóe-a
Mas é no ensaio hoje clássico de Bühm, "Privatrechtsgesellschaft und existencia de urna socie9,ade 9-e direito privado43 • Nessas co~diyóes, a tarefa
Marktwirtschaft" 39 [Sociedade de direito privado e economia de mercado], do governo limita-se "a estabelecer a ordem-quadro (die Rahmenordnung),
que encontramos a legitima((áO teórica mais bem-acabada e original da "pre- velar por ela e foryar sua observáncia'' 44 • O mais notável é que Bühm náo
feréncia constitucional" pela ordem da concorréncia. O autor ataca a ideia hesita em retomar por sua conta, em-bota distorcendo seu sentido, a distin-
preconcebida dos juristas de que o indivíduo, no plano do direito, é imedia- ((á.o rousseauniana de "vontade geral" e "vontade particular"45 . Cumprindo
tamente confrontado como Estado. Mostra que a Revolu((áO Francesa, longe sua missáo, o Estado age de forma imparcial e garante que a "vontade geral"
de emancipar o indivíduo da sociedade, na-realidade o "deixou na sociedade'': náo será sacrificada no altar das diferentes vontades particulares. De um
a sociedade é que foi transformada de sociedade feudal de privilégios "em lado, há todos os grupos de pressáo organizados com base em interesses
pura sociedade de direito privado" (in eine reine Privatrechtsgesel/schaft) 40 • Ele profissionais que tentam enfraquecer o mandato constitucional do Estado,
esclarece o que se deve entender por "sociedade de direito privado": "Urna fazendo prevalecer um interesse particular em detrimento da generalidade
sociedade de direito privado náo é em absoluto um simples avizinhamento de das regras do direito privado; de outro, há o lnteresse geral de todos os
indivíduos sem liga':(áo, mas urna multídáo de homens que estáo submetidos membros da sociedade pela instaurayáo e pela conservayáo de urna ordem
a urna ordem unitária (eínheitlíchen Ordnung) e, a bem dizer, a urna ordem de con correncia regida pelo direito privado. Dessa perspectiva, a "vontade
de direito (Rechtsordnung)". Essa ordem de direito privado náo estabelece geral" é a vontade de defender a generalidade das regras do direito privado,
apenas as regras a que todos os membros da sociedade sáo sub metidos quando e a "vqntade particq1ar" é a .\ontade profissional" pela qual um grupo' de
contraem contratos entre si, adquirem bens e títulos uns dos outros, coope- interesses age a firri de obter isenyó'es da lei ou urria lei específica a seu
ram uns com os outros ou trocam serviyos etc.; acima de tudo, ela outorga a favor. Enquanto em Rousseau a vontade geral constitui, como r~layáo do
todas as pessoas que se situam sob sua jurisdi((áo urna enorme liberdade de povo com ele mesmo, o fundamento do direito público, em Bühm ela tem
movimento, urna competéncia para conceber planos e conduzir a própria vida por objeto o estabelecimento e a manutenyáo do direito privado. Desse
em relayáo com os próximos, um status no interior da sociedade de direito modo, o governo é o guardiáo da "vontade geral", sen do o guardiáo das
privado que náo é um "dom da natureza'', mas um "direito civil social"; náo regras do direito privado 46 •
um "poder natural", .mas urna "permissáo social". A realidade do direito é,
pois, náo que o indivíduo enfrente diretamente o Estado, mas que se ligue a
seu Estado "pela intermediayáo da sociedade de direi~o privado" 41 • A "economia social de mercado": as ambiguidades do "social"
Inegavelmente, há nisso urna forma de reabilitayáo da "sociedade civil" Para os ordoliberais, o termo "social" remete a urna forma de sociedade
contra certa propensáo do pensamento alemáo a subordiná-la ao Estado 42 • baseada na concorréncia como um tipo de vínculo humano, urna forma
de sociedade que se deve construir e defender pela ayáo deliberada de urna
38 Gesellschaftspolitik ("política de sociedade"), como a batizaram Van Rüstow e
Ludwig Erhard, La prospérité pour tous, cit., p. 85.
Müller-Armack. Objeto de urna política deliberada, esse tipo de sociedade de
39
Franz Bühm, "Privatrechtsgesellschaft und Markrwirtschaft", Ordo jahrbuch, v. 17,
1966, p. 75-151.
40 43
Ibidem, p. 84-5. Franz Bühm, 'Privatrechtsgesellschaft nnd Marktwirtschaft", cit.,_ p. 98.
44
41
Ibídem, p. 85. Ibidcm, p. 138.
45
42
Basta pensar na maneira como Hegel faz do Estado o verdadeiro fundainento da Ibidem, em especial p. 140-1.
sociedade civil em seus Princípios da jilosojia do direito [trad. Orlando Vitorino, Sáo 46
Veremos no capítulo 5 todo o proveito que um Hayek tira dessa delimita¡;:áo do papel
Paulo, Martins Fontes, 2009]. do governo.
120 • A nova razáo do mundo O ordoliberalismo entre "política económica" e "política de sodedade'' ~ 121

indivíduos soberanos em suas escolhas é também o fundamento último de um lado, e as necessidades sociais de urna sociedade d~ massa industrial
um Estado de direito, como acabamos de ver. moderna, de outro." 49
Esse mesmo termo designa também, em sentido mais clássico, certa fé • A econornia soci¿z/.de m~rcado opóe-se a econornia liberal de mercado. A
no resultado benéfico do processo econ6mico de ~ercado, urna fé que o economia de mercado é urn desejo da sociedade, é wna escolha coletiva
título do famoso livro de Erhard já citado resume bem: La prospérité pour irrevogável. Urna ordem de mercado é urna "ordem artificial", determi-
tous [A prosperidade para todos]. Müller-Armack47 , propagador da expres- nada por objetivos da sociedade. -É- urna máquina social que necessita de
sáo "economia social de mercado", explica que a economia de mercado era regulagem, é um artifício, urn meio técnico que deve produzir resultados
chamada "social" porque obedecia as escolhas dos consumidores, realizava benéficos, desde que nenhuma lei viole as regras de mercado.
urna democracia de consumo através da concorréncia, fazendo pressáo sobre O sentido de "social", portanto, é ambíguo: ora reniete diretamente a
as empresas e os assalariadÜs para melhorar a produtividade: "Essa orien- urna realidad e construída pela ayáo política, ora procede de urna crenya nos
tayáo ao consumo equivale, na verdade, a urna prestayáo de serviyo social benefícios sociais do sistema de concorrencia perfeita. Também é muito
da economia de mercado"; acrescenta que "o aumento da produtividade, abrangente. Para Müller-Armack, urna econo,mia social de mercadO com-
garantida e imposta constantemente pelo sistema concorrencial, age do preende a política cultural, a educayáo e a política científica. O investimento
mesmo modo que urna fonte de progresso social" 48 • no capital humano,. o urbanismo, a política ambiental fazern parte dessa
Antes de se renderem, os socialistas alemáes criticaram esse conceito, política de enquadramento sociaJ_.
sob o pretexto de que a economia de mercado náo podia ser social, que Em seu sentido ordoliberal, a expressáo "economia social de mercado"
até por prindpio ela era contrária a qualquer economia baseada na so- {&Fet~ente op9sta J._ expressáo Estado de bem-estar ou Estado social. A
lidariedade e na cooperayáo social. Müller-Armack responde com dois "prosperidade para todos" é urna cÜnsequencia da economia dy mercado e
argumentos: apenas dela, ao passo que os seguros sociais e as indenizayóes de todos os
• U m sistema de economia de mercado é superior a qualquer outra forma tipos pagos pelo Estado social- um mal necessário, sern dúvida, mas pro-
de economia quando se trata de garantir o bem-estar e a seguranya visório, que tanto quanto possível deve ser limitado- podern desmoralizar
econ6mica. "É a busca de urna síntese entre as regras do mercado, de os agentes económicos. A responsabilidade individual e a caridade ern suas
diferentes formas sáo os únicos remédios verdadeiros para a pobreza.
Os ordoliberais, embora tenham influenciado muito o poder político na
17 Depois de Erhard, Müller-Armack foi o economista ordoliberal alemáo que mais se Alernanha desde o fim da guerra, náo conseguiram livrar-se de urn sistema
envolveu na implantayáo de políticas económicas. Também foi um dos homens mais
de seguros sociais que datava de Bismarck nem interromper seu crescirnento
e6cazes para fazer valer as condiyóes alemás no processo de construyáo da Europa.
Professor de economía e responsável pelo Ministério das Finanyas, faz a ponte entre como desejavam. Do rnesmo modo, tiveram de se conformar com a coges-
a teoria e a prática. Em 1946, lanya a expressáo "economia social de mercado" numa táo das empresas, urna espécie de compromisso com os sindicatos alemáes
obra intitulada Wírtschaftslenkung und Marktwirtschaft [Economia planificada e no pós-guerra. No entanto, é um completo contrassenso identificar esse
economia de mercado]. Na Universidade de ColOnia, foi sobretudo Úm dos nego-
intervencionismo social com o ordoliberalismo 50 • Segundo essa doutrina,
ciadores do Tratado de Roma de 1957 e artífice do compromisso que assegurará a
dupla assinatura. Depois disso, foi subsecretário de Estado dos Assuntos Europeus, a "política social" deveria limitar-se a urna legislayáo protetora mínima dos
a partir de 1958, e foi com grande frequénda o representante alemáo em diversas trabalhadores e a urna redistribuü;:áo fiscal muito moderada, que permitisse
negociayóes ligadas aconstruyáo europeia.
48 Alfred Müller-Armack, citado em Hans Tietmeyer, Économie socia/e de marché et 19
' Alfred Müller-Armack, Auf dem Weg nach Europa. Erin1m:ungen und Ausblícke
stabílíté monétaire (trad. Sylvain Broyer, Paris/Frankfurt, Économica/Bundesbank,
(Tübingen/Stuttgart, Rainer Wnnderlich/C. E. Poeschel, 1971), citado cm Hans
1999), p. 6. Note-se que a expressáo foi criada um ano antes de Müller-Armack
Tietmeyer, Économie socíale de marché et stabilité monétaire, cit., p. 207.
aderir a Sociedade Mont-Pelerin de Hayek e Rüpke (ele foi um dos dez primeiros
alemáes da sociedade). "
0
Ver a esse respeito o capítulo 7 deste volume, dedicado aconstr~tyáo da Europa.
122 ~ A nova razáo do mundo O ordoliberalismo entre "política económica" e "política de sociedade" e 123

a cada indivíduo continuar a participar do "jogo do mercado". Deveria de urna "máquina económica'' (Müller-Armack). A econornia de mercado
a
ater-se, assim, luta contra a exclusáo, tema que permite unir a doutrina · só pode funcionar se estiver apoiada nwna sociedade que lhe proporcione as
cristá da caridade e a filosofia neoliberal da integrayáo de todos no merca- maneiras de ser, os val?~es, os _desejos que lhe sáo necessários. A lei náo basta,
do por intermédio da "responsabilidade individual". Ropke enfatizou que sáo necessários também os costumes. Esse, sem dúvida, é o significado mais
também era tarefa do "intervencionismo liberal;'-garan1:ir aos indivíduos urn profundo da expressáo "economia social de mercado", se considerarmos que
quadro de vida estável e seguro, o que supunha náo tanto "intervenyóes de essa econornia é urna entidade global dotada de coeréncia54 .
conservayáo", mas intervenc;:óes de adapta¡;:áo, as únicas capazes de proteger O ordoliberalismo concebe a sociedade a partir de cena ideia do vínculo
os mais fracos contra a dureza das mudanc;:as econürnicas e tecnológicas. entre os indivíduos. Em matéria de relayáo social, a concorréncia é norma.
O progresso social passa pela constituic;:áo de urn "capitalismo popular", Ela caminba de máos dadas com a liberdade. Nao há liberdade sem con-
a
baseado no estímulo responsabilidade individual mediante a constitui¡;:áo corréncia, náo há concorréncia sem liberdade. A concorréncia é o modo
de "reservas" e a formac;:áo de um patrimOnio pessoal obtido gra¡;:as ao traba- de relayáo interindividual mais conforme com a eficácia econümica e, ao
lho. Erhard explica sern nenhuffia ambiguidade: "Os termos livre e social se mesmo tempo, mais conforme com as exigéncias morais que se podem
sobrepóem [... ]; quanto mais livre a econornia, rnais social ela é, e maior é o esperar do hornero, na medida em que ela perrrlite que ele se afirme como
ganho para a economia nacional" 51 . É da livre competic;:io que nascerá todo ser autónomo·, livre e responsável por seus aros.
o progresso social: "Bem-estar para todos e bem-estar pela concorréncia'' Essa concorréncia·é leal quando envolve indivíduos capazes de exercer
sáo sin6nimos 52 . Em matéria de política social, portanto, deve-se recusar o sua capacidade de julgamento e escolha. Essa capacidade depende de es-
princípio indiscriminado da proteyáo de todos. O valor ético está na luta trutu~~s jurídicas, ~as tam~~m de estruturas sociais. Surge daí a ideia' de
concorrencial, náo na prote¡;:áo generalizada do Estado de bem-estar, "em urna "política de sodedade", que logicamente completa os considerandos
que cada um enfia a máo no bolso de seu vizinho" 53 . constitucionais da doutrina. Para evitar qualquer confusáo, por!anto, de-
vemos ter o cuidado de sempre traduzir Gesellschaftspolitik por "política de
sociedade", e náo por "política social", pois o genitivo objetivo tern urna
A "política de sociedade" do ordoliberalismo funyáo essencial aqui, na medida em que significa que a sociedade é o objeto
Como vimos anteriormente, um dos aspectos importantes da doutrina é e o alvo da ac;:áo governamental, de forma alguma que essa ac;:áo deva ter o
a afirmac;:áo da interdependéncía de todas as institui¡;:óes, assim como de todos propósito de transferir as rendas mais altas para as rendas mais baixas. É por
os níveis da realidade hrnnana. Aordern política, os fundamentos jurídicos, os isso que Foucault tem toda a razáo de falar aqui de "governo de sociedade",
valores e as mentalidades fazern parte da ordem global, e todos térn efeito sobre em oposiyáo ao "governo económico" dos fisiocratas 55.
o processo económico. Os objetivos da política comp~eenderáo logicamente Rüpke é incontestavelmente um dos que mais teorizaram essa especifi-
rnna ayáo sobre a sociedade e o quadro de vida, com o intuito de conciliá- cidade da política de sociedade. Para defender a economia de mercado
-los com o bom funcionamento do mercado. A doutrina leva, P?rtanto, a contra o veneno mortal do coletivismo, é importante, escreve ele em suas
reduc;:áo da separa¡;:áo entre Estado, economia e sodedade, tal como existia muitas e copiosas obras, criticar o capitalismo histórico, isto é, a forma
no liberalismo clássico. Ela embaralha as fronteiras, considerando que todas concreta que o princípio de ordem da economía de mercado tomo u 56.
as dimensóes do hornero sáo COJ;llO pec;:as indispensáveis ao funcionamento

Remeter-se aesse respeito aleirura de Michel Foucault emNaissance_de la biopolitíque,


54

51 Ludwig Erhard, citado em Hans Tietmeyer, Économie sociale de marché et stabilité cit., p. 150. Ver também o artigo de Michel Senellart, "Mtch,el Foucaulr", cit.,
monétaire, cit., p. 6. p. 45-8.
52 55
Ludwig Erhard, La prospérité pour tous, cit., p. 3. Michel Foucault, Naissance de la biopolitíque, cit., p. 151; grifo nosso.
53 56
Ibidem, p. 133. Ver Wilhelm Rüpke, Civitas humana, cit., p. 26.
124 ~ A nova razao do mundo O ordoliberalismo entre "política económica" e "política de sociedade" ~ 125

Esta última continua a ser o melhor sistema económico e, como vimos, o política de sociedade que repouse sobre urna nova base" 61 . Essa política que
único sustentáculo de um Estado genuinamente liberal. Mas a economía de pretende produzir indivíduos capazes de escolhas responsáveis e ponderadas
mercado "foi distorcida e desfigrnada pelo monopolismo e pelas usurpac;:óes deve procurar descentralizar as instituic;:óes políticas, descongestionar as
irracionais do Estado" 57, a tal ponto que o capitalismo, em sua forma atual, cidades, desproletailZJ.r e -desagregar as esrruturas sociais, desmonopolizar
tornou-se urna "forma conspurcada, adulterada da economia de mercado" 58• a economía e a sociedade- em suma, ela deve procurar fazer urna "econo-
O "humanismo económico'', alnda denominado "terceira via", apoia-se num mía humana'', segundo a expressáo que ROpke tanto aprecia, e da qual vé
liberalismo sociológico (soziologische Liberalismus) "contra o qua! perdem o exemplos nas aldeias do cantáo de Berna, compostas de pequenas e médias
gume as armas forjadas para atacar o antigo liberalismo puramente econO- fazendas e empresas artesanais.
mice" 59. ROpke admite que o antigo liberalismo ignorava a sociedade ou O aspecto arcaizante e nostálgico desse liberalismo sociológico náo conse-
supunha que ela se adaptava espontaneamente aordem de mercado. Isso era gue esconder o fato de que o conjunto dos neoliberais deve responder a um
urna cegueira culpada, produzida pelo racionalismo otimista das Luzes, que problema crucial. Como reabilitar a economía de mercado, como continuar
ignorava o lac;:o social, a divers'idade de suas formas, os contextos "naturais" a acreditar na soberanía plena do indivíduo no contexto do gigantismo.da ci-
em que desabrochava. Convém definir, entáo, as condic;:óes sociais de fun- vilizac;:áo capitalista industrial e urbana? O problema apresentou-se a Hayek,
cionamento do sistema concorrencial e considerar as reformas que devem e ele foi abrigado a distinguir entre a "ordem espontinea'' das interac;:óes
ser feitas para obré-las. É isso que especificará essa "terceira via'' como a via individuais e a "organizac;:áo" que repousa sobre urna concertac;:áo deliberada,
do "liberalismo construtor" e do "humanismo eco nO mico", táo estranhos em particular a da produc;:áo moderna, tanto nas empresas capitalistas como
ao coletivismo como ao capitalismo monopolista, dois tipos de economía nÜs:?-parelhos administrativos do Estado 62 • Em que medida ainda se pode
que favorecem o comando, o despotismo, a dependéncia. fazer' do indivídud indepelldente,_ consumidor e produtor, a entidade de
A questáo que se coloca na-obra de ROpke é esta, portante: de que tipo referéncia da ordem eco nO mica de mercado? ROpke tem o méi-ito de náo
deve ser a sociedade na qual o consumidor poderá exercer plena e conti- se esquivar do problema. Se quisermos evitar a "sociedade de formigas"
nuamente seu direito de escolher, com toda a independéncia, os bens e os do capitalismo das grandes unidades e do coletivismo, devemos tratar de
servic;:os que mais o satisfac;:am? fazer com que as estruturas sodais fornec;:am aos indivíduos as bases de sua
Essa "terceira via", que se distingue do constitudonalísmo mais estrita- independencia e sua dignidade.
mente jurídico dos fundadores da Escala de Freiburg por urna dimensáo Foucault vi u claramente o equívoco dessa "política de sociedade" 63. Ela
moral mais pronunciada, deve responder a um desafio muito mais vasto do deve evitar que a sociedade seja inteiramente tomada pela lógica de mercado
que os desregramentos econümicos. Ela deve remediar urna "crise total de (prindpio de heterogeneidade da sociedade e da economía), mas deve fazer
nossa sociedade". O que explica que essa "política de estrutura'' 60 seja mals igualmente com que os indivíduos se identifiquem com microempresas,
bem definida como urna "política de sociedade", isto é, urna política que visa permitindo a realizac;:áo de urna ordem concorrencial (prindpio de homo-
a urna transformac;:áo completa da sociedade, num sentido evidentemente geneidade da sociedade e da economía). "Economía de mercado e sociedade
muito diferente do coletivismo. A fórmula decisiva é dada em C{vitas huma-
na: "Mas a própria economía de mercado só pode durar por meio de urna
61
Ibidem, p. 74. Modificamos a traduyáo, traduzindo Gesellschaftspolitik por "políti-
ca de sociedade", e náo "política social", pelas razóes explicadas anteriormente. A
frase alemá é a seguinte: "Die Marktwirtschaft selbst ist aber nur zu halten bei einer
57
Ibidem, p. 37. widergelagerten Gesellschaftspolitik" (Civitas humana. Grundfragen der Gesellschaftund
58
Ibidem, p. 65. Wirtschaftsrefonn, Erlenbach/Zurique, Eugen Rentsch, 1944, 85). p.
9 62
" Ibidem, p. 43. Ver capítulo 5 deste volume.
63
60
Ibidem, p. 69. Michel Foucault, Naíssance de la biopolitique, cit., p. 246-7.
1.26 ., A nova razáo do mundo O ordoliberalismo entre "política económica" e "política de sociedade" "' 127

náo comercializada completam-se e amparam-se mutuamente. Com¡)reen- cidadáos da coisa pública, seres de carne e sangue, com pensamentos e
dem-se mutuamente como espayo vazio e quadro, como urna lente convexa sentimemos eternamente humanos pendendo para a jusüya, a honra, a
ajuda mútua, o sentido do interesse geral, a paz, o trabalho bem feito, -
e outra cóncava que juntas criam a objetiva fotográfica'' 64 .
a beleza e a paz cl__a_natureza. A economia de mercado. é sornente urna
Esse ponto merece ser examir~ado com atenyáo. Devemos enquadrar organizaifáO determinada e, como vimos, absolutamente indispensável
a economia de mercado, situá-la firmemerite no -"quadro sociológico- dentro de um estreito domínio em que ela encontra seu lugar devido e
-antropológico" do qual ela se nutre, mas jamais perder de vista que ela náo deformado; entregue a si me~ma, seria perigosa e ·até insustentável,
deve também se distinguir dele. porque reduziria os homens·a urna existCncia totalmente antinatural, e
eles, cedo ou tarde, rejeitariam tanto essa organizayáo como a economia
A economia de mercado náo é tuda. N urna sociedade viva e saudável, ela de mercado, que entáo lhes seria odiosa. 67
tem lugar marcado ande náo se pode prescindir dela, e ande é preciso que
seja pura e límpida. Mas ela degenera infalivelmente, apodrece e envenena A principal causa da grande crise social e moral do Ocidente que conduz
com seus germes pútridos todas as outras fra¡;:óes da sociedade se, ao lado direto ao coletivismo deve-se ao fato de que o quadro social náo é suficiente-
desse setor, náo houver outros: os seto res do abastecimento individual, da mente sólido. Náo foi a economia de mercado que náo funcionou, foram as
economia de Estado, do planismo, da dedica¡;:áo e da simples e náo comercial
estruturas de enquadramento que cederam. R6pke pensa a crise social como
humanidade. 65
um rompimento dos diques que deveriam "conter'' o mercado: "As bordas
O mercado deve encontrar seus limites nas esferas livres da lógica mer- carunchosas trouxeram a ruína da economia liberal dos tempos passados e,
cantil: a autoprodw;áo, a vida familiar, o setbr público sáo indispensáveis a ao mesmo tempo, de todo o sistema social do liberalismo" 68 •
exisréncia social66 . Essa exigéncia de pluralidade das esferas sodais náo está - · Qual é o reméd~o, entáo? Se a economia de mercado é como um vazio,
a
ligada a urna preocupac;áo de eficácia o u justiya, mas, sim, natureza plural con~em consolidai novamerite as bordas, adotar urna política que "visa a
do hornero, coisa que o "velho _liberalismo económico" náo compreendeu. urna maior solidez do quadro sociológico-antropológico" 69 •
O layo social náo pode reduzir-se a urna relac;áo comercial. Esse "programa sociológico" compreende diversas vias- descentralizayáo,
Perdera-se de vista que a economia de mercado é urna seifao estreita da desproletarizayáo, desurbanizayáo -,todas tendendo a um objetivo comum:
vida social, que é enquadrada e mantida por um domínio bem mais am- urna sociedade de pequenas unidades familiares de habitayáo e produyáo,
plo: campo exterior em que os homens náo sao concorrentes, produtores, independentes e concorrendo urnas com as ourras. Cada indivíduo deve
comerciantes, consumidores, membros de sociedades de explorayao,
ser inserido profissionalmente num quadro de trabalho que lhe garanta
acionistas, poupadores, mas simplesmente homens que náo vivem só de
páo, membros de famílias, vizinhos, correligionários, colegas de profiss:io, independencia e dignidade. Em urna palavra, cada indivíduo deve gozar das
garantias oferecidas pela pequena empresa o u, melhor, cada indivíduo deve
funcionar como uma pequena empresa. Vemos aqui o equívoco apontado por
64
Wilhehn Rópke, Civitas humana, cit., p. 74. Essa imagem do quadro e do vazio, da Foucault: o que deveria funcionar como um Jora do mercado que o limita
borda e do oco, nao deixa de lembrar a temática do encastramento (embeddedness) do exterior é pensado precisamente sobo modelo de um mercado atomístico,
de Karl Polanyi. Dos mesmos sintomas da crise da civilizayáo capitalista, Rópke e
composto de múltiplas unidades independentes.
Polanyi extraem consequencias políticas diametralmente apostas.
65
Ibidem, p. 72.
66
Em La crise de notre temps (trad. Hugues Faesi e Charles Reichard, Paris, Payot,
1962), p. 136, Rópke afirma nessamesma linha: "O prindpio do mercado pressupóe
certos limites e, se a democracia deve ter esferas livres da influénda do Estado para
nao cair no despotismo desmedido, a economia de mercado deve ter esferas que nao 6
7 Wilhelm Rópke, Civitas humana, cit., p. 71-2.
sejam submetidas as leis de mercado, sob pena de tornar-se intolerável: a esfera do
68
autoabastecimento, a esfera das condiyóes de vida por mais simples e modestas que Ibidem, p. 73.
69
seja, a esfera do Estado e da economia planificada''. lbidem, p. 74.
128 ~ A nova raz:lo do mundo O ordoliberalismo entre "política económica'' e "política de sociedade" " 129

A pequena empresa como remédio para a proletariza~ao depender de subsídios coletivos. O grande perigo é que o desenraizamento
Examinemos mais de perta a crítica de Rüpke aproletariza¡;áo, principal proletário e a perda de toda propriedade pessoal que caracterizam essa
fator do coletivismo. A sociedade industrial conduziu a um desenraizamento situayáo levem a essa nova escravidáo do Estado de bem-estar: "Quanto
urbano e a um nomadismo sem precedentes de massas assalariadas: "É um mais se estende a prOletariza¡;áo, mais impetuosamente' afirma-se o desejo
estado patológico como nunca existiu antes, em tal amplitude, no curso da dos desenraizados de fazer o Estado lhes garantir o necessário e a seguranya
história'' 70 . Resgatando acentos que pouco se ouviam na sociologia desde económica e mais desaparecem ()S restos da responsabilidade pessoal"74 •
Auguste Comte, Rüpke mostra que esse nomadismo proletário ligado ades- Desproletarizar as massas desenraizadas pelo capitalismo industrial náo é
truiyáo do campesinato e do artesanato pela grande explorayáo concentrada torná-las seguradas socialmente, mas proprietárias, poupadoras, produto-
criou um grande vazio na existéncia de milhóes de trabalhadores, privados ras independentes. Para Rüpke, a propriedade é o único meio de enraizar
de seguranya e estabilidade, "assalariados urbanizados, sem independéncia, de novo os indivíduos em um meio, dar a eles a seguranya que desejam,
sem propriedade, inseridos em explorayóes gigantescas da indústria e do motivá-los para o trabalho: "NossO dever é conservar e aumentar com todas
comércio" 71 • Em razáo do vazio que criou, a proletarizayáo é analisada como as nossas foryas o número de camponeses, artesáos, pequenos industriais e
urna perda de autonomia da existéncia e um isolamento social: comerciantes, em resumo, todos os indivíduos·independentes, munidos de
propriedade de prodm;:áo e habitayáo" 75 . A economia de mercado precisa
A proletariza~:io significa que homens caem numa situa~:io sociolügica
desse "sustentáculo humano", desses "homens solidamente ancorados na
e antropológica perigosa, caracterizada por falta de propriedade, falta
de reservas de toda natureza (inclusive la~os familiares e de vizinhanqa), "':ida, grayas a seu tipo de trabalhü e vida'' 76 •
dependencia económica, desenraizamento, alojamentos de massas seme- · ~ssa idealiza¡;~o da explorayáo familiar que inspira a política de
lhantes a casernas, militarizac;::io do trabalho, distanciamento da natureza, resta~rayáo da prbpriedade individual, vista como ponto essencial da
mecanizac;::io da atividade produtora, em resumo, urna desvitalizac;::io e reforma social, nunca dá a entender, porém, que todos os a'ssalariados
despersonaliza~:io gerais. 72
se tornaráo de fato pequenos danos de empresa. Trata-se antes de um
A política de sociedade deve ter como prioridade "preencher o fosso que modelo social, do qual cada indivíduo poderá aproximar-se e apreciar os
separa os proletários da sociedade burguesa, desproletarizando-os, fazendo- benefícios morais e materiais, gra'faS apropriedade de sua casa e ao cultivo
-os, no verdadeiro e nobre sentido da palavra, burgueses, cidadáos, isto é, de sua harta: "Ternos convicyá~ de que a horra nos fundos de casa fará
auténticos membros da civitas" 73 . Essa política de integra¡;io, cujo campo já milagres", exclama Rüpke 77 . Com a harta, grayas a autoproduyáo que
fora esboyado por Von Rüstow durante o Colóquio Lippmann, passa pelo poderá realizar, o assalariado será seu mestre, como um empreendedor
desenvolvimento da pequena exploras:áo familiar e pela difusáo da proprie- que teria sobre os próprios ombros toda a responsabilidade pelo processo
dade num contexto de pequenas cidades ou aldeiaS, nas quais se podem de produ'fáO. Tornando-se proprietário e produtor familiar, o indivíduo
estabelecer layas de conhecimento mútuo. Tal política opóe-se, portanto, recuperará as virtudes da prudéncia, da seriedade e da responsabilidade,
ao Estado social, que apenas diminui um pouco mais o homem, fazendo-o táo indispensáveis a economia de mercado. Esta última necessita que as
estruturas sociais lhe forneyam homens independentes, corajosos, hones-
70
tos, trabalhadores, rigorosos, sem os quais ela só pode degenerar num
Ibidem, p. 228.
hedonismo egoísta. Essa dimensáo moral da pequena empresa constitui
71
lbidem, p. 229.
71 lbidem, p. 230 74
73
Ibidem, p. 231.
Ibidem, p. 167. Note-se que Rüpke joga deliberadamente coma ambiguidade da 75
palavra Bürger, que significa tanto "hurgues" como "cidad:io". Esse jogo diz nmito Ibidem, p. 257.
7
a respeito da tendencia do neoliberalismo de diluir a distiny:io entre o económico r, Wilhelm ROpke, La crise de notre temps, cit., p. 198.
e o político. 77
Ibidem, p. 152.
130 " A nova razáo do mundo O ordoliberalismo entre "política económica" e "política de sociedade" ., 131

o que ele charna significativamente de "núcleo carnpones da econornia da guerra83, nos quais rejeita as oposiyóes radicais entre as "soluyóes totais"
política'' 78 • So mente quando o "código da honestidade", a ética do traba- dos fanáticos:
lho e a preocupayáo corn a liberdade estáo suficientemente enraizados no Por que continuar a R_Ü!_ ~ll_l formaqáo de batalha, urn em f~ce do outro, o
indivíduo é que se pode desenvolver no mercado urna concorrencia leal e liberalismo e o intervencionismo, se ern verdade pode tratar-se apenas de
sadia e que o equilíbrio social pode ser recuperado. Ern urna palavra, os urn pouco rnais ou um pouco menos de liberalismo, e náo um brutal sim
"diques" rnorais que perrnitern que os indivíduos "se rnantenharn de pé" ou náo, já que o liberalismo integral_~-uma irnpossibilidade e o interven-
cionismo integral extingue-se por si mesmo e torna-se puro comunismo? 84
sáo identicos aos que perrnitern "rnanter de pé" a econornia de mercado.
a
Eles repousarn sobre a generalizayáo efetiva do modelo de empresa escala Contudo, em outros textos, o discurso é-muito mais ambicioso. A "ter-
da sociedade corno urn todo. A empresa pequena ou rnédia é a rnuralha ceira via'' define um liberalismo sociológico "construtor" que tem como
contra os desregrarnentos introduzidos pelo capitalismo, exatarnente objetivo urna remodelayáo social completa, indispensável para remediar a
do rnesrno modo corno as comunidades naturais, dentro do princípio grande crise de nossa época. Ele define a Gesellschafispolitik como
federalista de subsidiaridade, constituern os limites do poder do Estado. urna política que perseguirá em uníssono a restauraqáo da liberdade
econ6mica, a hurnanizaqáo das condiqóes de tfabalho e vida, a supressáo
da proletarizaqáo, da despersonalizaqáo, do desenquadramento social, da
A "terceira via'' formaqáo em massa, do gigantismo e do privilégio, e outras degeneraqóes
patológicas do capitalismo, tal política é mais do que urna simples reforma
O neoliberalisrno de Rüpke é urn projeto social que visa a urna "orga- econ6mica e social. [... ]Todas as desordens econ6micas de nosso ternpo
nizayáo econ6rnica de hornens livres" 79 • Segundo ele, so mente se é livre ~áo apenas os simomas s~p,erficiais de urna crise total de nossa sociedade,
quando se é proprietário, rnernbro de urna cornunidade natural familiar, e é corno tal qu~ devemos tratá-la e CUl'á-la. Assini,- urna reforma econó-
empresarial e local, podendo contar corn solidariedades próximas (farnília, mica eficaz e duradoura deve ser, ao mesmo tempo, urna reformd radical
amigos, colegas) e tendo energia para enfrentar a concorr€:ncia geral. Essa da sociedade. 85
"terceira via'' situa-se entre o "darwinisrno social" do laissezjaire e o Estado É talvez por essa énfase no aspecto moral do "espírito de empresa'', da
a
social que cuida do indivíduo do beryo sepultura80 • Ela deve fundar-se "responsabilizayáo individual", da "ética da competiyáo", que o liberalismo
na ideia da "responsabilidade individual": "Quanto rnais o Estado cuidar sociológico de Rüpke esclarece táo bem os esfon;:os feitos para transformar
de nós, menos inclinayáo terernos para agir por nossas próprias foryas" 81 • a
a empresa numa espécie de forma universal que dá autonomia de escolha
A propriedade e a empresa sáo, pois, os quadros sociais dessa autonornia dos indivíduos o poder de se exercer.
da vontade econ6rnica: ''O carnpones sern dívidas, que possua urna terra É provável que a exaltayáo das virtudes da vida camponesa nos fa<;:a rir
suficientemente grande, é o hornern rnais livre do n'osso planeta" 82 • hoje por seu romantismo e seu vitalismo um tanto antiquados. A contri-
Essa terceira via tern vários rostos. Poderíarnos ver nela apenas urna a
buic;áo fundamental de Ropke governamentalidade neoliberal reside, na
fórmula de cornprornisso, urna espécie de via média entre o liberalismo e verdade, no fato de recentrar a interven<;:áo governamental no indivíduo para
o planismo. É o que Rüpke dá a entender em cenos textos escfitos antes conseguir que ele organize sua vida, o u seja, a rela<;:áo que tem com sua pro-
priedade privada, sua família, seu c6njuge, seus seguros e sua aposentadoria,

78 Wilhelm Rüpke, Civitas humana, cit., p. 290.


79 Idem, La críse de notre temps, cit., p. 201. 83
Como, por exemplo, em Wilhelm Rüpke, Explication économique du monde moderne
80
Ibidem, p. 183 (trad. Paul Bastier, Paris, Librairie de Médicis, 1940), p, 281.
84
81
ldem. Ibidem, p. 282.
8
82
lbidem, p. 227. " Ibidem, p. 284-5.
132 • A nova razáo do mundo

de modo que essa vida faya dele "urna espécie de empresa permanente e
múltipla'' 86 • Devemos ressaltar aqui a que ponto essa promoyáo do modelo de
empresa auniversalidade nos distancia de Locke. Para este último, o sentido
amplo da nos:áo de "propriedade" tinha a funs:áo de legitimar a propriedade
4
dos bens exteriores como extensáo da propriedade de si mesmo realizada pelo
O HOMEM EMPRESARIAL
trabalho. Para alguns neoliberais contemporáneos, tanto a relayáo consigo
mesmo como a relayáo com os bens exteriores devem tomar como modelo
a lógica da empresa como unidade de produyáo em concorréncia com os
outros. Em outras palavras, náo é o resultado do trabalho que é anexado a
pessoa, como um prolongamento dela, mas é o governo que o indivíduo
tem de si que deve interiorizar as regras de funcionamento da empresa; náo
é o exterior (ou seja, o resultado do trabalho) que é levado para o interior, Náo captaríamos a originalidade do neolibüalismo se náo víssemos seu
masé o exterior (ou seja, a empresa) que fornece ainterioridade da relayáo ponto focal na relayáo entre as instituiyóes e a ayáo individual.- De fato,
consigo mesmo a norma de sua própria reorganizayáo. quando-se deixa de considerar natural a conduta econúmica maximizado-
Em última análise, ainda que a coeréncia de conjunto da doutrina seja ra, condiyáo absoluta do equilíbrio geral, convérn explicar os fatores que a
problemática, o legado político que os dais ramos do ordoliberalismo alemáo in~uenciam, a rnaneira como ela se aproxima de certo grau de eficiéncia,
deixaram ao neoliberalismo contemporáneo consiste em duas coisas essen- seái'ijwica consegq_ir alcans;ar a perfeiyáo. fu diferenyas entre os autóres
ciais. Em primeiro lugar, a promoyáo da concorréncia a urna norma cujo neoliberais estáo ligadas, ern parte, -a soluyáo que eles dáo a esse problema.
intuito é orientar urna "política de ordenayáo": embora a epistemologia de Enquanto os principais responsáveis pelo "renascimenro neoliberal" -
Eucken tenha caído amplamente no esquecimento, salvo em certos círculos Rougier, Lippmann e os ordoliberais alemáes - destacam a necessidade
de especialistas, os princípios da "constituiyáo eco nO mica'' continuam a ser da intervenyáo governamental, Von Mises se recusa a definir a funyáo das
invocados para avaliar medidas de política eco nO mica, ainda que isso termine instituiyóes em termos de intervencionismo. E até proclama em alto e bom
muitas vezes numa lenga-lenga formal. Em segundo lugar, a atribuiyáo de som o apego que tem ao princípio do "laíssezjaire": "Dentro da economia
um objeto absolutamente específico aayáo política, a saber, a "sociedade" de mercado, um tipo de organizayáo social centrado no laíssez-faire, existe
até ern sua trama mais fina e, portanto, o indivíduo como foco do governo um domínio no qual o indivíduo é livre para escolher entre diversos modos
de si mesmo e ponto de apoio do governo da conduta. É nisso, de fato, que de agir, sem ser tolhido pela ameaya de ser punido" 1 • Lendo tais passagens,
devemos situar o sentido profundo da universalizayáü da lógica da empresa ternos a impressáo de que com Von Mises - como, aliás, observou Von
preconizada pela "política de sociedade" em sua forma mais bem-acabada. Rüstow ern 1938 - voltamos as apologias mais dogmáticas do laissezfaire
como fonte de prosperidade para todos e cada wn.
Seria precipitado concluir a partir daí que essa corren te de pensarnento
náo traz nada de novo e contenta-se com um simples retorno ao liberalismo
dogmático. Significada, sobretudo, desprezar urna mudanya importante na
argumentayáo, que reside na valorizayáo da concorréncia e da empresa como

1
Ludwig van Mises, L'action humaine: traité d'économie (trad. Raüul Audouin, Paris,
PUF, 1985), p. 297 [ed. bras.: A ardo humana: um tratado de economia, 2. ed., Rio
s6 Michel Foucault, Naissance de la biopolitique, cit., p. 247. de Janeiro, Instituto Liberal, 1995].
134 " A nova razáo do mundo O homem empresarial o 135

forma geral da sociedad e. Obviamente, o ponto comum com o liberalismo modo, como diz muito apropriadarnente Thomas Lemke em seu comentário
clássico é ainda a exigéncia de que se justifique a limitattáo do Estado em sobre Michel Foucault, o neoliberalismo apresenta-se como wn "projeto
no me do mercado, sublinhando o papel da liberdade económica na eficdcia político que tenta criar urna realidade social que supostámente já existe" 5.
da máquina econ6mica e no prosseguimento do processo de mercado. Daí É precisamente es.Sa--diffiensáo antropológica do homero-empresa que,
certa confusáo que leva a entender que Von Mises ou Hayek sáo apenas de um modo diferente daquele da sociologia ordoliberal, será a principal
"fantasmas" do velho liberalismo manchesteriano. contribuiyáo dessa corrente.
O que pode engarrar na atitude austro-americana2 é seu "subjetivismo" 3 Os caminhos estratégicos promovidos pelo neoliberalismo - criayáo de
mais ou menos pronunciado, que chegou a levar certos discípulos de Von situattóes de mercado e produttáo do sujeito empresarial- devem-se muito mais
Mises, como Murray Rüthbard, ao "anarcocapitalismo", isto é, negattáo a a
a ela do que economia neoclássica. No programa neoclássico, a concorrencia
radical de qualquer legitimidade da entidade estatal. Sem ignorar o que resta sempre remete a certo estado e, nesse sentido, tem muito mais a ver com urna
ainda de bastante "clássico" nessa orientayáo, que a coloca longe da inspira- estática do que coro urna dinámica. É, mais especificamente, um cánone pelo
yáo construtivista do neo liberalismo, é importante destacar a contribuiyáo qual é possível julgar diversas situayóes em que se encontra um mercado e, ao
original do pensarnento desses autores. Esse pensamento é inteiramente mesmo tempo, o quadro em que a ayao racional dos agentes pode idealmente
estruturado pela oposiyáo de dois tipos de processo: um de des~ruiyáo e conduzir ao equilíbrio. Toda situayá.o que náo corresponde as condiyóes da
outro de construyáo. O primeiro, que Von Mises chamou de "destrucionis- concorrénda pura e perfeita é considerada urna anomalia que impossibilita
mo", tem como agente principal o Estado. Repousa sobre o encadeamento a realizay<'io da harmonia preconCebida entre os agentes económicos. Desse
perverso de ingerencias do Estado que levam ao totalitarismo e regressáo a . m~_do; a teoria neoclássica é levada a prescrever um "retorno" as condiyóes
económica. O segundo, que corresponde ao capitalismo, tem como agente da ~onCorréncia ~stabdeddas a priori como "normais". Se é certo que o
o empreendedor, isto é, potencialmente qualquer sujeito económico. programa neoclássico deu ao discrnso do livre mercado urna firme cauyao
a
Dando enfase ayáo individual e ao processo de mercado, os autores academica, em particular sob a forma do "mercado eficiente" das finanyas
austro-americanos visam, em primeiro lugar, a produzir urna descriyáo globais, é errado pensar que a racionalidade neoliberal repousa exclusiva o u
realista de urna máquina económica que tende ao equilíbrio, quando náo principalmente sobre o programa walrasiano-paretiano do equilíbrio geral.
é perturbada por moralismos ou intervenyóes políticas e sociais destruido- Urna concepyáo muito diferente da concorréncia- que tem apenas o no me
ras. Em segundo lugar, visam a mostrar como se constrói na concorréncia em comurn coma versáo neoclássica- constitui o fundamento específico do
geral certa dimensáo do hornero, o entrepreneurship\ que é o princípio de concorrencialismo neoliberal. O grande passo adiante dado pelos austría-
a
conduta potencialmente universal mais essencial ordem capitalista. Desse cos Von Mises e Hayek consiste em ver a concorréncia no mercado como
um processo de descoberta da informayáo pertinente, como certo modo
de conduta do sujeito que tenta superar e ultrapassar os outros na deseo-
2
O adjetivo "austro-americano" designa aqui os economistas que imigraram para os berta de novas oportunidades de lucro. Em outras palavras, radicalizando
Estados Unidos ou os norte-americanos que se alinharam aescoJa austríaca moderna,
e sistematizando numa teoria coerente da ayáo humana alguns aspectos
cujas duas figuras te6ricas e ideol6gicas mais importantes sáo Ludwig von Mises e
Friedrich Hayek. Além das teorías destes últimos, daremos realce mais particularmente já presentes no pensamento liberal clássico (desejo de melhorar a própria
aos desenvolvimentos da doutrina produzidos por Israel Kirzner. sorte, fazer melhor do que o outro etc.), a doutrina austríaca privilegia urna
3 Em The Counter-Revolution ofScience (Nova York, The Free Press, 1955, p. 31), Frie- dimensao agonística: a da competiyáo e da rivalidJ.de. A partir da lutados
drich Hayek escreve que todo avans:o importante na teoria económica nos últimos
cem anos foi um passo adiante na aplicas:áo coerente do subjetivismo. Nesse ponto,
faz urna homenagem clara a Von Mises, a quem considera seu mestre. 5 Thomas Lemke, "The Birth ofBio-Politics: Michel Foucault's Lecture at the CoW:ge
4 Esse termo é traduzido em francés por entrepreneurialité. [Em portugués, traduz-se de France on Neo-Liberal Governmentality", Economy and Society, v. 30, n. 2, 2001,
por "empreendedorismo"- N. T.] p. 203.
136 o A nova raz:áo do mundo O homem empresarial " 137

agentes é que se poderá descrever náo a formac;áo de um equilíbrio definido diminá-las, e assim sucessivamente até se instaurar um soc~alismo totalitário.
por condiyóes formais, mas a própria vida económica, cujo ator real ·é o Essa cadeia de reayóes é faCilitada pela ideologia da democracia ilimit~da,
empreendedor, movido pelo espírito empresarial que se encontra em graus baseada no mito da soberania do pavo e da justiya social.
diferentes em cada um de nós e cujo único freio é o Estado, quando este Desse ponto de--~ista-, ~áo existe urna terceira via possível entre o free
trava o u suprime a livre competiyáo. market e o controle do Estado. Para Von Mises, a intervenyáo é, por defi-
Essa revoluyáo na rnaneira de pensar inspirou inúmeras pesquisas, niyáo, um entrave aeconomia de mercado. Por isso, náo poupa críticas aos
como aquelas, em plena expansáo, sobre inovayáo e informayáo. Mas, ordoliberais, esses "intervencionistas que procuram soluyóes 'ern cima do
sobretudo, ela exige urna política que vai muito além dos mercados de muro"' 7 • Sem temer o exagero, Von Mises vé esses teóricos romo capachos-
bens e serviyos e diz respeito a totalidade da ayáo humana. Embora se involuntários, sem dúvida - da ditadura. Eles náo se dáo canta, segundo
considere típica de urna política neo liberal a construyáo de urna situayáo ele, que váo na direyáo do despotismo económico absoluto do governo,
económica que a aproxime do cinone da concorréncia pura e perfeita, náo da soberania absoluta do consumidor sobre as escolhas de produyáo; e
há outra orientayáo, talvez mais disfaryada ou menos imediatamente nisso sáo dignos herdeiros do "socialismo aalemá, modelo Hindenburg" 8 • O
perceptível, que visa a introduzir, restabelecer ou sustentar dimensóes de governo deve content~r-se em assegurar as cohdiyóes da cooperayáo social,
rivalidade na ayáo e, mais fundamentalmente, moldar os sujeitos para sem intervir. "O controle é indivisível": o u é todo privado o u é todo estatal;
torná-los empreendedores que saibam aproveitar as oportunidades de ou ditadura do Estado ou soberania do consumidor. Náo existe meio-termo
lucro e estejam dispostos a entrar no processo permanente da concorrén- entre o totalitarismo de Estado e o mercado definido como urna "demo-
cia. Foi particularmente no campo do management que essa orientayáo tra.cia ·de consumidores" 9 • Essa posiyáo radical; que proíbe qualquer tipo
encontrou sua expressáo rnais forte. de intervenyáo, b~seia-se ~a disjunyáo de dais processos autogeradores e de
sentido contrário: o processo negativo do Estado que cria sereS assistidos e
o processo de mercado que cria empreendedores criativos.
Crítica do intervencionismo O que perturba a perfeita democracia do consumidor e abre o caminho
Recordarnos que, durante o Colóquio Walter Lippmann, Von Mises foi para o despotismo totalitário é a intrusáo de princípios éticos, heterogéneos
um dos que rnais vilipendiararn qualquer nova legitimayáo da intervenyáo ao processo do mercado, que náo sejam o do interesse.
do Estado, a ponto de ser visto por outros participantes como um old liberal
bastante deslocado no encontro. De fato, ele náo suporta o socialismo nem 7 Ludwig von Mises, L'action humaine, cit., p. 858.
tolera a intervenyáo do Estado 6• Aliás, para ele, es~a é o germe daquele. A 3 Ibidem, p. 761. Van Mises acrescenta: "Os partidários da mais recente variante do
interferéncia do Estado pode destruir a economia de mercado e arruinar a intervencionismo, a Soziale Marktswirtschafi [economia social de mercado], afirmam
prosperidade, alterando a informac;áo transmitida pelo mercado. Os preyos em alto e bom som que consideram a economia de mercado o melhor e mais dese-
orientam temporalmente os pro jetos individuais e permitem co~rdenar suas jável dos sistemas de organiza~áo económica da sociedade e rejeitam a onipot~ncia
governamental dos socialistas. Evidentemente, porém, todos esses defensores de
ayóes. A manipulayáo dos preyos ou da moeda perturba o conhecimento
urna política de cerceira via frisam com o mesmo vigor a rejeü;:io do liberalismo
dos desejos dos consumidores e impede que as empresas deem urna respos- manchesteriano e do laissez-faire. Dizem que é necessário que o Estado intervenha
ta conveniente e a tempo. Esses efeitos negativos, resultado dos entraves nos fenómenos de mercado todas as vezes e em todos os lugares onde o 'livre jogo
a adaptayáo, desencadeiam um processo cada vez mais nefasto. Quanto das for~as económicas' resulte em situa~óes que pare~am 'socialmente' indesejáveis.
Sustentando essa tese, consideram evidente que compete ao. governo decidir, em
mais o Estado intervém, mais provoca perturbayóes e mais intervém para
cada caso particular, se tal ou qual fato económico deve ser' considerado repreensível
do ponto de vista 'social' e, consequentemente, se a sicua~áo do mercado requer ou
náo, da parte do governo, um ato especial de interven~áo".
6 Stéphane Longuet, Hayek et l'École autrichienne (Paris, Nathan, 1998). ' Ibídem, p. 856.
138 " A nova razáo do mundo O homem empresarial " 139

[A economia] náo se interessa cm saber se os lucros devem ser aprovados ou todos os indivíduos é assegurada pelo funcionamento do n:tercado. A so-
condenados do ponto de vista de urna pretensa lei natural ou de um pretenso ciedade náo diz a alguém o que deve fazer. Náo há necessidade de tornar a
código eterno e imutável da moralidade, a respeito do qual a intuü;:áo pessoal cooperayáo obrigatória por ordens e proibi!Tóes. A náo coopera!Táo penaliza
ou a revela!Táo divina supostamente fornecem urna informa!Táo precisa. A a si mesma. O ajus-tamento·as exigéncias do esforyo prüdutivo na sociedade
economia simplesmente estabelece o fato de que os lucros e as perdas sáo e a busca dos objetivos próprios do indivíduo náo conflitam. Isso, portanto,
fen6menos essenciais da economia de mercado. 10 náo requer arbitragem. O sistema pode funcionar e desempenhar seu papel
sem interven!Táo de urna autoridade qüe emite ordens e interdiyóes e pune
O mesmo vale para os julgamentos de valor dos intelectuais: sendo os recalcitrantes. 13
a
heterogéneos lógica económica, náo respeitam a democracia absoluta do
consumidor e, portanto, o funcionamento do mercado. Nao se poderia ser mais explícito na exaltayáo das virtudes do livre
mercado e do papel do interesse individual no funcionamento da economia
Os moralistas e os pregadores fazem críticas ao lucro que erram o alvo. Náo é
capitalista. Isso significa que vol tamos aSrnith, o u até mesrno aMandeville?
culpa dos empreendedores que os consumidores, o povo, o hornero comum,
prefiram o aperitivo a Bíblia.e os romances policiais aos livros sérios nem
que os governos prefiramos canhóes amanteiga. o empreendedor náo lucra
mais venciendo coisas "ruins" em vez de coisas "boas". Seus lucros sáo tanto Urna nova concep<;áo do mercado
maiores quanto mais consegue proporcionar aos consumidores o que estes
Se o pensamento·austro-americano atribui um papel central ao merca-
exigem mais intensamente. 11
do, é porque o vé como urn processo subjetivo. A palavra-chave, mercado,
O exercício da autoridade chama seu próprio reforyo. Diante do fracasso aif}da é a mesma do pensamento liberal tradicional, mas o conceito que ela
dessas intervenyóes, o Estado vai sempre mais longe nos aros de autoridade, desiiua ~udou; N%o é mais,o de Adam Smith o u o ~os neoclássicos. É um
questionando as liberdades individuais de forma cada vez mais patente. processo de descoberta e aprendizado que modifica os sujeitos, ajustando-os
É importante lembrar que a intervenyáo do governo significa sempre ayáo uns aos outros. A coordenayáo nao é estática, náo une seres sempre iguais
violenta ou ameaya de recorrer a ela. [... ] Em última análise, governar é a si mesmos, mas produz urna realidade cambiante, um movimento que
servir-se de homens armados, policiais, guardas, soldados, carcereiros e afeta os meios nos quais os sujeitos evoluem e os transforma também. O
executores. O aspecto fundamental do poder é que ele pode impar suas
processo de mercado, urna vez instaurado, constitui urn quadro de as:áo
vontades usando o cassetete, prendendo e matando. Os que exigem mais
que náo necessita mais de intervenyóes- estas só poderiam ser um entrave,
govemo exigem, no fim das cantas, mais coer<;áo e menos liberdade. 12
urna fonte de desrruiyao da economia. Contudo, o mercado nao é mais
Essa condenayáo inapelável da intervenyáo repousa sobre urna acusayáo o "ambiente" natural no qual as mercadorias circulam livremente. Náo é
de usurpayáo. O Estado acredita saber, no lugar dos i!ldivíduos, o que é bom um "rneio" dado de urna vez por todas, regido por leis naturais, governado
para eles. Ora, para Von Mises e Hayek, a particularidade e a superioridade por urn princípio misterioso do equilíbrio. É um processo regulado que
da economia de mercado é que o indivíduo deve ser o único a decidir a utiliza motiva¡;;óes psicológicas e competéncias específicas. É urn processo
finalidade de suas ayóes, porque semente ele sabe o que é bom para ele. menos autorregulador (isto é, que conduz ao equilíbrio perfeito) do que
Na economia de mercado, o indivíduo é livre para agir dentro da órbita da autocriador, capaz de se autogerar no tempo. E, se náo necessita de poderes
propriedade privada e do mercado. Suas escolhas sáo inapeláveis. Para seus reguladores externos, é porque tem sua própria dinJ.mica. Urna vez instau-
semelhantes, suas ayóes sáo fatos que devem ser levados em considerayáo rado, poderia prosseguir em perfeito movimento perpétuo, autopropulsivo,
por eles em sua própria atividade. A coordenayáo das a!TÓes aut6nomas de
se nao fosse desacelerado ou pervertido por entraves éticos e estatais que
constituem atritos nocivos.
10
Ibidem, p. 315.
11
Ibidem, p. 316.
12
Ibidem, p. 756-7. B lbidem, p. 762.
140 ~ A nova raz:io do mw1do O hornero empresarial " 141

O mercado é concebido, portante, corno urn processo de autoforrna~áo a


ligado governamentalidade neoliberal: a criayáo de sittJ-ayóes de mercado
do sujeito econürnico, urn processo subjetivo autoeducador e autodisdpli- que perrnitem esse aprendizado constante e progressivo. Essa ciencia da
nador, pelo qual o indivíduo aprende a se conduzir. O processo de mercado escolha em situayáo de concorrencia é, na realidade, a teÜria do modo como
constrói seu próprio sujeito. Ele é autoconstru_tivo. o indivíduo é cond~zid~ ~ governar a si rnesmo no mercado.
Von Mises ve o homern corno um ser ativo, um· homo agens. O motor A economia é rnais questáo de escolha do que de cálculo de maxirnizayáo;
inicial é urna espécie de aspira~áo vaga a urna condi~áo rnelhor, um impulso mais especificamente, este último é apenas urn momento, ou urna dimensáo
para agir a fim de melhorar a própria situa~áo. Von Mises náo define a a~áo da ayáo, que náo é capaz de resumi-la inteirarnente. O cálculo pressupóe
humana por um cálculo de rnaximiza~áo propriamente diro, mas por urna dados, e pode-se considerar até que é determinado pelos dados, como é o
racionalidade mínima que impele o homern a destinar recursos a urn objetivo caso nas doutrinas do equilíbrio geral. A escolha é rnais-dinimica, implica
de rnelhoria da situa~áo. A a~áo humana tem urna finalidade. Esse é o ponto criatividade e indeterminayáo. É o elemento propriarnente humano da
de partida, e é essencial: a partir do impulso para realizar essa finalidade, conduta econ6rnica. Como diz Kirzner, urna máquina pode calcular, mas
ele náo vai trocar aquilo que por acaso tem a mais - peles de coelho ou náo pode escolher. A economia é urna teoria da escolha 15 . E, em primeiro
peixes com os quais náo sabia o que fazer -, corno supunharn os primeiros lugar, a dos consumidores, novas soberanos a'tivos que procuram o rnelhor
teóricos da ordem do mercado, mas vai empreender e, ao empreender, vai negócio, o melhor produto que corresponderá a sua própria construyáo de
aprender. Vai estabelecer uro plano individual de aráo e se lanyar em empre- fins e _rneios, isto é; seu plano. A contribuiyáo do subjetivismo para a qual
sas, vai eleger objetivos e destinar recursos a eles, vai construir, corno diz o _~pelam Von Mises e Kirzner é ter "transformado a teoria dos preyos de
discípulo e continuador de Von Mises, Israel Kirzner, "sistemas fins-meios" me,rcado ern urna teoria geral da escolha hurnarta" 16 .
em fun~áo de suas próprias aspirayóes, e estas orientaráo sua energia. O ser Esse ponto é fundam~~tal. Se o opus magnurfl de Von Mises intitula-se
referencial desse neoliberalisrno náo é primeiro e essencialmente o hornern A ardo humana, convém levar muito a sério o título. Trata-se d'e urna rede-
da traca que faz cálculos a partir dos dados disponíveis, mas o hornero da fini~io do homo oeconomicus sobre bases mais amplas:
empresa que escolhe um objetivo e pretende realizá-lo. Von Mises deu a A teoriageral da escolha e da preferéncia [... ] émuito mais do que urna sim-
fórmula desse hornero: "Ero toda economia real e viva, todo atar é sernpre ples teoria do "lado económico" das iniciativas do homem, de seus esfot'ros
ernpreendedor" 14 • para proporcionar-se coisas úteis e aumentar seu bem-estar material. Ela
Coro essa corrente de pensarnento austro-americana, pode parecer que é a ciéncia de todos os géneros do agir humano. O ato de escolher determina
todas as decisóes do hornero. Fazendo sua escolha, o homem n:io opta apenas
saímos da problemática da governamentalidade neoliberal. Náo é nada isso.
entre os diversos objetos e senriyos materiais. Todos os valores humanos
É corno se ela atribuísse ao processo de mercado a responsabilidade exclusiva oferecem-se a sua escolha. Todos os fins e os meios, as considerayóes tanto
de construir o sujeito empresarial. materiais como morais, o sublime e o ordinário, o nobre e o ignóbil, sáo
Ao contrário dos ordoliberais alemáes, que deixarn a cargo do quadro ordenados numa série única e submetidos a urna decis:io que pega urna
da sociedade o cuidado de limitar as a~óes humanas, os austro-americanos coisa e descarta outra. Nada do que os homens desejam obter ou evitar fica
seguem o caminho do "subjetivismo", isto é, do autogoverno d~ sujeito. O fora desse ordenamento numa única gama de gradayóes e preferéncias. A
teoria moderna do valor recua o horizonte científico e expande o campo dos
hornero sabe se conduzir náo por "natureza", mas grayas ao mercado, que
estudos económicos. Assim, da economia política da escala clássica emerge
constitui um processo de forma~áo. Pasto cada vez rnais frequentemente
ern situayáo de mercado, o indivíduo pode aprender a conduzir-se racio-
nalmente. Esbo~a-se assirn, dessa vez de maneira indireta, o tipo de a~áo l'l Israel Klrzner, The Meaning of Market Process, cit., p. 123. A famosa definiy:io de
Lionel Robbins ("economia é o es rudo do comportamento humano como urna relay:io
entre fins e meios raros que tém usos mutuamente excludentes") foi influenciada
14
Ludwig von Mises citado em Israel Kirzner, The Meaning ofMarket Process: Essays in pelos economistas austríacos, segundo Israel Kirzner.
16
the Development ofModern Austrian Eeonomics (Londres, Routledge, 1992), p. 30. Ludwig von Mises, L'action humaine, cit., p. 3.
O homem empresarial 143
142 ~ A nova razio do mundo

urna teoria geral do agir humano: a praxeologia. Os problemas económic~s A teoria hayekiana do conhecimento é particularmepte significativa a
ou catalácticos 17 estáo enraizados numa ciéncia mais geral e náo podem ma.ts respeito desse ponto 20 • Hayek compartilha com Von Mises a ideia de que
se separar dessa concxidade. Nenhum esrndo de problemas propriamen~e o indivíduo náo é um ator onisciente. Talvez seja raciorial, como sustenta
económicos pode dispensar-se de partir dos aros de cscolha; a economta Von Mises, masé, sóbreffido, ignorante. É por isso, aliás, que existern regras
torna-se urna parte- ainda que a inais bem elahorada até o momento- de
18 que ele segue sem pensar. Ele sabe o que sabe por meio das regras, das nor-
urna ciénda mais universal, a praxeologia.
mas de conduta, dos esquemas de percepyáo que a ciVilizac;:áo desenvolveu
progressivamente2 1•
O mercado e o conhecimento o problema do conhecimento náo é periférico com .relac;:áo teoria a
econ6mica, ele é central, embota durante muito ternpo tenha sido negli-
Náo há meio-termo: ou democracia do consumidor ou ditadura do
genciado em favor da análise da divisáo do trabalho. O objeto económico
Estado. Os princípios éticos ou estéticos náo valem nada na esfera do
por excelencia era o problema da coordenayáo das tarefas especializadas e
mercado, como dissemos. Náo pode haver economia de mercado sem a
da alocas:áo dos recursos. Ora, diz Hayek, o problema da "divisáo do co-
primazia absoluta do interesse, excluídos quaisquer outros motivos da ayáo.
nhecimento" é o "principal problema da económia e até rnesmo das ciencias
A única razáo por que economia d~ mercado pode funcionar sem que sociais" 22 • N urna sociedade estruturada pela divisáo do trabalho, ninguém
ordens governamentais digam a todos e qualquer um o que devcm fa~er, e sabe tuda. A informac;:áo é estruturalrnente dispersa. No en tanto, ainda que
como devem fazer, é que ela náo pede a ninguém que se afaste das hnhas
o primeiro reflexo seja querer "centralizar" a informayáo- que é o que tenta
de conduta mais convenientes aos próprios interesses. O que assegura a
integrac;áo das ayóes individuais no conjunto do sistema social d~ produ- - fiz~r o socialismo, como mostram os teóricos que elogiarn a superioridade
yáo é a busca de cada indivíduo por seus próprios objetivos. Segmndo sua do ''cálculo socialista""~, Hayek, seguindo Von Mises, mostra que essa ten-
"avidez", cada atar dá sua contribuiyáo para o melhor arranjo possível das tativa está fadada ao fracasso, por causa da dispersáo insuperáVel do saber.
atividades de produyáo. Assim, na esfera da propriedade privada e das leis Náo se trata aqui de conhecimento científico. Para Hayek, que foi o
que a protegem contra os ataques de ayóes violentas ou fraudulentas, náo há
19 prirneiro a teorizá-lo, "know!edge" significa certo tipo de conhecimento
nenhum antagonismo entre os interesses do indivíduo e os da sociedade.
diretarnente utilizável no mercado, relacionado as circunstancias de tempo
A limitayáo do poder governamental encontra seu fundamento náo e lugar - o conhecimento que se refere náo ao porque, mas ao quanto; o
nos "direitos naturais" nem na prosperidade gerada pela livre iniciativa conhecimento que um indivíduo pode adquirir em sua prática, e cujo valor
privada, mas nas próprias condiyóes de funcionamento da máquina eco- só ele pode avaliar; o conhecirnento que ele pode utilizar de maneira pro-
nómica. Obviamente, há conciliayóes possíveis, mas a essencia repousa na veirosa para vencer os outros na competiyáo. Esse conhecimento específico
ideia de que a economia de mercado tem como condiyáo a mais completa e disperso, muito frequentemente desprezado e negligenciado, tem tanto
liberdade individual. Esse é um argumento mais funcional do que ético: valor quanto o conhecimento dos especialistas e dos administradores. Nesse
a condiyáo de funcionamento do mecanismo de mercado é a livre esco- sentido, para Hayek, é natural que um agente de cámbio ou um agente
lha nas decisóes em funyáo das informac;:óes que cada indivíduo possui.
O mercado é um desses instrumentos que andam sozinhos, justamente 20
Essa teoria está contida, em essénda, em dais textos importantes: o de 1935, intitu-
porque coordena os trabalhos especializados utilizando otimamente os lado "Economics and Knowledge", e o de 1945, "The Use ofKnowledge in Society",
conhecimentos dispersos. ambos publicados em Friedrich Hayek, Individualism and Economic Order (Chicago,
The University ofChicago Press, 1948).
21
Ibidem, p. 88. Hayek cita Alfred Whitehead; para o qual."a civilizac;:áo avanc;:a
17 Sobre o sentido exato desse termo, ver o próximo capítulo. aumentando o número de operac;:óes importantes que podemos realizar sem ter de
pensar nelas" (idem).
18 Ludwig von Mises, L'action humaine, cit., p. 3-4.
22
19
Ibidem, p. 50.
Ibidem, p. 763.
O homem empresarial 9
143
142 " A nova razáo do mundo

urna tcoria geral do agir humano: a praxeologia. Os problemas econOmic~s


A teoria hayekiana do conhecimemo é particularmente significativa a
ou catalácticos 17 estáo enraizados numa ciéncia mais geral e n:'io podem ma1s respeito desse ponto 20 • Hayek compartilha com Van Mises a ideia de _que
se separar dessa conexidade. Nenhum estudo de problemas propriamen~e o indivíduo nao é um atar onisciente. Talvez seja raciollal, como sustenta
econ6micos pode dispensar-se de partir dos atas de escolha; a economta Van Mises, masé, sÜb-r~!udo, ignorante. É por isso, aliá.s, que existem regras
torna-se urna parte- ainda que a mais bem elaborada até o momento- de
18
que ele segue sem pensar. Ele sabe o que sabe por meio das regras, das nor-
urna ciéncia mais universal, a praxeologia.
mas de conduta, dos esquemas <:l_e percepyáo que a civilizas;áo desenvolveu
progressivamente21 •
O mercado e o conhecimento o problema do conhecimento nao é periférico com .relayáo a teoria
econ6mica, ele é central, embora durante muito tempo tenha sido negli-
Náo há meio-termo: ou democracia do consumidor ou ditadura do
genciado em favor da análise da divisáo do trabalho. O objeto econ6mico
Estado. Os princípios éticos ou estéticos náo valem nada na esfera do por excelencia era o problema da coordenayáo das tarefas especializadas e
mercado, como dissemos. Náo. pode haver economia de mercado sem a da alocayao dos recursos. Ora, diz Hayek, o problema da "divisáo do co-
primazia absoluta do interesse, exduídos quaisquer outros motivos da as;áo. nhecimento" é o "principal problema da econümia e até mesmo das ciencias
A única raz:'io por que economía de mercado pode funcionar sem que sociais" 22 • Numa sociedade estruturada pela divisáo do trabalho, ninguém
ordens governamentais digam a todos e qualquer um o que devem fa~e-r, e sabe rudo. A informas;áo é estruturalmente dispersa. No en tanto, ainda que
como devem fazer, é que ela náo pede a ninguém que se afaste das lmhas
, o primeiro reflexo seja querer "centralizar" a informayáo- que é o que renta
de conduta mais convenientes aos próprios interesses. O que assegura a
integrayáo das ayóes individuais no conjunto do sistema social de produ-
fXz.er o socialismo~ como mostram os teóricos que elogiam a superioridade
yáo é a busca de cada indivíduo por seus próprios objetivos .. Segui~do sua do ;,cálculo sociaÚsta'' ·-, Hayek, seguindo Van Mises, mostra que essa ten-
"avidez" cada atar d:i sua comribuiyáo para o melhor arraOJO poss1vel das tativa está fadada ao fracasso, por causa da dispersáo insuperáVel do saber.
atividad~s de produyáo. Assim, na esfera da propriedade privada e da: lei~ Náo se trata aqui de conhecimento científico. Para Hayek, que foi o
que a protegem contra os ataques de ayóes violentas o u fraudulentas, nao ha
19 primeiro a teorizá-lo, "knowledge" significa cerro tipo de conhecimento
nenhum antagonismo entre os interesses do indivíduo e os da sociedade.
diretamente utilizável no mercado, relacionado as circunstáncias de tempo
A limitas;áo do poder governamental encontra seu fundamento náo e lugar - o conhecimento que se refere náo ao porque, mas ao quanto; o
nos "direitos naturais" nem na prosperidade gerada pela livre iniciativa conhecimento que um indivíduo pode adquirir em sua prática, e cujo valor
privada, mas nas próprias condis;óes de funcionamento da máquina eco- só ele pode avaliar; o conhecimento que ele pode utilizar de maneira pro-
n6mica. Obviamente, há conciliayóes possíveis, mas a essencia repousa na veitosa para vencer os outros na competiyáo. Esse conhecimento específico
ideia de que a economia de mercado tem como condis;áo a mais completa e disperso, muito frequentemente desprezado e negligenciado, tem tanto
liberdade individual. Esse é um argumento mais funcional do que ético: valor quanto o conhecimemo dos especialistas e dos administradores. Nesse
a condis;áo de funcionamento do mecanismo de mercado é a livre esco- sentido, para Hayek, é natural que um agente de cámbio ou um agente
lha nas decisóes em funs;áo das informas;óes que cada indivíduo possui.
O mercado é um desses instrumentos que andam sozinhos, justamente 20 Essa teoria está contida, em esséncia, em dois textos importantes: o de 1935, intitu-
porque coordena os trabalhos especializados utilizando otimamente os lado "Economics and Knowledge", e o de 1945, "The Use ofKnowledge in Society",
ambos publicados em Friedrich Hayek, Individualism andEconomic Order (Chicago,
conhecimentos dispersos.
The University ofChicago Press, 1948).
21
Ibidem, p. 88. Hayek cita Alfred Whitehead, para o qtial, "a civilizas:áo avanc;:a
17 Sobre 0 sentido exato desse termo, ver o próximo capítulo. aumentando o número de operayóes importantes que podemos realizar sem ter de
pensar nelas" (idem).
18 Ludwig von Mises, L'actíon humaíne, cit., p. 3-4.
22
Ibidem, p. 50.
l9 Ibidem, p. 763.
144 ~ A nova razáo do mundo O hornero empresarial .. 145

imobiliário ganhe muito mais que um engenheiro, um pesquisador ou um mercado puro e perfeito. O subjetivismo reivindicado pelos austro-america-
professor; todos ganham, inclusive essas últimas categorias, quando possi- nos lhes permite nao pagar úm preyo politicamente alto por um resultado
bilidades de lucro sao efetivamente realizadas no mercado. teórico táo duvidoso como o equilíbrio geral, que nao é dé grande interesse
Esses conhecimentos individuais e particulares sáo uns dos mais im- para o conhecimentO-d~ fUn-cionamento das economias reais. Trata-se antes
portantes ou, em todo caso, sao mais eficazes que os dados estatísticos de compreender corno o sujeito age realmente, como se conduz quando está
agregados, na medida em que permitem a realizayáo de todas as pequenas nurna situayao de mercado. É a pa_rtir-desse funcionarnento que se poderá
mudanyas permanentes as quais o indivíduo deve adaptar-se no mercado. colocar a questao do modo de governo de si.
Daí a importáncia de urna descentralizayáo das decisóes para que cada Esse autogoverno tem tun no me: entrepreneurship. Essa dirnensao pre-
indivíduo possa agir com as informayóes que tem. É inútil e até perigoso valece sobre a capacidade calculadora e rnaxirnizadora da teoria económica
exigir um "controle consciente" dos processos económicos: a superioridade padráo. Todo indivíduo tem algo de empreendedorístico dentro dele, e
do mercado deve-se justamente ao fato de ele poder prescindir de qualquer é característica da economia de mercado liberar e estimular esse "em-
tipo de controle. Em contrapartida, é preciso facilitar a comunicayao das preendedorismo" humano. Kirzner define essa dimensao fundamental do
informayóes para completar os fragmentos cognitivos que cada indivíduo seguinte modo: "O elemento empresarial do comportamento económico
possui. O preyo é um meio de comunicayao de inforniayáo pelo q~al os dos participantes consiste [... ] na vigilincia das mudanyas de circunstán-
indivíduos váo poder coordenar suas ayóes. A economia de mercado é urna cias, anteriormente despercebidas, que lhes permitem tornar a troca mais
economia de informayáo que permite prescindir do controle centralizado. proveitosa do que era antes" 23 •
Apenas as motivayóes individuais impelem os indivíduos a fazer o que - Q puro espíriro· de mercado nao necessita de dotayao inicial, porque se
devem fazer, sem que ninguém tenha de lhes dizer para fazé-lo, utilizando trata '¿e explorar urha pOssibiÜdade de vender mais caro um bem já compra-
conhecimentos que eles sao os únicos a deter ou buscar. do: "Segue-se disso que cada um de nós é um empreendedor potenCial, já que
O mercado é um mecanismo social que permite mobilizar essa infor- o papel empresarial puro náo pressupóe urna boa sorte inicial, na forma de
mayao e comunicá-la ao outro via preyo. O problema da economia náo é, ativos de valor" 24 • O empreendedor náo é um capitalista o u um produtor nem
pois, o do equilíbrio geral. É saber como os indivíduos vao poder tirar o mesmo o inovador schumpeteriano que muda incessantemente as condiyóes
melhor partido da informayáo fragmentária de que dispóem. da produyáo e constitui o motor do crescimento. É um ser dotado de espírito
comercial, aprocura de qualquer oportunidade de lucro que se apresente e
ele possa aproveitar, grayas as informayóes que ele tem e os Outros nao. Ele
O empreendedorismo como modo do governo de si
se define unicamente por sua intervenyáo específica na circulayáo dos bens.
Nao se pode compreender essa defesa da liberdade de mercado sem a Para Von Mises, assim como para Kirzner, o empreendedorismo náo é
relacionar ao postulado que a acompanha necessariamente: nao há neces- apenas um comportamento "economizante", isto é, que visa a maximiza-
sidade de intervenyáo porque os indivíduos sáo os únicos capazes de fazer yac dos lucros. Ele também comporta a dimensáo "extraeconomizante" da
cálculos a partir das informayóes que possuem. É esse postulado" da ayao atividade de descobrir, detectar "boas oportunidades". A liberdade de as;áo
humana racional que arruína previamente as pretensóes do dirigismo. Daí a é a possibilidade de testar suas faculdades, aprender, corrigir-se, adaptar-se.
importancia do esforyo de Von 1'Viises para fazer a ciéncia económica repousar O mercado é um processo de formaráo de si.
sobre urna teoria geral da ayao humana, a "praxeologia".
A economia neoclássica padráo deixa aberra a possibilidade de urna 23
Israel Kirzner, Concurrence et esprit d'entreprise (trad. Raoul Audouin, Paris, Eco no-
intervenyáo corretiva do Estado. De fato, construindo modelos de ~quilí­
mica, 2005), p. 12 [ed. bras.: Competirdo e atividade empresarial, trad. Ana Maria
brio sobre hipóteses irrealistas (como o conhecimento pleno dos dados), os Sarda, Rio de Janeiro, Instituto Liberal, 1986].
marginalistas apenas mostraram, por seu próprio irrealismo, a irrealidade do 24
Ibidem, p. 12; grifo nosso.
O homem empresarial a 147
146 s A nova razáo do mundo

Para Van Mises, o empreendedor é o hornero que age para melhorar ignorantes isolados, ao interagir, pouco a pouco revelam uns aos outros as
sua sorte, utilizando as diferenyas de preyo entre os fatores de produyáo e oportunidades que vao melhorar a situayao de cada um. Se todo mundo
os produtos. O espírito que ele desenvolve é o da especulayáo, que mistura soubesse rudo, haveri~ .um ajuste irnediato e tuda pararia27 • O mercado é
um processo de aprendizagem contínua e adaprayao permanente.
risco e previsáo:
O que importa nesse processo é a reduyáo da ignorancia, o learning by
Como todo homem na posiy:io de atar, o empreendedor é sempre um
discovery, oposta tanto ao saber total- do planejador corno ao saber total do
especulador. Ele preve agir em funyáo de situayóes futuras e incertas. Seu
sucesso o u seu fracasso dependem da exatidáo com que preve acontecimen- equilíbrio geral. Por ignorar as decisóes do outro, os empreendedores nem
tos incertos. [... ]A única fonte de ande saem os lucros do empreendedor é sempre fazem as melhores escolhas. No entarito, podern conhecer a natureza
sua aptidáo para prever melhor do que os outros qual será a demanda dos dos planos do outro pelo confronto comercial, pelo próprio jogo da concor-
consumidores. 25 rencia. Descobrir oportunidades de compra e venda l: descobrir empresas
Ao contrário de Lionel Robbins, que pressupóe que o hornero está rivais que possam perturbá-las. Portanto, é também adaptar a oferta ou a
sempre numa situayáo em que deve maximizar suas vantagens para atingir demanda aos concorrentes. O mercado define-se precisamente por seu caráter
urna série de objetivos que lhe sáo dados náo se sabe como, o homo agens intrinsecamente concorrencial. Cada participante renta superar os outros
de Von Mises e Kirzner, que deseja melhorar sua sorte, deve constituir os numa luta incessante:·para tornar-se líder e assim permanecer. Essa lura tem
"quadros de fins e meios" em que deverá efetuar suas escolhas. Náo é um a virtude do contágio: todos imitam os melhores, tornam-se cada vez mais
maximizador passivo, mas um construtor de situayóes proveitosas, que ele vigilantes e, progressivamente, adc]_uirem entrepreneurship. O ernpreendedor
descobre mediante vigilancia (alertness) e poderá explorar. Porque o hornero qde:~rocura vende~ pelos métodos da persuasáo riwderna obtérn os efeitos
é um su jeito ativo, criativo, construtor, náo se deve interferir em suas esco- mais pOsitivos s¿br~ os cons~midores. Conscientizando-os das possibilidades
lhas, ou se correria o risco de destruir essa capacidade de vigiláncia e esse de compra, o esforyo do empreendedorvisa a "proporcionar aos co~surnidores
espírito comercial táo essencial para o dinamismo da economia capitalista. o empreendedorismo do qual foram privados, ao menos parcialmente" 28 •
Aprender a procurar informayáo torna-se urna competencia vital no mundo Estamos muito distantes de Schumpeter, que acreditava única e ex-
competitivo descrito por esses autores. Se náo podemos conhecer o futuro, clusivamente no desequilíbrio introduzido pela inovayáo. A concorréncia
podemos, grayas ao processo concorrencial e empresarial, adquirir a infor- e o aprendizado que ela permite equilibra oferta e procura em razao da
mayáo que favorece a ayáo. informayáo circulando29 •
A pura dimensáo do empreendedorismo, a vigilancia em busca da o a
desequilíbrio económico se deve ignorancia mútua dos participantes
oportunidade comercial, é urna rela[áo de si para si mesmo que se en contra potenciais do mercado. Estes últimos náo veem de saída as oportunidades
a
na base da crítica interferencia. Somos todos empreendedores, o u melhor, de ganhos múruos, mas urna hora o u outra acabam por descobri-las. Igno-
todos aprendemos a ser empreendedores. Apenas pelo jogo do mercado nós ram as oportunidades, mas estao dispostos a descobri-las. O processo de
nos educamos a nos governar como empreendedores. Isso significa também mercado náo é nada mais do que a sequéncia de descobertas que os tiram
que, se o mercado é visto como um livre espayo para os empreéndedo~es,
todas as relayóes humanas podem ser afetadas por essa dimensáo empresanal, 27
Israel Kirzner, no prefácio a edi~áo francesa de Concurrence et esprit d'entreprise (cit.,
26 p. ix), sublinha que a teoria padráo difere da abordagem miseniana na medida em
constitutiva do humano •
que se concentra no equilibrio de mercado, e n:io no processo de mercado, e ignora
A coordenayáo do mercado tem como princípio a descoberta mútua
o papel do empreendedor no processo de concorrtncia composto de urna sucessáo
dos planos individuais. O processo de mercado é como um cenário em que de descobertas empresariais, preferindo meditar sobre as colidi,s:óes hipotéticas do
equilíbrio a estudar os processos reais do mercado.
28
Ibidem, p. 117.
25 Ludwig von Mises, L'action humaine, cit., p. 307 ·
29
Sobre todos esses pontos, ver Israel Kirzner, 7he Meaning ofMarket Process, cit.
26 Israel Kirzner, C'oncurrence et esprit d'entreprise, cit., p. 12.
148 " A nova razáo do mundo
O hornero empresarial • 149
desse estado de ignorincia. Esse processo de descoberta é um processo de
Formar o novo empreendedor de massa
equilibrac;:áo. No fim do processo, quando restam apenas bolsóes residua:is
de ignorincia, surge um novo estado de equilíbrio. lsso, claro, é um estado Ná~ há co~scié~~ia es~ond.nea da natureza do espírito humano para
hipotético, na medida em que há incessantemente mudanc;:as de todos os Van Mtses, ass1m como para Hayek náo ha' co nsctencta d as regras a que
·A · •

tipos que alteram as oportunidades: ''& forc;:as a favor- da mútua deseo berta obede~e~os. A ac;:áo humana desenrola-se sempre sob cena névoa. Essa é,
e da eliminac;:áo da ignoráncia estáo sempre em ac;:áo" 30 • sern ~uvrd~, urna de suas qualidades __ mais eminentes e menos conhecidas.
O processo de descoberta no mercado altera o próprio conceito do A
fi
racronalrdade efetiva que ela atesta - a adaptaráo eficaz d
. .,.
·
os mews aos
que devemos entender por conhecimento e ignoráncia. A deseo berta daqui- ns ~ ~xclm qualqu.er racionalismo que fac;:a da reflexáo sobre a ac;:áo urna
lo que náo se sabia náo se confunde coma busca deliberada de conhecimento, condtyao. do b~m agrr. Essa inconsciencia é também urna &aqueza explorada
que pressupóe que se saiba previamente aquilo que náo se sabe. A deseo berta pelos racwnalrstas demagogos, que pretendem substituir a coordenayáo do
que nos permite experimentar o mercado repousa no fato de que náo sabía- mercado- fonte de anarquia e injustic;:a para eles_ pelo controle consciente
mos que ignorávamos, ou ignorávamos que ignorávamos. Se a descoberta da econ~mia. Permitir que todos se tornero verdadeiros sujeitos de mercado
pertinente está ligada a urna ignoráncia que ignora a si mesma como tal, pres~upoe combater os que criticam o capitalismo. Essa batalha transferida
entáo podemos avaliar a dificuldade dos planejadores que, ignorando que aos rntelectuais é indispensável na medida em que as id eo 1ogtas
• A •
· tem• urna
ignoram, nada podem encontrar. Essa ignoráncia náo sabida como tal é o enorme Influencia sobre as orientayóes da ac;:áo individual. Van Mises, Hayek
ponto de partida da análise do mercado. A surpresa, a deseo berta fortuita, e_,.
seus sucessores
. . convenceram-se rapidamente disso . Em sua graneara d b
desencadeia a reac;:áo dos mais "alertas", isto é, os "empreendedores". Se cunea, J.-e soctalzsme, Van Mises defende que náo há nada · · d
:··, "b .: . , _ mars lillportante 0
descobrimos por acaso, durante um passeio, que um comerciante vende a que a - atalha de tdetas · entre capitalismo e socialismo-'33. Acredit d
·al· lh an oqueo
um dólar as frutas que compramos de outro a dais dólares, o espírito de soct
_ rsmo es garantirá um nível mais alto de bem-estar, as, massas, · que
empreendimento que nos mantém alertas fará com que nos desviemos do nao pensam, aderem a ele34 •
mais caro. O sujeito de mercado entra numa experiencia de descoberta na ~on Mises náo esconde a influencia possível e desejável da ciencia eco-
A

qual o que ele descobre primeiro é que náo sabia que ignorava. no~uca sobre a~ políticas económicas. fu políticas liberais nunca fizeram
Como vemos, Kirzner fez urna síntese entre a teoria hayekiana da infor- mats do que por em prática a ciencia económica. Aliás, foi esta última
mac;:áo e a teoria miseniana do empreendedor que renova a argumentac;:áo que conseguiu eliminar alguns entraves que impediam 0 desenvolvim t
· al"1smo:
do caplt en o
a favor do livre mercado. O mercado precisa da liberdade individual como
um de seus componentes fundamentais 31 • Essa liberdade individual consiste
menos em definir sua própria escala de preferencias dO que fazer suas próprias 33 Ludwig von Mises, Socialisme (trad. Paul Bastier et aL Paris Libra¡"r¡"e d M'd· .
1938), p. 507. ' ' e e IClS,
descobertas empresariais: "O indivíduo livre possui a liberdade de decidir
o que quer" 32 • A liberdade sem objetivo náo é nada, so mente adquire valor 34 Von Mises escreve o seguinte: "É fato que as massas náo pensam M ' .
t ~ · as e prectsa-
pelo sistema que lhe dá objetivos concretos, isto é, oportunidades ~de lucro! O ;~n e por essa razao que seguem os que pensam. A dires:áo espiritual da humani-
a e pertence ao pequeno número de homens que pensam por si mesmos· esses
homens exercem sua a<;:áo primeiro sobre o círculo capaz de acolher e compr~ender
capitalismo náo tira suas vantagens do livre contrato entre intercambiado res
que sabem com antecedencia o que querem. O que o m ove é o processo de 0
pensamento elaborado por outros; por esse caminho, as ideias se espalh ¡
massas nas quais d . am pe as
deseo berta "competitivo-empresarial". é 'o . . se c~n ensam poupo a pouco para formar a opiniáo pública da
poca. sooahsmo nao s~ tornou a ideia dominante dos nossos tempos porque as
:ass~ ~~abo~aram e d~pors transmitiram as camadas intelectuais superiores a ideia
30
Ibidem, p. 45. . a soc1 rzas:ao dos metos de produyáo;_ o próprio materialismo' histórico por mais
31
Ibidem, p. 52. Impregnado que seja do 'espirito popular' do romantismo e daescolahistórica nu
32
lbidem, p. 53.
o~sou fazer tal afirmas:áo. A alma das multidóes nunca produziu por si mes~a n:~
alero de massacres coletivos, atos de devastas;áo e destruis;áo" (ibidem, p. 510).
O homem empresarial • 151
150 "' A nova razáo do mundo
aprendidos desde a escala, do mesmo modo que as vantagens do capitalismo
Foram as ideias dos economistas clássicos que afastaram os obstácul.os
erguidos por leis seculares, preconceitos e hábitos co~tra as melhonas sobre qualquer outra organiÍaifáO económica. O combate ideológico é parte
tecnológicas, libertaram 0 genio dos reformadores e dos movadores, presos integrante do boro f~ncionamento da máquina.
até entáo na camisa de forqa das corporayóes, da tutela gov~rn~~ntal e
das pressóes sociais de toda espécie. Foram essas idelas que dtmmUlr~ o
prestígio dos conquistadores e dos espoliado res e demonstraram os beneftctos A universalidade do homero-empresa
sociais decorrentes da atividade econ6mica privada. Nenhuma das grand~s
invenyóes modernas teria sido posta em prática se a mentalidade da era_rre- Essa valoriZayáo do empreendedorismo e a ideia de que essa faculdade só
-capitalista náo tivesse sido inteiramente desmantelada pelos economistas. pode se formar no meio mercantil sáo partes interessadas ná redefiniyáo do
0 que se denomina comumente "Revoluq~o Industrial" fo~ um !~bento da sujeito referencial da racionalidade neoliberal. Com Von Mises, acorre um
revolus.:áo ideológica realizada pelas doutnnas dos economistas.
claro deslocamento do tema. Trata-se menos dafunc;:.áo específica do empreen-
É 0 que Van Mises e Hayek tentará_o fazer, por sua vez, para c~~bater dedor dentro do funcionamento económico do que dafoculdade empresarial
os novas perigos que ameayani. a plena liberdade do mercado e cnncar as tal como existe em todo sujeito, da capacidade de se tornar empreendedor
diferentes formas de intervenyáo do Estado 36 • No caso de George Stigler nos diversos aspectos de sua vida ou até mesmo de ser o empreendedor de
e Milton Friedman, sabemos que eles foram náo apenas economistas de sua vida. Em reswno, trata-se de fazer com que cada individuo se torne o
renome, mas também "empreendedores ideológicos" temíveis, náo s.e mais "enterprisini' possivel.
eximindo de militar da forma mais constante e declarada a favor do capi- Essa proposiyáo genérica, de natureza antropológica, de cerro ~oda
talismo de livre empresa contra todos os que, de um modo ou de outro, rede&enha a figv.ra.:do homem económico, dá a ele urna a!lure ainda mais
conformaram-se coma intervenyáo reformadora do Estado. Esses autores dinimica e ativa do que no passado. A importancia que é at.ribuída ao
até mesmo teorizaram a luta ideológica: se as massas náo pensam, como papel do empreendedor náo é nova. Desde o século XVIII, o homem de
Von Mises gasta de dizer, cabe aos círculos estritos dos intelectuais travar projetos (projector) já aparece como o verdadeiro herói moderno para al-
frontalmente 0 combate contra todas as formas de progressismo e reforma guns, como Daniel Defoe. Segundo Richard Cantillon, que sublinhará a
social, germe do totalitarismo. Donde a extrema atenyáo que os neol~berais fun~áo económica específica do empreendedor, foi sobretudo Jean-Baptiste
norte-americanos davam a difusáo de suas ideias na mídia e ao ensmo da Say que, querendo distinguir-se de Adam Smith, dividiu a noyáo de
37
economia nas escalas e faculdades dos Estados Unidos . Se o mercado é trabalho - homogénea demais em sua opiniáo - em trés funyóes: a do
um processo de aprendizado, se o fato de aprenderé um fator fundamental especialista que produz os conhecimentos, a do empreendedor que póe os
do processo subjetivo de mercado, o trabalho de educayáo realizado p~r conhecimentos em prática para produzir novas utilidades e a do operário
economistas pode e deve contribuir para a acelerayio dessa autoformayao que executa a operayáo produtiva38 • O empreendedor é um mediador entre
do sujeito. A cultura de empresa e o espirito de empreendimento podem ser o coilhecimento e a execuyáo: "O empreendedor aproveita as mais elevadas
e as mais humildes faculdades da humanidade. Recebe as orientayóes do
especialista e as transmite ao operário" 39 • O empreendedor que aplica os
35 Ludwigvon Mises, L'action humaine, cit., p. 9.
conhecimentos tero wn papel importante. Repousa sobre ele o sucesso da
36 A praxeologia é conscientemente destinada a servir de base teórica para as novas
empresa e, generalizando, a prosperidade de um país. -Por mais que a Franya
políticas liberais. .
37 Urna das prindpais mobilizas.:óes públicas dos autores neoliberais foi runa ngorosa
contesta<;:áo do relató do da Task Force, encarregada em 1961 de estab~lecer um pro- 38
Ver Jean-Baptiste Say; Traité d'économie politique (6. ed., Paris, Guillaumin, 1841),
grama de ensino em economia para as high schools, descritivo demats. para o g?sto livro I, cap. 6, p. 78 e seg.; ídem, Cours·complet d'économie politique pratique (París,
deles e muito pouco positivo em relayáo aeconomia c_ap~talista. Ludw1g von ~~lls.es, Guillaumin, 1848), parte 1, cap. 6, p. 93 e seg.
"The Objectives ofEconomic Education", emEconomtc Freedom andlnterventtontsm. 39
Idem, Cours tomplet d'économie politique pratique, cit., p. 94.
(Nova York, The Foundation for Economic Education, 1990), P· 167.
152 <> A nova razáo do mundo
O homem empresarial <> 153

tivesse os melhores especialistas, a Inglaterra a superou na indústria pelo aperfeic;:oamento de novos -procedimentos, utilizayáo de novas matérias-
talento de seus empreendedores e pela habilidade de seus operários40 . Eril -primas e estabelecirnento de modos diferentes de organizac;:áo.
que essa funyáo é táo importante? Esse ponto de vist~-d~námico, que privilegia as descontinuidades, irnpóe
O empreendedor da indústria é -o principaL.agente_ da prodlll;:áo. As urna redefinic;:áo de conceitos: a empresa é o lugar da execuc;:áo dessas novas
outras opera<;óes sáo indispensáveis para a cria<;áo dos produtos, mas é combinayóes, do mesmo modo que o empreendedor é o personagem ativo
o empreendedor que as implementa, que lhes dá um impulso útil e tira e criativo cuja func;:áo é pó-las em prática. Por definiyáo, o empreendedor
valor delas. É ele que julga as necessidades e, sobretudo, os meios de
schumpeteriano é um inovador que se opóe ao personagem rotineiro que
satisfazé-las e compara o objetivo coro esses meios; assim, sua principal
se contenta em explorar os métodos tradicionais 45 . Sua func;:áo é central
qualidade é o julgamentoY
na explicayáo da evoluyáo e·conómica, a qual funciona por rompimentos
Para ter um julgamento carreta, o empreendedor deve ter também a cien- sucessivos dos "estados económicos".
cia da prática, que so mente se aprende pela experiencia. Além disso, deve ser Para Schumpeter, nem todos sáo empreendedores. Apenas os "conduto-
dotado de certas virtudes que faráo dele mn verdadeiro chefe, capaz de manter res" (Führer) sáo capazes de empreender. Sua tarefa, contudo, náo é dominar,
o rumo: audácia criteriosa e perseveran<;a tenaz42 • Mas essas qualidades, táo mas realizar possibilidades que existem em estado latente na situayáo46. O
necessárias nas incertezas dos negócios, náo sáo igualmente distribuídas na empree:ndedor é um chefe que possul vontade e autoridad e e náo tem medo
populayáo. Sáo mérito dos empreendedores bem-sucedidos, que justificam seus ~e ir contra a corre~ te: cria, desarranja, rompe o curso ordinário das coisas47_
lucros. Comeya aqui a grande lenda dos empreendedores que acompanhará ,E o homem do "plus ultra", o homem da "destruic;:áo criadora"18 • Náo é um
a Revoluyáo Industrial, urna lenda para cuja propagac;:áo os saint-simonianos indt;ríduo calcula~or, hed~nista; é um combatente, um competidor, que
contribuíram enormemente na Franc;:a43 . gasta de lutar e vericer, e cujo sucesso financeiro é apenas um símbolo de seu
A valorizac;:áo teórica do empreendedor terá um novo impulso com sucesso como criador. A atividade económica deve ser entendid.a como um
Joseph Schumpeter e sua Teoría do desenvolvimento económico (1911) 44 . esparte, urna impiedosa e perpétua luta de boxe49 . A inovayáo é inseparável
Para o economista austríaco, o fato fundamental que a teoria deve levar em da con correncia, é sua forma principal, porque a concorrencia diz respeito
considerac;:áo é a mudanc;:a dos estados históricos, que impede que se raciocine náo apenas aos preyos, mas também, e sobretudo, a estruturas, estratégias,
como se o circuito fosse pura repetic;:áo. Em outras palavras, urna ciencia procedimenros e produtos.
económica que privilegia a imobilidade em detrimento do movimento, o Schumpeter náo é um militante neoliberal. Numa obra escrita quase
equilíbrio em detrimento do desequilíbrio, passa ao largo do essencial. A trinta anos depois, Capitalismo, socialismo e democracia, demonstrará seu
evoluyáo económica resulta de rompimentos ligados a novas combinac;:óes pessimismo predizendo o "crepúsculo da func;:áo de empreendedor"so, 0
produtivas, técnicas e comerciais, a inovac;:óes de mlíltiplos tipos, desde a que nos conduzirá a um estado estacionário. A inovac;:áo tornou-se ro tina,
criac;:áo de novas produtos até a abertura de novas mercados, passando pelo náo provoca mais rompimentos. Burocratiza-se, automatiza-se. De modo

45
4o Idem, Traité d'économie politique, cit., p. 82. lbidem, p. 106.
46
4! Idem, Cours completd'économie politique pratique, cit., p. 97. Ibidem, p. 125.

42 Ibidem, cap. 12. " Ibidem, p. 126.


4
43 Ver Dimitri Uzunidis, La légende de l'entrepreneur: le capital social, ou comment vient H Título do capítulo 7 de Joseph Alois Schmnpeter, Capitalisme, socialisme etdémocratie
l'espritd'entreprise (Paris, Syros, 1999). (trad. Gael Fain, Paris, Payot, 1990) [ed. bras.: Capitalismo, Socialismo e democracia,
trad. Sérgio Góes de Paula, Rio de Janeiro, Zahar, 1984].
44 JosephAlois Schumpeter, Ihéorie de l'évolution économique (trad. Jean-JacquesAnstett, 49
Paris, Dalloz, 1999) [ed. bras.: Teoria do desenvolvimento económico, trad. Maria Sílvia lbidem, p. 135.
Possas, Sáo Paulo, Nova Cultural, 1997]. su Ibidem, p. 179.
154 ., A nova razáo do mundo
O hornero empresarial "' 15 5

mais geral, o capitalismo, náo tendo mais o benefício das condiyóes sociais pensamento, entre as quais a "praxeologia" de Von Mises e a difusáo de um
e políticas que o protegiam, está ameayado. modelo de gestáo empresarial que aspira a urna validade prática universal.
Distante desse pessimismo, um neoschumpeterismo vai difundir- Essa dimensáo do discurso neo liberal se manifestará sob múltiplas for~as,
-se nos anos 1970 e 1980, em consequencia das crises do petróleo e das das quais trataremOS -na última parte desta obra. A edúcayáo e a imprensa
novas regras de funcionamento do capitalismo: A referencia a figura do seráo requeridas para desempenhar um papel determinante na difusáo desse
empreendedor-inovador delineada por Schwnpeter ganhará um alcance novo modelo humano genérico. Vinte ou trinta anos depois, as grandes
nitidamente apologético, tornando-se até mesmo um dos elementos da vul- organizayóes internacionais e intergovernamentais teráo um poderoso papel
gata gerencial. Mais importante ainda, esse neoschumpeterismo contribuirá de estímulo nesse sentido. É interessante constatar que a Organizayáo para a
para a concepyáo da "sociedade empresarial". Peter Drucker, grande figura Cooperayáo e Desenvolvimento Econ6mico (OCDE) e a Uniáo Europeia,
do management, vai reabilitar essa figura heroica, anunciando o advento sem se referir explicitamente aos focos de elaborayao desse discurso sobre
da nova sociedade de empreendedores e fazendo votos pela difusáo do o indivíduo-empresa universal, seráo continuadoras poderosas deles, por
espírito de empreendimento em toda a sociedade51 . A gestáo empresarial exemplo, tornando a formac;:áo dentro do "espírito de empreendimento"
será a verdadeira fonte do progresso, a nova onda tecnológica que porá a urna prioridade dos sistemas educacionais nos países ocidentais. Que cada
economia novamente em movimento.- Segundo Drucker, a grande inova- indivíduo seja empreendedor por si mesmo e dele mesmo, essa é a grande
yáo "schumpeteriana'' foi, mais do que a informática, a gestáo empresarial: inflexáo que a corren te austro-americana e o discurso gerencial neoschum-
''A gestáo empresarial é a nova tecnologia que, melhor do que qualquer -_peteriano daráo afigura do hornero econ6mico. Obviamente, com respeito
ciencia ou invenyáo, fez a economia norte-americana passar para o estágio as-.f~rmas conternpodneas da governarnentalidade neoliberal, a principal
da economia de empreendedores, e está transformando os Estados Unidos lirnitayáo dessi córrente párece residir numa fobia do Estado que multo
numa sociedade de empreendedores" 52 • Essa sociedade é caracterizada por frequentemente a conduz a resumir a atividade de governar a imposiyáo
sua "adaptabilidade" e sua norma de funcionamento, a mudan ya perpétua: de urna vontade pela coeryáo. Essa atitude impede que se compreenda que
"O empreendedor vai buscar a mudanya, ele sabe agir sobre ela e explorá-la o governo do Estado poderia articular-se positivamente com o governo de
como urna oportunidade" 53 . A nova "gestáo de empreendedores", tal como si do sujeito individual, em vez de contrariá-lo ou de algum modo criar-
o define Drucker, pretende espalhar e sistematizar o espírito de empreen- -lhe obstáculos. Contudo, ater-se a isso seria desmerecer a originalidade de
dimento em todos os domínios da ayáo coletiva, em particular no serviyo Hayek: ter legitimado abertamente o recurso acoeryáo do Estado quando
público, fazendo da inovayáo o princípio universal de organizayao. Todos se trata de fazer respeitar o direito do mercado ou o direito privado.
os problemas sáo solucionáveis dentro do "espírito da gestáo" e da "atitude
gerencial"; todos os trabalhadores devem olhar para Sua funyáo e seu com-
promisso com a empresa com os olhos do gestor.
A concepyáo do indivíduo como um empreendedor inovador, que
sabe explorar as oportunidades, é resultado, portante, de várias~ linhas de

51
Peter Drucker, Les entrepreneurs (Paris, Hachette, 1985) [ed. bras.: Inovar;áo e espírito
empreendedor, trad. Carlos J. Malferrari, 5. ed., Sáo Paulo, 1bompson Pioneira,
1998]. Drucker náo concorda inteiramente coma visáo romil.ntica de Schumpeter.
Ser empreendedor é iuna profissáo e pressupóe urna disciplina.
52
lbidem, p. 41.
53
Ibidem, p. 53.
5
ESTADO FORTE, GUARDIAO DO DIREITO PRNADO

Friedrich Hayek ten de com frequencia a subestimar retrospectivamente


o papel determinante do Colóquio Walter Lippmann na "renovayáo" do
liberalismo. Essa tendencia revela-se de rnaneira particularmente clara
numa nota acrescentada posteriormente a um artigo de 1951, intitulado
''A·.-transrnissáo dos ideais de liberdade econümica". No momento de
apre;entar o "grupb alemiiu" dos ordoliberais (Walter Eucken, Wilhelm
Ropke), Hayek escreve o seguinte:
Na versáo original deste artigo, imperdoavelmente, esqueci~me de citar um
princípio promissor desse renascimento liberal que, se bem que interrom-
pido pelo estouro da guerra em 1939, permitiu muitos contaros pessoais
que formaram a base de um esfon;:o renovado, em escala internacional, após
a guerra. Em 1937, Walter Lippmann arrebatou e encorajou os liberais
com a publicar.;:ilo de sua brilhante reafirmaráo dos ideais fundamentais do
liberalismo clássico em 7he Good Society. 1

Vimos anteriormente o que foi essa suposta "reafirma~o", que preren-


dia ser, na realidade, uma verdadeira "revisáo" 2• A confissáo contida nessa
nota diz muito sobre a vontade de negar qualquer descontinuidade entre
liberalismo e neoliberalismo. Contudo, seria um equívoco concluir disso
que Hayek teria pura e simplesmente ignorado a contribuü;áo do Co-
lóquio Lippmann. Na realidade, ele sempre demonstrará preocupac;áo em

1
Friedrich Hayek, "La transmission des idéaux de la liberté économique", em Essais
de philosophie, de science politique et d'économie (Paris, les Belles lettres, 2007),
p. 300, nota 3; grifo nosso.
2
Ver capítulo 2 deste volume.
Estado forte, guardiáo do direito privado '" 159
15 8 ., A nova razio do mnndo

desvincular-se do velho liberalismo manchesteriano, diretamente alinhado ponto esse termo consegue materializar urna divergencia irredutível com
3 o ordoliberalismo alemao. Para Hayek, o erro dessa corren te é alimentar
coma crítica esboc;:ada em agosto de 1938 •
Por conseguinte, o liberalismo "renovado", longe de condenar por urna confusáo conceitual entre as condic;:óes da ordem de mercado e as
princípio a intervenc;:ao do Estado c;omo tal, teve a originalidade de subs- exigencias "rnorais" dajustic;:a. Na realidade, os promotores da "econo-
tituir a alternativa da "intervenc;:ao ou nao interVenc;:a6" pela quest:io sobre mia social de mercado" sempre tiveram certa preocupac;:ao com a '_'justic;:a
qua! deve ser a natureza de suas intervenc;:óes. Mais precisamer:te ainda, a social" 7 - pudemos constatar que_ tal pretensáo satura a palavra "social"
quest:io é diferenciar as intervenc;:óes legítimas das ilegítimas. E o que diz de todos os equívocos 8 •
de maneira absolutamente explícita O caminho da servidáo: "O Estado deve Por isso, Hayek continuará a bater na mesma tecla. Além do ensaio de
ou nao 'agir' ou 'intervir'? - apresentar a alternativa dessa forma é desviar 1957, dois outros textos váo exatamente na mesrna direc;:ao. Em prirneiro
a questáo. O termo laissezjaire é extremamente ambíguo e serve apenas lugar, a conferéncia intitulada "Tipos de racionalismo" (1964), que retoma
4 a mesrna crítica básica contra "unía das palavras mais enganadoras e mais
para deformar os princípios sobre os quais repousa a política liberal" • Em
resumo, "o que importa é mais o caráter da atividade do governo do que daninhas de nosso tempo", na medida em que
seu volume"S. A repetic;:ao dessas formulac;:óes permite verificar que certa a palavra "social" priva de qualquer conteúdo preciso os termos com os
crítica das insuficiencias do "velho liberalismo", esboi;:ada pelo C?lóquio quais é combinada.(corno nas expressóes alemás "soziale Marktwirtschaft'
o u "sozialer Rechtssúta-1') [... ]. Em consequencia, sen ti-me abrigado a tomar
Lippmann, foi ampla e duradouramente compartilhada por aquel e que veio
posiyáo contra a palavra "social" e demonstrar, em particular, que o con-
a ser o principal artífice do "renascimento liberal" após a guerra.
ceito_de justiya social náo possuía o menor signific:ado e criava urna ilusáo
enganadora que Pesso_as de.ideias claras devem evitar. 9

Nem laissezjaire... nem "fins sociais" Em segundo lugar, um desenvolvimento dedicado ao sentido' da palavra
"social" no segundo volume de Direito, legislaráo e liberdade (1973):
Todavia, nao devemos nos deixar engarrar por essa proximidade entre
as críticas. Com efeito, ela nao implica em absoluto urna plena comunhao Fala-se náo apenas de "justiya social", mas também de "democracia social",
"economia social de mercado" e "Estado de direito social" (ou soberania
de visóes sobre a natureza das intervenc;:óes que o Estado deve levar a cabo
social da lei- em alemáo, sozialer Rechtsstaat); e, embora justiya, democra-
e o critério de legitimidade destas últimas. O melhor indício de que há um cia, economía de mercado e Estado de direito sejam expressóes de sentido
desacorde persistente nessas crÍticas é dado por algo que, primeira vista, a absolutamente claro, a adiyáo do adjetivo "social" as torna susceptÍveis de
parece ligado a urna discordancia puramente terminológica. O que está designar quase qualquer coisa que se queira. 10
em quest:io é o sentido de urna palavrinha: "social". U m ensaio de Hayek,
"Social? O que quer dizer isso?" 6, publicado em 1'957, evidencia a que 7
Ou, em todo caso, o desejo de atribuir "objetivos sociais'' ao governo (ver capítulo
3 deste volwne).
8
3 Ver, em particular, Friedrich Hayek, La route de la servitude (Paris, PUF, 2902), p. 33. Ver capítulo 3 deste volume.
9
Ibidem, p. 64; grifo nosso. Friedrich Hayek, "Des sones de rationalisme", em Essais de philosophie, de science
5 Friedrich Hayek, La constitution de la liberté (Paris, Litec, 1994), P: 223 [ed. bras.: politique et d'économie, cit., p. 141.
10
Os fundamentos da liberdade, trad. Anna Maria Capovilla e José Italo Stelle, Sáo Idem, Droit, législation et liberté, v. 2, cit., p. 96. A nota que acompanha a frase citada
Paulo, Visáo, 1983]. No mesmo sentido, ver ibidem, p. 231, e Friedrich Hayek, merecer ser reproduzida: "Deploro esse uso, ainda que, recorrendo a ele, cenos amigos
Droit, législation et liberte, v. 1 (Paris, PUF, 1980), p. 73 [ed. bras.: Direito, legtslaráo meus na Alemanha (e, mais recentemente, também na Ingl!ltetra) aparentemente
e liberdade, trad. Maria Luiza X. de A. Borges, Sáo Paulo, Visio, 1985]. tenham conseguido tornar aceitável para círculos amplos o tipo de ordem social que
6 Título original: "What is 'Social'? What Does it Mean?". Em frances, publicado defendo" (ibidem, p. 207). Se entendemos bem, a única justifiC:ac;iio para o uso do
em Friedrich Hayek, Essais de philosophie, de science poli tique et d'économie, cit., termo "social" pelos neoliberais alemáes é que ele permite aclimatar ao "espírito da
época" a pr6pria doutrina de Hayek.. ,
p. 353-66.
160 " A nova razáo do mundo
Estado forre, guardiáo do direito privado ~ 161

Compreende-se melhor, a partir daí, que a posiyáo de Hayek sobre a o que resulta de urna vontade humana e o que independe dela. Hayek defende
espinhosa quesdo da legitimidade da intervenyáo governamental deva ser que isso é fonte de confusáo: o que independe da vontade humana náo é
situada no quadro que acabamos de delimitar de forma inteiramente negativa: necessariamente independente da ayáo humana; alguns- resultados da ~yáo
de um lado, urna crítica das insuficiéncias do liberalismo manchesteriano, humana podem náo ter sido desejados por si mesmos·e, ainda assim, fazer
cuja funyáo é justificar certo tipo de intervenyáo-, a quaJ tudo leva a entender surgir urna forma de ordem o u regularidade.
que se torno u indispensável por causa do papel fundamental do "arcabouyo Assim, convém inrroduzir entre-o artificial (o que procede diretamente
jurídico" para o bom funcionamento do mercado; de outro lado, urna rejeiyáo de urna vontade humana) e o natural (o que é independente da a¡;áo humana)
de princípio a qualquer forma de atribuiyáo ao governo de objetivos "sociais", urna "categoría intermediária": a de urna classe de fenómenos correspondente
pelo motivo fundamental de que tais objetivos implicam urna concepyáo a todas as estruturas que sáo independentes de qualquer intenyáo e, ainda
artificialista da sociedade segundo a qual esta poderia ser conscientemente assim, sáo resultantes da ayáo humana. Na sistematizayáo que posteriormente
dirigida para fins coletivos susceptíveis de ser positivamente definidosn. se deu a essa divisáo tripartite, ternos: taxis, termo grego que designa urna or-
Em última análise, a questáo é como legitimar certo tipo de interven- dem construída pelo homem, segundo um desígnio claramente estabelecido,
yáo governamemal (contra a doutrina do laissezjaire), sem admitir que na maiorla das vezes por meio de urn plano (essa ordem será denominada
a ordem de mercado que cria, segundo Hayek, a coesáo da socieda~e é urna "ordem fabricada'' ou "artificial", o que Hayek designará com frequéncia
ordem artificial (em particular contra os neoliberais alemáes, visto que essa pelo termo "organizayáo"- pode ser urna habitayáo, urna instituiyáo o u um
é urna de suas teses principais). Responder a essa questáo implica esclarecer _código de regras); kosmos, termo grego que designa urna ordem independente
a
o status do próprio arcabouyo jurídico (pertence ele ordem do artifício da.ro.ntade huma~a, na medida em que en contra em si mesma seu próprio
ou, ao contrário, a certa forma de "naturalidade"?) e, mais amplamente, princípio motor (essa Ordeín será. denominada "ordern natural" ou "ordem
examinar a concepyáo alternativa de sociedade que Hayek contrapóe a amadurecida" - um organismo, por exemplo, é urna ordem riatural); por
qualquer concepyáo artificialista. último, o terceiro tipo de ordem, que Hayek denominará "ordem espon-
t:inea" (spontaneous order) e que escapa da alternativa entre o artificial e 0
natural na medida em que agrupa todos os fenómenos que resultam da ayáo
A "ordem espontinea do mercado" ou "catalaxia"
humana, mas nem por isso sáo resultado de um desígnio (design) humano.
Num artigo muito pouco conhecido qUe marca urna virada na elabora- O ganho conceitual obtido com essa tripartiyáo é decisivo porque permite
yáo de seu pensamento, significativamente intitulado "O resultado da ayáo pensar a 01·dem específica que constitui o mercado: a ordem de mercado é,
humana, mas náo de um desígnio humano" 12 , Hayek complica a oposiyáo na realidade, urna ordem espontinea, de forma algwna wna ordem artificial.
clássica entre "natural" e "convencional", elaborando urna divisáo tripartite Essa tese, que ocupa um lugar central no pensamento de Hayek, comporta
entre trés tipos de fenómenos. Na verdade, o principal inconveniente da vários aspectos. O primeiro é que náo se deve confundir a ordem do mercado
oposiyáo clássica que herdamos dos sofistas gregos entre o qu~ é phusei e com urna "economia''. No sentido estrito do termo, urna "economía" (por
o que é thesei ou nomó é que ela pode significar tanto a diferenya entre o exernplo, um lar, urna fazenda, urna empresa) é urna "organizayáo" ou um
que resulta da aráo humana e o que independe dela como a diferenya entre "arranjo" deliberado de alguns recursos a serviyo de um mesmo fim ou "ordern
unitária de fins'.', que, como tal, pertence aesfera da taxis 13 • Ao contrário de
urna economia, a ordem do mercado é independente de qualquer objetivo
11
Dessa vez, Hayek mostra-se bastante reservado sobre a pertinencia prática da distinc;:.áo
em particular, por isso "pode ser utilizada para persegu~r inúmeros objetivos
de Rüpke entre a¡;:óes conformes e a¡;:óes náo conformes. Ver idem.
11 O tirulo original, ''1he Results ofHumanAction but not ofHuman Design", retoma
13
urna frase de Adam Ferguson, An Essay on the History oj Civil Society. Ver Friedrich Friedrich Hayek, .E'ssais de philosophie, de science politíque et d'économie, cit., p. 252
Hayek, Essais de philosophie, de science politique et d'économie, cit., p. 159-72. (ver também idem, Droit, législation et liberté, v. 2, cit., p. 129-';30).
162 ~ A nova razáo do mundo
Estado forte, guardiio do direito privado .. 163

individuais divergentes e até apostas". Em resumo, repousa náo sobre ob- que na estrutura de conjunto dessa sociedade existam, indubitavelmente,
jetivos comuns, "mas sobre a reciprocidade, isto é, sobre a conciliayáo de relaífÓes que náo sejam econ6micas, "é a ordem de mer~ado que possibi-
diferentes objetivos, em beneficio mútuo dos participantes" 14 • lita a conciliayáo de projetos divergentes" - mesmo quando esses projetos
O segundo aspecto é que a coesáo da ordem de mercado é possibilitada perseguem fins náO ·eCOñ.Orñicos 19 • Esse aspecto da posiyáo de Hayek náo
por regras formais que valem precisamente em fazáo de sua generalidade: é suficientemente ressaltado: a ordem de mercado náo é uma "economia'',
toda regra que derive de determinado fim seria nociva, porque, ao prescrever mas é constituída de "relaífóes económicas" (nas quais a competiyáo entre
urna conduta (a que corresponde a determinado fim e a nenhum outro), projetos divergentes opera a distribuiyáo de todos os meios disponíveis), e
apenas perturbada o funcionamento de urna ordem que é, por principio, essas relaífóes econ6micas se encomram na base do vínculo socia/ 20•
independente de qualquer fim particular. Tais regras, portanto, náo podem Tal concepífáo da ordem do mercado como ordem espondnea é solidária
estabelecer o que as pessoas devem fazer, mas so mente o que náo devem fazer: de outra tese, igualmente central no pensamento de Hayek: a da "divisáo
consistem "unicarriente em interdiyóes de invasáo do domínio protegido do do conhecimento". Essa noyáo, elaborada muito cedo 21 , é construída por
outro" 15. Hayek chama essas regras de leis para distingui-las das prescriyóes analogia com a noyáo smithiana de "divisáo do trabalho". Os indivíduos
positivas paniculares (também conhecidos como mandamentos16 ), de modo possuem conhecimentos limitados e fragmentários (constituídos mais de
que a ordem de mercado pode ser caracterizada como nomocracia (regida informayóes práticas e savoirjairedo que de conhecimentos racionais), por
pela lei), náo como teleocracia (regida por um fim ou fins) 17 isso ninguém pode afirmar que derém, em dado momento, o conjunto dos
O terceiro aspecto é que a própria sociedade deve ser compreendida como ~onhecimentos dispersos entre os milhóes de indivíduos que compóem a
urna ordem espont;lnea. Obviamente, a sociedade náo é redutível ordem do a sod~dade. No entanto, grayas ao mecanismo do mercado, a combinayáo
mercado, aindaque se encontrem nela tanto ordens espontaneas (o mercado, desseS fragmentos ~spalhadós geraresultados em toda a sociedade que náo
a moeda) como organizayóes ou ordens construídas (as famílias, as empresas, poderiam ser gerados de forma deliberada pela via de urna direyáo Consciente.
as instituiyóes públicas, entre as quais o próprio governo). Náo obstante, lsso somente é possível na medida em que, numa ordem de mercado, os
nessa ordem de conjunto que constitui urna sociedade, a ordem do mercado preyos desempenham o papel de vetares de transmissáo da informayáo22•
ocupa um lugar fundamental. Em primeiro lugar, na medida em que a ex- No nível da doutrina económica, tal visáo opóe-se irredutivelmente a
tensáo dessa ordem do mercado no decorrer da história teve como resultado reoria do equilíbrio geral (Léon Walras): enquanto esta última pressupóe
a ampliayáo da sociedade para além das organizayóes estreitas da horda, do agentes perfeitarnente informados de todos os dados capazes de fundamentar
clá e da tribo, até fazer surgir o que Hayek chama de "Grande Sociedade" a
suas decisóes, a concepyáo hayekiana dá enfase situayáo de incerteza em
o u "Sociedade Aberta" 18 • Em segundo lugar, porque "os layes que mantem que o mercado póe os agentes econ6micos 23 • Mais urna vez, Hayek retoma
o conjunto de urna Grande Sociedade sáo puramente econ6micos": ainda
19
Friedrich Hayek, Droit, législation et liberté, v. 2, cit., p. 135.
14 Idem, Essais de phílosophie, de science polítique et d'économíe, cit., p. 251. 20
Hayek vai m~to além do liberalismo dássico que, na pessoa de seus primeiros repre-
15 Ibidem, p. 253 (ver também idem, Droit, législatíon et liberté, v. 2, cit.,"p. 148). sentantes (Smrth, Ferguson), sempre se recusou a fundamentar o vínculo social apenas
!6 Sobre a distin<;:áo de lei e mandamento, ver Friedrich Hayek, La constítution de la sobre o vínculo económico. Urna nota de Droit, législatíon et liberté (cit., cap. 10, p. 212,
liberté, cit., p. 148-9. ~ota 12) cita.a favor dessa tese a afirm~:ío deAntoine-Louis-Claude Destutt de Tracy:
17 Idem, Essais de philosophie, de science politíque et d'économie, cit., p. 251. Commerce 1S thewhole ofSodety'' [0 comércio é o todo da Sociedade _N. T].
21

18 Idem. Desse modo, Hayek acaba renovando urna das grandes ideias de Ferguson: Sobre esse ponto, remetemos ao capítulo precedente.
22
a da "sociedade civil" como motor do progresso histórico (entendido que o conceito Friedrich Hayek, Droit, législation et liberté, v. 2, cit., p. 141.
23
de "ordem do mercado" náo coincide exatamente como de "sociedade civiF'). Assim, Sobre o vínculo entre ordem espontanea de mercado e divisio do conhecimento, ver
náo causa muita sorpresa que tenha sempre se desvinculado de qualquer forma de a apresenta<;:io clara e informada de Gilles Dostaler, Le libéralisme de Hayek (Paris,
"conservad.orismo". La Découverte, 2001), p. 31-2 e 50-1. Ver também o capítulo 4 ~este volume.
Estado forte, guardiáo do direito privado Q 165
164 • A nova razáo do mundo

de maneira original urna das ideias-foryas do liberalismo smithiano, já que e abstratas que se impóem a todo indivíduo, tanto independentemente
a metáfora da "máo invisível" significa em esséncia a impossibilidade de da busca de um fim partkular como independentemente de qualquer
urna totalizayáo do processo económico, portanto, urna espécie de incog- circunstáncia particular27 . Essas regras formais de _condllta constituem o
4 arcabouyo do direito }rivad~ e do direito penal. A mais dan osa das confu-
noscibilidade benéfica' .
O termo com que Hayek pretende condensar sua -concepyáo da ordem sóes seria identificá-las corn as regras do direito público. Estas últimas náo
de mercado é "catalaxia": sáo regras de conduta, mas regras _de--organizaráo, que tem como funyáo
definir a organizayáo do Estado e dáo a urna autoridade o poder de agir de
Proponho denominarmos essa ordem espontánea do mercado cat~tm:ia,
por analogia coro o termo "catalaxiá', que foi pro posta pa~a substltUH. o determinada maneira, "a luz de objetivos específicos". Hayek observa que
de "ciéncias económicas". Catalaxia vem do verbo grego anngo kata/atem, a progressiva insinuayáo do direito público no direito privado no decorrer
q ue, significativamente, quer dizer" náo só "trocar" e "intercambiar", como do século anterior fez com que o termo "lei", que originalmente designava
"C d •• ·
também "admitir na comunidade e 1azer e um mrmrgo um aJmgo .
• "25
apenas as regras de conduta aplicáveis a todos, viesse a designar "toda regra
Devemos prestar atenyáo, acima de tuda, ao duplo sentido do verbo de organizayáo o u mesmo toda ordem particular aprovada pela legislatura
grego, que dá a entender que a traca está na base do vínculo social, na constitucionalmente instituída'' 28 •
medida em que cria urna ordem por ajuste mútuo das ayóes dos diferentes O liberalismo só podia opor-se a essa evoluyáo: a ordem que ele preten-
de promover pode ser definida como urna "sociedade de direito privado"
indivíduos.
a
Hayek vincula essa noyáo de ordem espontánea grande filosofia esco- (Privatrechtsgesellschaft), segundo expressáo do ordoliberal alemáo Franz
cesa do século XVIII, aquela mesma ilustrada por nomes como Ferguson, B-Oh~ que Hayek ~ama para si29 . Precisamente porque toda regra de or-
Smith e Hume. No artigo "Tipos de racionalismo" (1965), ele contrapóe ganizayáo é ordenada para uÍn objetivo, e é característico de urna regra de
dais racionalismos: um "racionalismo ingénuo" e um "racionalismo críti- conduta ser independente de todo objetivo, é que se deve tomar~ cuidado
co". O primeiro (de Bacon, Descartes e Hobbes) afirma que todas as ins- de distingui-las nominalmente. Lernbramos que os gregos distinguiam
tituiyóes humanas sáo "criayóes deliberadas da razáo consciente": convém judiciosarnente nomos e thesis: apenas o direito privado é nomos, o direito
a esse primeiro racionalismo, que ignora os limites dos poderes da razáo, a público é thesis, o que significa que o direito público é "ditado" ou "cons-
denominayáo "construtivismo" 26 . O segundo, ao contrário, define-se pela truído" e, nesse sentido, constitui urna ordem "fabricada'' ou "artificial", ao
consciéncia desses limites, e é precisamente essa consciéncia que lhe permite passo que o direito privado é essencialmente urna ordem "espontinea''. As
arranjar lugar para ordens que náo procedem de urna deliberayáo consciente. regras de conduta que possibilitam a formayáo de urna ordem espond.nea
do mercado sáo oriundas, portanto, náo da vontade arbitrária de uns poucos
hon:ens, mas de um processo espondneo de seleyáo que age em longo prazo.
A "esfera garantida de liberdade" e o direito dos indivíduos E nesse ponto que o pensamento de Hayek se inspira diretamente na

Vimos que a ordem espontánea deve ser caracterizada como ':nomocrá-


a
teoria darwiniana de evoluyáo, e náo é toa que se pOde falar dela como
"evolucionismo cultural". Do modo como Hayek a compreende, a noyáo
tica", náo como "teleocrática''. Para compreender o lugar que Hayek reserva
de evollll;:áo designa um "processo de adaptayáo contínua a acontecimentos
a
ao direito, convém voltarmos brevemente noyáo de "lei" (nomos). De
fato, esse termo deveria designar, stricto sensu, apenas as regras impessoais
27
Friedrich Hayek, Droit, légíslation et liberté, v. 2, cit., p. 42. Por "abstrata'' entende-se
que "a regra deve aplicar-se a um número indeterminado de instándas futuras".
24 Michel Foucault, Naissance de la biopolitique (Paris, Seuil/Gallimard, 2004), p. 285. 28
Idem, Essais de philosophie, de science politique et d'économie, cit., p. 258-9.
29
25 Friedrich Hayek, Essais de philosophie, de science politique et d'économie, cit., p. 252-3. Ibídem, p. 258 (ver também Friedrich Hayek, Droit, législation et liberté, v. 2, cit.,
p. 37). Para esse conceito, ver capítulo 3 deste volwne.
26 Ibidem, p. 143.
Estado forte, guardiáo do direito privado • 167
166 • A nova razáo do mundo
30
imprevisíveis, a circunstáncias aleatórias que náo poderiam ser previstas" • focit legem" 33 , Hobbes definiu a lei como "o mandamento. daquele que detém
É essa ideia que permite a analogia entre a evoluyáo biológica e a evoluy:io o poder Legislativo"34 . NáO se poderia exprimir tnelhor a confusáo entre lei e
das regras do direito na escala das sociedades humanas. Assim como o mandamento critica4a por _Hayek, tanto mais que, para HÜbbes, o soberano- e
mecanismo da seleyáo natural assegura a sobrevivencia das espécies mais apenas ele- é o legislador. Em segundo lugar, Bentham: se o direito ingles é
adaptadas a seu ambiente e a extinyáo das o u traS, a seleyáo inconsciente de dividido em dais ramos, apenas a lei foita pelo legislador merece ser designada
regras de "conduta justa" (ou regras de direito privado) favorece a adaptayáo como direito real (statute law), "todos· os arranjos que supostamente sáo feitos
das sociedades a um ambiente com frequencia hostil. Com o tempo, esse pelo outro ramo[ ... ] deveriam ser distinguidos pelas denominayóes de direito
processo de seleyáo das regras "por tentativa e erro" permitiu a ampla difusáo irreal, náo realmente existente, imaginário, facdcio, ilegítimo, direito Jeito pelo
das regras mais eficazes, segundo urna lógica de "evoluyáo convergente"; juii'35 • Esse direito "feito" pelo juiz é a common law, ou lei náo escrita, que
portante, sem que fosse necessário postular uma imitayáo consciente de Bentham se dedica a desacreditar, na medida em que náo é "a vontade de
certas sociedades por outras •
31 mandamento de um legislador", que é propriamente a lei36 • Na opiniáo
Seja qual for a pertinencia dessa referencia a Darwin, o que está em de Hayek, John Austin e Hans Kelsen apenas prolongam essa tradi<;áo inte-
questáo é a ideia de que a seleyáo das regras de conduta justa está na base lectual que reduz o direito a vontade de um legislador, em oposiyáo tradiyáo a
do progresso das sociedades. De fato, foi por meio dela que a humanidade liberal, que afirma a anterioridade do direito sobre a legislas;áo.
conseguiu sair das primeiras sociedades tribais e libertar-se de urna ordem Contudo, o reconhecimento dessa anterioridade da justiya sobre qualquer
baseada no instinto, na proxirnidade e na cooperayáo direta, até formar os - legislayáo e sobre qualquer Estado organizado náo significa adesáo a doutrina
la<;os da "Grande Sociedade". O ponto fundamental é que esse progresso náo d0..direito natur~. Haye~ evita a alternativa entre positivismo e naturalismo:
se deve a urna criayáo consciente por parte de legisladores particularmente as regras da jusclc;a náo sio deduzidas abstratarhente pela razáo "natural"
inventivos: essas regras de direito privado (em particular as do direito comer- (jusnaturalismo) nem sáo fruto de um desígnio deliberado (positivismo),
cial) foram incorporadas as tradiyóes e aos costurnes muito antes de serem mas sáo um "produto da experiéncia prática da espécie hwnana'' 37 , isto é,
codificadas pelos juízes, os quais, no fim das cantas, apenas as descobriram, o "resultado imprevisto de um processo de crescimento" 38 • Para Hayek,
nunca tiveram de faze-las. Aliás, é isso que justifica que essas regras sejam portanto, está fora de cogitayáo invocar, como Locke, urna "lei natural"
distinguidas das regras "postas" (thesis). Como Hayek observa explicitamente, inscrita por Deus na criatura sob a forma de um mandamento da razáo 39 •

a
o emprego do adjetivo "positivo" aplicado Iei deriva do latim, que traduzia
por positus (que é posta) o u positivus a expressáo grega thesei, que designava 33 Thomas Hobbes, Leviatá, 1651, cap. 26, citado em Friedrich Hayek, Droit, ligislation
algo criado deliberadamente por urna vontade humana, em oposiy:io aoque et liberté, v. 2, cit., p. 53: "Náo é a verdade, mas, a autoridade, que faz a lei".
32
náo foi inventado, mas produzido physei, pela natureza. 34
Thomas Hobbes, Dialogue on the Common Laws (1681), citado em Friedrich Hayek,
É nesse ponto que Hayek se opóe diretamente a toda tradiyáo do posi- Droit, législation et liberté, v. 2, cit., p. 54.
tivismo jurídico. Ele visa a dais autores em particular. Em pri~eiro lugar,
35 Bentham, citado em Friedrich Hayek, Droit, législation et liberté, v. 2, cit., p. 54;
grifo nosso.
Hobbes: fazendo suas as palavras do ditado latino "non verítas sed auctoritas
36 Bentham, citado em Friedrich Hayek, Droit, législation et liberté, v. 2, cit., p. 197,
nota 35: "The primitive sense of the word law, and the ordinary meaning of the
word, is [... ] the will of command of a legislator" [O Sentido primitivo da palavra
lei, e o significado comum dessa palavra, é (... ) a vontade de mandamento de um
30 Friedrich Hayek, La présomption Jatale: les erreurs du soci.alisme (Paris, PUF, 1993),
legislador- N. E.].
p. 38, citado em Gilles Dostaler, Le libéralisme de Hayek, cit., p. 86.
37 Friedrich Hayek, Essais de philosophie, de science politique et d'économie, cit., p. 180.
Jt Friedrich Hayek, Droit, législation et liberté, v. 2, cit., p. 48.
38
Ibidem, p. 167.
32 Ibidem, p. 53 (ver também Friedrich Hayek, Essais de philosophie, de science politique
39 Ibidem, p. 162-3, nota 7.
et d'économie, cit., p. 169, nota 21).
168 o A nova razáo do mundo Estado forre, guardiiio do direito privado 6 169

Se ainda se insiste em falar de "lei da natureza'', é no sentido de Hume que definis:áo de liberdade é enganosa, seja a "liberdade polítid' cornpreendida
devemos compreendé-la: as regras de justiya náo sáo conclusóes da razáO, como participayáo dos homens na escolha do_ governo ou na elaboqyáo
que é absolutamente impotente para formá-las; podemos dizer que sáo da legislas:áo, seja até a "liberdade interior" ráo exalradá pelos filósofos (o
"artificiais" (no sentido em que náo sáo inatas), mas náo "arbitrárias", na a
controle de si mesmO em Oposiyáo escravidáo das paixóes) 45 . Da coeryáo
medida em que foram elaboradas progressivamefne, assim como os idiomas como o conrrário da liberdade, Hayek dá a seguinte definiyáo:
e o dinheiro, a partir da experiencia repetida dos inconvenientes causados Por coen;áo entendemos o fato.de qlie urna pessoa seja dependenre de um
por sua transgressáo 40 . Todas essas regras se resumem a trés leis funda- ambiente e de circunstáncias tilo controlados por outra pessoa que, para
mentais: ''A da estabilidade das posses, a da transferéncia destas mediante evitar um dano maior, é abrigada a agir náO ero conformidade com seu
consentimento e a d o cumpnmento. d as promessas"41 : ou sep,
. o conteu'do próprio plano, mas a servit;:o dos objetivos dessa outra pessoa. 46
essencial de todos os sistemas de direito privado: "a liberdade de contrato, a Essa definiyáo da coeryáo como imposiyáo a um indivíduo dos objetivos
inviolabilidade da propriedade e o dever de compensar o outro pelos danos de um o u vários outros indivíduos parece situar Hayek na linha de um John
que lhe sáo causados" 42 • Stuart Mill. Em todo caso, a distinyáo entre is ayóes que afetam apenas seu
Essa identificayáo do núcleo fundamental das regras de conduta justa ce
autor e as que afetam os interesses de outro sabemos a importancia que
acarreta urna reelaborayáo da questáo da liberdade e dos direitos individuais, Mill dava a essa distinyáo) parece pouco operante em si mesma ao autor de
tal como fora estabelecida pelas principais correntes do liberalismo clássico. Os fundamentos da liberdadé-7• Aliás, Hayek considera excessivo o violento
De fato, sáo essas regras que, tomando carpo progressivamente, possibilitam, ataque de Mil! ao "despotismo do costume" no capítulo 3 de Sobre a liber-
a
em paralelo formayáo da ordem espontánea do mercado, urna extensáo dadr,_: ·etn sua críti~a a "coer~áo moral", "levo u prüvavelmente longe demais
do "domínio" da liberdade individual. Esse domínio coincide coma "esfera a defesa da liberdáde", na medida-em que a pressáó.da opiniáo pública náo
de decisáo privada'' da qual o indivíduo dispóe quando situa sua ayáo no poderia ser identificada com urna "coeryáo" 48 • Apenas urna defi~iyáo estrita
quadro formal das regraE. Isso mostra a que ponto a liberdade, longe de da coeryáo, que implica urna instrumentalizayáo da pessoa a serviyo dos
ser um dado natural ou wna invenyáo da razáo, é resultado de urna langa objetivos de outrem, parece capaz de "trayar os limites da esfera protegida''.
evoluyáo cultural: ''Ainda que a liberdade náo seja um estado de natureza, Na medida em que as "regras-leis" rema funyáo de proteger o indivíduo da
mas um bem fabricado pela civilizayáo, ela náo nasceu de um desígnio" 43 • coeryáo exerdda por outro, ficará estabelecido que, nwn regime de liberdade,
Mais urna vez, nem naturalismo nem voluntarismo tém razáo. A liberdade "a esfera livre do indivíduo compreende toda ayáo que náo é explicitamente
náo é o "poder de fazer o que se quer"; ela é indissociável da existéncia de restringida por urna lei geral" 49 • Somente depois de feita essa delimitayáo
regras morais transmitidas pelo costume e pela tradiyáo que, em razáo é que se pode ter esperanya de fundamentar os direitos individuais. A
de sua generalidade, proíbem a todo indivíduo o exÚcício de urna coayáo originalidade de Hayek é vincular esses direitos náo a urna lei da natureza
qualquer sobre outrem. Consequentemente, a única definiyáo de liberdade prescrita por Deus (Locke) o u a lei geral da vida (Spencer), mas as regras de
aceirável para Hayek é "negativa'': liberdade é a "auséncia desse obstáculo condura justa: "Há wn sentido da palavra 'direito' segundo o qual toda regra
muito preciso que é a coeryáo exercida por outrem" 44 • Qual<iuer outra de conduta justa cria um direito correspondente dos indivíduos", de modo que,

40 45
Ibidem, p. 183. lbidem, p. 13-6. Hayek denuncia a confusáo de pensamemo que cerca o conceito
~~ David Hume, citado em Friedrich Hayek, Essaís de philosophie, de science politíque et filosófico de "liberdade da vomade" (/reedom of the wil/J.
46
d'économie, cit., p. 183 (ver também idem, La constitution de la liberté, cit., p. 157). Ibídem, p. 21.
47
42 Friedrich Hayek, Droit, législatíon et liberté, v. 2, cit., p. 48. Ibídem, p. 145.
4
43 Idem, La constítution de la liberté, cit., p. 53. H Ibídem, p. 146.
44 Ibidem, p. 19. ~~ Ibidem, p. 215.
170 "' A nova razáo do mundo Estado forte, guardiáo do direito privado 1.71

na medida em que essas regras "delimitam domínios pessoais", "o indivíduo Contudo, devemos ver que, se Hayek recupera o conceito lockeano de
terá direito a esse domínio" • 50 "propriedade", é deduzindci-o de sua própria ideia da lei cofia regra geral
Podemos ver aqui que tuda depende do prévio reconhecimento de derivada de um "crescimento inconsciente", portanto, desvinculando-a de
urna "esfera privada'', ou "reservada", garantida pelas regras gerais: "O seu fundamento juS~atu~aÜsta.
caráter 'legítimo' das expectativas de alguém, oli os 'direitos' do indivíduo,
51
é resultado do reconhecimento da esfera privada considerada'' • Assim, a
O "domínio legítimo das atividades governamentais"
definic;:áo da coerc;:áo como "violayao dos direitos individuais" semente é
lícita se esse reconhecimento foi consentido, já que o reconhecimento efe- e a regra do Estado de direi to
tivo da esfera privada equivale ao reconhecimento dos direitos concedidos Os contornos da esfera protegida parecem estabelecer por si mesmos
pelas regras que delimitam essa esfera. Portante, as regras gerais sáo, em os limites da intervenyá_o do Estado: toda intromissao deste último nessa
primeiro lugar e acima tudo, regras de composiyao das esferas protegidas e, esfera constituirá um atentado arbitrário aos direitos do indivíduo, de
como tais, garantem a cada indivíduo direitos cuja extensao é estritamente modo que se teda aqui o critério que permite discriminar as intervenyóes
a
proporcional de sua esfera própria. o
erro seria restringir essa extensao a legítimas das ilegítimas. De fato, devemos insistir neste ponto: a questao
dos bens materiais que pertencem a um indivíduo: principal para Hayek é a da legitimidade, náo a da ejicdcia. O argumento
Náo devemos imaginar essa esfera como constituída exclusivamente, nem da ineficácia prática ou dos efeitos nocivos da intervens:áo governamental
rnesmo principalmente, de bens materiais. É claro que o principal objetivo .p_.arece-lhe propenso a obscurecer a "distinyáo fundamental entre medidas
das regras de composü;:áo das esferas é repartir as coisas que nos cercam cátnpatíveis e me~idas incpmpatíveis com um sistema de liberdade" 54 •
entre 0 que é meu e o que náo é, mas essas regras também nos garantem
Basta lembrar :a maneira como Mill tenta deterillinar os lim,ites da as;ao
vários outros "direitos", como a segurantra em certos usos dos objetos o u
governamental no capítulo 5 de Sobre a liberdade para mensurar a distáncia
simplesmente a proteyáo cont~a as intromissóes em nossas atividades.
52

que separa sua tentativa da de Hayek. Mill nao deriva a doutrina do livre-
Mais amplamente, a noc;:ao de "propriedade" ganhará um sentido am- -cámbio do princípio da liberdade individual: as restriyóes impostas ao
pliado, que recobre o que Locke já dera ao termo genérico de "propriedade" comércio sao coeryóes, sem dúvida, mas, "se sao condenáveis, é unicamente
no Segundo tratado do governo: porque náo produzem os resultados esperados", náo é em absoluto porque a
Desde a época de John Ladee, é costume denominar esse domínio pro- sociedade náo temo direito de coerc;:ao 55 • Hayek tem conscü~ncia da insufi-
tegido "propriedade" (o que o próprio Ladee definiu como "a vida, a ciéncia do ponto de vista de Mili sobre essa questao. Na nota 2 do capítulo
liberdade e as posses de um homem"). No en tanto, esse termo sugere urna
15 de Os fondamentos da liberdade, ele sublinha que, como os economistas
conceptráo demasiado estreita e puramente material do domínio protegido,
tém o hábito de considerar rudo sob o ángulo da oportunidad e, "náo admira
que indui náo apenas os bcns materlais, mas também os rec~rsos diver~os
contra os outros, assim como certas expectativas. Se, todavla, o concelto que tenham perdido de vista os critérios mais gerais". Segue-se imediatamen-
de propriedade é interpretado (corno cm Locke) em sentido a.n;pliado, re urna referéncia a Mili: "John Sruart Mili, admitindo ( On Liberty, 1946,
é verdade que a lei, no sentido de regras de justitra, e a instituitráo da p. 8) que 'nao há de fato nenhum prindpio que permita julgar de maneira
·¿
propne a e¿sao· mseparavers.
···53 geral a legitimidade da intervenc;:ao do poder', já dera a impressáo de que

so Friedrich Hayek, Droit, législation etliberté, v. 2, cit., p. 121; grifo nosso.


5
SJ Idem, La constitution de la liberté, cit., p. 139. ~ Idem, La constitution de la liberté, cit., p. 222.
55
52
Ibidem, p. 140. John Stuart Mili, De la liberté (Paris, Gallimard, 2005), p. 209 [ed. bras.: Sobre a
53 Friedrich Hayek, Essais de philoso?hie, de scíence politique et d'économie, cit., p. 257. liberdade, trad. Ari Ricardo Tank Brito, Sáo Paulo, Hedra, 2010].
172 ., A nova razáo do mundo Estado forte, guardláo do direito privado o 173

tuda era questáo de oportunidade" 56 , O gue Hayek pretende enunciar é extensáo ao domínio da ética da ideia base da supremacia do direito 60 . Em
justamente es.se princípio geral de legitimidade. 1963, essa inversáo ganha urila formulayáo mais clara no texto da confer~n­
Para chegar a esse princípio, primeiro é preciso compreender que a a
cia dedicada "A filosofia do direito e a filosofia política de David Hume":
constitui-;:áo da esfera de ayáo reservada ao indivíduo procede inteira e Diz-se as vezes que Kant desenvolveu sua teoria do Estado de direito apli-
exclusivamente da existéncia das regras gerais de cÜnduta justa. Consequen- cando aos assumos públicos seu conceito moral de imperativo categórico.
temente, rudo que ponha em causa essas regras só pode ser urna amea-;:a O que aconteceu foi provavelmente o-inverso, isto é, Kallt desenvolveu sua
a própria liberdade individuaL Por isso, é necessário que se estabeleya em teoria do imperativo categórico aplicando a moral o conceito de Estado de
direito (Rule of Law), que ele encomrou pronto para usar. 61
princípio que nenhuma intervenyáo do Estado, por mais bem-intencionada
que seja, deve eximir-se do respeito devido as regras gerais. Em outras A equivaléncia postulada aqui entre a expressáo alemá "Estado de direito"
palavras, o Estado deve aplicar a si mesmo as regras que valem para toda e a expressáo inglesa "império da lei" permite a Hayek ir ainda mais longe:
pessoa privada. Podemos ver agora como se deve entender a proposiyáo de ele afirma no mesmo texto que "o que Kant tinha a dizer a esse respeito
que a ordem liberal forma urna "sociedade de direito privado", segundo a parece derivar diretamente de Hume"62 •
expressáo de Bühm adotada por Hayek: as regras do direito privado devem Para precisar a implicayáo teórica e política dessa questáo, devemos lem-
prevalecer universalmente, inclusive para as "organizayóes" que dependem brar, seguindo Foucault63, que a norma do Estado de direito constituiu-se
náo da ordem espontánea do mercado, mas do Estado. Ternos aqui, em na Alemanha a partir de urna dupla oposiyáo: ao despotismo, de um lado,
cerro sentido, a consequéncia jurídica da ideia de que a sociedade inteira -~ ao Estado de polícia (Polizeistaat), de outro. Essas duas noyóes náo sáo
("the whole ofSociety") 57 repousa sobre "relayóes eco nO micas" (urna vez que cbin~identes. O d~spotismo torna a vontade do soberano o prindpio da
estas sáo estruturadas pelo direito privado). Para Hayek, foi esse princípio obriga<;áo de todos de obed~cer asinjun<;óes da poténcia pública. O Estado
da autoaplicaráo pelo Estado dds regras gerais do direito privado que recebeu de polícia, por sua vez, caracteriza-se pela auséncia de diferen'ya entre as
historicamente na Alemanha a denominayao de "Estado de direito" (Re- prescriyóes gerais e permanentes da poténcia pública (o que se convencio-
chtsstaat). Daí a tese segundo a qual "o Estado de direito é o critério que nou denominar "leis") e os atos particulares e conjunturais desse mesmo
nos permite fazer a distinyao entre as medidas que sáo compatíveis com um a
poder público (que estáo diretamente ligados esfera dos "regulamentos").
sistema de liberdade e as que náo o sáo" 58 . Segue-se disso urna dupla defini<;áo do Estado de direito: em primeiro lugar,
De ande vem essa "tradi-;:áo alemá do Rechtsstaat", cuja importfulcia deci-
siva para todo o movimento liberal posterior é ressaltada em Os fundamentos 60
Obviamente, na arquitetura do sistema, a "Doutrina do direito" precede a "Doutrina
da liberdade? Se acreditarmos em Hayek, essa tradiyáo deve o essencial de da virtude", mas ambas sáo precedidas pela Fundamenta¡;:áo da metafísica dos costu-
a
sua inspirayáo teórica influéncia da filosofia do direito. de Kant. Invertendo mes, a qual incumbe extrair em toda a sua pureza o princípio supremo da moralidade.
61
a ordem dedutiva em que o próprio Kant articulou moralidade e direito, Friedrich Hayek, "La philosophie juridique et poli tique de David Hume", em Essais
Hayek interpreta livremente o famoso "imperativo categórico" 59 como urna de philosophie, de science politique et d'économie, cit., cap. 7, p. 188. Se é verdade que
o problema da "aplica¡;áo" da moralidade pura é, nitidamente, um problema delicado
no kantismo, nada justifica a afirmac;:áo de que Kant teria "aplicado" o dlreito amoral
para chegar ao conceito do imperativo categórico.
56 Friedrich Hayek, La constitution de la liberté, cit., p. 484. 62
ldem. Mais urna vez, só podemos desmentir a possibilidade de tal "derivac;:áo": em
57 Ver nota 20 deste capítulo. Hume, as "leis da natureza'' sáo fruto de urna experiéncia progressiva, ao passo que
58 Friedrich Hayek, La constitution de la liberté, cit., p. 223. em Kant a "lei moral" é inteiramente a priori e, como tal, independente de qualquer
59 "Age apenas segundo urna máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se experiénda, o que é confirmado pelo caráter puramente formal dessa lei (por contraste
torne lei universal", Immanuel Kant, Fondation de la métaphysique des mceurf (Paris, como conteúdo determinado das trés regras evidenciadas por Hume: estabilidade das
Flammarion, 1994), p. 97 Ied. port.: Fundamentacdo da metafísica dos costumes, trad. posses, transferéncia das posses mediante consentimento, cumprimento das promessas).
Paulo Quintela, 2. ed., Lisboa, Edic;óes 70, 2009]. 63
Michel Foucault, Naissance de la biopolitique, cit., p. 173-4.
174 ~ A nova razáo do mundo Estado forte, guardiáo do direito privado • 175

ele enquadra os atos da poténcia pública por meio de leis que os limitam legal, que é o da legislayáo entendida no sentido da detenpinayáo de novas
de antemáo, de modo que náo é a vontade do soberano, mas a forma da regras gerais de conduta; teréeiro e último, o nível governamental, que é o
lei que constitui o princípio da obrigayáo; em segundo lugar, o Estado da promulgayáo do~ ~e~r~t?s e regulamentos específicos. Vemos que, nessa
de direito faz urna distinyáo de princípio entre ~ leis, que valem por sua hierarquizayáo, a regra do Estado de direito é a que deve presidir elaborayáo a
validade universal, e as decisóes específicas o u medidas administrativas64 . de todas as regras gerais o u leis. O que importa é compreender o verdadeiro
Um pouco mais tarde, na segunda metade do século XIX, a elaborayáo alcance desse princípio: constituir _"urna limitayáo dos poderes de todo go-
dessa noyáo de Estado de direito foi aprofundada ern um sentido que fez verno, inclusive os poderes do legislador" 67 • Essa funyáo impede que ele seja
o problema dos "tribunais administrativos" aparecer como um problema resumido a urna simples exigéncia de legalidade; a conformidade das ayóes
central. Com efeito, seguindo essa elaborayáo, o Estado de direito náo tem do governo as leis existentes náo garante por sisó que o.poder de agir do
apenas como característica restringir sua ayáo ao quadro geral da lei; ele é governo seja limitado (urna lei poderia dar ao governo o poder de agir como
um Estado que oferece a cada cidadáo vias de recursos jurídicos contra a bem entende); o que é exigido pela regra do Estado de direito é que todas
poténda pública. Disponibilizar tais vias implica a existéncia de instáncias as leis existentes "se conformem a cerros princípios" 68 •
judiciais responsáveis por arbitrar as relayóes entre os cidadáos e a poténcia Isso conduzirá, por consequéncia, a distihyáo de "Estado de direito
pública. É precisamente sobre o status desses tribunais que as controvérsias formal" (jórmeller Rechtsstaat) e "Estado de direito material"" (materieller
váo se cristalizar na Alemanha no decorrer do século XIX65 • Rechtsstaat): o Estado de direito, tal como Hayek o entende, corresponde
Retendo a ideia de que o Estado tem de poder ser levado diante de um ~ao "Estado de direito material", que exige que a ayáo coercitiva do Estado
tribunal por qualquer cidadáo, bem como por qualquer pessoa privada, na a
seja,~stritamente limitada aplicayáo de regras uniformes de conduta justa,
medida em que está sujeito as mesmas regras de direito que toda pessoa ao passo que o "Es'tado"de direito formal" requer apenas alegalidade, isto é,
privada, Hayek dá a essa noyáo de Estado de direito urna amplidáo inédita, "exige simplesmente que cada ayáo do Estado seja autorizada pela legislayáo,
fazendo-a desempenhar o papel de regra para toda legislaráo. Urna passagem quer essa lei consista numa regrageral de conduta justa, quer náo" 69• Dessa
de Os fondamentos da /iberdade diz isso de maneira muito explícita: forma, a crítica a concepyáo integralmente artificialista da legislayáo de um
Sendo o Estado de direito urna limita<;áo de toda legisla;áo, segue-se que Bentham adquire todo o seu sentido. Estabelecer que tuda, até os direitos
ele náo pode ser urna lei no mesmo sentido das leis feitas pelo legislador reconhecidos do indivíduo, procede da "fábrica'' do legislador é consagrar
[... ]. O Estado de direito, por conseguinte, háo é uma regra estabelecida teoricamente a "onipoténcia do poder Legislativo" 70 • Inversamente, reco-
pela lei, mas urna regra que diz respeito ao que devcria ser a lei, urna regra
nhecer que a extensáo dos direitos individuais caminha de máos dadas com
metalegal o u um ideal político. 66
a elaborayáo das regras do direito privado é fazer dessas regras o modelo
Obtém-se desse modo trés níveis distintos que s.ó teriam a ganhar se ao qual o próprio poder Legislativo deve conformar-se em sua atividade,
fossem sempre cuidadosamente hierarquizados: primeiro, o nível metale- portanto, impor-lhe de antemáo limites intransponíveis.
gal, que é o da regra do Estado de direito; segundo, o nível propriamente Entáo, quais sáo, mais precisamente, as condiyóes que todalei deve satisfa-
a
zer para conformar-se regra metalegal do Estado de direito? Hayek enumera
trés "atributos da lei verdadeira", isto é, da lei no sentido "substancial" ou
64 lbidem, p. 174-5. Foucault se refere a obra pioneira de KarlTheodor Welcker, Die "material" que acabamos de especificar. O primeiro atributo dessas regras
Letzen Gründe von Recht, Staat und Straje [Os últimos fUndamentos do direito, do Estado
e da punirá,] (1813). 67
Ibidem, p. 205.
65 Sobre essas controvérsias, ver Friedrich Hayek, La constitution de la liberté, cit.,
68
p. 201-4, bem como o comentário de Michel Foucault, Naissance de la biopolitique, Idem.
69
cit.• p. 175-6. Friedrich Hayek, Essais de philosophie, de sciencepolitique et d'économie, cit., p. 197 e 254.
70
66 Friedrich Hayek, La constitution de la liberté, cit., p. 206. Idem, Droit, législation et libert~, v. 2, cit., p. 63.
176 ~ A nova razáo do mundo Estado forte, guardiáo do direito privado " 177

é, obviamente, sua generalidade: náo devem fazer referéncia "a nenhuma algum que as leis decretadas pela autoridade legislativa devem conformar-se
pessoa, nenhum espayo ou nenhum objeto em particular", "devem sempre ao modelo das regras do diréito privado, tampouco confunde tais leis com
visar ao futuro e jamais ter efeito retroativo" 71 . O que implica que a lei autén- as regras de justiya ql!e sáo_ as "leis de natureza" (estabiÜdade das posses,
tica se abstém de visar a um fim particular, por mais desejável que pareya a transferéncia consentida. da propriedade, obrigayáo das promessas). A mesmi
primeira vista. O segundo atributo é que essas- regras "devem ser conhe- observayáo vale para Locke. Direito, legíslaráo e liberdade faz urna referén-
cidas e indubitáveis" 72 • Se Hayek enfatiza particularmente essa condiyáo, cia elogiosa ao Segundo tratado do.governo, citando em nota78 o início do
é porque a certeza da lei, assim como a previsibilidade de suas decisóes, parágrafo 142: o poder Legislativo, explica Locke, "deve governar segundo
garantem ao indivíduo- que está fadado a agir num contexto de incerteza !eis estdveis e promu!gadds (promu!gated established Laws), que náo devem
em virtude da ordem espont<lnea do mercado- esse mínimo de estabilidade variar ao sabor dos casos particulares; deve ter apenas urna regra para o rico
sem o qual ele teria urna enorme dificuldade para levar a cabo seus próprios e para o pobre, para o favorito na Corte e para o camponés no arado" 79 .
projetos: ''A questáo é saber se o indivíduo pode prever a ayáo do Estado, Mais urna vez, devemos observar que a argumentayáo de Locke se insere
e se esse conhecimento lhe forrtece pontos de referéncia para adequar seus numa problemática da limitayáo do poder Legislativo que náo equivale a
próprios projetos" 73 • Enfim, o terceiro atributo de urna lei verdadeira náo trayar o ideal de urna "sociedade de direito privado". Urna coisa é abrigar o
é outro senáo a igualdade, o que significa que "toda lei deve ser aplicada poder a fazer as leis segundo a regra formal da esrabilidade e da igualdade,
igualmente a todos" 74 • Essa última exigéncia é "incornpatível como favo- outra coisa é exigir dessas leis que se alinhem em sua "substancia'' regras as
recirnento ou o desfavorecimento previsível de determinadas pessoas" 75 • do direito privado, como sustenta· Hayek. Isso é suficientemente mostrado
Consequentemente, implica que o Estado "se conforme a mesma lei que pelO .~ato de que, e~ Locke,_ trata-se de imperativo 'de igualdade sornen te na
todos e, desse modo, encontre-se limitado em seus atos, da mesma forma medida em que esÚ: concer~e a aplicayáo da lei a indlvíduos definidos por
que qualquer pessoa natural" 76 .- sua situayáo social (rico e pobre, cortesáo e campones), náo da aut~aplicayáo
Desses trés atributos da lei (generalidade, certeza, igualdade), o terceiro por parte do Estado de urna regra de direito privado.
é inegavelmente o que evidencia melhor que, no pensamento de Hayek, o Que consequéncias devemos tirar dessa extensáo do direito privado a
ideal do Estado de direito confunde-se com o ideal de uma sociedade de direito "pessoa" do Estado? A primeira, e sem dúvida a mais importante do ponto
privado. É nesse ponto que o pensamento do neoliberalismo vai muito além de vista de Hayek, é que, num Estado de direito, "o poder político so mente
do princípio do controle da autoridade política enunciado por toda urna pode intervir na esfera privada e protegida de urna pessoa para punir urna
corrente do liberalismo clássico. Hume faz das leis "gerais e iguais" as quais infrayáo cometida contra urna regra promulgada" 80 • lsso significa que náo
os órgáos do governo devem conformar-se o princípio de urna limitayáo que compete ao Executivo dar "ordens" ou "mandamentos" ao indivíduo (isto
impede que a autoridade se torne absoluta77 , mas náo' afirma em momento é, prescriyóes particulares relativas a um fim determinado, como devemos
lembrar); ele deve apenas velar pelo respeito as regras de conduta justa que
71
Idem, La constitution de la liberté, cit., p. 208.
sáo igualmente válidas para todos, e é justamente esse dever de proteyáo
72 da esfera privada de todos os indivíduos que, em caso de violayáo das
Idem.
73 Friedrich Hayek, La route de la servitude, cit., p. 64.
74 Idem, La constitution de la liberté, cit., p. 209. 78
Friedrich Hayek, Droit, législation et liberté, cit., p. 201, nota 60.
7.S lbidem, p. 210. 79
John Locke, Second traité du gouvernement (Paris, PUF, 1994), p. 104 [ed. bras.:
76
Idem. Segundo tratado do governo e outros escritos, trad. Magda Lopes·e Marisa Lobo da
77 David Hume, Essais moraux, politiques et littéraires (Paris, Vrin, 1999),'p. 100 Costa, 4. ed., Petrópolis/Braganya Paulista, Vozes/Editora Universitária Sáo Fran-
[ed. bras.: Ensaios morais, políticos e literdrios, trad. Luciano Trigo, Rio de Janeiro, cisco, 2006.]
Topbooks, 2004]. ° Friedrich Hayek, La constitution de la liberté, cit., p. 206.
8
17 8 ~ A nova razáo do mundo
Estado forte, guardiio do direito privado "' 179

regras por parte de um indivíduo, autoriza o Executivo a intervir na esfera para o Estado, o das atividades náo coercitivas. O liberalismo, tal como o
privada desse indivíduo a fim de lhe aplicar urna sanyáo penal. Afora tais compreende Hayek,
situac;:óes, deve-se esclarecer amplamente que "as autoridades governamen-
pede uma distiny~o_dara entre os poderes de coerrdo do Estado, em cujo
tais náo devem ter nenhum poder discricionário que permita esse género a
exercício suas ayóes sáo limitadas aplicayio de regras de conduta justa, das
de invasao" na esfera privada de um cidadao 81 . b contrário equivaleria a quais se exclui qualquerarbitrariedade, e a prestardo de serviros pelo Estado, no
considerar a pessoa privada e sua propriedade como um simples meio a decorrer da qual ele pode empregar_ os..recursos postas a slla disposiyáo para
disposiyáo do governo. Por isso, sempre se deve dar a essa pessoa a pos- esse fim, para a qual n:io possui nem poder de coeryáo nem de monopólio,
mas pode usar largamente seus recursos sob seu arbítrio. 84
sibilidade de recorrer a tribunais independentes, habilitados a decidir se
o governo se conformou em sua ayáo ao estrito quadro das regras gerais O problema é que o finandamento das atividades de "puro serviyo"
a
ou se o excedeu arbitrariamente (donde se retorna questáo do lugar dos implica a intervenc;:ao de cena coerc;:ao na forma de impostos85 . Esse aspecto
"tribunais administrativos"). Mais urna vez, o ponto fundamental "é que coercitivo das atividades de servic;:o somente se justifica se o Estado nao se
toda ayao coercitiva do poder político deve ser definida sem ambiguidade arroga o direito exclusivo de fornecer cerros serviyos, o que equivaleria ipso
dentro de wn quadro jurídico permanente, que permita ao indivíduo gerir a
jacto constituic;:ao de um monopólio (o qual significada a violac;:ao da con-
com confianya seus projetos e reduza tanto quanto poSsível as incertezas dü;io de igualdade lenibrada anteriormente). "O que é contestável nao é a
inerentes aexisténcia humana'' 82
• empresa de Estado, mas o monopólio de Estado." 36 De todas as atividades
O que está em jogo aqui é exatamente a preservafáO da eficiéncia da ~e servic;:o que podem concernir legitimamente ao Estado, as mais impor-
ordem do mercado, já que o elemento decisivo da confianc;:a reside no fato tarit~s sao as que "dependem de seu esforc;:o para criar um quadro favorável
de que o indivíduo possa contar com a aptidáo do Estado para fazer com as de~isóes indiVidJais": insramac;:io e manutenc;:ao de·um sistema monetário
que as regras gerais sejam respeitadas e, ao mesmo tempo, com o respeito eficaz, definic;:ao de pesos e medidas, disponibilizac;:ao de informa~óes para o
das regras gerais pelo próprio Estado. Em resumo, a certeza proporcionada estabeledmento de estatísticas, organizac;:áo da educa¡;ao sob urna o u outra
a
pelo quadro jurídico deve compensar a incerteza inerente situayáo do 87
forma etc. . Convém acrescentar a essas atividades "todos os servic;:os que
indivíduo dentro de urna ordem espontánea tal como a ordem do mercado. sao nitidamente desejáveis, porém nio sáo fornecidos pela empresa concor-
Isso mostra a importáncia da ayao coercitiva do Estado quando se trata de rencial porque seria impossível o u difícil fazer os beneficiários pagarem",
cuidar da puniy:io das infrayóes cometidas contra as regras de condura: servi~os entre os quais se encontram "o grosso dos servic;:os sanitários e de
garantir a seguranya dos agentes econümicos é a verdadeira justificayáo do saúde pública, a construc;:io e a manutenc;:ao das estradas e a maioria dos
monopólio do uso da coeryao que se encontra nas máos do Estado. O que equipamentos urbanos criados pelos municípios para os seus habitantes" 83 •
implica "que ele nao tenha outro monopólio além deSse e que, de todos os Em contrapartida, há medidas que a regra do Estado de direito exclui por
outros pontos de vista, opere nas mesmas condic;:óes que todo mundo" 83 princípio. Trata-se de todas aquelas cuja execuc;:ao implica urna discriminac;:áo
(condi<;áo de igualdade reinterpretada por Hayek).
A segunda consequéncia da necessária subordinac;:ao do poder gover-
84
namental ao princípio do Estado de direito é de ordem positiva dessa vez: Friedrich Hayek, Essais de philosophie, de science politique et d'économie, cit., p. 254;
grifo nosso.
na medida em que esse princípio constitui urna limitayao apenas para as
85
ac;:óes coercitivas do governo, um campo inteiro de atividades é deixado Idem, La constitution de la liberté, cit., p. 223.
86
Ibidem, p. 225.
87
81
Ibidem, p. 224.
Ibidem, p. 213. 88
82 Idem. Hayek se refere logo cm seguida afamosa reRexáo de Smith sobre "essas obras
Ibidem, p. 223.
públicas que [...] sáo de urna natureza tal que o ganho jamais poderia compensar 0
83
Ibidem, p. 224. gasto que representariam para um indivíduo ou um grupo pouco,numeroso".
180 '" A nova razáo do mundo Estado forre, guardiáo do direito privado " 181

arbitrária entre as pessoas, porque visam aobtenyáo de resultados particulares ninguém deve cair", náo implica por si só "urna restriyáo de liberdade o u
para pessoas particulares, ern vez de se ater aaplicayáo das regras gerais válidas um conflito corn a soberani<i do direito". Problemático é que a remunera_¡;:áo
indistinta e uniformemente para todas as pessoas. Aqui, sáo particularmen- dos serviyos prestad?s_seja fixada pela autoridade9 3•
te visadas as "medidas que térn por objetivo regular o acesso aos diversos Agora podemos ver claramente que, em sua versáo ·hayekiana, o neoli-
negócios e profissóes, os termos das transayóes e as quantidades produzidas beralismo náo somente náo exclui, como pede a intervenyáo do governo.
ou comercializadas" 89 . Todo controle de preyos e quantidades de produyáo Porque a concepyáo da lei como "regra do jogo econ6mico" que prevalece
deve, portanto, ser abolido, na medida em que é necessariamente "arbitrá- nesse caso determina necessariamente o que Foucault chama de "crescirnento
rio e discricionário" e impede o mercado de funcionar corretamente (náo da demanda judicial", a ponto de falar de um "intervencionismo judicidrio,
deixando que os preyos cumpram seu papel de transmitir a informayáo). que deverá ser praticado comb arbitragern no quadro das regras do jogo" 94 • É
Pelas rnesmas razóes de fundo, exclui-se qualquer intervenyáo do governo preciso avaliar a extensáo da transformay;lo relativa ao lugar do Judiciário no
para reduzir as inevitáveis diferenyas de situayáo material que resultam do pensamento do liberalismo clássico. No século XVIII, a ideia da primazia da
jogo de catala:xia. Portanto, a busca de objetivos relacionados a urna dis- lei implicava urna "reduyáo considerável do Judiciário ou do jurisprudencia!":
tribuiyáo justa de renda (o que é designado em geral pelos termos "justiya o Judiciário destinava-se, em princípio, aaplica~áo pura e simples da lei, o que
social" ou "justiya distributiva'') está em contradiyáo formal com a_regra em grande parte explica que o Segundo tratado náo fale do poder Judiciário,
do Estado de direito. Com efeito, urna remunerayáo e urna distribuiyáo ao lado dos poderes Legislativo, Executivo e Federativo. Depois, quando a lei
"justas" somente tém sentido num sistema de "fins comuns" ("teleocracia''), ,nada mais é do que "regra de jogo para um jogo no qual cada um é mestre,
ao passo que na ordern espond_nea do mercado nenhum firn desse tipo pa.F\lc si ·e de sua parte", o Judiciário adquire "urna nova autonornia e· urna
poderia prevalecer, consequenternente, nela, a "distribuiyáo" de renda náo nova importáncia'; 95 . PÜrq~e, nesse-"jogo de catalaxia'', o verdadeiro sujeito
é nem "justa'' nern "injusta" 90 . Em última análise, "todas as tentativas para econ6mico é a empresa. Quanto mais. é estimulada a jogar corno b'em entende
garantir urna distribuiyáo 'justa' devem ser orientadas para a conversáo da no quadro das regras formais, mais ela estabelece livrernente para si rnesma
ordem espontánea do mercado em urna organizayáo o u, em outros termos, seus objetivos, estando entendido que náo existem fins comuns impostas e
em ordem totalitária'' 91 • Assim, o que é condenado por princípio é a ideia a própria empresa constitui urna "organizayáo" (no sentido técnico dado a
de que a justiya distributiva faz parte das atribuiyóes do Estado: "Se ele re- esse termo por Hayek). Assim, quanto mais numerosas as ocasióes de con-
pausa sobre a justiya comutativa, o Estado de direito exclui a busca de urna flito e litígio entre os sujeitos económicos, maior a demanda de arbitragem
justiya distributiva'' 92 . Por outro lado, o fato de o governo se ernpenhar para por parte das instáncias judiciais; em outras palavras, quanto menor a ayáo
assegurar "forado mercado" urna proteyáo contra a miséria extrema de todos administrativa, rnaior o campo de intervenyáo da ayáo judiciária.
aqueles que sáo incapazes de ganhar seu sustento no 'mercado, "na forma Essa autonornizayáo do Judiciário náo é casual: ela forma um sistema
de urna renda mínima garantida ou de um nível de recursos abaixo do qual corn outras diferenyas importantes corn relayáo ao liberalismo clássico.
Em última análise, podemos apontar trés diferenyas principais. A primeira
39
Ibidem, p. 227. consiste em fazer das relayóes econ6micas internas ao jogo do mercado
90 Diferentemente dos libertários, que, lembremos, consideram essa ordem imrinse- o fundamento de "toda a sociedade". A segunda consiste em retirar da
camente justa. Devemos acrescentar que Hayek recusa até a pertinéncia do termo alternativa entre direito natural e criayáo deliberada o arcabouyo jurídico
"distribui~áo" aplicado a urna ordem espontánea, preferindo "dispersáo", que tema
constitutivo dessa ordern: as regras jurídicas se identificam corn as regras
vantagem de náo sugerir urna a~áo deliberada. Ver Friedrich Hayek, Essais de philo-
sophie, de science politique et d'économie, cit., p. 261.
93
91
Idem. Idem, Droit, législation et liberté, cit., p. 105.
92 Friedrich Hayek, La constitution de la liberté, cit., p. 232. Desde Aristóteles, a expressáo ~ 4
Michel Foucault, Naissance de la biopolitique, cit., p. 180; grifo nosso.
95
"justi~a comutativa'' designa a justiqa nas tracas. Idem.
182 ~ A nova razáo do mundo Estado forte, guardiáo do direito privado " 183

do direito privado e penal (em especial as do direito comercial), que sáo de Locke na questáo fundamental da funs:áo do poder político náo deriva
oriundas de um processo inconsciente de sele<:(áO. Essa segunda diferen<:(a · de uns poucos ajustes sem grandes consequéncias. Na re~lidade, o que está
já permite esbo((ar, por vias indiretas, o ideal de urna "sociedade de direito em jogo é um profundo questionamento da democracia !íbera!. Basta pegar
privado", do qual nada autoriza que se diga que e_ra o ideal do liberalismo trés das noyóes-chave que permitem a Locke definir o "governo limitado"
clássico. A terceira mudan((a coroa as duas outras e representa o remate dessa (o "bem comum", o Legislativo como poder supremo, o consentimento da
doutrina: o Estado deve aplicar a si mesmo as regras do direito privado, o maioria do pavo) para se convencer de que se trata de um rompimento. Em
que significa que náo só ele tem de se considerar igual a qualquer pessoa primeiro lugar, como vimos, Locke faz do "bem comum'' ou "bem do pavo",
privada, como também deve se impor, em sua própria atividade legislativa, positivamente definido, o objetivo pelo qual toda a atividade governamental
a
a promulgayáo das leis fiéis lógica desse mesmo direito privado. Estamos deve ordenar-se. Hayek, por sua vez, esvazia a nos:áo de "bem comum'' de
longe, muito longe, de urna simples "reafirmayáo" do liberalismo clássico. qualquer conteúdo positivo assinalável: por náo corresponder a um "fim",
a
o "bem comum" reduz-se "ordem abstrata do conjunto", tal como é pos-
sibilitada pelas "regras de conduta justa'', o que equivale exatamente a fazer
Antes Estado forte que democracia o "bem comum" consistir num simples "meio", já que essa ordem abstrata
Hayek está muito distante, por fini, da "reabilita<:(áO do laissezjaire" vale apenas "como meio facilitador da busca de urna grande diversidade de
intenyóes individuais" 97.
a que o neoliberalismo é frequentemente resumido. De resto, Hayek vé a
Em segundo lugar, como também já vimos, Locke considera o poder
doutrina do laissezfaire como profundamente estranha atese dos "econo-
Legislativo o "poder supremo" do governo, o que deve ser entendido em
mistas clássicos ingleses", a qual reivindica para si:
sentido forre: cabe a ele faZer leis, o que náo pode. resumir-se ratificas:áo a
Na verdade, a tese deles nunca foi orientada contra o Estado nem foi
das variayóes do "costume". Hayek, de sua parte, denuncia a coúfusáo entre
próxima do anarquismo, que é a conclusáo lógica da doutrina racionalista do
laissez-faire; foi uma tese que levou em considerayáo, ao mesmo tempo, as governo e legislas:áo, entre elaborayáo dos decretos e das regulamentayóes
funyóes próprias do Estado e os limites de sua ayáo. 96 particulares, de um lado, e ratificas:áo das leis ou das "regras gerais de con-
dura'', de outro. Isso o leva a atribuir essas duas funyóes a duas assembleias
lsso mostra que, para ele, está fora de cogita((:'iO aceitar a concepyio
libertarista do "Estado mínimo" defendida por Robert Nozick (segundo a
a
diferentes: assembleia governamental, o poder Executivo; assembleia a
legislativa, o poder de determinar as novas regras gerais. Essa última assem-
qual urna agéncia de seguran((a que conseguisse outorgar-se o monopólio da
bleia escapa a qualquer controle democrático: os nomótetas seriam homens
forya ao cabo de um processo de concorréncia faria perfeitamente o ofício
maduros (de 45 anos no mínimo), escolhidos por eleitores da mesma idade
de Estado), sem mencionar as posiyóes muito mais radicais do anarcocapi-
para um período de quinze anos. A fim de evitar a palavra "democracia'',
talismo (David Friedman) a favor da privatizayio de todas as fun-;:óes que o
"conspurcada por um longo abuso", Hayek inventa o termo "demarquia''98 •
liberalismo clássico atribui ao Estado (Exército, polícia, justiya, educa-;:io).
Em terceiro lugar, e aqui chegamos realmente ao fundo do problema,
No entamo, ao contrário da apresenta((:'iü que faz de sua relayáo com
Locke faz do consentimento da maioria do pavo a regra a que estáo sub-
o liberalisrrío clássico, Hayek náo é um simples "continuador" que teria
metidos todos os membros do carpo político. Chega a afirmar que "sempre
apenas revigorado as teses dessa corrente. A énfase que dá aos direitos dos
indivíduos náo autoriza de modo algum que seja visto como um herdeiro de
Locke, do mesmo modo que o construtivismo assumido do ordoliberalismo 97 Idem, Droit, législation et liberté, v. 2, cit., p. 6.
alemáo náo permite vé-lo como um herdeiro de Bentham. O que o separa 98
lbidem, p. 48. Enquanto a "democracia'' pode degenerar em coen;áo praticada pela
maioria sobre a minoria, a "demarquia" somente outorga poder de sujeiyáo avontade
da maioria do maior número de indivíduos se a maioria se compromete a seguir a
96 Friedrich Hayek, La constitution de la liberté, cit., p. 59; grifo nosso. regra geral.
184 @ A nova razio do mnndo Estado forte, guardiio do direito privado "' 18 5

subsiste no pavo um poder supremo de destituir ou mudar o Legislativo, liberdade, em particular as que visam ao combate da "coerc;:áo" praticada pelos
quando se dá conta de que este age em contradü;:áo com a missáo que sindicatos, inspiraram diretimente os programas de Thatcher e Reagan !Dl.
lhe foi dada" 99 • Ao contrário dele, Hayek se recusa a conferir a maioria No entanto, se roma_rq10s _c~mo critério náo mais a influérlcia política direta,
do povo o poder absoluto de abrigar todos os seus membros. O que lhe mas a contribuis:áo para. a instauras:áo da racionalidade neoliberal (no sentido
parece formar o conteúdo do conceito de "soberallia po"pular" é que a regra de Foucault), impóe-se urna reavaliac;:áo. Seguramente devemos a Hayek a
majoritária náo seja limitada nem limitável 100 • Ora, a funyáo desse conceito amplitude inédita dada a temas que-já fazíam parte do fundo original (os
é legitimar urna "democracia ilimitada", sempre suscetivel de degenerar que Rougier e Lippmann estabeleceram, sublinhando a importáncia das
numa "democracia totalitária". O que significa que a democracia náo é uro regras jurídicas e a necessidade de um "Estado forte liberal"). Devemos a
fim em si, mas um meio que somente tem valor como método de seleyáo ele também, e talvez sobretudo, o aprofundamento da ideia avanyada por
dos dirigentes. Assim, Hayek teve o mérito da franqueza quando declarou Bühm de um governo guardiáo do direito privado, até fazé-lo significar ex-
a um jornal chileno durante a ditadura de Pinochet, mais exatamente em plicitamente a exigCncia de urna aplicayáo desse direito ao próprio governo.
1981: "Minha preferéncia pende a favor de urna ditadura liberal, náo a um Por último, na ordem da teoria económica, devemos a ele a elaborac;:áo da
governo democrático em que náo haja nenhum liberalismo" 101 • Essa crítica noc;:áo de "divisáo do conhecimento". Contudo, sobre a questáo decisiva
a a
"soberania popular" e "democracia ilimitada" está ligada a urna preo- da construriio da ordem do mercado, somos abrigados a reconhecer que hoje,
cupayáo fundamental: trata-se, em última análise, de isentar as regras do na prática do neoliberalismo, tende a prevalecer urna atitude construtivista,
direito privado (o da propriedade e da troca comercial) de qualquer espécie ~uito distante do evolucionismo cultural hayekiano.
de controle exercido por urna "vontade coletiva''. Tudo isso é muito lógico,
se recordarmos o que implica o ideal de urna "sociedade de direito privado":
um Estado que adota por prindpio a submissáo de sua ayáo as regras do
direito privado náo pode assumir o risco de urna discussáo pública sobre
o valor dessas normas, a fortiori náo pode aceitar entregar-se vontade do a
povo para decidir essa discussáo.
Como avaliar a contribuiyáo de Hayek para a elaborayáo do neolibera-
lismo? Náo há dúvida de que sua influéncia intelectual e política foi deter-
minante a partir da fundas:áo da Sociedade Mont-Pelerin (1947). Muitas
das pro postas políticas formuladas na terceira parte de Os fundamentos da

99 John Locke, Second traité du gouvernement, cit., p. 108.


10
° Friedrich Hayek, La constítution de la liberté, cit., p. 104.
101
Idem, citado em Stéphane Longuet, Hayek et l'École autrichienne (Paris, Nathan,
1998), p. 175. O texto em ingles da entrevista de abril de 1981, pelo jornal El
J\1ercurío, tal como foi publicado pelo Instituto Hayek, diz exatamente: "As you
will understand, it is possible for a dictator to govern in a liberal way. And it is also
possible for a democracy to govern with a totallack ofliberalism. Personally I prefer 102
Margaret Tharcher declaro u em 5 de janeiro de 1981 aCamara-das Comuns: "Sou
a liberal dictator to demacrarle government lacking liberalism" [Entenda, é possível urna grande admiradora do professor Hayek. Seria bom que os honoráveis membros
para um ditador governar de forma liberal. E também é possível para urna demo- desta casa lessem alguns de seus livros, Ihe Constitution of Lib'erty, os trés volumes
cracia governar sem liberalismo nenhum. Pessoalmente, prefuo um ditador liberal a de Law, Legislation and Liberty" (citado em Gilles Oostaler, Le libéralisme de Hayek,
um governo democrático sem liberalismo - N. T.]. cit.• p. 24).
II
A NOVA RACIONALIDAD E
6
A GR<\NDE VIRADA

Os anos 1980 foram marcados, no Oci4ente, pelo triunfo de urna


política qualificada, ao mesmo tempo, de "conservadora'' e "neoliberal".
Os norhes de Ronald Reagan e Margaret Thatcher simbolizam esse rom-
pirnento corn o "welfarismo" da social-democracia e a implementac;áo de
novas políticas que supostamente poderiam superar a inflayáo galopante, a
q~eda dos lucros ~·a desacelerac;áo do crescimento. Os slogans frequente-
mente simplistas dessa nova direitci. Üddental sáo co~hecidos: as.sociedades
as
sáo sobretaxadas, super-regulamentadas e submetidas múltiplas pressóes
de sindicatos, corporayóes egoístas e funcionários públicos. A política con-
servadora e neoliberal pareceu, sobrerudo, constituir urna resposta política
a crise econ6mica e social do regime "fordista'' de acumulayáo do capital.
Esses governos conservadores questionaram profundamente a regulayáo
keynesiana macroeconümica, a propriedade pública das empresas, o sistema
fiscal progressivo, a proteyáo social, o enquadrarnento do setor privado por
regulamentayóes estritas, especialmente em matéria de direito trabalhista e
representayJ.o dos assalariados. A política de demanda destinada a sustentar o
crescimento e realizar o pleno emprego foi o principal alvo desses governos,
para os quais a inflayáo se tornara o problema prioritário 1 •

Para termos wna visáo sintética dessas políticas, basta considerarmos o manifesto de
1979 do Partido Conservador, como qual Margaret Thatcher se elegeu. O programa
previa controle da inflas:áo, diminui<;áo do poder dos sindicatos, recupera<;áo dos
incentivos ao trabalho e ao enriquecimento, fortalecimento do. Parlamento e da lei,
auxílio afamilia por urna política mais eficaz dos servis:os sociais, refor<;o da Defesa.
Ver Andrew Gamble, 1he Free Economy and the Strong State: 1he Politics of 1hatcherism
(Durham, Duke University Press, 1988).
190 ~ A nova razáo do mundo A grande virada ~ 191

Mas será que basta situar as políticas neoliberais em certa conjuntura his- diminuir o gasto público (inclusive enquadrando seu crescimento em regras
tórica para compreender sua natureza e definir suas relayóes com o esforyo constitucionais), transferir -as empresas públicas para o Setor privado, res-
de refundayáo teórica do liberalismo? Como explicar a continuidade dessas tringir a proteyáo social, privilegiar "soluyóes individuais?' diante dos ris-cos,
políticas durante décadas? Sobretud?, como justificar que algumas des- controlar o crescimeilto da massa monetária para reduzir a inflayáo, possu_ir
sas políticas tenham sido adoradas tanto pela "nova direita'' 2 quanto pela urna moeda forre e estável e desregulamentar os mercados, em particular o do
"esquerda moderna''? trabalho. No fLmdo, se o "compromisso social-democrata'' era sinúnimo de
Na realidade, essas novas formas políticas exigem urna mudanya muito intervencionismo do Estado, o "compromisso neo liberal" era sin6nimo de
maior do que urna simples restaurayáo do "puro" capitalismo de antigamente livre mercado. O que se destaco u menos foi o caráter disciplinar dessa nova
e do liberalismo tradicional. Elas tém como principal característica o fato política, que dá ao governo um papel de guardiáo das regras jurídicas, mo-
de alterar radicalmente o modo de exercício do poder governamental, assim netárias, comportamenrais, atribui-lhe a funyáo oficial de vigia das regras de
como as referéncias doutrinais no contexto de urna mudan ya das regras de concorréncia no contexto de um conluio oficioso com grandes oligopólios
funcionamento do capitalismo. Revelam urna subordinayáo a ceno tipo e, talvez mais ainda, confere-lhe o objetivo de criar situayóes de mercado
de racionalidade política e social articulada a globalizayáo e a financeirizayáo e formar indivíduos adaptados as lógicas de mercado. Em outras palavras,
do capitalismo. Em urna palavra, só há "grande virada'' mediante a implan- a atenyáo exclusiva ·que se deu a ideologia do laissezjaire nos desviou do
tayáo geral de urna nova lógica normativa, capaz de incorporar e reorfentar exame das práticas . e dos dispositivos encorajados pelos governos ou dire-
duradouramente políticas e comportamentos nUma nova direyáo. Andrew tamente implantados por eles. Por consequéncia, a dimensáo estratégica das
Gamble resumiu esse novo rumo na frase: "Economia livre, Estado forte". , po,l~ticas neoliber;üs foi paradoxalmente negligenciada pela crítica "antili-
A expressáo tem o mérito de destacar o fato de que náo estamos lidando ber.ál" padráo, na:· medida ·em que_ essa dimensáo entra de imediato numa
com urna simples retirada de cena do Estado, mas com um reengajamento racionalidade global que permaneceu despercebida.
político do Estado sobre novas bases, novas métodos e novas objetivos. O O que devemos de fato entender por "estratégia''? No sentido mais co-
que exatamente quer dizer essa frase? Naturalmente, podemos enxergar nela mum, o termo designa a "escolha dos meios empregados para chegar a um
o que as correntes conservadoras querem que ela contenha: um papel maior fim"'- É inegável que a virada dos anos 1970-1980 mobilizou todo um leque
da defesa nacional contra os inimigos externos, da polícia contra os inimigos de meios para se alcanyar no melhor prazo cerros objetivos bem determina-
internos e, de modo mais geral, dos controles sobre a populayáo, sem esque- dos (desmantelamento do Estado social, privatizayáo das empresas públicas
cer o desejo de restaurayáo da autoridade estabelecida, das instituiyóes e dos etc.). Portante, estamos muito bem embasados para falar, nesse sentido, de
valores tradicionais, em particular os "familiares". Contudo, há muito mais urna "estratégia neoliberal": entenda-se o conjunto de discursos, práticas,
do que essa linha de defesa da ordem instituída, classicamente conservadora. dispositivos de poder visando a instaurayáo de novas condiyóes políticas, a
É sobre esse ponto preciso que persistem os mal-entendidos. Alguns modificayáo das regras de funcionamento econ6mico e a alterayáo das relayóes
autores preferiram ver apenas um "retorno do mercado" nas políticas eco- sociais de modo a impar esses objetivos. Contudo, por mais legítimo que
n6micas e sociais conduzidas pela nova direita e pela esquerda moderna. seja, esse uso do termo "estratégia'' poderia levar a entender que o objetivo da
Lembram com razáo que esse tipo de política sempre se apoiou na ideia de concorréncia generalizada entre empresas, economias e Estados foi elaborado
que, para os mercados funcionarem bem, é necessário reduzir os impostos, a partir de um projeto longamente amadurecido, como se tivesse sido objeto
de urna escolha táo racional e controlada quanto Os meios pastos a serviyo

2
A expressáo "nova direita'' é a traduc;áo da expressáo inglesa new right, que designa
precisamente as formas:óes políticas, as associas:óes e as mídias que apoiaram o dis- 3 Hubert L. Dreyfus e Paul Rabinow, Michel Foucault: un parcours philosophique (Paris,
curso neoliberal e conservador a partir dos anos 1980. Portanto, náo deve sugerir Gallimard, 1984), p. 318-9 [ed. bras.: Miche!Foucault: uma trajetóriafi.Wsófica, trad.
um parentesco qualquer como movimento que recebeu esse nome na Frans:a. Vera Portocarrero e Gilda Gomes Carneiro, 2. ed. rev., Rio de Janeiro, Forense, 2013].
J 92 " A nova razáo do mundo A grande virada ~ 19 3

dos objetivos inicíais. Daí para pensar a virada em termos de um "compl6" é também mostrar o caráter estratégico (no segundo s~ntido do mesmo
é uro passo - que alguns se apressaram ero dar, em particular na esquerda. termo) do objetivo da concorréncia generalizada que permitiu dar a todos
O que nos parece, ao contrário, é que o objetivo de urna nova regula~áo pela esses meios urna coeréncia global.
concorréncia náo existia antes da luta contra o Estado de bem-estar na qual Neste capítulo, -nos ¡)rÜpomos examinar na ordem os quatro pontos
se engajaram, alternada o u simultaneamente, círculos· imelectuais, grupos seguintes. Ü primeiro diz respeito a_ refafáO de apoio recíproco gra~as aqual
profissionais, for((as sociais e políticas, muitas vezes por motivos bastante as políticas neoliberais e as transforma((óes do capit~ismo ampararam-se
heterogéneos. A virada come~ou por pressáo de cenas condi~óes, sero que mutuamente para produzir o que denominamos "a grande virada''. Contudo,
ninguém sonhasse ainda com um novo modo de regula~áo em escala mun- essa virada náo se deve apenas acrise do capitalismo nem su,rgiu de repente.
dial. Nossa tese é que esse objetivo tenha se constituido ao longo do próprio Ela foi precedida e acompanhada por urna !uta ideológica, que foi sobretodo
confronto, se imposto a for~as muito diferentes em razáo da própria lógica urna crítica sistemática e duradoura de ensaístas e políticos contra o Estado
do confronto e, a partir desse momento, feito o papel de catalisador, ofe- de bem-estar. Essa ofensiva alimento u diretamente a a~áo de cerros governos
recendo uro ponto de encontro a for~as até entáo relativamente dispersas. e contribuiu enormemente para a legitimayáo da nova norma quando esta
Para tentar explicar esse surgimento do objetivo a partir das condi~óes por fim surgiu. Esse é o segundo ponto. No 'entanto, apenas a conversáo
de um confronto já iniciado, devemos recorrer a outro sentido do termo dos espíritos náo teria sido suficiente - foi necessária urna mudan~a de
"estratégia'', um sentido que náo a faz proceder da vontade de um estrategista comportamento. Isso foi obra, em grande parte, de técnicas e dispositivos
nem da inten~áo de um sujeito. Essa ideia de urna "estratégia sem sujeito" de disciplina, isto é, de sistemas de coa~áo, tamo económicos como sociais,
ou "sem estrategista'' foi elaborada por Foucault. Tomando o exemplo do ~uJ-?. .fun~;áo era abrigar os indivíduos a governar a si mesmos sob a pressáo
objetivo estratégico de moraliza~áo da classe operária nos anos 1830, ele da c¿mpeti~áo, segundO os Pfincípios do cálculo maximizador e urna lógica
defende que esse objetivo produziu a burguesia como o agente de sua ins- de valoriza~áo de capital. Esse é o terceiro ponto. Finalmente, a 'progressiva
taura~áo, e náo que a classe burguesa, como sujeito pré-constituído, é que amplia~áo desses sistemas disciplinares, assim como sua codifica~áo insti-
tenha concebido esse objetivo a partir de urna ideologia já elaborada4 • O que tucional, levaram ainstaura~áo de urna racionalidade geral, urna espécie de
se trata de pensar aqui é certa "lógica das práticas": primeiro, há as práticas, novo regime de evidéncias que se impós aos governantes de todas as linhas
frequentemente díspares, que instauram técnicas de poder (entre as quais, como único guadro de inteligibilidade da conduta humana.
em primeiro lugar, as técnicas disciplinares) e sáo a multiplica~áo e a gene-
raliza~áo de todas essas técnicas que impóem pouco a pouco urna dire~áo
global, sem que ninguém seja o instigador desse "impulso na dire((áo de Urna nova regulayáo pela concorréncia6
um objetivo estratégico"\ Náo conseguiríamos expressar melhor a maneira Há duas maneiras de se enganar a respeito do sentido da "grande virada''.
como a concorréncia se constituiu como nova norma mundial a partir de A primeira consiste em fazé-la proceder exclusivamente de transforma~óes
certas rela~óes entre as for~as sociais e certas condi~óes económicas, sem econ6micas internas ao sistema capitalista. Desse modo, a dimensáo de
que tenha sido "escolhida" de forma premeditada por um "Estado-maior" reafáo-adaptat¡áo a urna situa((áo de crise é artificialmente isolada. A segun-
qualquer. Fazer aparecer a dimensáo estratégica das políticas neoliberais é, da consiste em ver a "revolu~áo neoliberal" como a aplicac;:áo deliberada e
portanto, náo apenas revelar em que elas dizem respeito a escolha de cer- concertada de urna teoria econOmica, privilegiando-se na maioria das vezes
ros meios (de acordo com o primeiro sentido do termo "estratégia''), mas

6
O conteúdo desta se((á_o retoma em parte a apresenta<;ao feita por El Mouhoub
1
Michel Foucault, "Le jeu de Michel Foucault", em Dits et écríts JI (Paris, Gallimard, Mouhoud e Dominique Plihon no seminário "Question Marx". Ele foi inteiramen-
2001), p. 306-7. te revisto pelos autores para a presente publicac_;:io, com a ajuda de El Mouhoub
Hubert L. Dreyfus e Paul Rabinow, Michel Foucault, cit., p. 268-9. Mouhoud.
194 @ A nova razáo do mundo A grande virada " 19 S

a de Milton Friedman7 . Nesse caso, é a dimensáo da revanche ideológica dos primeiros teóricos neoliberais, pediam que se reconhecesse que "há
que é supervalorizada. Na realidade, a instaurayáo da norma mundial da. um limite desejável para a á.mpliayáo indefinida da democracia política" 11 .
concorréncia ocorreu pela conexdo de um projeto político a urna dinámica Esse apelo a que se pusessem "limites as reivindié::ayóes" traduzia a
endógena, a um só tempo tecnológica: comercial e produtiva. Pretendemos, própria maneira o -¡¡;ício d-a crise da amiga norma fordista. Esta conciliava
nesta seyáo e na seguinte, evidenciar os principaís tra~os dessa din:lmica, os princípios do taylorismo com as regras de divisáo do valor adicionado
reservando a análise específica da segunda dimensáo as seyóes posteriores, favoráveis a alta regular dos salários reais (por indexayáo pelos preyos e pelos
dedicadas a ideologia e a disciplina. ganhos de produtividade). Além disso, essa articula,áo da produ,áo e do
O programa político de Margaret Thatcher e Ronald Reagan, imitado consumo de massa apoiava-se no caráter relativamente aurocentrado 12 desse
por um grande número de governos e continuado pelas grandes organizayóes modelo de crescimento que garantia certa "solidariedade" macroeconómica
internacionais, como o FMI e o Banco Mundial, apresen ta-se primeiro como entre salário e lucro. As características da demanda (fraca diferenciayáo dos
um conjunto de respostas a urna situayáo que se considera "ingerível". Essa produtos, alta elasticidade da demanda em relayáo ao preyo 13 , progressáo da
dimensáo propriamente reativa é-patente no relatório da Comissáo Trilate- renda) correspondiam asatisfayáo progressiva das necessidades das famílias
raF, intitulado 7he Crisis of Democracy, um documento-chave que m ostra em termos de bens de consumo e equipameflto. Assim, esse crescimento
a consciénda da "ingovernabilidade" d~s democracias compartilhada por sustentado da rend;:t) assegurado pelo aumento dos ganhos de produtivi-
muitos dos dirigentes dos países capitalistas 9• Os especialistas convidados dade, permiria escoar a produyáo de massa em mercados essencialmente
a formular seu diagnóstico em 1975 constataram que os governantes eram -_domésticos. Setores industriais pouco expostos aconcorrtncia internacional
incapazes de governar em razáo do excessivo envolvimento dos governados na dV~ram um papel de motor do crescimento. A organizayáo da atividade
vida política e social. Ao contrário de Tocqueville o u Mili, que lamentavam a produtiva repous~va sobn::-uma divisáo do trabalho bastante aprofundada)
apatia dos mode~nos, os trés relatores da Comissáo Trilateral, Michel Crozier, urna automatizayáo incrementada, porém rígida) um ciclo dé produyáo/
Samuel Huntington e Joji Watanuki, queixavam-se do "excesso de demo- consumo longo, que possibilitava a obtenyáo de economias de escala sobre
cracia" que surgiu nos anos 1960, isto é, em sua opiniáo, do aumento das bases nacionais o u mesmo internacionais, já ligadas a deslocalizayáo maciya
reivindicayóes igualitárias e do desejo de panicipayáo política ativa das dasses de segmentos de montagem em países asiáticos. Entendia-se que, no plano
mais pobres e mais marginalizadas. Para eles, a democracia política sornente político e social, tais condiyóes possibilitavam arranjos que até certo ponto
pode funcionar normalmente com certo grau "de apatia e náo participayáo articulavam a valorizayáo do capital e um aumento dos salários reais (o que
da parte de certos indivíduos e grupos" 10 • Alinhando-se aos temas clássicos foi chamada de "compromisso social-demacrara").
No en tanto, no fim dos anos 1960, o modelo "virtuoso" do crescimento
fordista depara com limites endógenos. fu empresas sofreram urna baixa
7 Esse aspecto é sublinhado muito unilateralmente na última obra de Naomi Klein, sensível em suas taxas de lucro 14 • Essa queda da "lucratividade" explica-se
La stratégie du choc: la montée d'un capitalisme du désastre (trad. Leméac/Actes Sud,
2008) [ed. bras.: A doutrina do choque: ascensáo do capitalismo de desastre, trad. Vania
Cury, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2008]. /
11
Como indica sua cana inaugural, a Comissáo Trilateral, fundada em 1973 por David Ibidem, p. 115, citado cm Serge Halimi, Le Grand Bond en arriire (Paris, Fayard,
Rockefeller, reúne duzentos "cidadáos distintos", isto é, membros selecionadíssimos da 2004), p. 249.
12
elite política e econ6micamundial provenientes da "tríade" (Estados Unidos, Europa, O termo permite definir um circuito macroecon6mico centrado na base territorial
Japáo) que se dedicaráo a "desenvolver propostas práticas para uma aqáo conjunta". do Estado-naqáo.
9 Michel Crozier, Samuel Huntington e Joji Watanuki, 1he Crisis ofDemocracy: Report u A elasticidade-prec;o da demanda designa, em linguagem ec0n6mica, a sensibilidade
on the Governability ofDemocracies to the Trilateral Commission (Nova York, Ney¡ York da demanda avariaqáo dos preqos.
University Press, 1975). 14
Ver Gérard Duménil e Dominique Lévy; Crise et sortie de crise, ordre et désordres
10
Ibídem, p. 114. néolibéraux (Paris, PUF, 2000).
196 " A nova razáo do mundo A grande virada <> 197

pela desacelera¡;áo dos ganhos de produtividade, pela rela¡;áo das for¡;as urna remunerayáo real mais elevada e impondo-lhes condiyóes políticas
sociais e da combatividade dos assalariados (o que deu aos "anos 1968" sua e sociais muito desfavoráveis 16 • Essa disciplina rnonetária e oryamentária
característica histórica), pela alta inflayáo amplificada pelas duas crises do torna-se a nova norma das políticas anti-inflacionárias- no conjunto dos
petróleo, em 1973 e 1979. A estagfla<;áo parece assinar o atestado de óbito países da OCDE e nos países do Sul, que dependem do crédito do Banco
da arte keynesiana de "pilotar a conjuntara", que ¡)ressupunha a arbitragem Mundial e do apoio do FMI.
entre inflayáo e recessáo. A coexisténcia desses dais fenómenos- alta taxa de Desse modo, progressivarnente _urna nova orientayáo tomo u carpo em
inflayáo e taxa elevada de desemprego - parecia desabonar as ferramentas dispositivos e mecanismos econürnicos que rnudaram profundamente as
da política econümica, em particular a ayáo benéfica do gasto público sobre "regras do jogo" entre os diferentes capitalismos nadonais, assirn corno
o nível da demanda e o nível de atividade, lago, sobre o nível do emprego. entre as classes sociais em cada um dos espayos nacionais. As mais famosas
A desregulayáo do sistema internacional instaurada após a Segunda das medidas adoradas forarn a grande onda de prívatizaróes de empresas
Guerra Mundial constituirá um fator suplementar de crise. A flutuayáo públicas (na maioria das vezes vendidas a preyo de banana) e o movimento
geral das moedas a partir de 1973 abre caminho para urna maior influén- geral de desregulamenta¡¡áo da economia. A ideia diretriz dessa orientayáo
cia dos mercados sobre as políticas económicas e, num contexto novo, a é que a liberdade que se dá aos atores privados - que. conhecem melhor a
abertura crescente das economias mina -as bases do circuito autocentrado situayáo dos negócios e seus próprios interesses - é sempre mais eficaz do
de "produ¡;áo-renda-demanda''. que a intervenyáo direta ou a regulayáo pública. Se a ordem económica
A nova política monetarista esforya-se precisamente para responder aos ~ceynesiana e fordista repousava sobre a ideia de que a concorréncia -entre
dais problemas prindpais, que sáo a estagflayáo e o poder de pressáo das empresas e entre econornias capitalistas deveria ser enquadrada por regras
organizayóes de assalariados. O que se fez foi interromper a indexayáo dos fixasccomuns no clue diz reSpeiro a-taxas de cámbio, políticas comerciais e
salários pelos preyos e, assim, transferir a sangria causada pelas duas crises do divisáo de renda, a nova norma neo liberal instaurada no fim doS anos 1980
petróleo para o poder de compra dos assalariados em benefído das empre- erige a concorréncia ern regra suprema e universal de governo.
sas. Os dais eixos principais da mudanya de direyáo da política económica Esse sistema de regras definiu o que poderíarnos chamar de sistema dis-
foram a luta contra a inflayáo galopante e a recuperayáo dos lucros no fim ciplinar mundial. Como mostraremos adiame, a elaborayáo desse sistema
dos anos 1970. O aumento brutal das taxas de juros a custa de urna grave representa o desfecho de um processo de experimentayáo de dispositivos
recessáo e de um aumento do desemprego permitiu lanyar rapidamente disciplinares polidos desde os anos 1970 pelos governos atraídos para o
urna série de ofensivas contra o poder sindical, baixar os gastos sociais e dogma do rnonetarismo. Encontrou sua formulayáo mais condensada na-
os impostas e facilitar a desregulamentayáo. No início dos anos 1980, os quilo que John Williarnson chamou de "Consenso de Washington''. Esse
próprios governos de esquerda se converteram a essa política monetarista, consenso se estabeleceu na comunidade financeira internacional corno
como mostra exemplarmente o caso da Franya 15 • wn conjunto de recornendayóes que todos os países deveriarn seguir para
Através de outro "círculo virtuoso", a elevayáo das taxas de juros levaram conseguir ernpréstimos e auxílios 17 •
a crise do endividamento dos países latino-americanos, em partiéular do
México, em 1982, dando ocasiáo para que o FMI impusesse, em traca da
negociayáo das condiyóes de pagamento, planos de ajuste estrutural que 16
Ver Dominique Plihon, Le nouveau capitalisme (Paris, La Découverte, 2003, Coler;:áo
pressupunham reformas profundas. O aumento das taxas de juros para o Rephes).
17
dobro nos Estados Unidos, em 1979, e suas consequéncias internas e externas Entre as dez recomendar;:óes da nova norma mundial, encontramos: disciplina or-
váo devolver aos credores cerro poder sobre os devedores, exigindo, deles r;:amentária e fiscal (respeito ao equilíbrio orr;:amentário e diminuir;:áo dos descontos
obrigatórios e taxas de impostos), liberalizar;:áo comercial, com suprei;sáo das barreiras
alfandegárias e fixar;:áo de taxas de dmbio competitivas, abertura a movimentar;:áo
15 Coma virada da política de austeridade do governo Delors em 1983. de capitais estrangeiros, privatizar;:áo da economía, desregulame'l?-tao;:áo e criao;:áo de
198 ° A nova razáo do mundo A grande virada o 199

As organiza¡;:óes internacionais tiveram um papel bastante ativo na difusáo os rendimentos do capital e os grupos mais favorecidos, disciplinar a máo
dessa norma. O FMI e o Banco Mundial viram o sentido de sua missáo mudar de obra, baixar o custo do trabalho e aumentar a produtividade.
radicalmente nos anos 1980, em consequéncia da adesáo dos governos dos Os Estados tornaram-se elementos-chave dessa concorréncia exacer-
países mais poderosos a nova racionalidade governamental. k economias mais bada, procurando atfaír -uina parte maior dos investimentos estrangeiros
frágeis tiveram, em sua maioria, de obedecer as recoinenda¡;:óes desses organis- pela criacráo de condiyóes fiscais e sociais mais favoráveis a valorizayáo do
mos para conseguir ajuda ou, ao menos, "aprovayáo", a fim de melhorar sua capital. Assim, contribuíram ampla]Tiente para a criacráo de urna ordem que
imagem diante dos credores e dos investidores internacionais. Dani Rodrik, os sub mete a novas restriy6es que, por sua vez, levam a comprimir salários e
economista de Harvard que trabalhou muito como Banco Mundial, náo teve gastos públicos, reduzir "direitos adquiridos" considerados .muito onerosos
dúvidas em dizer que se trato u de urna "hábil estratégia de marketing": "O e enfraquecer os mecanismos de solidariedade que escapam a lógica assis-
ajuste estrutural foi apresentado como urna iniciativa que os paises deveriam tencial privada. Ao mesmo tempo atores e objetos da concorréncia mundial,
tomar para salvar suas economias da crise" 18• Na realidade, como bem m ostro u construtores e colaboradores do capitalismo financeiro, os Estados sáo cada
Joseph Stiglitz, os resultados dos planos de ajuste foram bastante destrutivos vez mais sub metidos alei férrea de urna dinimica da globalizayáo ql,le lhes
na maioria das vezes. k "terapias de choque" sufocaram o crescimento com escapa largamente. Os dirigentes dos governos e dos organismos internacio-
taxas de juro muito elevadas, arruinaram a produyáo local expondo-a sem nais (financeiros e comerciais) podem sustentar, assim, que a globalizayáo
cautela a concorréncia dos países mais desenvolvidos, muitas vezes agravaram a é um Jatum que ao: mesmo tempo trabalha continuamente para a criacráo
desigualdade e aumentaram a pobreza, reforyaram a instabilidade económica e · dessa pretensa "fatalidade".
social e submeteram essas economias "aberras" avolatilidade dos movimentos
de capitais. A intervenyáo do FMI e do Banco Mundial visava a impor o qua-
O crescimento do capitalismo financeiro
dro político do Estado concorrencial, ou seja, do Estado cujas ayóes tendero
a fazer da concorréncia a lei da economia nacional, seja essa concorréncia a Em nível mundial, a difusio da norma neoliberal encontra um veículo
dos produtores estrangeiros, seja a dos produtores nacionais. privilegiado na liberalizayáo financeira e na globalizacráo da tecnologia. U m
De maneira mais geral, as políticas seguidas pelos governos tanto do mercado único de capitais instala-se por intermédio de urna série de reformas
Norte como do Sul consistiram em buscar no aumento de suas parcelas de legislativas, das quais as mais significativas foram a liberayáo total do cámbio,
mercado em nível mundial a soluyáo para seus problemas internos. Essa a privatizayáo do setor bancário, a abertura dos mercados financeiros e, em
corrida a exporta¡;:áo, a conquista de mercados estrangeiros e acaptayáo de nível regional, a criayáo da moeda única europeia. Essa liberayáo política
poupanya criou um contexto de concorréncia exacerbada que levo u a urna das finanyas é fundamentada numa necessidade de financiamento da dívida
"reforma'' permanente dos sistemas institucionais e s6ciais, apresentada a pública, que seria paga recorrendo-se aos investidores internacionais. No
populayáo como urna necessidade vital. fu políticas económicas e sociais in- plano teórico, é justificada pela superioridade da concorréncia entre os
tegraram essa "adaptayáo" aglobalizayáo como dimensáo principal, tentando atores financeiros na administrayáo do crédito, naquilo que diz respeito
aumentar a capacidade de reayáo das empresas, diminuir a pressáo fisCal sobre ao financiamento de empresas, lares e Estados endividados 19 • Foi facilitada
por uma revisáo progressiva da política monetária norte-americana, que
abandonou os cinones estritos do monetarismo doutrinal.
mercados concorrenciais e prote¡;áo aos direitos de propriedade, em particular a As financras mundiais sofreram urna expansáo considerável durante quase
propriedade intelectual dos oligopólios internadonais. duas décadas. O volume das transayóes a partir dos anos· 1980 mostra que
JH Dani Rodrik citado em Naomi Klein, La stratégie du choc, cit., p. 202. Diga-se de
passagem, ternos aqui mna ilustra<;áo muito boa do primeiro sentido do termo "es-
19
tratégia" como escolha dos meios que permitem alcan¡_;.ar um objetivo previamente Ver Dominique Plihon, "LÉtat et les marchés financiers", Les Cahiers Frantais,
determinado. n. 277, 1996.
200 o A nova razáo do mundo A grande virada o 201

a
o mercado financeiro se autonomizou em rela<ráo esfera da produ<ráo e acionistas. O principal efeito que tiveram essas práticas de ~ontrole foi tornar
das tracas comerciais, aumentando a instabilidade já cr6nica da economia o aumento da cotayáo em bólsa o objetivo comum de acionistas e dirigentes.
mundiaF 0• Desde que a "globaliza<ráo" comeyou a ser pm:ada pelas finan <ras, O mercado finance!r? fo! c:onstituído em agente discipli.fzante para todos os
a maioria dos países vi u-se na impossibilidade de tomar medidas que iriam atores da empresa, desde o dirigente até o assalariado de base: todos devem
de encontro aos interesses dos detento res do capital. Por isso, eles náo impe- a
submeter-se ao princípio de accountability, isto é, necessidade de "prestar
diram nem a forma<ráo das bolhas especulativas nem o esto uro del as. Mais cantas" e ser avaliado em funyao dos· resultados obtidos.
ainda, por urna política monetária que se afastou do monetarismo clássico, O fortalecimento do capitalismo financeiro teve outras consequéncias
contribuíram para sua formayáo- como os Estados Unidos a partir de 2000. importantes, sobretudo sociais. A concentra<ráo de renda e patrimOnio
A unificayáo do mercado mundial do dinheiro veio acompanhada de urna acelero u-se coma financeirizayáo da economia. A deflayáo salarial traduziu
homogeneiza<ráo dos critérios contábeis, de urna uniformizayáo das exigén- um poder maior dos detentares dos capitais, o que llies permitiu atrair wn
cias de rentabilidade, de um mimetismo das estratégias dos oligopólios, de acréscimo importante de valor, impondo seus critérios de rendimento finan-
ondas de recompras, fusóes e restruturayóes de atividades. a
edro toda a esfera produtiva e fazendo as foryas de trabalho competirem em
A passagem do capitalismo fordista ao capitalismo financeiro foi marcada escada mundial. Ela levo u muitos assalariados a recorrer ao endividamento,
também por urna sensível modifica<ráo das regras de controle das empresas. que o ativismo monetário do Federal Reserve Bank torno u mais fácil depois
Coma privatizayáo do setor público, o peso cada vez maior dos investid ores do crash de 2000. O empobrecimento relativo e muitas vezes absoluto desses
institucionais e o aumento dos capitais estrangeiros na estrutura da pro- -_assalariados submeteu-os desse modo ao poder das finanyas.
priedade das empresas, urna das principais mudanyas do capitalismo foram ,~m segundo ly_gar, a rel~yáo do sujeito com ele mesmo foi profundamen-
os objetivos perseguidos pelas empresas sob pressáo dos acionistas. De fato, te afetada. Em raiáo dos impostas mais atrativos e do estímulo dos poderes
o poder financeiro dos proprietários da empresa conseguiu dos gestores que públicos, o patrimOnio financeiro e imobiliário de muitas famíÚas de classe
estes exercessem pressáo constante sobre os assalariados com o intuito de média e alta aumento u consideravelmente a partir dos anos 1990. Apesar de
aumentar os dividendos e as cotayóes na bolsa. Segundo essa lógica, a "criayáo longe do sonho thatcheriano de populayóes ocidentais compostas de milhóes
de valor acionário", isto é, a produyáo de valor em proveito dos acionistas de pequenos capitalistas, a lógica do capital financeiro teve efeitos subjetivos
como determinam os mercados de ayóes, torna-se o principal critério de significativos. Cada sujeito foi levado a conceber-se e comportar-se, em todas as
gestáo dos dirigentes. O comportamento das empresas é profundamente dimensóes de sua vida, como um capital que devia valorizar-se: estudos univer-
afetado. Elas desenvolveráo todos os tipos de meios para aumentar essa sitários pagos, constitui<rao de urna poupan<ra individual para a aposentadoria,
"cria<ráo de valor" financeiro: fusóes-aquisiyóes, recentralizayáo no foco compra da casa própria e investimentos de longo prazo em títulos da bolsa sáo
do negócio, terceirizayáo de cenos segmentos da prciduyao, redu<ráo do a
aspectos dessa "capitalizayáo da vida individual" que, medida que ganhava
tamanho da empresa21 • A governan<ra da empresa (corporate governance) está terreno na classe assalariada, erodia um pouco mais as lógicas de solidariedadt?2 •
a
diretamente ligada vontade dos acionistas de assumir o controle da gestáo O advento do capitalismo financeiro, ao contrário do que anunciaram
das empresas. O controle "indicial", determinado unicamente pela Variayao na época alguns analistas, náo nos fez passar do capitalismo organizado do
do índice da bolsa, visa a reduzir a autonomia dos objetivos dos gestores, século XIX para um "capitalismo desorganizado" 23 • É mais adequado dizer
que supostamente tém interesses diferentes, o u até mesmo apasto aos, dos

22
Sobre esse ponto, ver Randy Martin, 1he Fínancialization of Dai/y Life (Filadélfia,
20 Ver Franc_;:ois Chesnais (org.), A finanra mundíalizada: raízes sociais epolíticas, confi- Temple University Press, 2002). Sobre o que chamaremos de "subjetiva~áo financeira'',
gurar;áo, consequincias (trad. Rosa Marques e Paulo Nakatani, Sáo Paulo, Boitempo, ver capítulo 9 deste volume.
2005). 23
Scott Lasch e John Urry, 1he End ofOrganized Capitalism (Cambridge, Polity Press,
2r Dominique Plihon, Le nouveau capitalisme, cit., p. 67 e seg. 1987).
202 ~ A nova razáo do mundo A grande virada ~ 203

que o capitalismo se reorganizo u sobre novas bases, cuja mola é a instaura~áo bom exemplo dessa transforma~io. Os governos francese~ come~aram a pór
da concorréncia generalizada, inclusive na esfera da subjetividade. O que a
fim gestio administrada dó crédito: supressio do limite de crédito, retirada
aprouve chamar de "desregulamemayáo", termo ambíguo que poderia dar a do controle de cámbi_o e privatiza~io das institui~óes bancárias e financeiras.
entender que o capitalismo náo conhece nenhum ?utro modo de regulayáo, Essas medidas permitil;-arn a cria~áo de um grande mercado único de capi-
é na realidade urna nova ordenar;do das atividades económicas, das relayóes tais e encorajaram o desenvolvimento de conglomerados que misturavam
sociais, dos comportamentos e das subjetividades. atividades de banco, seguro e consultoria. Paralelamente, a gestáo da dívida
Nada é mais indicativo disso do que o papel dos Estados e das organizayóes pública, em pleno crescimento no início dos anos 1990, foi profundamente
económicas internacionais no estabelecimento do novo regime de acumulayáo modificada para que se pudesse recorrer aos investido res internadonais, de
predominantemente financeiro. Há, de fato, urna falsa ingenuidade no fato modo que, por esse meio, os Estados conrribuíram arnpla e diretamenre
de se lamentar a forya do capital financeiro em oposiyáo aforya declinante para o crescimento das finan~as globalizadas. Por urna espécie de "efeito
dos Estados. O novo capitalismo está profundamente ligado a constru~áo reflexo" de sua própria a~áo, o Estado foi abrigado a "adaptar-se" pressas as
política de urna finan~a global regida pelo princípio da concorréncia generali- a nova situa~io financeira internacional. Quanto maior foi a transferéncia
zada. Nisso, a "rnercadorizayáo"* (marketization) das finanyas é filha da razáo de renda para os usurários, por meio de impósto, mais se teve de diminuir
neoliberal. Portante, convérn náo tomar o efeito pela causa, identificando o número de funcicinários e baixar os salários e mais foi preciso transferir
sumariamente neoliberalismo com capitalismo financeiro. para o setor privado-segmentos inteiros do setor público. & privatiza~óes, da
É claro que nem tudo vern pela máo do Estado. Se, a princípio, um dos .mesma forma que o estímulo a poupan~a individual, acabaram por conferir
objetivos da liberalizayáo dos mercados financeiros consistia em facilitar as um. poder consid~rável a bancos e seguradoras.
necessidades crescentes de financiamento dos déficits públicos, a expansáo O aumento d'o tama~ho dos· mercados, a abertura dos mercados e a
das finanyas globais é resultado também de múltiplas inova~óes ern procintos cria~áo do mercado de produtos derivados foram sistematicamtnte enCora-
financeiros, práticas e tecnologias que náo haviam sido previstas inicialmente. jados pelos poderes públicos para enfrentar a concorréncia de outras pra~as
Em todo caso, foi o Estado que nos anos 1980, por suas reformas de financeiras (em particular as mais poderosas: Londres e Nova York). Nos
liberalizayáo e privatiza~áo, constituiu uma finanya de mercado, em vez Estados Unidos, nos anos 1990, assistiu-se ao fim da compartimentaliza-
de urna gestáo mais administrada dos financiamentos bancários das empresas ~io do setor bancário coma supressáo do Glass-Steagall Act de 1933 e o
e das famílias. Lembremos que, dos anos 1930 aos 1970, o sistema financeiro surgimento paralelo de grandes conglomerados multifuncionais (one-stop
era enquadrado por regras que visavarn a protegé-lo dos efeitos da concorréncia. shopping). A securitizayáo de créditos, iniciada nos Estados Unidos nos
A partir dos anos 1980, ele continua a ser submetido a regras, mas estas anos 1970, favoreceu um quadro legal na maioria dos países (na Fran~a em
mudam radicalmente, já que visam a regulamentar a co~corréncia geral entre 1988)2 5• Enfim, em outro campo, coube ainda ao Estado criar o elo entre
todos os atores financeiros em escala internacional24 • A Franya oferece um o poder do capital financeiro e a gestáo empresarial: ele deu um quadro
legal as normas da governan~a empresarial que consagrava os direitos dos
26

acionistas e instaurava um sistema de remunerayáo dos dirigentes baseado


* No original, "mise en marché". Náo se trata apenas de transformar algo em mercadoria,
no aumento do valor das ayóes (stock-options)2 7 .
mas de inscrever a lógica concorrencial do mercado nos comportamentos ou nas
relac;óes e nos processos que náo foram e náo necessariamente seráo transformados
em mercadorias. (N. E.) 25
Ibidem, p. 18-9.
2
~ Como escrevem Dominique Plihon, Jézabel Couppey-Soubeyran e Dhafer Saldine,
26
"consequentemente, o objetivo da regulamentac;áo náo foi afastar a atividade bancária Como na Franc;a a "lei sobre as novas regulac;óes econ6micas", de maio de 200 l.
27
da concorréncia, mas criar condic;óes legais e leais de atividade (leve! playingfield)". Ver Lembramos que essas medidas favoráveis ao capitalismo financeiro foram consenso
Les banques, acteurs de la globalisation jinanciere (Paris, La Documentation Franc;aise, entre as elites políticas e econ6micas. Na Franc;a, coube a um governo de esquerda
2006), p. 113. implantá-las.
204 ~ A nova razáo do mundo A grande virada ~ 205

Obviamente, o FMI e o Banco Mundial prosseguiram essa construs:áo de bilhóes de dólares. Ao contrário do que afirmaram certos analistas,
política das finanyas de mercado pelos governos. As políticas públicas evidentemente náo é de "Socialismo" que se trata, tampouco de urna -nova
ajudaram ativa e fortemente os "investidores institucionais" a instaurar a "Revoluyáo de Outubro", mas de urna extensáo forrada eforrosa do papel ativo
norma do máximo valor acionário, captar fluxos de renda cada vez maiores, do Estado neoliberá!. Construtor, vetor e parceiro do capitalismo financeito,
a
alimentar urna especulas:áo desenfreada grayas extrayáÜ de renda financeira. a
o Estado neoliberal deu um passo frente, tornando-se efetivamente, grayas
A concentras:áo das instituiyóes financeiras, agora situadas no centro dos a crise, a instituiyáo financeira de úl-tima instJ.ncia. Isso é táo verdadeiro que
novos dispositivos económicos, permitiu atrair de modo sólido a poupanya esse "salvamento" conseguiu transformá-lo provisoriamente nwna espécie
das famílias e das empresas, o que lhes deu ao mesmo tempo mais poder de Estado corretor, que compra tirulos na baixa para tentar revende-los na
sobre todas as esferas econOmicas e sociais. Porranto, aquilo que se deno- alta. A ideia de que após a "retirada do Estado" assistiríamos a um "retorno
mina "liberalizayáo" das finanyas - que é mais propriamente a construyáo do Estado" deve ser seriamente rediscutida.
de mercados financeiros internacionais - engendrou urna "criatura'' com
urna forya ao mesmo tempo difusa, global e incontrolável.
Paradoxalmente, esse papel ativo dos Estados favoreceu a derrapagem Ideologia (!): o "capitalismo livre"
das instituis:óes de crédito em meados- dos anos 2000. Foi precisamente a O fato de essa ilusáo ser táo corriqueira deve-se em grande parte a urna
concord:ncia exacerbada entre instituiyóes de crédito "multifuncionais" estrarégia eficaz de conversáo de mentalidades que, a partir dos anos 1960
que as levou a assumir riscos cada vez maiores a fim de manter a própria e 1970, tomou a dupla forma de urna luta ideológica contra o Estado e as
rentabilidade28 • Mas elas so mente poderiam assumir esses riscos se o Estado polítiCas públicas, de urn lado, e de urna apologia despudorada do capita-
continuasse a ser o fiador supremo do sistema. O salvamento das caixas lismo mais desbfidado, de outru. Criou-se toda uina vulgata ~obre o tema
económicas nos anos 1990 nos Estados Unidos mostrou que o Estado náo da necessária "desobrigayáo do Estado" e a incomparável "eficiéncia dos
poderia permanecer indiferente ao desmoronamento dos grandes bancos, mercados". Poi assim que, na virada dos anos 1980, o mito do mercado
segundo o princípio do "too big to foil" ["grande dernais para quebrar"]. Na autorregulador pareceu estar de volta, a despeito das políticas neoliberais
realidade, há rnuito ternpo o governo neoliberal faz o papel de credor de que visavam a urna construrdo mais ativa dos mercados.
última instáncia, corno m ostra a prática de compra de créditos de bancos e Essa conquista política e ideológica foi objeto de numerosos trabalhos.
securitizayáo nos Estados Unidos29 • De modo que náo é de admirar que os Alguns autores desenvolveram urna estratégia muito consciente de !uta
governos tenham aumentado as intervenyóes de "salvamento" de instituiyóes ideológica. Hayek, Von Mises, Stigler e Friedrnan de fato rejletiram sobre a
bancárias e seguradoras desde o desencadeamento da crise em 2007: essas importáncia da propaganda e da educayáo, um tema que ocupa parte notável
interven<;:óes apenas ilustram em grande escala o princípio da "nadonalizayáo de suas obras e intervenyóes. Tentaram até mesmo dar urna forma popular
dos riscos e da privatizayáo dos lucros". O governo brid.nico de Gordon a suas teses para que tocassem, se náo a opiniáo pública diretamente, ao
Brown nacionalizo u quase 50% de seu sistema bancário e o governo norte menos os formadores de opiniáo, e isso desde muito cedo, como mostra o
-americano recapitalizou os bancos de Wall Street a um custo de" centenas sucesso mundial de O caminho da servic&io, de Hayek. O que explica tambérn
a constituiyáo dos think tanks (o mais famoso, a Sociedade Mont-Pelerin,
fundada ern 1947 em Vevey, na Suí1:a, por Hayek e Ropke, náo foi mais do
28 Sobre os mecanismos da crise financeira, ver Paul Jorion, Vers la crise du capitalisme que a "ponta de rede" de um vasto conjunto de associa<;:óes e círculos mili-
américain (Paris, La Découverte, 2007), e Frédéric Lardan, ]usqu'a quand? Pour en
tantes em todos os países). A historiografia descreve como os think tanks dos
finir avec les crises financifres (Paris, Raisons d'Agir, 2008).
29
"evangelistas do mercado" permitiram lanyar o assalto a~s grandes partidos
Nos Estados Unidos, os créditos hipotecários foram macic;:amente garantidos pelas
duas ag~ncias públicas encarregadas dos empréstimos residenciais, Fannie Mae e de direita, apoiando-se numa imprensa dependen te dos meios empresariais,
Freddie Mac. e como, pouco a pouco, as "ideias modernas" do mercado~ da globalizayáo
206 e A nova razio do mundo A grande virada o 207

fizeram refluir e definhar os sistemas ideológicos contrários, a come':(ar pela Náo podemos esquecer, todavia, que náo foi apenas· a fon;a das ideias
social-democracia. neoliberais que garantiu slla hegernonia. Elas se impll:seram a partir do
Evidentemente, do ponto de vista histórico, esse aspecto das coisas é funda- enfraquecimento d_~~ doutrinas de esquerda e do desabamento de qualquer
mental. Foi precisamente pela fixa((áo e;_ pela repetü;:áo dos mesmos argumentos alternativa ao capitalismo. Elas se afirmararn sobretudo num contexto de
que certa vulgata acabo u impondo-se por toda a parte, em particular nas mídias, crise dos antigos modos de regulayáo da economia capitalista, no momento
na universidade e no mundo político. Nos Estados Unidos, Milton Friedman, ern que a economia mundial era afetada pelas crises do petróleo. Isso explica
em conjunto com seus trabalhos académicos, teve um papel importante na por que, diferentemente dos anos 1930, a crise do capitalismo fordista
reabilita((áO do capitalismo com urna prodw;:áo excepcional de artigos, livros resultou numa saída favorável náo a menos capitalismo, mas, sirn, a mais
e programas de televisáo. Ele foi o único economista de sua época a aparecer capitalismo. O principal terna dessa guerra ideológica foi a crítica do Estado
na capa da Time Magazine (1969). Perfeitamente consciente da imporclncia a
corno fonte de todos os desperdícios e freio prosperidade.
dessa propaga((áo das ideias pró-capitalistas, dizia que, na maioria das vezes, a O sucesso ideológico do neoliberalismo foi possível, em primeiro lugar,
legisla((áo apenas acompanha um movimento da opiniáo pública que aconteceu gra¡_;as ao novo crédito que se deu a críticas antiquíssimas contra o Estado.
vinte o u trinta anos atrás30 : a virada da opiniáo pública contra o laissezfairedos Desde o século XIX, o.Estado inspiro u as mais virulentas diatribes. Frédéric
anos 1880 só se traduziu em políticas no início do século XX:.. Para Friedman, Bastiat, precedendo ·SPencer nesse quesito, sobressaiu-se em suas Harmonies
urna nova mudanya a favor do capitalismo concorrencial ocorrera por volta économiques. Os ser:Vi¡_;os públicos, dizia ele, alimentam a irresponsabilidade,
dos anos 1960 e 1970, após o fracasso das políticas de regulas:áo keynesiana, _a incompeténcia, a injustiya, a espolia¡_;áo e o imobilismo: "Tudo que caiu
de luta contra a pobreza e de redistribuiyáo de renda, e em consequéncia da rto,qomínio do fupcioq_aliS!lJO é quase estacionádo", por falta do incentivo
rejeiyáo cada vez maior ao modelo soviético. Para ele, a revolta dos contribuintes indispensável da C:oncorrencia32 . Náo nos surpreende, portantor que sejam
californianos em 1978, que se estendeu progressivamente a todos os Estados requentados ternas parcamente renovados por um novo vocabulário: o
Unidos e a um grande número de países ocidentais, testemunhou essa nova Estado é muito caro, desregula a frágil máquina da economia, "desestimula"
a
aspira<;áo da populas:áo redus:áo dos gastos públicos e dos impostas. Fried- a produ¡_;áo. Nos últimos trinta anos, o "custo do Estado" e o peso excessivo
man, consciente desses ciclos e dos efeitos retardados da opiniáo pública sobre dos impostas foram constantemente alegados para legitimar urna primeira
a política e a legislayáo, acerta quando anuncia em 1981 que aquela era urna virada no plano fiscal. Outras críticas se junraram a essa, ampliando a ideia
grande virada que se traduziria em medidas governamentais. do desperdício burocrático: o caráter inRacionário dos gastos do Estado, o
No momento certo, todos os países tiveram seus best-sellers elogiando tamanho insuportável da dívida acumulada, o efeito dissuasivo de impostas
a revol uyáo conservadora norte-americana e o retorno do mercado, e muito pesados e a fuga de empresas e capitalistas do espayo nacional, que
denunciando com veeméncia os custosos abusos da funyáo pública e do se tornou "náo competitivo" por causa do peso dos encargos sobre os ren-
"Estado de bem-estar''. Essa imensa onda de novas evidéncias fabricou um dimentos do capital. Friedman sonhava com urna sociedade pouco taxada:
consentimento, se náo da populayáo, ao menos das "elites" que tinham o Minha dcfini~áo seria a seguinte: é "liberal" uma sociedade ero que os
monopólio da palavra pública, e permitiu que aqueles que ainda Óusavam gastos públicos, todas as coletividades juntas, nio ultrapassam lOo/o a 15%
31 do produto nacional. Estamos muito longe disso. Exisrem, evidentemente,
opor-se fossem estigmatizados como "arcaicos" •
outros critérios, como o grau de prote~io da propriedade privada, a presen~a
de mercados livres, o respeiro aos contratos etc. Mas tudo isso é medido
pelo peso global do Estado. Dez por cento era a porcentagem na Inglaterra
30 Ver a conferencia de Milton Friedman, The Invisible Hand in Economics and Politics
(Singapura, Institute of Southeast Asian Studies, 1981) .
.'ll Por exemplo, nos Estados Unidos, George Gilder, Wealth and Poverty (Nova Yor!c,
Bantam Books, 1981), ou, na Fran~a, Henri Lepage, Demain le capitalisme (Parts,
32
Frédéric Bastiat, CEuvres économiques (apres. Florin Aftalion, Paris, PUF, 1983,
Hachette, 1978, Cole~io Pluriel). Coles:io Libre Échange), p. 207.
208 .. A nova razáo do mundo A grande virada .. 209

no apogeu do reinado da rainha Vitória, no fim do século XIX. Na era e "novas economistas" participaram simultaneamente da, rnesma denúncia
dourada das colónias, Hong Kong chegou a menos de 15%. Todos os dados do grande Leviatá. Mais aillda, houve urna reviravolta na crítica social: até
empíricos e históricos mostram que 10% a 15% é o tamanho ótimo. Hoje,
os anos 1970, dese~prego, desigualdades sociais, inflac;:áÜ e alienayao eram
os governos europeus chegam em média a quatro vezes mais. Nos Estados
"patologias sociais" atribuídas ao capitalismo; a partir dos anos 1980, os
Unidos, chegamos apenas a tres ve:tes. 33
mesmos males foram sistematicamente atribuídos ao Estado. O capitalismo
Essa argumentas:áo recupera de certo modo o velho tema do "governo deixou de ser o problema e se tornou a solus:ao universal. Essa era a men-
frugal", que deve evitar retirar riquezas excessivas para náo prejudicar a sagem das obras de Friedman a partir dos anos 196034 •
atividade dos agentes econ6micos, privando-os de recursos e arrasando Foi em norne dos "fracassos do mercado" (market failures) que a in-
suas motivac;:óes. Von Mises e Hayek a reforc;:aram nos anos 1930 com tervenyao pública foi justificada nos anos 1920 e estendida após a guerra.
suas análises a respeito da ineficácia burocrática, que, para eles, devia-se Essa inversáo da crítica foi perfeitamente resumida por Friedman ern Livre
a
essencialmente impossibilidade de cálculo nas economias dirigidas e a para escolher:
ausencia de qualquer arbitragem possível entre soluc;:óes alternativas. Os
O governo é um dos meios pelos quais podemos tentar compensar os "defei-
argumentos elaborados por esses autores contra a "burocracia'' e o "Estado
tos do mercado" e utilizar nossos recursos de forma mais eficaz para produzir
o ni potente", que no momento em q11e foram formulados iam contra a a quantidade de ar; água e terra própria que aceitamos pagar. Infelizmente, os
corrente, fizeram um enorme sucesso na imprensa cinquenta anos depois, próprios fatores que produzem o "defeito de mercado" impedem o governo de
e, muito além da direita, o desmoronamento da Uniáo Soviética parecia ser chegar a urna solw;áo satisfatória. Via de regra, é táo difícil para o governo
co~o é para os participantes do mercado identificar quem foi prejudicado e
a demonstrac;:áo em ato do fracasso das economias centralizadas. Finalmen-
':quem foi benefiCiado e avaliar o volume exato dos prejuízos e dos benefícios.
te, o amálgama entre a burocracia de tipo stalinista e as diferentes formas
Tentar usar o gÜverno para corrigir um "defeito de mercado" é, muitas vezes,
de intervenc;:áo na economia - que Hayek e Von Mises náo hesitaram em trocar um "defeito de mercado" por um "defeito de governo". 35 '
fazer- tornou-se comum na nova vulgata. Os fracassos da regulac;:áo key-
nesiana, as dificuldades encontradas pela escolarizas:áo em massa, o peso Ronald Reagan transformo u isso em slogan: "O governo nao é i soluyao,
é o problerna'' 36 .
dos impostos, os diferentes déficits das caixas públicas de auxílio social, a
incapacidade relativa do Estado social de eliminar a pobreza ou reduzir as
desigualdades, tudo foi pretexto para reconsiderar as formas institucionais
Ideología (2): o "Estado de bem-estar"
que, após a Segunda Guerra Mnndial, asseguraram um compromisso entre
e a desmoraliza<;áo dos indivíduos
as grandes foryas sociais. Mais ainda, todas as reformas sociais desde o fim
do século XIX foram postas em dúvida, em no me da liberdade absoluta dos Urn grande número de teses, relatórios, ensaios e artigos tentará avaliar
contratos e da defesa incondicional da propriedade privada. Reprovando a a balanya de custos e benefícios do Estado para terminar com um veredito
tese polanyiana da "grande transformac;:áo", os anos 1980 caracterizam-se inapelável: o seguro-desernprego e a renda mínima sao os responsáveis pelo
no campo ideológico como urna época "spenceriana''.
Tuda isso foi misturado, com um conteúdo um pouco diferente, é claro, 34
Ver Milton Friedman, Capítalisme et libertés [1962] (Paris, Robert Laffont, 1971) [ed.
mas ainda de acorde com o método empregado por Hayek em O caminho bras.: Capitalismo e líberdade, trad. Manso C. C. Serra, Rio de Janeiro, LTC, 2014].
da servidáo. No fundo, o gulag e os impostos eram apenas dois elementos de 35
Milton Friedman e Rose Friedman, La liberté du choix (trad. Paris, Belfond, 1980),
um mesrno continuum totalitário. Na Frans:a, por exemplo, "novos filósofos" p. 204 [ed. bras.: Lívrepara escolher, trad. Ligia Filgueiras, Rio de Janeiro, Record, 20 15].
36
Outros argumentos vieram apoiar esse questionamento da irl.terven~áo pública. A
escala económica norte-americana conhecida como Public Choice desenvolveu um
33 Entrevista com Henri Lepage, "Milton Friedman: le triomphe du libéralisme", ponto de vista mais elaborado, aplicando as atividades públicas a lógica do cálculo
Politique Internatíonale, n. 100, 2003. económico individuaL Examinaremos essa doutrina no capítulo 9.
210 " A nova razáo do mundo A grande virada $ 211

desemprego; os gastos com saúde agravarn o déficit e provocam a inflayáo Urna das constantes do discurso neo liberal é a crítica da "dependéncia a
dos custos; a gratuidade dos estudos incentiva a vadiagem e o nomadis- assisténcia'' gerada pela cobertura generosa dos riscos concedida pelos siste-
mo dos estudantes; as políticas de redistribuiyáo de renda náo reduzem as desi- mas de assisténcia social. Os reformadores neoliberais náo 'só se servirarn do
gualdades, mas desestimulam o esforyo; as políticas urbanas náo eliminaram a argumento da eficádJ.-e."dO Custo, corno tarnbém alegaram a superloridade
segregayáo, mas tornararn mais pesada a taxayáo local: Em resumo, tratava-se de moral das soluyóes dadas o u inspiradas pelo mercado.
fazer a respeito de tudo a pergunra decisiva acerca da utilidade da interferéncia Essa crítica repousa sobre um postulado que diz respeito a relayáo do
do Estado na ordem do mercado e mostrar que, na maior parte dos casos, as indivíduo com o risco. O "Estado de bem-estar", querendo promover o
"soluyóes" dadas pelo Estado causavam mais problema do que resolviarn37 . bem-estar da populayáo por meio de mecanismos de solidadedade, eximiu
Mas a questáo do custo do Estado social está longe de se drcunscrever os indivíduos de suas responsabilidades e dissuadiu-os de procurar trabalho,
a dimensáo contábil. Na realidade, é no campo moral que a ayáo pública estudar, cuidar de seus filhos, prevenir-se contra doenyas causadas por práti-
pode ter os efeitos mais negativos, dependendo do número de polemistas. cas nocivas. A soluyáo, portanto, é pór em ayáo, ern todos os domínios e ern
Mais precisamente, é pela desrnoralizayáo que se é capaz de provocar na todos os níveis, sobretudo no nível microeconómico do comportamento dos
populayáo a opiniáo de que a política do "Estado de bem-estar" se tornou indivíduos, os mecanismos do cálculo económico individual. O que deveria
particularmente onerosa. O grande terna neoliberal afirma que o Estado ter dois efeitos: a rnoralizayáo dos comportamentos e uma maior eficiéncia
burocrático destrói as virtudes da sociedade civil: a honestidade, o sentido dos sistemas sociais.· Foi assim que, nos anos 1970, nos Estados Unidos, o
do trabalho bem feito, o esforyo pessoal, a civilidade, o patriotismo. Náo auxilio as familias com filhos dependen tes (Aid ro Families with Dependent
é o mercado que destrói a sociedade civil com sua "sede de lucro", porque Children) tornou-se o símbolo dos efeitos nefastos do welfare State, por
ele náo poderia funcionar sem essas virtudes da sociedade civil; é o Esta- enco,rajar a dissolu'yáo dos Llyos familiares, multiplicar as farnílias assistidas
do que corrói as molas da moralidade individual. Corno mostrou Albert e desestimular as we!fare mothers de trabalhar. O que será confirmado, no
O. Hirschman, o argumento náo era novo: tratava-se de um dos trés esquemas registro académico, pela demonstrayáo de Gary Becker em A Treatise on
fundamentais da "retórica reacionária", o que ele chama de "efeito perverso". Family, baseada no cálculo dos custos e das vantagens para as jovens máes
Buscar o bem da maioria por meio de políticas de proteyáo e redistribuiyáo em permanecer solreiras40 . O "Estado de bern-estar" terno efeito perverso de
resulta infalivelmente em fazer sua desgra¡;:a38 • Essa foi a tese amplamente incitar os agentes económicos a preferir o ócio ao trabalho. Essa argumenta-
difundida por Charles Murray em Losing Ground [Perdendo terreno], obra yáo, repetida até fartar, associa a seguranya dada aos indivíduos perda do a
lanyada em plena era Reagan39 • A luta generosa contra a pobreza fracassou senso de responsabilidade, ao abandono dos deveres familiares, perda a
porque dissuadiu os pobres de rentar progredir, o contrário do que fizeram do gosto pelo esforyo e do amor ao trabalho. Em urna palavra, a proteyáo
várias gerayóes de imigrantes. Manteros indivíduos em c3tegorias desvaloriza- social destrói valores sem os quais o capitalismo náo poderia funcionar 41 •
das, fazé-los perder dignidade e autoestima, homogeneizar a classe pobre sáo O ensaísta norte-americano George Gilder, no best-seller Wealth and
alguns dos efeitos náo desejados do auxílio social. Para Murray, existe apenas Poverty, publicado no momento em que Reagan chegava ao poder, foi sern
uma soluyáo: a supressáo do we/fare State e a recuperayáo da solid~riedade dúvida quem insistiu com mais eloquéncia na relayáo entre valores e capi-
entre parentes e vizinhos, que obriga o indivíduo a assumir suas responsabi- talismo42. Para ele, o futuro repousa sobre a fé no capitalismo, tal como é
lidades, a recuperar certo status, cerro orgulho, para manter a honra. expressa por Walter Lippmann em Ihe Good Society:

37
Ver um dos primeiros dossits acusatórios produzidos na Fran~a: Henri Lepage, 40
Gary S. Becker, A Treatise on Family (Cambridge, Harvard U~iVersity Press, 1981).
"LÉtat-providence démystifié", em Demain le capitalísme, cit., cap. 6. 41
U m exemplo dessa argumenta~áo encontra-se em Philippe Bénéton, Le jléau du bien:
3
~ Albert O. Hirschman, Deux siecles de rhétorique réactionnaire (Paris, Fayard, 1995). essai sur les politiques sociales occidentales (Paris, Robert Laffont, 1983), p. 287.
42
39
Charles Murray, LosingGround:American SocialPolicy (Nova York, Basic Books, 1984). George Gilder, Richesse et pauvretés (Paris, Albin .Miehel, 1981).
212 • A nova razáo do mundo A grande virada @ 213

A fé no homem, no futuro, a fé no retorno cada vez maior do dom, a fé representayáo e considerar o indivíduo plenamente responsável. Respon-
nas vantagens mútuas do comércio, a fé na providéncia de Deus sáo fun- sabilizar o indivíduo é responsabilizar a família48 • Esse será, entre outros,
damentais para o éxito do capitalismo. Todas sáo necessárias para encorajar
o objetivo da livte escolha da escola pelos pais e da liberdade que terao de
a paixáo no trabalho e o espírito de empresa contra todos os fracassos e as
financiar em parte a escolaridade dos filhos. Se o enriquedmento deve ser
frustrayóes inevitáveis de um mundo perdido; par:a inspirar a confianya e a
solidariedade numa economia em que elas muitas vezes seráo traídas; para um valor supremo, é porque é visto como a razáo mais eficaz para incentivar
encorajar a renúncia aos prazeres imediatos em nome de um futuro que os trabalhadores a aumentar o esforyo e o desempenho, da mesma forma que
corre o risco de virar fumaya; e, finalmente, para estimular o gasto pelo a propriedade privada da residencia dos trabalhadores o u da empresa é vista
risco e pela iniciativa num mundo em que os lucros evaporam quando os como condiyáo para a responsabilidade individual. Por isso, deve-se vender
. 43
outros se recusam a entrar no Jogo.
os conjuntos habitacionais para favorecer urna "democracia de proprietários"
Se a riqueza repousa sobre essas virtudes, a pobreza é encorajada por e um "capitalismo popular". Da mesma forma, deve-se sub meter a direyáo
a
políticas duplamente dissuasivas em relayáo ao trabalho e fortuna: ''A ajuda das empresas aos acionistas por intermédio da privatizayáo, porque eles seráo
social e outras subvenyóes apenas prejudicam o trabalho. Os pobres escolhem exigentes coma gestáo de seu patrimOnio. De modo mais geral, é preciso pór
o ócio náo por fraqueza moral , mas porque sao• pagos para esco lh'e-l o"44 . E o cliente na posiyáo de árbitro entre vários operadores para que pressione a
tirar dos ricos para dar aos pobres por meio dos impostas é dissuadir os ricos empresa e seus agentes a servi-lo melhor. A concorrencia introduzida pelos
de enriquecer: "O imposto progressivo é o principal perigo que ameaya esse consLUUidores é a principal alavanca para a "responsabilizac;:áo", portante,
45
sistema e desencoraja os ricos a arriscar seu dinheiro" • _para o bom desempenho dos assalariados nas empresas.
O remédio que se deve dar a essa situayáo é evidente: diminuir as transfe- ..u a
m novo dis~mso de yalorizayáo do "risco"' inerente vida individual
rencias de uns para os outros. A única guerra contra a pobreza que se sustenta e coletiva tenderá a fazer pensar- que os dispositivos do Estado social sáo
é a volta aos valores tradicionais: "Trabalho, família e fé sáo os únicos remédios profundamente nocivos a criatividade, a inovayáo, a realizayá¿ pessoal. Se
para a pobreza''46 . Esses tres rneios estáo ligados, já que é a família que trans- o indivíduo é o único responsável por seu destino, a sociedade náo lhe deve
mite o sentido do esforyo e a fé. Casamento monogimico, crenya em Deus nada; em compensac;:áo, ele deve mostrar constantemente seu valor para
e espírito de empresa sáo os tres pilares da prosperidade, urna vez que nos merecer as condiyóes de sua existencia. A vida é urna perpétua gestáo de
livramos da ajuda social, que apenas destrói a família, a coragem e o trabalho. riscos que exige rigorosa abstenyáo de práticas perigosas, autocontrole per-
Mil ton Fríedman e sua esposa, Rose, váo no mesmo sentido, conside- manente e regulayáo dos próprios comportamentos, misturando ascetismo
rando que "a expansáo do Estado ao longo das últimas décadas e o cresci- e flexibilidade. A palavra-chave da sociedade de risco é "autortegula~áo".
mento da criminalidade no mesmo período constituem duas faces de urna Essa "sociedade de risco" tornou-se urna daquelas evidencias que acompa-
mesma evoluyáo" 47 . Isso acontece porque a lnterven¡;:áo do Estado repousa nham as mais variadas pro postas de protec;:áo e seguro privados. U m imenso
sobre urna concepc;:áo do indivíduo como "produto de seu meio, logo, náo mercado de seguranya pessoal, que vai do alarme doméstico aos planos de
podendo ser considerado responsável por seus atos". É preciso inv~rter essa aposentadoria, desenvolveu-se proporcionalmente ao enfraquecimento dos
dispositivos de seguros coletivos obrigatórios, reforyando por um efeito de
circuito-fechado o sentimento de risco e a necessidade de se proteger indi-
4J Ibidem, p. 85-6.
vidualmente. Por urna espécle de ampliayáo dessa problemática do risco,
44 Ibidem, p. 81.
algLUUas atividades foram reinterpretadas como meios de proteyáo pessoal.
45 lbidem, p. 72. É o caso, por exemplo, da educayáo e da formayáo pro_fissional, vistas como
46 lbidem, p. 81; grifo de Gilder. escudos que protegem do desemprego e aumentam a "empregabilidade".
~7 Mil ton Friedman e Rose Friedman, La tyrannie du statu quo (trad. Patrice Hoffmann,
Paris, Lattes, 1984), p. 211 [ed. bras.: Tirania do status quo, trad. Ruy Jungmann,
48
Rio de Janeiro, Record, 1984]. Ibidem, p. 214-5.
214 6 A nova razáo do mundo A grande virada 4
215

Para compreender essa nova moral, devemos ter em mente a "revolu- Becker formula urna nova teoria da família, considerando-a urna firma que
t;:áo" que os economistas norte-americanos pretenderam fazer a partir dos emprega certa quantidade de recursos em moeda e tempo para produzir
anos 1960. A razáo econ6mica aplicada a todas as esferas da at;:áo privada e "bens" de diferentes_ natur_ezas: competencias, saúde, autoestima e o u tras
pública permite eliminar as linhas de separat;:áo entre política, sociedade e "mercadorias", como filhos, prestígio, cobiya, prazer sensorial etc. 50 .
economia. Sendo global, deve estar na base de tOdas as decisóes individuais, O fundamento da iniciativa de Becker consiste em estender a funyáo
permite a inteligibilidade de todos os comportamentos e deve ser a única a de utilidade empregada na análise·económica de modo que o indivíduo
estruturar e legitimar a ayáo do Estado 19 • seja considerado um produtor e náo um simples consumidor. Ele produz
É o que mostram os chamados "novos" economistas. Eles tentaram mercadorias que váo satisfazé-lo, utilizando bens e servi:yos comprados
estender o campo de análise da teoria padráo a novos objetos. Náo se trata nos mercados, tempo pessoal e ourros "inputs'' que possuem valor, preyos
aqui, corno era o caso com os teóricos austro-americanos, de dar novas bases ocultos, mas calculáveis. Em resumo, trata-se de escolher entre diferentes
a ciencia econ6mica por urna teoria do empreendedorismo; para eles, trata-se "fun~óes de produ~áo", su pondo que todo bem é "produzido" pelo indiví-
-e já é muito- de sair dos dorníriios tradicionais da análise económica para duo, que por sua vez mobiliza recursos variados: dinheiro, tempo, capital
generalizar a análise de custo-benefício a todo o cornportamento humano. humano e até mesmo as relayóes sociais assimÜadas a um "capital social" 51 •
Obviamente, há multas pontes entre essas corren tes, mas as lógicas sáo he- O que- coloca, evidentemente, o problema da .identificayáo dos "inputs'',
terogeneas. O próprio Von Mises ambicionava urna ciencia total da escolha mas também o da quantificayáo de todos os aspectos náo monetários que
humana. Mas acreditava que tinha de elaborá-la refundando os conceitos entram no cálculo e levam a um~ decisáo.
e os métodos da economia. Tentava desse modo distinguir a at;:áo humana ,1).. qliestáo prin.cipal, m;~se reinvestimento das ·regióes externas do campo
ern geral como criayáo de sistemas meios-fins (estudada pela praxeologia) e classicamente delí'mitado da ciencia económica, é dar, ou melhor, devolver
a economia monetária e comercial específica (que é da ordem da catalaxia). consistencia teórica aantropologia do homem neoliberal, náo só, como diz
Os economistas norte-americanos adeptos da economia padráo que- Becker, coma intenyáo de perseguir um objetivo científico desinteressado,
rem estabelecer que as ferramentas mais tradicionais de análise podem ser a
mas para fornecer apoios discursivos indispensávels governamentalidade
amplamente estendidas em seus usos, mostrando desse modo que se pode neoliberal da sociedade. Por mais influente que tenha sido por si só essa
fazer a economia de urna revoluyáo paradigmática e conservar as velhas concepyáo do homem como capital- o que é propriamente o significado do
ferramentas do cálculo de maximizayáo. A familia, o casamento, a delin- conceito de "capital humano" -, ela náo conseguiu produzir as mutayóes
quencia, o desemprego, mas também a at;:áo coletiva, a decisáo política e a subjetivas de massa que se podem constatar hoje. Para isso, foi necessário que
legislayáo tornam-se objetos do raciocínio económic~. É assim que Gary ela tomasse carpo materialmente pela instaurayáo de dispositivos múltiplos,
diversificados, simultJ.neos ou sucessivos, que moldaram duradouramente
a conduta dos sujeitos.
49 Para Gary S. Becker, toda ayáo humana é económica: "The economic approach
provides a valuable unified framework for understanding all human beh~vior" [''A
abordagem económica fornece uro quadro único valioso para a compreensáo de todo
0 comportamento humano"], escreve o autor em The Economic Approach to Human
Disciplina (1): um novo sistema de disciplinas
Behavior (Chicago, University of Chicago Press, 1976), p. 14. O que significa que
todos os aspectos do comportamento humano sáo traduzíveis ero pres;os (p. 6). Ele O próprio conceito de governamentalidade, como ayáo sobre as ayóes
comeyou sua obra com urna tese, The Economics ofDiscrimination (1957), que trata de indivíduos supostamente livres em suas escolhas, permite redefinir a
dos fenómenos de discriminayáo no mercado de trabalho dos Estados Unidos.·Deu
prosseguimento a essa tese com urna análise dos efeitos da educayáo em seu livro
50
sobre o capital humano (Human Capital: A Theoretical and EmpiricalAnalysis with Gary S. Becker, A Treatise on Family, cit., p. 24.
51
Special Rejerence to Education, 1964) e teoriwu seu método ero Economic Theory Como ele faz em Gary S. Becker e Kevin M. Murphy, Social Economics: Market
(1971) e Economic Approach to Human Behavior (1976). Behavior in a Social Environment (Cambridge, Harvard University Press, 2000).
216 " A nova razáo do mundo A grande virada .. 217

disciplina co_mo técnica de governo próprio das sociedades de mercado. Devemos distinguir trés aspectos das disciplinas neoliberais. A liberdade
O termo discíplina poderá surpreender nesse caso. Ele implica, ao menoS dos sujeitos económicos préssupóe, em primeiro lugar, a seguranya dos
aparentemente, certa inflexáo com relayáo ao sentido que Foucault lhe dá contratos e o estabelecimento de um quadro estável. A' disciplina neoli-
em Vigiar e punir*, quando o aplica as técnicas de distribuiyáo espacial, beral conduz a esteiid~r o cJ.mpo de ayáo que se deve estabilizar mediante
classificayáo e adestramento dos carpos individu~is. O ffiodelo da disciplina regras fixas. A constituiyáo de um quadro náo sornente legal, mas também
era, para ele, o panóptico benthamiano. Contudo, longe de opor "disciplina'', oryamentário e monetário, deve impedir os sujeitos de prever variayóes de
"normalizayáo" e "controle", corno defendem certas exegeses, a reflexáo de política económica, isto é, fazer dessas variayóes objetos de antecipayáo.
Foucault fez transparecer de modo cada vez mais nítido a matriz dessa nova Isso significa que o cálculo individual deve poder apoiar-se numa ordem de
forma de "conduta das condutas", que pode diversificar-se, conforme o caso, mercado estável, o que exclui fazer do próprio quadro um objeto de cálculo.
desde o encarceramento dos prisioneiros até a vigilancia da qualidade dos A estratégia54 neoliberal consistirá, entáo, em criar o maior número
produtos vendidos no mercado52 • Se "governar é estruturar o campo de ayáo possível de situayóes de mercado, isto é, organizar por diversos meios (pri-
eventual dos outros", entáo a disciplina pode ser redefinida, de forma mais vatizayáo, criayáo de concorréncia dos serviyos públicos, "mercadorizayáo"
ampla, como urn conjunto de técnicas de estruturayáo do campo de ayáo de escola e hospital, solvéncia pela dívida privada) a "obrigayáo de escolher"
que variam conforme a situayáo ern que se encontra o indivíduo 53 • para que os indivíduos aceitero a situayáo de mercado tal como lhes é imposta
Desde a era clássica das disciplinas, portanto: o poder náo pode exercer-se como "realidade", isto é, como única "regra do jogo", e assim incorporem a
por pura coeryáo sobre um corpo; ele deve acompanhar o desejo individual necessidade de realizar um cálculO de interesse individual se náo quiserem
e orientá-lo, pondo em ayáo aquilo que Bentham chama de "influéncia''. O pÚd~r "no jogo" e, inais ainda, se quiserem valorizar seu capital pessoal num
que pressupóe que ele penetre no cálculo individual- e até participe dele- univ~rso em que a ,.·acuriml~~áo parece ser a lei geral-da vida.
para agir sobre as antecipayóes imaginárias dos indivíduos: para reforyar o Por fim, dispositivos de recompensas e puniyóes, sistemas de 'estímulo e
desejo (pela recompensa), para enfraquece-lo (pela puniyao), para desviá-lo "desestímulo" substituiráo as sanyóes do mercado para guiar as escolhas e a
(pela substituiyao de objeto). conduta dos indivíduos quando as situayóes mercantis o u quase mercantis
Essa lógica que consiste em dirigir indiretamente a conduta é o horizonte náo sáo inteiramente realizáveis 55 . Seráo construídos sistemas de controle e
das estratégias neoliberais de promoyáo da "liberdade de escolher". Nem avaliayáo de conduta cuja pontuayáo condicionará a obtenyáo das recom-
sempre distinguimos a dimensáo normativa que necessariamente lhes per- pensas e a evitayáo das puniyóes. A expansáo da tecnologia avaliativa como
tence: a "liberdade de escolher" identifica-se com a obrigayáo de obedecer modo disciplinar repousa sobre o fato de que quanto mais livre para escolher
a urna conduta maximizadora dentro de um quadro legal, institucional, é supostamente o indivíduo calculador, mais ele deve ser vigiado e avaliado
regulamentar, arquitetural, relacional, que deve ser Construído para que para obstar seu oportunismo intrínseco e foryá-lo a conjuntar seu interesse
o indivíduo escolha "corn toda a liberdade" o que deve obrigatoriamen- ao da organizayáo que o emprega.
te escolher para seu próprio interesse. O segredo da arte do poder, dizia Friedman é um dos principais pensadores dessa nova forma de disciplina.
Bentham, é agir de modo que o indivíduo busque seu interesse Como se Falamos anteriormente do papel que ele teve na difusáo de massa dos ideais
fosse seu dever, e vice-versa.
4
'i O termo deve ser entendido aqui em seu sentido primeiro (ver no texto a distinyáo
entre os dois sentidos de "estratégii').
* Trad. Raquel Ramalhete, 42. ed., Petrópolis, Vozes, 2015. (N. E.) 55
Da mesma forma, mas num contexto muito diferente, Bentham distinguiu a estru-
"
2
Esse é o sentido que se deve dar afrase: "O panóptico é a própria fórmula de um turayáo normalizadora das ayóes espontilneas no mercado, de um lado, e a vigilánda
governo liberal", Michel Foucault, Naissance de la biopolitique (Paris, Seuil/Gallimard, mais sutihnente construída das condutas nas instituiyóes destinadas a educar ou
2004), p. 69. reeducar os que náo conseguiam funcionar sozinhos no espayo das nocas mercantis,
53 de outro.
Idem, "Le sujet et le pouvoir", Dits et Écrits lL 1976-1988, cit., p. 1.056 e seg.
218 • A nova razáo do mundo A grande virada " 219

· do livre mercado e da livre empresa. Muito mais conhecido do público que da economia por urna diminuiyáo das taxas de juros o u p_or um incentivo
Hayek e, sem dúvida, mais influente que ele nas políticas norte-americanas, · a
. oryamentário tem exito cada Vez menor medida que é utilizada, porque _OS
Friedman fez conjuntamente urna carreira academica- consagrada com um agentes económicos "aprendem" que essas medidas náo tein os efeitos reais
prémio No be! de Economia como figura principal da Escala de Chicago e proclamados. A "teori~ das expectativas racionais" é um caso particular da
fundador do monetarismo- e urna carreira de propagandista dos benefícios explicayáo pelos efeitos náo desejados. As inten'Tóes políticas sáo frustradas
da liberdade económica. em seu resultado em razáo da náo _considerayáo das capacidades de cálcu-
Friedman distinguiu-se fazendo do prindpio monetarista o correspon- lo sofisticado dos agentes, que, ao cabo de urna série de experiéncias das
dente, no plano estritamente económico, das regras formais tais como foram consequendas dessas políticas, náo se deixam mais enganar pelas ilusóes
pensadas pelos neoliberais nos anos 1930. Esse princípio particular pode ser da moeda abundante o u das diminuiyóes de impostas. Disso resulta que o
enunciado da seguinte maneira: para coordenar suas atividades no mercado, governo náo pode mais considerá-los seres passivos, que reagem por reflexo
os agentes económicos devem conhecer de antemáo as regras simples e está- aos stimuli monetários e or~Tamentários. De cerro modo, o cálculo maximi-
veis que presidem suas tracas. O que é verdadeiro em matéria jurídica deve zador incorpora as próprias políticas como um dos parimetros que devem
ser verdadeiro a fortiori no plano das políticas econümicas. Estas devem ser ser levados em considerayáo. Essa "interioriza~áo" da política no cálculo
automáticas, estáveis e perfeitamente conhecidas56 . A moeda faz parte dessa individual permite repensarmos a forma como evoluiu progressivamente
estabilidade indispensável aos agentes económicos para que possam desen- o próprio neoliberalismo.
volver suas atividades. Contudo, estabelecer esse quadro estável significa que O monetarismo, tal como foi teorizado por Friedman, teve urna difu-
os agentes económicos teráo de se adaptar a ele e modificar seu comporta- sán t~pida, aaltura,da situayáo criada pelo colapso do sistema monetário
mento. O intervencionismo de Friedrnan consiste em implantar coerróes de inter~acional após:' a guerr~: a través da implantayáo de taxas de dmbio
mercado que foryam os indivíduos a adaptar-se a ele. Em outras palavras, flutuantes e do papel dos capitais voláteis, que podiam ameayai qualquer
trata-se de pOr os indivíduos em situayóes que os obriguem a"liberdade de divisa que náo fosse gerida de acordo com as novas normas de disciplina
escolher", isto é, a manifestar na prática sua capacidade de cálculo e governar monetária. Esta última tornou-se, em suma, urna disciplina imposta pelos
a si próprios como indivíduos "responsáveis". Esse intervencionismo especial mercados financeiros, como se viu na Grá-Bretanha em 1976, na Franya
consiste em abandonar um grande número de instrumentos antigos de gestáo em 1991 e na Suécia em 1994. Assim, a luta contra a infla'Táo constituiu
(despesas oryamentárias ativas, política de renda, controle de preyos e cimbio) a prioridade das políticas governamentais, enguanto a taxa de desemprego
e ater-se a uns poucos indicadores-chave e a objetivos limitados, como taxa transformava-se em simples "variável de ajuste". A luta pelo pleno empre-
de inflayáo, taxa de crescimento da massa monetária, déficit oryamentário go tornou-se suspeita de ser um fator de inflayáo sem efeito duradouro.
e endividamento do Estado, a fim de restringir os atoreS da economia a um A teoria friedmaniana da "taxa de desemprego natural" foi amplamente
sistema de coeryóes que os abriga a comportar-se como exige o modelo. aceita por autoridades políticas de rodas as cores.
Seguindo Friedman, cuja teoria monetária se fundamenta no prindpio O próprio oryamento tornou-se um instrumento de disciplina dos
da ineficácia das políticas monetárias ativas, economistas norte-américanos comportamentos. A diminuiyáo dos impostas sobre empresas e rendas mais
desenvolveram nos anos 1970 a ideia de que as polít~cas de regulayáo ma- elevadas foi apresentada muitas vezes como um meio de refor~Tar o estímulo
croeconómicas semente perderiam eficácia em consequencia dos compor- ao enriquecimento e ao investimento. Na realidade, de forma muito mais
tamentos de aprendizado dos agentes económicos. A tentativa de retomada dissimulada, o objetivo da diminuiyáo da pressáo fiscal, assim como a recusa
de aumentar as cotiza~Tóes sociais, foram meios- mais o u menos eficazes, con-
forme a situayáo das relayóes de forya- de impor redu~Tóes 'do gasto público
56 Bernard Élie, "Milton Friedman et les politiques économiques", em Marc Lavoie
e dos programas sociais em no me do equilíbrio e da limita~Táo da dívida do
e Mario Seccarecda (orgs.), Milton Friedman et son a:uvre (Montreal, Presses de
Estado. O melhor exemplo dessa estratégia fiscal é, sem dúvida, o de Ronald
l'Université de Montreal, 1993), p. 55.
220 .. A nova razáo do mundo A grande virada "' 221

Reagan, que em 1985 aprovou urna lei que exigia a reduyáo automática dos a máo de obra e a eficiencia económica. Essa ideia náo é nova. Jacques
gastos públicos até o restabelecimento do equilíbrio oryamentário em 1995 Rueff, já nos anos 1920, criticava o dole 58 británico como a principal causa
(Balanced Budget and Deficit Reduction Act), logo depois de ter criado um do desemprego do lado de lá do canal da Mancha. O que é novidade é
déficit considerável. Conseguindo que se esquecesse que a diminuiyáo dos a concep~áo disciplinar-"de encargo dos desernpregados. De fato, náo se
descontos obrigatórios de uns acarretava necessad3mente urna contrapartida trata de suprimir pura e simplesrnente toda assistencia aos desempregados,
para os outros, os governos neoliberais instrumentalizaram os "huracos" mas de fazer corn que essa ajuda leve. a urna maior dodlidade por parte dos
criados nos oryamentos para demonstrar o custo "exorbitante" e "intolerável" trabalhadores privados de ernprego. Trata-se de fazer do mercado de emprego
da proteyáo social e dos servi~os públicos. Por um encadeamento mais ou um mercado muito mais conforme com o modelo de pura concorréncia,
menos intencional, o racionamento que se impós aos programas sociais e náo simplesmente por preocupa~áo dogmática, mas para disciplinar melhor
aos servi~os públicos, degradando o atendimento, gerou frequentemente o a máo de obra, ordenando-a pelos imperativos de recupera~áo da rentabi-
descontentamento dos usuários e a adesáo ao menos parcial destes as críticas lidade. Trata-se de recuperar, sob urna nova forma, urna política que visa a
de ineficácia que se dirigiam contra aqueles 57 • penalizar o trabalhador sem emprego para que, de alguma maneira, ele seja
Essa dupla restri~áo monetária e or~amentária foi utilizada como urna levado a encontrar o mais rápido possível urn novo trabalho porque náo
disciplina social e política "macroeconómica'' que supostamente dissuadia- pode arranjar-se muito ternpo com o auxílio que recebe. Lembramos que,
pela inflexibilidade das regras estabelecidas- qualquer política que procurasse em outras época_<;, a reforma da assistencia social na Inglaterra perseguiu
priorizar o emprego, quisesse atender as reivindica~óes salaríais o u visasse a objetivos semelhantes. A Leidos Pobres de 1834, promulgada por instiga-
retomada da economía por intermédio do gasto público. É como se, por essas ~áó,~e Nassau Senjor e Edwin Chadwick, seguindo o espírito da economía
regras, o Estado se impusesse interdi~óes definitivas com respeito ao uso de clássÍca e do prilldPio de udiidade, traduziu-se na·imposi~áo de um regime
certas alavancas de a~áo sobre o nível de atividade, mas ao mesmo tempo, de trabalho quase penitenciário aos residentes das workhouses, algo verdadei-
constrangendo os agentes a interiorizá-las, desse a si próprio os meios de ramente repugnante para os que zelavam por sua liberdade e sua dignidade.
agir permanentemente sobre eles através de urna "corrente invisível" (para Esse é o espirito das políticas de "we/fore to work" ("passar da ajudasocial
empregarmos a expressáo de Bentham) que os obrigava a comportar-se para o trabalho"), que tambérn sáo construídas sobre o postulado da escolha
como indivíduos em competi~áo uns com os outros. racional. No terreno da política de emprego, a disciplina neo liberal consistiu
Se era difícil convencer as popula~óes de que deviam aceitar urna co- em "responsabilizar" os desempregados utilizando a armada puni~J.o contra
bertura social menor sobre doen~as e velhice, na medida em que se trata de aqueles que náo aceitavam dobrar-se as regras do mercado. o desemprego
"riscos universais", era rnais fácil culpar os desempregados e pór em fun- traduzia urna preferencia do agente econ6mico pelo ócio quando este é
cionamento um princípio de divisáo entre os trabalhadores bons e sérios, subvencionado pela coletividade, portanto, o ócio seria "voluntário". Querer
que eram bem-sucedidos, e todos aqueles que fracassavarn por sua própria reduzi-lo por meio de políticas de refla~áo é inútil, e até nefasto, segundo a
culpa, que náo conseguiam "dar a volta por cima'' e, alérn do mais, viviam dourrina da taxa de desernprego natural. A indeniza~áo dos desempregados
nas costas da coletividade. O tharcherismo explorou largamente" o script equivale a criar "armadilhas de desemprego". A primeira tarefa prática foi
da culpa individual, desenvolvendo a ideia de que a sociedade náo deveria atacar tudo que pudesse contribuir para que essa suposta rigidez fosse a
nunca mais ser considerada responsável pela sorte dos indivíduos. causa do desemprego. A segunda visava a construir um sistema de "volta ao
Um dos principais argumentos das políticas neoliberais consistiu em emprego" muito mais restritivo para os assalariados sem emprego.
denunciar a excessiva rigidez do mercado de trabalho. A ideia-diretriz, nesse Os sindicatos e a legisla~áo trabalhista foram os primeiros alvos dos go-
caso, é a da contradi~áo que existiría entre a prote~áo da qua! desfrutaría vernos que adotaram o neo liberalismo. A dessindicaliza~áo na maioria dos

58
57 Analisaremos adiante a argumenta¡_;:áo da Escola do Public Choice. Dole é o nome que se dá ao seguro pago aos desempregados na Grá-Bretanha.
222 "' A nova razáo do mundo A grande virada ,. 223

países capitalistas desenvolvidos reve causas objetivas, sem dúvida, como a Essas medidas de "responsabilizac;:áo" dos "buscadores de emprego" náo
desindustrializa~io e a deslocaliza~io de fábricas em regióes e países com sáo exclusividade dos governos conservadores. Elas encontraram alguns de
baixos salários, sem tradi~io de lutas sociais ou submetidos a um regime seus melhores defensores na esquerda europeia, como tende a comprovar
despótico. Mas foi resultado também de urna vontade política de enfraque- a "corajosa" Agenda 2010 do chanceler alernáo Gerhard Schroder, que
cimento da for~a sindical que, nos Estados Unidos e na Gri-Bretanha em condiciona rigorosamente a ajuda que o Estado concede aos que procuram
especial, traduziu-se por urna série de medidas e dispositivos legislativos emprego a docilidade destes em aceitar o emprego 'que lhes é proposto,
que limitaram o poder de interven~io e mobiliza~io dos sindicatos 59 • Con- assim como ao nível de renda e aos bens da família:
sequentemente, a legisla~io social mudou de forma muito mais favorável Todo beneficiário do dinheiro dos contribuintes deve estar disposto a limitar
aos empregadores: revisio dos salários para baixo, supressio da indexa~áo tanto quanto possível o encargo que ele representa para a coletividade, o
da remunera~áo pelo custo de vida, maior precariza~áo dos empregos 60 • A que significa que todas as rendas e os bens próprios devem ser os primeiros
a ser utilizados para prover suas necessidades dementares. 62
orienta~áo geral dessas políticas reside no desmantelamento dos sistemas que
protegiam os assalariados contra as varia~óes cíclicas da atividade económica Como vemos, essa política disciplinar póe radicalmente em questáo
e sua substitui~áo por novas normas de flexibilidade, o que permite que os os prindpios de solidariedade as eventuais vídmas dos riscos económicos.
empregadores ajustem de forma ótima suas necessidades de máo de obra
ao nível de atividade, ao mesmo tempo que reduz ao máximo o custo da
for~a de trabalho. Disciplina (2): a obriga~áo de escolher
Essas políticas visam também a "ativar" o mercado de trabalho modi- · ··:¡;.JáO há um úpico do~ínio em que a concOrréncia náo seja enaltecida
ficando o comportamento dos desempregados. O "buscador de emprego" como meio de aurhentar a satisfac;:áó do cliente, gr<ic;:ás ao estímulo que dá aos
deve tornar-se ator de sua empregabilidade, um ser selfentreprising, que produtores. A "liberdade de escolha'' é urn terna fundamental das ~ovas normas
se encarrega de si mesmo. Os direitos a prote~áo social sáo cada vez mais de conduta dos sujeitos. Parece que é impossível conceber um sujeito que náo
subordinados aos dispositivos de estímulo e puni~áo que obedecem a urna seja ativo, calculista, a espreita das melhores oportunidades. Esquecendo todos
interpreta~áo económica do comportamento dos indivíduosG 1 . os limites de seus benefídos, mostrados pela teoria económica há pelo menos
um século (diferenciac;:áo dos produros, monopólio natural etc.), a nova doxa
reconhece apenas a pressáo que o consumidor é capaz de exercer sobre o for-
59 Lembramos aqui da brutalidad e com que Reagan demitiu todos os controladores
necedor de bens e servic;:os. Em resumo, trata-se de construir novas exigéncias
de voo após a greve de 1981, substituindo-os por trabalhadores náo sindicaliza-
dos. Esse foi apenas um sinal da ofensiva generalizada ~ontra os compromissos que ponham os indivíduos em situa~6es em que sáo obrigados a escolher entre
sociais que vieram como New Deal. Aconteceu o mesmo na Grá-Bretanha, ande ofertas alternativas e incitados a maximizar seus próprios interesses.
Thatcher travou urna batalha frontal contra os sindicatos e domino u sua ayáo com A "liberdade de escolher", que para Friedrnan resume todas as qualidades
restric;:óes drásticas.
que se tem o direito de esperar do capitalismo concorrencial, é urna das
60 Para urna análise da evoluyáo da legislac;:áo social nos Estados Unidos, ver Isabelle
principais missóes do Estado. É tarefa sua náo apenas reforyar a concorréncia
Richet, Les dégdts du libéralisme. États-Unis: une société de marché (Paris, Textuel, 2002).
nos mercados existentes, mas também criar concorréncia onde ela ainda náo
61 Sobre esse ponto, ver Mark Considine, Enterprising States: 1he Publíc Management
ofWe/fare-to-Work (Cambridge, Cambridge University Press, 2001). Foi assim que existe. Isso porque o capitalismo é o único sistema capaz de proteger a liber-
foram endurecidas pouco a panco, e em toda a parte, as condiyóes de concessio de dade individual em todos os domínios, em panicular no político. Trata-se,
auxílio. Na Franc;:a, por exemplo, foi implantado em 2005 um sistema de penalidade
que reduz 20% o seguro-desemprego na primeira recusa a urna proposta de empre-
go, 50% na segunda e 100% na terceira. Em 2008, essa política punitiva'--- que já
62
permitira o aumento do número de exclusóes de inscritos na Agenda Nacional para Gerhard Schrüder, Ma vie et la po!itique (trad. Genevieve Bégou et al., Paris, Odile
o Emprego (Anpe) - foi reforc;:ada. Jacob, 2006), p. 295.
224 " A nova razáo do mundo A grande virada " 225

portanto, de introduzir dispositivos de mercado e estímulos mercantis, ou Na realidade, o sistema de "cheques-educac;:áo" tem dais objetivos associa-
quase mercantis, para conseguir que os indivíduos se tornero ativos, em- dos: pretende transformar as famílias em "consumidoras de escala'' e visa a
preendedores, "protagonistas de suas escolhas", "arrojados". introduzir a concorréncia entre os esrabelecimentos escolates, o que elevará o
Sem dúvida, deveríamos lembrar aqui que certo ethos da escolha su- nível dos mais medíócreS. -ESse sistema combina wn financiamento público,
postamente livre encontra-se no centro das mensagens publicitárias e das considerado legítimo para a "educac;:áo primária'' por seus efeitos positivos
estratégias de marketing, e essa disposic;:áo adquirida aos poucos foi facilitada em toda a sociedade, e urna administrac;:áo de tipo empresarial do estabe-
pelos desenvolvimentos tecnológicos que ampliaram a gama de produtos e lecimento escolar, posta em situac;:áo de competiyáo com os outros. Essa
canais de difusáo da mass media. O consumidor deve tornar-se previdente. orientac;:áo a favor de um "mercado escolar" domino u as políticas de reforma
Como vimos anteriormente, ele deve m unir-se individualmente de todas as escolar no mundo a partir dos anos 1990, em graus diferentes conforme o
garantias (cobertura de seguros privados, casa própria, conservac;:áo de sua país. Isso náo deixou de ter consequencias para a fragmentac;:áo dos sistemas
empregabilidade). Deve escolher racionalmente, em todos os domínios, os educacionais e a diferenciac;:áo dos locais e dos modos de escolaridade, de
melhores produtos e, cada vez mais, os melhores prestadores de servic;:os (o acordo com as classes sociais.
modo de entrega de seu correio, o fornecedor de sua eletricidade etc.). E,
como cada empresa amplia a gama dos produtos que fornece, o sujeito deve
"escolher" de forma cada vez mais sutil a oferta comercial mais vantajosa Disciplina (3): a gestáo neoliberal da empresa
(por exemplo, a hora e a data da viagem de aviáo ou trem, o produto de A disciplina neoliberal náo se llmita a essa maneira "negativa'' de orientar
seguro ou poupanc;:a etc.). Essa "privatizac;:áo" da vida social náo se limita ascqndutas por regi-as imutáveis no plano "macroecon6mico" que os agentes
ao consumo privado e ao lazer de massa. O espac;:o público é construído racio~ais devem in:'~orpora~ 'em seu próprio cálculo. -Também náo se reduz a
cada vez mais pelo modelo do "global shopping center", segundo a expressáo instaurac;:áo de situac;:óes de concorrencia que obrigam o indivíduÜ a escólher
empregada por Drucker para designar o universo em que vi vemos hoje. multo além da esfera do consumo de bens e servic;:os comerciais. A extensáo
U m dos casos exemplares da construc;:áo de situac;:áo de mercado pela qual e a intensificac;:áo das lógicas de mercado tiveram efeitos multo patentes na
os neoliberais se mobilizaram multo no terreno político é o da educac;:áo. organizas:áo do trabalho e nas formas de emprego da fors:a de trabalho. O
Também nesse domínio, Friedman foi pioneiro. Diante da degradac;:áo do que a lógica do poder financeiro fez foi apenas acentuar o disciplinamenro
setor público educacional nos Estados Unidos, ele prop6s nos anos 1950 dos assalariados sub metidos a urna exigéncia de resultados cada vez maiof 4 .
a implantayáo de um sistema de concord:ncia entre os estabelecimentos A busca obsessiva de mais-valor na bolsa implicou náo apenas a garantia
escolares baseado no "cheque-educac;:áo" 63 . O sistema consiste em deixar de aos proprietários do capital de um crescimento contínuo de seus rendi-
financiar diretamente as escalas e dar a cada familia um "cheque" represen- mentos, a custa dos assalariados- o que ocasionou urna malar divergéncia
tando o custo médio da escolaridade; a família é livre para urilizá-lo na escala entre a evoluc;:áo dos salários e a evoluc;:áo dos ganhos de produtividade e,
de sua escolha e ainda acrescentar a quantia que quiser, de acordo com suas como dissemos, urna acentuac;:áo ainda mais marcada das desigualdades
prioridades em matéria de escolarizac;:áo. Mais urna vez, o raciocínio baseia- na distribuic;:áo de renda65 -, como também e, sobretudo, traduziu-se pela
-se no comportamento supostamente racional do consumidor, que deve
poder arbitrar e.iltre várias possibilidades e escolher a melhor oportunidade.
64
Catherine Sauviat fala com muita justü;:a do capital financeiro como urna "máquina de
disciplinar os assalariados". Ver "Os fundos de pensáo e os fundos mútuos: principais
63 Milton Friedman, "The Role ofGovernment in Education" (1955), em Capitalism atores da finaw;:a mundializada e do novo poder acionário"; e-\11 Franyois Chesnais
and Freedom (Chicago, Universiry of Chicago Press, 1962). A ideia foi retomada e (org.), A jinanra mundializada, cit., p.118.
65
desenvolvida por John E. Chubb e Terry M. Moe, Politics, Markets and America's Michel Aglietta e Laurent Berrebi, Désordres dans le capitalisme mondial (Paris, O dile
Schools (Washington, 1he Brookings Institution, 1990). Jacob, 2007), p. 34.
226 ., A nova razáo do mundo
A grande virada "' 227

iinposií;:áo de normas de rentabilidade mais elevadas em todas as economias, assalariados, náo apenas execurivos, mas também operários e funcionários
em todos os setores e em todos os escalóes da empresa. Assim, cada vez mais de escritório. Isso náo resulto u numa diminuü;:áo dos controles hierárquicos,
assalariados foram sub metidos a sistemas de estímulo e puniyáo que visavam mas na modificayáo progressiva desses controles no contextO de urna "nova
a atingir o u a superar os objetivos de qiayáo de valor acionário, objetivos gestáo" que póde apoiar.:se em- modos de organizayáo, novas tecnologias de
que eram eles próprios definidos por métodos de ajUste a partir das normas contabilidade, registro, comunicayáo etc. 66 .
internacionais de rentabilidade. Assim, toda urna disciph'na do valor aciondrio Essa "nova gestáo" tomo u formas muito diversas, como o desenvolvi-
tomou forma em técnicas contábeis e avaliativas de gestáo da máo de obra mento da contratualizayáo das relayóes sociais, a descentralizayáo das nego-
cujo princípio consiste em fazer de cada assalariado urna espécie de "centro ciayóes entre assalariados e patronato no plano da empresa, a concorréncia
de lucro" individual. É que o princípio da gestáo neoliberal- que cerros das unidades da empresa entre si o u coro unidades externas, a normalizayáo
autores chamam de "autonomia controlada'', "coeryáo flexível", "autocontro- pela imposiyáo generalizada de padróes de qualidade e o crescimento da
le"- visa a "interiorizar" as coeryóes da rentabilidade financeira na própria avaliayáo individualizada dos resuhados 67 . As fronteiras entre o dentro
empresa e, ao mesmo tempo, fazer os assalariados interiorizarem as novas e o fora da empresa tornaram-se mais vagas com o desenvolvimento da
normas de eficiéncia produtiva e desempenho individual. subcontratayáo, da autonomizayáo das entidades dentro da empresa, do
Fazer com que os indivíduos ajam no sentido desejado supóe que se recurso ao emprego temporário, das estruturas de projetos, do trabalho
criem as condiyóes particulares que os obrigam a trabalhar e se comportar dividido ero "missóes" e do apelo a consultores externos.
como agentes racionais. A alavanca do desemprego e da precariedade foi, Essas novas formas de organizayáo do rrabalho e da gestáo permitem
sem dúvida, um meio poderoso de disciplina, em particular em matéria de defirlk-.. um novo mo4elo de empresa que Thomas Coutrot chama de "em-
taxas de sindicalizayáo e reivindicayáo salarial. Mas essa alavanca "negativa'', presa néoliberal"GR'. AimaiOr aul:onomia das equipes ou-indivíduos, a poliva-
cujo motor é o medo, sem dúvida estava longe de ser suficiente para a reor- léncia, a mobilidade entre "grupos de projeto" e unidades descentralizadas
ganizayáo das empresas. Outros instrumentos de gestáo foram necessários traduzem-se por um enfraquecimento e urna instabilidade dos coletivos de
para reforyar a pressáo da hierarquia sobre os assalariados e aumentar seu trabalho. fu novas formas de disciplina da empresa neoliberal sao exerci-
comprometimento. Assim, a gestáo das empresas privadas desenvolveu das a urna maior distáncia, de maneira indireta, antes ou depois da ayáo
práticas de gestáo de máo de obra cujo princípio é a individualizayáo de produtiva. O controle é feito por registro de resultados, por rastreabilidade
objetivos e recompensas coro base em avalias:óes quantitativas repetidas. dos diferentes momentos da produyáo, por wna vigillncia mais difusa dos
Essa orientayáo, com frequéncia identificada coro o questiollamento do comportamentos, das maneiras de ser, dos modos de relacionamento com os
modelo burocrático tal como seu tipo ideal foi es boyado por Max Weber, outros, em especial em todos os locais de produyáo de serviyos que tenham
também consistiu em inverter o sentido da obediéncia. 'Em vez de obede- cantata coro a clientela e em todas as organizayóes em que a operay;io do
cer aos procedimentos formais e as ordens hierárquicas vindas de cima, os trabalho pressupóe cooperayáo e troca de informayóes. Essa gestáo mais
assalariados foram levados a curvar-se as exigéncias de prazo e qualidade "personalizada'' e mais difusa joga com a concorréncia entre assalariados e
impostas pelo "cliente", alyado a fonte exclusiva de restriyóes inelutáveis. Em
todo caso, a individualizayáo do desempenho e das gratificayóes permitiu
66
que a concorréncia entre os assalariados fosse dada como um tipo normal Ver Michel Gollac e Serge Volkoff, "Citius, Altius, Fortius. Lintensification du travail",
de relayáo dentro da empresa. É como se o mundo do trabalho tivesse Actes de la Recherche en Sciences Sociales, n. 114, set. 1996.
67
"interiorizado" a lógica da competiyáo exacerbada que existe ou deveria Sobre esse ponto, ver Michel Lallement, "Transformation des relations du travail et
nouvelles formes d' action politique", em Pepper D. Culpepper, Pet¡;;r A. Hall e Bruno
existir entre as empresas, assim como a lógica concorrencial para captar e
Palier (orgs.), La France en mutation, 1980-2005 (Paris, Presses de Sciences Po, 2006).
manter o capital dos acionistas que leva a "criayáo de valor" em benefício 68
Thomas Coutrot, L'entreprise néo-libérale, nouvelle utopie capitaliste: enquéte sur les
deles. Isso pós sob pressáo mais direta dos mercados um número maior de modes d'organisation du travail (Paris, La Découverte, 1998).
228 .. A nova razáo do mundo
A grande virada • 229
'entre segmentos da empresa para constrange-los, mediante urna comparayáo Esse autocontrole também é econ6mico, porque permite a reduyáo
de métodos e resultados (benchmarking) 69 , a alinhar-se aos desempenhos da pirámide hierárquica, e Inais eficaz, na medida em que o trabalho náo
máximos e as "melhores práticas" num processo sem fim. A concorrencia depende mais de u~a- necessidade externa, mas de urna 'coery:io interna:
torna-se, assirn, um modo de interiori:z;ayáo das exigencias de rentabilidade
Ele substitui o controle feito de fora pelo controle feito de dentro, muito
do capital que permite o afrouxarnento das linhas -hierárquicas e dos con- mais estrito, exigente e eficaz. Leva o executivo a agir náo porque alguém
troles permanentes realizados pelo pessoal interrnediário, introduzindo urna lhe disse o que era preciso fazer, ou- o obrigou a faze-lo, mas porque as
pressáo disciplinar ilimitada. necessidades objetivas de sua tarefa assim o exigem. Esse homem agirá náo
A terceirizayáo de cenas atividades e a descentralizayáo em unidades mais porque otltro quis desse modo, mas porque ele próprio decidiu que deveria
faze-lo- em outras palavras, ele agirá como um homem livr~. 71
autO nomas aurnentam a necessidade de avaliay:io para coordenar as atividades.
A avaliay:io torna-se a chave da nova organizay:io, o que acaba por cristalizar Essa "filosofia da liberdade", que tem aplicayáo universal, "assegura o
tensóes de todos os tipos, ainda que seja a que diz respeito a contradiyao desempenho, transformando necessidades objetivas em objetivos pessoais.
a
entre a injunyáo a criatividade e tomada de riscos e o julgamento social Essa é a própria definil'áo da liberdade- a liberdade no quadro da lei''".
que surja como lembrete das relayóes efetivas de poder dentro da empresa. Assim, o gestor renta captar as energias individuais, náo de acordo com
Esse novo modo de organizayao da empresa teve consequencias_ im- urna ló_gica "artista"_·ou "hedonista", mas segundo um regime de autodis-
portantes para o trabalho e o emprego. Traduziu-se em intensificayao do ciplina que manipula as instáncias psíquicas de desejo e culpa. Trata-se de
trabalho, diminuiy:io dos prazos e individualizay:io dos salários. Esse último mobilizar a aspirayáo a "realizayao pessoal" a serviyo da empresa, transfe-
método, vinculando remunerayáo a desempenho e competencia, ampliou .ri-il,~o exclusivame;nte para o indivíduo, contudo, a responsabilidade pelo
o poder da hierarquia e reduziu todas as formas coletivas de solidariedade. cunlprimento 'doS obJetiVós. O que, evidentemente, tem um alto custo
Mas é coextensivo a urna nova prática de governo dos assalariados baseada psíquico para os indivíduos 73 .
no "autocontrole", que é pretensarnente muito mais eficaz do que a coeryáo Esse autogoverno nao é obtido espontaneamente por simples efeito de
externa. Essa "filosofia da gestáo" foi formulada por Peter Drucker. Ele ex- um discurso sedutor de gesrao que manipula a aspirayao de cada indivíduo
plica que, na nova economia do saber, náo se trata mais de gerir estruturas, a autonomia. Esse controle da subjetividade sornente é operado de maneira
mas, sim, de "guiar" pessoas que tém saberes para que produzam o máximo eficaz dentro de um contexto de mercado de trabalho flexível, em que a
possível. Gestáo por metas, avaliayáo de desempenhos e autocontrole dos ameaya de desemprego está no horizonte de todo assalariado. Ele também
resultados sao os métodos empregados por essa gest:io dos indivíduos: é resultado de técnicas de gestáo que tentaram objetivar as exigencias de
A principal vantagem da gestáo por metas é que ela permite aos executivos mercado e de rentabilidade financeira na forma de indicadores nwnéricos
medir seu próprio desempenho. O autocontrole refon;:a a m'otivas:áo, o desejo de metas e resultados e, mediante a individualizayáo dos desempenhos
de fazer melhor, de náo se encostar. [... ] Embora náo seja indispensável medidos e discutidos em entrevistas pessoais, fazer com que os assalariados
para dar unidade de rumo e esfors:o aequipe dirigente, a gestáo por metas interiorizem a necessidade vital para eles de melhorar continuamente sua
é indispensável para permitir o autocontrole?0
"empregabilidade". O cúmulo do autocontrole, que também m ostra o me-
canismo perverso que transforma cada um em "instrumento de si mesmo",
69
O benchmarking é muito precisamente um método de gestáo que consiste em sele- ocorre quando o assalariado é convidado a definir nao so mente as metas que
cionar referéncias padráo de desempenho para comparar com os resultados de urna ele deve atingir, mas também os critérios pelos quais ele quer ser julgado.
emidade produtiva (filial, departamento, empresa), determinar as "boas práticas" e
estabelecer metas mais elevadas de desempenho.
71
70 Ibidem, p. 127.
Peter Drucker, Devenez managn! Les meilleurs textes de P Drucker (Paris, Village Mon-
72
dial, 2006), p. 122 [ed. bras.: O melhorde Peter Drucker: o homem, a administrafdO, Idem.
a sociedade, trad. Maria Lúcia Leite Rosa, Sáo Paulo, Nobel, 2002]. 73
Ver Nicole Auben e Vincent Gaulejac, Le coitt de l'excellence (Paris, Seuil, 1991).
A grande virada o 231
230 ., A nova razáo do mundo

que cada indivíduo se considere detentar de uro "capital humano" que ele
Racionalidade (1): a prática dos especialistas
deve fazer frutificar, daí a· instaura'táo de dispositivos que sáo destinados
e dos administradores
a "ativar" os indiví~~os, abrigando-os a cuidar de si mesmos, educar-se,
Náo se trata roais, como no "welfarismo", de redistribuir bens de acordo encontrar uro emprego.
com certo regime de direitos universais a vida, isto é, a saúde, a educayáo, É importante, sob esse aspecto, náo confundir a ideologia triunfante
aintegra'táo social e aparticipa'táo política, mas de apelar acapacidade de da nova direita e a racionalidade governamental que a sustenta. A grande
cálculo dos sujeitos para fazer escolhas e alcanyar resultados estabelecidos ofensiva ideológica contra a intervem;:áo do Estado náo precedeu apenas as
como condiyóes de acesso a cerro bem-estar. O que pressupóe que os su- reorientayóes práticas, ela as acompanhou. E o mais importante na virada
jeitos, para "ser responsáveis", disponham dos elementos desse cálculo.' dos neo liberal náo foi tanto a "retirada do Estado", mas a modifica'táo de suas
indicadores comparativos, da traduyáo contábil de suas a'tóes, ou amda, modalidades de interven'táo em nome da "racionalizayáo" e da "moder-
mais radicalmente, da monetarizayáo de suas "esco lhas" : deve-se "respon- niza'táo" das empresas e da administra'táo pública. Desse ponto de vista,
sabilizar" os doentes, os estudantes e suas famílias, os universitários, os que talvez náo tenham sido tanto os intelectuais midiáticos e os jornalistas
a
estáo procura de emprego, fazendo-os arcar coro urna parte crescente do convertidos que tiveram o papel mais importante, mas os especialistas e os
"custo" que eles representam, exatame1_1te do mesmo modo como se deve administradores pqblicos dóceis, que, nos diferentes campos em que deve-
"responsabilizar" os assalariados individualizando as recompensas e·as pu- riam intervir, instauraram os novas dispositivos e modos de gestáo próprios
niyóes ligadas a seus resultados. . do neoliberalismo, apresentandO-os como técnicas políticas novas, guiadas
Esse trabalho político e ético de responsabilizayáo está associado a un.icamente pela busca de resultados benéficos para todos. Esses "intelectuais
numerosas formas de "privatizayáo" da conduta, já que a vida se apresenta oriánicos" do nebliberalÚffio, afirmando-se ora de direita, ora de esquerda,
somente como resultado de escolhas individuais. O obeso, o delinquente o u sucessivamente uro e outro75 , tiveram uro papel-chave na ~aturaliZayáo
ou 0 mau aluno sáo responsáveis por sua sorte. A doenya, o desemprego, dessas práticas, ero sua neutralizayáo ideológica e, por fim, ero sua implan-
a pobreza, o fracasso escolar e a exclusáo sáo vistos como consequéncia de tayáo prática. Células de pesquisa, inúmeros colóquios, amplas operayóes
cálculos errados. A problemática da saúde, da educas;áo, do emprego e da de formas;áo de quadros da funs;áo pública, produs:áo e difusáo macis:a de
velhice confluern numa visáo contábil do capital que cada indivíduo acumu- uro léxico homogéneo, verdadeira lingua franca das elites modernizadoras,
laria e geraria ao longo da vida. As dificuldades da existéncia, a desgra'ta, a acabaram por impor o discurso ortodoxo da gestáo. Mas náo nos engane-
doenya e a miséria sáo fracassos dessa gestáo, por falta de previsáo, prudéncia, mos: as políticas neoliberais náo foram implantadas ero nome da "religiáo
seguro contra riscos74. Daí o trabalho "pedagógico" que se deve fazer para do mercado", mas ero no me de imperativos técnicos de gestáo, ero no roe da
eficácia, ou até mesmo da "democratizayáo" dos sistemas de a'táo pública.
a
As elites convertidas racionalizaráo das políticas públicas deseropenharam
7<i Lembramos que a transforma<;áo dos indivíduos em "risc~filos" era a base da "r~u~­
o papel principal, coro a ajuda, evidentemente, do conjunto dos aparelhos
da<¡áo social" desejada pelo Movimento das Empresas da Franya (Medef) · ~ oposwao
entre duas espécies de seres humanos- os "riscófilos", dominantes corajo_sos: e os
"riscófobos", dominados temerosos- foi teorizada em 2000 por Fran<¡ots Ewald
e Denis Kessler, "Les noces du risque et de la politique", Le Débat, n. 109, 2000.
futuro radiante que o capitalismo de amanhá prepara para nós. Isso é discurso de
Robert Castellhes deu urna resposta mordaz no jornal Le Monde (Robert Castel,
dominantes para dominantes".
"'Risquophiles', 'risquophobes': l'individuselonle Medef', Le Monde,. 6 jun. 20?1):
75
"Antigamente, os 'maus pobres' só podiam culpar a si mesmos por seu d~stmo, Sobre esse ponto, convém considerar a trajetória pessoal dosato!es dessa implanta<¡áo
porque eram indolentes, imoderados, lascivos, sujos e maus. Versáo mo~erm~adar e prática dos esquema.s neoliberais. Podemos nos perguntar, por exemplo, se a "segunda
um tanto eufemizada da mesma boa consciencia moral, boje merecem a mvahdas:ao esquerda'' na Franya náo foi, para alguns, uma "passarela'' que facilitou a passagem
social os riscófobos, os temerosos e todos aqueJes que permanecem táo estupidamente de um engajamento político ou sindical para urna partidpa<;:iio ativa na "reforma''
aferrados as conquistas do passado que sáo incapazes de participar do advento desse dos dispositivos do Estado social e educador.
232 ° A nova razáo do mundo A grande virada @ 233

de fabricayáo do consentimento que retransmitiram seus argumentos a Racionalidade (2): a "terceira via" da esquerda neoliberal
favor da "modernidade".
O longo sucesso do neoliberalismo foi assegurado ná0-apenas pela adesáo
Tanto a direita como a esquerda, algumas figuras pioneiras sobressaíram-
das grandes formayóes po-líticas de direita a um ilovo projeto político de
-se precocemente na Franya, como Raymond Barre em 1978 o u, alguns anos
concorrencia mundial, mas também pela porosidade da "esquerda moderna''
depois, Jacques Delors: ambos seguiam o mesmo scrip-t do "realismo", do
aos grandes temas neoliberais, a ponto de termos a· impressáo em cerros
"rigor" e da "modernidade". Na verdade, em poucos anos, todas as elites
casos - pensamos sobretudo no "blairismo" 77 - de uma submissáo total a
políticas e econ6micas passaram de um modo de gestáo "keynesiano" para
racionalidade dominante. Encontraríamos a mesma tendencia nos Estados
um modo "neoliberal", carregando com elas grande parte dos quadros ad-
Unidos, ondeos "!iberals'' comeyaram a falar, pensar e agir ~omo os "conser-
ministrativos e partidários. Como Bruno Jobert disse com razáo,
vatives"78. O mais mareante nessa institucionalizayáo do neoliberalismo foi
os vetares dessas mudam;:as sáo menos as novas elites do que as elites
a aceitayáo por parte da esquerda moderna da visáo neo liberal do mercado
amigas que procuraram, muitas vezes coro sucesso, eternizar sua influén-
de trabalho flexível e da política de recolocas:iio dos desempregados. Isso foi
cia, ainda que tivessem de mudar suas orientayóes. Os promotores do
neoliberalismo sáo, na maioria vezes, gente arrependida, tocada pela graya acompanhado, no plano doutrinal, de um abandono de qualquer referencia
desse novo verbo? 6 a Keynes e, a fortiori, de urna renúncia a qualquer elaborayáo de um novo
keynesianismo adaptado a mudanya de escala provocada pela construyáo
O que é verdade para os amigos países do Leste, onde os apparatchiks
da Europa e pela globalizas:iio.
stalinistas tornaram-se os novos mestres do capitalismo restaurado, é ver-
- _-,. N~da ilustra melhor a virada neo liberal da esquerda do que a mudanya
dade também, sem dúvida de forma menos evidente, para o Oeste, onde os
de'·significado del. política social, _rompendo co111: toda a tradic;:áo social-
especialistas, as vezes de esquerda, e os administradores, formados muitas
-democrata que tinha como linha diretriz um modo de partilha de bens
vezes no culto do serviyo público, converteram-se ao léxico do management
sociais indispensáveis a plena cidadania. A luta contra as desigualdades, que
e da performance.
era central no antigo projeto social-democrata, foi substituída pela "luta
A virada neo liberal das práticas dos altos funcionários é um desmentido
contra a pobreza'', segundo urna ideologia de "equidade" e "responsabilidade
da tese da Escala do Public Choice, que afirma que estes últimos nunca
individual" teorizada por alguns intelectuais do blairismo, como Anthony
deixaram de expandir a intervenyáo e o volume dos recursos da burocracia.
Giddens. A partir daí, a solidariedade é concebida como um auxílio dirigi-
Na realidad e, o modo neoliberal de ayáo pública constitui muito mais urna
do aos "excluídos" do sistema, visando aos "bolsóes" de pobreza, segundo
virada na racionalizac;:áo burocrática do que um desengajamento do Estado.
uma visáo cristá e puritana. Esse auxílio dirigido a "populayóes específicas"
O que importa aos altos funcionários náo é necessariamente o aumento de
("pessoas com deficiencia'', "aposentadorias mínimas", "idosos", "máes sol-
impostas e o aumento do número de seus subordinados, como pensavam
teiras" etc.), para náo criar dependencia, deve ser acompanhado de esforc;:o
os economistas da "escolha racional". O que lhes interessa é o aumento de
pessoal e trabalho efetivo. Em outras palavras, a nova esquerda tomo u para
seu poder e de sua legitimidade, como m ostro u, aliás, Weber, o que pressu-
póe tornar-se adepto da "mudanya'', da "reforma'' ou até mesmo do "fim"
da burocracia de Estado, ao menos quando essa reorientayáo náo póe em 77 Houve muitos outros, entre os quais a política de Gerhard Schrüder e a grande alian~
questáo o domínio que eles exercem. entre direita e esquerda naAlemanha e, na Frans;a, o ~xito da política de abertura de
Nicolas Sarkozy a algumas "personalidades" do Partido Socialista, que mostraram a
que ponto o novo rumo ideol6gico decompós o arcabous;o intelectual e político da
social~democrada. ,
78
Para_u~a análise do "fasdnio" da esquerda norte~americana pela maneira de pensar
76 Bruno Jobert (org.), Le tournant néo-libéral en Europe: idées et recettes dans les pratiques da dtrelta, ver James K. Galbraith, The Predator State: How Conservatives Abandonned
gouvernementales (Paris, LHarmattan, 1994), p. 15. the Free Market and Why Liberals Should Too (Nova York, The ~ree Press, 2008).
234 " A nova razáo do mundo A grande virada " 23 5

si a matriz ideológica de seus oponentes tradicionais, abandonando o ideal Esse "quadro", objeto da "nova política da oferta da esquerda", opóe-se
da construyáo de direitos sociais para todos. aos "últimos vinte anos de.laissez-faire [em frano?s no texto] neoliber:al",
No entanto, náo conseguiríamos compreender o neoliberalismo de que sáo qualificado~ _~e "ultrapassados". Vemos aqui coino a interpretayáo
esquerda, essa nova forma política que sucedeu a~ocial-_democracia, se nos equivocada do neolibe.ralismo permite a construyáo de urna falsa oposiyáo
contentássemos em vé-la como urna simples adesáo a ideologia neoliberal. e compreendemos também que, com essa premissa, o manifesto desenvolve
Aliás, essa "esquerda moderna" se defende da acusayáo tomando distáncia na prática o conjunto da argumentayáo autenticamente neoliberal: custo
do que acredita ser o neoliberalismo, isto é, para ela, um puro e simples excessivamente elevado do trabalho, gastos públicos muito grandes, primazia
retorno ao !aissez-faire. Mas, embota ataque essa "ideologia selvagem" perigosa dos direitos sobre as obrigayóes e confianya excessiva na gestáo da
para distinguir-se da direita, ela aceita, assume e reproduz urna forma de economia pelo governo.
pensamento, urna maneira de apresentar os problemas e, com isso, um sis- Esse manifesto da esquerda moderna traduz particularmente bem o que
tema de respostas que constitui urna racionalidade abrangente, isto é, um chamamos aqui de "racionalidade neoliberal". Comeya questionando as
tipo de discurso normativo no qual toda a realidade é tornada inteligível velhas soluyóes da esquerda arcaica:
e pelo qual sáo prescritas como "evidentes por si mesmo" determinadas O desafio da justi~a.social era confundido ií.s vezes coma palavra de ordem
políticas. Em urna palavra, e talvez de forma paradoxal, nada manjfesta da igualdade de renda. A consequencia era a pouca aten~áo que se clava a
melhor a natureza da racionalidade neoliberal do que a evoluyáo das práti- recompensa pessoal pelo esfor~o e pela responsabilidade; além disso, havia o
cas dos governos que há trinta anos se dizem de esquerda, mas conduzem risco de que "social-democracia'' fosse associada a "conformidade e mediocri-
dade~', em vez d~ encarnar a criatividade, a diversidade e o bom desempenho.
urna política muito semelhante ada direita79 • Todo discurso "responsável",
"moderno" e "realista'', isto é, que participa dessa racionalidade, caracteriza-se É preciso, ao: contrário, reforyar a responsabilidade individual como
pela aceitayáo prévia da economia de mercado, das virtudes da concorréncia, princípio geral das políticas públicas: "Os sociais-democr~tas querem
das vantagens da globalizayáo dos mercados e das exigéncias inelutáveis da transformar a boia salva-vidas dos direitos sociais em um trampolim para
"modernizayáo" financeira e tecnológica. A prática disciplinar do neolibe- a responsabilidade individual", segundo a expressáo tipicamente blairista.
ralismo impós-se como um dado de fato, urna realidade diante da qual náo Também é preciso flexibilizar os mercados de trabalho:
se pode fazer nada, a náo ser adaptar-se. fu empresas devem ter margens de manobra suficientes para agir e apro-
O melhor exemplo dessa identificayáo é, sem dúvida, o "manifesto" veitar as oportunidades que se apresentam: náo devem ser entravadas por
assinado por Tony Blair e Gerhard Schroder em 1999, por ocasiáo das elei- um excesso de regras. Os mercados de trabalho, capital e bens devern ser
yóes europeias, e intitulado A terceira vía e O novo centro ( Ihe Ihird Uíáyl flexíveis: náo se pode aceitar rigidez num setor da economia e abertura e
Das neue Mitte). O objetivo da esquerda moderna, afiÚna-se ali, é oferecer dinamismo em outro. A adaptabilidade e a flexibilidade sáo vantagens cada
vez rnais rentáveis nurna economia baseada no conhecimento.
um quadro sólido para urna economia de mercado competitiva. A livre
competiyáo entre os agentes de produc;:áo e a livre traca sáo essenciais para É preciso ainda diminuir os impostas, em particular os que possam
estimular a produtividade e o crescimento. Por essa razáo, é necessário prejudicar a competitividade das empresas, e reduzir o papel do Estado:
dotar-se de um quadro que permita ií.s foryas do mercado funcionar conve-
O custo do trabalho estava senda sobrecarregado por encargos cada vez
nientemente~ isso é essencial para o crescimento económico e é condic;:áo
mais elevados. A crenya de que o Estado devia atacar todas as falhas ou as
prévia de urna política eficaz em prol do emprego.
!acunas do mercado levou muito frequentemente a urna ampliayáo des-
medida da missáo da administrayáo pública e a urna burocracia cada vez
79 Náo podemos esquecer, no entanto, que os partidos de esquerda foram atravessados maior. O equilíbrio entre as ac;:óes individuais e a ayáo cÜlo¡¡tiva foi rompido.
por Jutas incernas mais ou menos virulentas. É for~oso constatar que os opoSitores Valores importantes para os cidadáos- construyáo autónoma de si mesmo,
dessa orienw;:áo neoliberal ficaram na defensiva, sob a acusa~áo de serem partidários sucesso pessoal, espírito de empreendimento, responsabilidade individual e
da antiga gestáo administrativa, custosa, ineficaz e desmoralizante.
236 • A nova razáo do mundo A grande virada • 237

sentimento de pertencimento a urna comunidade- foram muito frequen- Esse manifesto nos permite compreender melhor a natureza do "realismo"
temente subordinados as garantias sociais universais. da esquerda moderna, cuj6 principal promotor na cena europeia foi Tony
Muito frequentemente, os direitos foram erguidos acima das obrigas:óes,
Blair. A característic~ mais importante do blairismo, desde que conquisto u
mas náo podemos jogar nossas responsabilidades, conosco, com a nossa
o Partido Trabalhista em 1994, é a retomada da herans:a thatcheriana, con-
família, com a nossa vizinhans:a o u ·com o conjunto da_ sociedade, sobre
o Estado e nos colocar inteiramente em suas máos. Se deixamos de lado o siderada náo urna política que se deveria derrubar, mas um fato consumado80 •
prindpio da obrigas:áo mútua, o sentimento de pertencimento coletivo Em A terceira via, livro escrito em conjunto, Anthony Giddens e Tony
enfraquece, as responsabilidades para coma família o u os vizinhos desapare- Blair teorizam essa virada. A missáo do New Labour, afirmam, é apresentar
cem, a delinquencia e o vandalismo aumentam, e o nosso aparato legal náo respostas de "centro-esquerda'' dentro do novo quadro imposto pelo neo-
pode mais se manter. A capacidade dos governos de regular com precisáo a
liberalismo, visto como um ·dado irreversível. A palavra mestra dessa linha
economia nacional, como intuito de favorecer o cresdmento e o emprego,
foi superestimada. A import:lncia das empresas e dos atores econ6micos na a
política é a adaptaráo dos indivíduos nova realidade, náo sua prote<;:áo
crias:áo de riquezas foi subestimada. Na verdade, exageramos as fraquezas do contra as vicissitudes de um capitalismo globalizado e financeirizado. A
mercado e subestimamos suas qualidades. "nova esquerda:' é aquela que aceita o quadro da globalizas:áo liberal e exalta
todas as oportunidades que podem ser tiradas disso para o benefício do
As propostas dessa nova política da oferta que deve substituir a polí-
cresdmento e da competitividade das economias 81 • O comissário europeu
tica ultrapassada da demanda, isto é, o -keynesianismo, repousam sobre o
para o Comércio, Peter Mandelson, apresenta urna formulas:áo muito clara
princípio geral da primazia da empresa privada na economia e sobre a
_do "consenso" quando elogia o "boom de abertura dos mercados" em todo
importancia dos "valores" que ela é capaz de difundir na sociedade. O que
O :tl.l;_Urrdo, o que, a seu ver, impede que se volte atrás em matéria de política
a
leva definis:áo de urna nova maneira de governar, mais moderna: "O
econümica e socilll, cOisa ·que náo ·seria possível nem, aliás, desejável, urna
Estado náo deve remar, mas mantero leme- apenas o estrito necessário de
vez que a prosperidade de todos depende dessa abertura econo'mica82 •
controle, esse é o desafio". O que significa que o combate ao crescimento
A esquerda moderna é também aquela que admite que a principal fonte
da administras:áo pública e dos gastos públicos torna-se prioridade nessa
de riqueza e crescimento, se náo a única, é a empresa privada, e conclui que,
nova política da oferta: "No setor público, a burocracia deve diminuir em
em todas as suas as:óes, o poder público deve promové-la e, no que diz res-
todos os níveis; metas de resultados Concretos devem ser formuladas; a
peito ao fornecimento de servis:os públicos, deve desenvolver parcerias com
qualidade dos serviyos públicos deve ser permanentemente avaliada, e os
desempenhos ruins, erradicados". Mas essa nova maneira de "pilotar" deve
apoiar-se em um "estado de espírito" e valores que náo tém mais nada que 80
Sobre esse ponto, ver a demonstras:áo de Keith Dixon, Un digne héritier: Blair et le
ver com os da velha esquerda: thatchérisme (Paris, Raisons d'Agir, 1999).
81
Para o pleno exito das novas políticas públicas, é necessário promover Tony Blair dá urna excelente definü;:áo numa entrevista: "Eu diria que as atividades
de um governo náo devem ter o objetivo de entravar a competis:áo entre as empresas
urna mentalidade de vencedor e um novo espírito de empreendimento
no mercado global. Isso náo é urna resposta apropriada e náo funcionará, porque
em todos níveis da sociedade. Isso requer: urna máo de obra competep.te e
o mercado nos domina. Se tentarmos proteger as empresas dos efeitos do mercado
bem formada, que queira assumir novas responsabilidades; um sistema de
global, o que acontece é que elas váo sobreviver alguns anos, depois váo desaparecer,
seguridade social que de urna nova chance, encorajando ao mesmo tempo
porque a pressáo da competis:áo global é tamanha que isso acontecerá necessariamen-
o espírito de iniciativa, a criatividade e o desejo de enfrentar novas desa:fios; te. Em compensayáo, o que se pode fazer é equipar essas empresas, assim como os
e um clima favorável aos empreendedores, sua independencia e seu espírito indivíduos que trabalham para elas, para que eles possam enfrentar os rigores desse
de iniciativa. É necessário fazer com que a cria\áO e a sobrevivencia das mercado global. Essa é, a me u ver, a terceira via". Citado em Philippe MarW:re, Essais
pequenas empresas sejam facilitadas; queremos urna sociedade que honre sur Tony Blair et le New Labour: la troisieme voie dans !'impasSe (Paris, Syllepse, 2003),
seus empresários, como faz com os artistas e os jogadores de futebol, e volte p. 97-8.
a valorizar a criatividade ero todos os domínios da vida. 82
Peter Mandelson, "Europe's Openness and the Politics ofGlohalisation", 7he Alcuin
Lecture, Cambridge, 8 fev. 2008.
238 * A nova razáo do mundo A grande virada .. 239

esse importante agente da econornia. Urna das prirneiras batalhas travadas Giddens resume a política da terceira via no slogan: "Náo há direitos sem
por Tony Blair foi a supressáo do Artigo 4 dos estatutos do Labour Parry-, responsabilidades", o que, :Segundo ele, significa que é preciso aumentar as
que se atribuía como objetivo a socializayáo dos rneios de produyáo. De fato, obrigayóes individuais no mercado de trabalho 85 • SegundO ele, o Estado é wn
o New Labour nunca voltou atrás na grande onda de privatizayóes realizada "investidor social" -q~e, m~is do que proteger, ajuda as pessoas a adaptar-se:
por Margaret Thatcher, envolvendo mais de qli~ent~ grandes empresas e Os sociais-democratas devem modificar a concepyao da relayao entre risco e
representando quase 1 milháo de assalariados, do rnesrno modo, aliás, que a seguranya que herdou do Estado de bem-estar e esforyar-se para desenvolver
"esquerda plural" na Franya, entre 1997 e 2002, náo suspendeu o processo urna sociedade de pessoas arrojadas e responsáveis, tanto na esfera do Estado
iniciado em meados dos anos 1980. quanto na gestao empresarial e no mercado de trabalho. 86
A concepyáo de sociedade e indivíduo que serve de apoio para essa polí- A cidadania náo é mais definida como participayáu ativa na definiyáo
tica é muito semelhante aque estrutura as orientayóes da direita neoliberal. de um bem comum próprio de urna comunidade política, mas corno urna
Primazia da concorrencia sobre a solidariedade, capacidade de aproveitar as mobilizayáo permanente de indivíduos que devem engajar-se em parcerias
oportunidades para ser bem-sucedido e responsabilidade individual sáo vistas e contratos de todos os tipos com empresas e associayóes para a produyáo
como os principais fundamentos da justiya social83 . A política da esquerda de bens locais que satisfac;:am os consumidores. A ayáo pública deve visar,
moderna deve ajudar os indivíduos aajudar a si mesmos, isto é, a "dar a volta acima de tuda, ainstaurayáo de condiyóes favoráveis aas:áo dos indivíduos,
por cima" numa cornpetiyáo geral que náo é questionada em si mesma. Isso orientac;:áo que teride a dissolver o Estado no conjunto dos produtores de
se traduz num discurso amparado na reintroduyáo das categorias típicas do . "bens públicos". Giddens define o papel da as:ao pública da seguinte maneira:
esquema concorrencial do vínculo social: o capital humano, a igualdade de
'<ó Estado náo ,.pode. mais se contentar em assegurar proteyao social. Deve
oportunidades, a responsabilidade individual etc., em detrimento de urna
assumir um papel mais amplo, mas também mais. flexível, de :t;egulador,
concepyáo alternativa do vínculo social que se basearia ern urna rnaior so- contribuindo para a criayáo de urna esfera pública eficiente e bens públicos
lidariedade e em objetivos de igualdade real. Foi, no fundo, partindo dessa satisfatórios. Ele nao é o único ator nesse domínio, muito pelo contrário.
concepyáo "arcaica" da sociedade defendida pela "velha'' esquerda que a Assim, a distribuiyao de géneros alimentícios a armazéns, supermercados
doutrina da "esquerda moderna'' se construiu. Jacques Delors, no prefácio etc. representa um bem público. Cabe ao Estado criar o marco de regulayáo
dessa atividade. 87
aediyáo francesa, resume bem o objetivo dos dais autores:
Os sociais-democratas adeptos da terceira via nao defendem mais a ideia de Ern que consiste exatamente essa "regulayáo" que deve levar a "boa''
que o cidadao deve ser protegido pelo Estado, alimentado, alojado e vestido sociedade, segundo os próprios termos de Giddens? Trata-se de fazer com
desde o nascimento até a morte, como dizia Hobhouse; ao contrário, seu que o indivíduo tenha sernpre a escolha de arbítrio entre produtos e servü;os.
objetivo é criar condic;:óes que permitam aos indivídubs alcanyar um alto Sern grande originalidade, o princípio da concorrencia deve ser universal,
nível de vida decente, grayas aos próprios esfon;:os. 84
inclusive para os serviyos públicos. A única diferenc;:a é que as normas que
os competidores devem seguir náo sáo definidas da mesma maneira e pelos
83
Michael Freeden, "True Blood or False Genealogy: New Labour and Brltish Social rnesrnos atores em todos os casos. Segundo Giddens,
Democratic Thought", em Andrew Gamble e Tony Wright (orgs.), 7he New Social
Democracy (Oxford, Blackwell, 1999), p. 163.
84 Tony Blair e Anthony Giddens, La troisieme voíe: le renouveau de la social-démocratie no lmbito dessa terceira via. Seu Livro Branco de 1993, publicado pela Comissáo
(Paris, Seuil, 2002), p. 10. Jacques Delors retoma os argumentos e o léxico dássico Europeia (Croissance, compétitivité, emploi) retoma suas grandes linhas.
dos adversários do welfarismo quando afirma que "as políticas tradicionais de prote):ao 85
Tony Blair e Anchony Giddens, La troisibne voie, cit., p. 78. ,
social geraram com frequénda urna cultura de dependéncia e irresponsabilidade"
86
(ibidem, p. 12). É inreressante notar- nem que seja para descartar as hi¡)ocrisias Ibidem, p. 111.
87
de um socialismo francés ou de urna consttu):áO europeia que teriam escapado por Anthony Giddens, Le nouveau modele européen (Paris, Hachette Littératures, 2007),
milagre das garras da racionalidade neoliberal- que Delors insere seu projeto europeu p. 147.
240 .. A nova razáo do mundo A grande virada ., 241

nos campos em que as foryas do mercado sáo exercidas livremente, pode- A do u trina da "terceira via'' expressa muito bem o aba.ndono dos pilares
damos dizer que o indivíduo se comporta como cidadáo-consumidor. As
fundamentais da social-democracia (e do trabalhismo). O Estado social
normas derivam principal e diretamcnte da concorréncia. Um televisor
e as políticas de redi_su:_i~u_iyáo de renda sáo concebidoS como obstáculos
de má qualidade, oferecido pelo mesmo preyo dos outros, náo terá urna
presenya muito langa no mercado. O papel do .Estado e das outras autori- ao crescimento, e náo mais como elementos centrais do compromisso
dades públicas limita-se a fiscalizar o quadro geral, impedindo a formayáo social. O New Labour prolongou e legitimou a crítica as políticas sociais
de monopólios e oferecendo meios de garantir os contratos. Nas esferas construídas sobre direitos e conquistas, exaltou o sucesso individual com
náo mercantis - o Estado e a sociedade civil -, o consumidor deveria ter tons moralizantes que Malthus ou Spencer náo teriam renegado94 . Obvia-
escolha. Mesmo que os prindpios reguladores do mercado tenham nisso
mente, o blairismo manteve certas diferenyas com relayáo apura ortodoxia
apenas uro papel menor. No setor público, por exemplo, o indivíduo deveria
poder escolher entre vários clínicos, escalas ou serviyos sociais. Entretanto, económica de tipo monetarista: implantayáo do salário -mínimo, políticas
as normas náo podern ser garantidas pela concorréncia como acorre Ik'l oryamentárias anticíclicas, reinvestimento nos serviyos públicos de saúde e
esfera do mercado. Elas devem ser fiscalizadas diretamente por profissionais educayáo coro a ajuda do setor privado. No entanto, a verdade é que, por
e autoridades públicas. Digamos que, nessas esferas, o indivíduo seja um mais inegáveis que sejam, essas diferenyas políticas inserem-se num mesmo
consumidor-cidadáo - ele tem o direito de esperar que as normas sejarn
quadro fundamental: o da racionalidade política e das práticas disciplinares
rigorosamente aplicadas por urna aut9ridade externa. 88
características do neoliberalismo.
Giddens retoma a argumentayáo dos teóricos da Escala do Public Choice A propósito do New Labour, Keith Dixon fala de um "neoliberalismo de
e da "nova gestáo pública'' 89 . Contra o egoísmo dos funcionários públicos, _s_egunda gerayáo" 95 . Se deixarmos de lado a ideia de que o neoliberalismo
"é preciso encorajar diversidade de fornecedores e criar estímulos eficazes" sigfJ;ifica a retirad~ do Est~~o, podemos distingUir no ativismo reformador
em todos os domínios, em particular na saúde e na educayáo90 • Criayáo e centralizador d6 blairismo essa -dimensáo estruturante da nova forma de
de concorrencia e obrigayáo de escolha sáo os caminhos da reforma do governo dos indivíduos 96 • É exatamente o que mostram certos 'analistas da
Estado: ''A possibilidade de escolha e, mais em geral, o reconhecimento política do New Labour quando tentam fazer seu balans:o:
de um maior poder do usuário contribuem para estimular a eficiencia e o O programa de reformas foi realizado com a mobilizayao e o desenvolvi-
controle dos custos" 91 , porque levam o prestador a melhorar o serviyo 92 ; "os mento das capacidades de controle e direyáo do governo. Prosseguindo e
sociais-democratas devem inspirar-se na crítica que dizque as instituiyóes adaptando o quadro legado pelos conservadores, modernizando a heranya
públicas, náo usufruindo da disciplina do mercado, tornam-se preguiyosas
e seus serviyos acabam senda de má qualidade" 93 • 94
Florence Faucher-King e Patrick Le Gales sublinham bem: "O New Labour adora urna
visáo que valoriza os ganhadores, os empreendedores (seja qual for sua cor, origem,
88
Ibídem, p. 158-9. Note-se de passagem que a expressáo "fiscalizar o quadro geral" é idade), a seguranya dos bens e das pessoas; os desafios da integras;áo na sodedade,
de inspirayáo ordoliberal. da redistribuiyáo ou do discurso da solidariedade, do espayo público, sáo deixados
89
Ibidem, p. 163. Sobre a "nova gestáo pública'', ver capítulo 8 deste vol~me. de lado". Ver Tony Blair, 1997-2007(Paris, Presses de Sdences Po, 2007), p. 18.
95
90
Giddens toma como exemplo a privatizayáo das escalas na Suécia e os cheques- Keith Dixon, Un abécédaire du blairisme (Bellecombe-en-Bauges, Le Croquant,
2005), p. 15.
-educayáo nos Estados Unidos (ibidem, p. 166-7).
96
91
Ibidem, p. 165-6. Encontramos sua manifestayáo na forma faladosa do "nem isso nem aquilo", que
92
náo dá razáo nem ao laissezjaire nem ao amigo compromisso social-democrata.
lbidem, p. 165. Giddens pretendia distinguir o que chama de "democratizayáo do co-
Blair fonnulava a situayáo da seguinte maneira, antes de subir ao poder: "Se rejeito
tidiano", que refon;a o poder do usuário, e o puro e simples "consumismo" neoliberal.
o rompan te de laissez-faire dos que dizem que o governo náo tero nenhum papel a
Mas náo está claro o que os distingue. Por exemplo, em matéria de ensino médio e
desempenhar, rejeito também o retorno a um modelo de Estado corporativista, que
superior, Giddens manifesta o novo consenso entre a esquerda moderna e a nova direita
já teve sua época. O papel do governo náo é o de grande comendador da economia,
de que os universitários financiem eles próprios seus es rudos, recorren do a empré>timos.
mas de companheiro de estrada''. Ver Tony Blair, La nouvelle Grande-Bretagne: vers
93
Anthony Giddens citado em Keith Dixon, Un digne héritier, cit., p. 77. une société de partenaires (La Tour-d'Aigues, LAube, 1996), p. 101.
242 ° A nova razáo do mundo A grande virada "' 243

utilitarista (náo existe confian<ya nasociedade), os neotrabalhistas reformaram "adaptas:ao a globalizas:ao". No decorrer desse período de maturidade, os
sistematicamente o governo e seus modos de opera<fáo. Os governos Blair amigos opositores tiveram de abjurar grande parte de sua velha crítica_ao
intensificaram macis:amente a centralizas:áo da Grá-Bretanha, deixando
capitalismo; tiveram fi_fl:~_!mente de reconhecer a "economia de mercado"
mais autonomia aos indivíduos e as organizas:óes no interior de um sistema
de coers:óes e controles refors:ados, um sistema de_~'condura das condutas", como o meio mais eficaz de coordenas:ao das atividades econ6micas. Em
diria Michel Foucault, que nem sempre escapa a um desvio burocrático o u resumo, a grande vitória ideológica do neo liberalismo consistiu em "desideo-
até mesmo autoritário. 97 logizar" as políticas seguidas, a ponto de nao serem sequer objeto de debate.
Ternos aqui urna das causas do completo desmoronamento doutrinal da
Portanto, aquilo que as vezes é chamada impropriarnente de "conversao
esquerda ao longo dos anos 1990. Se admitimos que os dispositivos práticos
neoliberal da esquerdi' náo pode ser explicado apenas pelas campanhas
da gestao neoliberal dos indivíduos sáo os únkos eficazes, ou mesmo os
ideológicas da direita ou pela capacidade de persuasao desta última. Essa
únicos possíveis, ou em todo caso os únicos que conseguimos imaginar, é
conversáo é mais fundamentalmente explicada pela difusáo de urna racio-
difícil ver como é possível opor-se aos princípios que os fundamentam (a
nalidade global que funciona como urna evidencia amplamente comparti-
hipótese das escolhas racionais, por exemplo) ou questionar efetivamente
lhada, que é da ordem nao de urna lógica de partido, mas de urna técnica
os resultados a que chegam (urna maior exposiyáo aconcorrencia e aos "aci-
de governo dos homens supostamente neutra do ponto de vista ideológico.
dentes" da conjuntura mundial). Náo resta nada além da lógica da persuasao
O mais importante nao é tanto o triunfo da vulgata neoliberal, mas a
retórica, que consiste em denunciar em alto e bom som o que se aceita a
maneira como o neoliberalismo é traduzido ern políticas concretas, as quais
~eia-voz. Foi o que as autoridades de esquerda mais "hábeis" souberam
afinal é subrnetida urna parte da populac;:ao assalariada, e esta as vezes até
fazer, quando nece~sário 98 • Mais ainda, o neoliberalismo político, tal como
as aceita, mesmo quando essas políticas visam explicitarnente ao retrocesso
se desenvolveu, te-\re conse.ciuencias· importantes nas condutas efetivas dos
de direitos adquiridos, de solid~riedade entre grupos e entre gerac;:óes, e
indivíduos, incitando-os a "cuidar deles mesmos", a nao contar inais co'm a
levam grande parte dos sujeitos sociais a dificuldades e ameayas crescentes,
solidariedade coletiva e a calcular e maximizar seus interesses, perseguindo
inserindo-os sistemática e explícitamente numa lógica de "riscos". O neoli-
lógicas mais individuais nwn contexto de concorrencia mais radical entre
beralismo é muito mais do que urna ideo logia partidária. A.liás, em geral as
eles. Em outras palavras, a estratégia neoliberal consistiu e ainda consiste
autoridades políticas que adotam as práticas neoliberais recusam-se a admitir
em orientar sistematicamente a condura dos indivíduos como se estes esti-
qualquer ideología. O neoliberalismo, quando inspira políticas concretas,
vessem sempre e em toda a parte comprometidos com relayóes de transac;:ao
nega-se como ideología, porque ele é a própria razáo.
e concorrencia no mercado.
Assim, políticas muito semelhantes podem moldar-se nas mais diversas
retóricas (conservadoras, tradicionalistas, modernistas, republicanas, confor-
me a situac;:ao e o caso), manifestando desse modo sua extrema plasticidade.
Dito de outra maneira, a dogmática neo liberal apresenta-se como urna prag-
mática geral, indiferente as origens partidárias. A modernidade o u a eficácia
náo sáo nem de direita nem de esquerda, segundo dizem os que "nao fazem
política''. O essencial é que "funciona'', como dizia com frequencia Tony
Blair. É isso tarnbém que nos permite avaliar as diferenc;:as entre o período
militante do neoliberalismo político de Thatcher e Reagan e' o período
gestionário, no qual se trata apenas de "boa governanya'', "boas práticas" e
98
A Franc;:a "socialista'' de Mitterrand mergulhou num banho retórico extremamente
hostil ao neoliberalismo, embora, muito antes do blairismo, já tiv6se adorado diversos
97 Florence Faucher-King e Patrick Le Gales, Tony Blair, 1337-2007, cit., p. 16. dos métodos neoliberais.
7
&e; ORIGENS ORDOLIBERATS DA
CONSTRUQAO DA EUROPA

Agrande virada mundial que ocorreu nos anos 1980 e 1990 seguiu a po-
derosa onda conservadora que veio da Grá-Bretanha e dos Estados Unidos.
Como consequencia, surgí u urna espécie de lenda encantada da construyáo
europeia vista com'o bastiáo contra o "ultraliberalismo" anglo-saxáo. Essa
(urna_ das cantilenas do neoliberalismo de esquerda. A história é muito
miis complexa, n.ienos linear e, ao_mesmo tempo, _menos maniqueísta. Na
realidade, como mostram com toda razáo os universitários norte.americanos
do coletivo Retort, "a noyáo de urna Europa politicamente aut6noma, de
urna Europa que se opóe a 'barbárie' norte-americana e ocupa Um lugar
relativamente positivo no capital e na modernidade é largamente ilusória".
Mirando-se em urna "imagem que se satisfaz a si mesrna" com urna pre-
tensa "excecráo" europeia, "a esquerda abandona qualquer possibilidade de
resisténcia real" 1• Porque, se é verdade que essa construcráo da Europa é
fruto de várias tradicróes, entre as quais a poderosa tradiyao da democracia
cristá, ela está ligada tarnbém a urna das rnais antigas estratégias neoliberais,
cujos principais fundamentos teóricos forarn vistos nos capítulos anteriores,
quando analisamos o ordoliberalismo. Essa estratégia original, que coro
frequéncia náo é reconhecida como tal, é anterior a difusáo da ideologia
a
neoliberal nos anos 1970 e crise de regulayáo do capitalismo fordista.
O neoliberalismo europeu náo esperou seu triunfo no plano das ideias
para progressivamente institucionalizar-se, grayas· a políticas conduzidas
com um grande espírito de continuidade. A construyao jurídica e política

1 Retort, "Note aux lecteurs de la traduction fran~aise", em Des ímages et des bombes:
politique du spectacle et néolibéralisme mílítaire (trad. Rémy Toulouse e Nicolas
Vieillescazes, Paris, Les Prairies Ordinaires, 2008), p. 8-9.
246 ~ A nova razáo do mundo k origens ordoliberais da constrw;:áo da Europa o 247

de um mercado concorrencial ocorreu pouco a pouco, enquanto conti- económica: "O encorajamento que a Corte deu a Coqlissáo a propósito
nuava a predominar certa racionalidade administrativa e burocrática e, ria da determinayáo por esta última das condiyóes de integrayáo do mercado
prática, prevalecia o intervencionismo keynesiano o u, como na Fran<;a, as conferiu urna nan~r~~~ g~ase constitucional as regras de concorréncia do
diferentes formas de "colbertismo". Náo se trata em absoluto de transfor- tratado", ressalta a OCDE5
mar a Europa em um laboratório de urna exP~rién¿ia neoliberal que em Esse neoliberalismo político náo surgiu do nada. O ordoliberalismo cons-
seguida teria contagiado o resto do mundo; trata-se simplesmente de dar tituiu a parte mais importante do fundamento doutrinal da atual construyáo
o devido lugar a lógica ordoliberal, que desde muito cedo orientou certo europeia, antes mesmo de ela ser sub metida anova racionalidade mundial.
rumo a constrw;:áo europeia. Como notava em 1967 um observador dos Para os neoliberais europeus declarados, a filiayáo entre o·ordoliberalismo
primeiros passos dessa constrw;:áo, "o concorrencialismo está substituindo e o espírito que governou a implanta<;áo do Mercado Comum Europeu e,
o liberalismo de antigamente". Essa é, acrescentava, a "ideia de base do depois, da Uniáo Europeia náo deixa margem a dúvida. Essa filiayáo é até
neoliberalismo contemporáneo" 2• reivindicada por alguns deles. Um dos testemunhos mais convincentes a
A constrw;:áo do "mercado comum" na Europa é um exemplo parti- esse respeito é a conferéncia de Frits Bolkestein no Walter Eucken lnstitut
cularmente interessante da implantayáo desse "concorrencialismo" neoli- em Freiburg, em 10 de julho de 2000. O orador, que se apresentava na
beral. O Tratado da Comunidade Europeia do Carváo e do A<;o (Ceca) época como o "responsável pelo mercado interno e pelo sistema fiscal" da
em 1951 e, depois, o Tratado de Roma em1957 comeyaram a instaurar Comissáo Europeia, deu o seguinte título a sua conferénda: "Construindo a
regras estritas para evitar que a concorréncia fosse desvirtuada por práticas · Europa liberal do século XXI"'. Depois de lembrar o papel dos ordoliberais
discriminatórias, abusos de posiyáo dominante e subsídios governamentais. napolítica económica
:
e monetária
' ,
da República Federal daAlemanha (RFA)
A partir de entáo, a Comissáo Europeia, fortemente amparada na Corte e, mais particulai-mente, o papel eminente de Walter Eucken na doutrina,
de Justiya Europeia, elaborou um conjunto de instrumentos que, segun- Bolkestein afirmava:
do um relatório da Organizayáo para a Cooperayáo e Desenvolvimento Nwna visáo da Europa do futuro, a ideia de liberdade, como era defendida
Económico, formo u a base de urna verdadeira "constituiyáo económica'' 3 . por Eucken, deve seguramente ocupar urna posi<;:áo central. Na prática eu-
Essa política da concorréncia, que continuou a ampliar-se e aprofundar- ropeia, essa ideia é concretizada pelas quatro liberdades do mercado interno,
-se\ é considerada, aliás, urna das alavancas mais poderosas da integrayáo a saber: a livre circulac;:áo de pessoas, bens, servic;:os e capitais.

E acrescentava:
2 Louis Franck, La libre concurrence (París, PUF, 1967). Franck especificava: ''Admite-
-se a partir de agora que as interven~óes públicas sáo necyssárias para a preserva~io
de certas formas de livre concord~ncia, que essa livre concorréncia nio faz parte ou em controlar as condi~óes de concorréncia no setor privado, a partir dos anos 1980 a
náo faz mais parte da natureza das coisas, que as no~óes de livre concorréncia e de Cornissio e a Corte come~aram a atacar os rnonopólios das empresas públicas no setor
laissezjaire devem ser dissociadas- esse é, como sabernos, um dos ensinamentos do das telecomunicayóes. Em 1988, a Comissio, generalizando seus objetivos de luta contra
novo liberalismo, mas, em rela~io aescala clássica, ele é wn poúco revolucionário" as distorc;:óes da concorréncia, iniciou seu longo combate a favor da liberalizas:áo dos
(ibidem, p. 7). servic;:os públicos por urna diretiva que visa a eliminar todos os monopólios públicos
3 OCDE, Droit et politique de la concurrence en l'Union Européenne (Paris, OCDE, que violem o direito de concorrénda. Energía, transpones, seguros, servi~os postais,
2005), p. 12. radiodifusáo: sáo vastos os domínios ern que as empresas públicas sio intimadas a
alinhar-se ao direito de concorrénda que se aplica ao setor privado.
4 A concorréncia livre e nio desvirtuada, vista como wn rneio de eficácia económica,
5
fundamenta a legitimidade das diretivas extremamente normativas e a jurisprudéncia OCDE, Droit et politique de la concurrence en l'Union Européenne, cit., p. 12.
das institui~óes europeias. k normas jurídicas definidas pelaDim;:áo Geral da Concor- 6
Bolkestein é urn político holandés, líder do Partido Popular '(liberal) durante anos,
réncia, sustentadas pela jurisprudéncia da Corte de Justi~a, correspondem a'objetivos presidente da Internacional Liberal de Londres entre 1996 e 1999, autor da diretiva
económicos de bem-estar e competitividade. Sobre esse ponto, a Comissio continuou sobre "Servis:os", elaborada por ele durante seu mandato na Comissio Europeia,
absolutamente fiel ao programa neoliberal. Empenhando-se num primeiro momento entre 1999 e 2004.
248 "' A nova razáo do mundo As otigens ordoliberais da constrw;:io da Europa .. 249

De fato, está claro que ainda resta muito a fazer para que essas liberdades portanto, é transmitir, por meio de seu trabalho, os valores fundadores da
sejam garantidas. A Comissáo Europeia e o Conselho tém consciéncia desse sociedade livre ou, em todo caso, combater as ideias que visam a pór em
desafio e o assumiram, adotando um programa ambicioso de desregula- risco esse tipo de sociedade".
mentayáo e flexibilizayáo resumido na ata final da conferéncia de cúpula
Bolkestein náo escoridia que, para ele, a construyáo da Europa era desde
de Lisboa, realizada em maryo. A im¡}lantayáo do- -conjunto de medidas
propostas em Lisboa representará um progresso considerável na realizayáo o princípio um projete antissocialista ou, até mesmo, um projeto voltado
de urna Europa em conformidade com as ideias "ordoliberais". contra o Estado social. Lembrava que, "para Eucken, o sodalismo era urna
visáo do horror, um modelo náo só ineficaz, mas também, e sobretudo, de
A continuayáo é ainda mais explícita:
falta de liberdade".
O ambicioso pro jeto de uniáo econ6mica e monetária é, sob esse aspecto, A "Europa liberal", portante, é um programa claramente desenhado,
um desafio particular. Esse projeto tem náo apenas o objetivo de fortalecer como Bolkestein teve o grande mérito de lembrar. Também estava certo ao
as liberdades do cidadáo, como também constitui um dos principais ins-
sublinhar que essa construc;áo se inseria na linhagem do ordoliberalismo
trumentos políticos que permitiráo a estabilizayáo da enorme economia de
mercado que é a Europa. Portanto, por essa razáo, ele é puro produto do a
alemáo, indo de encontro, portante, ideia de que a Europa encarna um
pensamento "ordoliberal". a
"modelo social" contrário globalizayáo "ultraliberal" dos anglo-saxóes.
A confusáo, largamente intencional, diz respeito ao sentido da expressáo
Bolkestein detalhava o programa de reformas que deveria permitir a tea-
tipicamente ordoliberal "econornia social de mercado", dada por muitos
lizayáo integral dessa Europa "ordoliberal". Quatro pontos eram destacados.
co~o sinónimo de "Europa social'·'. Nwna entrevista de 2005, quando
1) A flexibilizayáo de salários e preyos mediante a reforma do mercado
perguD:tado por um j9fnalista "como o novo tratado permitirá que se lute
de trabalho: "É absolutamente necessário avanc;ar no campo da flexibilizayáo
contra ~s pervers6es do merc<idü?", Jacques Delors deu a seguinte resposta:
do mercado de emprego"; "um de nossos principais desafios, portanto, é
melhorar a flexibilidade do mercado de trabalho e do mercado de capitais". Em 1957, os países europeus consideraram que tinham um mercado co-
mum: eles aumentariam a eficácia e a solidariedade entre eles. Náo foi fácil
2) A reforma do sistema de aposentadorias mediante o estímulo a fazer isso. Sáo esses mesmos prindpios que sáo retomados pelo tratado.
poupanya individual: "Se quisermos evitar a detonayáo da bomba-relógio Ele náo é inovador nesse sentido. O que é novo é o progresso espetacular
que sáo as aposentadorias, é urgente enfrentarmos seriamente a reforma das fon;:as políticas que rejeitam a intervenyáo do Estado e das instituiy6es
da legislayáo sobre as aposentadorias. Os fundos de pensáo devem poder para equilibrar as foryas do mercado. Em nome de um monetarismo que
aproveitar as novas possibilidades de investimento oferecidas pelo euro". sempre combati, rejeita-se o reequilíbrio entre o económico e o monetário
[... ]. O tratado náo resolve isso. Ele dá as foryas políticas a possibilidade
3) A promoc;áo do espírito de empreendimento: "Os europeus parecem
de seguirem numa direyáo ou noutra. Sem o tratado, dispomos de menos
dar mostras de pouco espírito de empreendimento. O pr:oblema da Europa trunfos para defender os interesses legítimos da Franya e seguir na direyáo
náo é tanto a falta de capital de risco para o lanyamento de novos pro jetos dessa economia social de mercado, renovada, que é urna resposta aglobalizayáo
de negócios. Dinheiro náo falta. Em cornpensayáo, pouquíssirnas pessoas e ao poder financeiro.Y
estáo dispostas a criar sua própria empresa. Portante, as reformas estruturais
Essa resposta é bastante característica de certa leitura da história europeia
devem vir acompanhadas de urna mudanya de rnentalidade no cidadáo".
que tende a ocultar o fato de que essa "economia social de mercado" era a
4) A defesa do ideal de civilizas:áo de urna sociedade livre contra o
fórmula do neoliberalismo alemáo antes de se tornar a do neoliberalisrno
"niilismo": "O relativismo moral e epistemológico dessa corrente ameaya
europeu. Jacques Delors náo é o único a alimentar e:Ssa ocultayáo. Quase
os valores essenciais do projeto liberal, como o espírite crítico e racional e a
todos os partidários do Tratado Constitucional Europeu (TCE) defenderarn
crens:a na dignidade fundamental do indivíduo livre"; "o advento da Europa
interpretayóes semelhantes. Jacques Chirac, numa coluna publicada por
liberal de arnanhá pode ser abalado pela educas:áo que se dá hoje aos jovens
europeus nas escalas e nas universidades [...].A tarefa dos universitários,
7 Jacques Delors, "E11trevista", Nord-ÉC!air, 14 maio 2005; grifo nosso.
250 '" A nova razáo do mundo As origens ordoliberais da constrm;:áo da Europa e 251

26 jornais europeas as vésperas da cúpula de Hampton Court, em 27 de proibindo todas as práticas que possam desvirtuar a concorréncia no mer-
outubro de 2005, declarava que o modelo da Europa "é a economia social cado interno, assim como todas aquelas que sejam consideradas abuso de
de mercado. Seu contrato é a alianya entre a liberdade e a solidariedade, posi~áo dominante. O Artigo III-167 proíbe, mais especialmente, ajudas
é o poder público garantindo o interesse geral". E continuava: "Por isso a do Estado que poss-aill_-dlstorcer a concorréncia.
Franya jamais aceitará ver a Europa reduzida a -urna Simples zona de livre A estabilidade da moeda é o segundo princípio decisivo. Na Parte I, título
troca'', "por isso devemos relanyar o projeto de urna Europa política e social, III, sobre "As competéncias da Uniáo", encontramos no Artigo 29 a definiyáo
fundada sobre o princípio da solidariedade". das miss6es e do estatuto do Banco Central Europea. O parágrafo 2 declara:
Essas poucas citayóes ressaltam a necessidade de um esclarecimento, O Sistema Europeu de Bancos Centrais é dirigido pelos órgáos de decisao
tanto a respeito das fontes do neoliberalismo europeu como dos caminhos do Banco Central Europeu. O objetivo principal do Sistema Europeu de
pelos quais ele se imp6s. Bancos Centrais é manter_ a estabilidade dos preyos. Sem prejuízo do
objetivo de estabilidade dos preyos, dá seu apoio as políticas econ6micas
gerais na Uniáo como intuito de contribuir para a realizas:áo dos objetivos
Arqueologia dos princípios do Tratado Constitucional Europeu da Uniao.

Reporteroo-nos um breve instante -a "Constituiyáo Europeia", em cuja E o parágrafo 3 .especifica:


elaborayáo os partidos liberais e democratas cristáos europeas tiveram O Banco Central Europeu é urna instituiyáo dotada de personalidade ju-
papel fundamental. A campanha referendária que ocorreu na Franya em rídica. É o único apto a autorizar a emissáo do euro. No exercício de seus
,. poderes e ero sq_as finanyas, ele é independente. _& institui<;:óes e os órgáos
2005 levantou o problema da "constitucionalizayáo" de cenas orientayóes
.li:i Uniáo, bem.:'Como os governos ~os Estados-mem~ros, comprometem-se
de política económica: o monetarismo do Banco Central Europeu (BCE),
a respeitar esse princípio.
a concorréncia como princípio da atividade económica e o papel reduzido
e secundário dos "serviyos económicos de interesse geral". Essas opyóes le- Esses princípios náo sáo novos. Em 1992, ao criar a Uniáo Europeia, o
vantavam a questáo da natureza da "economia social de mercado", fórmula Tratado de Maastricht já introduzia pelo Artigo 3 o objetivo de um "regime
oficial de referéncia da nova constituiyáo para toda a Uniáo. que assegura que a concorrencia náo seja desvirtuada no mercado interno";
O tratado, que após urna revisáo sumária em 2007 se tornará o Tratado pelo Artigo 3A, que náo era secundário, estabelecia como objetivo a "ins-
de Lisboa, continha urna série de princípios fundamentais a respeito da taurayáo de urna política económica fundamentada na estreita coordenayáo
natureza da economia europeia, prindpios esses que eram apresentados das políticas económicas dos Estados-membros, no mercado interno e na
na Parte III. Em especial, a partir do Artigo 3, havia urna formulayJ.o do definiyáo de objetivos comuns", conduzida em conformidade como respeito
objetivo que se deveria perseguir, supostamente cla'ro para todos: "Urna ao prindpio de urna "economia de mercado aberra, na qual a con correncia
economia social de mercado altamente competitiva''. Toda a política eco- é livre". Essa última frase, que foi utilizada depois como um verdadeiro
nómica definida na Parte III visa a organizar a Europa em torno de alguns slogan, é repetida inúmeras vezes no Tratado de Maastricht, como o será
prindpios fundamentais de urna "economia de mercado aberta, "na qual a também no Tratado Constitucional.
concorréncia é livre", como repetem constantemente as partes e os artigos No entanto, o Tratado de Maastricht está inserido numa lógica mais
da Constituiyáo. Esta consagra os dois pilares dessa "economia social de antiga. O Tratado de Roma de 1957 afirmava a necessidade do "estabeleci-
mercado": o princípio supremo da concorrénda nas atividades económicas mento de um regime que assegura que a con correncia náo seja desvirtuada
e a estabilidade de preyos, garantida por um Banco Central independente. no mercado comum" (I-3). O Artigo 29 especificava que-a Comissáo seguia
A Uniáo dispóe, assim, de urna competéncia exclusiva para o "esqheleci- a "evoluyáo das condiyóes de concorrencia no interio-r da Comunidade, na
mento das regras de concorréncia necessárias ao funcionamento do mercado medida em que essa evoluyáo tivef como efeito o aumento da forya com-
interno" (Artigo I-13). Os artigos III-162 e Ill-163 aplicarn esse princípio petitiva das empresas".
252 " A nova razáo do mundo As origens ordoliberais da constrw;:áo da Europa " 253

a
A terceira parte, dedicada política da Comunidade, definia com cuidado A partir de 1957, a lógica de "constitucionalizayáo" da economia social de
as "regras da concorréncia''. Lia-se no Artigo 85: mercado torno u-se cada vez ·mais patente. Assim, ficou vÍsível que a linha
Sáo incompatíveis com o mercado comum e proibidos todos os acordos de fors:a principal da construs:áo europeia náo era a cooperayáo setorial nem
entre empresas, todas as decisóes de associayóes de empresas e todas as a organizayáo de políticas específicas, mas a integrayáo dos princípios fun-
práticas concertadas que possam afetar o comérci6 entr¿Estados-membros damentais da economia social de mercado ao direito constitucional 10 • Sob
e tenham por objeto ou consequencia impedir, restringir ou desvirtuar o esse aspecto, o TCE representa o apogeu de um lento movimento a favor
jogo da concorrencia no interior do mercado comum.
de urna norma econümica suprema vista como um componente essencial
O Artigo 86 desenhava a imagem de urna economia de concorréncia da constituiyáo política no sentido mais amplo do termo.
sem monopólios privados ou públicos: Essa "constitucionalizayáo" das liberdades econümicas corresponde muito

É incompatível coro o mercado comum e proibido, na medida em que o


a
amplamente realizayáo dos princípios fundamentais do ordoliberalismo
comércio entre Estados-membros possa ser afetado, o fato de urna o u várias como foram definidos entre 1932 e 1945 e, de modo mais geral, do neoli-
empresas explorarem de forma abusiva urna posiyáo dominante no mercado beralismo europea 11 • Foi com plena consciéncia que parte das autoridades
comum o u em parte substancial deste último. políticas e dos economistas de inspirayáo liberal, em especial na Franya e na
Eram proibidos, na mesma ocasiáo,-as práticas de dumping e os auxílios ltália, encorajaram essa construyáo, a qual eles viam como a implementayáo
de Estado. O Artigo 92 indicava: dos prindpios do concorrencialismo. O caso de Jacques Rueff, sobre cujo
papel na contestayáo das políticas intervencionistas de tipo keynesiano
Salvo derrogayóes previstas pelo presente tratado, sáo incompatíveis como
ÉalilJ!l-OS· antes, é muito esclarecedor a esse respeito.
mercado comum, na medida em que afetam as tracas entre Estados-mem-
bros, as ajudas concedidas pelos Estados ou por intermédio de recursos de :Em 1958, Rueff niostiava qll-e o Tratado de Roma, assinado meses
Estado sob qualquer forma que seja, que desvirtuem ou ameacem desvirtuar antes, tinha a particularidade de criar um "mercado institucional", que
a concorrencia, favorecendo certas empresas o u certas produyóes. deveria ser cuidadosamente distinguido do "mercado manchesteriano".
Embora esse mercado institucional possuísse as mesmas qualidades de
O Tratado de Roma, instituindo uma Comunidade Econümica Europeia
equilíbrio do outro, e "embora fosse também urna zona de 'laissez-passer',
(CEE), já continha o essencial da do u trina da consttu~áo europeia. Ern 1957,
ele náo era urna zona de 'laissezjaire"' 12 • O poder público era convidado a
as liberdades eco nO micas fundamentais (as "quatro liberdades de circulayáo
de pessoas, mercadorias, serviyos e capitais") ganham um valor constitucio-
nal, reconhecido como tal pela Corte Europeia de Justiya, enquanto direitos o fim dessa abordagem monolítica e diversifica a ambiyáo da Comunidade Europeia:
fundamentais dos cidadáos europeus8 • O que é confi~mado pelo TCE em além dos direitos sociais dos cidadáos, ele consagra o modelo europeu de sociedade,
ten do em seu centro o modelo de justir;a social- a 'economia social de mercado', aqual
seus numerosos artigos sobre os "princípios de urna economia de. mercado
somos táo apegados" ("Il faut ratifier le Traité'', Le Monde, 3 jul. 2004).
aberta na qual a concorréncia é livre" 9 • 10
Aliás, isso é perfeitamente reconhecido por especialistas que defendem alegitimidade
e a necessidade dessa "constitucionalizaqáo". Francesco Martucci escreveu a respeito
8
Ver Laurence Simonin, "Ordolibéralisme et intégration économique européenne", do que chamou de "constituiqáo económica europeia'': ''A Comunidade Europeia
Revue d'Allemagne et des Pays de Langue Allemande, v. 33, n. 1, 2001, p. 66. dispóe de urna constituiyáo económica fundamentada numa economia de mercado",
e detalha seus objetivos, instrumentos e prindpios ("La Constitution Européenne
Os socialistas franceses favoráveis a ratifica~o, cuja prática de negayáo da realidade
est-elle libérale?", La Lettre, Supplément, Fondation Roben Schuman, n. 208, 25
foi particularmente visível no episódio do referencia, defendiam ao contrário que esse
abr. 2005; disponfvel em: <www.robert-schuman.eu/fr/supplements-lettre/0208-la-
tratado marcava o fim do "tudo é econOmico", mostrando com isso a que ponto náo
constitution-europeenne-est-elle-liberale>; acesso em: 28 fev. 2"016).
entendiam, o u náo queriam entender, a lógica "ordoliberal" do processo em andamento.
11
Assim, para citarmos apenas um exemplo, Dominique Strauss-Kahn e Bertrand Delanoe Ver o capítulo 3 deste volume.
11
escreveram numa coluna do jornal Le Monde: "Até aqui, a história da Uniáo Europeia Jacques Rueff, "Le marché institutionnel des communautés européennes", Revue
foi largamente escrita em torno da constrw;:áo econbmica. [...] O novo tratado marca d'Économie Politique, jan.-fev. 1958, p. 7.
254 ~ A nova razáo do mundo k origens ordoliberais da constru~áo da Europa '" 255

intervir para proteger o mercado contra os "interesses privados", que rapi- liberal, tomou progressivamente consciencia de suas aspirayóes e seus mé-
damente teriam tratado de criar acordes e controlar mercados reservados; todos próprios para satisfaz6-las, reconhecendo-se, finalmente, nas fórmulas
era convidado igualmente a amenizar as consequéncias sociais da abertura cornunitárias da Comunidade Europeia do Carváo e do Ayq e naquelas cuja
aplicay:io generaliz;:¡_da será~ amanhá, a Comunidade Económica Europeia. 16
dos mercados a concorréncia. Rueff explicava que a principal marca do
mercado institucional era o que ele chamava de "realismo profundo". Os Como já vimos suficientemente, o ardo liberalismo náo goza de nenhum
fundadores haviam "preferido uro mercado limitado por interven<;óes monopólio, mas devemos convir que_de constituiu o carpo doutrinal mais
que lhe dariam urna chance de ser moralmente aceitável e politicamente coerente do neo liberalismo europeu. A homenagem que Rueff lhe presta,
aceito" 13 • Isso náo significava uro obstáculo ao mercado, na medida em a influencia que terá sobre o alto escaláo frances, como ? ex-presidente
que, como ele também sublinhava, essas interven<;óes deveriam consistir Valéry Giscard d'Estaing ou o ex-primeiro-ministro Raymond Barre, sáo
em procedimentos que "respeitavam o mecanismo dos pre<;os" e náo símbolos claros disso l?.
perturbavam sua livre forma<;áo no mercado.
Esse "mercado institucional", cujo protótipo é a constru<;áo europeia,
tem um grande futuro pela frente, segundo Rueff. Sua concretiza<;áo deve A hegemonia do ordoliberalismo na
reunir todos os partidos liberais e socLdistas e estender-se ao conjunto das República Federal da Alemanha (RFA)
relayóes económicas mundiais. O neoliberalismo, se já era para Rueff a Para compreendermos como esses prindpios conquistaram a Europa,
base da construyáo europeia, seria igualmente o fundamento do mercado ~evemos voltar amaneira como eles se impuseram na RFA após a Segun-
mundial, que "unirá amanhá, numa dvilizayáo comum, todos indivíduos d~--Guerra Mundi~ e como constituíram a base de um consenso em que
e todos os pavos que desejam dar aos homens liberdade sem desordem e enco~nramos as rr:i.ais iillpof!antes. formayóes políticas alemás. Contudo, é
bem-estar sem servidáo, reduzindo ao mesmo tempo, tanto quanto for importante náo confundirmos, como muito frequentemente se faz, o que na
humanamente possível, a desigualdade e a injustiya'' 14 • Meio século depois, Alemanha está estritamente ligado afiliayáo ardo liberal e o que diz respeito
só pode nos admirar o caráter premonitório das palavras de Rueff, quando a urna heranya mais antiga (o Estado social "bismarckiano") o u as condiyóes
anunciava que liberais e socialistas acabariam de acordo quanto ao objetivo sociais e políticas do compromisso entre as fon;:as sindicais e o patronato (a
de construyáo do "mercado institucional", voltando a cantilena de antes "cogestáo"). O "capitalismo renano" náo é a "economia social de mercado"
da guerra de que o liberalismo náo é nem de direita nem de esquerda 15 • definida pelos teóricos liberais alemáes; ele remete a urna realidade híbrida,
E de ande vem essa ideia de uro mercado construído e vigiado por urna fruto da história e das rela<;óes de fon;:a sociais e políticas.
autoridade política? Para Rueff, assim como para outros observadores da O exito inicial do neoliberalismo alemáo deve-se a vários fato res. Para a
época, náo resta dúvida de que a ideia que anima o ·"mercado comum" é RFA, tratava-se de refundar a legitimidade do novo Estado, integrar-se no
puro produto do neoliberalismo que surgiu no fim dos anos 1930:
O mercado institucional é o arremate e o coroamento do esfon;:o de reno-
vay:io do pensamento liberal, que nasceu cerca de vinte anos atrás é que,
16
lbidem, p. 8. No início dos anos 1960, outros autores fizeram a liga~áo entre os
com o norne de neoliberalismo, liberalismo social ou mesmo socialismo princípios do mercado comum e o neoliberalismo. É o caso de Louis Franck (La libre
concurrence, cit., p. 20): "Náo há dúvida também de que o neoliberalismo inRuenciou
profundamente a política de salvaguarda da concorréncia, adorada pelos tratados de
13
Paris e Roma, que instituíram, respectivamente, a Ceca e a própria CEE".
Ibidem, p. 8. 17
14
Náo devemos esquecer que aconstm<;:áo europeia serviu conscientemente e desde mui-
Idem.
to cedo de alavanca para se questionar a "rigidez das estrutufas sociais e económicas"
dos países~membros. Em 1959, o Rapport sur les obstacles al'e'xpansion économique,
1
5 Rueff afirmava que "liberais e socialistas est:io igualmente fadados, se quiserem alcanc;:ar
seus fins, as disciplinas do mercado institucional", porque tanto uns como outros conhecido como "Relatório Armand-Rueff', fundamenta suas preconizayóes na
aderem as mesmas "civiliza~óes de mercado" contra o totalitarismo planificado (idem). preparas:áo da economía e da sociedade francesa a concorréncia·.europeia.
256 .. A nova razáo do mundo As origens ordoliberais da constrw;:áo da Europa " 257

mundo livre e distanciar-se do passado nacionalista e totalitário 18 • Devería- como Alfred Müller-Armack, a quem parece que devemos a expressáo Sozial
mos mencionar ainda a influéncia dos Estados Unidos sobre a reconstrw;:áo Marktwirtschaft [economia, social de mercado] 21 •
e o medo da inflayáo, que destruíra a economiaem 1923. Todos esses fato res O éxito do ordoliberalismo é evidente primeiramente pela conversáo
pesaram a favor de urna mudanya radical de situas:áo num país que durante dos grandes partidós--aleinaes a"economia social de mercado". Em 1949, a
muito tempo se mostrou relutante em relayáo ao-liberalismo. O ordolibe- democracia cristá adota o essencial da doutrina ordoliberal por influéncia
ralismo conseguiu impor-se porque combinou, após o nazismo, a rejeis:áo de Erhard. Os democratas cristáos dividiam-se etitte duas referéncias: o
do estadismo autárquico coro a rejeiyáo do liberalismo puro pregado pela cristianismo social que inspirou o Programa deAhlen de 1947 e as diretivas
economia política clássica e neoclássica, que náo teve nenhuma responsa- de Düsseldorf, mais liberais22 . Foram estas últimas que pn;valeceram sobre
bilidade nas desordens que ocorreram entre as duas guerras. Ele promove o Programa de Ahlen, mais social. Como ressalta Joachim Starbatty, o elo
um liberalismo organizado, que aceita um "Estado forte", mas imparcial, entre essas duas orientayóes (cristá e ordoliberal) é o princípio de subsidiari-
capaz de impor-se aos interesses privados coligados e fazer com que todos dade: "Deixamos a cada cidadáo;dentro dos limites do possível, a iniciativa
respeitem as regras do jogo da concorréncia. e a responsabilidade. Isso determina a tomada de decisáo descentralizada e
No plano histórico e prático, a "grande oportunidade" do ordoliberalismo a formayáo de rnn patrimOnio privado: os dois componentes da economia
foi a criayáo de uro Conselho Eco nO mico, ero 1948, junto as instancias de de mercado" 23 • O que torno u possível essa conciliayáo entre o cristianismo
ocupas:áo responsáveis pela política econümica, ap~entemente por insrigas:áo e o liberalismo foLo fato de que os objetivos sodais sáo dados como urna
de Ludwig Erhard. Esse conselho era dominado pelos ordoliberais. Erhard, consequéncia "jus~a'' de tuna competis:áo económica leal, assim como pelo
apresentado coro frequéncia como o "pai do milagre alemáo", foi, mais do fato de que esse neoliberalismo reprova a tradi-yáo hedonista anglo7saxá e
que um teórico, um prático da economia que se atinha as "necessidades do rei~indica para si' urna· "étíéa econ6mica'' inspirada em Kant.
sistema'' e rejeitava qualquer dirigismo econümico. Foi o artífice da reforma O Partido Social-Democrata Alemáo (SPD, na sigla alemá) fará sua
económica de 21 de junho de 1948 que criou o Deursche Mark. Pouco conversáo oficial a economia de mercado exatamente dez anos depois, em
tempo depois, liberou brutalmente os preyos. Foi ele também que conse- 1959, durante o Congresso de Bad Godesberg. Embora falasse de economia
guiu a lei "anticartel" de 195719 e decidiu no mesmo ano a independéncia de mercado "dirigida'', o SPD aderiu rapidamente a expressáo consagrada
do Bundesbank. Seu dogma era "concorrénda acima de tudo": ''Apoiar a Sozial Marktwirtschaft. Assim, os principais partidos de governo adotam a
economia concorrencial é um dever social", diz ele no best-seller La prospé- doutrina a partir dos anos 1960, da mesma forma que os sindicatos, já que
rité pour tou? 0 , fazendo eco a obra de uro discípulo de Walter Eucken que o poderoso Deutscher Gewerkschafi:sbund (DGB) declara sua adesáo a
publico u nos anos 1930 uro livro sobre "a concorréncia como dever social".
Erhard foi ajudado nessa "tarefa por homens meio teóricos e meio práticos, 21 De acordo com alguns testemunhos, Erhard teria lhe sugerido a expressáo em 1945.
Alfred Müller-Armack foi nomeado por Erhard "diretor para as questóes de prindpios"
do Ministério das Finan<¡as, cargo que em si já é um programa, passando em seguida
a secretário de Estado para os problemas europeus; nessa qualidade, participo u da
18
Sobre esse ponto, ver Michel Foucault, Naissance de la biopolitíque (Paris, Seuil/ redac;áo do Tratado de Roma no castelo de Val-Duchesse, nos arreciares de Bruxelas.
Gallimard, 2004). 22
Joachim Starbatty, "L'économie sociale de marché dans les programmes de la CDU/
19
Segundo Jean-Franc;ois Poncet, em La politíque économique de l'Allemagne occidentale CSU", em Les démocrates chrétiens et l'économie socia/e de marché (Paris, Economica,
(Paris, Sirey, 1970), p. 156, a lei de 1957 contra os monopólios é considerada urna 1988), p. 91. k interpreta<_;:óes do conceito de "economia social de mercado" dadas
a
"lei fundamental", o que no campo económico seria correspondente constituic;io. pela Uniáo Democrata Cristá refletem as tensóes programáticas entre dais textos
O aucor mostra que ela é fruto de um compromisso laborioso entre um patronato de referencia: um, o chamada Programa Ah/en, é influenciado pela doutrina social
pragmático, preocupado coma potencia económica, e um governo influenciadq pelo católica, enquanto o outro, intitulado Diretivas de Düsseldmf, é mais claramente de
ordoliberalismo. inspira<;:áo ordoliberal.
20
Ludwig Erhard, La prospérité pour tous (Pads, Plan, 1959), p. 113. 23
Ibidem, p. 92.
258 e A nova razáo do mundo As origens ordoliberais da construs:áo da Europa e 259

economia de mercado em 1964. Em vinte anos, o ordoliberalismo tornou-se "modelo de capitalismo" oposto aoque seria corrente nos países anglo-saxóes,
um "credo nacional", segundo a mareante expressáo de Franyois Bilger24 . ele mistura as contribuis;óes originalmente liberais com suas revisóes social-
A do u trina concretizo u-se em grande parte, mesmo que a politica social -democratas. A expressáo "economia social de mercado"- foi criada em 1947,
tenha sido mais "global" do que o previsto e a cogestáo das empresas tenha enquanto a expresSaO- ''modelo alemáo" surgiu mais tarde, nos anos 1970,
sido urna prática estranha ao programa ordoliberal. Este último deparou quando a social-democracia conseguiu fazer a política alemá pender a favor
com urna realidade social e histórica mais complexa, que exigiu concessóes dos assalariados e reorientá-la no sentido de um apoio conjuntural muito mais
sociais e políticas. Os democratas cristáos, no poder até meados dos anos ativo. Isso se traduziu em urna arnplias;áo das prestayóes sociais, urna política
1960, tiveram de conciliar-se com um Estado de bem-estar herdado da era redistributiva mais arnpla e wn peso cada vez maior dos impostas, alinhando
Bismarck e com urna classe operária muito organizada e poderosa durante a RFA aos outros países europeus em matéria de protes;áo social.
toda a fase de reconstruyáo industrial. A partir do fim dos anos 1960, o Um dos aspectos mais notáveis do "modelo alemáo" no plano social
"modelo alemáo" se "social-democratiza" e se "keynesianiza", durante é a importancia das relayóes negociadas entre patronato e sindicatos, que
o período em que o SPD ocupa o poder. Em 1967, alei da "promo~áo daes- limitarn as relas;óes de puro mercado entre empregadores e assalariados 29 • O
tabilidade e do crescimento da economia'' exemplifica essa conjunyáo ines- social-democrata Karl Schiller, que sucedeu a Ludwig Erhard, quis levar mais
perada de ardo liberalismo e a política conjuntural keynesiana 25 . De_ 1965 longe_ a "as:J-o concertada'' entre sindicatos, patronato e governo no que diz
a 1975, a "economia social de mercado" adquire urna imagem de "es- respeito a política social e salarial. Algumas leis simbolizarn essa "concertas;áo"
querda'' que, sem dúvida, está na origem da confusáo que o sentido da estruturada e institucionalizada: a lei de cogestáo (de 1976, que modifica
expressáo ganhará26 . a.de 1951) e a lei sobre o estatuto das empresas (de 1972), que regulam a
É importante náo confundirmos doutrina ordoliberal e "modelo alemáo" p~Íticipas:J-o dosirepreseri!antes dos trabalhadores nos conselhos de adminis-
de capitalismo. Num livro que teve grande repercussáo na Franya, no início tras;áo e vigilancia e nos conselhos eleitos das empresas. Essa patticipas;áo dos
dos anos 1990, Michel Albert contribuiu para propagar urna confusáo que assalariados no processo de decisáo das empresas é completada por convenyóes
já era comum na época entre "economia social de mercado" e "capitalismo coletivas, que no nível setorial e territorial dizem respeito a salários e tempo
renano", isto é, um modelo de capitalismo nacionalmente organizado27 .Albert de trabalho. Teoricamente, o Estado deixa sindicatos e patronato livres para
vé a economia social de mercado como um "conjunto compósito", no qual se negociar, conforme o princípio da autonomia dos parceiros. Como mostra
incluem as medidas de welfare e a cogestáo 28 • Em sua tentativa de construir um Peter Wagner, a lei estruturou essas relayóes e impüs a "paz social", vedando
o recurso a greve antes dos procedimentos de conciliayáo.
O fim dos anos 1970 na Alemanha, como em outros países, é um pe-
24
Frans:ois Bilger, "La pensée néolibérale frans:aise et l' ordolibéralisme allemand", em ríodo de questionamento da gestáo social e keynesiana do capitalismo. A
Patricia Commun (org.), L'ordolibéralisme allemand, aux sources de l'économie sociale
partir dos anos 1980, com a chegada ao poder da Uniáo Democrata Cristá
de marché (Cergy-Pontoise, Cirac/Cicc, 2003), p. 17.
25 (CDU, na sigla alemá), ocorre um "retorno as fontes" acompanhado de um
Nota-se que foi isso, sem dúvida, que os socialistas franceses tentaram reeditar no
fim dos anos 1990, quando quiseram introduzir urna flexibilidade co~juntural questionarnento do "desvio social da economia social de mercado", segundo
no Pacto de Estabilidade europeu. a expressáo utilizada por Patricia Commun30 . Esse retorno aos princípios do
26
A mudans:a foi de tal magnitude que, em 2004, o chanceler Schrüder reivindicava wna
economia social de mercado, ao passo que os democratas cristáos tinham tendéncia a
renegar urna nos:áo que se tornara demasiado próxima da imagem do Estado social. 29
Peter Wagner, "Le 'modele' allemand, l'Europe et la globalisation", Multitudes, v. 27,
Sobre todos esses pontos, ver Fabrice Pesin e Christophe Strassel, Le modele allemand n. 1, 1995; disponível em: <www.multitudes.net/Le-model<:-allemand-l-Europe-et-
en question (Paris, Economica, 2006), p. 14. la/>; acesso em: 28 fev. 2016.
17
Michel Albert, Capitalisme contre capitalisme (Paris, Seuil, 1991). ·'
0
Patricia Commun (org.), L'ordolibéralisme allemand, aux sources de l'économie sociale
28
lbidem, p. 138. de marché, cit., p. 9.
260 ~ A nova razáo do mundo As origens ordoliberais da constrw;:áo da Europa " 261

ordoliberalismo significa que os progressos sociais devem ser vistos, dali em crescimento e emprego na Alemanha, ao mesmo tempo que a construyáo
diante, como efeitos da ordem concorrencial e da estabilidade monetária, europeia é vista como urna das "alavancas" que permitiráo- reimportar para a
e náo como objetivos em si mesmos. própriaAlemanha os princípios concorrenciais do ordoliberalismo. A globa-
a
lizayáo é dada como grande limitayáo que condena a Alemanha e a Uniáo
Europeia a aumentar a flexibilidade, a aliviar o custo salarial das empresas32 •
A constru~ao da Europa sob influencia A história das relayóes entre oordoliberalismo e a: construyáo europeia
É nesse contexto que devemos compreender como o ordoliberalismo, é urna questáo complexa. Ela vai, em cerca de quarenta anos, da resisténcia
verdadeira "tradiyáo onúra" da Europa, val tornar-se a doutrina de referén- dos ordoliberais a urna conquista ideológica bem-sucedida., Desde o início,
cia das elites governamentais da Uniáo Europeia a partir dos anos 1980, os ordoliberais, teóricos o u práticos (como Erhard), manifestaram desconfian-
com algumas ressalvas aqui e ali, em particular na Franya. No caso francés, ya com relayáo aoque pudesse parecer controle administrativo e planificayáo
devemos desconfiar de certo reflexo nacionalista que atribui Alemanha a económica. Tuda que era oriundo da Franya, allás, parecia cheirar a um
a responsabilidade por um cresdmento baixo e um desemprego alto, em dirigismo intolerável. Assim, quando Konrad Adenauer submeteu o plano
consequéncia de seu apego a urna moeda forte. Na realidade, náo foi a Schuman sobre a Comunidade do Carvao e do A<;o a Wilhelm Ropke em
poténcia económica alemá que impós seu "modelo renano" de capitalismo, 1950, _este lhe envio u um bilhete desaconselhando-o vivamente a ampliar essa
a
mas foram as autoridades europeias que deram construyáo da Europa perigosa iniciativa a outros setores, porque devia-se evitar "pór a economia
uma lógica largamente influenciada pelo ordoliberalismo. Aliás, notaremos europeia sob a tutela de urna planificayáo onipotente" 33 • Erhard, no Ministério
que o "modelo alemáo" de capitalismo nacionalmente organizado é pasto . das. Finanyas, em.·seu desejo de limitar o suposto dirigismo dos franceses,
em questáo precisamente pela unificayáo europeia, nem que seja porque a
opÓs-se política de Jean Monnet e daA!taAutoridade de Luxemburgo, que
o "diálogo social europeu" está multo longe das regras extremamente for- visava a estender a outros seto res as colaborayóes económicas administradas.
malizadas e restritivas da "ayáo concertada''. Podemos até mesmo afirmar A estratégia do governo alemáo consistia em integrar a economia do país
que a transferéncia da negociayáo social para o nível europeu, bem como num sistema de livre traca mundial. O mercado comum europeu náo devia
para o nível infranacional, é um meio de o patronato alemáo se livrar das ser concebido como urna fortaleza, mas como urna etapa nesse caminho.
limitayóes da negociayáo nacional, tais como foram estabelecidas numa Em malo de 1955, num texto intitulado "Considerayóes sobre o pro-
fase anterior da relayáo de foryas entre patronato e assalariados. Mais ainda, blema da coopera<;ao o u da integra<;ao", Ludwig Erhard diz que a Europa
coma integrayáo europeia fazendo-se cada vez mais pela concorréncia entre a a
devia visar "integrayáo funcional", isto é, liberalizayáo generalizada da
sistemas institucionais (como veremos adiante), em nome do prindpio do circulayao de bens, serviyo e capitais, e aconvercibilidade das moedas, e náo
"reconhecimento mútuo" 31 , a própria ideia de autonolnia da concertayáo a "criayáo de instituiyóes sempre novas". Na realidade, o governo alemáo
nacional é posta em questáo pela "desregulamentayáo competitiva''. estava dividido entre os federalistas e os ordoliberais. Os primeiros visa-
Outra curiosidade é o fato de que essa referéncia ao "modelo alemáo" varo a urna unificayáo política que passava por urna integrayao económica
acorre no momento em que ele é questionado tanto pelos demacraras "cristáos
quanto pelo SPD, e isso em nome da necessidade de reformas estruturais 32
Como diz Hans Tietmeyer, ex-presidente do Deutsche Bundesbank, "a globalizac;:áo
europeias. Mais espantoso ainda é que se rente estender a toda a Europa a recompensa quem é flexível e pune a falta de flexibilidade". Ver Hans Tietmeyer,
rigidez oryamentária e monetária que mostrou sua ineficácia em termos de Économie socia/e de marché et stabilité monétaire (Paris, Economica/Bundesbank,
1999), p. 81.
33 Wilhelm ROpke, citado em Andreas Wilkens, "Jean Monnet, ,Konrad Adenauer et la
31
De acordo com esse prindpio, que se aplica tanto aos produtos como aos diplomas, politique européenne de l'Allemagne.fédérale. Convergences et discordances (1950-
tuda que é permitido num país deve ser permitido nos demais países da Uniáo -1957)", em Gérard Bossuat e Andreas Wilkens (orgs.), ]ean Monnet, l'Europe et les
Europeia. chemins de la paix (Paris, Publications de la Sorbonne, 1999), p. 154.
262 ~ A nova razáo do mundo k origens ordoliberais da construqáo da Europa ~ 263

progressiva; os segundos optavam por urna economia de mercado europeia horizontal e "funcional", repousando sobre as quatro liberdades económicas
e urna imegra'fáO no grande mercado mundial. fundamentais e o princípiu de concorrencia livre e náo desvirtuada. Erhard
O mercado comum de 1957 é resultado, na verdade, de um duplo saia vencedor, embora Monnet e o federalistas pensassem ter levado a partida.
compromisso entre a Franya e aAlemanha e entre tendéncias internas dogo- ParaErhard, como ele-p-f6prio disse após a conferencia de Messina em 1955,
verno alemáo. A Franya conseguiu o estabelecimento de políticas comuns- a cooperayáo europeia deveria acorrer dentro de um "sistema de economias
como a política agrícola, aqual continua apegada até hoje, considerando-a livres" e os únicos órgios supranacionais concebíveis deveriam ser "órgáos
urna das principais conquistas comunitárias. Também obteve certos alinha- de vigiláncia para garantir que os Estados nacionais respeitem as regras do
mentos sociais, em particular em relayáo alicenya dos assalariados, a urna jogo que estabeleceram previamente" 36 •
tarifayáo externa comum bastante elevada (contra a opiniáo dos alemáes) O tratado que instituía a Comwüdade Económica Europeia pode parecer
e a urna espécie de preferencia pela importayáo proveniente de colónias como um compromisso entre a exigencia de políticas comuns (agricultu-
ou ex-colónias. Como sabemos, a lógica da posiyáo francesa consistiu, ra, transporte) e medidas que visam a criar um livre mercado de pessoas,
além das vantagens que queria preservar para seus agricultores, em dotar mercadorias) serviyos e capitais. Entretanto, o mercado comum tem um
o conjunto europeu de forya suficiente para garantir sua independencia estatuto estranho. Essa "comunidade económica europeia'' é urna "comu-
em relayáo aos "blocas". nidade" entrevárias outr<is (carváo e a~o) energia atómica, agricultura), mas
Mas o Tratado de Roma nasceu também de um compromisso interno ela também as engloba, submetendo-as a um prindpio geral, do qual seráo
do governo alemáo entre a corrente federalista (Etzel) e a corrente ordoli- ·_ apenas parte o u exceyáo. O princípio da concorrencia insere-se nisso como
beral (Müller-Armack). De um lado, preconiza-se urna amplia<;áo setorial; un: prindpio esq:uturante: o tratado estabelece um "regime que assegura
de outro, urna "integrayáo funcional" dos mercados. Esse compromisso qu~ a concorr~nCia náo se) a desvirtuada no mercado comum".
foi selacio simbolicamente na casa de campo de Alfred Müller-Armack
em 22 de maio de 1955, ande se encontraram os representantes das duas
corremes34 . Poi com base nesse compromisso entre os líderes alemáes 35 Rumo aconcorrencia entre legisla~óes?
que foram preparados os dais tratados de Roma assinados no mesmo dia Os grandes princípios ordoliberais encontram-se em ayáo na lógica euro-
sobre o mercado comum e comunidade de energia atómica. Evitando a peia de constitucionalizayáo da ordem liberal, na aplicayáo estrita da política
criayáo de órgáos administrativos supranacionais, exceto no caso da ener- de concorréncia, bem como na independencia do Banco Central Europeu.
gia, a Alemanha assegurou o exito de sua concepyáo de urna integrayáo Poderíamos encontrá-los hoje ainda numa política favorável a ampliayáo
da Uniáo Europeia e na defesa da livre traca mundial, orientayóes que sáo
34
Andreas Wilkens descreve esse epis6dio da seguinte maneira: "Houve acordo, de um como réplicas dos combates que os líderes políticos alemáes travaram em
lado, quanto a aceitaqáo do princípio de criaoyáo de um ''mercado comwn de livre favor da adesio da Grá- Bretanha, da reduyio da tarifa externa comum e da
traca'' em etapas sucessivas, dentro do qual deveria ser assegurada a livre circulaqáo de participayio no grande mercado mundial.
pessoas, bens, serviqos e capitais, e, de outro, quanto aparticipaqáo no projeto de urna
Esses princípios também se encontram em ayio na ap.licayáo de regras de
comunidade europeia no campo da energia at6mica e- como concessáo suplementar
do Ministério Federal da Economia aos amigos de Monnet- quanto acriac;:áo de um disciplina cujo intuito é limitar a ayáo oryamentária dos governos e, ainda
fundo europeu destinado a apoiar os investimentos produtivos dos paises da comuni- mais amplamente, na desqualificayáo da política conjuntural em proveito
dade. O fato de que Müller-Armack tenhaaderido, em urna etapa anterior, ao princípio da política de "reformas estruturais": flexibilizac;:áo do mercado de traba-
de um mercado comum estruturado institucionalmente teve um papel importante na
lho e "responsabilizayáo individual" em matéria de educayio, poupanya e
obtenc;:áo desse compromisso". Andreas Wilkens, "Jean Monnet, Konrad Adenauer et
la politique européenne de l'Allemagne fédérale", cit., p. 181.
35 Deve-se notar que o SPD se alinhou ao federalismo de Jean Monnet e a seu Comité % Ludwig Erhard, citado em Andreas Wilkens, "Jean Monnet, Konrad Adenauer et la
de Aqáo para os Estados Unidos da Europa. politique européenne de l'Allemagne fédérale", cit., p. 186.
264 ., A nova razáo do mundo As origens ordoliberais da constrm;áo da Europa " 265

proteyáo social. Hans Tietmeyer trayou a linha de conduta ordoliberal que a em matéria de política de concorréncia, a qual, desde o Tratado de Roma
Europa deveria seguir, antecipando em suas intervenyóes escritas e orais e seu Artigo 3, está no cerrie da construyáo europeia39 • Todos os objetivos
a "Esttatégia de Lisboa'' formulada em 2000. Segundo ele, o imperativo estabelecidos estáo _liga??s_ a essa primazia: alocayáo ódma dos recursos,
consiste em limitar os esforyos de distribuiyáo e proteyáo que impedem a queda dos preyos, inovayáo, justiya social, funcionamento descentralizado,
economia e o progresso social. O argumento do- subemprego na Europa abertura das economias nacionais, rudo é visto ou como causa ou como
náo deve mais servir para beneficiar gastos públicos e criayáo de moeda. A efeito da ordem concorrencial que a-Comissáo persegue40 •
seguranya é o emprego de cada um, náo o auxílio social37 • A Comissáo dispóe de um poder excepcional, apesar de perfeitamente
O neoliberalismo europeu construiu-se e difundiu-se, assim, via constru- conforme com a lógica ordoliberal, que consiste em dar a urna instincia
yáo europeia, verdadeiro laboratório em grande escala do ordoliberalismo dos "técnica" situada acima dos governos o poder de impar as "regras do jogo".
anos 1930. Poderíamos argumentar, é claro, que os princípios ordoliberais É em conformidade com essa lógica do "governo pelas regras" que a direyáo-
tiveram de conciliar-se com lógicas sociais, nacionais e políticas heterogéneas, -geral da "Concorréncia'' da Comissáo Europeia faz seu trabalho de vigi-
mas foram eles que prevaleceram cada vez mais, como mostra melhor do láncia e sanyáo de acordos, abusos de posiyáo dominante e concentrayóes.
que tudo o Tratado Constitucional e sua tentativa de constitucionalizar a É ainda em conformidade com essa lógica que a Comissáo toma medidas
econornia de mercado. preventivas que lhe permitem, por exemplo, proibir urna fusáo que julgue
A derrota do gaullismo e de suas escolhas estratégicas (política estran- náo conforme com· seus princípios, o que dá as autoridades europeias wn
geira de rejeiyáo de blocas, independencia militar por meio do armamento ·_poder de vigilincia e controle sobre as estruturas da economia41 •
nuclear, modelo "político" de construyáo da Europa das nayóes e pátrias)-~ 8 é ··A Comissáo também supervisiona as ajudas do Estado e os aportes
um faro assumido nos anos 1970 por Valéry Giscard d'Estaing e Raymond de ~apitais públiC.os que, ·~m certos casos, podern-·ser interpretados como
Barre. A adesáo de Jacques Chirac- em outubro de 2005 "economia sociala subvenyóes; é ela também que os autoriza, concedendo derrogayóes. Isso
de mercado", quatro meses após fracassar na ratificayáo do tratado, traduz é urna espécie de "política industrial" que é ao mesmo tempo urna náo
simbolicamente o desmoronamento definitivo de urna construyáo política política, porque é determinada de acordo corn regras, náo de acordo com
da Europa ala ftanraise. Vimos também que essa dorninayáo foi resultado jim, como faz a política norte-americana ~ que, desse ponto de vista, é
do fracasso da "social-democracia" europeia e de sua adesáo ao modelo rnuito mais "utilitarista", isto é, menos formalista. Essa política é muito
neoliberal, mediante alguns ajustes sociais. precisamente urna política de quadro: ela dá a Comissáo urn grande poder
A forya do modelo ordoliberal é particularmente evidente em matéria de interpretayáo sobre a natureza legítima ou náo da ajuda, wn poder que
de política monetária. Articulada aos "critérios de Maastricht", a linha se- é simultaneamente de tipo administrativo (investigayáo, processo, aplica-
guida em teoria proíbe qualquer regulayáo da conjuntui-a como auxílio dos yáo de sanyóes) e de tipo judicial, já que é ela que julga e aplica as sanyóes.
instrumentos monetário e oryamentário, isto é, a policy mix de inspirayáo Sem ser táo independenre quanto o Serviyo de Controle de Cartéis alemáo
keynesiana. A ideia tipicamente ordoliberal de Tietmeyer, segundo a qual a (Bundeskartel!amt), a comissáo afirma a superioridade do direito de con-
estabilidade dos preyos é um "direito fundamental do cidadáo", tórnou-se corréncia sobre qualquer outra considerayáo, em particular social e política.
wna convicyáo compartilhada. Essa lógica doutrlnal também é incontestável Essa supremacia jurídica ocasiona inúmeros problemas. Por exemplo, o

37 39 Fabrice Fries, Les grands débats européem (Paris, Seuil, 1995), p_. 186.
Hans Tietmeyer, Économie sociale de marché et stabilité monétaire, cit., p. 39.
4
-08 De Gaulle sempre criticou urna Europa composta por mercados dirigida por "um u Fries mostra que essa política de "concorrenda pma" é formal, e mesmo formalista,
areópago tecnocrático, apátrida e irresponsável" e ptonunciou-se a favor de urna em oposic;:áo a prática norte-americana mais "substantiva'' que admite as "efficiency
"coopera¡;:áo organizada dos Estados que, sem dúvida, evoluiria para urna confede- excuses", o u o que poderíamos chamar de exceróes por motivo de ejiciincia.
41
ra¡;:áo" (entrevista coletiva, 9 set. 1965). Fabrice Fries, Les grands débats européem, cit., p. 192.
266 Q A nova razáo do mundo k orlgens ordoliberais da construc;áo da Europa " 267

problema extremamente complexo da análise dos mercados: o que é urna que parece se esboyar hojeé urna espécie de mutardo decertas correntes do
posiyáo dominante? Ela é ern si um obstáculo a concorréncia? Qual é a ordoliberalismo, revelando Urna convergéncia cada vez maior entre as duas
escala adequada de análise: um país, a Europa, o mundo? Parece bastante "estirpes" principais ~o ne?liberalisrno: a alemá e a austro-americana.
evidente que, na fase de globalizayáo-concentra~~o de _capital, os critérios Essa mutayáo corresponde ao desejo de algumas corren tes de retornar
ordoliberais de urna "econornia humana", formada de pequenas e rnédias as fontes do neo liberalismo europeu, o u até rnesrno de radicalizá-lo, a fim
empresas, sáo urn mito largamente ultrapassado. de derrabar aquilo corn que foi _necessário transigir: o Estado social, os
Mas, se existe um domínio ern que a Cornissáo parece ser de urna fide- serviyos públicos fornecedores de bens sociais e o poder sindical43 • Aliás,
lidade quase absoluta a do u trina ordoliberal, esse domínio é o dos "serviyos parece que a concepyáo "estática" e estatal dos ordoliberais da primeira
económicos de interesse geral", que também devem subrneter-se a regra gerayáo foi superada pela concepyáo dinámica e evolucionista dos "neo-or-
suprema da concorréncia, porque, por definiyáo, o direito de concorréncia doliberais" da segunda gerayáo, sendo que urna das principais preocupayóes
é superior a qualquer outro42 . O que aconteceu com os transportes, as des tes diz respeito a integrayáo europeia- que eles gostariam de realizar
telecomunicayóes, a energia e os correios é urna ilustrayáo perfeita disso. pelo princípio da concorréncia entre sistemas. Em outras palavras, ern vez
Nesse quesito, a Europa se conforma ao ideal do "consurnidor-rei", que deve de construir um quadro por interrnédio da legislayáo, gostariarn que esse
sernpre poder escolher a empresa que lhe prestará serviyo. quadro fosse produto da concorréncia entre sistemas institucionais.
Hoje, a Europa expandida vai ainda mais longe na lógica da concorrén- A deslocalizayáü', a migrayáo de trabalhadores e as mudanyas de residéncia
cia, a ponto de o velho ordoliberalismo, tal como foi inserido nos tratados, s_áo os vetores da nova integrayao europeia por meio da concorréncia. O
parecer dominado por concepyóes "ultra". Parece tornar forma urna lógica Ctü~rio do "país d.~ origem", contrário ao de destinayáo, aparece corno fun-
rnais radical, base<ida na concorréncia entre os próprios sistemas institucionais, damental, porqu~ é por es~-e viés que se consegue estabelecer a concorréncia
quer se trate de impostas, proteyáo social, quer se trate de ensino. O que é entre as regulamentac;:óes nacionais e chegar a urna harmonizac;:io náo mais
chamada, criticarnente, de "dumping social e fiscal" náo entra no ámbito da prévia a troca, mas posterior a ela, urna harmonizac;:áo que provém náo de
crítica liberal da distoryáo da concorréncia, e se os subsídios do Estado sao cima, mas de baixo, pelo livre jogo dos mercados. O árbitro final é o consu-
proibidos, isso náo vale para a reduyáo dos impostas sobre as empresas, que midor dos regulamentos e das instituic;:óes, por assim dizer44 . Essa harmoni-
visa a atrair capital de investido res o u poupadores de países vizinhos. Desse zayáo pela concorréncia deve operar-se nos serviyos públicos e nos sistemas
ponto de vista, a Irlanda mostrou o caminho. Todos os países europeas, de impostas e seguridade social, tanto na legislayáo comercial e financeira
ern particular os novos membros, lanyaram-se nessa nova etapa da "ordem
concorrencial", que aparece corno urn rneío privilegiado no que diz respeito
43
Patricia Commun fala a esse respeito de urna "nova economia social de mercado", lUna
aintegrayáo económica. economia sem dúvida muito distante dos sonhos de renovac;áo de umJacques Delors.
É corno se as transformayóes que afetaram mundialmente a gestáo do Ver Patricia Commun (org.), L'ordolibéralisme allemand, aux sources de l'économie
capitalismo a partir dos anos 1970 e 1980 tívessern induzido urna inflexáo sociale de marché, cit., p. 11. Ver também idem, "Faut-il réactualiser l'ordolibéralisme
do neoliberalismo europeu, invertendo os termos que o individuafizavam: allemand? RéRexlons sur la dimension historique, philosophique et culturelle de la
pensée économique allemande", Allemagne d'Aujourd'hui, n. 170, 2004. A autora
náo rnais estabelecer a ordem da concorréncia pela legislayáo europeia,
evoca a tentativa de retorno :ls fontes dos que se uniram na Initiative Neue Soziale
mas estabelecer a legislayáo europeia pelo livre jogo da concorréncia. O Marktwirtschafi:. Esses novas neoliberais redefinem o "sqcial" do seguinte modo: "É
social aquele que mostra iniciativa pessoal e responsabilidade, qualidades essenciais
para urna verdadeira solidariedade".
42 44
Desse ponto de vista, o compromisso do "minitratado simplificado" náo muda Segundo urna observac;áo de Laurence Simonin, "a possibilidade de emigrar dá um
estritamente nada. Em ceno sentido, a formulayáo utilizada- a concorréncii como poder suplementar aos cidadáos, já que é mais do que suficiente que urna ameaya de
"objetivo" e náo mais como "principio" - só torna ainda mais patente a dimensáo emigrac;áo leve adisciplina de um governo". Ver Laurence Simonin, "Ordolibéralisme
construtivista da iniciativa dos dirigentes europeus. et intégration économique européenne", cit., p. 66.
268 .. A nova razáo do mundo fu origens ordoliberais da constrw;:áo da Europa • 269

como no direito trabalhista45 . Para essa nova gera¡;áo de ordoliberais, ainda Essa evoluyáo, se de fato se verificasse, lanyaria urna luz singularmente
restam muitos obstáculos, alguns dos quais erguidos pela própria Comissáo · crua sobre o ideal de urna "sodedade de direito privado", como foi desde o
quando quis estabelecer regras sodais uniformes, como aconteceu nos anos princípio o ideal do neoliberalismo (Bohm retomado por Hayek): os Esta-
1980. É preciso, portanto, que a Comissáo fixe regras de jogo mais claras, que dos terem de aplicar a si r;nesmos as regras do direito privado encontra urna
permitam essa concorréncia entre sistemas e regulamentos, generalizando o forma de realizayáo nessa pro posta de fazer do prindpio da concorréncia o
prindpio do "país de origem" e o do "reconhecimento mútuo" e deixando prindpio da harmonizayáo das legislayóes nacionais, lago, o prindpio da
que os agentes económicos arbitrem livremente entre os sistemas por sua elaborayáo da própria legislayáo europeia. Essa tendéncia indica desde já
inteira mobilidade. Para eles, esse é o único meio de evitar que a Europa que, dentro do próprio neoliberalismo europeu, certas foryas pretendem
continue a ser um "cartel de Estados de bem-estar". esvaziar a democracia liberal de toda a sua substáncia, retirando dos poderes
Para esses "neo-ordoliberais", é importante que "o estabelecimento dessa legislativos suas principais prerrogativas. No entanto, podemos prever que
concorréncia entre jurisdiyóes seja consagrado numa constituiyáo europeia da esse pro jeto encontrará resisténcias dentro das próprias instincias euro pelas,
liberdade" 46 • A expressáo, que obviamente remete a Hayek, parece indicar a
em particular da parte dos que continuam aferrados especificidade "euro-
urna aproxima¡;áo decisiva entre as variantes alemá e austro-americana do pela" do ordoliberalismo. A crise financeira que é:omeyou em 2007, e já teve
neoliberalismo. Seja como for, essa oriema¡;áo radical evidencia a direyáo como primeiro efeito agitar as linhagens dentro do próprio neoliberalismo
que a Europa tomou soba conduyáo da Comissáo a partir dos anos 1990. político, poderia multo bem devolver um brilho inesperado as velhas fór-
Foucault acertou quando identificou no ordoliberalismo essa ambiyáo ~ulas da tradi<;:áo mais clássica do ordoliberalismo.
muito original, e até mesmo excepcional, de legitimar instituiyóes políticas
exclusivamente sobre a base dos princípios económicos do livre mercado. Há
wna relayáo de homologia entre a reconstruyáo alemá- o mito do "ano zero"-
e o mito da Europa como "tabula rasa" das instituiyóes políticas existentes.
Construir um edifício político mínimo sobre a base da economia de mercado
e da concorréncia mediante a instaurayáo da constituiyáo económica aparece
como a principal mola do sucesso do ordoliberalismo. Contudo, enquanto
o primeiro ordoliberalismo procurava enquadrar o mercado por meio de
leis feitas pelos Estados e pelas instáncias euro pelas, o novo ardoliberalismo
procura fazer do próprio mercado o prindpio de seleyáo das leis feitas pelos
a
Estados. Por essa ética, o papel da Comissáo Europeia se 'reduziria sanyáo
da arbitragem decidida pelo mercado em matéria de legislayáo- o que teria,
na opiniáo dos novas ordoliberais, a vantagem de frear o ativismo regulató-
rio excessivamente zeloso que essa instáncia demonstrou no passado. besse
modo, instaurar-se-la urna legislayJ_o europeia que acabarla por impar-se aos
próprios poderes legislativos- nacionais e europeus- de forma tanto mais
indiscutível porque se consagrarla pelo veredito do mercado.

45
Ibidem, p. 85.
46
Citado em ibidem, p. 84.
8
O GOVERNO EMPRESARIAL

Por razóes contrárias, tanto os "liberais" como os "antiliberais" parecem


sempre ratificar a separayáo tradicional entre a esfera dos interesses privados
e a do Estado, como se a primeira pudesse funcionar de forma autónoma e
autorregulada. É assim que a crítica "antiliberal" continua a cair na arma-
-qilha da represe-',ltayáo que faz do mercado um sistema fechado, natural e
a
~terior sociedade· política. Mais ainda, essa interpretayáo do neolibe-
ralismo como puro laissezjaire permitiu que urna "esquerda· moderna'' se
a
apresentasse como alternativa direita neoliberal, unicamente pelo fato de
que a:firrnava pretender dar um "quadro sólido" aeconomia de mercado. Foi
assim também que se perpetuou o erro de diagnóstico histórico cometido
por Polanyi quando acreditou que o retorno do Estado significava o fim
definitivo da utopia liberal.
De fato, as grandes ondas de privatiza~áo, desregulamenta~áo e dimínui-
~áo de impostas que se espalharam por todo o mundo a partir dos anos 1980
a
deram crédito ideia de um desengajamento do Estado o u, pelo menos, do
fim dos Estados-na~óes liberando a a~áo dos capitais privados nos campos
regidos até entáo por princípios náo mercantis.
No entamo, há muito tempo a fábula da imaculada concep~áo do
mercado espontineo e aut6nomo foi posta em dúvida. Pode causar espanto
que a mesma constata~áo se repita várias décadas depois: o que agrada a
alguns chamar de "livre mercado" está ligado a um mito que, embora tenha
efeitos de altíssimos riscos, ainda assim está muito distante das práticas reais.
Ern 1935, nurn texto curto e notável ("Le New Oeal perrnanent"), Walter
Lippmann explicava nos seguintes termos a perda de autoridade da cren~a
na autorregula~áo dos mercados:
272 @ A nova razáo do mundo O governo empresarial o 273

Os que pregam esse evangelho náo o praticam. Essa náo é mais a regra de O Estado foi reestruturado de duas maneiras que tendemos a confundir:
sua conduta. Eles sustentam tenazmente que a economia é automaticamente
de fora, com privatizayóes macic;:as de empresas públicas que póem_ fim
autorreguladora, que o livre jogo da oferta e da demanda regulará a prodU<;:áo
ao "Estado produtor", mas também de dentro, com a 'instaurac;:áo de um
e a distribuiyáo da riqueza de forma mais eficaz do que urna gestáo e urna
administra<;:áo conscientes e concertadas. Na prátiq_, poré.IJl, eles quase nunca Estado avaliador e regulador que mobiliza novas insrrümentos de poder -e,
aplicam esse prindpio. Os que mais insistem no ideal do laissezjaire s:io os com eles, estrutura novas relayóes entre governo e sujeitos sodais4 •
mesmos que, por meio de direitos aduaneiros e combina<;:óes, organizaram A principal crítica que se faz ao Estado é sua falta global de ejicácia e
a vida industrial do país em sistemas de empresas submetidos a um controle produtividade no :llnbito das novas exigéncias impostas pela globaliza<;:áo:
altamente centraHzado. Na maneira como expressam sen pensamento, sáo
ele custa caro demais em comparayáo com as vantagens que oferece a cole-
livre-cambistas. Em sua prática real, suspendem o livre jogo da oferta e da
procura e, sempre que possível, substiruem-no pela gestáo consciente
tividade e póe entraves a competitividade da economia. _É, portanto, a uma
da produt;:áo e pela determina<;:áo administrativa dos pre<;:os e dos salários. 1 análise económica que se deseja submeter a ac;:áo pública para discriminar
náo apenas as agendas e as náo ágendas, mas a própria maneira de realizar
Assim, a partir dos anos 1930, parecia que a questio náo se colocava
as agendas. Esse é o objetivo da linba do "Estado eficaz", ou do "Estado
mais nos termos da alternativa simplista entre o mercado autorregulador e
gerencial", tal como este comec;:a a se construir a partir dos anos 1980. Tanto
a intervenyáo do Estado, mas tratava da natureza da intervenyáo governa-
a direita neo liberal como a esquerda moderna admitiram na prática que o
mental e seus objetivos. Segundo Lipp~ann, "a verdade é que, no Estado
governo náo podía se desinteressar pela gestáo da populac;:áo no que diz
moderno, mesmo urna política de laíssezfaire deveria ser administrada de
respeito a seguranc;:a, saúde, educac;:áo, transporte, moradia e, obviamente,
forma deliberada, mesm9 o livre jogo da oferta e da demanda deveria ser
- ·e~prego. E menos ainda na medida em que a nova norma mundial da con-
mantido de forma deliberada" 2 • Náo é inútil ressaltar que essa constatac;:áo
co;réncia exige <fue os dis.positivos administrativos e sociais custem menos
é a mesma que James K. Galbraith faz em The Predator State (2008). A
e se orientem sobretudo para as exigéndas da competic;:áo eConómica. A
chamada economía de mercado, diz ele, náo poderla funcionar sem a densa
diferenc;:a que essas políticas querem introduzir reside na eficiéncia dessa
rede de dispositivos sociais, educacionais, científicos e militares herdados dos
gestáo e, por conseguinte) no método que se deve empregar para fornecer
períodos anteriores do capitalismo norte-americano, o que ele denomina,
a
bens e serviyos populayáo. Quando essa gestáo fica nas máos da adminis-
com uma expressáo curiosamente muito semelhanre de Lippmann, "thea trac;:áo pública, ela contraria- segundo as "evidéndas" da nova ortodoxia- a
enduríng New Dea/" 3•
a
lógica de mercado quanto ao papel dos preyos e pressáo da concorrenda.
Náo basta constatar a continuidade da intervenc;:áo do Estado, ainda é
Esse é o fundamento da posic;:áo antiburocrática da frac;:áo "modernista'' dos
preciso analisar de perro seus objetivos e os métodos que emprega. Muito
dirigentes da administrayáo do Estado e de seus especialistas. O desprezo
frequentemente esquecemos que o neoliberallsmo náo procura tanto a
pelos agentes de base dos serviyos públicos, os baixos salários pagos a eles,
"retirada" do Estado e a ampliayáo dos domínios da acumulac;:áo do capi-
a
mas também a falta crónica de meios e pessoal disposiyáo desses mesmos
tal quanto a transformaráo da ardo públíca, tornando o Estado urna esfera
serviyos, sem falar das campanhas midiáticas contra a gestáo burocrática e
que também é regida por regras de concorréncia e submetida a exigéncias
o "peso dos impostas", contribuíram muito para a desvalorizac;:áo daquilo
de eficácia semelhantes aquelas a que se sujeitam as empresas privadas.
que dependia da ayáo pública e da solidariedade social. O paradoxo é que

1
Walter Lippmann, "The Permanent New Deal", em The New Imperative (Londres, 4
Macmillan, 1935), p. 43-4. Sobre esse ponto, ver as observayóes de Desmond King, "Une nouvelle conception
2
de l'État: de l' étatisme au néolibéralisme", em Vincent Wright e Sabino Cassese
Ibidem, p. 47.
(orgs.), La recomposition de l'État en Europe (Paris, La Découverte, 1996); sobre a
3
James K Galbraith, The Predator State. How Conservatives Abandonned the Free Market dimensáo estruturante do instrumento, ver Pierre Lascoumes e Patrick le Gales
and Why Liberals Should Too (Nova York, The Free Press, 2008). (orgs.), Gouverner par les nor.mes (Paris, Presses de Sciences Po,. 2007).
274 " A nova razáo do mundo O governo empresarial o 275

muito frequentemente essa difamayáo convinha a urna parte das elites mercado concorrencial para o setor público, no senti4o mais amplo, até
administrativas, que descobriram nela urna maneira de reforyar seu poder que o exercício do poder· governamental fosse pensado de acordo com a
no campo burocrático. Mas foi sobretudo a concepyáo da ayáo pública que racionalidade da empresa. Podemos perceber que a éxpressáo "mercado
mudou sob o efeito da lógica da co_mpetiyáo mundial. Embora o Estado institucional" torn~~~se particularmente ambígua com o passar. do tempo:
seja visto como o instrumento encarregado de reforffiar e administrar a náo se tratava mais apenas de urna instituiyáo política do mercado, mas, por
sociedade para colocá-la a serviyo das empresas, ele mesmo deve curvar-se inversáo, de urna mercadorizaráo_da-instituiráo pública abrigada a funcionar
as regras de eficácia das empresas privadas. de acordo comas regras empresariais. Desse ponto de vista, o neo liberalismo
Essa vontade de impor no cerne da ayáo pública os valores, as práticas e o sofreu urna inflexáo prática muito clara, que podemos .identificar como
funcionamento da empresa privada conduz a instituiyáo de uma nova prática urna autorreflexáo da lógica da conCorréncia que o poder público pretendía
de governo. Desde os anos 1980, o novo paradigma em todos os países da construir. A evoluyáo dos últimos vinte anos acabou mostrando que Léon
OCDE determina que o Estado seja mais flexível, reativo, fundamentado Walras estava errado: para ele, "o princípio da livre concorréncia aplicável
no mercado e orientado para o· consumidor. O management apresen ta-se a produyáo das coisas de interesse privado náo é mais aplicável a produyáo
como modo de gestio "genérico", válido para todos os dominios, como das coisas de interesse público" 6• Era exatamente isso que os partidários da
urna atividade puramente instrumental e formal, transponível par~ todo nova-"governanya'; pretendiam fazer. Desse ponto de vista, o neo liberalismo
o setor público 5• Essa mutayáo empresarial náo visa apenas a aumentar a político sofreu urna radicalizayáo quando enxergou a concorrencia como o
eficácia e a reduzir os custos da ayáo pública; ela subverte radicalmente os instrumento mais eficiente par·a melhorar o desempenho da ayáo pública.
fundamentos modernos da democracia, isto é, o reconhecimento de direitos
sociais ligados ao status de cidadáo.
Essa reduyáo da intervenyáo política a urna interayáo horizontal com Da "governan<;a de empresa" a"governan<;a de Estado"
atores privados introduz urna mudanya de perspectiva. Náo é mais, como A mudanya na concepyáo e na ayáo do Estado imprimiu-se no voca-
nos tempos dos primeiros militaristas, apenas a questáo geral da utilidade de bulário político. O termo "governanya'' tornou-se palavra-chave da nova
sua ayáo que se coloca ao Estado, mas é a questáo da medida quantijicada norma neoliberal, em escala mundial. A própria palavra "governanya"
de sua ejicdcia comparada coma de outros atores. É essa nova concepyáo "desen- (gobernantia) é amiga. No século XIII, designava o fato e a arte de governar7 •
cantada'' da ac;:áo pública que leva a ver o Estado como urna empresa que se Durante o período de constituiyáo dos Estados-nayóes, o termo desdobrou-
situa no mesmo plano das entidades privadas, um "Estado-empresa'' que tem -se progressivamente nas noyóes de soberania e governo. Reincorporado a
um papel reduzido em matéria de produyáo do "interesse geral". Em outras língua francesa pelo presidente senegalés Léopold Sédar Senghor no fim
palavras, supondo-se que o mercado náo gera urna hirmonia natural dos do século XX, recuperou o vigor nos países anglófonos com o sentido
interesses, náo decorre disso que o Estado, por sua vez, seja capaz de instaurar de uma modificayáo das relayóes entre gerentes e acionistas, até adquirir
urna harmonia artificial, exceto se também ele for submetido a um modo significado político e alcance normativo quando foi aplicado as práticas
de controle extremamente rigoroso. dos governos submetidos :ls exigencias da globalizayáo. Nesse momento,
Assim, a instituiyáo do mercado regido pela concorrencia- construyáo torno u-se a principal categoría empregada pelos grandes organismos encar-
desejada e apoiada pelo Estado - foi fortalecida e prolongada por uma regados de difundir mundialmente os prindpios da disciplina neoliberal,
orientayáo que consistiu em "importar" as regras de funcionamento do em especial pelo Banco Mundial nos países do Su!. A polissemia do termo

Ver Denis Saint-Martin, Building the New Managerialist State: Consultants and the
6
Politics ofPublic Sector Reform in Comparative Perspective (Oxford, Oxford University Léon Walras citado por Louis Franck, La libre concurrence (Paris, PUF, 1967).
Press, 2000). 7
Ver Jean-Pierre Gaudin, Pourquoi lagouvernance? (Paris, Presses,de Sciences Po, 2002).
276 " A nova razáo do mundo O governo empresarial " 277

é um indicativo de seu uso. De fato, ele une trés dimensóes cada vez mais O sucesso de urna ferramenta como o benchmarkinf!! 0 na análise e na con-
entrelayadas do poder: a conduyáo das empresas, a conduyáo dos Estados duyáo de políticas públicaS mostra como um instrumento que permite
e, por fim, a conduyáo do mundo • 8
controlar e estimular~ ativi_dade das filiais das grandes multinacionais pOde
Essa categoria política de "govern;;tnya'', ou, mais exatamente, de "boa passar da esfera da empresa para a esfera do governo. Esse empréstimo da
governanya'', tem um papel central na difusáo da- norrria da concorréncia gestáo privada permitiu que se introduzissem na própria definiyáo de "boa
generalizada. A "boa governanya'' é a que respeita as condiyóes de gestáo governanc;:a'' "partes interessadas" total-mente estranhas as entidades classica-
sob os préstimos do ajuste estrutural e, acima de tudo, a abertura aos fluxos mente incluídas nos princípios de soberanía. Essas "partes interessadas" sáo
comerciais e financeiros, de modo que se vincula íntimamente a urna política os credo res do país e os investido res externos que deveráo julgar a qualidade
de integrayáo ao mercado mundial. Assim, toma pouco a pouco o lugar da da ayáo pública, isto é, a conformidade dessa ayáo a seus próprios interesses
categoria "soberanía'', antiquada e desvalorizada. U m Estado náo deve mais financeiros. Como respeitam as regras da corporate governance, os investidores
ser julgado por sua capacidade de assegurar sua soberania sobre um território, estrangeiros esperam que os dirigentes locais adotem as regras da state gover-
segundo a concepyáo ocidental clássica, mas pelo respeito que demonstra as nance. Podemos ver, desse modo, que esta última consiste em pór os Estados
normas jurÍdicas e as "boas práticas" económicas da governanra9 • sobo controle de um conjunto de instáncias supragovernamentais e privadas
A governanya do Estado toma emprestada da governanya da empresa urna que determinam os objetivos e os meios da política que deve ser conduzida.
característica importante. Da mesma forma que os gerentes das empresas Nesse sentido, os Estados sáo vistos como rnna "unidade produtiva'' como
foram postos soba vigiláncia dos acionistas no ámbito da corporate governance qualquer outra no interior de urna vasta rede de poderes político-económicos
predominantemente financeira, os dirigentes dos Estados foram colocados siibtnetidos a normas sernelhantes.
pelas mesmas razóes sobo controle da comunidade financeira internacional, Á"governanc;:é foi des~~ita muitas vezes como um novo modo de exer-
de organismos de expertise e de agéncias de dassificayáo de riscos. A homoge- cício do poder que implica instituic;:óes políticas e jurídicas inte~nacionais e
neidade dos modos de pensar, a semelhanya dos instrumentos de avaliayáo e nacionais, associac;:óes, igrejas, empresas, think tanks, universidades .etc. Sem
validayáo das políticas públicas, as auditorias e os relatórios dos consultores, entrar aqui na natureza do novo poder mundial, é forc;:oso constatar que a
tuda indica que a nova maneira de conceber a ayáo governamental deve nova norma concorrencial implicou o desenvolvimento crescente de formas
muito a lógica gerencial predominante nos grandes grupos multinacionais. múltiplas de concessáo de autoridade as empresas privadas, a ponto de poder-
mes falar, em muitos domínios, de urna coproduráo público-privada das normas
internacionais. É o caso, por exemplo, da internet, das telecomunicayóes o u
8 A Commission on Global Governance, criada em 1992 por iniciativa do ex-chanceler das finanyas internacionais. Essa cogovernanya privado-pública da política
alemáo Wtlly Brandt, define assim essa noc;:áo: "Trata-se da soma das diferentes formas
económica leva a produyáo de medidas e dispositivos nos campos fiscal e
pelas quais os indivíduos e as instituic;:óes públicas e privadas administram seus negócios
comuns. É um processo contínuo de cooperac;:áo e acomodac;:áo entre interesses diversos regulatório sisternaticamente favoráveis aos grandes grupos oligopolistas. Urna
e conflitantes. Indui as instituic;:óes oficiais e os regimes dotados de poderes de execuc;:áo, das manifestayóes desse processo é a delegayáo da elaborayáo de normas con-
do mesmo modo que os arranjos informais sobre os quais os povos e as instituic;:óes tábeis a um organismo privado mundial (Iasb*), que é ele ptóprio largamente
estáo de acordo o u entendem ser de seu interesse". Citado em Jean-Christophe Graz,
influenciado pelos princípios de contabilidade em vigor nos Estados Unidos 11 •
La gouvemance de la mondialisation (Paris, La Découverte, 2008), p. 41.
9 Portanto, as noc;:óes de "governanc;:a" e "soberanía" sáo, em parte, antinómicas. A
governanc;:a pressupóe, antes de mais nada, obediénda as injunc;:óes dos organismos 10
Ver, no capítulo 6 deste volume, "Disciplina (3): a gestáo neoliberal da empresa".
que representamos grandes interesses comerdais e financeiros; ela também permite,
em func;:áo das relac;:óes de forc;:a internacionais e dos interesses geoestratégicos, o di- * Internacional Accounting Standards Board. (N. T.)
reito de ingerénda de ONGs, forc;:as armadas estrangeiras o u credores, em nom·e dos 11
Ver Nicolas Véron, "Normalisation comprable internationale: une gouvernance
direitos humanos ou das minorias, o u entáo, de forma mais prosaica, da "liberdade en devenir", em Conseil d'Analyse Économique, Les normes cOmptables et le monde
de mercado". · post-Enron (Paris, La Documentation Franc;:aise, 2003).
278 @ A nova razáo do mw1do O governo empresarial .. 279

A empresa torna-se um dos fimdamentos da organizas:áo da "governans:a'' tipicamente neoliberal, que envolve tanto os poderes públiCos corno os
da economia mundial corn o apoio dos Estados locais. Hoje sáo os impe- · grandes atores privados do Sistema. Convém letnbrarrnos, ern prirneiro
rativos, as premencias e as lógicas das empresas privadas que comandarn lugar, que o setor fi~ar:c::_~!ro náo foi deixado inteirarnente por conta. A
diretamente as agendas do Estado. Isso náo quer dizer que as empresas esse respeito, náo devemos confundir auséncía de regras com falha das
multinacionais sejam todo-poderosas e organizeffi- unilateralmente o "de- regras. A concorréncia mundial entre conglomerados bancários e entre
finhamento do Estado" nem que o Estado seja urn simples "instrumento" bolsas de valores torno u progressivamente necessárias novas regras interna-
nas máos das multinacionais, segundo um esquema marxista ainda bastante cionais. Em 197 4, num contexto marcado pelo firn do sistema rnonetário
difundido. Isso quer dizer que as políticas macroeconómicas sáo amplamente internacional e pelo aumento dos riscos ligados a flutuayáo das divisas 12 ,
o resultado de codecisóes públicas e privadas, ernbora o Estado mantenha o Comité de Basileia para o Controle Bancário foi criado sob a égide do
certa autonomia ern outros dominios - rnesmo que essa autonornia tenha Banco de Cornpensayóes Internacionais. Esse comité foi encarregado
sido enfraquecida pela existencia de poderes supranadonais e pela delega- de desenvolver o que se convenciou denominar "supervisáo prudencial"
s:áo de inúmeras responsabilidades públicas a urn emaranhado de ONGs, do sistema financeiro. Tratava-se de urn conjunto de normas relativas a
comunidades religiosas, empresas privadas e associa<róes. concorréncia generalizada das institui<róes de financiamento 13 • Essa nova
Essa nova hibridaráo generalizada da-chamada ayáo "pública" é o que regulas:áo visava a abrigar os bancos náo apenas a obedecer as regras legais,
explica a promo<ráo da categoria de "governanya" para pensar as funyóes e mas também a praticar um autocontrole mais rigoroso (controle interno)
as práticas do Estado, em vez das categorias do direito público, a comeyar e'_ a submeter-se a normas rnais estritas de transparéncia em rela<ráo aos
pela soberania. Ela remete a urna privatiza<ráo da fabrícaráo da norma dehlqis atores do mercado.
' - : " ,,

internacional e a urna normatiza<ráo privada necessária a coordena<ráo Dentro do edifício de supervisáo do setor, a Voca<ráo do Comité de
das trocas de produtos e capitais. Ela náo significa que o Estado se retira, Basileia é definir padróes que possam ser repetidos nas regula~entayóes
mas que ele exerce seu poder de forma mais indireta, orientando tanto nacionais. Por outro lado, as autoridades de tutela delegam a responsabi-
quanto possível as atividades dos atores privados e incorporando ao mesmo lidade do controle interno aos bancos, exigindo que separem as ativida-
tempo os códigos, as normas e os padróes definidos por agentes privados des de risco das atividades de controle de risco. Paulatinamente, essas
(empresas de consulting, agencias de classificas:áo, acordos comerdais
internacionais). Exatarnente do mesmo modo como a gestáo privada visa
12
a fazer com que os assalariados trabalhem o máximo possível por rneio Faléncia do banco Herstatt em 1974 e do Ftanklin National Banknos Estados Unidos.
13
de um sistema de incentivos, a "governanya de Estado" visa oficialmente O que Dominique Plihon, Jézabel Couppey-Soubeyran e Dhafer Sa"idane escrevem
a fazer com que entidades privadas produzarn bens e· servi<ros de forma a respeito da Franya vale também para o conjunto do sistema financeiro: "A des-
regulamentayáo e a privatizayáo do setor bancário na Franya foram consideradas
supostamente rnais eficiente e outorga ao setor privado a capacidade de
algumas vezes um sinal do desengajamento do Estado e o início de urna verdadeira
produzir normas de autorregulariio no lugar da leí. O Estado espera dos desregulayáo do setor bancário. Frequentemente foram consideradas até mesmo
atores privados nacionais ou transnacionais que ajarn no sentido cÍe urna responsáveis pelas dificuldades que os bancos enfrentaram ao longo dos anos 1990.
coordena<ráo das atividades internacionais. Trata-se, portante, de um Es- No entanto, desreguJamentaráo náo significa desregularáo. A regulamentariio ndo de-
saparece, náo muda de natureza. Trata-se de urna tegulamentayáo prudencial, que
tado que é muito mais ''estrategista" do que produtor direto de serviros. Poi
visa náo mais a administrar a atividade dos bancos, mas a· orientá-la no sentido de
esse o sentido, por exemplo, do Acorde de Basileia II, que deixou a cargo urna maior prudéncia, ressaltando em especial as normas de solvabilidade. Surgem,
das institui<róes financeiras internacionais a definiyáo de seus próprios assim, as condiyóes para urna nova tegulayáo. A regulamentayáo- náo exdui mais o
critérios de autocontrole. mercado, ao mesmo tempo que o aumento dos riscos sensibiliz<iva naturalmente os
bancos para a gestáo interna de seus riscos", Dominique Plihon, Jézabel Couppey-
O fracasso da Comissáo de Basileia, brutalmente revelado pela crise
-Soubeyran e Dhafer Sa"idane, Les banques, acteurs de la globalisatíOn financü:re (Paris,
financeira em 2007, é acima de tudo o fracasso dessa governan<ra híbrida La Documentation Franyaise, 2006), p. 113; grifo nosso.
280 ° A nova razáo do mundo O governo empresarial ~ 281

autoridades codificaram os procedimentos de controle interno em todos eficiencia dos mercados 16 , multiplicou auromaticamente a tomada de risco,
os níveis 14 • Em 1988, os acordos chamados de Basileia I estabeleceram · porque os bancos, quanto mais condic;:óes tem de transferir os riscos, mais
normas para fundos próprios que lago se mostraram inadequadas ao afrouxam a vigiláncia.
aumento dos riscos operacionais e de mercado. No fim de 2006, após A crise financeira ¡)óe e¡{¡ evidencia de modo extraordinário os perigos
langas negociac;:óes em que os estabelecimentos bancários se valeram de inerentes a governamentalidade neo liberal quando esta leva a confiar, em
todo o seu peso, chegou-se a novas acordos, os chamados Basileia II. pleno centro do sistema económico_ capitalista, parte da supervisáo pruden-
Estes estabeleceram novas regras de solvencia, métodos mais estritos de cial aos próprios "atores", com o pretexto de que eles sofrem diretamente
controle interno e obrigac;:áo de transparencia na gestáo. Esses "tres pilares" as exigencias da concorrencia mundial e sabem se governar, buscando
de regulamentac;:áo completamos dispositivos nadonais já existentes. Nos interesses próprios. Foram precisamente essas lógicas de hibridac;:áo que
Estados Unidos, após o caso Enron, a Lei Sarbanes-Oxley de 2002 tentou relaxaram a vigilancia e conduziram a comportamentos altamente deses-
reforyar os mecanismos de vigiláncia dos estabelecimentos financeiros e, tabilizadores. Entre os atores privados que desempenharam os papéis
na Franc;:a, a Lei de Seguranc;:a Financeira de 2003 aumentou a transpa- mais nocivos, encontramos em particular o pequen o número de agéncias
réncia das operac;:óes e criou urna instáncia de vigiláncia do mercado (a de classificac;:áo encarregadas de avaliar os eStabelecimentos bancários.
Autoridade do Mercado Financeiro). Esses atores, responsáveis pela vigiláncia, func;:áo altamente estratégica,
Esse conjunto normativo público/privado revelou-se falho. FOi ele que escapam a qualquer·vigilancia e apresentam graves problemas de confli-
permiriu, por intermédio da securitizayáo de créditos e dos produtos deriva- t? de interesses, na medida em que as avaliac;:óes sáo solicitadas e pagas
dos, o desenvolvimento de urna prática sistemática de transferencia externa pela~. ,empresas classificadas. Evidentemente, as falhas do dispositivo de
dos riscos assumidos pelos bancos. De fato, estes últimos conseguiram se vigiláncia sáo muito diVerS~s, mas as regras foram -o fator decisivo, pois,
esquivar das regras de índice de solvencia estabelecidas pelos Acordos de além de terem sido elaboradas e implementadas pelos próprios 'tvigiados",
Basileia II, nas próprias barbas das autoridades de tutela (as dos Estados referiam-se apenas aos estabelecimentos considerados individualmente,
Unidos, em primeiro lugar), transferindo os riscos, em mercados pouco o que as tornava inoperantes em caso de crise sistémica. O que está em
regulamentados, para atores menos vigiados e menos controlados do que questáo, portanto, é a capacidade dos atores privados de autodisciplinar-
os próprios bancos (como os hedge fonds e as empresas de seguro). O erro -se, considerando-se os interesses náo apenas do seu estabelecimento, mas
foi acreditar que a dispersáo dos riscos por um número,maior de detentares também do próprio sistema 17 •
de risco de crédito seria um fator de estabilizac;:áo do mercado financeiro
internacional. & autoridades de tutela permitiram que se instaurasse, assim, 16
Trata-se da teoria segundo a qual a venda dos próprios riscos mediante produtos
um mecanismo de desestabilizayáo sistemica. Por intermédio de urna série de financeiros sofisticados permite avaliá-los melhor. Supóe-se que, dando um valor
"veículos" de extrema complexidade, os riscos ligados aos créditos "tóxicos" mercantil aos riscos, o mercado financeiro gera mais eficiéncia na aloca¡;;áo dos
se propagaram por urna langa cadeia de transferencia, de modo que os que se financiamentos.
encontravam no fim dela náo eram mais capazes de avaliar a perda p~tencial 17
Foi o que Alan Greenspan admitiu, muito tardíamente, em seu depoimento ao
representada pelos portfólios secrnitizados, o u melhor, contaminadosL5• Congresso dos Estados Unidos em 23 de outubro de 2008: "Comed o erro de pensar
que o interesse bem compreendido das organiza¡;;óes e, ero particular, dos bancos os
Esse mecanismo de transferencia de risco, baseado nas teorias otimistas da
tornava os mais capazes de proteger seus próprios adonistas e o capital das empresas.
Minha experiéncia nos cargos que ocupei no FED durante dezoito anos e nas fun¡;;óes
anteriores me levaram a pensar que os dirigentes dos estabelecimentos conheciam
14
Ibidem, p. 109. bem melhor os riscos de defout que os melhores reguladores. -0 problema é que um
15 Ver MichelAglietta, Macroéconomie jinancibe (Paris, La Découverte, 2008), p.'96-7, pilar fundamental do que parecia ser um edifído particularmente sólido desmoro-
sobre a análise técnica dos subterfugios legais que permitiram aos bancos escapar das no u. [... ] Náo sei exatamente o que aconteceu nem por qué. Mas náo hesitada em
regras estabeleddas pelo Basileia U. mudar minha visáo, se os fatos exigissem isso". Acrescentou, a prop?sito da "ideologia
282 e A nova razáo do mundo O governo empresarial " 283

Encontramos essa mesma lógica de regulayáo indireta e híbrida em fu grandes instituiyóes internacionais criadas após a .Segunda Guerra
todos os processos de especificayáo técnica que sáo necessários ao comér- Mundial (FMI, Banco Mundial, Gatt) constituíram os principais vetores_de
cio mundial e foram deixados a cargo da negociayáo dos profissionais de imposiyáo da nova norma neoliberal. Elas substituíram os Estados Unidos e
cada setor. Essa evoluyáo remete, obviamente, as próprias transformayóes a Grá-Bretanha sem ·gr~des resisténcias. Para isso, as instituiyóes de Bretton
económicas e financeiras. A concorréncia se exacei-bou de tal maneira que Woods tiveram de redefinir seu papel e, ao mesmo tempo, abrir espayo para
conduziu a reayóes diversas em matéria de produyáo e marketing, como a novas instituiyóes e agéncias náo governamentais. A ascensáo da OMC é um
acentuayáo da "diferenciayáo dos produtos" como modalidade privilegiada indício importante. Seria urn erro vé-la apenas corno um instrumento das
de competiyáo entre as empresas. A concorréncia oligopolista entre grandes regras universais de mercado, isolada das pressóes e dos interesses estatais
grupos mundiais levou-os a aliar-se no campo de "pesquisa e desenvolví- e oligopolistas, e, talvez rnais· ainda, considerá-la o principal defensor dos
mento" (P&D) com o intuito de compartilhar recursos e dividir riscos. países do Sul, em virtude do deslocamento do conteúdo das negociayóes
Dentro dessa configurayáo, os Estados náo tém mais do que um papel de comerciais para as prioridades relacionadas ao desenvolvirnento. A lógica
subordinado ou assistente e intedorizam suficientemente esse papel para dos interesses oligopolistas se manifesta de forma mais aberta sobretudo no
náo ter mais condiyóes de definir políticas sociais, ambientais ou científicas campo da inovayáo tecnológica. Nas negociaS:óes da OMC, os países do
sem a concordancia- ainda que tácita- dos oligopólios. Norte mostram-se mais propensos a servir aos interesses dos oligopólios dos
O Estado náo se retira18 , mas curva-se as novas condiyóes que contribuiu seto res que apresentam grandes gastos com P&D, permitindo que estendam
para instaurar. A construc;áo política das finanyas globais é a melhor demons- ~ireitos de propriedade intelectual. Por intermédio das instituiyóes inter-
tra¡;áo disso 1 ~. É com os recursos do Estado, e com urna retórica em geral nad~:mais; os grupos de pressáo dos oligopólios ligados ao conhecimento
muito tradicional (o "interesse nacional", a "seguranya'' do pais, o "bem do orga~izarn a protefáo da r'e'nda proveniente da inovaráo para recuperar os
povo" etc.), que os governos, em nome de urna concorréncia que eles mesmos frutos das despesas privadas com P&D e contribuem para o corifinamento
desejaram e de urna finanya global que eles mesmos construíram, conduzem dos países em desenvolvimento no subdesenvolvimento.
políticas vamajosas para as empresas e desvantajosas para os assalariados de Outra inflexáo na ayáo dos governos, ainda mais diretarnente ligada a
seus paises. Quando se fala do peso crescente dos organismos internacionais norma da concorréncia mundial, diz respeito ao recentrarnento da inter-
ou intergovernamentais, como o FMI, a Organizayáo Mundial do Comércio venyáo do Estado nos fatores de produyáo.
(OMC), a OCDE ou a Comissáo Europeia, esquece-se de que os governos O Estado tem agora urna responsabilidade eminente no que se refere
que fingem curvar-se passivamentea auditorias, relatórios, injunyóes e diretivas a
tanto ao apoio logístico e de infraestrutura aos oligopólios quanto atrayáo
desses organismos sáo também ativamente parte interessada nisso. É como se a desses grandes oligopólios para o território administrado por ele. Isso diz
disciplina neoliberal, que impóe retrocessos sociais a grande parte da populac;á_o respeito a domínios muito diversos: pesquisa, universidade, transportes,
e organiza urna uansferéncia de renda para as dasses mais afortunadas, supusesse incentivos fiscais, ambiente cultural e urbanizayáo, garantía de mercado
um "jogo de máscaras" que possibilita que se jogue sobre outras instincias a (mercados públicos abertos as pequenas e as médias empresas nos Estados
responsabilidade pelo desmantelamento do Estado social e educador mediante Unidos). Em outras palavras, a intervenyáo governamental torna a forma
a instaurayáo de regras de concorréncia em todos os dornínios da existéncia. de wna política de fatores de produyáo e ambiente económico. O Estado
concorrencial náo é o Estado drbitro de interesses, mas o Estado parceiro dos
interesses oligopolistas na guerra económica mundial. É o que se vé claramen-
liberal": "Fui muito afetado por[ ... ] essa falha na estrutura fundamental que define
aquilo que eu poderia chamar de maneira como o mundo funciona''. te no nível da política comercial. O próprio sentido de livre-d.mbio muda.
18
Ver Susan Strange, The Retreatofthe State: The Dijfosion ofPower ín the WorldEconomy Em consequéncia da fragrnentayáo dos processos prüdutivos, os produtos
(Cambridge, Cambridge University Press, 1996). exportados por urna economía contém urna proporyáo cada vez rnaior de
19
Ver, no capítulo 6 deste volume, "O cresdmento do capitalismo financeiro". componentes importados. Por isso, os Estados sáo levados a substituir o
284 ~ A nova razáo do mundo O governo empresarial " 285

'protecionismo tarifárío por um protecionismo estratégico, o protecionismo regime "inclusivo" da oposiyáo de classes instituído nas dem_ocracias liberais
dos produtos por urna lógica de subvenyáo dos jato res de produráo. ·após a Segunda Guerra Mundial. A chamada "integrayáo" dos sindicatos,
A norma da concorrénda generalizada pressiona os Estados, ou outras correlata da gestáo social-democrata, fazia do conflito de interesses um dos
instincias públicas, a produzir condüróes locais ótimas de valorizayáo do motores da acumula~-áÜ dO ¿apital e da luta de classes wn fator funcional
capital, o que poderíamos chamar, náo sem certo paiadoxo, de "bens comuns do crescimento. A escansáo clássica do conflito sindicalmente enquadrado,
do capital". Esses bens sáo os frutos dos investimentos em infraestrutura e da negociayáo e do "avanyo social" _q_ue-amiúde resultava· deles, era a própria
instituiyóes necessárias para atrair capitais e assalariados qualificados num manifestayáo dessa inclusáo conflituosa. Isso náo acorre mais quando a
regime de concorréncia exacerbada. Estrutura de pesquisa, fisco, universi- populas:áo é duplamente considerada sobo ángulo privilegiado do "recurso
dades, meios de circulayáo, redes bancárias, zonas de residéncia e lazer para humano" e do "encargo social". A única forma admissível de relayáo com os
a
executivos sáo alguns desses bens necessários atividade capitalista, o que sindicatos e, de modo mais geral, com os assalariados é o "acordo", a "con-
tende a mostrar que a condiyáo da mobilidade do capital é a implantayáo vergéncia'', o "consenso" em torno dos objetivos supostamente desejáveis
por parte do Estado de infraestruturas fixas e imóveis. para todos. Qualquer um que se recusasse a respeitar os princípios admi-
O Estado já náo se destina tanto a assegurar a integrayáo dos diferentes nistrativos, qualquer sindicato que náo aceitasse de imediato os resultados a
níveis da vida coletiva quanto a ordenar- as sociedades de acordo com as que necessariamente ~eve levar o "acordo" e, com isso, se recusasse a agir em
exigéncias da concorréncia mundial e das finanyas globais. A gestáo da "concordáncia" com os governantes seria excluí do do "jogo". O novo regime
populayáo muda de método e significado. Enquanto no período fordista a d~_governo admite apenas "stakeho!ders", "partes interessadas", que tém
ideia predominante era, segundo a expressáo consagrada, a "harmonía entre intÚe~se direto no sticesso do negócio em que entraram espontaneamente.
eficácia económica e progresso social", hoje, no contexto de um capitalismo O fat¿ mais sintomitico é, ~~m dúvida, a unidade obrigatória do discurso
nacional, essa mesma populayáo é percebida apenas como um "recurso" a empregado. Enquanto na regulayáo antiga das relayóes sociais trai:ava-se de
disposiyáo das empresas, segundo urna análise em termos de custo-benefício. conciliar lógicas que eram consideradas, de saída, diferentes e divergentes,
A política que ainda hojeé chamada de "social" por inércia semWtica náo se o que implicava procurar um "compromisso", na nova regulayáo os termos
baseia mais em urna lógica de divisáo dos ganhos de produtividade destinada do acordo sáo estabelecidos de imediato e de urna vez por todas, porque
a manter um nível de demanda suficiente para garantir o escoamento da ninguém pode ser inimigo da eficácia e do bom desempenho. Apenas as
produyáo em massa: el a visa a maximizar a utilidade da popularáo, aumen- modalidades práticas, os ritmos e certos ajustes secundários ainda podem ser
tando sua "empregabilidade" e sua produtividade, e diminuir seus custos, objeto de discussáo. Sabe-se que esse é o prindpio das "reformas corajosas",
com um novo género de política "social" que consiste em enfraquecer o em particular das que visam a degradar a situayáo geral do maior número de
poder de negociayáo dos sindicatos, degradar o direito' trabalhista, baixar indivíduos. &sim, podemos ver que as formas dos conflitos estáo fadadas a
o custo do trabalho, diminuir o valor das aposentadorias e a qualidade da mudar nas empresas, nas instituiyóes, na sociedade como um todo. Ocorrem
a
proteyáo social em nome da "adequayáo globalizayáo". Po nanto, o Estado duas transformayóes importantes. De um lado, a lógica gerencial unifica
náo abandona seu papel na gestáo da populayáo, mas sua interven~áo náo os campos económicos, sodais e políticos e cría as condiyóes para urna luta
obedece mais aos mesmos imperativos nem aos mesmos motivos. Em vez transversal; de outro, desconstruindo sistematicamente todas as instituiyóes
a
da "economía do bem-estar"' que clava énfase harmonía entre o progresso que pacificavam a luta de classes, essa lógica "terceiriza" o conflito e dá a ele
económico e a distribuiyío equitativa dos frutos do crescimento, a nova um caráter de contestayáo global do Estado empresarial e, por conseguinte,
lógica vé as populayóes e os indivíduos sob o angula mais estreito de sua do novo capitalismo.
contribuiyáo e seu custo na competiyáo mundial.
& condiyóes em que os grupos sociais entram em conflito também mu-
dam como governo empresarial. A racionalidade neoliberal marca o fim do
286 "' A nova razáo do mundo O governo empresarial ~ 287

Governanya mundial sem governo mundial interesses oligopolistas específicos e nao hesita em delegar a eles urna parte
considerável da gestáo sanitária, cultural, turística ou até mesmo "lúdica''
Instaura-se urna forma inédita de "poder mundial", adaptado as caracte-
da popula<;áo.
rísticas da economia globalizada. A competi<;:áo econ6mica toma o aspecto
Diante dessa situi<;:áo inédita, náo há ainda a vista- nenhum esbo<;:o de
de rnn confronto entre Estados que- fazem alian<;:as entre si e se coligam a
governo mundial que tenha como voca<;:io proteger as sociedades nacionais
empresas cuja rede de a<;:áo é cada vez mais globalizada. O chamada "merca-
e locais contra a concorréncia a que--se entregam os oligopólios mundiais,
do mundial" é um vasto entre!aramento movediro de coalizóes entre entidades
assim como nao há, aliás, um governo europeu que proteja as populayóes
privadas epúblicas que se valem de todos os meios e os registros (financ~iros, contra o dumping social e fiscal dos países-membros da Uniáo Europeia.
diplomáticos, históricos, culturais, linguísticos etc.) para promover os mte-
Nio existe urna regulayao das trocas, nem em matéria de condi<;:óes sociais
resses misturados dos poderes estatais e econ6micos. Devemos acrescentar ao
nem em matéria de fisco nem em matéria monetária, além da zona do
cenário 0 papel crescente das entidades públicas subestatais, como as regióes
euro. É escusado dizer que nenhuma instancia mundial soube prevenir as
o u as cidades, que aproveitam certa margem de liberdade para praticar o u tras
crises financeiras e proteger a economía e a sociedade contra a instabilidade
formas de concorrencia entre si a fim de obter vantagens.
crescente do capitalismo predominantemente financeiro.
Urna das características principais desse período náo é o "fim dos Estados-
Obviamente, esse contraste entre a facilidade de circulayao do capital e
-nayóes", segundo Kenichi Ohmae20 , m-as a relativiza<;:áo de seu papel como
a debilidade das institui<;óes de regula<;áo é atenuado em parte pelo papel
entidade integradora de todas as dimensóes da vida coletiva: organizayáo do
crescente que se dá as institui<;:óe:s internacionais, como o FMI, o Banco
poder político, elaborayao e difusao da cultura nacional, relayóes ~ntr~ classes
Mundial, a OMC; o GS ou o G20, que garantem um mínimo de ·coor-
sociais, organizayao da vida econ6mica, nível de emprego, orgamzayao local
den~<;:áo em nível: muridiil. A estrutura mundial -do poder tem cada vez
etc. Os Estados tendero a delegar grande parte dessas funyóes as empresas
menos a ver coma antiga representayao do "direito dos povos" (o antigo jus
privadas, que corn frequéncia já sáo globalizadas ou_ obedecem a ~armas
gentium) da época do florescimento das soberanias nadonais. Essa transfor-
mundiais. Entregam a elas parte da tarefa de garantir o desenvolv1rnento
mayio alimenta a tese pós-moderna da morte da soberania do Estado e do
socioecon6mico do país, como a responsabilidade pela "cultura de massa''
surgimento de novas formas de poder mundial21 • Segundo essa tese, há um
a mídia privada. Assistimos, por conseguinte, a urna privatizaráo parcial das
deslocamento do poder do Estado para o poder múltiplo e fragmentado de
fonróes de integraráo, fun<;:óes que nao correspondem as mesmas exigén~ias
agencias e órgaos "híbridos", meio públicos e meio privados. Se é real essa
e temporalidades, conforme dependam da c~mpetencia de empres.~ pnva-
concessio do trabalho de codificayáo das normas as empresas, como bem
das ou das prerrogativas do poder público. E o caso do emprego, p que os
recordamos, convém nao esquecer que a transformayao em curso é mais
subsídios as empresas as,seguram apenas precariamente a ~issáo de des~n­
global. De fato, sáo os princípios e os modos da ayáo pública que mudam
volvimento e organiza<;:áo do território em longo prazo. E o caso tambem
com o domínio crescente do modelo da empresa, inclusive nas "funyóes
da "cultura'' ou do ensino, urna veZ que as empresas privadas náo buscam
soberanas" mais dássicas. Naomi Klein recorda que o governo Bush tirou
os mesmos objetivos que aqueles classicamente atribuídos ao Est<).do.
partido do contexto de "guerra contra o terrorismo" para terceirizar, sem o
Essa situa<;:ao cria um complexo de interesses públicos e privados que
menor debate público, "grande parte das funyóes mais delicadas do gover-
mina a amiga divisao entre os interesses particulares e o interesse geral. Náo
no, da presta<;:ao de cuidados médicos aos soldados aos interrogatórios de
se trata apenas do fato de que o Estado sofre urna erosáo em suas margens
de manobra; trata-se, sobretudo, do fato de que o Estado se póe a servi<;:o de
11
A tese pós-moderna, tal como é apresentada, por exemplo, por Michael Hardt e Antonio
Negri em Empire (trad. Denis-Armand Canal, Paris, Exils, 2000) [ed. bras.: Império,
20 Kenichi Ohmae, De l'État-nation aux États-régions (trad. Michel Le Seac'h, Paris, trad. Berilo Vargas, 10. ed., Rio de Janeiro, Record, 2012], é que a soberania do Estado
Dunod, 1996). foi substituída por novas formas de sujeir;:áo mais direta aordem produtiva capitalista.
288 "' A nova razáo do mundo O governo empresarial 0 289

¡)risioneiros, passando pela coleta e pela análise profunda de dados (data Desse ponto de vista, o exemplo britanico é notável. Como frisam Jack
míning) sobre cada um de nós". Alnda segundo ela, o governo age "náo Hayward e RudolfKlein,
como o administrador de urna rede de fornecedores, mas como um inves- o que comec;:ou como retorno a urna opiniáo que lembrava o séCulo XVIII,
tidor de capital de risco endinheirado _que fornece ao complexo o capital segundo a qual "governar melhor significa governar menos", tornou-se cada
inicial de que este necessita e torna-se o principal dí ente de seus serviyos" 22 . vez mais urna busca por eficácia gerencial baseada na substitui<;:áo dos mé-
A extensáo do campo da "governanya'', portanto, náo é apenas urna trama de todos da administrayáo pública por aqueles das empresas privadas (embora
pouco renomadas por sua eficácia na Gfi~Bretanha). 24
relayóes múltiplas com atores náo estatais o u simplesmente o sinal do declí-
nio do Estado-nayáo, ela significa, mais profundamente, urna mudanya Para os novas conservadores, náo bastava pOr freios aut<?máticos ao
do "formato" e do papel do Estado, que é visto agora como urna empresa a crescimento dos gastos públicos; era preciso mudar profundamente o modo
serviro das empresal-3• É, sem dúvida, nessa transformayáo do Estado que de gestáo da ayáo pública. O thatcherismo inicio u um movimento intenso
se pode apreender melhor a nova articulayáo entre a norma mundial da a
de recentralizayáo administrativa custa das coletividades locais- seguindo
concorrencia e a arte neoliberal de governar os indivíduos. urna tendéncia nitidamente contrária aos princípios doutrinais de cenos
a
neoliberais favoráveis descentralizayáo do poder - e, ao mesmo tempo,
urna reforma gerencial dos modos de gestáo. A fun<;áo pública foi dividida
O modelo da empresa em agencias independentes, com objetivos específicos; estas eram regidas
O intervencionismo neoliberal náo visa a corrigir sistematicamente os por- normas estabelecidas pelo "centro de comando", expostas concorrén- a
"fracassos do mercado" em funyáo de objetivos políticos considerados de- cia ~ ··svb_¡:netidas as decisóes "soberanas" dos consumidores. Tratava-se de
sejáveis para o bem-estar da populayáo. Ele visa, em primeiro lugar, a criar substituir urna adminlstra~áo que obedecia aos princípios do direito público
situayóes de concorrencia que supostamente privilegiamos mais "aptos" e os por urna gestáo regida pelo direito comum da concorréncia.
mais forres e a adaptar os indivíduos a competiyáo, considerada a fonte de Nos anos 1980, a prioridade é da empresa, vetor de todos os progressos,
todos os benefícios. Náo que o mercado em si seja sempre preferível agestáo condiyáo da prosperidade e, acima de rudo, provedora de empregos. Esse
pública; o fato é que se supóe que os "fracassos do Estado" sáo mais prejudi- a
culto empresa e ao empreendedor náo é consequencia apenas de lobbies
ciais que os do mercado. E também porque se considera que as tecnologias do patronais e doutrinários. Ele é celebrado todos os dias e em quase todos
management privado sáo remédios mais eficazes contra os problemas causados os países pelas elites administrativas, pelos especialistas em gestáo, pelos
pela gestáo administrativa do que as regras do direito público. economistas, pelos jornalistas submissos e pelas autoridades políticas. A
homogeneizayáo ideológica conjuga-se com a internacionalizayáo das
economias- a competitividade torna-se prioridade política no contexto da
22 Nao mi Klein, La stratégie du choc. La montée d'un capita!isme du désastre (trad. Lori "abertura''. Em face da empresa ataviada com todas as qualidades, o Estado
Saint-Martin e Paul Gagné, Aries, leméac/Actes Sud, 2008), p. 22. A autora entende de bem-estar é apresentado como um "peso", um freio ao crescimento e urna
por "complexo" urna "entidade tencacular" muito mais vasta que o complexo militar- fonte de ineficácia25 • A palavra de ordem thatcheriana, "recuar as fronteiras
-industrial. Os números dáo por si sós urna ideia da dimensáo da transforma¡;:áo:
"Em 2003, o governo dos Estados Unidos firmou 3.512 contratos coro sociedades
encarregadas de executar funyóes ligadas a seguranya; no período de 22 meses que
se encerrou em agosto de 2006, somente o Departamento de Seguran¡;:a Interna
24
a
Jack Hayward e RudolfKlein, "Grande-Bretagne: de la gestiün publique la gestion
(Department ofHomeland Security) firmou mais de 115 mil contratos do mesmo privée du déclin économique", em Bruno Jobert e Bruno Théret (orgs.), Le tour-
tipo" (ibidem, p. 23). nant néo-libéra! en Europe. Idées et recettes dans les pratiques gouvernementales (Paris,
23 LHarmattan, 1994). '
A expressáo corporate state utilizada por Naomi Klein náo significa nada além disso. A
25
traduyáo francesa "État corporatiste" [Estado corporativista] introduz um contrassenso Sobre esse ponto, ver Jean-Pierre le Golf, Le mythe de l'entreprise (Paris, La Décou-
lastimável (ibidem, p. 26). verte, 1992).
290 " A nova razáo do mundo O governo empresarial " 291

·do Estado de bem-estar", deu origem a um conjunto de crenc;as e práticas- o assim, a "face aceitável do pensamento da nova direita sobre o Estado", como
gerencialismo- que se apresenta como remédio universal para todos os males -observa Christopher Pollitt. Apresentando essa reforma como urna operac;áo
da sociedade, reduzidos a questóes de organizac;áo que podem ser resolvidas cirúrgica, ideologicamente neutra, benéfica a todos, a nova direita recebeu
por técnicas que procuram sistematic_amente a eficiencia. Evidentemente, apoio muito além dO"-CampO conservador e impregnou-se largamente nas
esse gerencialismo reserva um lugar eminente ao administrador e a seu saber, representac;óes da esquerda moderna, que, exagerando a "modernidade'' da
fazendo dele um verdadeiro herói dos novos tempos 26 • qual desejava ser a legítima encarnac;áo, quis mostrar que o neoliberalismo de
O postulado dessa nova "governanc;a'' é que a gestáo privada é sempre mais esquerda náo era menos "audacioso" que o de direita. O aspecto "técnico" e
eficaz que a administrac;áo pública; que o setor privado é mais reativo, mais Re- "tático" da nova gestáo pública permitiu ocultar o fato de que _o essencial era
xível, mais inovador, tecnicamente mais eficaz, porque é mais especializado, introduzir as disciplinas e as categorias do setor privado, intensificar o controle
menos sujeito que o setor público a regras estatutárias. Vimos anteriormente político em todo o setor público, reduzir tanto quanto possível o orc;amento,
que, para os neoliberais, o principal fator dessa superioridade reside no efeito suprimir o maior número possível de agentes públicos, reduzir a autonomia
disciplinador da concorrencia como estímulo ao bom desempenho. É essa profissional de algumas profissóes (médicos, professores, psicólogos etc.) e
hipótese que se encontra no prindpio de todas as medidas que visam a "ter- enfraquecer os sindicatos do setor público - em resumo, fazer na prática a
ceirizar" para o setor privado ora servic;os públicos inteiros, ora segmentos reestrutu_rac;áo neoliberal do Estado28 •
de atividades, incrementar as relac;óes de associac;áo contratual com o -setor
privado (por exemplo, na forma de "parcerias público-privadas") ou, ainda,
criar vínculos sistemáticos de subcontratac;áo entre administrac;óes públicas A hipótese do atar egoísta e racional
e empresas. O Estado "regulador" é aquel e que mantém com empresas, asso- A 'reestruturac;áb da ac;áO' pública repousa sobre o postulado de que os
ciac;óes ou agencias públicas que possuam certa autonomia de gestáo relac;óes funcionários públicos, assim como os usuários dos servic;os públicos, sáo
contratuais para a realizac;áo de determinados objetivos 27 . a
agentes econ6micos que respondem apenas lógica do interesse pessoal.
O conservadorismo na Grá-Bretanha e nos Estados Unidos mudo u de face Aumentar a eficácia da ac;áo pública consistirá em fazer valer as imposic;óes e
equis aparecer como wna "revoluc;áo" ou um "rompimento" como passado em os incentivos que orientaráo a maneira como os indivíduos váo se conduzir,
nome dos valores da modernidade. A nova direita fez questáo de se apresentar fazendo com que as decisóes que seráo conduzidos a tomar aliviemos custos
como urna forc;a anticonservadora e "antissistema'', detentara do monopólio e maximizem os resultados. A corrente do Public Choice, já mencionada,
da mudanc;a e da reforma, aproveitando-se sistematicamente dó descontenta- teve um papel pioneiro nesse tipo de metodologia quando aventou a hipótese
mento das frac;óes populares por meio de wn populismo antielite e antiestado, de que nada provaria a priori que as escolhas dos eleitores e as decisóes dos
em geral com matizes xenofóbicos. Urna das constantes ·da retórica da nova funcionários públicos resultariam em medidas ótimas para a populac;áo.
direita consistiu em mobilizar a opiniáo pública contra os "desperdícios", os Por sua vez, um grande número de trabalhos produzidos por economistas
"abusos" e os "privilégios" de todos os parasitas que povoam a burocracia e da Escola de Chicago procurou mostrar que os programas sociais e as re-
a o
vivero custa da populac;áo honesta e trabalhadora. gerencialismo tofnou-se, gulamentac;óes estavam longe de alcanc;ar os resultados esperados por seus
promotores, em especial em razáo de efeitos perversos o u custos ocultos que
náo haviam sido levados em considerac;áo em suas decisóes.
26
Christopher Pollitt, Managerialísm and the Public Services: Cuts or Cultural Change Essas pesquisas iam ao encontro dos primeiros passos da avaliac;áo
in the 1990s? (Londres, Black:well Business, 1990), p. 8.
27
quantitativa das decisóes públicas dados por Bentham em Teoria das penas
Segundo Luc Rouban, os "contratos, sejam firmados entre coletividades públicas ou
com empresas do setor privado, oferecem o novo quadro normativo da as:io pública'',
Luc Rouban, "La réforme de l'appareil d'État", em Vincent Wright e Sabino Cassese
(orgs.), La recomposition de l'État en Europe, cit., p. 148. 18 Christopher Pollitt, Managerialism and the Public Services, cit., p. 49.
292 .. A nova razáo do mundo O governo empresarial • 293

e das recompensas. Assim como as análises benrhamianas, elas repousavam nova. Dissemos antes que o primeiro na história da teoria política a
sobre a ideia de que todos os agentes envolvidos (beneficiários, pagantes, fazer disso um princípio de análise e reforma foi Benth~m. Hoje, se náo
funcionários públicos) perseguiam interesses específicos e adotavam urna voltarmos a essa fonte essencial, náo compreenderemos as relayóes entre
condura racional para satisfaze-los, como qualquer empresaou consumidor a promoyáo do me!Cadü, Cle um lado, e os prindpios da "nova gestáo",
em ayáo no mercado 29 • Além disso, fundamentarido sua análise na lógica do de outro. Bentham renta racionalizar a ayáo pública para aumentar sua
cálculo individual, essas mesmas pesquisas pretendiam mostrar que alguns eficácia, utilizando mecanismos de.-controle e inceritivo estritos e refi-
"conseguem mais por seu dinheiro" do que outros. Assim, urna literatura nados, cujo objetivo é orientar o comportamento dos indivíduos num
abundante, visando a deslegitimar o Estado de bem-estar e as políticas sentido favorável ao interesse geral, ou ao menos diminuir a divergencia
redistributivas, dedicou-se a mostrar que esses dispositivos tendiam a ter entre o interesse de cada agente e o que é coletivamente esperado dele
efeitos contrários aigualdade que se desejava obter. em termos de serviyos úteis.
De modo geral, a aplicayáo do cálculo de custo-benefício tende a mostrar Entendendo que o Estado deve intervir na economia e na sociedade
que o "consumidor" paga sempre mais caro por um bem público do que diretamente pela legislayáo e indiretamente para gerir e vigiar a populac_;:áo,
por um bem privado e que também paga mais caro por um bem privado a fim de orientar os interesses e as ayóes na direyáo mais adequada para asse-
cuja produyáo é regulamentada do que.por um bem privado cuja produyáo gurar "a maior felicidade para o maior número de pessoas", Bentham tentou
náo é regulamentada. Para além dessa vontade demonstrativa, porém, esse refletir, durante toda a sua langa carreira de tecnólogo e pensador, acerca
tipo de análise da "produyao política" é importante pelo tipo de concepyao dos dispositivos coercitivos e incitativos que possibilitam foryar os agentes
do Estado que supóe. Este último diz respeito aanálise económica comum f>U~li~os a unir inr~resse particular e interesse coletivo, segundo o "prindpio
so mente na medida em que é concebido a priori como um agente tal qual de jÚnyáo do íntúesse e dO deve/' 30 • A originalidade de Bentham - que
outro qualquer dentro do sistema económico, um agente que busca seus faz dele um dos precursores ignorados do que desde entáo foi denominado
próprios objetivos e deve responder ademanda com urna oferta, cuja pro- a "nova gestáo pública'' - deve-se ao fato de que ele náo se contenta em
duyáo é comparável ados o u tras agentes económicos privados. apelar para o mercado a fim de lutar contra os desperdícios burocráticos.
Essa interpretayáo neoclássica da ayao pública apareceu como relativa- Ele deseja descobrir meios substitutos de controle dos agentes públicos que
mente nova na história oficial da teoria económica. Ela considera o Estado renham a mesma eficácia do mercado sobre os indivíduos que panicipam
náo mais como urna entidade "exógena" a ordem do mercado, que deve dele. O objetivo é eliminar todos os abusos, as incompetencias, as vexayóes,
respeitar limites externos, mas como urna entidade inteiramente integrada no as delongas, as opressóes e as fraudes que os administrados sofrem nas máos
es payo das tracas, no sistema de interdependencia dos agentes económicos. de políticos e funcionários públicos espontaneamente corrompidos por seu
Partir da hipótese de que todo agente público é' um ser que fará seu "sinister interest', contrário ao interesse do maior número de indivíduos.
interesse particular passar a frente do interesse geral nao é urna coisa Em muitos de seus textos, sobretudo em Código constitucional, escrito nos
anos 1820, Benrham pinta um vasto quadro de um aparelho burocrático
inteiramente ordenado pelo prindpio de controle da conformidade das
29
Numerosas análises de Bentham antecipam as críticas da expansáo burocrática: "O ayóes dos funcionários públicos com o interesse do público 31 •
interesse do ministro é ter muitos empregados, isto é, tantos dependentes quanto
for possível: multiplicar os agentes é multiplicar suas criaturas; pagar grandes salários
a eles é prend~-los ainda mais a seu protetor; e náo há nenhum motivo para vigiá-
-los de muito perta, porque de náo perde nada coma negligencia deles", ]eremy
30
Sobre esse ponto, ver a tese de Christophe Chauvet, Les apports_de ]eremy Bentham a
Bentham, 1héorie des peines et des récompenses, v. 1 (Londres, B. Dulau, 1811), p. 224. l'ana/yse économique de l'État(Tese de Do morado em Ciencias t:-conümicas e Gestáo,
Para Bentham a soluyáo é muito diferente das preconizadas pelos economistas Amiens, Universidade de Picardie, 2006).
31
neodássicos. Ela repousa sobre a democracia mais radical e a vigilancia contínua de Ver LeonardJ. Hume, Bentham andBureaucracy (Cambridge, Cambridge University
representantes e funcionários públicos em dispositivos panópticos. Press, 2004).
294 s A nova razio do mundo O governo empresarial e 295

Por esse conjunto de dispositivos, a intervenyáo pública corresponderá probabilidade de puni<;áo, "O bom governo depende da arquitetura mais
ao objetivo governamental de "maior felicidade para o maior número de do que se imaginava até o presente", escreve Bemham33 • Todo o edifício
pessoas". Com relayáo aorganizayáo do Estado, esse objetivo se especificará burocrático benthamiano é concebido como um sistema de controle pelo
por meio da aplicayáo de dais princípios subordinados: o princípio de qua! tuda deve se!' ordenado: a defini<;áo precisa dos postas, das fun¡;óes e
maximizayáo da aptidáo dos agentes públicos e o princípio de minimiza- das competencias requeridas, o estabelecimento de normas nas relayóes entre
<;áo do gasto público ( Official aptitude maximized, expense minimized), O os funcionários públicos e o público.,-a manutenyáo rigorosa e exaustiva dos
prindpio de utilidade permite pensar ao mesmo tempo a eficácia das ayóes livros contábeis, a publicayáo regular de relatórios de atividade, o regime
privadas espond.neas sobre o mercado e a necessidade de controle rígido permanente de inspeyáo dos serviyos e, acima de tuda, o coptrole da opiniáo
das atividades dos que sáo capazes de fazer seu interesse privado passar a pública sobre a ayáo dos agentes do Estado.
frente do interesse coletivo. De fato, a primazia do interesse pessoal con duz Mas a vigiláncia náo é tuda. Também é preciso saber empregar os incen-
a dais caminhos que náo sáo táo contraditórios como poderiam parecer: tivos positivos que estimulam o cumprimento do dever. Em Teoria das penas
de um lado, dar a maior liberdade possível aos agentes que perseguem seu e das recompensas, Bentham imputava a igualdade dos salários a maleza e a
próprio objetivo no mercado; de outro, exercer controles estritos sobre todos ociosidade que imperavam nas repartiyóes públicas. Para assegurar a uniáo
os que deveriam trabalhar para o interesse coletivo, mas, quando náo sáo do interesse coro o dever, é preciso transformar o salário numa recompensa
suficientemente vigiados, infalivelmente sáo tentados a trabalhar para sua proporcional a assiduidade e a forma como o serviyo é prestado, o que é
própria satisfayáo. A confianya que se tem em uns - relativa, é claro - é particularmente recomendado no caso da remunerayáo do responsável pelo
acompanhada de urna desconfianya absoluta em relayáo a outros. Portanto, - s·~-':"iyo. Nos hospitais ou nas casas correcionais, nos locais de trabalho, no
o mesmo princípio, o do interesse, leva a descoberta de dispositivos nor- Exército e na- Mkinha, 6' responsável será punido o u recompensado con-
mativos que produziráo na esfera pública resultados táo desejáveis quanto forme o número de feridos, doentes o u martas, de modo que· os interesses
o mercado na esfera privada32 • Para agir contra os abusos de poder, que sáo dele estejam de acordo com os que lhe foram confiados.
doenyas estrutrnais de qualquer relayáo política, Bentham propóe como As análises de Bentham antecipam as do Public Choice na medida
soluyáo universal a transparencia, que impede os funcionários públicos e os em que partem do mesmo postulado do agente calculador que sempre se
representantes eleitos de trabalhar para o próprio benefício ou de desperdi- guia pelo interesse pessoal. No entanto, como veremos adiante, há urna
yar o dinheiro público. Bentham é um dos que instituíram como regra de grande diferenya em relayáo as análises do Public Choice no que se refere
o uro o controle dos agentes públicos pelo público. Invertendo o dispositivo ao papel que se atribui aos mecanismos da democracia. Em todo caso, náo
panóptico, em que um pequeno número de inspetores podia vigiar um compreenderíamos as relayóes entre as duas posiyóes se náo as situássemos
grande número de indivíduos, ele descreve disposiyóes arquitetónicas em naquilo que constitui propriamente a governamentalidade fundamentada
seu Código constitucional que permitem que o público, instalado em galerias sobre os interesses, se náo víssemos que as práticas de mensurayáo e incentivo
em volta dos espayos ande se realiza o trabalho administrativo, observe por que visam a guiar as condutas sáo parte integrante da forma de governar os
trás de espelhos falsos a intensidade do trabalho dos funcionários. "Como na homens nas sociedades de mercado. A mensurayáo dos efeitos- o que hoje
prisáo panóptica, basta que o agente público acredite estar continuamente é chamada de avaliaráo - náo é alheia a prática governamental moderna.
sob vigiláncia para que o dispositivo produza o efeito desejado. Por meio Ela náo é um acréscimo tardio; ao contrário, ela a caracteriza desde o início,
dessa vigiláncia, a esperanya de ganhos obtidos com comportamentos cri- como indica a atenyáo que a tecnologia do utilitarismo benthamiano lhe
minases é contrabalanyada na mente do agente sob observayáo pela grande dedica. Certamente foi preciso tempo para que essa dimensáo da avaliayáo

32
Christophe Chauvet, Les apports de ]eremy Bentham al'ana!yse économique de l'État, 33 Jeremy Bemham, Constitutional Code, v. 1 (orgs. FrederickRosen e James Henderson
cit., p. 22. Burns, Oxford, Clarendon, 1983).
"'!'$8/::-

296 "' A nova razáo do mundo O governo empresarial 6


297

da eficácia adquirisse toda a amplitude que hoje se reconhece nela e que lhes favores:a pessoahnente, náo considerando o benefício que terá com isso
aparece como o modo "evidente" de regulayáo da atividade pública. Desse a sociedade como um todo, Podem ocasionalmente sacrificár seu bem-estar
ángulo, a prática neoliberal é um poderoso elemento revelador das lentas por um interesse mais geral, como faz 8.s vezes qualquer morral, mas devemos
esperar que essa atitude S@ja excepcional.36
muta~óes que afetaram os modos de governo desde o século XVIII.
O burocrata tenta aumentar os créditos de seu serviyo, o número de
seus subordinados o u subir no escaláo37 . Definindo ·grosseiramente urna
O Public Choice e a nova gestáo pública repartiyáo pública como urna organizayáo que náo visa ao lucro e cujos
O consenso em torno de urna reforma de inspirayáo neoliberal da ayáo agentes náo tiram seu sustento da venda de um produto, Wi{liam Niskanen
pública deriva da crenya no fim da "era da burocracia" 34
• Em o u tras palavras, afirma que a funyáo de utilidade do burocrata está ligada ao aumento do
a reestruturayáo da ayáo governamental a que assistimos em graus e ritmos oryamento de sua repartiyáo. Se a empresa privada procura maximizar o
diferentes conforme o país náo deve ser interpretada segundo seus critérios lucro, a repartiyáo pública procma maximizar o oryamento38 • Tullock diz
(os tres "ee": eficácia, economia, eficiencia), mas segundo a lógica antropo- a mesma coisa:
lógica da qual ela participa e cujos principais teóricos foram os economistas Via de regra, o burocrata verá crescerem suas chances de promoyáo, seu
do Public Choice, em particular James Buchanan e Gordon Tullock. poder, sua influencia, o respeito público e até mesmo melhorarem as con-
A Escala do Public Choice, cuja sede histórica é a Universidade de diyóes materiais de seu escritório, quando sua administra<;áo aumenta. [... ]
Se a burocracia cOmo wn todo se expande, quase todo burocrata que fa<;a
Virgínia, em Charlottesville, produziu urna análise do governo que focaliza
parte dela ganhará alguma coisa com isso, mais ainda se a subdivisáo em
náo a natureza dos bens que ele produz, mas a forma como ele os produz. ,··qUe, trabalha se ,expande.??
Aplicando a teoria económica as instituiyóes coletivas, a Escala do Public
Choice considera que, se supomos em todos os domínios a unidade do A essa tendencia automática ao crescimento da oferta corresponde urna
funcionamento humano, náo há razáo para náo realizarmos urna homo- tendencia aexpansáo da demanda. Como o Estado social suscita múltiplas
geneizayáo a um só tempo teórica e prática do funcionamento do Estado demandas de intervenyáo, a burocracia parasitária incha. Cria-se urna espécie
e do mercado. O funcionário público é um hornero igual aos outros, um de grande alianya entre os funcionários públicos e os membros das classes
indivíduo calculador, racional e egoísta, que procura maximizar seu interesse médias, que sáo os que mais aproveitam os serviyos públicos, acarretando
pessoal em detrimento do interesse geral. Apenas os interesses privados tem urna inJ!a~iio do pessoal e do gasto público. Os que se beneficiam disso
realidade e significado para os agentes públicos, apesar de seus protestos organizam-se em grupos de pressáo internos (os burocratas) ou externos
virtuosos. O Estado náo maximiza o interesse geral, os agentes públicos é (os lobbies), em detrimento dos contribuintes atomizados. Esse fenümeno é
que buscam na maior parte do tempo seus interesses p3..rticulares a custa de reforyado pelo comportamento dos parlamentares, que tentam "comprar" os
um desperdício social considerável35: votos decisivos das frayóes mobilizadas do eleitorado e tirar proveito do apoio
de um funcionalismo cada vez mais numeroso. Quanto mais burocratas há
Enquanto homens comuns, semelhantes a todos os outros os burocratas
tomaráo a maioria de suas decisóes (poréni nem todas) em 'fun<;áo d~ que

36 Gordon Tullock, Le marchépolitique: analyse économique des processus politiques (Paris,


34 Economica, 1978), p. 34.
Passaríamos do modelo bmocrático como centro e organizas:áo da sociedade para um
37
paradigma "pós-burocrático" (noo:;:áo atribuída a Michael Barzelay, Breaking Through Idem, The Politics of Bureaucracy (Washington, Public Affairs Press, 1965); William
Bureaucracy: A New Vísion for Managing in Government, Berkeley, University of Niskanen, Bureaucracy and Representative Government (Chicago, Aldine Publishing
California Press, 1992), baseado na nova economia política. Company, 1971).
38
35
Ver Xavier Greffe, Analyse économique de la bureaucratie (Paris, Economica, 1988), William Niskanen, Bureaucracy and Representative Government, cit., p. 42.
p. 13. 39 Gordon Tullock, Le marché politique, cit.
298 .. A nova razáo do mundo O governo empresarial " 299

"entre os eleitores, mais há eleitores favoráveis aos impostes e as despesas alavancas14 • A primeira, evidentemente, é fazer serviyos públicos e privados
públicas. O resultado é que a burocracia tende a "superproduzir" servü;:os · concorrerem entre si, dando·a sociedades privadas contr~tadas a possibi-
as
em relayáo necessidades reais da populayáo. Aproveitando-se de recursos lidade de contribuir para o fornecimento de serviyos que até entáo eram
abundantes que náo sáo devolvidos a coletividade, a administrayáo pública fornecidos exclusivaii-ieme Pela administrayáo pública. Mas isso também
e
os gasta custe o que custar para justificar sua exist¿-ncia seu cresdmento. pode ser feito pela concorrencia entre os próprios serviyos burocráticos.
Como dizia Jean-Jacques Rosa, "o mercado político é um lugar onde se Como explica Tullock, basta dividir _a--administrayáo pública "ern seto res
trocam votos por promessas de intervenyóes públicas" 40 . Essa crítica da pequen os, com orc;:amentos separados", e comparar os desempenhos 45 •
burocracia deduz do postulado do egoísmo racional dos agentes o conjunto Como se ve, a análise dos economistas da Escala de Virgínia concorda
dos efeitos negativos a que conduz a ausencia- de concorrencia na produyáo em muitos pontos como diagnóstico e as solw;óes de Bentham. Em ambos
de serviyos públicos41 • os casos, trata-se de criar incentivos positivos o u negativos, similares aos do
Niskanen propóe como principal alavanca da mudanya estrutural a mercado, para guiar o interesse do funcionário. Contudo, há urna grande
competi(_(áo entre repartiyóes na oferta de serviyos semelhantes para quebrar diferenya quanto a concepyáo da democracia: no Bentham radical dos anos
o monopólio público e aumentar a eficiencia da produyáo42 • Também sugere 1820, é pelo controle estrito dos eleitores sobre os representantes e os fun-
rnodificayóes nos incentivos ao trabalho, como a introduyáo de um sist~ma cionários públicos que se poderá pOr em prática o "prindpio de junyáo do
de lucro pessoal baseado no pagamento aos chefes de departamento de urna interesse e do dever'~-; o Public Choice, recuperando as críticas de Hayek,
parte da diferenya entre o oryamento alocado e os custos efetivos ou, ainda, um a
é_ um movimento hostil democracia representativa, que é vista como o
sistema de promoyóes cuja rapidez seria proporcional a reduyáo do oryamento pdil~ipal fator de qesdmento da burocracia. Num regime democrático, os
gasto. Os objetivos normativos do Public Choice sáo explícitos: cidadaos náo pOdeÍn exercer um controle real sobre os burocratas e tentam
Em geral, as exigencias que pesam sObre o comportamento de um indivíduo aliar-se a eles quando conseguem se organizar. De sua parte, os parlamentares
no mercado sáo mais "eficazes" do que as que os empregados do Estado incentivam a superproduyáo burocrática para serem reeleitos. E os pobres,
enfrenram, de modo que os indivíduos no mercado, procurando a satisfac;:áo que náo pagam impostas, usam e abusam de um poder eleitoral rnaior do
do próprio bem-estar, servem bem melhor ao bem-estar de seus concidadáos que os ricos, menos numerosos, para fazer estes últimos arcarem com a
do que os homens que trabalham para o govcrno. Na verdade, um dos obje-
maior parte do peso dos impostes. É nesse sentido que James Buchanan,
tivos da "novidade econ6mica" é elevar o coeficiente de "eficácia'' do governo
por meio de reformas a fim de aproximá-lo do coeficiente do mercado:13
em Les limites de la liberté (1975), título sintomátíco, defende a supressáo
do Estado de bem-estar e sua substituiyáo por um novo contrato social em
Ainda que esse coeficiente nunca seja atingido, já que, "mesrno numa que os ricos pagariam urna compensayáo financeira aos pobres em trocada
situayáo de concorrencia, na prática as administrayóes públicas nunca supressáo dos auxílios recebidos. Buchanan milita mais amplamente por urna
se mostram táo eficazes quanto as sociedades privadas numa indústria "revoluyáo constitucional" que obrigaria os governos a respeitar limites de
competitiva'', é possível esperar urna melhora da situayáo por diferentes endividamento, déficit e nível de impostos46 : "A democracia pode se tornar
seu próprio Leviatá se náo lhe forem impostas limites constitucionais e se
náo se fizer com que estes sejam respeitados" 47 • O objetivo dessa revoluyáo
40
"Face-a-face Attali-Rosa'', L'Express, 9 jun. 1979, citado em Henri Lepage, Demain
le libéralisme (París, Hachette, 1980, Coles:áo Pluriel), p. 60 [ed. port.: Amanhd, o
liberalismo, trad. Teresa Cardoso, Lisboa, Europa-América, 1988]. 44 Ibidem, p. 44.
41 45
Ver o resumo que Henri Lepage faz das teses da corrente do Public Choice em ibidem, Ibidem, p. 46.
p. 202-6. 46 James Buchanan, Les limites de la liberté, entre l'anarchie et le Léviathan (Paris, Litec,
41
William Niskanen, Bureaucracy and Representative Government, cit., p. 195. 1992), p. 42.
43 47
Gordon Tullock, Le marché politique, cit., p. 15. lbidem, p. 184.
300 .. A nova razáo do mundo O governo empresarial " 301

seria "reconstruir os fnndamentos da própria ordem constitucional", urna sabendo que os indivíduos tentam maximizar sua utilidade e visam a tirar
medida radical indispensável diante dos impasses do pragmatismo tradicional proveito do fato de que os contratos nao especificam o co~teúdo das tarefas
dos norte-americanos. que devem ser cumpridas (postulado da incompletude dns contratos). Esse
Tocarnos aqui no cerne dos novas modos de governo da racionalidade modelo, utilizado -"í.ilicialrñente para análise das rela((óes entre acionista .e
neoliberal, e um de seus grandes princípios po-de ser -resumido pela frase gerente, tornou-se o guia de leitura das relayóes entre o "centro de decisáo"
benthamiana: "The more strictly we are watched, the better we behave" político e os órgáos de execuyáo, que_tém autonomia de gestáo e estao sujeitos
["Quanto mais estritamente somos vigiados, melhor nos comportamos"] 48 • a avaliayáo. Hoje é a forma mais comum de pensar as relayóes entre níveis
O postulado da conduta inerentemente interesseira dos agentes públicos hierárquicos: presume-se que avaliayóes cada vez mais sofisti~das resolvem o
leva a reforma dos meios de controlá-los e guiá-los. Essa vigiláncia, que "problema da agéncia", isto é, o comportamento oportnnista do executante
tomou o aspecto concreto e difuso de urna avalia((áO contábil de todos os que dispóe de urna informayáo que o decididor náo tem.
atas dos agentes públicos e dos usuários, é o princípio implícito da reforma Essa nova economia política serviu de "senso comum" a um vasto mo-
do setor público que é apresentada como a única possível. Essa reforma é vimento de reorganizayáo das administrayóes públicas, ao qual Christopher
inspirada em práticas de gestáo privada baseada na eficü~ncia49 • Se é preciso Hood deu o nome genérico de "nova gestáo pública'' (new public manage-
privatizar tanto quanto possível, também é necessário interromper as lógi- ment)_ em 1991. Essa "nova gestáo pública'' visa a mudar o Estado e, para
cas que levaram ao awnento da burocracia e dos gastos públicos, isto é, as isso, inspira-se sistematicamente em lógicas de concorréncia e métodos de
alianyas de interesses entre grupos de pressáo internos, lobbies externos e _governo empregados nas empresas privadas50 • Sua intenyáo é "reinventar
representantes eleitos. A empresa deve substituir a burocracia em rudo que 0-governo" diant~ do que parece ser um fracasso·das esperanyas nos grandes
for possível e, quando náo o for, o burocrata deve conduzir-se o máximo pr~gramas dos afias I95ó' e 1960; e isso num contexto político em que os
possível como um empreendedor. governos desejam poder limitar os custos e, ao mesmo tempo; aumentar a
Vimos antes que, segundo os economistas do Public Choice, apenas satisfayáo dos usuários, vistos como clientes.
os interesses privados possuem realidade e significado para os indivíduos Esse "paradigma global" da reinvenyáo do governo apresentou várias
maximizadores. A suposiyáo de que todo agente público é calculista e opor- faces, conforme o país, o governo ou o intérprete, os quais ressaltam ora a
tunista encontra-se no princípio dos dispositivos de controle instaurados. importayáo do modelo da empresa, ora a necessária participayáo democrá-
Os modelos de referencia da nova governan':(a pública, procedentes da eco- tica da populayáo nas decisóes - isso quando nao misturam as duas coisas.
nomia empresarial, trouxeram novamente a baila a questáo d~ oposiyáo e da Mas a principal tendencia nos países desenvolvidos consistiu em impar um
concilia((áo entre os interesses do mandante e do executante. O modelo do novo modo de racionaliza((aO J.s administrayóes públicas que obedece as
principal-agent, surgido nos anos 1970, é empregado na literatura econümica lógicas empresariais. Concorréncia, downsizing, outsourcing [terceirizayao],
para reflerir sobre as relayóes entre níveis hierárquicos. Esse modelo se funda-
menta em escolhas racionais: o principal é aquele que tema autoridade, e o
agente é aquele que se encarrega da execuyáo. O problema é como a~segurar, 50 Pode-se dizer que as tentativas de melhorar a produtividade do setor público náo
por dispositivos de vigiláncia e incentivo, que os mandatários (o agente) sáo novas. Os Estados Unidos foram pioneiros nesse movimento, como mostra o
trabalho da Comissáo Hoover, que em 1949 preconizou a criaqáo de "on;:amentos
ajam de forma congruente com os interesses dos mandantes (o principal),
por desempenho" que deu origem ao Budget and Accounting Procedures Act de
1950. Nos anos 1960, o Planning Programming Budgeting System (PPBS) deu
continuidade a esse trabalho, fazendo surgir diversas modalidades de "racionalizaqáo
48
Jeremy Bentham citado em Florence Faucher-King e Patrick le Gales, Tony Blair, das escolhas orqamentárias". No entamo, essas tentativas riáo tinham o caráter siste-
1997-2007(Paris, Presses Sciences Po, 2007), p. 65. mático e universal que o movimemo de reforma da "nova gestáo pública'' adquiriu a
49
A eficácia tem como critério a melhor soluqáo dada a um problema, já a eficiencia partir do fim dos anos 1980 e do início dos anos 1990. Também náo seguiam como
pressupóe avaliar financeiramente a solu~o mais económica. modelo exclusivo a gestáo do setor privado.
302 ., A nova razáo do mundo O governo empresarial ~ 303

auditoría, regulayáo por agéncias especializadas, individualizayáo das remu- A concorr2ncia no centro da a<;áo pública
nerayóes, flexibilizayáo do pessoal, descentralizayáo dos centros de lucro·,
"Concorréncia'' é a palavra-chave dessa nova gestáo pública. Nesse sen-
indicadores de desempenho e benchmarking sáo todos instrumentos que
tido, esta última trad-uz-o dogma friedmaniano:
administradores zelosos e decididores políticos em busca de legitimidade
importam e difundem no setor público em noffie da adaptayáo do Estado O maior perigo para o consumidor é o monopólio, seja privado, seja go-
vernamental. A proteyáo mais eficaz do consumidor é a livre concorrencia
a"realidade do mercado e da globaliza<;áo". interna e o livre-cámbio em todo o mundo. O que protege o consumidor da
A nova gestáo pública consiste em fazer com que os agentes públicos explora<;áo de um comerciante é a existéncia de outro comerciante, de quem
náo ajam mais por simples conformidade com as regras burocráticas, mas ele pode comprar e cujo único desejo é vender. A possibilidade de escolha
procurem maximizar os resultados e respeitar as expectativas dos clientes. entre várias fontes de abastecimento defende o Consumidor de forma muito
Isso pressupóe que as unidades administrativas sejam responsáveis por sua mais eficaz do que todos os Ralph Nader do mundo. 52

produyáo específica e possuam cena autonomía na realizayáo de seu proje- Se a ayáo pública deve ser urna "política de concorréncia'', o Estado deve
tos1. As técnicas de gestáo baseiam-se no tripé objetivos-avaliayáo-sanyáo. ser um atar concorrendo com outros atores, em particular no plano mundial.
Cada entidade (unidade de produyáo, coletivo ou indivíduo) passa a ser Trata-se de executar simultaneamente duas operayóes que aparecem como
"autónoma" e "responsável" (no sentido de accountability). No J.mbito de homogéneas em virtude da unicidade das categorías em jogo~ de um lado,
suas missóes, recebe metas que deve atingir. A realizayáo dessas metas é construir mercadoS que sejam o mais concorrenciais possível no ámbito
avaliada regularmente, e a unidade é sancionada positiva ou negativamente ·_ mercantil; de outro, fazer a lógica de concorréncia intervir no próprio J.mbito
de acordo com seu desempenho. A eficácia deve aumentar em razáo da da·~yáü pública. -Assim, a ~?ncorréncia está no princípio da liberalizayáo das
pressáo constante e objetivada que pesará sobre os agentes públicos, em indústrias de red~s, corno teleconiunicayóes, eletrkidade, gás, .ferrovias o u
todos os níveis, de tal modo que acabem artificialmente na mesma situayáo correios - urna liberalizayáo que náo se confunde com a privatizayáo ·nem
do assalariado do setor privado, que está sujeito as exigéncias dos clientes coma desregulamentayáo e mostra novas formas de intervenyáo pública pela
e as de seus superiores. criayáo de mercados, ou quasi-mercados, em setores que sáo considerados
U m dos aspectos importantes dessa nova gestáo, além da énfase no "de- monopolistas o u respondern a critérios estranhos as considerayóes de custo.
sempenho", é a importayáo do "critério de qualidade" utilizado pelas empresas Para retomarmos o título da obra de Israel Kirzner, concorréncia e espírito de
privadas que desejam subordinar sua atividade asatisfayáo do consumidor. empresa sáo as duas palavras-chave da prática governamental neoliberal 53 •
Urna das primeiras medidas importantes do governo Thatcher foi a
implanta<;áo do Compulsory Competitive Tendering (CCT), um sistema
51
Christian de Visscher e Frédéric Varone fazern wna excelente síntese: "A defini<;:áo
que tornava obrigatórias a chamada de ofertas para qualquer fornecimento
de objetivos quantitativos para a execw;:áo das políticas públicas, o foco nos auxílios
fornecidos, em vez do procedimento que se deve seguir, a redw;:áo dos custos de de serviyos locais e a escolha da oferta mais competitiva, de acordo com os
prodw;:ao dos serviyos públicos, a gestáo de urna unidade administrati:'a por urn critérios do "va!ue for money", o que significava fazer as empresas privadas
gerente que pode alocar livrernente seus recursos, a motiva~o do pessoal por meio e os governos locais concorrerem entre sP 4 •
de incentivos pecuniários, a garantía aos usuários de urna liberdade de escolha etc.
Em urna palavra, o objetivo da nova gestáo pública é transformar as administrayóes
públicas tradicionais em organizayóes volcadas para o desempenho. Dessa forma, o
Estado asseguraria para si urna legitimayáo secundária através da qualidade dos serviyos 2
-" Milton Friedman e Rose Friedman, La liberté du choix (Paris, Belfond, 1980), p. 217.
e do uso eficiente do dinheiro público. Esta reforyaria sua legitimidade primária, que
se baseia no respeito das regras democráticas, enquadrando, a montante, os processos 53 Israel Kirzner, Concun'tnce et esprit d'entreprise (Paris, Econol]lica, 2005).
54
deds6rios", Christian de Visscher e Frédéric Varone, "La nouvelle gestion publique 'en Para a análise do CCT, ver Patrick Le Gales, "ContrOle et surveillance. La restructu-
action'", Revue Internationale de Politique Comparée, "La nouvelle gestion publique", ration de l'État en Grande-Bretagne", ern Pierre Lascoumes e Patrick Le Gales (orgs.),
v. 11, n. 2, 2004, p. 79. Gouverner par les instruments (Paris, Presses de Sciences Po, 2004).
304 " A nova razio do m1.mdo O governo empresarial " 305

Supostamente, essa institudonalizayáo da competi<;:áo favorece urna melhor Essa "gestáo do desempenho" faz parte de urna espécie de "desfuncio-
realiza<;:áo das finalidades dos serviyos públicos, dando maior satisfa<;:áo aos nalizayáo" do serviyo público. Alguns de seus aspectos sáo: flexibilizac;:áo
clientes (que podem escolher livremente o prestador) e reduzindo custos. O ou supressáo das regras de direito público as quais os funcionários devem
que pressupóe que a forma da presta<;:áo do servi<;:o, pública o u privada, náo sujeitar-se; substitulyio doS concursos por contratos de direito privado;
afeta o conteúdo e o efeito do serviyo. FortalecendO- a eficácia dos servi<;:os pú- mobilidade entre servi<;:os e entre os setores público e privado; e demissáo
blicos, supostamente a política da escolha lhes dá urna nova legitimidade. Essa de funcionários considerados incompetentes 58 • Ernbora esteja em questáo
ideia é central na retórica da esquerda moderna, como sublinha Tony Blair: a dimensáo estatutária tradicional do emprego público, estamos longe de
A escolha é um princípio importante de nosso programa. É preciso haver urna "desburocratizac;:áo", como veremos adiante.
muito mais escolha, náo apenas entre prestadores de servü;os públicos, mas U m novo modelo de conduyáo dos agentes públicos tende a instaurar-
dentro de cada servic;o. Onde é possível, a escolha melhora a qualidade do -se: o governo empresarial. Ele repousa sobre os princípios da "gestáo do
servic;o prestado aos mais pobres e auxilia na luta contra as desigualdades, ao desempenho" e emprega ferrarnentas importadas do setor privado (in-
mesmo rempo que fortalece o apre<;:o das classes médias pelo servic;:o coletivo.
dicadores de resultados e gestáo de motivayóes mediante um sistema de
No campo da educac;:áo, isso significa escolha entre várias escalas, de modo
incentivos que perrnitern wn "governo a distáncia" dos cornportamentos).
que os pais possam optar com mais frequéncia por um estabelecimenro que
as
corresponda plenamente necessidades- dos filhos. 55 Esse governo supóe -urn controle estrito do trabalho dos agentes públicos
por rneio de avalia<;:óes sistemáticas e a subordinayáo destes a demanda de
A realidade é um pouco diferente: essa "livre escolha" é muito desigual,
-_"cidadáos-clientes" convidados a exercer sua capacidade de escolha diante
porque as famílias náo possuem a rnesrna capacidade de exerce-la com as
de-,~ma oferta diversificada, de acordo com o princípio do "controle pela
mesrnas vantagens, como mostraram numerosos estudos no campo escolar56 •
dem'anda". Essa es!ratégia tern urna natureza financeira e normativa. Permite
A concorréncia deve ser tarnbém o princípio da "gestáo dos recursos
fazer corn que o usuário contribua diretarnente como custo do'servic;:o, na
humanos". A constituiyáo de mercados internos de bens e serviyos é acom-
medida ern que o "responsabiliza'' financeirarnente - o que corresponde a
panhada da cria<;:áo de concorréncia entre os próprios agentes, dentro do
busca de urna diminuiyáo da pressáo fiscal- e é urna maneira de mudar o
setor público. A nova gestáo pública provoca urna rnutayáo profunda dos
comportamento do "consumidor" de servi<;:os públicos, convidado a regular
antigos sistemas de classificac;:áo e remunerayáo, em proveito de avaliayóes
baseadas no desempenho individual e nos incentivos financeiros personaliza-
a
dos. Desse modo, os gerentes frente do serviyo seráo avaliados ex-post, náo
Paris, La Documentation Frans:aise, 2008), encontramos urna formula<;:áo parti-
mais ex-ante, conforme o cumprimento das metas corn as quais se cornpro- cularmente apurada desse modo de concatena<;:áo avaliativa: "Se a cadeia gerencial
rneteram. Como eles próprios avaliam seus subordinados, adrninistrayóes e náo é mobilizada desde o topo até a base, sem descontinuidade, o resultado náo é
servic;:os públicos se parecern cada vez mais com longas cadeias de vigilancia alcans:ado", escreve Silicani. E acrescenta: "Assim, é fundamental que esses objetivos
gerenciais sejam recordados na carta de compromissos que é dada a cada ministro
e controle de desempenho individual57 •
e que este também seja julgado por seus resultados nesse domínio. Desse modo, ele
será instigado a proceder da mesma forma com seus assessores, que faráo o mesmo
com seus colaboradores, e assim por diante. A primeira condis:áo para que essa di-
55 Tony Blair, "Comment réformer les services publics?", En Temps Réel- Les Cahiers, námica gerencial virtuosa engrene, e gere rapidamente urna melhora considerável na
jun. 2003, p. 36. eficácia da administra<;:áo, é que se estabeles:a urna rela<;:áo direta de confian<;:a entre
56 Náo devemos nos esquecer também de que a "mercadoriza<¡áo" da presta<;:áo dos o ministro e seus assessores na administras:áo central". Nesse pesadelo burocrático,
servi<;:os na Grá-Bretanha foi concebida como um poderoso meio de controle sobre do ministro até o mais modesto agente público, urna cadeia contínua de controle
as autoridades locais, já que o governo central se dota de meios de san<;:áo para fazer deve supostameme assegurar a eficácia da totalidade administqtiva. Cada indivíduo
com que os novas procedimentos sejam aplicados. é avaliador e avaliado. Talvez apenas o presidente, o avaliador supremo, seja exce<;:áo.
58
57 No Livro Branco de Jean-Ludovic Silicani (Livre blanc sur !'avenir de la fonction B. Guy Peters, "Nouveau management public (New Public Management)", em
publique, faire des services publics et de la fonction publique des atouts pour la France, Dictionnaire des politiques publiques (París, Presses de Sciences Po, 2006).
306 ~ A nova razáo do mundo O governo empresarial o 307

sua demanda. O livro que melhor reúne o conjunto de características dessa e estimular as "parcerias público-privadas". Foram essas _novas práticas que
nova prática governamental é o best-seller de David Osborne e Ted Gaebler, permitiram a invenyáo, em nívellocal, dos "governos empresariais".
&inventando o governo, publicado em 1992 59 . Para esses dais autores, ne- Os governos empresariais obedecem a dez prindpios artalisados em detalhe
nhum governo é fixo na história. Do_ mesmo modo que as formas de ayáo pelos autores. A rrúi.io-ria desses governos promove a concorréncia entre for-
pública foram reinventadas pelo New Deal, devemos iriventar um governo necedores de serviyos; tira poder da burocracia para dá-lo aos cidadáos; mede
adaptado ao "novo mundo" da "era da informayáo", da globalizayáo e da o desempenho de suas agencias focando náo os recursos, mas os resultados; é
"crise fiscal" 60 • A produyáo de serviyos públicos deve obedecer mesma a guiada pela busca de seus objetivos, náo pelo respeito de regras e regulayóes;
regra que orientou a reorganizayáo das empresas: reduyáo de tamanho, considera que os usuários sáo consumidores e oferece a eles possibilidades
foco num "ofício", aumento da qualidade, descentralizayáo da autoridade, de escolha entre escalas, programas de formayáo, tipos de habitayáo; previne
horizontalizayáo da linha hierárquica61 • Trata-se menos de alterar o volume os problemas antes que surjam, em vez de conformar-se em oferecer poste-
de despesas, para mais ou para menos, do que de reinventar as políticas e riormente o serviyo; emprega sua energia a fim de evitar gastos, em vez de
os organismos públicos. Segundo eles, estamos vivencia um período em procurar fundos; descentraliza a autoridade, favorecendo a administrayáo
que devemos abandonar o modelo burocrático weberiano e passar a um participativa; prefere os mecanismos do mercado aos mecanismos burocrá-
modelo pós-weberiano. O termo pelo qual pretendem resumir sua proposta ticos~-e concentratp-se náo só no fornecimento de serviyos públicos, mas
é "governo empresarial" 62 • na mobilizayáo de todos os setores - público, privado e associativo - para
A intenyáo dos autores náo é propor um novo modelo saído de sua resolver os problemas da comuriidadé3•
imaginayáo, mas explicar o que está em andamento nos Estados Unidos. . Segundo Osbprne e Gaebler, náo devemos confundir esse governo empre-
A reinvenyáo do governo empresarial é um processo que, segundo eles, sarial, resumido ~m seus díversos aspectos, como free marketdos conservado-
comeyou quando os eleitores californianos votaram a famosa "Proposta res: "Estruturar o mercado para realizar um objetivo público é, ha verdade, o
13", em 6 de junho de 1978, diminuindo para a metade o imposto local contrário de deixar ao 'livre mercado' a tarefa de regular as coisas; trata-se de
sobre a propriedade. Essa "revolta fiscal" se estendeu a todos os estados wna forma de intervenyáo no mercado" 64 • De todo modo, acrescentam, náo
norte-americanos, até que Reagan a transformou no eixo principal de sua existe livre mercado se o entendemos como um mercado isento de qualquer
política. Nos anos 1980, constatando a diminuiyáo de recursos, prefeitos e intervenyáo governamental. Todos os mercados legais sáo estruturados por
governadores foram abrigados a desenvolver novas formas de organiza<;áo regras estabelecidas pelos governos, com exceyáo dos mercados negros, que sáo
controlados pelaforya e regidos pela violéncia65 • Segundo eles, essa governanya
empresarial que utiliza alavancas públicas para orientar as decisóes privadas no
59 David Osborne e Ted Gaebler, Reinventing Government: How the Entrepreneurial sentido dos objetivos coletivos permite a definiyáo de urna "terceira via'' entre
Spirit is Transforming the Public Sector, from Schoolhouse to State House, from City Hall o freemarketdos conservadores e os programas burocráticos do biggovernment
to the Pentagon (Reading, Addison-Wesley, 1992) [ed. bras.: &inventando o governo:
dos "liberais" (no sentido norte-americano do termo).
como o espírito empreendedor está transformando o setor público, trad. Sérgio Fernando
Guarischi Bath e Ewandro Magalháes Júnim~ 5. ed., Brasflia, Mh Com~nicas:áo, O tema do governo empresarial náo caiu no vazio. Foi no governo Bill
1995]. Osborne também é coautor de Banishing Bureaucracy: The Five Strategiesfor Clinton que se lanyou a Nacional Performance Review, inspirada no livro
Reinventing Government e The Price ofGovernment: Getting the Results We Need in An de Osborne e Graeber. Após o relatório redigido em 1993 por Al Gore, em
Age ofPermanent Fiscal Crisis.
que ele estabelecia como programa "a criayáo de um governo que funcione
60
David Os borne e Ted Gaebler, Reinventing Government, cit., p. xvii.
61
Ibidem, p. 12.
63
David Osborne e Ted Gaebler, Reinventing Government, cit.; p. 20.
r,z Para Osborne e Gaebler, a palavra "empreendedor" tem um sentido preciso, que eles
64
tomam de Jean-Baptiste Say: empreendedor é aquele que, em qualquer campo em Ibidem, p. 283.
65
que se encontre, aumenta a eficácia e a produtividade. lbidem, p. 284.
308 • A nova razáo do mundo O governo empresarial , 309

melhor e custe menos" 66 , o governo Clinton organizou urna vasta operayáo empresas de auditoria que orientavam o governo69 : Efficiency Unit, Scrutinity
de propaganda e criou "equipes" e "laboratórios" para reinventar o governo 67 • Prograrnme, Financia! Manágement Initiative e National Audit Office.
Segundo Al Gore, a National Performance Review possibilitou o corte de Em 1988, um relatório ao primeiro-ministro británico deu início a
351 mil pessoas do funcionalismo público. Urna iniciativa semelhante no operayáo ambiciosa e sistemática dos next steps [próximos passos]7°. A
Canadá, em 1994, gerou um corte de 45 mil fllñ.cionários públicos. Esse administrayáo pública era vista como um conjunto de "unidades de produ-
procedimento de auditoria geral, fortemente encorajado pelas instituiyóes yáo" o u "agéncias" com autonomia,. que perseguia seus próprios objetivos e
de expertise internacionais, como a OCDE, espalhou-se por todo o mundo respondia a indicadores de desempenho. Várias opyóes foram apresentadas
com no mes diferentes, mas seguindo a mesma lógica. para melhorar a produtividade do serviyo público: privatizayáo, subcon-
tratayáo no setor privado ou autonomizayáo das agéncias71 • Nesse último
caso, tratava-se de fragmentar um serviyo público unificado e normatizado
Urna política de esquerda?
em entidades descentralizadas e responsáveis perante o ministro em ques-
Essa "reinvenyáo do governo" se apresenta com frequéncia como urna táo. Desse modo, a funyáo pública brit<lnica é progressivamente dividida
reinvenyáo da política de esquerda. Na verdade, isso é apenas o exemplo mais em cerca de 11 O agéncias aut6nomas, reunindo quase 80% dos agentes
flagrante da dominayáo da nova razáo neoliberal. A reforma dos instrumentos públicos. Cada agéncia é dirigida por um responsável selecionado por sua
de intervenyáo pública tornou-se, no fim dos anos 1990, a base do acordo competéncia administrativa e remunerado de acordo com seu desempenho.
entre Bill Clinton, Tony Blair e outros dirigentes da esquerda europeia. O Livre para gerir, ele pode subconi:ratar serviyos no setor privado, caso julgue
teórico da terceira via, Anthony Giddens, descreve nos seguintes termos as ess~ soluyáo mais . eficiente.
novas orientayóes da "reforma do Estado": A Grá-Bretanha de To;,y Blair segue as orienta1=óes do thatcherismo. A
A malaria dos Estados ainda teill muito que aprender com as melhores Privare Finance Initiative, também denominada Public-Private' Partnership
técnicas de gestáo empresarial. Eles deveriam buscar, em especial, controles as
(PPP), permite empresas do setor privado financiar e gerir os serviyos públicos
de resultados, auditorias, implantar estruturas de decisáo mais flexíveis ou ligados a saúde, educayáo e seguranya. O contrato dá ao setor privado o direito
garantir urna maior participa~áo dos empregados. 68 de explorar um serviyo durante longos períodos (vinte ou trinta anos), em troca
Contudo, aquilo que se apresemava como urna "renovayáo" da esquerda do financiamento e da manutenyáo da infraestrutura. Mas as empresas privadas
tendia a obliterar o fato de que a mutac;:áo empresarial da ayáo pública era apenas náo fornecem necessariamente um serviyo de qualidade equivalente e o Estado
o aprofimdamento de urna política iniciada pelos governos neoliberais dos anos é abrigado a participar dos custos, subvencionando as empresas privadas72 •
1980. Os conservadores británicos foram os pioneiros nes~a estrada. Em 1980,
urna série de dispositivos foi implantada para possibilitar a aplicayáo sistemática 69
Ver Denis Saint-Martin, Building the New Managerialist State, cit.
no setor público do princípio de eficiéncia, táo prezado pelos consultores das 7
° Cf. o relatório "lmproving Management in Government- The Next Steps", 1988. Ver
Christopher Hood, "A Public Management for All Seasons?", Public Administration,
v. 69, n. 1, 1991, p. 3-19; Perry Anderson, "Histoire et leyons du néolibéralisme",
66
Ver From Red Tape to Results: Creating a Government that Works Better and Costs Less Page 2, nov. 1996, p. 2; Xavier Greffe, Gestion publique (Paris, Dalloz, 1999).
(Washington DC, Government Printing Office, 2003). O termo "red tape" designa 71
Xavier Greffe cita o Livro Branco de 1991 (Competingfor Quality), que faz do "teste
a fita vermelha que prende os documentos administrativos. O equivalente francés,
de mercado" um desses métodos para abrir o fornedmento de serviyos aconcorréncia:
apesar de um pouco familiar, seria paperasse [papelada]. Isso significa que devemos
''A concorréncia pela qualidade: se as soluyóes mercantis sáo melhores, privatizar; se
passar da regra burocrática aos resultados.
náo, introduzir o máximo possível mecanismos de mercado para aumentar o controle
67
Ver Xavier Greffe, Analyse économique de la bureaucratie, cit., p. 143. do cliente sobre o serviyo", citado em Xavier Greffe, Gestion publique, cit., p. 151.
68
Anthony Giddens e Tony Blair, La troisil!me voie. Le renouveau de la social-démocratie 72
Philippe Marlihe, Essais sur Tony Blair et le New Labour: la troisieme voie dans !'impasse
(Paris, Seuil, 2002), p. 87. (Pari,, Syllrpse, 2003), p. 104.
310 o A nova razáo do mundo O governo empresarial o 311

O Canadá também implantou um programa de reestruturas:áo do setor urna auditoria sistemática de todas as políticas públicas e as .despesas sociais
público a partir de 1988 (Public Service 2000), assim como a Australia, a ·para "diminuir o gasto públicó, melhorando ao mesmo tempo a eficácia e .a
Nova Zelándia, a Dinamarca e a Suécia. Na Franya, Michel Rocard quis qualidade do servi<;o prestado pela administras:áo pública". A medida deve
impulsionar esse tipo de orientayáo em 1.991 (a "renovayáo do serviyo consistir em determi:ñ~-r ;:¡_ ''p~rtinéncia'' de cada ac;:áo pública- "sem tabu
público"). Em 1992, mandou publicar a "Carta dos Servi<;os Públicos", nema priori"- e, em seguida, fixar o nível de recursos materiais e humanos
introduzindo a lógica gerencial pela criayáo de "centros de responsabilidade" necessários ao cumprimento da tarefa, -levando-se em considerayáo os meios
nos servis:os descentralizados do Estado, os quais deveriam estabelecer "pro- de melhorar a produtividade dos serviyos. A originalidade tal vez resida nos
jetos de serviyo" com seus respectivos ministérios. As duas categorias-chave procedimentos extremamente centralizados dessa "revisáo geral:', comandada
dessa "renovayáo", isto é, a "responsabilizayáo" e a "avaliayáo", náo eram pelo círculo mais próximo do presidente da República, marginalizando dessa
muito originais73 . Esse primeiro enxerto da nova gestáo pública náo tomo u forma todas as instituiyóes e as instáncias que até entáo tinham o papel de
a dimensáo que teve em outros países, sem dúvida porque a relutáncia em controlar o oryamento e a administrayáo.
ver o setor público como um produtor de serviyos fornecidos a um diente O novo modelo de governo conquistou muitos países. Os temas e os
permaneceu cultural e politicamente forte na Franya. termos da "boa governanya'' e das "boas práticas~' tornaram-se o mantra da
A reforma administrativa, tema havia muito tempo defendido pelas elites ayáo governamental. & organizac;:óes internacionais propagaram amplamen-
a
modernizadoras frente do Estado francés 71, foi relanyada em fins dos anos te as novas normas da ayáo pública, sobretudo nos países subdesenvolvidos.
1990 e no início dos anos 2000, coma elaborayáo e a votayáo da Lei orginica O Banco Mundial, no Relatório sobre o desenvolvimento mundial, de 1997,
relativa as finanyas (Lolf), em agosto de 200 l. Essa lei prerendia introduzir propQs .a· substituiyáo do termo "Estado mínimo" por "Estado melhor".
urna obrigayáo de bom desempenho na gestáo financeira do Estado. O fi- Em ve'z de encorajai sistem~t-icamente as privatizayóes, deseja ver o Estado
nanciamento oryamentário náo poderia mais depender da natureza do gasto, como um "regulador" dos mercados. O Estado deve ter autorid3.de, deve
mas dos resultados dos "programas", dos quais se exigia que explicitassem concentrar-se no essencial, deve ser capaz de criar quadros regulam~ntares
objetivos precisos que seriam submetidos a avaliayáo. Como podemos ver, indispensáveis aeconomia. Segundo o Banco Mundial, o Estado eficaz é um
também náo há nada muito original nessa nova prática que visa a "trocar Estado central forte, cuja prioridade é urna atividade reguladora que garanta
urna lógica de meios por urna lógica de resultados". o Estado de direito e facilite o mercado e seu funcionamento 75. A OCDE náo
Urna segunda fase, chamada fase de acelera<;áo, foi desencadeada em julho ficou atrás: desde meados dos anos 1990, multiplicou as recomendayóes de
de 2007, pouco após a eleiyáo de Nicolas Sarkozy, como nome de Revisáo reforma da regulamentayáo e abertura dos serviyos públicos concorrencia,a
Geral das Políticas Públicas (o que lembra de cerro modo a National Per- por intermédio das atividades de seu departamento de gestáo pública (Public
formance Review, de Al Gore). Chegando a um balans:o bastante mitigado Management Committee, o u Puma). A Comissáo Europeia fez o mesmo
das primeiras medidas de "modernizayáo", o governo tenciona operar um
verdadeiro "rompimento". Também nesse caso, a prática náo é nova, em
75
comparayáo com o que ocorreu em outros países, já que se trata de Í:ealizar O Banco Mundial escreveu no relat6rio de 1997: "Constatamos neste momento que
o mercado e o Estado sáo complementares, já que cumpre a este instaurar as bases
institucionais necessárias ao funcionamento daquele. Ademais, para atrair investi-
mentos privados, a credibilidade do governo, isto é, a previsibilidade das regras e das
7.'l Nesse momento, foram criados um comit~ interministerial de avalias:áo, u.m conselho políticas públicas e a constincia de sua aplicas:áo, pode ser táo importante quanto o
científico de avalias:áo e um fundo nacional de desenvolvimento de avalias:áo. Conteúdo destas últimas". Ver Banco Mundial, Rapport sur le déve!oppement dans le
74 Ver o "Relat6rio Picq" sobre as responsabilidades e a organizas:áo do Estado (maio monde (Washington DC, 1997), p. 4, citado em Matthias Finger, "Néolibéralisme
de 1994): Jean Picq, L'État en France: servir une nation ouverte sur le monde (Paris, contre nouvelle gestion publique", cm Marc Hufty (org.), La pensée comptable: État,
La Documentation Frans:aise, 1995). Ver também Rogcr Fauroux e Bernard Spitz, néolibéralisme, nouvelle gestion publique (Paris, PUF, 1998, Cole9lo Les Nouveaux
Notre État: le livre-vérité de la fonction publique (Paris, Roben Laffont, 2000). Cahiers de l'Institut Universitaire d'Études du Développement), p, 62.
312 o Anovarazáodomundo O governo empresarial " 313

com seu Livro Branco sobre a "governanc;:a europeia'' em 2001, ainda que Hospitais, escalas, universidades, tribunais e delegadas sáo_ considerados
esta última misture o funcionamento das instituic;:óes coro a promoc;:áo do empresas da alyada das mesmas ferramentas e das mesmas categorias. Esse
modelo empresarial e concorrencial nos servic;:os públicos. trabalho de reduyáo típico da gestáo pública tero a ver, llaturalmente,
Essa reforma da administrayáo pública é parte da globalizayáo das formas com a mutac;:áo antropOlógica que caracteriza as sociedades ocidentais.
da arte de governar. Em todo o mundo, seja quar for a Situac;:áo local, os Ele náo é apenas o reflexo dessa mutac;:áo, mas, ao contrário, é um vetor
mesmos métodos sáo preconizados, e o mesmo léxico uniforme é empregado particularmente eficaz dela quando _diz- respeito a domínios que podem
(competic;:áo, reengenharia de processos, benchmarking, best practice, indi- a
parecer heterogeneos lógica quantitativa dos desempenhos. Basta pensar
cadores de desempenho). Esses métodos e essas categorias sáo válidos para na educayáo, na cultura, na saúde, na justic;:a o u na polícia76 • Nesses do-
todos os problemas, todas as esferas de a<;:áo, da Defesa nacional a gestáo mínios, as mutayóes náo sáo menos patentes do que em outros. Noyóes
dos hospitais, passando pela atividade judicial. Essa reforma "genérica'' do como a de "gestáo dos fluxos judiciários", difundidas nos anos 1990,
Estado segundo os princípios do setor privado apresenta-se como ideologi- tendero a transformar o magistrado num administrador que todo ano é
a
camente neutra: visa somente eficiencia ou, como dizem os especialistas abrigado a aumentar seu "portfólio de processos", e de forma imperativa,
brid.nicos em auditoria, ao "value for money'', isto é, a otimiza<;:áo dos re- na medida em que seu salário e sua promoc;:áo váo depender cada vez mais
a
cursos utilizados. Vimos anteriormente que a adesáo nova gestáo pública do cumprimento dos i~dicadores. O entendimento macic;:amente contábil
passou por cima das divisóes partidárias, a ponto de constituir um dos eixos da atividade judiciária, médica, social, cultural, educacional ou policial
principais da "terceira via", que supostamente reunia os novas demacraras te~ consequencias consideráveis sobre a maneira como sáo considerados
norte-americanos e a renovada social-democracia europeia. Na realidade, os "dieptes" desses se~Viyos regidos pelos novas princípios gerenciais, assirn
trata-se de urna racionalidade extremamente pregnante e, na medida em como s~bre a forma d~mo· os ~gentes vivenciam a tensáo entre essas lógicas
que tero poucos críticos e oponentes,- ainda mais poderosa. Essa nova gestáo a
contábeis e o significado que dáo profissáo 77 •
pública, táo universalmente aceita, age de maneira muito mais eficaz do que fu normas contábeis constituern náo tanto urna "ideologia'', mas urna
qualquer discurso radical, enfraquecendo as resistencias éticas e políticas forma específica de racionalidade importada do económico. Nesse sentido,
dentro dos setores público e associativo. O fato é que com esse léxico, e a "gestáo pelo desempenho" gera problemas sérios, que em geral ela tende a
coro a racionalidade que ele contém, difunde-se urna concep<;:áo utilitarista evitar: a determinac;:áo dos indicadores de desempenho, a apresentayáo dos
do homem que náo poupa nenhum campo de atividade. O funcionário resultados, a circulac;:áo da informayáo entre "topo" e "base". A questáo é
público é um agente racional que reage apenas aos estímulos materiais. Os saber o que quer dizer "cultura de resultado" na justiya, na medicina, na
códigos de honra da profissáo, a identidade profissional, os valores coletivos, cultura o u na educayáo, e sobre quais valores podemos julgá-lo. Na verdade,
o senso de dever e o intereSse geral que movem alguns agentes públicos e o ato de julgamento, que depende de critérios éticos e políticos, é substituído
dáo sentido a seu compromisso sáo deliberadamente ignorados. Por toda por urna medida de eficiencia que se supóe ideologicamente neutra. Assim,
parte, e em todos os setores, os motivos para agir sáo os mesmos, assim tende-se a ocultar as finalidades próprias de cada instituiyáo em benefício de
como os procedimentos de avaliac;:áo que condidonam as recompeúsas e
as puniyóes. Um enorme rrabalho de reduyáo do sentido da as;áo pública
e do trabalho dos agentes públicos está em curso: tem pertinencia apenas 16
Sobre a reforma empresarial dos hospitais públicos, ver Frédéric Pierru, Hippocrate
os motivos mais interesseiros de conduta, apenas os incentivos pecuniários malade de ses réformes (Bellecombe-en-Bauges, Éditions du Croquant, 2007). Para a
que supostamente a orientam. análise da leí de reforma das universidades, a chamada lei de Responsabilidade das
Universidades, ver Annie Vinokur, "la loi relative aux libertés ~t responsabilités
Com esse governo empresarial, o mercado náo se impóe simplesmente
des universités: essai de mise en perspective", Revue de la Régulation, n. 2, jan. 2008.
porque "invade" os setores associativos e de Estado, mas porque se tornou 77
Ver, por exemplo, sobre a nova "economia judiciária'', Gilles Sainati e Ulrich Schalchli,
um modelo universalmente válido para pensar a a<;:áo pública e social. La décadence sécuritaire (París, La Fabrique, 2007).
314 o A nova razáo do mundo
O governo empresarial o 315

urna norma contábil identica, como se cada instituiyáo náo tivesse valores normativa consideráveis 80 • Tende a moldar a própria atividade e visa a
constitutivos que lhe sáo próprios78 • produzir transformayóes subjetivas nos "avaliados" para que se adequem
a seus "compromissos contratuais" com as instancias superiores. Trata-se
de reduzir a autononlia .~dquirida por alguns grupos profissionais, como
Urna tecnologia de controle
médicos, juízes e professores, considerados dispendiosos, permissivos ou
Essa refundayáo administrativa da ayáo pública apoia-se na crenya das pouco produtivos, impondo-lhes critérios de resultado constituídos por
virtudes de urna avaliayáo geral e exaustiva, capaz de dar coma de forma urna tecnoestrutura especializada proliferante. Idealmente, cada indivíduo
"racional" e "científica'' dos efeitos de wn programa político, da atividade deve ser seu próprio supervisor, mantendo atualizadas a contabilidade de
de um serviyo ou do trabalho de cada agentel9• Essa lógica de avaliayáo seus resultados e a adequayáo as nletas que lhe foram atribuídas. Um dos
generalizada é sustentada por grupos sociais cujo poder efetivo e cuja objetivos disso é fazer o indivíduo interiorizar as normas de desempenho
legitimidade repousam cada vez mais sobre a concepyáo e o domínio das e as vezes, mais do que isso, fazer com que o avaliado seja o produtor das
ferramentas práticas de observayáo, investigayáo e julgamento. A seleyáo, a normas que serviráo para julgá-lo.
formayáo e a socializayáo dos chefes de departamento adquiriram em toda A avaliayáo é um processo de normatizayáo que· leva os indivíduos
a parte urna grande importáncia, ainda- mais por serern consideradas os a adaptar-se aos novas critérios de desempenho e qualidade, a respeitar
prindpais "agentes da rnodernizayáo". A alta administrayáo, formada cada novas procedimentos que corn fi-equéncia sáo táo formais quanto as re-
vez mais nas business schools, em simbiose cada vez malar com os rneios gras burocráticas clássicas. No entamo, diferentemente destas últimas os
empresariais privados, encontrou urna fonte suplementar de legitirnidade noVOs. critérios pode.m atingir mais diretamente o "coracáo do ofício" ~seu
misturando "modernidade" e "ciencia'', e isso em detrimento das instituiyóes signifi~ado social, o~ valOres' Sobre os quais repousa, -co~o pode ser o ,caso
democráticas, que foram privadas de seu papel de proposiyáo e controle da nos mais diversos universos profissionais, de pesquisadores a poliCiais, pas-
administrayáo pública por esse poder de expertise. sando por enfermeiras ou carteiros. Esses modos uniformes de medida de
O objetivo dessa nova gestáo pública é controlar estritamente os desempenho e incentivos típicos da nova gestáo fazem dela urna máquina
agentes públicos para aumentar seu comprometimento com o trabalho. de guerra contra as formas de autonomia profissional e os sistemas de valor
Espera-se deles muito mais a obtenyáo de resultados (contabilizados como a que os assalariados obedecem 81 ,
na empresa privada) do que o respeito aos procedimentos funcionais e as O managementrepousa sobre urna ilusáo de controle conrábil dos efeitos
regras jurídicas. Essa mensurayáo do desempenho tornou-se a tecnologia da ayáo. A interpretayáo puramente numérica dos resultados de urna ativi-
elementar das relayóes de poder nos serviyos públicos, urna verdadeira dade, exigida pelo uso dos "painéis de gestlo" que orientam o "comando"
"obsessáo pelo controle" dÜs agentes, urna fonte de burocratizayáo e inflayáo

80
Michael Power, La société de l'audit: l'obsession du contróle (Paris, La Découverte, 2005).
~a pr~tica, as novas técnicas de controle constituem illn dispendio de tempo, energiae
78
Em termos weberianos, o tipo ideal da "racionalidade com relayáo a fins", regida por dinhetro que levanta urna questáo sobre o dogma da "eficácia". Auditorias, avaliayóes,
urna lógica de adaptayáo ótima dos meios a um objetivo, tende a ser confundida com tempo de elaborac;:áo de "projetos" e procura de contratos podem ser particularmente
a realidade. O que acontece é que nenhuma instituiyáo pode privar-se completamente caros em termos de tempo e podem desviar a atividade de seus objetivos principais.
da "radonalidade com rel;as:áo a valores", que subordina a ;as:áo a princípios éticos, Tende a ser esse o caso quando esses métodos sáo aplicados, em especial, no ensino
religiosos ou filosóficos. superior o u na pesquisa científica.
79
A ideia de que a ayáo dos ministros deveriasujeitar-se alógica da auditoria e náo mais 81
Certos teóricos da organizac;:io, como Henry Minrzberg, mostraram a necessidade
ao julgamento público dos cidadáos, ideia que foi aplicada por decisáo de Nicolas de se diferenciarem os modos de organizac;:áo de acordo com o tipo de atividade.
Sarkozy em dezembro de 2007, é apenas o resultado caricatural da dogmática mundial Ver Henry Mintzberg, Structure et d;mamique des organisatíoris (París, Éditions
do "espírito gestor". d'Organisation, 1982).
316 ~ A nova razio do mundo O governo empresarial e 317

· dos servü;os, entra em contradiyáo com a experiencia e as dimensóes náo dos sujeitos a definiyáo da norma de conduta legítima. Portanto, é pela
quantificáveis do ofício 82 • A eficácia buscada pode ser contrariada pelos construfáO de um sujeito cuja conduta será guiada por procedimentos de
conflitos de valor que essa "cultura gerencial" provoca em universos profis- avaliayáo e sanyóes ligadas a eles que se deve julgar esse·modo de governo
sionais regidos por outros valores. o~ efeitos de "desmoralizayáo" acabam introduzido no serVi~o público.
tendo consequéncias sobre a qualidade do serviyo, já que a dedicayáo e a A interiorizayáo das normas de desempenho, a autovigiláncia constante
consciencia profissional sáo vistas como urna ficyáo enganadora ou urna para adequar-se aos indicadores e a cornpetiyáo com os outros sáo os ingre-
exceyáo na nova doxa. dientes dessa "revoluyáo das mentalidades" que os "modernizadores" desejam
Por outro lado, o paradoxo é que apenas a nova gestáo pública escapa da realizar. Esse regime geral de inspeyáo, que moderniza o velho sonho ben-
avaliayáo desses efeitos. De fato, quem avalia a avaliayáo? Quando se apre- thamiano, tem urna lógica própria, que pode se transformar num pesadelo
senta como prava de maior produtividade o baixo número de funcionários burocrático, como sentirarn na pele as autoridades locais briünicas, em
públicos na Suécia o u no Canadá, ninguém pode dizer se o efeito sobre a especial sobos governos neotrabalhistas, quando estes quiseram aperfeiyoar
sociedade é benéfico, se náo existem custos náo avaliados ou transferéncias o sistema de auditada elevando os critérios e os objetivos que deveriam ser
de encargos sobre grupos sociais 83 . A diminuiyáo do número de funcioná- atingidos (Best Value for Money) 86 •
rios públicos e a reduyáo da remunerayáo (como no caso dos fundo~ários
públicos franceses após a desindexayáo dos salários em 1982) náo sáo em
si a condiyáo necessária para um desempenho melhor. Gerencialismo e democracia política
Verifica-se apenas o que foi construído, mede-se apenas o que se pOde ~ nova gestáo. pública possui duas dimensóes: ela introduz modos de
reduzir a algo mensurável84 • A avaliayáo é um empreendimento de norma- controle mais refihados, q~e fazem·parte de urna racionalizayáo burocrática
tizayáo em que as características da-atividade desaparecem na uniformizayáo rnais sofisticada, e ernbaralha as missóes do serviyo público, a'linhando-as
dos padr6es (do tipo ISO 9000) 85 . Com os novos dispositivos de controle, formalmente a urna produyáo do setor privado. De modo que podemos tanto
desenvolvem-se novas percepyóes das tarefas que devem ser cumpridas, novas ressaltar a continuidade corn a antiga lógica burocrática corno evidenciar
relayóes como trabalho e com os outros. Pela seleyáo de normas e critérios, a alguns pontos de ruptura com ela.
avaliayáo temo efeito de tornar visíveis ou invisíveis cenos aspectos do ofício, U m dos aspectos principais é, sem dúvida, o aumento da centralizayáo
valorizá-los ou desvalorizá-los - adquire valor o que é visto na atividade, burocrática a que levou o novo regime de inspeyáo a partir de padróes na-
em detrimento do que náo o é. A questáo da "objetividade" da avaliayáo, cionais e uniformes nos países ern que havia urna forte liberdade local. Na
frequentemente trazida a baila, náo tern sentido. Essa tecnologia de poder Grá-Bretanha, por exemplo, o comando por indicadores de desempenho
visa a criar um tipo de relayáo que valida a si mesma ·pela conforrnidade serviu para intensificar muiro forternente o controle das inst:incias centrais
sobre as coletividades locais a partir de 1982, grayas a criayáo de urna co-
82
A Grá-Bretanha levou muito longe essa ilusáo coma criayáo de um indicador único rnissáo nacional de auditoria. A sujeiyáo dos comportamentos a restriyóes
de medida da gestáo local, segundo urna escala de 1 a 4. " impostas por instrumentos sofisticados, longe de dar mais liberdade aos
83 Sobre esse ponto, ver as análises de Christopher Pollitt, Managerialism and the Public
Services, cit.
M Michael Power observa que "a efidénda e a eficáda das empresas sáo construídas 86
Patrick Le Gales descreve a situayáo ubuesca das autoridades locais, que passam a
e verificadas no próprio curso do processo de auditoria'', La société de !'audit, cit., maior parte do tempo redigindo relatórios complexos para atender aos controles da
p. 111. Audit Commission, que, nwn Ímpeto inflacionista, comeyou a aumentar considera-
85 A tese de Power é que a tecnologia de poder passa por urna transformayáo do olhar velmente o número de inspeyóes repetitivas dos serviyos locais. Ver Patrick Le Gales,
sobre a atividade a fim de torná-la "auditável". Essa "auditabilidade" é urna construyáo "ContrOle et surveillance. La restructuration de l'État en Grande-Bretagne", cit.,
social e polftica. p. 52 e seg.
318 ., A nova razio do mundo O governo empresarial "' 319

atores em campo, ten de a confiná-los numa hiperobjetivayáo da atividade. como foram estabelecidos na Fran~a (primazia do direito público, igualdade
As normas estatísticas revelaram-se meios poderosos de padronizayáo e de tratamento dos usuários, continuidade do serviyo, laicÚlade e respeito
normaliza¡;:áo dos comportamentos, dentro da lógica da burocracia de tipo da neutralidade política). A transforma<_;:áo do usuário em consumidor, a~
"weberiano" 87 • Assim, a tensáo entre a centralizayáo das instincias de regula- qual convém vender 0-iñáxirrlo possível de produtos para aumentar aren-
yáo e auditoria e a suposta autonomia dos serviyos subinetidüs aconcorrencia tabilidade, náo é táo "neutra'' como querem fazer parecer os especialistas.
acarreta efeitos perversos significativos, levando os serviyos a concentrar-se Quanto aos procedimentos de avalia<_;:áo~-eles tendem a cOnfundir a medida
obsessivamente nos indicadores de desempenho, sem se preocupar com o dos resultados que pode ser feita internamente com os efeitos múltiplos e de
conteúdo real de sua missáo: taxa de sucesso num exame, taxa de ocupayáo langa durayáo que urna política pode ter sobre a sociedade como um todo.
de leitos em hospitais, propon;:áo entre fatos constatados e fatos elucidados A importayáo das lógicas contábeis, provenientes do mundo econOmico
podem significar resultados efetivos multo diferentes e até mesmo desvios mercantil, tende náo apenas a "desligar" as atividades e seus resultados, como
muito graves com relayáo arealidade do serviyo prestado. Essa fetichizayáo também a despolitizar as rela<_;:óes entre o Estado e os cidadáos. Estes sáo
do número conduz essa hiper-raciúnalizayáo a "fabricayáo de resultados" vistos como compradores de serviyos que devem "receber pelo que pagam".
que estáo longe de traduzir as melhorias reais, tanto mais que os gerentes e Essa prioridade que se dá a dimensáo da eficiencia e ao retorno financeiro
seus subordinados sáo todos abrigados a "entrar no jogo" e contribuir para elimina do espa~o público qualquer concep~áo de justi~a que náo seja a de
urna produyáo coletiva de números. Nada nos permite afirmar que a reali- equivalencia entre o que foi pago individualmente pelo contribuinte e o
dade coincide sempre com a retórica gerencial e comercial. Os critérios de que foi recebido individualmente por ele.
avaliayáo quantitativa estáo longe de concordar sempre com os critérios A qesconfianya c9mo prindpio e a vigilinda avaliativa como método
qualitativos de atenyáo ao cliente. sáo os tra¡;:os maiS c:lracterísi:ícos da nova arte de governar os homens. O
Essa nova etapa da racionalizayáo burocrática vern acompanhada da espírito gerencial que a anima impóe-se em detrimento dos valóres hoje
perda de significado próprio dos serviyos públicos. De fato, urn dos efeitos desqualificados do servi~o público e da dedicas:áo dos agentes a urna
da nova gestáo pública é que os limites entre o setor público e o privado se causa geral que está acima deles. Na antiga forma de governo, ligada
ernbaralharam. Allás, a própria ideia de um setor público cujos princípios ao ideal de soberania democrática, a autonomia relativa do funcionário
transgridem a lógica mercantil é posta ern questáo coma multiplicayáo das público repousava sobre o compromisso de servir a urna causa que se
relayóes contratuais e delegayóes, bem como comas transforrnayóes sofridas impunha a ele e pela qual ele tinha de respeitar o direito público e os
pelo emprego público no sentido de urna maior diversidade de "formas e de valores profissionais que compunham um "espírito de solidariedade".
urna precariedade rnais desenvolvida88 • A promoyáo da concorrencia, por Esse compromisso, simbolizado por um estatuto, tinha em troca certa
exemplo, náo se concilia facilmente coma obrigayáo de ser'viyos públicos aos confianya - evidentemente sempre ponderada por urna preocupayáo
quais um grande número de cidadáos e agentes públicos continua ligado. com as formas regulamentares - na conduta virtuosa do agente público.
A nova gestáo pública contrasta com os princípios da fun<_;:áo pública tal A partir do momento que o postulado da nova gestáo especifica que náo
se pode mais confiar no "indivíduo comum", intrinsecamente privado de
87 qualquer apego a um "espírito" público e de qualquer adesáo a valores que
O que tendería a mostrar que a análise econ6mica do Public Choice, concentrada
nos custos da burocracia, deixou de lado um dos prindpais aspectos dos processos lhe seriam exteriores, a única soluyáo é o controle e o "governo a distan-
de racionalizayio evidenciados pela sociología. cia" dos interesses particulares. Quer se trate de equipe hospitalar, juízes
88 Para Luc Rouban, "a mutayio administrativa dos últimos anos tendeu a restringir nio ou bombeiros, os motivos e os princípios de sua atividade profissional
a a<;:io pública, mas os meios públicos de ayio governamental. Esse movimento leva sáo concebidos apenas do ingulo dos interesses pessoais 'e corporativos,
ao fim da noyio de 'setor público', entendido no sentido de que engloba atividades
negando-se, assim, qualquer dimensáo moral e política de seu compromisso
que se beneficiam de um regime jurídico e financeiro que transgride as regras do
mercado", "La réforme de l'appareil d'État", cit., p. 147. com urna profissáo que repousa sobre valores próprios. Os rres "ee" da
320 " A nova razáo do mundo

gestáo ("eficácia, economia, eficiéncia") fizeram desaparecer da lógica do


poder as categorias do dever e da consciéncia profissional.
A desconfianya caracteriza ainda a relayáo entre as instituiyóes públicas
e os sujeitos sociais e políticos, que também sáo vistos como "oportunistas" 9
em busca da máxima vantagem pessoal, sem nenhUma considerayáo pelo A i'i\BRICA DO SUJETTO NEO LIBERAL
interesse coletivo. A reestruturayáo neoliberal transforma os cidadáos em
consumidores de serviyos que nunca tém em vista nada além de sua satis-
fayáo egoísta, o que faz que sejam tratados como tais por procedimentos
de vigilincia, restriyáo, puniyáo e "responsabilizayáo". É isso que leva a
"envolver" os doentes, fazendo-os arcar coro urna parte maior das des pesas
médicas, e os estudantes universitários, aumentando as taxas de inscriyáo. O
"governo" das administrayóes públicas, de autoridades locais, dos hospitais
e das escalas por indicadores sintéticos de desempenho, cujos resultados sáo A concepyáo que vé a sociedade como urna empresa constituída de em-
largamente difundidos pela imprensa local e nacional na forma de ranking, presas necessita de urna nova norma subjetiva, que náo é mais exatamente
convida o cidadáo a basear seu julgamento apenas na relayáo de custo- aquela do sujeito produtivo das sociedades industriais. O sujeito neoliberal
-benefício. A corrosáo da confianya nas "virtudes¡' cívicas teve, sem dúvida, ero formayáo, do qual gestaríamos de delinear aqui algumas das caracterís-
efeitos performativos sobre a maneira como os noves cidadáos-consumidores tidl.s- __f'rins:ipais, é co~relato de uro dispositivo de desempenho e gozo que
enxergam sua contribuiyáo fiscal para os encargos coletivos e o "retorno" que foi objeto de inúm~fos trabalhos. N~o faltam hoje. 4escriy6es do homem
tém individualmente. Eles náo sáo chamados a julgar políticas e instituiyóes "hipermoderno", "impreciso", "flexível", "precário", "fluido", "sem gravida-
do ponto de vista do interesse da comunidade política, mas semente em de". Esses trabalhos preciosos, e muitas vezes convergentes, no cruzamento
funs:ao de seu inreresse pessoal É a própria definirdo de sujeito político que da psicanálise coro a sociologia, revelam urna condiyáo nova do hornero, a
é radicalmente alterada. qual, para alguns, afetaria a própria economia psíquica.
De urn lado, rnuitos psicanalistas dizern receber no consultório pacientes
que sofrem de sintomas que revelam urna nova era do sujeito. Esse novo
estado subjetivo é frequentemente referido na literatura clínica a amplas
categorias, como a "era da ciéncia" o u o "discurso capitalista". O fato de 0
histórico apropriar-se do estrutural náo deveria surpreender os leitores de
Lacan, para quemo sujeito da psicanálise náo é urna substancia eterna nem
urna invariante trans-histórica, mas efeito de discursos que se inserem na
história e na sociedade'. De outro lado, no campo sociológico, a transfor-
mayáo do "indivíduo" é um fato inegável. O que se designa no mais das
vezes corno termo equívoco de "individualismo" é remetido ora a rnutayóes

Se nos detivéssemos no assunto, poderíamos mostrar que lacan iJ;tdicou várias vezes
em seus escritos e seminários a importinda da virada utilitarista na'·hist6ria ocidental.
Ver, por exemplo, Jacques Lacan, Écrits (Paris, Seuil, 1966), p. 122 [ed. bras.: Escritos,
trad. Vera Ribeiro, Rio de Janeiro, Zahar, 1998].
A fábrica do sujeito neoliberal " 323
322 " A nova razáo do mundo

morfológicas, segundo a tradiyáo durkheimiana, ora aexpansáo das relayóes o dos Estados-nayóes e da comunidade política; e o do mercado monetário
mercantis, segundo a tradiyáo marxista, ora a extensáo da racionalizayáo a do trabalho e da produyáo. Desde o início, essa divisáo foi movediya, e 9
todos os domínios da existéncia, segundo urna linha mais weberiana. desafio das relayóes de forya e das estratégias políticas era précisamente fixar
Portanto, cada urna a sua maneira, psicanálise e sociologia registram e mudar suas fronteiraS. As grandes lutas acerca da própria natureza do
urna mutayáo do discurso sobre o homem que poa-e ser reportado, como regime político dáo urna expressáo singularmente condensada disso. Mais
em Lacan, a ciéncia de um lado e ao capitalismo de outro: trata-se preci- importantes, porém mais difíceis de captar, sáo a mudanya progressiva das
samente de um discurso científico que, a partir do século XVII, comeya a relayóes humanas, a transformayáo das práticas cotidianas induzidas pela
enunciar o que o hornero é e o que ele deve fazer; e é para fazer do homem nova economia, os efeitos subjetivos das novaS relayóes sociais no espayo
esse animal produtivo e consumidor, esse ser de labor e necessidade, que mercantil e das novas relayóes políticas :no espayó da soberania.
um novo discurso científico se propós redefinir a medida humana. Mas esse As democracias liberais eram universos de tensóes múltiplas e impulsos
quadro muito geral é ainda insuficiente para identificar como urna nova disjuntivos. Sem entrar em considerayóes que váo além de nosso propósito,
lógica normativa se imp6s nas sociedades ocidentais. Em particular, náo podemos descrevé-las como regimes que, dentro de cenos limites, permitiam
permite apontar as inflexóes que a história do sujeito ocidental sofreu nos e respeitavam um funcionamento heterogéneo do sujeito, no sentido de que
últimos trés séculas e, menos ainda, as transformayóes em curso que podem asseguravam tanto a s~parayáo quanto a articulayáo das diferentes esferas
ser reportadas a racionalidade neoliberal. da vida. Essa heterogeneidade se traduzia na independéncia relativa das
Se existe um novo sujeito, ele deve ser distinguido nas práticas discur- instituiyóes, das regras, das normas rhorais, religiosas, políticas, económicas,
sivas e institucionais que, no fim do século XX, engendraram a figura do esté-dc~s e-intelectuai$. O que náo quer dizer que, por essa característica ·de
homero-empresa ou do "sujeito empresarial", favorecendo a instaurayáo equilíbÍio e "toleianCia", esgÜl:amos a· natureza do movimento que as ani-
de urna rede de sanyóes, estímulos e comprometirnentos que temo efeito de mava. Ocorreram dois grandes impulsos paralelos: a democracia política· e
produzir funcionamentos psíquicos de um novo tipo. Alcanyar o objetivo o capitalismo. O homem moderno se dividiu em dois: o cidadáo dotado
de reorganizar completamente a sociedade, as empresas e as instituiyóes de direitos inalienáveis e o hornero económico guiado por seus interesses,
pela multiplicayáo e pela intensificayáo dos mecanismos, das relayóes o hornero como "fim" e o homem como "instrumento". A história dessa
e dos comportamentos de mercado implica necessariamente um devir-outro "modernidade" consagrou um desequilíbrio a favor do segundo polo. Se
dos sujeitos. O hornero benthamiano era o homem calculador do mercado quiséssemos privilegiar o desenvolvimento da democracia, mesmo que irre-
e o hornero produtivo das organizayóes industriais. o homem neoliberal é o gular, como fazem cenos autores 2, perderíamos o eixo principal evidenciado,
hornero competitivo, inteiramente imerso na competiyáo mundial. Poi dessa de maneiras diferentes, por Marx, Weber ou Polanyi: o desenvolvimento de
transformayáo que se faloü nas páginas precedentes. Trataremos agora de urna lógica geral das relayóes humanas submetido a regra do lucro máximo.
descrever mais sistematicamente suas múltiplas formas. Náo seráo ignoradas aqui todas as mudan~as que a relay<lo mercantil
engendro u no sujeito. Marx, como outros, mas tal vez melhor do que outros,
apontou os efeitos de dissoluyáo que o mercado exerce sobre os vínculos
O sujeito plural e a separas;áo das esferas humanos. A mercantilizayáo das relayóes sociais, juntamente coma urbaniza-
De onde devemos partir? Durante muito tempo, o su jeito ocidental dito yáo, foi um dos fatores mais poderosos da "emancipayáo" do indivíduo com
"moderno" pertenceu a regimes normativos e registros políticos que eram relayáo a tradiyóes, raízes, apegos familiares e fidelidades pessoais. A grandeza
ao mesmo ternpo heterogéneos e conflituosos: a esfera consuetudinária e de Marx foi ter mostrado que o preyo dessa liberdade subjetiva foi urna
religiosa das sociedades antigas, a esfera da soberania política, a esfera da traca nova forma de sujeiyio as leis impessoais e incontroláveis da valorizayao do
mercantil. Esse sujeito ocidental vivia, portanto, em trés espayos diferentes: o
2
dos serviyos e das crenyas de urna sociedade ainda ruralizada e cristianizada; Ver a discussáo do ponto de vista de Marcel Gauchet no capítulo 1 deste volume.
324 o A nova razáo do mundo A fábrica do sujeito neoliberal ., 325

capital.o indivíduo liberal, a exemplo do sujeito lockiano proprietário de urna "gestáo das mentes". Ou antes deveríamos dizer que a ayáo disciplinar
si mesmo, podia acreditar que gozava de todas as suas faculdades naturais, ·sobre os carpos foi apenas urh momento e um aspecto da elaborayáo de
do livre exercício de sua razáo e vontade, podia proclamar ao mundo sua certo modo de funcionamento da subjetividade. O panóptlco de Bentham
autonomia irredutível, mas continuavaa ser urna engrenagem dos grandes é particularmente embl~máti~o dessa moldagem subjetiva. O novo governo
mecanismos que a economia política clássica comeyava a- analisar. dos homens penetra até em seu pensamento, acompanha, orienta, estimula,
Nas relayóes humanas, essa mercantilizayáo expansiva tomou a forma educa esse pensamento. O poder já náo-é so mente a vontade soberana, mas,
geral da contratualizaráo. Os contratos voluntários entre pessoas livres - como Bentham -diz táo bem, torna-se "método oblíquo" ou "legislayáo in-
obviamente sempre garantidos pela instáncia soberana - substituíram as direta'', destinada a conduzir os interesses. Postular a liberdade de escolha,
formas institucionais da alianya e da filiayáo e, mais em geral, as formas suscitar e constituir na prática essa liberdade, pressupóe .que os sujeitos
amigas da reciprocidade simbólica. O contrato torno u-se mais do que nunca sejam conduzidos por urna "máo invisível" a fazer as escolhas que seráo
a medida de todas as relayóes humanas, de modo que o indivíduo passou a proveitosas a todos e cada um. Por trás dessa representayáo encontra-se
experimentar cada vez mais na relayáo como outro sua plena e totalliberdade náo tanto um grande engenheiro, como no modelo do grande Relojoeiro,
de compromisso voluntário e a perceber a "sociedade" como um conjun- mas urna máquina que funciona idealmente por sisó e encontra em cada
to de relayóes de associayáo entre pessoas dotadas de direitos sagrados. Esse sujeito urna engrenagem pronta a responder as necessidades de arranjo do
é o cerne do que se convencionou chamar "individualismo" moderno. conjunto. Contudo, é preciso fabricar e manter essa engrenagem.
Como mostrou Émile Durkheim, havia nisso urna ilusáo singular, na O sujeito produtivo foi a grande obra da sociedade industrial. Náo se
medida em que, no contrato, há sempre mais do que o contrato: sem o Es- trata-v~ apenas de au~entar a produyáo material; era preciso também que o
tado garantidor, náo existida liberdade pessoal. Mas também podemos dizer, poder se redefinisse tomo esSencialmente produtivo, como um estimulante
como Michel Foucault, que, sob o contrato, há algo diferente do contrato da produyáo cujos limites seriam determinados apenas pelos efei!os de sila
o u ainda que, sob a liberdade subjetiva, há algo diferente da liberdade sub- ayáo sobre a produyáo. Esse poder essencialmente produtivo tinha. como
jetiva. Há um arranjo de processos de normatizayáo e técnicas disciplinares correlato o sujeito produtivo, náo só o trabalhador, mas o sujeito que, em
que constituem o que podemos chamar de dispositivo de eficácia. Os sujeitos todos os domínios de sua vida, produz bem-estar, prazer e felicidade. Desde
nunca teriarn se "convertido" de forma voluntária ou espontfrnea a sociedade cedo, a economia política teve como fiadora urna psicologia científica que
industrial e mercantil apenas por causa da propaganda do livre-dmbio o u descrevia urna economia psíquica homogénea a ela. Já no século XVIII,
dos atrativos do enriquecimento privado. Era preciso pensar e implantar, iniciam-se as bodas da med.nica econ6mica com a psicofisiologia das sen-
"por urna estratégia sem estrategistas", os tipos de educayáo da mente, de sayóes. Esse é, sem dúvida, o cruzamento decisivo que vai definir a nova
controle do carpo, de org<inizayáo do trabalho, moradii, descanso e lazer economia do hornero governado pelos prazeres e pelas dores. Governado
que seriam a forma institucional do novo ideal de homem, a wn só tempo e governável pelas sensayóes: se o indivíduo deve ser considerado em sua
indivíduo calculador e trabalhador produtivo. Foi esse dispositivo de eficácia liberdade, ele também é um rematado patife, um "delinquente em poten-
que forneceu a atividade económica os "recursos humanos" necessárlos, foi cial", um ser movido antes de tuda por seu próprio interesse. A nova política
ele que produziu incessantemente as mentes e os carpos aptos a funcionar inaugura-se com o monumento panóptico erguido em glória da vigilfrncia
no grande circuito da produyáo e do consumo. Em urna palavra, a nova de todos por cada um e de cada um por todos.
normatividade das sociedades capitalistas impós-se por urna nonnatizayío Mas, podemos nos pergumar, por que vigiar os sujeitos e maximizar o
subjetiva de urn tipo particular. poder? A resposta impóe-se por si só: para produzir a maior felicidade. A
Foucault forneceu urna primeira cartografia desse processo- aliás, urna lei da eficácia é intensificar os esforyos e os resultados e miriimizar os gastos
cartografia problemática. O princípio geral do dispositivo de eficácia náo inúteis. Fabricar homens úteis, dóceis ao trabalho, dispostos ao consumo,
é tanto, como se disse muitas vezes, um "adestramento dos carpos", mas fabricar o homem eficaz é o que já comeya a se delinear, e de que maneira,
324 " A nova razáo do mundo A fábrica do sujeito neoliberal " 325

capital. O indivíduo liberal, a exemplo do sujeito lockiano proprietário de urna "gestáo das mentes". O u antes deveríamos dizer que a ayáo disciplinar
si mesmo, pod.ia acreditar que gozava de todas as suas faculdades naturais, sobre os carpos foi apenas um momento e urn aspecto da elaboras:áo de
do livre exercício de sua razáo e vontade, podia proclamar ao mundo sua certo modo de funcionamento da subjetividade. O panóptico de Bentharn
autonomia irredutível, mas continuava a ser urna engrenagem dos grandes é particularmente emblemátiCO dessa moldagem subjetiva. O novo governo
mecanismos que a economia política clássica come':(ava a analisar. dos homens penetra até em seu pensamento, acornpanha, orienta, estimula,
Nas relayóes humanas, essa mercantilizayáo expansiva tomou a forma educa esse pensamento. O poder já náo é sornen te a vontade soberana, mas,
geral da contratualizaráo. Os contratos voluntários entre pessoas livres - como Bentharn diz táo bem, torna-se "método oblíquo" ou "legislas:áo in-
obviamente sempre garantidos pela instáncia soberana - substituíram as direta'', destinada a conduzir os interesses. Postular a liberdade de escolha,
formas institucionais da alians:a e da filia((áO e, mais em geral, as formas suscitar e constituir na prática essa liberdade, pressupóe que os sujeitos
antigas da reciprocidade simbólica. O contrato torno u-se mais do que nunca sejarn conduzidos por urna "máo invisível" a fazer as escolhas que seráo
a medida de todas as rela((Óes humanas, de modo que o indivíduo passou a proveitosas a todos e cada um. Por trás dessa representayáo encontra-se
experimentar cada vez mais na relac;:áo cómo outro sua plena e totalliberdade náo tanto um grande engenheiro, como no modelo do grande Relojoeiro,
de compromisso voluntário e a perceber a "sociedade" como uro conjun- mas urna máquina que funciona idealmente por si só e encontra em cada
to de relas:óes de associas:áo entre pessoas dotadas de direitos sagrados. Esse sujeito urna engrenagem pronta a responder as necessidades de arranjo do
é o cerne do que se convencionou chamar "individualismo" moderno. conjunto. Contudo, é preciso fabricar e manter essa engrenagern.
Como mostrou Émile Durkheim, havia nisso urna ilusáo singular, na O. sujeito produtivo foi a grande obra da sociedade industrial. Náo se
medida em que, no contrato, há sempre mais do que o contrato: sem o Es- tratava apenas de aumentar a produyáo material; era preciso tambérn que o·
tado garantidor, náo existida liberdade pessoal. Mas também podemos dizer, poder se r~definisse conio essen~i"aimenre produtivo, com-o urn estimulante
como Michel Foucault, que, sob o contrato, há algo diferente do contrato da produyáo cujos limites seriam determinados apenas pelos efeitos de sua
ou ainda que, sob a liberdade subjetiva, há algo diferente da liberdade sub- as:áo sobre a produyáo. Esse poder essencialmente produtivo tinha corno
jetiva. Há uro arranjo de processos de normatiza((áO e técnicas disciplinares correlato o sujeito produtivo, náo só o trabalhador, mas o sujeito que, ern
que constituem o que podemos chamar de dispositivo de eficácia. Os sujeitos todos os dornínios de sua vida, produz bem-estar, prazer e felicidade. Desde
nunca teriam se "convertido" de forma voluntária o u espont<lnea asociedade cedo, a economia política teve como fiadora urna psicologia científica que
industrial e mercantil apenas por causa da propaganda do livre-d.rnbio ou descrevia urna economia psíquica homogénea a ela. Já no século XVIII,
dos atrativos do enriquecimento privado. Era preciso pensar e implantar, iniciam-se as bodas da med_nica econ6mica corn a psicofisiologia das sen-
"por urna estratégia sem estrategistas", os tipos de educa((áO da mente, de Sa((óes. Esse é, sem dúvida, o cruzamento decisivo que vai definir a nova
controle do carpo, de organizayáo do trabalho, moradia, de'scanso e lazer econornia do hornero governado pelos prazeres e pelas dores. Governado
'que seriarn a forma institucional do novo ideal de hornero, a um só tempo e governável pelas sensa((óes: se o indivíduo deve ser considerado ern sua
indivíduo calculador e trabalhador produtivo. Foi esse dispositivo de eficácia liberdade, ele tambérn é uro rematado patife, um "delinquente ero poten-
a
que forneceu atividade econ6rnica os "recursos humanos" necessários, fói cial", um ser movido antes de tuda por seu próprio interesse. A nova política
ele que produziu incessantemente as mentes e os corpos aptos a funcionar inaugura-se coro o monumento panóptico erguido em glória da vigiláncia
no grande circuito da produc;:áo e do consumo. Ero urna palavra, a nova de todos por cada um e de cada um por todos.
normatividade das sociedades capitalistas irnp6s-se por urna normatizas:áo Mas, podemos nos perguntar, por que vigiar os sujeitos e maximizar o
subjetiva de um tipo particular. poder? A resposta impóe-se por si só: para produzir a maior felicidade. A
Foucault forneceu urna primeira cartografia desse processo- aliás, urna lei da eficácia é intensificar os esforc;:os e os resultados e minimízar os gastos
cartografia problemática. O princípio geral do dispositivo de eficácia náo inúteis. Fabricar hornens úteis, dóceis ao trabalho, dispostos ao consumo,
é tanto, como se disse multas vezes, um "adestramento dos carpos", mas fabricar o homem eficaz é o que já cornes:a a se delinear, e de que rnaneira,
326 " A nova razáo do mundo A fábrica do sujeito neoliberal " 327

na obra benthamiana. Mas o utilitarismo dássico, apesar de seu enorme A paitir de entáo, diversas técnicas contribuem para a fabricayáo desse
trabalho de pulverizayáo das categorias antigas, náo conseguiu explicar a novo sujeito unitário, que chamaremos indiferentemente de "sujeito empre-
pluralidade interna do sujeito 3 nema separa<;áo das esferas a que correspondia sarial", "sujeito neoliberal" o u, simplesmente, neossujeité. 'Náo estamos mais
essa pluralidade. O princípio de utilidade, cuja vocayáo homogeneizante falando das antigas diSCiPlinas que se destinavam, pela coeryáo, a adestrar
era clara, náo conseguiu abranger todos os discursos e as institui<;óes, do os carpos e a dobrar os espíritos para torná-los mais dóceis - metodologia
mesmo modo que o equivalente geral da moeda náo conseguiu subordinar institucional que se encontrava e!Il crise havia muito tempo. Trata-se agora
todas as atividades sociais. Precisamente esse caráter plural do sujeito e essa de governar um ser cuja subjetividade deve estar inteiramente envolvida na
separa<;áo das esferas práticas é que estáo em questáo hoje. atividade que se exige que ele cumpra. Para: isso, deve-se reconhecer nele
a parte irredutível do desejo que o constitui. ·fu grandes proclamayóes a
respeito da importincia do "fator humano" que pululam na literatura da
A modelagem da sociedade pela empresa neogestáo devem ser licias aluz de um novo tipo de poder; náo se trata mais
O passo inaugural, como dissemos, consistiu em inventar o homem do de reconhecer que o homem no trabalho continua a ser um homem, que
cálculo, que exerce sobre si mesmo o esfon:;:o de maximizayáo dos prazeres e ele nunca se reduz ao s.tatus de objeto passivo; trata-se de ver nele o sujeito
das dores requeridos pela existencia de relayóes de interesse entre os indiví- ativo que deve participar inteiramente, engajar-se plenamente, entregar-se
duos. fu instituiyóes eram feitas para formar e enquadrar os sujeitos rebeldes por completo a sua atividade profissional. O sujeito unitário é o sujeito do
a essa existencia e fazer convergir interesses diversos. Mas os discursos das .envolvimento total de si mesmo. A vontade de realizayáo pessoal, o projeto
instituiyóes, a comeyar pelo político, estavam longe de ser unívocos. O utili- que. se quer levar~ cabo, a motivayáo que anima o "colaborador" da em-
tarismo náo se impós como a única doutrina legítima, muito pelo contrário. pres~, enfim, o de~ejo Conl 'todos os nomes que se queira dar a ele é o alvo
Os princípios continuaram misturados e, no fim do século XIX, surgiram do novo poder. O ser desejante náo é apenas o ponto de apli'cayáo desse
considerayóes "sociais", direitos "sociais" e políticas "sociais" nas relayóes eco- poder; ele é o substituto dos dispositivos de direyáo das condutas. Porque o
nómicas que limitaram seriamente a lógica acumuladora do capital e contra- efeito procurado pelas novas práticas de fabricayáo e gestáo do novo sujeito
riaram a concepyáo estritamente contratualista das trocas sociais. Aconstruyáo é fazer com que o indivíduo trabalhe para a empresa como se trabalhasse
dos Estados-nayóes continuou a ser escrita com as antigas palavras da para si mesmo e, assim, eliminar qualquer sentimento de alienayáo e até
tradiyáo dos juristas e a ser inserida em formas políticas estranhas a ordem mesmo qualquer distáncia entre o indivíduo e a empresa que o emprega.
da produc;áo. Em resumo, a norma de eficácia económica continuou a ser Ele deve trabalhar para sua própria eficácia, para a intensificayáo de seu
contida por discursos heterogeneos a ela, a nova racionalidade do homem esforyo, como se essa conduta viesse dele próprio, como se esta lhe fosse
económico continuou mascarada e embaralhada pela co~fusáo de teorias. comandada de dentro por urna ordem imperiosa de seu próprio desejo, a
Por oposiyáo, o momento neoliberal caracteriza-se por urna homoge- qual ele náo pode resistir.
neizayáo do discurso do homem em torno da figura da empresa. Essa nova As novas técnicas da "empresa pessoal" chegam ao cúmulo da alienayáo
figura do sujeito opera urna unificayáo sem precedentes das formas Í>lurais ao pretender suprimir qualquer sentimento de alienayáo: obedecer ao próprio
da subjetividade que a democracia liberal permitiu que se conservassem e desejo o u ao Outro que fala em voz baixa dentro de nós dá no mesmo. Nesse
das quais sabia aproveitar-se para perpetuar sua existencia. sentido, a gestáo modernaé um governo "lacaniano": o desejo do sujeito é o
desejo do Outro. Desde que o poder moderno se torne o Outro do sujeito.

3 O pensamento de Locke reflete, de certo modo, essa diferendayáo do sujeito em


sujeito de interesse, sujeito jurídico, sujeito religioso etc. A sua maneira, a influéncia 4
Fazemos nosso o neologismo proposto por Jean-Pierre Lebrun em sua obra La
persistente desse pensamento, apesar da hegemonia do utilitarismo, atesta certa forma perversion ordinaire: vivre ensemble sans autrui (Paris, Denod, 2007) [ed. bras.:
de resistencia asubsunyáo do sujeito no regime exclusivo do interesse. A perversáo comum, Rio de Janeiro, Companhia de Freud, 2008].
328 Q A nova razáo do mundo
A fábrica do sujeito neoliberal @ 329
A constrw;:áo das figuras tutelares do mercado, da empresa e do dinheiro
dos homens acompanham a implantayáo de técnicas que visam a produzir
tende exatamente a isso. Mas é isso sobretudo que se consegue obter com
formas mais eficazes de sujeÍyáo. Estas, por mais novas que sejarn, tém a
as técnicas refinadas de motivayáo, estímulo e incentivo.
marca da mais infle~(v~J _e mais dássica das violéncias sociais típicas do
capitalismo: a tendéncia.a transformar o trabalhador em urna simples mer-
A "cultura de empresa" e a nova subjetividade cadoria. A corrosáo progressiva dos direitos ligados ao status de trabalhador,
a inseguranya instilada pouco a poucu em todos os assalariados pelas "novas
A governamentalidade empresarial está ligada a urna racionalidade de formas de emprego" precárias, provisórias e temporárias, as facilidades
conjunto que tira forya de seu próprio caráter abrangente, já que permite cada vez rnaiores para demitir e a diminuiyáo do poder de ·compra até 0
descrever as novas aspirayóes e as novas condutas dos sujeitos, prescrever ernpobrecimento de frayóes inteiras das dasses populares sáo elementos
os modos de controle e influencia que devem ser exercidos sobre eles em que produziram um aumento considerável do grau de dependéncia dos
seus comportamentos e redefinir as missóes e as formas da ayáo pública. trabalhadores com relayáo aos empregadores. Foi esse contexto de medo
Do sujeito ao Estado, passando pela empresa, um mesmo discurso permite social que facilitou a implantayáo da neogestáo nas empresas. Nesse ·sen-
articular urna definiyáo do homem pela maneira como ele quer ser "bem- tido, a "naturalizayáo" do risco no discurso neoliberal e a exposiyáo cada
-sucedido", assim como pelo modo como deve ser "guiado", "estimulado", vez mais direta dos as~alariados as flutuayóes do mercado, pela diminuiyáo
"formado", "empoderado" (empowered) para cumprir seus "objetivos". Em das proteyóes e das solidariedades coletivas, sáo apenas duas faces de urna
o u tras palavras, a racionalidade neoliberal produz o sujeito de que necessita m_esma moeda. Transferindo os riscos para os assalariados, produzindo 0
ordenando os meios de governá-lo para que ele se conduza realmente como aurhe:ry.to· da sensay~o de ris~~" as empresas puderam exigir deles dispÜni-
urna entidade em competiyáo e que, por isso, deve maximizar seus resultados, bilidade e cornpronietimento muito maiores.
expando-se a riscos e assumindo inteira responsabilidade por eventuais fra- lsso náo significa que a neogestáo náo seja novidade e o ca~italismo
cassos. "Empresa'' é tarnbém o nome que se deve dar ao governo de si na era no fundo seja sempre o mesmo. Ao contrário, a grande novidade reside na
neoliberal. O que quer dizer que esse "governo de si empresarial" é diferente modelagem que torna os indivíduos aptos a suportar as novas condiyóes que
e muito mais do que a "cultura de empresa'' da qual falamos acima. É claro lhe sáo impostas, enquanto por seu próprio comportamento contribuem
que a valorizayáo ideológica do modelo da empresa faz parte dele; é claro que para tornar essas condiyóes cada vez mais duras e mais perenes. Em urna
a empresa é considerada em toda parte um lugar de realizayáo pessoal, a palavra, a novidade consiste em promover urna "reayáo em cadeia", produ-
instancia ande finalmente se podem conjugar o desejo de realizayio pessoal zindo ''sujeitos empreendedores" que, por sua vez, reproduziráo, ampliaráo
dos indivíduos, seu bem-estar material, o sucesso comercial e financeiro da e reforyaráo as relayóes de competiyáo entre eles, o que exigirá, segundo a
"comunidade" de trabalho e sua contribuiyáo para a prosperidade geral lógica do processo autorrealizador, que eles se adaptem subjetivamente as
da populayáo. A nova gestáo ambiciona superar no plano imaginário a con- con~iyóes cada vez rnais duras que eles mesmos produziram.
tradiyáo que Daniel Bell encontrou entre os valores hedonistas do co~sumo E isso que escapa a Luc Boltanski e Eve Chiapello em O novo espírito do
e os valores ascéticos do trabalho5 . capitalismo'. Tomando como objeto a ideologia que, segundo a definis:ao que
Todavía, cometeríamos urn grave erro se nos deixássemos seduzir por dáo do espírito do capitalismo, "justifica o engajamento no capitalismo"?,
esse novo management. Da mesma forma que a filantropia do século XVIII eles tendero a acreditar piamente no que o novo capitalismo diz de si mesmo
acompanhava a implantayáo das novas tecnologias de poder com urna
música suave, os propósitos humanistas e hedonistas da gestáo moderna 6
Luc Boltanski e Eve Chiapello, Le nouve! esprit du capitalisme (Paris, Gallimard,
1999, Coleo:;:áo NRF Essais) [ed. bras.: O novo espírito do capitalismo, trad. Ivone C.
Benedetti, Sáo Paulo, WMF Martins Fontes, 2009].
5
Daniel Bell, Les contradictions culture/les du capitalisme (Paris, PUF, 1977). 7
Ibidem, p. 42.
330 " A nova razáo do mundo
A fábrica do sujeito neoliberal " 331

na literatura gerencial dos anos 1990. Sem dúvida é importante destacar que inventor de si mesmo, empreendedor de si mesmo: a racionalidade neo liberal
essa literatura recupero u certo tipo de crítica da burocracia, da organizac;:áo impele o eu a agir sobre si mésmo para fortalecer..:se e, assim, sobreviver na
e da hierarquia para melhor desacreditar o modelo antigo de poder baseado competü;:áo. Todas as s~!~__!ltividades devem assemelhar-se a urna produyáo,
na gestáo dos diplomas, dos status e das carreiras. Também é importante a um investimenta, a um cálculo de custos. A economia torna-se urna dis-
mostrar a que ponto a apologia da incerteza, da reatividade, da flexibilidade, ciplina pessoal. Foi Margaret Thatcher quem deu a formulayáo mais clara
da criatividade e da rede de contatos constitui urna representac;:áo coerente, dessa racionalidade: "Economics are-the-method The object is to change the
cheia de promessas, que favorece a adesáo dos assalariados ao modelo "co- soul" [A economia é o método. O objetivo é mudar a alma]S.
nexionista'' do capitalismo. fu técnicas de gestáo (avaliayáo, projeto, normatizayáo dos procedi-
Isso, porém, é ressaltar apenas a face sedutora e estritamente retórica mentos, descentralizayáo) supostamente permitem objetivar a adesáo do
dos novos modos de poder. É esquecer que estes últimos tiveram como a
indivíduo norma de conduta que se espera dele, avaliar por tabelas e
efeito a constituic;:áo de urna subjetividade particular por meio de técnicas o u tras ferramentas de registro do "painel de gestáo" seu comprometimento
específicas. Em suma, é subestimar o aspecto propriamente disciplinar subjetivo, sob pena de sofrer sanyóes no emprego, no salário e no desenvol-
do discurso gerencial, tomando sua argumentac;:áo muito ao pé da letra. vimento de sua carreira9• O que náo acorre, como bem· podemos imaginar,
Essa subestimayáo é a contrapartida da superestimac;:áo da ideologia da sem urna grande arb.itrariedade da parte de urna hierarquia impelida a
"realizac;:áo" pessoal numa tese absolutamente unilateral que deriva o "novo manipular categorías· psicológicas que deveriam garantir a "objetividade"
espírito do capitalismo" da "crítica artista'' de Maio de 1968. Ora, o que as d~ mediyáo de competencias e desempenhos. No entanto, o essencial
evoluyóes do "mundo do trabalho" mostram de modo cada vez mais claro náo ·é.-,a verdade des.$a mediy_á_o, mas o tipo de poder que é exercido "pro-
é justamente a importancia decisiva das técnicas de controle no governo fundamente" sobre· o sujeito impelido a "entregar-Se completamente", a
das condutas. A neogestáo náo é "antiburocrática''. Ela corresponde a urna "transcender-se" pela empresa, a "motivar-se" cada vez mais para.satisfazer
nova fase, mais sofisticada, mais "individualizada'', mais "competitiva'' da o cliente, isto é, intimado pelo tipo de contrato que o vincula aempresa e
racionalizac;:áo burocrática, e é apenas em consequencia de urna ilusáo que pelo modo de avaliac;:áo que lhe é aplicado a provar seu comprometimento
ele se apoiou na "crítica artista'' de 1968 para assegurar a mutayáo de urna pessoal com o trabalho.
forma de poder organizacional em outra. Nós náo saímos da "jaula de ac;:o" A racionalidade empresarial apresenta a vantagem incomparável de unir
da economia capitalista a que se referia Weber. Em cenos aspectos, seria todas as rela<;óes de poder na trama de um mesmo discurso. Nesse sentido, o
melhor dizer que cada indivíduo é abrigado a construir, por canta própria, léxico da empresa contém um potencial de unificayáo dos diferentes "regimes
sua "jaula de a<;o" individual. de existencia'', o que explica os governos terem recorrido largamente a ele.
Com efeito, o novo governo dos sujeitos pressupóe que a empresa náo Em particular, permite articular os objetivos da política adotada a todos os
seja urna "comunidade" o u um lugar de realizayáo pessoal, mas um instru-
mento e um espac;:o de competic;:áo. Ela é apresentada idealmente, acima
8
de tudo, como o lugar de todas as inovayóes, da mudanc;:a permaÚente, Margaret Thatcher em Sunday Times, 7 maio 1988; grifo nosso.
da adaptac;:áo contínua as variayóes da demanda do mercado, da busca de
9
Algnns trabalhos deram enfase aos instrumentos de gestáo que visam a fazer com que
excelencia, da "falha zero". Desse modo, injunge-se o sujeito a conformar- a obediencia dos assalariados as exigencias da empresa repouse sobre mecanismos
de identificac_;:áo, interiorizac_;:áo e culpabilizac_;:áo. A gestáo 'por projeto é urna ma-
a
-se íntimamente, por um trabalho interior constante, seguinte imagem:
neira de impar com "suavidade" ao executivo e ao assalariado em gera_! que provem
ele deve cuidar constantemente para ser o mais eficaz possível, mostrar-se constantemente fidelidade e respeito a expectativa de born deserD.penho. Ver, por
inteiramente envolvido no trabalho, aperfeic;:oar-se por urna aprendizagem exernplo, David Courpasson, "Régulation et gouvernement des o'rganisations: pour
contínua, aceitar a grande flexibilidade exigida pelas mudanyas incessantes une soci~logie d; l'~ction ma~agériale", Cahíers de Recherches, Groupe ESC Lyon,
1996; e 1dem, Lactzon contramte: organísatíons libérales et dominatíon (Paris PUF
impostas pelo mercado. Especialista em si mesmo, empregador de si mesmo, 2000). ' '
A fábrica do sujeito neoliberal .. 333
332 " A nova razáo do mundo

·componentes da vida social e individual10 • Dessa forma, a empresa torna- vincular diretamente a maneira como um homem "é governado" amaneira
-se náo apenas um modelo geral que deve ser imitado, como também urna como ele próprio "se goverria''.
atitude que deve ser valorizada na crianya e no al uno, urna energia potencial
que deve ser solicitada no assalariado, _urna maneira de s~r que é produzida
A empresa de si mesmo como ethos da autovaloriza~áo
pelas mudanyas institucionais e ao mesmo tempo produz melhorias em
todos os domínios. Estabelecendo urna correspondencia íntima entre o Isso pressupóe todo um trabalho- de racionalizac;::io até o mais íntimo do
governo de si e o governo das sociedades, a empresa define urna nova ética, sujeito: urna rilcionalizardo do desejo. Esta está no centro da norma da empresa
isto é, certa disposiyáo interior, certo ethos que deve ser encarnado com um de si mesrno. Como ressalta um de seus tecnólogos, Bob Aúbrey, consultor
uabalho de vigiláncia sobre si mesmo e que os procedimentos de avaliayáo internacional californiano, "falar em empresa de si mesrno é traduzir a ideia
se encarregam de reforyar e verificar. de que cada indivíduo pode ter domínio sobre sua vida: conduzi-la, geri-la e
Nessas condiyóes, pode-se dizer que o primeiro mandamento da ética controlá-la em func;:ao de seus desejos e necessidades, elaborando estratégias
do empreendedor é "ajuda-te a ti mesmo" e que, nesse sentido, ela é a ética do adequadas" 13 • Enquanto maneira de ser do eu humano, a empresa de si mes-
se/fhelp [autoajuda]. Pode-se alegar, com toda a razao, que essa ética nao é m o constitui urn modo de governar-se de acorde com valores e princípios.
nova, que faz parte do espírito do capitalismo original. Sua formulay~o já Nikolas Rose destaca· alguns: "Energia, iniciativa, ambiyáo, cilculo e respon-
se encontrava em Benjamin Franldin e, melhor ainda, um século depois, sabilidade pessoal" 14. Trata-se do indivíduo competente e competitivo, que
em Samuel Smiles, autor de um best-seller mundial publicado em 1859 e p~ocura maximizar seu capital humano em todos os campos, que náo procura
intitulado SelfHelp. Smiles apostava inteiramente na energia dos indivíduos, a_tjen,as projetar-se -';1-0 futun;>. e calcular ganhos e custos como o velho hoinern
a
que devia ser deixada o mais vontade possível; contado, ele se limitava econürnico, mas qUe procura sobretudo trabalhar a si mesmo cotp. o intuito
a ética individual, a qual considerava a determinante única. Em nenhum de transformar-se continuamente, aprimorar-se, tornar-se sernpre mais efi.caz.
momento lhe passou pela cabe\" que o se/fhelp pudesse ser mais do que urna O que distingue esse sujeito é o próprio processo de aprimoramento que ele
forya moral pessoal, que cada .indivíduo deveria desenvolver por si mesmo realiza sobre si rnesmo, levando-o a rnelhorar incessantemente seus resultados
11
e, sobretudo, que pudesse ser um modo de governo político . Pensava o e seus desempenhos. Os novos paradigmas que englobarn tanto o mercado de
contrário até, baseado nurna delimitay:io estrita da esfera privada e da esfera trabalho como o da educa<;ao e da forma<;ao, "forma<;ao por toda a vida'" (long
pública: "A maneira como um homern é governado pode náo ter grande lijé training) e "empregabilidade", sao modalidades estratégicas significativas.
importancia, ao passo que tudo depende da maneira corno ele próprio se Seria um erro denegrir essa dimensáo da ética empresarial como se fosse
governa'' 12 . Precisamente, a grande inovay:io da tecnologia neoliberal é apenas engodo e usurpac;:áo. Essa é a ética do nosso tempo. Mas nao devemos
confundi-la corn um existencialismo fraco nern com um hedonismo fácil. A
ética empresarial encerra, é claro, essas formas éticas, exaltando o "homem
w Ver Nikolas Rose, Inventing Ourselves: Psychology, Power and Personhood (Cambridge, que faz a si mesmo" e a "realizayáo plena'', mas é por outros aspectos que
Cambridge University Press, 1996), p. 154 [ed. bras.: Inventando nossos seljS.·psicologia,
ela se singulariza. A ética da empresa tem um teor mais guerreiro: exalta o
poder e subjetividade, coord. trad. Arthm Arruda Leal Ferreira, Petrópolis, Vozes, 2011] ·
combate, a forya, o vigor e o sucesso. Ela transforma o trabalho no veículo
11 a
Samuel Smiles, Se!f-help ou caracti!re, conduite et persévérance illustrées l'aide de
biographies (trad. Alfred Talandier, Paris, Plan, 1865). Na introdw;:áo, o autor dá o privilegiado da realiza<;ao pessoal: sendo bem-sucedidos profissionalmen-
seguinte resumo de seu propósito: "Na vida, o bem-estar e a felicidade.individuais te, fazernos da nossa vida um "sucesso". O trabalho garante autonomia e
dependem sempre de nossos próprios esfon;:os, do cuidado mais ou menos diligente
com que cultivamos, disciplinamos, controlamos nossas aptidóes e, acima de tuda,
do honesto e corajoso cumprimento do dever, que faz a glória do caráter individual",
13 Bob Aubrey, L'entreprise de soi (Paris, Flammarion, 2000), p. 11.
ibídem, p. l.
14 Nikolas Rose, Inventing Ourselves, cit., p. 154.
12
Ibidem, p. 5.
334 e A nova razio do mundo A fábrica do sujeito neoliberal • 335

liberdade, na medida em que é a maneira mais benéfica de exercermos nossas Preocupado ero dar urna cauyáo teórica a essa nova ética, Aubrey afirma
faculdades, empregarmos nossa energia criativa e provarmos nosso valor. Essa ter tornado a expressáo "empiesa de si mesmo" de Foucault para transformá-
ética do trabalho náo é urna ética da abnegayáo, náo transforma em virtude -la num método de for~~ráo profissionaP 9• Apesar de ser-bastante curioso
a obediéncia as ordens de um superior. ver a analítica crítica- do. poder se transformar num conjunto de propostas
Nesse sentido, ela é o oposto da ética da "conversáo" (metanoia) do as- prescritivas e performativas aos assalariados, o discurso é revelador. No novo
cetismo cristáo dos séculas III e IV, que era precisamente urna ética do mundo da "sociedade ern desenvolvimento", o indivíduo náo deve mais se
rompimento coro o eu 15 • É profundamente distinta até da ética do trabalho ver como um trabalhador, mas como urna empresa que vende um serviyo
que marcou o protestantismo dos primórdios- embora aparentemente incite em um mercado.
o sujeito a urna autoinquisiyáo permanente e a um "controle sistemático de
Todo rrabalhador deve procurar uro diente, posicionar-se no mercado, fixar
si mesmo", ela náo vé mais o sucesso no trabalho como o "sinal da eleiyáo uro preyo, gerir seus custos, fazer pesquisa-desenvolvimento e formar-se.
divina'' que supostamente dá ao sujeito a certeza de sua salvayáo 16 • Se aqui o Enfim, considero que, do ponto de vista do indivíduo, seu trabalho é sua
trabalho se torna espayo de liberdade, isso só acontece se o indivíduo souber empresa, e seu desenvolvimento define-se como urna empresa de si mesm 0 . 20
ultrapassar o estatuto passivo do assalariado de antigamente, isto é, se ele O que devemos entender por essa afirrnac;:áo? A empresa de si mesmo é
se tornar urna empresa de si mesmo. O grande princípio dessa nova é~ica urna "entidade psicológica e social, e mesmo espiritual", ativa em todos os
do trabalho é a ideia de que a conjunyáo entre as aspirayóes individuais e
domínios e presente ero todas as ~elac;:óes 21 • É sobretudo a resposta a urna
os objetivos de exceléncia da empresa, entre o projeto pessoal e o projeto nova regra do jogo que muda radicalmente o contrato de trabalho, a ponto
da empresa, somente é possível se cada indivíduo se tornar urna pequena de aboll-lo como relac;áo ~;¡larial. A responsabilidade do individuo pela
empresa. Em o u tras palavras, isso pressupóe conceber a empresa como urna valorizayáo de seu !rabalho no mercado tornou-se wn princípio, absoluto.
entidade composta de pequenas empresas de si mesmo. Essa relac;:áo de cada um com o valor de seu trabalho é "objeto de gestáo,
A empresa no sentido económico do termo é um conjunto de empresas das investimento e desenvolvimento num mercado de trabalho aberro e cada vez
pessoas que a compóem. Hoje, os indivíduos que trabalham náo devem ser 22
mais mundial" • Em outras palavras, como o trabalho se tornou um "pro-
considerados exclusivamente empregados, mas pessoas que tém dentro delas
duro" cujo valor mercantil pode ser medido de forma cada vez mais precisa,
estratégias, objetivos de vida. 17
chegou a hora de substituir o contrato salarial por urna relac;:áo contratual
É no mesmo sentido que devemos entender a afirmayáo: entre "empresas de si mesmo". Desse ponto de vista, o uso da palavra "em-
A empresa no sentido clássico e económico do termo repousa, acima de tuda, presa'' náo é wna simples metáfora, porque toda a atividade do indivíduo é
sobre a justaposü;áo das "empresas de si mesmo" de todos os seus membros concebida como um processo de valorizafáo do eu. O termo significa que a
e até mesmo de todas as suas partes interessadas (englobando, por exemplo,
atividade do indivíduo, sob suas diferentes facetas (trabalho remunerado,
os empregados dos dientes e dos fornecedores e o entorno)Y
trabalho beneficente para urna associayáo, gestáo do lar familiar, aquisiyáo de
competencias, desenvolvimento de urna rede de cantatos, preparayáo para wna
mudant;a de atividade etc.), é pensada ero sua essCncia como empresarial?~
15 Michel Foucault, L'herméneutique du sujet" (Paris, Gallimard/Seuil, 2001), p. 203
[ed. bras.: A hermentutica do sujeito, trad. Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus
19
Muchail, 3. ed., Sio Paulo, Martins Fontes, 2014]. Ibidem. Ele escreveu antes com Bruno Tilliette, Savoirfoire savoir (Paris, lnteréditions,
16 1990) e Le travail apres la crise (Paris, Interéditions, 1994).
Max Weber, L'éthique protestante et !'esprit du capitalisme (Paris, Flammarion, 1999),
20
p. 176 e seg. Bob Aubrey, Le travail apres la crise, cit., p. 85.
21
17
Entrevista com Bob Aubrey, 'Tenrreprise de soi, un nouvelige", Autrement, n. 192, Ibidem, p. 86.
22
2000, p. 97. Ibidem, p. 88.
18 21
Bob Aubrey, L'entreprise de soi, cit., p. 193. Bob Aubrey; L'entreprise de soi, cit., p. 1S.
A fábrica do sujeito neo liberal a 337
336 e A nova razáo do mundo
de forma linear, rígida e dentro de cenos limites, mas, sim, em se mostrar
É essa equivaléncia entre a valorizayáo mercantil do rrabalho e avalo-
capaz de flexibilidade, de empteendedorismo.
rizayáo de si próprio que leva Aubrey a comparar a empresa de si me~mo
a urna forma moderna de "cuidado de si", a urna versáo contemporanea Quanto mais escolh;:ts há,_mais há obrigayáo de se valorizar no mercado.
da epímeleia24. Hoje, a epimeleia consistida em "gerir um portfól.io de Ora, acrescentaAubrey, o valor do indivíduo náo vem mais dos direitos que
atividades" desenvolver estratégias de aprendizagem, casamento, amiZade, ele adquire milagrosamente ao nascer, mas é conquistado pela
' d . "25
educayáo dos filhos, a administrar o "capital da empresa e s1 mesmo · empresa que se tem, pela vontade de nao se contentar com esse mundo do
Inspirando-se em Gary Becker, Aubrey renta abranger tuda que ~~nh.a a direito em que tudo é dado, determinado, registrado, mas de entrar num
engordar um capital que é tanto familiar como individu~: e~pene~ctas, mundo que muda, wn mundo social em que é preciso se valorizar pda traca.
formayáo, sabedoria e con tatos, mas também energia e saude, cartelra de O mercado de trabalho faz parte desse mundo. 27
clientes" "rendimentos e bens". A noyáo de "empresa de si mesmo" supóe O interesse do discurso de Aubrey é o fato de referir essa nova figura do
urna "in~egrayáo da vida pessoal e profissional", urna gestáo familiar" d~ homem a um conjunto de técnicas práticas que os indivíduos tém adispo-
portfólio de atividades, urna mudan ya da relayáo co~ o tempo, "que nao e siyáo para chegar a essa nova forma de sabedaria que é o "desenvolvimento
mais determinada pelo contrato salarial, mas por pro jetos que sao levados autogerado da empresa de si mesmo" 28 . Se "a empresa de si mesmo náo é
a cabo com diversos empregadores. E isso- val muito além do mundo pro- imediatamente evidente", novas exercícios devem substituir "a abordagem
fissional; trata-se de urna ética pessoal em tempos de incerteza. "A empresa terapéutica de suporte individual e familiar, fornecendo ferramentas e estra-
de si mesmo é encontrar um sentido, um compromisso na globalidade da tégias.pragmáticas"29. Porque se trata realmente de urna ascese: "O verdadeiro
vida'' 0 que comeya cedo - com quinze anos, somos empreendedores de trabalhú,d~ empresa d~ si mesmo é um.trabalho que se faz sobre si rnesmo
nós ~esmos assim que nos perguntamos o que queremos fazer da vida. e a serviyo dos outros" 30 • Aubrey esclarece:
Toda atividade é empresarial, porque nada mais é garantido para toda a
A empresa de si mesmo nao é wna filosofia ou urna ideologia: é um movi:-
vida. T udo deve ser conquistado e defendido a todo momento. A crian ya mento que fornece experiencias e ferramentas que levam as pessoas a evoluir
mesmo deve ser "empreendedora de seu saber". Desse ponto de vista, tuda em seus contextos de vida (empresas, bairros, associa<;:óes, família, rede de
se torna empresa: o trabalho, mas também o consumo e o laze~, já ;ue "s~ contatos etc.). É urna técnica de desenvolvimento para toda a vida.31
procura tirar deste 0 máximo de riquezas, utilizá-lo para a reabzayao de s1 lsso significa que cada indivíduo deve aprender a ser um sujeito "ativo"
26
mesmo como maneira de criar" • e "autónomo" na e pela ayáo que ele deve operar sobre si mesmo. Dessa
Dai certa forma de redefiniyáo do "domínio de si mesmo": forma, ele aprenderá por si mesmo a desenvolver "estratégias de vida"
Hoje, urna nova ideia está surgindo: somos confrontado~ com esc~lha;, para aumentar seu capital humano e valorizá-lo da melhor maneira. ''A
possibllidades, oportunidades cada vez mais num~rosas, ~ada vez maJs .ra- criayáo e o desenvolvimento de si mesmo" sáo urna "atitude social" que
pidas. Portanto, 0 domínio de si mesmo náo consiste mals em levar a vida
deve ser adquirida, um "modo de agir" que deve ser desenvolvido, "para
enfrentar a tripla necessidade do posicionamento da identidade, do desen-
24 Idem Le travail aprfs la crise, cit., p. 103. Lembremos que a epimeleia heautou é a volvimento de seu próprio capital humano e da gestáo de um portfólio de
'
formulacáo do "cuidado de si" ou "preocupas:áo consigo mesmo" na cu1t~ra grega
dássica. 'sobre esse ponto, ver Michel Foucault, L'herméneutique du sujet, Cit.
27 Entrevista com Bob Aubrey, 'Tentreprise de soi, un nouvel áge", cit., p. 99 e seg.
25 "Trabalhar, aprender, manter relas:óes, assegurar a harmonia do nosso casa:uento e
criar nossos filhos, participar da vida local, fazer caridade, melhorar a q~altdade da 28
Bob Aubrey, Le travail aprfs la crise, cit., p. 133 e seg.
nossa vida: hoje, podemos nos dedicar a essas atividades apenas na medida em qu~ 29
Ibidem, p. 138.
assumimos responsabilidades e desenvolvemos estratégias", Bob Aubrey, Le travatl 30
Ibidem, p. 198.
apres la crise, cit., p. 105.
31
Bob Aubrey, L'entreprise de soi, cit., p. 9.
26 Ibidem, p. 1Ol.
338 A nova razáo do mundo
A fábrica do sujeito neo liberal ~ 339
e

átividades" 32 • Essa atitude empresarial deve valer para todos, náo apenas governo de si, certa subjetivac;:áo, era a própria condic;:áo para o exercício de
para empresários ou aut6nomos. Todos, coma ajuda de "consultores em · um governo político e religiosO. Isso vale ern particular para a relac;:áo entre_o
estratégias de vida", dependem dessa formac;:áo especializada em empresa governo de si e o gove_~n_o d<?s ?U tras na pólis, tal como pensada na ética grega
de si mesmo, urna formac;:áo que permitirá um "autodiagnóstico" em clássica: aquele que é incapaz de se governar é incapaz de governar os outros36.
congressos modulares sobre diferentes aspectos dO proctdimento: "Eu e A assimilac;:áo das práticas de gestáo as práticas antigas é, evidentemente,
minhas competéncias", "E u e minha maneira de agir", "E u e meu cenário urn procedimento falacioso, que visa a dar-lhes um forte valor simbólico no
de sucesso" etc. 33 mercado da formac;:áo dos assalariados. O que é suficiente estabelecer aqui é
que a ascese da empresa de si mesmo termina· com a identificardo do sujeito
com a empresa, deve produzir o que chamamos antes de sujeito do envolvi-
fu "asceses do desempenho" e suas técnicas
mento total, ao contrário dos exercícios da "cultura de si mesrno" dos quais
Se essa ética neoliberal do eu náo se restringe aos limites da empresa, trata Foucault, cujo objetivo é estabelecer urna distáncia ética em relac;:áo a si
é náo só porque o ser bem-sucedido na carreira confunde-se com o ser mesmo, urna distáncia em relac;:áo a todo papel social. No entanto, lidamos
bem-sucedido na vida, mas, ainda mais fundamentalmente, porque a aqui como que Éric Pezet denominou judiciosamente "asceses do desernpe-
gestáo moderna renta "aliciar as subjetividades" com a ajuda de controles nho", as-quais constituem um mercado ern plena expansáo37.
e avaliac;:óes de personalidade, inclinac;:óes de caráter, maneiras de ser, falar e Diferentes técnicas, corno coaching, programac;:áo neurolinguística
mover-se, quando náo de motivac;:óes inconscientes31 . (PNL), análise transacional (AT) e múltiplos procedimentos ligados a urna
O discurso gerencial envolve múltiplas técnicas que propóern um tra- "esco~a'' ou um "guru" visarn a um melhor "domínio de si mesmo" das
balho do eu para facilitar a "eclosáo do hornem-ator de sua vida". A vida emoc;:Óes, do estress~, das rel~c;:óes com clientes ou colaboradores, chef;s ou
na empresa é considerada em si rnesrna urna "formac;:áo", o lugar ande se subordinados. Todos térn como objetivo fortalecer o eu, adaptá-1o rnelhor
adquire certa sabedoria prática, o que explica o fato de as autoridades po- arealidade, torná-lo mais operacional em situac;:óes difíceis. Todos térn sua
líticas e econ6micas enfatizarem tanto a participac;:áo de todos na vida da história, suas teorias, suas instituic;:óes correspondentes. O que nos interessa
empresa, desde a mais tenra idade. Nesse sentido, Aubrey sustentou que sáo os pontos que os unem. O primeiro aspecto é que todos se apresemam
a empresa constitui um percurso educativo que dá legitimidade aos como saberes psicológicos, com um léxico especial, autores de referéncia,
que sáo bem-sucedidos, de modo que os managers podem ser considerados metodologias particulares, modos de argumentac;:áo de feic;:áo empírica e
"o equivalente aos sábios o u aos mestres" 35 . racional. O segundo aspecto é que se apresentam como técnicas de trans-
Essa temática é conscientemente retomada dos trabalhos de Foucault e formac;:áo dos indivíduos que podem ser utilizadas tanto dentro como fora
Pierre Hadot sobre os exerdcios ou as asceses da sabedoria ~ntiga. Corno bem da empresa, a partir de um conjunto de prindpios básicos.
recordamos, essas práticas consistem em produzir um eu que se aproxima Cada método possui seus instrumentos, suas modalidades, sua hierarquia
de urn ideal proposto no discurso, o que pressupóe consultar seus deveres 38
de técnicos • É importante notar, sobretudo, que sáo técnicas que visam a
em cada circunstáncia. Foucault amplio u a a:nálise estabelecendo qu~ ceno

Sobre esse assunto, ver as aulas do College de France dedicadas aleitura deAlcibíades,
36
2
-' Ibidem, p. 10.
de Platáo, em Michel Foucault, L'herméneutique du sujet, cit, p. 27-77.
33
Ibidem, p. 22. 37
Éric Pezet (org.), Management et conduite de soi: enquéte sur les asceses de la performance
34
Ver Fran~ois Aballéa e Lise Demailly, "Les nouveaux régimes de mobilisation des (Paris, Vuibert, 2007). ,
salariés", emJean-Pierre Durand e Daniele Linhart (orgs.), Les ressorts de la mobilisation 38
Para uma análise crítica das práticas de coaching, em particular na área da saúde, ver
du travail (Toulouse, Octares, 2005).
Roland Gori e Pierre Le Coz, L'empire des coachs: une nouvelle forme de contrOle social
35
Bob Aubrey e Bruno Tilliette, Savoir jdire savoir, cit., p. 265. (Paris, Albin Michel, 2006). .
A fábrica do sujeito neoliberal • 341
340 ~ A nova razáo do mundo

''conduta de si e dos outros" ou, em outras palavras, técnicas de governamen- para conseguir o que realmente se quer. Desde que se saiba o que se quer" 41 .
talidade que visam essencialmente a aumentar a eficácia da relayáo com o ·Urna das definiyóes mais elaboradas da PNL resume bern o que está em jogo:
outro. Assim, podemos ler numa apresentayáo pedagógica da PNL: "Náo se a
A PNL é urna abordagem de ciéncias humanas que visa eficácia de nosso
trata de dizer o que é verdadeiro e o que náo é. Trata~se de perguntar qual é a desempenho nos diferentes domínios em que decidimos aplicá-la. Es-
. d e se comumcar
forma mais eficaz e mais construtlva · com
. alguem
' "39 . A'nfas
e e sencialmente pragmática, ela nos fornece meios concretos tanto para nos
comunicarmos de maneira eficaz como--para elaborarmos objetivos claros
é dada ao domínio da "comunicayáo" através de um melhor conhecimento
e alcanc;:á-los. 42
prático das regras da comunicayáo, quer se trate de PNL, quer se tarte daAT.
Esses métodos vinculam-se intimamente as exigencias do bom desempenho A teoria psicológica empregada é sempre determinada pelo uso prático, de
individual, o qua! depende da forra de persuasáo na venda, na dires:áo dos modo que podemos falar aqui de urna pragmática da ejicácia -comunicacíonal,
subordinados, no f:xito de urna busca de emprego o u pedido de promoyáo. pela qua! o domínio dos efeitos pelo eu nunca é um simples meio (o que, diga-
Conhecer melhor a nós mesmos, por meditayáo, autorreflexáo o u auto- -se de passagem, devolve ao devido lugar a referencia ao ideal do "domínio de
diagnóstico, coma ajuda ou náo de um coach, sozinhos o u em grupo, dentro si mesmo" que abunda nesses discursos) 43 • Todos os princípios da PNL visarn a
ou fora da empresa, somente tero sentido para compreendermos melhor o tornar o indivíduo mais eficaz, a cornec;:ar pelo trabalho de autopersuasáo pelo
que nós fazemos e o que faz o outro num ''processo de comunicayáo". A AT qual ele deve acreditar que os "recursos" sáo ele próprio: "Postular que cada
apresen ta-se como urna teoria e urna prática cujo intuito é ensinar a construir um de nós possui os recursos necessários para evoluir, atingir seus objetivos
urna comunicayáo de igual para igual, isto é, entre indivíduos que estáo num o4 resolver problemas estimula a responsabilidade e a autonornia e constitui
mesmo "estado do eu'', para evitar "comunicayóes arrevesadas, em que os um Vet_or fundamental do desenvolvimento da autoi::stirna" 44 .
interlocutores náo tero consciencia das motivayóes profundas que guiam Essas técnicas de ~overn~entalidade encontram :Seü campo de aplicac;:áo
suas palavras" 40 . Estar em um estado de espírito apropriado, decodificar e mais vasto e, sern dúvida, mais lucrativo no mundo profissional. relac;:áo A
transmitir sinais de reconhecimento, mas sobretu.do controlar as "transayóes", a
"aberra" e "positiva'' corn os outros é condic;:áo necessária produtividade.
as unidades dementares da comunicayáo, para se certificar dos "estados do As relac;:óes na empresa, das quais rudo depende, sáo consideradas em sua
eu'' que entram na comunicayáo. Conhecer melhor os "estados" do nosso eu, dimensáo exclusivamente psicológica. O postulado fundamental é que o
nosso "cenário de vida", as regras dos diferentes "jogos sociais", é compreender "desenvolvimento pessoal", urna rnelhor comtmicayáo no trabalho e o desern-
como nos comunicamos e, portante, controlar a própria comunicayáo. Da penho global da empresa estáo intimamente ligados. O "desenvolvimento
mesma forma, a PNL propóe exercícios de "sincronizayáo" como outro, urna do potencial pessoal" é visto como o melhor meio de melhorar a qualidade
técnica cujo intuito é estabelecer urna relayáo mediante a consonancia de e satisfazer o cliente. A PNL apresenta-se como urn "modelo de adaptac;:áo
diferentes parJ.metros verbais e náo verbais a fim de "collduzir" o outro de e conduyáo da mudanc;:a'' da empresa nurn contexto de concorrencia mun-
acordo como prindpio do "pacing and leading' [acompanhar e conduzir]. dial, em que a mudanc;:a é obrigatória. Dirigidas aos administradores, essas
As iniciativas pro postas sáo "pragmáticas"; segundo os termos da vulgata técnicas visam a ajudá-los a conduzir os outros, fortalecendo seu "potencial",
predominante, sáo "orientadas para a soluyáo". Náo visam tanto ao pOrque, a "con:fianya ern si mesmos", a "autoestirna". A PNL promete aos dirigentes
mas ao "como isso fimciona". Para seguirmos o estilo das fórmulas encontradas
nesse tipo de discurso, "o fato de encontrar o prego responsável pelo furo 41
Site de PNL: <www.france-pnl.com>; acesso em: 6 mar. 2016.
náo diz nada sobre a maneira como se deve trocar o pneu". Segundo outra 42
Antoni Girad, La PNL, cit., p. 13.
fórmula em voga, o ponto forre dessas iniciativas é "fazer o que for preciso 43
A esse respeito, lembramos que a enkrateia, o u império sobre si mediante a luta contra
os próprios desejos, alinhava-se desde a época clássica a um ideal de temperan¡ya e
39 Antoni Girad, La PNL (Paris, lnteréditions, 2008), p. 37. justic;:a, o que nos coloca muito longe da "gestáo dos afetos".
44
41! Site de forma¡yáo em AT: <www.capitecorpus.com>; acesso em: 6 mar. 2016. Antoni Girad, La PNL, cit., p. 21:
342 "' A nova razáo do mundo A fábrica do su jeito neoliberal ., 343

de empresa "aumentar seu carisma e estimular seu leadership". Acima de Se, portanro, trata-se de "rrabalho de si mesmo", "realizayáo de si mes-
rudo, permite compreender como funcionam "as pessoas que cercam o mo", "responsabilidade por si rÍlesmo", isso náo significa reclusáo do sujeito,
manager e, com esse conhecimento, orientar a energia na direyáo do obje- que toma a si mesmo po_!__ ~m objeto sem nenhuma relayáo com qualquer
tivo comum''; ''A PNL, por sua eficácia em termos de comunicayáo, dará instancia ou ordem que lhe sejam externas. Para falarmos como Foucault,
ferramentas eficazes ao manager para que ele possa motivar sua equipe com o "cuidado de si" -se é que existe um "cuidado de si" -, nesse caso, náo é
o intuito de satisfazer o diente". Estabelecer objetivos daros, compreen- um fim em si mesmo, porque o si náo -é-objeto e fim desse cuidada 47- náo
der a relayáo humana e "ativar os mecanismos da motivayáo", melhorar a se trabalha a si mesmo com a finalidade única de produzir certa relayáo
comunicayáo interpessoal dentro da empresa, "pedra angular do sucesso" consigo mesmo, isto é, unicamente para si.
("urna comunicayáo ruim na empresa dispersa as energias"), "gerir bem o Pierre Hadar ressaltou, aliás, que, ao contrário do que podia dar a entender
feedback" para "esclarecer urna pessoa sobre o que ela faz e para que essa a interpretayáo foucaultiana, a "cultura de si" da época helenística (séculas I
pessoa melhore o que ela faz", essas sáo algwnas das contribuiyóes da PNL e II) remeda a certa ordem do mundo, a urna razáo universal imanente do
para urna gestáo eficaz45 • cosmo, de modo que o movimento de interiorizayáo era ao mesmo tempo
autossuperayáo e universalizayáo48 • De certa forma, as "asceses do desempe-
nho" náo escapam a essa lógica. Obviamente, essa ordem náo é mais a ordem
A "gestao da alma" e a gestao da empresa
da "Natureza" estoica :ou a ordem desejada pelo Criador a qual a "ascese
Todos esses exercícios práticos de transformayáo de si mesmo tendero inl!amundana'' da ética protestante. se atrelava. No entanto, essa "ascética''
a jogar o peso da complexidade e da competiyáo exclusivamente sobre o encünt!a :Sua justific.ayáo últ.i!Jla numa ordem econ6mica que ultrapaSsa
indivíduo. Os "gerentes da alma", segundo expressáo lacaniana retomada o indivíduo, urna vez que é expressamente concebida para conformar a
por Valérie Brunel, introduzem urna nova forma de governo que consiste conduta do indivíduo a "ordem cosmológica'' da competiyáo mu~dial que
em guiar os sujeitos fazendo-os assumir plenamente a expectativa de cerro o envolve. É claro que o indivíduo trabalha a si rnesmo para se tornar mais
comportamento e certa subjetividade no trabalho 46 . Se todo indivíduo deve produtivo; contudo, ele trabalha para se tornar mais produtivo afim de tornar
desenvolver suas qualidades pessoais para reagir rápido, inovar, criar, "gerir a a empresa - que é a entidade de referencia - mais produtiva. Mais do que
complexidade numa economia globalizada'', como dizem as expressóes este- isso: os exercícios que supostamente melhoram a conduta do sujeito visam
reotipadas em vaga, é porque todo indivíduo é idealmente um gerente com a transformá-lo num "microcosmo" em perfeita harmonia com o mundo
o qual se deve contar para resolver os problemas. O domínio de si mesmo e da empresa e, para além dele, com o "macrocosmo" do mercado mundial.
das relayóes comunicacionais aparece como contrapartida de urna situayáo No fim das cantas, trata-se de fazer com que a norma geral de eficácia
global que ninguém consegue mais controlar. Se náo há mais domínio global que se aplica aempresa seja substituída, no nível individual, por um uso da
dos processos econ6micos e tecnológicos, o comportamento dos indivíduos subjetividade destinado a melhorar o desempenho do indivíduo- seu bem-
náo é mais programável, náo é mais inteiramente descritível e prescri!ível. -estar e sua grarificayáo profissional sáo dados apenas como consequencia
O domínio de si mesmo coloca-se como urna espécie de compensayáo ao dessa melhoria. Portanto, as qualidades que devem ser desenvolvidas pelo
domínio impossível do mundo. O indivíduo é o melhor, senáo o único sujeito remetem a um universo social em que a "apresentayáo de si mesmo"
"integrador" da complexidade e o melhor atar da incerteza. é um desafio estratégico para a empresa. Se o indivíduo deve ser "aberro",
"síncrono", "positivo", "empático", "cooperativo", náo é para a felicidade

45
Citaqóes extraídas da página "PNL et business": <www.france-pnl.com>. 47
Michel Foucault, L'herméneutique du sujet, cit., p. 81.
46
Valérie Brunel, Les managers de !'lime: le développement personnel en entreprise, nouvelle 48
Pierre Hadot, "Réflexions sur la notion de 'culture de soi'", em Exercices spirituels et
pratique de pouvoir? (Paris, La Découverte, 2004). philosophie antique (Paris, Albin Michel, 2002), p. 330.
344 o A nova razio do mundo A fábrica do sujeito neo liberal o 345

dele, mas sobretudo e ern primeiro lugar para obter do "colaborador" o sente por desempenhos passados. Os problemas econ6micos sáo vistos como
desempenho que se espera dele. · problemas organizacionais, e· estes se resumem, por sua vez, a problemas
Pode parecer que há algo de perverso na manipulayáo de temas que sáo psíquicos relacionados a um domínio insuficiente de si e da relas:áo com
ao mesmo tempo rnorais e psicológicos. Porque é exatarnente como instru- os outros. A fonte ¿a_· ~$cácia está no indivíduo: ela náo pode mais vir de
mento eficaz que o sujeito interessa e que se quer impar a-ele certa conduta urna autoridade externa. É necessário fazer um trabalho intrapsíquico para
"carreta'' em relayáo aos o u tras. A despeito das aparencias - que, aliás, par- procurar a motivayáo profunda. Q chefe náo pode mais impar: ele deve
ticipam plenamente da gestáo das subjetividades -, náo se trata de aplicar vigiar, fortalecer, apoiar a motivayáo. Dessa forma, a coeryáo econ6mica e
conhecimentos psicológicos o u problemáticas éticas ao mundo da empresa; financeira transforma-se em autocoeryáo e autocu!pabilizayáo, já que somos
ao contrário, trata-se de construir, com o auxílio da psicología e da ética, os únicos responsáveis por aquilo que nos acontece.
técnicas de governo de si que sáo parte interessada do governo da empresa. Sem dúvida, a nova norma de si é a da realizayáo pessoal: ternos de nos
Esse é o fundamento da teoría de Will Schutz, psicólogo norte-americano conhecer e nos amar para sermos bem-sucedidos. Daí a enfase na palavra
e autor de urna teoría intitulada Orientayóes Fundarnentais das Relayóes mágica: "autoestima'', chave de todo sucesso. Contudo, essas afirmayóes
lnterpessoais (Firo, em ingles). Em Human Element: SelfEsteem, Produc- paradoxais sobre a injunyáo de sermos nós mesmos e nos amarmos como
tivity and the Bottom Line, ele escreve: "Eu escolho minha vida - meus somos estáo inseridas num discurso que coloca o desejo legítimo como urna
comporramentos, pensamentos, sentimentos, sensayóes, recordayóes, ordem. O management é um discurso ferrenho que usa palavras de velu-
fraquezas, doenyas, carpo, tuda - ou, entáo, escolho náo saber que tenho a
do. Sua eficácia deve-se racionalizayáo lexical, metodológica, relacional,
escolha. Sou aut6nomo quando escolho a totalidade da minha vida'' 4 :~. Em na ·q~al-o sujeito é. intimado a entrar. Com esses métodos que afirmam
outras palavras, quando náo se pode mudar o mundo, resta inventar-se a "dese~volver a pessba'', -i:e~Ós de lidar com procedimentos essencialmente
si mesmo. Nem a empresa nem o ·mundo podem ser mudados, eles sáo gerenciais e produtos plenamente comerciais, como ressalta Valéiie Brunel.
dados intangíveis. Tuda é questáo de interpretayáo e reayáo do sujeito. Seus procedimentos técnicos, seus esquemas de apresentayáo, sua divisáo do
Schutz escreve ainda: "O estresse náo resulta dos 'estressores', mas da ma- trabalho entre técnicos e práticos, seus códigos padronizados e transferíveis,
neira como interpreto e reajo a suas injuns:óes" 50 • Técnica do si mesmo e seus "modos de usar", seus argumentos de venda, seus métodos de persuasáo
técnica da escolha misturam-se completamente. A partir do momento que sáo diferentes aspectos de urna "tecnología'' humana pensada como tal e
o sujeito é plenamente consciente e mestre de suas escolhas, ele é tambérn vendida como produto de marca de conswno em grande escala. Produtos
plenamente responsável por aquilo que lhe acontece: a "irresponsabilida- intelectuais sofisticados para dar a entender que se trata de produtos de alto
de" de um mundo que se torno u ingovernável ern virtude de seu próprio valor agregado, que fazem jus ao preyo que tem, sáo também ferramentas
caráter global tem como correlato a infinita responsabilidade do indivíduo de uso simples e resultados rápidos.
por seu próprio destino, por sua capacidade de ser bem-sucedido e feliz. Aliás, essa gestáo de si é objeto de um comércio intenso, que mobiliza
Náo se atravancar com as coisas do passado, cultivar previsóes positivas, grandes máquinas oligopolistas e pequen os artesáos em busca de um lugar
ter relayóes eficazes com o outro: a gestáo neoliberal de si mesmo cÓnsiste no mercado do "desenvolvimento pessoal". Essa expansáo comercial nao é
em fabricar para si mesmo um eu produtivo, que exige sempte mais de si motivo para espanto. Náo devemos nos esquecer de que essas técnicas de
mesmo e cuja autoestima cresce, paradoxalmente, coma insatisfayáo que se gestáo de si visam a urna "transformas:áo" de toda a pessoa, em todos os
domínios de sua vida. E isso por pelo menos duas razóes complementares.
Todos os domínios da vida individual tornam-se potencialmente "recursos"
49
Will Schutz citado em Valérie Brunel, Les managers de l'!tme, cit., p. 67. Ver Will
indiretos para a empresa, já que sáo wna oportunidade 'para o indivíduo
Schut:z, L'élémmt humain: comprendre le lien entre estime de soi, conjiance etperformance
(trad. Jacques Lecomte, París, lnteréditions, 2006). melhorar seu desempenho pessoal; todos os domínios da existencia sáo da
50
Idem. competencia da gestáo de si. Portante, toda a subjetividade, e náo apenas o
A fábrica do sujeito neoliberal " 347
346 m A nova razio do mundo

"homem no trabalho", é convocada para esse modo de gestáo, mais ainda t2m renda incerta, e todos os outros t2m renda certa, enquanto gozarem
dela, embora suas funyóes e suas posiyóes sejam muito desproporcionais. O
na medida em que a empresa seleciona e avalia de acordo com critérios
general que tem urna remunerayáo, o cortesáo que tem urna pensáo e o criado
cada vez mais "pessoais", físicos, estéticos, relacionais e comportamentais. que tem um salário ent-ra-m todos nessa última categoria. Todos os outros
sáo empreendedores, quer por se estabelecerem com um fundo para tocar
sua empresa, quer por serem empreendedores de seu próprio trabalho sem
Risco: uma dimensáo de existéncia e um estilo de vida imposto nenhum fundo, e por se poder considerar que vivero na incerteza; mesmo
os patifes e os ladróes sáo empreendedores dessa dasse. 52
O novo sujeito é visto como proprietário de "capital humano", capital
que ele precisa acumular por escolhas esclarecidas, amadurecidas por um Hoje, todos os indivíduos deveriam ter "renda incerta'', inclUsive "patifes
cálculo responsável de custos e benefícios. Os resultados obtidos na vida e ladró es". Esse é o teor das estratégias políticas ativamente encorajadas
sáo fruto de urna série de decisóes e esforyos que dependem apenas do in- pelo patronato. Aliás, a oposiyáo entre dois tipos de homens, os "riscófi-
divíduo e náo implicam nenhuma compensayáo em caso de fracasso, exceto los", dominantes corajosos, e os "riscófobos", dominados temerosos, foi
as previstas nos contratos de seguro privado facultativo. A distribuiyáo dos consagrada por dois teóricos ligados ao patronato frances: Franyois Ewald e
recursos económicos e das posiyóes sociais é vista exclusivamente como Denis Kessler53 . Esses autores afirmavam que toda "refundayáo social" pres-
consequencia de percursos, bern-sucedidos ou náo, de realizayáo pessoal. supunha a transformayáo do maior número de indivíduos em "riscófilos".
Em todas as esferas de sua existéncia, o sujeito empresarial é exposto a Alguns anos mais tarde, Laurence P~risot, líder do patronato frances, diria
riscos vitais, dos quais ele náo pode se esquivar, e a gestáo desses riscos está de ffi;¡neira mais direta: "A vida, a saúde e o amor sáo precários, por que o
ligada adecisóes estritamente privadas. Ser empresa de si mesmo pressupóe trab8lho eScapariade~sa lei.?" 5 ~. Devemos entender por essa declarayáo que
viver inteiramente em risco. Aubrey estabelece urna correlayáo estreita entre as leis positivas deveri8.m curvar-se a esSa nova "lei natutal" da preca,riedade.
ambos: "O risco faz parte da noyáo de empresa de si mesmo"; "a empresa Esse discurso dá ao risco urna dimensáo ontológica, gémea do desejo que
de si mesmo é reatividade e criatividade num universo em que náo se sabe move cada urn de nós. Obedecer ao próprio desejo é correr riscos 55 •
corno será o dia de amanhá'' 51 • No entanto, se desse ponto de vista "viver na in certeza'' aparece como wn
Essa dimensáo náo é nova. Há muito tempo a lógica de mercado foi estado natural, as coisas aparecem com urna feiyáo multo diferente quando
associada ao perigo das vendas fracas, das perdas, da falencia. A problemá-
tica do risco é inseparável dos "riscos do mercado", dos quais desde a Idade 52
Richard Cantillon, Essai sur la nature du commerce engénéral (trad. Richard Cantillon,
Média era necessário saber se proteger por meio de técnicas de garantia. A Londres, Fletcher Gyles, 1755), p. 71-2 [ed. bras.: Ensaio sobre a natureza do comércio
novidade reside na universalizayáo de um estilo de existencia económica que em geral (1755), apr. e trad. Fani Goldfarb Figueira, Curitiba, Segesta, 2002].
53
era reservado aos empreendedores. No alvorecer do século XVIII, o financista Sobre esse ponto, ver neste volume cap. 6, p. 181, nota 75.
54
e fisiocrata Richard Cantillon estabeleceu como princípio "antropológico" a Laurence Parisot em Le Fígaro, 30 ago. 2005.
necessidade de distinguir os "homens de renda certa'' dos "homens de ~renda
55
Sobre esse ponto preciso, Beck engana-se ao opor categoricamente a ontologia do
interesse do liberalismo dássico aontologia do risco do capitalismo contempodneo, a
incerta", isto é, os "empreendedores":
a
sociedade burguesa governada pelo interesse sociedade moderna governada pelo risco
Por todas essas indw;óes e urna infinidade de outras que se poderia fazer (Ulrich Beck, La société du risque, trad. Laure Bernardi, Paris, Aubier, 2001, p. 135 [ed.
sobre urna matéria que tern como objeto todos os habitantes de urn Estado, bras.: Sociedade de risco: rumo a urna outra modernidade, trad. Sebastiáo Nascimento,
pode-se estabelecer que, exceto o príncipe e os proprietários de terra, todos Sáo Paulo, Editora 34, 2010]). Por outro lado, ele acerta quando destaca a énfase que
os habitantes de um Estado sáo dependemes; que estes podem dividir-se em se dá atualmente a obsessáo do "risco" como perigo ou consciéncia do perigo. Mas,
duas classes, a saber, empreendedores e empregados; e que os empreendedores por causa disso, devemos, como ele, atribuir essa obsessáo a muta<;:óts importantes na
dominas:áo técnica da natureza, hoje incorporada asociedade (ibidem, p. 146)? Náo
deveríarnos atribuí-la igualmente, ou mesmo, sobretudo, anova norma da concorrénda
51 Entrevista com Bob Aubrey, 'Tentreprise de soi, un nouvel 3.ge", cit., p. 101. generalizada? Aliás, é o que tende a evidenciar a segunda parte de sua obra.
348 " A nova raz.io do mundo A fábrica do sujeito neoliberal " 349

s·áo situadas no terreno das práticas efetivas. Quando se fala em "sociedades Seus dispositivos tiveram um papel importante na constituiyáo de "riscos so-
de risco", é preciso esclarecer do que se trata. O Estado social trato u sob a dais" cuja cobertura, logicamente, era "socializada''. No en tanto, seus modos
a
forma de seguro social obrigatório alguns riscos profissionais ligados con- de financiamento, assim como seus princípios de distribui~áo, registravam
diyáo de assalariado. Hoje, a produyáo e _a gestáo dos riscos obedecem a wna factualmente que esseS ''fiscos sociais" estavam ligados ao funcionamento
lógica muito diferente. Trata-se, na realidade, de wna criayáo social e política da economia e dasociedade, tanto em suas causas (o desemprego) como em
de riscos individualizados que podem ser geridos náo pelo Estado social, seus possíveis efeitos (o estado de saúde- da máo de obra).
mas por empresas - cada vez mais poderosas e numerosas - que propóem A nova norma em matéria de risco é a da "individualizayáo do destino".
serviyos estritamente individuais de "gestáo de riscos". O "risco" tornou-se A extensáo do "risco" coincide com urna mudanya em sua natureza. Esse
um setor comercial, na medida em que se trata de produzir indivíduos que risco é cada vez menos "risco social", ·assumido por determinada política
poderáo contar cada vez menos com formas de ajuda mútua de seus meios a
do Estado social, e cada vez mais "risco ligado existéncia''. Em virtude do
de pertencimento e com os mecanismos públicos de solidariedade. Do pressuposto da responsabilidade ilimitada do indivíduo, da qua! se falou
mesmo modo e ao mesmo tempo qUe se produz o sujeito de risco, produz- antes, o sujeito é considerado responsável tanto por esse risco como .pela
-se o sujeito da assisténcia privada. A maneira como os governos reduzem a escolha de sua cobertura. Encontramos aqui a ideia de que o indivíduo deve
cobertura socializada dos gastos com doenyas ou aposentadoria, transferi~do mostrar-se "ativo", ser "gestor" de seus riscos; assim, consequentemente
sua gestáo para empresas de seguro privado, fundos comuns e associayóes convém que suscite e ·alimente urna atitude ativa em questáo de emprego,
mutualistas intimados a funcionar segundo urna lógica individualizada, saúde e educayáo. Para cerros teóficos do novo rumo, como Ewald, essa
permite estabelecer que se trata de urna verdadeira estratégia. sode4ade do risco ü;idividual pressupóe urna "sociedade de informayáo" -
Aliás, a nosso ver, é isso que deve ser retido dos trabalhos de Ulrich o pap~l dos poderes.-- públicOS ~ das empresas deveria--consistir em fornecer
Beck e da Sociedade de risco. Para ele, o capitalismo avanyado destrói a di- informayóes confiáveis sobre o mercado de trabalho, o sistema edúcacional,
mensáo coletiva da existéncia: destrói náo só as estruturas tradicionais que os direitos dos doentes etc. 57 •
o precederam, sobretudo a família, mas também as estruturas que ajudou Isso significa ver urna complementaridade ideológica entre a norma de
a criar, como as classes sociais. Assistimos a urna individualizayáo radical mercado baseada na "livre escolha'' do sujeito racional e a "transparéncia''
que faz com que todas as formas de crise social sejam percebidas como do funcionamento social, condiyáo necessária para urna escolha á tima. Mas
crises individuais, todas as desigualdades sejam atribuídas a urna responsa- significa, sobretudo, instaurar urn mecanismo que identifica o comparti!ha-
bilidade individual. A maquinaria instaurada "transforma as causas externas mento da informayáo e o compartilhamento do risco: a partir do momento
em responsabilidades individuais e os problemas ligados ao sistema em que se supóe que o indivíduo tem condiyóes de acessar as informayóes
fracassos pessoais" 56 • O que Beck chama de "agentes de· sua própria sub- necessárias para sua escolha, deve-se supor que ele se torna plenamente
sistencia mediada pelo mercado" sáo os indivíduos "liberados" da tradiyáo responsável pelos riscos envolvidos. Em outras palavras, a irnplantayáo
e das estruturas coletivas, liberados dos estatutos que lhes atribuíam um de um dispositivo informacional de tipo comercial ou legal permite urna
lugar. Hoje, esses seres "livres" devem "autorreferenciar-se", isto é, dar-se transferéncia do risco para o doente que "escolhe" determinado tratamento
referéncias sociais e adquirir um valor social a custa de urna mobilidade ou operayáo, para o estudante ou o "desempregado" que "escolhem'' ceno
social e geográfica sem limite determinado. Apesar de essa individualiza- curso de formayáo, o futuro aposentado que "escolhe" urna modalidade de
yáo pelo mercado náo ser novidade, Beck mostra que ela se radicalizou. poupanya, o turista que aceita as condiyóes do percurso etc. Compreende-se,
O "Estado de bem-estar" teve um papel ambíguo nisso, contribuindo para entáo, como a instaurayáo de indicadores e "rankings" faz parte da ampliayáo
a substituiyáo das estruturas comunitárias por "guichés" de auxílio social. do modo de subjetivayáo neoliberal: qualquer decisáo, seja médica, escolar,

6 57
5 lbidem, p. 161 e 202. "Emretien avec Fran¡;:ois Ewald", Nouveaux Regards, n. 21, 2003.
350 e A nova razio do mundo A fábrica do sujeito neoliberal " 351

seja profissional, pertence de pleno direito ao indivíduo. O que, devemos atas diante dos outros e ser inteiramente calculável. Como diz Pezet: "a
lembrar, tem certa ressonáncia no indivíduo, na medida em que ele aspira 'responsabilizayáo' dos indivíduos náo os torna apenas r~sponsáveis: eles
controlar o curso de sua vida, suas unióes, sua reprodw;:áo e sua morte. devem responder por seu comportamento a partir de escalas' de medida dadas
Mas essa ética "individualista" é tratad~ como urna oportunidade de jogar pelos serviyos de gesta.O -de recursos humanos e pelos administradores" 60 • A
todos os custos nas costas do sujeito, por mecanisriws de transferencia do "avaliayáo" tornou-se o primeiro meio de orientar a conduta pelo estímulo
risco que náo tem nada de "natural". No fundo, a estratégia consiste em ao "born desempenho" individual. Elapode ser definida como urna rela<;áo
a
partir da aspirayáo dedsáo pessoal na questáo da escolha de vida e rein- de poder exercida por superiores hierárquicos encarregados da expertíse dos
terpretar o conjunto dos riscos como escolhas de vida. Aubrey formulou resultados, urna relayáo cujo efeito é urna subjetivaráo contdbil dos avaliados.
bem esse desvio: "O risco tornou-se um microrrisco personalizado: a partir Urna vez que o sujeito aceita ser julgado com base nessas avaliayóes e sofrer
do momento que tenho um trabalho, esse trabalho tem riscos; a partir do as consequendas, ele se torna constantemente avaliável, isto é, um sujeito
momento que tenho saúde, essa saúde tem riscos; a partir do momento que que sabe que depende de um avaliador e das ferramentas empregadas por
tenho relayóes conjugais, esse casamento tem riscos" 58. ele, sobretudo porque ele mesmo foi educado para reconhecer de anternáo
a competencia do avaliador e a validade das ferramentas.
O sujeito neo liberal, portanto, náo é o sujeito benthamiano. Este último,
"Accountability" corno sabemos, é governável pelo cálculo, porque é calculista. Ora, náo se
A novidade do governo empresarial reside no caráter geral, transversal trata mais, como no utilitarismo clássico, de dispar de um quadro legal e de
e sistemático do modo de direyáo baseado na responsabilidade individual u"m cpnjunto de me;didas de "legislayáo indireta" conhecidos de todos para
e no autocontrole. A responsabilidade náo é considerada urna faculdade que o' indivíduo calcule melhor; trata-se de empregar instrumentos muito
adquirida de urna vez por todas, mas vista como resultado de urna interio- mais próximos do indivíduo (superior imediato), mais constantes (resultados
rizayáo de coeryóes. O indivíduo deve governar-se a partir de dentro por contínuos da atividade) e mais objetiváveis (medidas quantitativas levantadas
urna radonalizayáo técnica de sua relayáo consigo mesmo. Ser "empreen- por registro informatizado).
dedor de si mesmo" significa conseguir ser o instrumento ótimo de seu O sujeito neo liberal náo é mais exatamente aquele homem situável nos
próprio sucesso social e profissional. Mas contar apenas com a tecnologia sistemas administrativos de classifica'fáO, distribuível em categorias de acordo
do "training' e do "coachini' náo é suficiente. A instaurayáo de técnicas com critérios qualitativos, repartível nas células das tabelas exaustivas da
de auditoria, vigiláncia e avaliayáo visa a aumentar essa exigencia de con- burocracia industrial pública e privada. O antigo "homem da organiza'fáo"
trole de si mesmo e bom desempenho individual. Embora os coachs de era guiado pelo cálculo que fazia de seus interesses de ac01·do com um
subjetividades eficazes visein a fazer de cada indivíduo urn "especialista de plano de carreira relativamente previsível, em funyáo de seu status, de seus
si mesmo" 59 , o essencial, como bem noto u Éric Pezet, é fabricar o homem diplomas e de seu lugar numa grade de qualificayóes. O antigo sistema de
accountable [responsável]. As técnicas de produyáo do eu produtivo estáo julgamento burocrático baseava-se na probabilidade estatística de um elo
intimamente ligadas a esse modo de controle como momentos preparátórios entre a posiyáo do indivíduo na dassificayáo e sua eficácia pessoal. Tuda
ou sequencias reparadoras. isso muda quando se deixa de querer prejulgar a eficácia do sujeito por
Se seguirmos os diferentes sentidos do termo ingles em uso, significa títulos, diplomas, status, experiencia acumulada, ou seja, a posiyáo que
que o indivíduo deve ser responsável por si mesmo, responder por seus ele ocupa numa classificas;áo, porque passa-se a corlfiar na avaliayáo mais
fina e regular de suas competencias postas efetivamente em prática a todo

58
Entrevista com Bob Aubrey, "Lentreprise de soi, un nouvel 3.ge", cit., p. 100. 60 Éric Pezet et al., Management et conduite de soi: enquéte sur les asdses de la performance
59 Ver Valérie Brunel, Les managers de l'áme, cit. (Paris, Vuibert, 2007), p. 8.
352 • A nova razáo do mundo A fábrica do sujeito neoliberal @ 353

instante. O sujeito náo vale mais pelas qualidades estatutárias que lhe foram é urna técnica de boro desempenho num campo concorrencial. Ela náo visa
reconhecidas durante sua trajetória escolar e profissional, mas pelo valor de apenas a adaptayáo e aintegrayáo, ela visa aintensificayáo do desempenh~.
uso diretamente mensurável de sua forya de trabalho. Vemos, entáo, que o
modelo humano da empresa de si mesmo é requerido nesse modo de poder
que deseja impar um regime de sanyáo homólogo ao do rhercado. O novo dispositivo "desempenho/gozo"
O ideal- que constitui como que o modelo dessa atividade de avaliayáo, Náo compreenderíamos a extensáo do desdobramento da racionalidade
inclusive nos seto res mais distantes da prática financeira, como saúde men- neoliberal, o u as formas de resisténcia encontradas por ela, se a víssemos como
a
tal, educayáo, serviyos de cuidado pessoa e justiya- consistida em poder imposiyáo de urna fon:;:a mednica sobre urna sociedade e indivíduos da qual
avaliar os ganhos produzidos por cada equipe ou indivíduo considerados eles seriam pontos de aplicayáo externos. O poder dessa racionalidade, como
responsáveis pelo valor acionário produzido pela atividade que realizam61 • A a
vimos, deve-se instaurayáo de situayóes que foryam os sujeitos a funcionar de
transposiyáo da auditoria a que estáo sujeitos os "centros de resultados" da acordo com os termos do jogo imposto a eles. Mas o que é funcionar como
empresa ao conjunto das atividades eco nO micas, sociais, culturais e políticas urna empresa num contexto de situayáo de concorréncia? Em que medida isso
envolve urna verdadeira lógica de subjetivafáO Jinanceira dos assalariados. nos leva a uro "novo sujeito"? Abordaremos aqui apenas alguns dos elementos
Todo produto torna-se um "objeto financeiro", e o próprio sujeito é instittú- que compóem o dispositivo de desempenho/gozo e mostram diretamente
do como um criador de valor acionário, responsável perante os acionistas 62 • sua novidade em relayáo ao dispositivo industrial de eficácia.
Tudo indica que a principal mudanya introduzida pela avaliayáo é de O novo sujeito é o hornero da competiyáo e do desempenho. O empreen-
ordem subjetiva. Enquanto as novas tecnologias orientadas para a produyáo dedÚr:·.de si ·é uro ser feito para "ganhar", ser "bem-sucedido". O es porte de
da "empresa de si mesmo" pareciam responder a urna aspirayáo dos assa- compe~iyáo, rnais airlda que aS figuras idealizadas dos dirigentes de empresa,
lariados a mais autonomia no trabalho, a tecnologia avaliativa aumenta a continua a ser o grande teatro social que revela os deuses, os semideuses e os
a
dependencia em relayáo "cadeia administrativa". O brigada a realizar "seu" heróis modernos63 . Embora date do início do século XX e tenha se mostrado
objetivo, o sujeito da avaliayáo é igualmente constrangido a impar ao outro perfeitamente compatível tanto com o fascismo e o comunismo soviético
(subordinado, cliente, paciente ou aluno) as prioridades da empresa. É o como como fordismo, o culto ao esparte sofreu urna mudanya importante
atendente dos Correios que tem de aumentar as vendas de determinado quando se introduziu a partir de dentro nas práticas mais diversas, náo só
"produto", exatamente do mesmo modo que qualquer consultor financeiro por empréstimo de determinado léxico, mas também, de forma ainda mais
bancário, mas é também o médico que deve ora prescrever "a~óes" rentá- decisiva, pela lógica do desempenho, que altera seu significado subjetivo.
veis, ora liberar leitos o mais rápido possível. Urna das consequéncias mais Isso é verdadeiro para o mundo profissional, mas é verdadeiro também
seguras é, sem dúvida, que as "transayóes" ganham cada vez mais espayo em para muitos outros campos, como, por exemplo, a sexualidade. fu práticas
detrimento das "relayóes", a instrumentalizayáo do outro ganha import8.ncia sexuais, no imenso discurso "psicológico" que hoje as analisa, estimula e
em detrimento de todos os outros modos possíveis de relayáo com o outro. enche de conselhos de todos os tipos, tornam-se exercícios pelos quais cada
Contudo, mais fundamentalmente, essa mudanya se deve a forma éomo um de nós é levado a confrontar-se com a norma do desempenho social-
os sujeitos sáo intimados a participar ativamente de um dispositivo muito mente exigido: número e durayáo das relayóes, qualidade e intensidade dos
diferente do dispositivo característico da era industrial. A técnica de si mesmo orgasmos, variedade e atributos dos parceiros, número e tipos de posiyóes,
estimulayáo e conservayáo da libido em todas as idades tornam-se objeto
1
de pesquisas detalhadas e recomendayóes precisas. Como ·mostrou Alain
r, Ver Nelarine Cornelius e Pauline Gleadle, "La conduite de soi et les sujets entrepre-
nants: les cas Midco et Lbco", em Éric Pezet et al., Management et conduite de S,OÍ,
cit., p. 139. 63
Ver Alain Ehrenberg, Le culte de la peiformance (Paris, Hachette, 1999, Coles:áo
62
Sobre todos esses pontos, ver capítulo 8 deste volume. Pluriel).
354 " A nova razáo do mundo A fábrica do sujeito neoliberal o 355

Ehrenberg, o esparte torno u-se, sobretudo a partir dos anos 1980, um "prin- específica de poder que o constitui precisamente como sujeito governado.
cípio de ac;:áo para todos os lados", e a competic;:áo, um modelo de relac;:áo Quando poder e liberdade subjetiva náo sáo mais contrapostos, quando se
social64 . O "coaching" é a marca e ao mesmo tempo o meio dessa analogia estabelece que a arte de governar náo consiste em transformar um suj~ito
constante entre esparte, sexualidade e_trabalho 65 . Poi esse modelo, tal vez em puro objeto pasSiVo~ mas conduzir um sujeito a fazer o que aceita querer
mais do que o discurso econ6mico sobre a compditividade, que permitiu fazer, a questáo se apresenta sob urna nova luz. O novo sujeito náo é mais
"naturalizar" esse dever de bom desempenho e difundiu nas massas certa apenas o do circuito produc;:áo/poupanc;:a/consumo, típico de um período
normatividade centrada na concorrtncia generalizada. No dispositivo em consumado do capitalismo. O antigo modelo industrial associava - náo
questáo, a empresa se identifica com os campeóes, os quais patrocina e sem tensáo - o ascetismo puritano do trabalho, a satisfac;:~o do consumo
dos quais explora a imagem, e o mundo do esparte, como bem sabemos, e a esperanc;:a de um gozo tranquilo dos bens acumulados. Os sacrifícios
torna-se um laboratório do business sem constrangimentos. Os esportistas aceitas no trabalho (a "desutilidade") eram comparados com os bens que
sáo encarnac;:óes perfeitas do empreendedor de si, que náo hesitarn um ins- a
poderiam ser adquiridos grayaS renda (a "utilidade"). Como lembramos
tante sequer em se vender a quem pagar mais, sem multas considerac;:óes a antes, Daniel Bell mostrou a tensáo cada vez mais forte entre essa tendén-
respeito da lealdade e da fidelidade. Mais ainda, o cuidado com o corpo, o cia ascética e esse hedonismo do consumo, wna tensáo que, segundo ele,
aprimoramento de si mesmo, a procura de sensac;:óes fortes, o fascínio pelo chegoll ao ápice nos anos 1960. Ele entreviu, sem ter ainda condic;:óes de
"extremo", a preferencia pelo lazer ativo e a superac;:áo idealizada dos "limites" observar, a resoluc;:áo dessa tensáo num dispositivo que ia identificar o de-
indicam que o modelo esportivo náo se reduz ao espetáculo recreativo de sempenho ao gozo e cujo princípio é o do "excesso" e da "autossuperac;:áo".
"poderosos" devorando uns aos outros. Alguns jogos televisivos, os chamados N-áp se.trata mais de fazer o que se sabe fazer e consumir o que é necessário,
"reality TV", também ilustram essa "luta pela vida'', em que apenas os mais nu~a espécie de équilibriO" entre desutilidade e utilidade. Exige-se do novo
espertos e, com frequencia, os mais cínicos conseguem "sobreviver" (Survivor, sujeito que produza "sempre mais" e goze "sempre mais" e, desse modo,
e sua versáo francesa Koh Lanta), reativando num contexto multo diferente conecte-se diretamente com um "mais-de-gozar" que se torno u sistémico67 •
o mito de Robinson Crusoé e a "sobrevivtncia dos mais aptos" em situa-
c;:óes de perigo extraordinárias. Esse tipo de "robinsonada" contemporánea
identico ao anunciado por Étienne de La Boétie como nome de "servidáo voluntária''
a
radicaliza a nova norma social, mas mostra perfeic;:áo um imaginário em
(ibidem, p. 373).
que desempenho e gozo sáo indissociáveis. 67
Essa intensifica!fáO e essa acelera!fáO é que deram a Gilles Deleuze e Félix Guattari a
O sujeito neoliberal é produzido pelo dispositivo "desempenho/gozo". ideia inicial de outra economia política náo separada da economia libidinal, exposta
!números trabalhos enfatizam o caráter paradoxal da situac;:áo subjetiva. em O anti-Édípo [trad. Luiz B. L. Orlandi, 2. ed., Sáo Paulo, Editora 34, 2014] e
Os sociólogos multiplicam os "oximoros" para tentar dizer do que se tra- Mil platós [trad. Ana Lúda de Oliveira, Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa, 2.
ed., Sáo Paulo, Editora 34, 2014]. Para eles, o capitalismo só pode funcionar coma
ta: "autonomia controlada'', "comprometimento coagido" 66 • No entanto,
libera!fáO dos fluxos desejantes que excedemos quadros sociais e políticos estabelecidos
todas essas expressóes pressupóem um sujeito exterior e anterior relac;:áo a para a própria reprodu!fáO do sistema de produqáo. É nesse sentido que o processo de
subjetiva!fáO próprio do capitalismo é qualificado como "esquizofr¿nico". Mas, apesar
64 de o capitalismo só poder funcionar com a libera!fáO de clases cada vez maiores de
lbidem, p. 14. Ehrenberg nota com razáo que Max Weber antecipou essa tendencia:
energia libidinal que "decodificam" e "desterritorializam", ele tema reincorporá-las
"Nos Estados Unidos, nos lugares mesmo de seu paroxismo, a busca da riqueza, sem
continuamente a máquina produtiva. "Quanto mais a máquina capitalista dester-
seu sentido ético-religioso, tende hojea associar-se as paixóes puramente agonísticas,
ritorializa, decodificando e axiomatizando os fluxos para extrair deles o mais-valor,
o que lhe confere no mais das vezes um caráter de es porte", Weber citado em ibídem,
mais seus aparatos anexos, burocráticos e policiais, reterritorializam, absorvendo urna
p. 176.
parte crescente de mais-valor" (Gilles Deleuze e Félix Guaüad, L'anti-CEdipe, Paris,
65 Ver Roland Gori e Pierre Le Coz, L'empire des coachs, cit., p. 7 e seg. Minuit, 1972, p. 42). Se nos anos 1970 Deleuze dá enfase as máquinas repressivas
66 Como sublinha Jean-Pierre Durand em La chaíne invisible. Travailler aujourd'hui: "paranoicas", que tentam dominar inutilmente as linhas de fuga do desejo, mais tarde
du flux tendu ll la servítude volontaire (Paris, Seuil, 2004), o modelo desse paradoxo é ele ressaltará a rela!fáO entre essa liberayáo dos fluxos desejantes e os dispositivos de
356 '" A nova razáo do mundo A fábrica do sujeito neoliberal .. 357

A própria vida, em todos os seus aspectos, torna-se objeto dos dispositivos subjetivayáo "financeira'' definem urna subjetivafáo pelo excesso de si em si o u,
de desempenho e gozo. ainda, pela supera[áO indefinida de si. Consequentemente, aparece urna figura
Esse é o duplo sentido de um discurso gerencial que faz do bom desempe- inédita da subjetivac;áo. Náo urna "trans-subjetivac;a_o", o que implicarla mirar
nho um dever e de um discurso publicitário que faz do gozo um imperativo. um além de si mesillO que consagrarla um rompimento consigo mesmo -e
Ressaltar apenas a tensáo entre ambos seria esquecer tudO o que estabelece urna renúncia de si mesmo. Tampouco urna "autossubjetivayáo" pela qual se
certa equivaléncia entre o dever do bom desempenho e o dever do gozo, seria procurada alcanc;ar urna relac;áo ética-consigo mesmo, independentemente
subestimar o imperativo do "sempre mais" que visa a intensificar a eficácia de qualquer outra finalidade, de tipo político ou econ6mico 68 • De certa
de cada sujeito em todos os domínios: escolar e profissional, mas também forma, trata-se de urna" u/trassubjetivac;áo" 69 , cujo objetivo náo é um estado
relacional, sexual etc. "We are the champions" [Nós somos os campeóes] - último e estável de "posse de si", mas um além de si sernpre repelido e, além
esse é o hino do novo sujeito empresarial. Da letra da música, que a sua do mais, constitucionalmente ordenado, em seu próprio regime, segundo a
maneira anuncia o novo curso subjetivo, devemos guardar sobretudo esta lógica da empresa e, para além, segundo o "cosmo" do mercado mundial.
advertencia: "No time for losers" [Náo há tempo para perdedores]. A novidade
é justamente que o loser é o homem comum, aquele que perde por esséncia.
De fato, a norma social do sujeito mudou. Náo é mais o equilíbrio, a Da eficácia ao desempenho
média, mas o desempenho máximo que se torna o alvo da "reestruturayáo" Qual é a diferenya em relayáo ao homem económico clássico? A alma
que cada indivíduo deve realizar em si mesmo. Náo se pede mais do sujei- continuou a depender do corpo', esse fundamento material de sensac;óes,
to que seja simplesmente "conformado", que vista sem reclamar a indumen- idei.as, esperanyas e motivayóes. Se pareceu por um momento que Foucault
tária ordinária dos agentes da produyáo económica e da reproduyáo social. rest;ingia o campb da 'disdplina ao adestramento e a gestáo dos carpos, é
Náo só o conformismo náo é mais suficiente, como se torna suspeito, na porque os trayos corporais eramos primeiros na classificac;áo e na distribuic;áo
medida em que se ordena ao sujeito que "se transcenda'', que "leve os limites dos indivíduos, assim como em seu modo de gestáo. A divisáo do trabalho,
além", como dizem os gerente~ e os treinadores. A máquina económica, que repartia os carpos e distribuía os gestos, de certo modo era o paradigma
mais do que nunca, náo pode funcionar em equilíbrio e, menos ainda, com da gestáo dos sujeitos. Todo o utilitarismo dássico era comandado por essa
perda. Ela tem de mirar um "além", wn "mais", que Marx identifico u como prevaléncia, até na ideia de que, pelas palavras, podia-se chegar aos móbiles
"mais-valor". Até entáo, essa exigéncia própria do regime de acumulac;áo do das motivac;óes. O próprio princípio de utilidade repousava na ideia de que
capital náo havia desdobrado todos os seus efeitos. Isso aconteceu quando o tudo que dizia respeito aforya corporal e, portanto, psíquica deveria servir ao
cornprometimento subjetivo foi tal que a procura desse "além de si mesmo" máximo, sem nenhum resto. O carpo como dado principal deveria tornar-se
tornou-se a condiyáo de funcionamento tanto dos sujeitoS como das empre- integralmente útil por intermédio das disciplinas clássicas. ''&disciplinas fun-
sas. Daí o interesse da identificayáo do sujeito como empresa de si mesmo e cionam como técnicas que fabricam indivíduos úteis", sublinha Foucaulr7°.
capital humano: a extrayáo de um "mais-de-gozar", tirado de si mesmo, do
prazer de viver, do simples fato de vi ver, é que-faz funcionar o novo suJeito e
o novo sistema de concorréncia. Em última análise, subjetivayáo "contábil" e 68
Os termos "trans-subjetiva<;:áo" e "autossubjetiva<;:áo" sáo propostos por Foucault para
dar contada diferen<;:a entre o ascetismo cristáo dos séculas III e IV e a "cultura de
si" da época helenística. Ver Michel Foucault, L'herméneittique du sujet, cit., p. 206.
69
guiamento dos fluxos na "sociedade de controle", entre o modo de subjetiva<;:áo por No sentido em latim de ultra ("além de"), a ultrassubjetiva<;:áo, portanto, náo é urna
estímulo do "desejo" e a avalia<;:áo generalizada dos desempenhos. Ver Gilles Deleuze, subjetiva<;:áo exagerada ou excessiva, mas urna subjetiva<;:áo que visa sempre a um
"Contr6le et devenir" e "Post-scriptum sur les sociétés de contr6le", em Pourparlers além de si em si.
70
(Paris, Minuit, 1990) [ed. bras.: Conversa¡¡óes: 1372-1990, trad. Peter Pál Pelbart, Michel Foucault, Surveiller etpunir (Paris, NRF Gallimard, 1975), p. 246 [ed. bras.:
Sáo Paulo, Editora 34, 2013]. V'igiar e punir, trad. Raquel Ramalhete, 42. ed., Petrópolis, Vozes, 2014].
358 o A nova razáo do mundo A fábrica do sujeito neoliberal o 359

k coisas mudaram desde entáo. Esse "quadro natural do corpo humano" aprenderam a conceber-se como seres psicológicos, a julgar-se e modificar-se
impunha limites ao gozo e ao desernpenho que hoje sáo inaceitáveis. O por urn trabalho em si mesmos, ao mesmo ternpo que de~ 8.s instituiyóes e
corpo é produto de urna escolha, de um estilo, de urna modelagern. Cada aos governantes meios de dirigir a conduta desses indivíduos. Concebendo
indivíduo é responsável por seu carpo, re_inventado e transformado aprópria o sujeito como lugar- de paixOes, desejos e interesses, mas também de normas
vontade. Esse é o novo discurso do gozo e do dese-mperiho que obriga o e julgamentos morais, póde-se compreender como as foryas psicológicas sáo
indivíduo a dar-se um corpo tal que ele possa ir sempre além de suas capaci- móbiles de conduta, e corno agir tecnicarnente no campo psíquico por meio
dades atuais de prodw;:áo e prazer. Esse é o rnesrno discurso que iguala cada de sistemas adaptados de estímulo, incentivo, recompensa, puniyáo. Todo
urn de nós diante das novas obrigayóes: nenhuma defici€:ncia de nascenya urn conjunto de técnicas de diagnóstico e "ortopedia psíquica", no campo
ou de ambiente pode ser obstáculo intransponível ao cornprometimento educacional, profissional e familiar, foi integrado ao grande dispositivo
pessoal com o dispositivo geral. Por isso, essa virada so mente foi possível a de eficácia das sociedades industriais. A ideia diretriz era a da adaptayáo
partir do momento em que a funyáo "psi", apoiada pelo discurso "psi", foi mútua dos móbiles psicológicos e das coeryóes sociais e econümicas, o que
identificada como o motor da conduta e o objeto-alvo de urna transforrnayáo nos ensinou a ver a "personalidade" e o "fator humano" como urn recurso
possível por técnicas "psi". Náo que o sujeito neo liberal seja produto direto económico pelo qual se deve "zelar".
dessa construyáo, mas o discurso sobre o sujeito aproximo u os enunciados A p_sicologizayáo das relayóes sociais e a humanizayáo do trabalho
psicológicos e os enunciados económicos até quase fundi-los. Esse sujeito caminharam durante muito tempo de máos dadas, com as rnelhores das
é, na realidade, um efeito compósito, como era o indivíduo do liberalismo intenyóes. Ergonornistas, sociólogos e psicossociólogos quiseram dar urna
clássico. Vimos que este último era produto combinado de considera<;:óes résp.9sta aaspirayá~·dos trabalhadores a viver melhor no trabalho e até mesmo
múltiplas, de diferentes ordens (a anatornia e a fisiologia cornbinaram-se a enContrar prizef nele. A6 mesmo tempo, a dimensáo subjetiva tornou-
coro a econornia política e a ciéncia moral para lhe dar urn fundamento -se tanto urna realidade em si como um instrumento objetivo· de sucesso
intelectual sólido). Da rnesrna maneira, é pela combinayáo da concepyáo da empresa. A "motivayáo" no trabalho aparecen, entáo, como o prindpio
psicológica do ser humano, da nova norma económica da concorréncia, da de urna nova maneira de conduzir os homens no trabalho, mas tambérn
representayáo do indivíduo como "capital humano", da coesáo da organi- os alunos nas escalas, os doentes nos hospitais e os soldados no campo de
zayáo pela "comunicayáo", do vínculo social como "rede", que se construiu batalha. A subjetividade, feita de emoyóes e dese jos, paixóes e sentimen tos,
pouco a pouco essa figura da "empresa de si". crenyas e atitudes, foi vista como a chave do bom desempenho das empresas.
Nikolas Rose mostrou em seus trabalhos, rnuito inspirado nas pesquisas Departamentos de recursos humanos, empresas de seleyáo e recrutamento
de Foucault, que o discurso "psi", com seu poder de expertise e sua legiti- e especialistas em formayáo puseram em ayáo um trabalho específico de
midade científica, contribuiu largamente para a defini~áo do indivíduo conciliayáo entre a subjetividade desejante e os objetivos da empresa. Esse
governável moderno71 . O discurso "psi", entendido como "tecnologia inte- "humanismo" empresarial foi apoiado de fora por todos os reformistas bem-
lectual", permitiu que os indivíduos fossem conduzidos a partir de urn saber -intencionados, que acreditavam que um trabalhador seguro e realizado era
relativo a sua constituiyáo interna. Fazendo-isso, formou indivíduos que um trabalhador mais motivado, lago, mais eficaz. Daí a énfase na harmonia
do grupo, no "sentimento de pertencirnento" e na "comunicayáo", com
71 Nikolas Rose, Governing the Soul. The Shaping of the Private Self(2. ed., Londres, suas virtudes terap€:uticas e seu alcance persuasivo. Como observa Rose,
FreeAssociation Books, 1999), p. vii. Rose, no entanto, comete um erro de data. A "a democracia caminhava de máos dadas com a produtividade industrial
virada "psi" náo ocorreu no fim do século XIX, mas antes. Embora ainda permane- e a satisfayáo humana" 72 • lnúmeras considerayóes, no cruzamento da psi-
cesse preso a fisiologia, o início do discurso "psi" é contempodneo ao surgimento cossociologia coro o engajamento sindical e político, chegaram a ver nos
da economia política e da governamentalidade liberal: para governar as condutas,
é preciso saber influenciar a forma~áo dos motivos, isto é, atuar sobre a "dinilmica
72
psicológica", segundo expressáo criada por Bentham. Ibidem, p. 88.
360 " A nova razáo do mundo A fábrica do sujeito neoliberal " 361

efeitos do "estilo democrático da lideranya'' sobre a "subjetividade coletiva" O normal náo é mais o domínio e a regulayao das pulsóes, más sua estimu-
argumentos científicos a favor do socialismo autogestor. layáo intensiva como principal fonte de energía. É em torno da norma-da
O discurso "psi", quando cruzou com o discurso económico, teve outros competiyao entre empresas _de si mesmo que a fusáo do discurso "psi" com
efeitos sobre a cultura cotidiana, dando urna forma científica aideologia da o discurso económico se opera, que as aspirayóes individuais e os objetivos
escolha. Numa "sociedade aberra'', todo indivíduo- tem á direito de viver de exceléncia da empresa se identificam, que, em suma, o "microcosmo" e
como bem entende, escolher o que quiser, seguir as modas que preferir. A o "macrocosmo" se harmonizam.
livre escolha náo foi recebida inicialmente como urna ideología económica Evidentemente, a gestao nao é a única a assegurar essa conjunyao. O
de "direiti', mas como urna norma de conduta de "esquerdi', segundo a qual marketing é ernpuxo-ao-gozo [pousse-ft-jouir] incessante e onipresente, ainda
a
ninguém pode opor-se realizayáo de seus desejos. Enunciados económicos mais eficaz na medida em que promete, pela simples posse dos signos e dos
e enunciados do tipo "psi" juntaram-se para dar ao novo sujeito a forma do objetos do "sucesso", o impossível gozo último. Urna imensa literatura de
arbítrio supremo entre "produtos" e estilos diferentes no grande mercado dos revistas, urna enxurrada de programas de televisao, um teatro político e me-
códigos e dos valores. Foi ainda essa conjunyáo que deu origem a essas técnicas diático non stop e um imenso discurso publicitário e propagandista exibem
de si que visam ao desempenho individual por meio de urna racionalizayáo incessantemente o "sucesso" como valor supremo, sejam quais forem os
gerencial do desejo. Mas foi outra modalidade dessa conjunyáo que permitiu meios para consegui~lo. Esse "sucesso" como espetáculo vale por si mesmo.
o desenvolvimento do dispositivo de desempenho/ gozo, urna modalidade que O que ele atesta é apenas urna vontade de ser bem-sucedido, apesar dos
consiste náo em perguntar em que medida o indivíduo e a empresa, cada qual fracassos inevitáveis, e um contentamento por té-lo conseguido, ao menos
com suas exig€:ncias próprias, podem adaptar-se um ao outro, mas como o por·qmhreve mo!T!-ento da :r~da. Essa é a própria imagem em que se reSume
sujeito psicológico e o sujeito da produyáo podem identificar-se. Para falar em o dispositivo de desemPenho/gozo. Desse ángulo, autoridades políticas de
termos freudianos, a questáo náo é mais fazer com que os indivíduos passem um tipo novo, como Silvia Berlusconi ou Nicolas Sarkozy, si~bolizam o
do princípio do prazer ao princípio da realidade - objetivo terap€:utico dos novo curso subjetivo75 .
partidários de urna psicanálise "adaptativi' que promete um acréscimo de
"felicidade" para os mais bem adaptados73 ; a questáo agora é fazer os indivíduos
passarem do prindpio do prazer ao além do prindpio do prazer. A identificayáo Diagnósticos clínicos do neossujeito
entre os dais sujeitos distancia-se do horizonte homeostático do equilíbrio Tal sujeito encontra sua verdade no veredito do sucesso, submete-se a
para operar na lógica da intensificayao e da ilimitayáo. Sem dúVida, alguns um ''jogo da verdade" em que prava seu ser e seu valor. O desempenho é,
diráo que a ilusáo do gozo, da adapta<;áo do sujeito e do objeto, sob a forma muito precisamente, a verdade tal como o poder gerencial a define. Esse
da "realizayáo" e do "domínio de si mesmo", foi mantida. · dispositivo de conjunto produz efeitos patológicos aos quais ninguém
Mas o essencial náo reside nisso. Desse ponto de vista, embora Rose escapa completamente. Através da abundante literatura clínica contem-
tenha razáo em pro por ·que as técnicas "psi" e a governamentalidade pró- podnea, podemos distinguir alguns síntomas. Eles tém urn ponto em
pria das democracias liberais se copertenyam, ele nao percebe que o" ideal comum: podem se referir ao definhamento dos quadros institucionais
de domínio de si mesmo nao caracteriza mais a subjetividade propria- e das estruturas simbólicas nos quais os sujeitos encontravam seu lugar e
mente neoliberal74 . A liberdade tornou-se urna obrigayáo de desempenho. sua identidade. Esse definhamento é urna consequéncia direta da substi-
tuiyáo manifesta e geral da instituiyao pela empresa o u, mais exatamente,
73 a
Lembremos que, para Freud, a adapta<_;:áo realidad e, longe de significar urna rcnúnda da mutaráo da imtituiráo em empresa. Hoje é a empres,a que tende a ser
a qualquer prazer, gera em si mesma certa forma de prazcr.
74 Nikolas Rose, Inventing Ourselves, cit. Ver neste mesmo capítulo a nota 43, sobre o 75 Ver Michael Foesscl e Olivier Mongin, "les mises en sáne de la réussite. Entreprendre,
ideal ético da enkrateia. entrainer, animer", Esprit, nov. 2007, p. 22-42.
362 • A nova razio do mundo A fábrica do su jeito neoliberal ., 363

a principal instituiyáo distribuidora de regras, categorias e proibic;:óes realizac;:áo dos objetivos. Hoje, rnais do que antes, o assalariado, sozinho
legítimas; é também como empresa que qualquer instituic;:áo tem legiti- diante de tarefas irnpossívds ou duplas injunc;:óes, corre o risco de perder
midade para estabelecer regras e identidades sociais; enfim, é maneira da a a considerac;:áo de ~~~f~s ou colegas. O enfraquecirnento dos coletivos de
empresa, segundo a lógica da eficácia e .da competic;:~o, que toda instituiyáo trabalho reforc;:a esse .isolarnento. A intensificac;:áo dos controles póe ern
participa da normatividade. questáo o "jogo social" dentro da organizac;:áo, isto é, a rnargern de liberda-
O paradoxo em torno do qual gira o diagnóstico clínico é que as insti- de que é dada pela rela<;áo salarial e que dá sentido ao trabalho, da mesma
tuic;:óes que distribuem os lugares, determinam as identidades, estabilizarn as forma que contraria a aspirac;:áo dos assalariados a urna maior autonomia
relac;:óes e impóem os limites sáo cada vez mais regidas por um princípio de real 78 . O risco profissional, hoje normal, póe o indivíduo numa situac;:áo de
superaráo contínua dos limites, um prindpio que a neogestáo tern o encargo vulnerabilidade constante, que os manuais de gestáo interpretarn positiva-
de p6r ern prática. O "mundo sem limites" náo está ligado a urn retorno mente como um estado de exaltac;:áo e enriquecimento ("urna prova que
a "natureza": ele tem o efeito de um regime institucional particular que ve nos faz crescer"). Quando o sujéito empresarial vincula seu narcisismo ao
todo limite como potencialmente já superado. Longe do modelo de um sucesso de si mesmo conjugado com o da empresa, num clima de guerra
poder central que comandaria remotamente os sujeitos, o dispositivo de concorrencial, o menor "revés do destino" pode ter efeitos extremamente
desempenho/ gozo distribui-se em mecanismos diversificados de conn:ole, violentos. A gestáo.neoliberal da empresa, interiorizando a coerc;:áo de mer-
avaliayáo e incentivo e participa de todas as engrenagens da produyáo, de cado, introduz a ipcerteza e a brutalidade da competiyáo e faz os sujeitos
todos os modos de consumo, de todas as formas de relayóes sociais. assumi-las como um fracasso pessoal, urna vergonha, urna desvalorizac;:áo.
Nós nos propomos estabelecer aqui um quadro de conjunto dos diag- , :CAscontradic;:ó~s da nov~ organizac;:áo do trabalho, atestadas pelos oxímoros
nósticos feitos pela clínica médica :linda em desenvolvimento. sociológicos citados allteriormente ("comprometirhento coagido", "coerc;:áo
flexível" etc.), apenas reforc;:arn as decepc;:óes profissionais e imPedem qual-
Sofrimento no trabalho e autonomia contrariada quer possibilidade de conflito aberro e coletivo. Urna vez que a equipe e o
indivíduo aceitarn entrar na lógica da avaliac;:áo e da responsabilidade, náo
Os efeitos da gestáo por meio de objetivos e projetos foram objeto de
pode mais haver contestac;:áo legítima, pelo próprio fato de que é por auro-
numerosas análises sociológicas e psicológicas, algumas das quais com arnpla
repercussáo 76 • Hoje, o "estresse" e o "assédio" no trabalho sáo reconhecidos, coerc;:áo que o sujeito realiza o que se espera dele 79 • Em todo caso, o sujeito
no trabalho parece mais vulnerável na medida em que a gestáo exige dele
em relayáo ao aumento dos casos de suiddio no local de trabalho, como
um comprometimento integral de sua subjetividadé0• Um dos paradoxos
"riscos psicossociais" dolorosos, perigosos e especialmente onerosos para os
seguros coletivos77 .
Se esses sin tomas se referem com frequencia a intensificayáo do trabalho,
78
Como escrevem Michel Gollac e Serge Volkoff, "além dos modos e das técnicas geren-
ela mesma ligada aos fluxos tensos e as consequencias perversas da reduyáo
ciais, captar em proveito da empresa a energia que os indivíduos podem investir em
do tempo de trabalho sob exigencias de produtividade, patologias mentais atividades economicamente desinteressadas é urna preocupa~o constante e declarada
corno o estresse rem relayáo corn a individualizayáo da responsabilidade na da gestio de recursos humanos: quando se trata de aumentar a produtividade, nenhum
recurso deve ser negligenciado, e esse é o sentido do "desprezo zero". Contudo, quando
a intensifica¡;:io do trabalho torna este último penoso, desvaloriza a experiencia do
76
Ver Christophe Dejours, Soujfrance en France: la banalisation de l'injustice socia/e cargo, atrapalha o aprendizado, perturba os coletivos, e os termos autonomia e par-
(Paris, Seuil, 2006). tidpa¡;:io mudam de sentido. O desprezo zero combina-se, entio, com urna infinita
77 duplicidade", Michel Gollac e Serge Volkoff, "Citius, Altius, I(ortius: l'intensification
Ver "Rapport sur la détermination, la mesure et le suivi des risques psychosociaux au
du travail", Actes de la Recherche en Sciences Sociales, n. 114, set. 1996, p. 67.
travail", entregue em 12 de mar¡;:o de 2008 por Philippe Nasse, magistrado honodrio,
79
e Patrick Légeron, médico psiquiatra, a Xavier Bertrand, ministro do Trabalho, das Jean-Pierre Durand, La chaine invisible, cit., p. 309.
80
Rela¡;:óes Sociais e da Solidariedade. Ver Nicole Auben e Vincent de Gaulejac, Le coút de l'excellence .(Paris, Seuil, 1991).
364 ., A nova razáo do mundo A fábrica do sujeito neoliberal • 365

do novo poder gerencial, que exige esse comprometimento, é, sem dúvida, a Essa tendencia a considerar somente as competencias imediatamente
deslegitimayáo do conflito acarretado pelo próprio fato de que as exigencias utilizáveis explica sua rápida obsolescencia, como a exclusao dos "senior/ da
sáo "sem sujeito"' nao rem autor ou fonte identificável, sáo consideradas vida profissional. Ela t:_l?_ urna relayáo complexa coma representayáo da vida
integralmente objetivas. O conflito social é impedido porque o poder é como "capital hum~o." que se preserva através dos tempos. Na realidade,
ilegível. É isso, sem dúvida, que explica urna parte dos novos sintomas de esse capital humano está sujeito ao mesmo risco de desvalorizayao que o
"sofrimento psíquico". capital técnico, o que acaba afetando profundamente os indivíduos que,
com a idade, veem-se confrontados com o sentimento deprimente de sua
Corrosáo da personalidade inutilidade social e econ6mica. Os princípios práticos sáo claramente enun-
Na linha direta das observayóes de Marcel Mauss sobre o caráter histórico ciados na pesquisa que Sennett realiZo u com os assalariados: ''A gente tem
a
e cultural da pessoa, muitos sociólogos deram enfuse "liquidez", "flui- a de comeyar sempre rudo de novo", "a gente tem sempre de mostrar nosso
a
dez" ou "evanescencia" das personalidades contemporáneas. Para Richard valor", de "comeyar sempre do zero". O efeito é múltiplo: urna usura pro-
Sennett, a organizayáo flexível, apresentada as vezes como urna oportunidade fissional acelerada e um "caos" relacional e psíquico. A nova personalidade?
para o indivíduo moldar livremente sua vida, na realidade abala o "caráter" "Um eu maleável, urna colagem de fragmentos em perpétuo devir, sempre
aberro a experiencia nova", segundo Sennett84 •
e corrói rudo que existe de estável na persorialidade: os layos com os outros,
os valores e as referencias 81 • O tempo da vida é cada vez menos linear, cada
Desmoralizaráo
vez menos programável. Sob esse ponto de vista, o sinal mais tangível da
nova normatividade é que "em longo prazo náo exisre" 82 • O trabalho náo 'Viffios antes que ;1 neogestáo tende a controlar comportamentos e
oferece mais um quadro estável, urna carreira previsível, um conjunto de atitudes, solicitando um esforyo constante de autocoeryáo 85 • Essa "ascese"
relayóes pessoais sólido. Instabilidade dos "projetos" e das "missóes", variayáo a serviyo do desempenho da empresa, combinada com urna avaliayáo re-
contínua das "redes de contaros" e das "equipes" - o mundo profissional gular dos assalariados dentro da "cadeia gerencial", normatiza as condutas,
torna-se urna soma de "transayóes" pontuais, em vez de de relayóes sociais ao mesmo tempo que demole os engajamentos dos sujeitos uns com os
implicando um mínimo de lealdade e fidelidade. O que tem necessariamente outros. Relayóes, sentimentos e afetos positivos sáo mobilizados em nome
um impacto sobre a vida privada, a organizayao familiar, a representayáo de da eficácia. Eva Illouz ressalta como o espayo da empresa e do consumo é
si mesmo: "O capitalismo do curto prazo ameaya corroer[ ... ] o.caráter, em saturado de sentimentos instrumentalizados pelas estratégias econ6micas86.
particular os trayos de caráter que unem os seres humanos uns aos outros A importancia do tema das "emoyóes" em cursos e testes (capital emocional,
e dáo a cada indivíduo um sentimento durável de seu eu"~ 3 • Em especial, o inteligencia emocional, competencias emocionais) remete a essa obrigayáo
assalariado náo encontra mais apoio na experiencia que acumulo u durante de bem-estar e amor, que necessariamente introduz urna dúvida permanente
a sua vida profissional. sobre a sinceridade dos sentimen tos demonstrados.
A corrosáo dos layos sociais traduz-se pelo questionamento da gene-
rosidade, da fidelidade, da lealdade, da solidariedade, de rudo o que faz
81
Richard Sennett, Le travail sans qualités: les conséquences humaines de la jlexibilité parte da reciprocidade social e simbólica nos locais de trabalho. Como a
(trad. Pierre-Emmanuel Dauzat, Paris, Albin Michel, 2000). O título em ingles é
mais eloquente: The Corrosion ofCharacter: The Personal Consequences ofWork in the
New Capitalism (Nova York, Norton, 1999) [ed. bras.: A corrosáo do caráter: conse-
qufncias pessoais do trabalho no novo capitalismo, trad. Marcos Santarrita, 15. ed., Rio ~ 4 Ibidem, p. 189.
de Janeiro, Record, 2010]. ss Ver Gabrielle Balazs e Jean-Pierre Faguer, "Une nouvelle forme de management,
82
lbidem, p. 24. l'évaluation'', Actes de la Recherche en Sciences Sociales, n. 114, set. 1996.
83 86
Ibidem, p. 31. Eva Illouz, Les sentiments du capitalisme (Paris, Seuil, 2006).
366 ., A nova razáo do mundo A fábrica do sujeito neoliberal " 367

principal qualidade que se espera do indivíduo contempodneo é a "mobili- já faz parte da normatividade como elemento negativo desta última - o
a
dade"' a tendéncia ao desapego, e indiferen'ta que dele resulta, isso acaba sujeito que náo aguenta a cOncorréncia pela qual pode entrar em contato
contrariando os esfon.;:os para exaltar o "espírito de equipe" e fortalecer a com os outros é um ~er__.fr~cq,.dependente, que se suspeita lláo estar "a altura
"comunidade da empresa". Mas essa valorizayáo do teamwork dentro da do desafio". O discurso. da "realiza'táO de si mesmo" e do "sucesso· de vida''
nova organizayáo do trabalho náo tem nada a ver corn a constituiyáo de leva a urna estigmatiza'táo dos "fracassados", dos "perdidos" e dos infelizes,
urna solidariedade coletiva: equipes de geometria variável sáo estritamente isto é, dos incapazes de aquiescer a norma social de felicidade. o "fracasso
operacionais e funcionam em relayáo a seus mernbros como urna alavanea social" é visto, em última instancia, como uma patologia91 .
para levar a contento os objetivos determinados. Mais arnplamente, a Quando a empresa se torna urna forma de vida - urna Lebensführung,
ideologia do sucesso do indivíduo "que náo deve nada a ninguém", a ideo- como diria Max Weber-, a multiplicidade de escolhas que se devem fazer dia
logia do se/f-help, destrói o vínculo social, na medida em que este repousa a dia, o encorajamento a assumir riscos continuamente, a incita'táo perma-
sobre deveres de reciprocidade para com o outro. Como manter juntos a
nente capitaliza'táo pessoal podem causar com o tempo um "cansa'to do si
sujeitos que náo devem nada a ninguérn? Provavelrnente a desconfianya, mesmo". U m universo comercial cada vez mais complexo faz potencialmente
ou mesmo o ranear, em relayáo aos maus pobres, aos preguiyosos, aos de cada ato o resultado de urna coleta de inforina'tóes e de uma deliberayáo
velhos dependentes e aos imigrantes, tem um efeito de "cola'' social. Mas que tomam tempo eexigem esforyo: o sujeito neoliberal deve ser previdente
ela tambérn tem seu reverso, se todos se sentem ameayados de um dia se em todos os domínios (seguros de todos os tipos), deve fazer escolhas em
tornarem ineficazes e inúteis. ~udo como se se tratasse de um in~estimento ( "fundo de educayáo", "fundo
dé ·st;üde", "fundo _de apose~~adoria"), deve optar -de forma racional, dentro
Depressáo generalizada de urna ampla gailla de ofertas cotnerciais, ao contratar os serviyos rnais
O hornero de fluxos tensos, que vive no ritmo da economia financeira, simples (a hora e a data da viagem que fará de trem, a forma de ~ncamiriha­
está sujeito a crashes pessoais 87 • Para Alain Ehrenberg, o culto do desempe- a
rnento de sua correspondéncia, seu acesso internet, seu fornecirnento de
gás e eletricidade).
nho leva a maioria das pessoas a provar sua insuficiéncia e conduz a formas
depressivas em grande escala. É notório que o diagnóstico de "depressáo" O remédio mais propalado para essa "doenya da responsabilidade", essa
se multiplicou por sete de 1979 a 1996, urna verdadeira doens:a de ''jin- usura provocada pela escolha permanente, é urna dopagem generalizada. O
-de-siále", como foi a "neurastenia'' 88 • A depressáo é, na verdade, o outro medicamento faz as vezes da instituiyáo que náo apoia mais, náo reconhece
lado do desempenho, urna resposta do sujeito a injunyáo de se realizar e ser mais, náo protege rnais os indivíduos isolados. Vícios diversos e dependén-
responsável por si mesmo, de se superar cada vez mais na aventura empresa- cias as mídias visuais sáo alguns desses estados artificiais. O consumo de
rial89. "O indivíduo é confrontado mais com urna patologia da insu:ficiéncia mercadorias também faria parte dessa medicayáo social, corno suplemento
de instituis:óes debilitadas.
do que com urna doenya da falta, mais como universo da disfunyáo do que
como da lei: o depressivo é urn hornero em pane" 90 • O sintoma depressivo Essa sintomatologia depressiva é associada corn frequéncia a uma demanda
náo satísfeita de reconhecimento dirigida aos empregadores. No entamo,
longe de ser ignorada, essa dimensáo da dignidade, da autoestima e do reco-
87
Nicole Aubert, Le culte de l'urgence: la société malade du temps (Paris, Flammarion,
nhecimento é,_ como vimos, onipresente na retórica gerencial. Sem dúvida,
2004, Cole,áo Champs).
devemos ver essa demanda como traduyáo de urn fenómeno importante:
88 Ver Philippe Pignarre, Comment la dépression est devenue une épidémie (Paris, La
Découverte, 2001).
o da relayáo do sujeito corn instituiyóes que náo té m mais _cotidiyóes de dotá-lo
89
Ver Alain Ehrenberg, La fatigue d"étre soi: dépression et société (Patis, Odile Jacob,
das identidades e dos ideais que o fariam duvidar menos de seu próprio valor.
2000).
90 91
lbidem, p. 16. Ver as observa<;:óes de Eva Illouz, Les sentiments du capitalisme, cit
.-

368 " A nova razáo do mundo A fábrica do sujeito neoliberal " 369

Dessimbolizaráo Manifesto Comunista*. Náo para faze-las desaparecer, mas para substituí-las
por aquelas que lhe copertenc.em: as empresas e os mercados95 .
O enfraquecirnento de qualquer ideal encarnado pelas instituiyóes, essa
"dessimbolizayáo" de que falam os psicanalistas, gera, segundo alguns, urna Essa instrumental_i:zas:áo do simbólico pelas instituiyóes econOmicas
introduz no sujeito náo apenas essa "fluidez" dos ideais, mas também urna
"nova economia psíquica" que tem caGa vez menos a ver-como diagnóstico
clínico da época de Freud92 • fantasia de onipoténcia sobre as coisas e os seres. Pelas palavras-ferramenta

A relat;áo entre gerac;:óes, assim como a relac;:áo entre sexos, estruturadas


adisposiyáo dos indivíduos e de seus interesses, palavras que se confundem
comas próprias coisas, eles tem poder sobre tuda. O mundo das interdiyóes
e transformadas em narrativas por urna cultura que distribuía os diferentes
e das barreiras - que instituíam a separayáo dos lugares sexuais e geracio-
lugares, tornaram-se vagas, para dizer o mínimo. Nenhum princípio ético,
nais - foi substituído por um universo da quantidade - o da ciéncia e da
a
nenhuma proibic;:áo parece resistir exaltac;:áo de urna escolha infinita e
mercadoria. Discurso mercantil e discurso da ciencia complementam-se para
ili~itada. Pasto em estado de "antigravidade simbólica'', 0 neossujeito é
constituir o que o psicanalista Jean-Pierre Lebrun chama de o "mundo sem
obngado a fundamentar-se em si mesrno, em nome da livre escolha, para
limite" 96 . Desse modo, o sujeito é constantemente remetido a ele mesmo,
conduzir-se na vida. Essa intimac;:áo a escolha permanente, essa solicita<;áo
levado a oscilar entre as perpétuas tentayóes da cobiya encorajadas pelas
de desejos pretensamente ilimitados, faz_ do sujeito wn joguete flutuante:
instáncias sociais e as .interdiyóes que ele ergue para si, na auséncia de urna
nwn dia ele é convidado a trocar de carro; no outro, de parceiro; no o Uno,
instincia interditora confiável, amparada num ideal social. A formayáo do
de identidade; e no outro, de sexo, ao sabor de suas satisfas:óes e suas in-
satisfas:óes. Devemos concluir, com isso, que há urna "dessimbolizayáo do noyo sujeito náo toma mais os caminhos normativos da família edipiana.
O 'paimllitas vezes páo pas~~ de um estranho, desautorizado por náo eStar
mundo" 93 ? Provavelmente seria melhor dizer que a estrutura simbólica é alvo
de urna instrumentalizayáo por parte da lógica econOmica capitalista. Esse é 0
antenado aúltima tendencia do mercado ou náo garihar o suficiente.
Para os psicanalistas, o ponto nevrálgico é ainda o do caráter indisponíVel
sentido que podemos dar aoque que Lacan chamou de "discurso capitalista''.
de urna figura do Ourro- o plano simbólico- a fim de desligar o pequen o
fu .identificayóes com cargos, funyóes, competéncias próprias da empresa,
ser humano do desejo da máe e fazé-lo ascender ao status de um sujeito da
assnn como a identificas:áo com grupos de consumo, sinais e marcas da moda
lei e do desejo pela mediayáo do Nome-do-Pai. Ora, como enfraquecimento
e da publicidade, funcionam como submissóes substitutivas em relayáo aos
das instancias religiosas e políticas, náo existem mais no social outras refe-
lugares ocupados na família ou ao status na cidade. A manipulayáo dessas
identificayóes pelo aparato económico faz delas "ideais voláteis do eu, em rencias comuns, a náo ser o mercado e suas promessas. Em muitos aspectos,

constante remodelayáo"94 . Em outras palavras, a identidade tornou-se llill o discurso capitalista acarretada urna psicotizayáo de massa pela destruiyáo
das formas simbólicas. Essa era a tese de Gilles Deleuze e Félix Guattari,
produto conswnível. Se, como indicava Lacan, o discurso <Z:apitalista consome
tuda, e se consome tanto os recursos naturais como o material humano, tam- como lembramos anteriormente. O que é menos sabido, porém, é que essa

bém consome formas institucionais e simbólicas, como Marx já observava no era a tese também de Lacan. "O que distingue o discurso do capitalista é o
seguinte: a Verwerfung, a rejeiyáo, a rejeiyáo para fora de todos os campos
do simbólico com aquilo que eu disse que isso tem como consequéncia.
~obre ess_e pon~o, ver as reflexóes de Charles Melman, L'homme sans gravité: jouír
92

a tout przx (Par1s, Denoel, 2002), entrevista com Jean-Pierre Lebrun [ed. bras.: 0
hom~m sem gravidade: gozar a qualquer prefo, trad. Sandra Regina Felgueiras, Rio de * Trad. Álvaro Pina e IvanaJinkings, l. ed. revista, Sáo Paulo, Boitempo, 2010. (N. T.)
Janeiro, Companhia de Freud, 2003]. 95 Dany-Robert Dufour, L'art de réduire les tétes, cit., p. 137.
93
Dany-Robert Dufour, L'art de réduire les tétes: sur la nouvelle servitude de f'homme 96 Jean-Pierre Lebrun, Un monde sans limite: essai pour une cliniqu'e psychanalytique du
a
libéré !'ere du capitalisme total (Paris, Denoel, 2003), p. 13: "Hoje, a traca mercantil
social (Toulouse, Eres, 1997), p. 122 [ed. bras.: Um mundo sem límite: ensaio para
tende a dessimbolizar o mundo".
uma clínica psicanalítica do social, trad. Sandra Regina Felgueiras, Rio de Janeiro,
94
Ibidem, p. 127. Companhia de Freud, 2004].
370 " A nova razáo do mundo A fábrica do sujeito neoliberal ~ 371

Rejei!fáo de que? Da castra!fáo." 97 Esse mundo da oniporencia, em que o sem limite e viciante" 101 • A debilita!fáo do ideal afundaria o desejo na mera
sujeito sem limite é pego violentamente, já é caracterizado pela psicose de inveja dos bens dos outros, ria pleonexia que Hobbes já designava como a
massa, com seus extremos esquizofrenicos e paranoicos? Ou ainda é preser- marca da sociedade de~~-~ época. No entanto, quanto mais o ser humano
vado por modos de defesa pertencentes_ a outro registro, por exemplo, por envereda por esse vício .em objetos mercantis, mais tende a tornar-se ele
urna perversáo sisremica98 ? próprio um objeto que vale apenas pelo que produz no campo económico,
um objeto que será posto de lado quando tiver perdido a "performance",
"Perversáo comum" 99 quando náo tiver mais uso.
Na verdade, a subjetiva!fáo neoliberal ins-dtui cada vez mais explicita-
Para alguns psicanalistas, favorecidos por urna dlst1ncia de cerca de trinta
mente urna rela!fáO de gozo obrigatório com todo outro. indivíduo, urna
anos em relac_;:áo a Lacan, nós entramos num universo em que a decepc_;:áo
relac_;:áo que poderíamos chamar também de relac_;:áo de objetalizaráo. Nesse
a
típica do neurótico, exposto inadequac_;:áo da coisa ao desejo, é substituída
caso, náo se trata simplesmente de transformar o outro em coisa- segundo
por urna relaráo perversa com o objeto baseada na ilusáo imaginária do gozo
um mecanismo de "reificac_;:áo" o u "coisificac_;:áo", para retomarmos um tema
total. Tuda se equivale, tem prec_;:o e se negocia. Mas, se rudo parece possível,
recorren te da Escala de- Frankfurt -, mas de náo poder mais conceder ao
rudo é duvidoso, rudo é suspeito, porque nada é lei para ninguém. O fato de
outro, nem a si mesmo enquanto outro, nada além de seu valor de gozo,
a a
que rudo é transformado em negócio 100 o u propensáo apologia constante
isto é, sua capacidade de "render" um plus. Assim definida, a objetalizac_;:áo
da transgressáo como nova norma seriam alguns dos indícios dessa equiva-
apresenta-se sob um triplo registro: os sujeitos, por intermédio das técnicas
lencia geral. Charles Melman mostrou que o questionamento de todas as
ge':fen~iais, provam _:seu ser .~t::J.quanto "recurso humano" consumido pelas
representac_;:óes que irnpediam o trabalho da perversáo manipuladora direta
tem interesses comuns com urna expansáo económica que, "para se alimental~
a
empresq_s para a pr6duc_;:~o de lucro; ·sub metidos horma do desempenho,
tomam uns aos outros, na diversidade de suas relayóes, por objetos que
precisa ver rompidos a timidez, o pudor, as barreiras morais, as proibic_;:óes.
devem ser possuídos, moldados e transformados para melhor alcanc_;:ar sua
E isso a fim de criar populac_;:óes de consumidores ávidos de gozo perfeito,
própria satisfac_;:áo; alvo das técnicas de marketing, os sujeitos buscam no
consumo das mercadorias um gozo último que se afasta enquanto eles se
esfalfam para alcans;á-lo.
97
Em Lacan, a castrac;:io é entendida como urna separac;:io do gozo da mie, em razáo Essa lógica implacável tem um "custo" subjetivo muito alto. Se o derrota-
da entrada na ordem simbólica. Citado em Dany-Robert Dufour, L'art de réduire
do sofre por suas insuficiencias, o vencedor tende a fazer os outros sofrerem
les tétes, cit., p. 122-3 (Seminário "Ou pire", 3 de fevereiro de 1972; seminário em
Saint-Anne, "Le savoir du psychanalyse", 6 de janeiro de 1972). como objetos sobre os quais ele assegura seu domínio. Isso náo é novidade.
98
Certas apologias gerendais da produc;:áo de condutas paranoicas nio deixam de Contudo, urna vez instaurado um "mundo sem limite", a pequena perversáo
ter algum interesse. Andrew Grave, presidente da Intel Corporation, preconiza cotidiana- ou, mais exatamente, o que existe de incentivo perversáo na a
um método de direc;:io que liga diretamente a norma da competic;ao a urna gestáo situac_;:áo de concorrencia geral- encontra um campo inédito de expansáo.
"psicotizante" do pessoal: "O medo da concorrénda, o medo da faléncia, o medo de
A perversáo que se distingue clinicamente pelo consumo de parceiros como
errar, o medo de perder podem ser motivac;:óes poderosas. Como cultivar o medo de
perder nos nossos fonciondrios?Nós náo podemos cultivá-lo nos outros se nós mesmos objetos que sáo jogados fora assim que sáo considerados insuficientes teria
náo o sentimos", Andrew Grave, Only the Paranoid Survive (Nova York, Doubleday, se tornado a nova norma das relac_;:óes sociais 102 • Dessa forma, o imperativo
1996), p. 117 [ed. bras.: Só os paranoicos sobrevivem, trad. Carlos Cordeiro de Mello, categórico do desempenho concilia-se comas fantasias de o ni potencia, com
Sio Paulo, Futura, 1997].
99
a ilusáo socialmente difundida de um gozo total e sem limite. Segundo
Emprestamos o termo de Jean-Pierre Lebrun, La perversion ordinaire, cit.
100
Sobre os "negócios" como modalidade da relac;:io perversa como objeto, ver Rolahd
Chémama, "Éléments lacaniens pour une psychanalyse au quotidien", Le Discours
101
Charles Melman, L'homme sans gravité, cit., p. 69-70.
Psychanalytique, Paris, Assodation Freudienne lnternationale, 1994, p. 299-308. 102
lbidem, p. 67.
372 o A nova raz.io do mundo A fábrica do sujeito neoliberal " 373

Melman, passaríamos, assim, de urna economia psíquica organizada pelo arquiteturais atestam essa produyáo. No primeiro capitalismo, o capital
recalque para wna "economia organizada pela exibiyáo do gozo" 103 • acumulado era ainda um produto desse tipo, fruto das restriyóes impostas
ao consumo tanto das _classes populares como da burguesia. Para a economia
política clássica, a perda era interpretada como um custo tendo em vista
O gozo de si doneossujeito um beneficio.
A psicanálise pode nos ajudar a refletir sobre a maneira como funcionam Hojeé diferente. Se a perda é-dertégada, a ilimitayáo do gozo pode ser
os neossujeitos de acordo com o regime do gozo de si. Seglllldo Lacan, esse mobilizada no-plano imaginário a serviyo da empresa, pega ela mesma em
a
gozo de si, entendido como aspirayáo plenitude impossível- nesse sentido, lógicas imaginárias de expansáo infinita, de valorizayáo sem limites na bol-
muito diferente do simples prazer -, apresenta-se na ordem social como sa. Para isso, é claro, é necessário passar por urna racionalizayáo técnica da
sempre limitado e parcial. A instituiyáo é, de cerro modo, aquilo que tern subjetividade, mas será sempre para que ela "se realize". O trabalho náo é
a responsabilidade de limitar o gozo e dar sentido a esse limite. A empresa, castigo, é gozo de si por intermédio do desempenho que se deve ter. Náo há
forma geral da instituiyáo humana nas sociedades capitalistas ocidentais, perda, porque é imediatamente "para si" que o individuo trabalha. Portinto,
náo foge a essa regra, salvo por fazer isso hoje de maneira denegada. Ela o objeto da denegayáo é o caráter heteronómico da ultrassubjetivayáo, isto
limita o gozo de si pela coeryáo do rrabalho, da disciplina, da hierarqu_ia, é, o faro-de que a ilimitayáo do gozo no além de si seja alinhada ailimitayáo
por rodas as renúncias que fazem parte de certa ascese laboriosa. A perda da acumulayáo mercintil.
de gozo náo é menos pronunciada do que nas sociedades religiosas, mas é .. O que distingue a nova lógica normativa é que ela náo exige urna re-
diferente. Os sacrifícios náo sáo mais administrados e justificados por uma núricta toral do in4ivíduo ~W proveito de urna forya coleriva invencível e
a
lei dada como inerente condiyáo humana, sob suas diferentes variedades de um futrno radiÜso, mas deseja obter urna sujeíyáo náo menos rotal de
locais e históricas, mas pela reivindicayáo de urna decisáo individual "que sua participa<;áo nwn jogo "ganha-ganha", segundo a fórmula eloquente
náo deve nada a ninguém". que supostamenre explica a vida profissional e social. Enguanto no velho
Todo um discurso social devalorizayáo exagerada do indivíduo aurocons- capitalismo todo mundo perdia algwna coisa (o capitalista perdia o gozo
truído104, funcionando como urna denegayáo, torna possível tal pretensáo garantido de seus bens pelo risco assumido, e o proletário, a livre disposiyáo
subjetiva: a perda náo é realmente urna perda, urna vez que é decidida pelo de seu tempo e forya), no novo capitalismo ninguém perde, todos ganham. O
próprio sujeito. Mas esse mito social, cujos efeitos sobre a educayáo familiar sujeito neoliberal náo pode perder, porque é a um só tempo o trabalhador que
e escolar náo podern mais ser negligenciados, é apenas um dos aspectos do acumula capital e o acionista que desfruta dele. Ser seu próprio trabalhador e
funcionamento do neossujeito. Ele tem de concordar em entregar-se ao tra- seu próprio acionista, ter um desempenho sem limites e gozar sem obstáculos
balho, em curvar-se as exigéncias mundanas da vida. Se éexigido dele que os frutos de sua acumulayáo, esse é o imaginário da condiyáo neossubjetiva.
o faya, é enquanto empresa de si mesmo, de modo que o eu pode apoiar-se A espécie de desacoplamento verificado pelo diagnóstico clínico dos
num gozo imaginário pleno nurn mundo completo. Cada wn de nós é mestre neossujeitos- o estado de suspensáo fora dos quadros simbólicos, a relayáo
ou, ao menos, acredita que pode sé-lo. Desse modo, gozo de si na arde~ do flutuante como tempo, as relayóes cornos outros reduzidas a transayóes pon-
imaginário e denegayáo do limite aparecem como lei da ultrassubjetiva0ÍO. tuais- náo é disfuncional com relayáo aos imperativos do desempenho o u as
Nas sociedades antigas, o sacrifício de urna parte de gozo era produtivo. novas tecnologias de rede. O essencial aqui é compreender que a ilimitafáo
fu grandes construyóes religiosas e políticas, seus edifícios dogmáticos e do gozo de si é, na ordem do imaginário, o exato oposto da dessimboliza[áO. O
sentimento de si é dado no excesso, na rapidez, na sensayáo bruta propor-
a
cionada pela agitayáo, o que certamente expóe o neossujeito depressáo
103
Ibidem, p. 18-9. a
e dependéncia, mas também possibilita aquele estado "conexionista'' do
104
Olivier Rey, Une folle solitude: le fantasme de l'homme autoconstruit(Paris, Seuil, 2006). qual ele tira, na falta de um vínculo legítimo corn urna instáncia outra, um
374 "' A nova razáo do mundo
A fábrica do sujeito neoliberal "' 375

apoio frágil e urna eficácia esperada. O diagnóstico clínico da subjetividade esquecer o caráter de conjunto do governo dos neossujeitüs que articula,
neo liberal nunca deve perder de vista que o "patológico" é parte da mesma pela diversidade de seus vetÓres, a exposiyáo obscena do gozo, a injunyáo
normatividade que o "normal". empresarial do dese~penho_ e da reticulayáo da vigiláncia generalizada.
Do ponto de vista das antigas estrutmas, certamente pode parecer que
nada mais "segura" o sujeito. Esse erro de perspectiva já era cometido pelos
O governo do sujeito neoliberal
conservadores do século XIX._ Eles víirn os "direitos do hornero" apenas
Seguindo o quadro clínico do neossujeito, vemos que a empresa de si como advento -da anarquia social. A mutayáo das sociedades ocidentais era
mesmo tero dais rostos: o rosto triunfante do sucesso sem pudor e o rosto interpretada como urna crise das autoridades tradicionais, que só poderla
deprimido do fracasso diante dos processos incontroláveis e das técnicas ser superada pela restaurayáo dos valores do Antigo Regime. Significava
de normaliz~áo 105 • Oscilando entre depre..<;sáo e perversáo, o neossujeito desconhecer as novas formas de coeryáo que cerceavam os suJeitos das so-
é condenado a ser duplo: rnestre em desempenhos admiráveis e objeto de ciedades industriais, ligadas ao trabalho e a sua divisáo técnica e social. Em
gozo descartável. urna palavra, significava desconhecer o novo regime moral e político das
Aluz dessa análise, a apresentayáo causativa que se faz repetidamente sociedades capitalistas da época.
de um "individualismo hedonista'' o u de LUh "narcisismo de massa'' aparece Um-desconhecimento análogo está ero curso hoje, impedindo a com-
corno modo disfaryado de apelar para a restaurayáo das formas tradicionais preensáo da relayáo entre as condutas dos neossujeitos (inclusive as mani-
da autoridade. Ora, é um equívoco considerar o neossujeito maneira dos a f~s.~ayóes de comportamento desviante e mal-estar, os modos de resistencia
conservadores. Ele náo é em absoluto o hornero do gozo anárquico "que náo e fug;;t) e todas as ~orm~s d,~ .controle e vigilancia que sáo exercidas sobre
respeita mais nada''. É um equívoco equivalente e simétrico denunciar apenas eles. Assim, é inútil lamentar a crisé das instituiyóes de enquadramento,
a reificayáo mercantil, a alienayáo d-o consumo de massa. Obviamente, a como familia, escala, organizayóes sindicais o u políticas, o u cho~ar a deca-
injunyáo publicitária ao gozo faz parte desse universo de objetos eletivos que, dencia da cultura e do saber ou o declínio da vida democrática. É melhor
pela estetizayáo-erotizayáo da "coisa'' e pela magia da marca, constituem-se tentar compreender como todas essas instituiyóes, valores e atividades sáo
em "objetos de desejo" e promessas de gozo. Mas também convém considerar hoje incorporados e transformados no dispositivo de desempenho/gozo,
a maneira como esse neossujeito, longe de ser deixado unicamente a seus em no me de sua necessária "modernizayáo"; é melhor examinar de perta
caprichos, é governado no dispositivo de desempenho/gozo. todas as tecnologías de controle e vigiláncia de indivíduos e populayóes,
Portanto, ver na situayáo presente das sociedades apenas o gozo sem obs- sua medicalizayáo, o fichar, o registro de seus comportamentos, inclusive
táculos, que é identificado ora coro a "interiorizayáo dos val? res de mercado", os mais precoces; é melhor analisar como disciplinas médicas e psico-
ora coro a "expansáo ilimitada da democracia'', é esquecer a face sombría lógicas se articulam coro o discurso económico e com o discurso sobre
da normatividade neoliberal: a vigilincia cada vez mais densa do espayo seguranya pública para reforyar os instrumentos da gestáo social. Porque,
público e privado, a rastreabilidade cada vez mais precisa dos movim~ntos do dispositivo de governo dos neossujeitos, nada ainda foi definitivamente
dos individuos na internet, a avaliayáo cada vez mais minuciosa e mesquinha estabelecido. Os impulsos sáo diversos, náo faltam citncias candidatas e
da atividade dos indivíduos, a ayáo cada vez mais pregnante dos sistemas suas fusóes estáo em curso ou se faráo no futuro 106 . A questáo central que se
conjuntos de informayáo e publicidade e, talvez sobretudo, as formas cada coloca ao governo dos indivíduos é saber como programar os individuos o
vez mais insidiosas de autocontrole dos próprios sujeitos. Ero reswno, é a
quanto antes para que essa injunyáo superayáo ilimitada de si mesmo náo

105
Em L'individu incertain (Paris, Hachette, 1996, Cob;:áo Pluriel, p. 18), Ehrenberg 106
Depois do desenvolvimento da "sociobiologia", o surgimento de urna "neuroecono-
observa com razáo que o indivíduo conquistador e o indivíduo sofredor sáo as "duas mia" náo deve ser ignorado. Náo há dúvida de que a fusáo da biologia do cérebro com
faces do governo de si". a microeconomia oferece perspectivas interessantes de controle do .comportamento.
376 .. A nova razáo do mundo

descambe em comportamentos excessivamente violentos e explicitamente


delituosos; é saber como manter urna "ordem pública" quando é preciso
incitar os indivíduos ao gozo, evitando ao mesmo tempo a explosáo da CONCLUSÁO
desmedida. A "gestáo social do desempenho" corre~_pond~ precisamente a O ESGOTAMENTO DA DEMOCHACl~ LIBERAL
esse imperativo governamental.

Quais tra<;os caracterizam a razáo neoliberal? Ao fim deste estudo, po-


demos destacar quatro.
Em primeiro lugar, ao conrrário do que pensavam os economistas clás-
sicos, o mercado apresenta-se náo como um dado natural, mas como urna
reálí~~de .construída,. que, como tal, requer a intervenyáo ativa do Estado,
assim ·como a instau:"ra<;áo de"tim sistema de direiro específico. Nesse sen-
tido, o discurso neoliberal náo é diretamente articulado a urna óntologia
da ordem mercantil, pois, longe de buscar em algum "curso natural das
coisas" o fundamento de sua própria legitimidade, ele assume deliberada e
explicitamente seu caráter de "projeto construtivista'' 1 •
Em segundo lugar, a essencia da ordem de mercado reside náo na traca,
mas na concorrencia, definida como rela~o de desigualdade entre dife-
rentes unidades de produyáo o u "empresas". Por conseguinte, construir o
mercado implica fazer valer a concorrencia como norma geral das práticas
econ0micas2 • Nesse sentido, é fon:;:oso reconhecer que a principalliyáo dos
ordoliberais prevaleceu: a missáo dada ao Estado, que vai muito além do

Wendy Brown, Les habits neufi de la politíque mondiale. Néolibéralisme et néoconser-


vatisme (Paris, Les Prairies ordinaires, 2007), p. 51 e 97.
2
Essa norma náo exdui, mas, ao contrário, implica estratégias·de "alianc;:as" praticadas
pelas empresas para reforc;:ar suas "vantagens concorrenciais". Daí a vaga do termo
"cooperac;:áo" no vocabulário gerencial, evidenciando o recurso a Urna cornbinac;:áo
flcxível de "cooperac;:áo" e "concorn~ncia''. Contudo, assim como 'a "cooperac;:áo vo-
luntária", exaltada por Spencer sob a forma de contrato, as relac;:ó6s informais pelas
quais se opera a "traca de saber" entre empresas concorrentes náo se referem a urna
cooperac;:áo genuína, no sentido de illll compartilhamento náo transa_cíonal.
378 ., A nova razáo do mundo
Conclusáo- O esgotamento da democracia liberal .. 379

tradicional papel de "vigia noturno", é instaurar a "ordem-quadro" a partir


Urna racionalidade ademocrática
do princípio "constituinte" da concorréncia, "supervisionar o quadro geral" 3
e zelar para que este seja respeitado por todos os agentes económicos. Da con~tru~áo do mercado aconcorréncia corno norma dessa construyáo,
Em terceiro lugar, o que é ainda mais novo, tanto relativamente ao pri- da concorrenCia como- norma da atividade dos agerites económicos a con-
meiro liberalismo quanto ao liberalismo "reformadoi' dos anos 1890-1920, corrénciAa c~mo norma da construyáo do Estado e de sua ayáo e, por firn, da
o Estado náo é simplesmente o guardiáo vigilante desse quadro; ele próprio, con correncia como norma do Estado-_~mpresa aconcorréncia como norma
em sua ayáo, é submetido a norma da concorréncia. Segundo esse ideal de da co~duta do. sujei:o-ernpresa, essas sáo as etapas pelas quais se realiza a
urna "sociedade de direito privado"\ náo existe nenhuma razáo para que o extensao da raclQnalldade mercantil a todas as esferas da existéncia humana
Estado seja exceyáo as regras de direito que ele próprio é encarregado de fazer e que fuzem da razáo neoliberal urna verdadeira razáo-rnuncÍo.
aplicar. Muito pelo conrrário, toda forma de autoisenyio ou autodispensa Mas que o leitor náo se engane: náo se trata aqui d~ voltar ao tema
de sua parte apenas o desqualificaria em seu papel de guardiáo inflexível ~abe~mas~ai~o da "~,olonizayáo do mundo vivido", simplesmente porque
dessas mesrnas regras. Resulta dessa primazia absoluta do direito privado urn ~~mats ex1st1~ um mundo da vida" (Lebenswelt) que náo fosse sempre
esvaziamento progressivo de todas as categorias do direito público que vai no Ja pego em discursos ou invadido por dispositivos de poder. Trata-se de
sentido náo de urna ab-rogayáo formal destas últimas, mas de urna desativayáo mostrar ~ que ponto essa extensáo, fazendo desaparecer a separayáo entre
de sua validade operatória. O Estado é abrigado a ver a si mesrno como urna esfera p.nv~da e esfera pública, corrói até os fundamentos da própria de-
empresa, tanto em seu funcionamento interno como em sua relayáo com os mocra~t.a liberal. De· fato, esta última pressupunha certa irredutibilidade
outros Estados. Assirn, o Estado, ao qual compete construir o mercado, tem da·p~htl_ca e da moral ao econ6mico, algo de qu.e se encontra eco direto
ao mesmo tempo de construir-se de acorde comas normas do mercado. na obra. de Adam Smith e Adam Ferguson. Além do mais, pressupunha
Em quarto lugar, a exigéncia de urna universalizayáo da norma da con- certa pnmaz1a da le1 como ato do Legislativo e, nessa medida, ·certa for-
corréncia ultrapassa largamente as :&onteiras do Estado, atingindo direta- ~a de subordinayáo do poder Executivo ao poder Legislativo6. Também
1
mente até mesmo os indivíduos em sua relayáo consigo rnesmos. De fato, ~plicava, se náo urna preeminéncia do direito público sobre 0 direito
a "governamentalidade empresarial" que deve prevalecer no plano da ayáo pnvado, ao. menos urna consciéncia aguda da necessária delimitayáo de
do Estado tem um modo de prolongar-se no governo de si do "indivíduo- suas res~ecnvas esferas. Correlativamente, vivia de certa relayáo do cidadáo
-empresa" ou, mais exatamente, o Estado empreendedor deve, como os com o b~m ~omum", o u "bem público". Por isso mesmo, pressupunha
atores privados da "governanya", conduzir indiretamente os indivíduos a urna val~nzayao da panicipayáo direta do cidadáo nas questóes públicas,
conduzir-se corno empreendedores. Portanto, o modo de governarnentali- em particular nos momentos em que está em jogo a própria existéncia da
dade própria do neoliberalismo cobre o "conjunto das técnicas de governo comunidade política.
que ultrapassam a estrita ayáo de Estado e orquestram a forma como os A racionalidade neoliberal, ao mesmo tempo que se adapta perfeita-
sujeitos se conduzem por si rnesmos" 5• A empresa é promovida a modelo de mente ao que restou dessas distinyóes no plano da ideologia opera u
d · , ma
subjetivayáo: cada indivíduo é urna empresa que deve se gerir e urn éapital esanvayáo sem precedentes do caráter normativo destas últimas. Dilui ~
d d' · 'bl' b c;ao
que deve se fazer frutificar. ~ ~retto pu .~~o.em enefício do direito privado, conformayáo da ayáo
pubhca
. , . aos cntenos
. da rentabilidade e da produtividade, deprec1ayao
· -
Sl~bohca da let como ato próprio do Legislativo, fottalecimento do Exe-
~unvo, valorizayáo dos procedimentos, tendencia dos poderes de polícia a
3
Sobre o sentido dessas expressóes, ver, para a primeira, o capítulo 3 e, para a segunda,
o capítulo 6 deste volume.
4
!sentar-se de todo controlej'udicial , promora-o
, do "cr'd a·d-ao-consum1'dor"
Sobre essa expressáo de Franz BOhm, ver capítulo 3; sobre sua retomada e aprofun-
damento por Friedrich Hayek, ver capítulo 5 deste volume.
s Wendy Brown, Les habits neuft de la politique mondiale, cit., p. 56. 6
Como pode ser verificado em locke (ver capítulo 5 deste volume).
380 " A nova razáo do mundo Condusáo- O esgotamento da democracia liberal 381

ellcarregado de arbitrar entre "ofertas políticas" concorrentes, todas sáo entre um subsidio e um comportam'ento esperado o u uro custo direto para
tendencias comprovadas que mostram o esgotamento da democracia ·o usuário. A figura do "cidadáó" investido de urna responsabilidade coletiva
liberal como norma política. desaparece pouco a pouco_ ~ dá lugar ao hornero empreendf:dor. Este náo é
Uro dos prindpais sintomas dessa desativayáo é a importánda que o apenas o "consumido!-soberano" da retórica neoliberal, mas o sujeito ao qual
tema da "boa governanya'' ganhou no discurso de gestáo. Toda a reRexáo a sociedade náo deve nada, aquele que "tem de se esforyar para conseguir
sobre a administrayáo pública adquire um caráter técnico, ero detrimento o que quer" e deve "trabalhar mais para ganhar mais", para retomarmos
das considerayóes políticas e sodais que permitiriam evidenciar tanto o alguns dos diches do novo modo de governo. A referencia da ayáo pública
contexto da ayáo pública como a pluralidade das opyóes possíveis7 • A con- náo é mais o sujeito de direitos, mas um ator autoempreendedor que faz os
cepyáo dos bens públicos, assim cofia os princípios de sua distribuiyáo, é mais variados contratos privados com outros atores autoempreendedores.
profundamente afetada. A igualdade de tratamento e a universalidade dos Dessa forma, os modos de transayáo negociados caso a caso para "resolver
benefícios sáo questionadas tanto pela individualizayáo do auxílio e pela os problemas" tendero a substituir as regras de direito público e os proces-
seleyáo dos beneficiados, na qualidade de amostras de uro "público-alvo", sos de decisáo política legitimados pelo sufrágio universal. Longe de ser
quanro pela concepyáo consumista do serviyo público. fu categorias da "neutra", a reforma gerencial da ayáo pública atenta diretamente contra a
gestáo tendero, nesse sentido, a ocupar o lugar dos princípios simbólicos lógica democrática da cidadanía social; reforyando as desigualdades sodais na
comuns que até entáo se encontravam no fundamento da cidadania8 • A distribuiyáo dos auxilios e no acesso aos recursos ero matéria de emprego,
única questáo autorizada no debate público é a da capacidade de levar a Sa~de e educayáo 9, ela reforya as lógicas sodais de exclusáo que fabricam
cabo "reformas" cujo sentido náo é explicitado, sem que se saiba muito bem um ·número crescente de "subcidadáos" e "náo cidadáos".
quais resultados se tenta obter por essa ayáo sobre a sodedade. SerÍa um erro, porém, ver.~ radonalidade neolibe·rai sornen te como urna
Além do modo de gestáo e suas ferramentas técnicas, a relayáo entre contestayáo da "terceira fase" da democratizayáo, a que presenciou' a instait-
governantes e governados é radicalmente subvertida. De fato, é toda a rayáo de urna "cidadania social" no século XX, completando a "cidadania
cidadania, tal como se construiu nos países ocidentais desde o século civil" do século XVIII e a "cidadania política'' do século XIX10 • O welforismo
XVIII, que é questionada até em suas raízes. É o que se ve ero especial náo foi apenas urna simples gestáo biopolítica das populayóes, tampouco
pelo questionamento prático de direitos até entáo ligados cidadania, a a teve como consequencia apenas o consumo de rnassa na regulayáo fordista
comeyrr pelo direito a pro te <;<lo social, que foi historicamente estabelecido do pós-guerra; como bem sublinhou Robert Castel, a razáo do welfarísmo era
como consequencia lógica da democracia política. "Nada de direitos se náo a integrayáo dos assalariados no espayo político mediante o estabelecimento
houver contrapartidas" é o refráo para obrigar os desempregados a aceitar das condiyóes concretas da cidadania 11 • Portanto, a corrosáo progressiva dos
um emprego inferior, para fazer os doenres ou os estudantes pagarem
por uro serviyo cujo benefício é visto estritamente como individual, para
a
condicionar os auxilios concedidos família as formas desejáveis de educa<;ao
9
Ver Sharon Gewirtz, The Managerial School: Post-Welfarism and Social justice in
parental. O acesso a cerros bens e serviyos náo é mais considerado ligádo a Education (Londres, Roudedge, 2002). Todas as pesquisas sobre os efeitos da "escala
gerencial" realizadas nos países mais adiantados nessa via mostram 6 crescimento das
um status que abre portas para direitos, mas o resultado de urna transayáo
desigualdades escolares e a marginalizas;áo da fras:áo mais pobre da popula<;:áo em
estabelecimentos de tipo gueto.
10
Esse esquema histórico foi apresentado pelo sociólogo Thomas Humphrey Marshall
7 Ver Patrickle Gales, "Gouvernance", ero Laurie Boussaguet, Sophie Jacquot e Pauline em 1949, durante urna conferéncia intitulada "Citizenship and Soda! Class", citada
Ravinet (orgs.), Dictionnaire des politiques publiques (París, Presses de Sciences Po, por Albert O. Hirschmann, Deux siCcles de rhétorique réactionna-ire (Paris, Fayard,
2004), p. 244. 1995), p. 14 e seg.
H Marc Hufty (org.), La pensée comptable. État, néolibéralisme, nouvelle gestion publique 11
Robert Castel, Les métamorphoses de la question socia/e (Paris, Fayard, 1995; reed.,
(París, Presses Universitaires de France, 1998), p. 19. París, Gallimard, 1999, Cole<;:áo Folio) [ed. bras.: As metamoifoses J.a questáo social:
382 "' A nova razáo do mundo Conclus:io- O esgotamento da democracia liberal ~ 383

· direitos sociais do cidadáo náo afeta apenas a chamada cidadania "social", urna propensáo acentuada da nova lógica normativa a apagar as diferenyas
ela abre caminho para urna contestayáo geral dos fundamentos da cidadania entre regimes politicos, a pónto de relegá-los a urna relativa indifirenciaráo,
como tal, na medida em que a história tornou esses fundamentos solidários a qual in fine ameay_~ a_t~__I?-esmo a pertinencia da noyáo d~ "regime político"
uns com os outros. Com isso, ela leva a urna nova fase da história das so- herdada da tradiyáo clássica.
ciedades ocidentais 12 • Contudo, devemos notar que essa indiferenya, longe de ser um simples
Sob esse aspecto, é espantoso constatar a que ponto a contestayáo dos "acidente de percurso", está inscrita-desde o princípio no pro jeto intelectual
a
direitos sociais está intimamente ligada contestayáo prática dos funda- e político do neoliberalismo. A oposiyáo "democracia versus totalitarismo",
mentos culturais e morais, e náo só políticos, das democracias liberais. O contemporánea da Guerra Fria, cuja melhor formulayáo foi dada por
cinismo, a mentira, o menosprezo, a aversáo a arte e cultura, o desleixo a 15
Raymond Aron , ocultou outra oposiyáo igualmente importante entre
da linguagem e dos modos, a ignoáncia, a arrogancia do dinheiro e a bru- duas formas de democracia. De fato, para Friedrich Hayek, a única oposi-
talidade da dominayáo valern corno títulos para governar ern no me apenas yáo pertinente é entre liberalismo e totalitarismo, náo entre democracia e
da "eficácia''. Quando o desernpenho é o único critério de urna política, totalitarismo. Fundamentar essa nova oposiyáo exigida, em primeiro·lugar,
a a
que importancia tern o respeito consciencia e liberdade de pensamento reduzir a democracia a um procedimento de seleyáo dOs dirigentes que deve
e expressáo? Que importancia terno respeito as formas legais e aos procedi- ser julgado, antes de tudo, por seu resultado prático, e náo pelos valores que
rnentos democráticos? A nova racionalidade pro m ove seus próprios critérios pretensamente o fundamentam 16 • Enquanto a democracia diz respeito apenas
de validayáo, que náo tem mais nada a ver cornos princípios morais e jurídi- a maneira de escolher os dirigentes (por eleiyáo), o liberalismo define-se
cos da democracia liberal. Sen do urna racionalidade estritamente gerencial, esSe-9-,cialmente pel~ exige~~ia de urna limitayáo do poder (ainda que seja
ve as leis e as normas sirnplesmente como instrumentos cujo valor relativo o da niaioria). Coilsequentemente, ·mesmo que os dirigentes seJam eleitos
depende exclusivamente da realizayáo dos objetivos. Nesse sentido, náo es- pela maioria, basta que o poder exercido por essa maioria seja ilimitado
tamos lidando com um simples "desencantarnento democrático" passageiro, para que haja urna "democracia totalitária". Inversamente, o liberalismo
mas com urna mutayáo muito mais radical, cuja extensáo é revelada, a sua pode ser democrático ou autoritário, conforme o modo de designayáo dos
maneira, pela dessimbolizayáo que afeta a política. dirigentes. No entanto, seja democrático, seja autoritário, o liberalismo é
É nesse sentido que Wendy Brown tem sólidas razóes para utilizar o a
sempre preferível "tirania da maioria'' 17.
neologismo "desdemocratiza~o": a inutilizayáo prática das categorias funda- O que está em questáo aqui é a ideia de que a democracia se identifica
doras da democracia liberal, tal como se manifesta ern especial na suspensáo com a soberania do pavo. Para Hayek, há aí urna confusáo tipicarnente
da lei e na transformayáo do estado de exceyáo em estado permanente, táo "construtivista" entre a origem da escolha dos representantes e o campo
bern analisadas por Giorgio Agamben 13 , náo equivale 'a nern prenuncia a legítimo de exercício do poder - a doutrina da soberania do pavo, na
instaurayáo de um novo regime político 14 • Ao contrário, é a traduyáo de realidade, só pode resultar no reconhecimento do direito do governo de

uma cr8nica do saldrio, trad. lraci D. Poleti, 23; ed., Petrópolis, Vozes, 20Ó]. Dispute, 2004), p. 197 e seg. Wendy Brown é mais prudente e·fala de urna "nova
12 Fase que Crouch propós denominar "pós-democracia". Ver Colin Crouch, Post- configuras:áo política'' ou de urna "forma política e social para a qual ainda náo ternos
-Democracy (Cambridge, Polity Press, 2004). um nome", Wendy Brown, Les habits neufi de la politique mondiale, cit., p. 69-70.
15
13 Giorgio Agamben, Étatd'exception: homo sacer (Paris, Seuil, 2003) [ed. bras.: Estado de Raymon Aron; Démocratie et totalitarisme (Paris, Gallimard, 1987, Colec;::io Folio).
excefáO, homosacer, JL 1, trad. Iraci D. Poleti, 2. ed. rev., Sáo Paulo, Boitempo, 2011]. Le~~ramos que, segundo essa oposic;:áo, a democracia repousa sobre o pluralismo
14 Ao contrário do que pensaJean-Claude Paye, que defende que asuspensáo do direito pohttco, ao passo que o totalitarismo remete ao monopólio do partido único.
16
significa a constituit;::io de urna "ditadura soberana'' no sentido de Carl Schmitt, isto Friedrich Hayek, La constitution de la liberté (Paris, Litec, 1994), p. 104.
17
é, urna ditadura fundadora de urna nova ordem de direito; ver Jean-Claude Paye, La Isso esclarece mais urna vez a atitude de Hayek e Friedman diante da ditadura de
fin de l'État de droit: la lutte antitenwiste, de l'état d'exception lt la dictature (Paris, La Pinochet (ver capítulo 5 deste volume). .
384 " A nova razáo do mw1do Condusáo- O esgotamento da democracia liberal a 385

·intervir de forma ilimitada nos negócios da coletividade, ao capricho das nesse sentido, de um dispositivo global que, como qualquer dispositivo, é
maiorias eleitorais. Náo surpreende, portanto, que a atribuiyáo direta da de natureza essencialmente "estratégica'', para empregarmos um dos termos
liberdade a um pavo, táo essencial aespecificidade do conceito de liberdade preferidos de Foucault20 • lsso quer dizer que esse dispositivo se constituiu
política, pareya suspeita enquanro tal a Hayek. Dizer de um pavo que ele a partir de urna interv~r¡_yáo- concertada em determinadas relayóes de forya,
é livre é simplesmente operar urna "transposiyáo do con-ceito de liberdade com o intuito de modificá-las em cena direyáo de acordo com um "obje-
individual a grupos de homens considerados como um todo". Ora, como tivo estratégico" 21 • Esse objetivo náo diz respeito a um estratagema urdido
observa ainda Hayek, "um pavo livre nesse sentido náo é necessariamenre por um sujeito coletivo especializado em manipulayáo, mas impós-se aos
um pavo de homens livres" 18 : um indivíduo pode ser oprimido num sistema atores e, desse modo, produziu seu próprio sujeito. Como vimos antes 22 , foi
democrático, assim como pode ser livre num sistema ditatorial. O valor exatamente isso que aconteceu nos anos 1970 e 1980 com a vinculayáo de
supremo, portanto, é a liberdade individual, compreendida como a facul- um projeto político a urna dinámica endógena de regulayáo, vinculayáo
dade dada aos indivíduos de criar para si mesmos um domínio protegido entre duas lógicas cujo efeito foi a imposiyáo do objetivo estratégico da
(a "propriedade") 19 , e náo a liberdade política, como participayáo direta concorréncia generalizada. Apesar disso, náo houve um projeto consciente
dos homens na escolha de seus dirigentes. O essencial aqui é que a reduyáo de passagem do modelo fordista de regulayáo para outro modelo que reria
da democracia a um modo técnico de designayáo dos governantes per!llite primeiro de ser concebido intelectualmente para depois, numa segunda fase,
que ela náo seja mais vista como um regime político distinto dos outros e, ser pasto ern prática de forma planejada .
nesse sentido, já abre caminho para a relativizayao dos critérios de diferen- . O caráter estratégico do dispositivo, como podemos ver, pressupóe que
ciayáo comumente admitidos na classificayao dos regimes políticos. Se, ao sejal!; levadas em .considerayáo as situayóes históricas que perrnitem seu
conrrário, sustenrarmos que a democracia repousa sobre a soberania de um desenvolvimento e: expHcaill a série de reajustes que-o alteram no tempo e a
pavo, o que aparece ent;lo é que, enquanto doutrina, o neoliberalismo é, variedade de formas que ele assume no espayo. Apenas desse mOdo é que se
náo acidentalmente, mas essencialmente, um antidemocratismo. É isso, em pode compreender a "virada'' imposta pela extensáo da crise financeira aos
particular, que o separa irredutivelmente do liberalismo de um Bentham, dirigentes dos países capitalistas dominantes. Corno vimos, essa crise finan-
que, como sabemos, é favorável ademocracia radical. ceira inicia urna crise na governamentalidade neo/ibera!. O que ternos diante de
nós, além do primeiro "reparo" de emergéncia (implanrayáo de novas normas
contábeis, controle a minima dos paraísos fiscais, reforma das agendas de
U m dispositivo de natureza estratégica dassificayáo de riscos etc.), é muito provavelmente um reajuste de conjunto do
O fato fundamental é que o neoliberalismo se torno u ~aje a racionalidade dispositivo Estado/mercado. Questionar-se, como cerros economistas, sobre a
dominante, náo deixando da democracia liberal nada além de um envelope eventualidade de um novo "regime de acumulayáo do capital", substituindo o
vazio, condenada a sobreviver na forma degradada de urna retórica ora regime financeiro baseado no endividamento excessivo das famílias, é absolu-
"comemorativa'', ora "marcial". Enquanto tal, essa racionalidade tomou tamente natural. Em compensayáo, aventurar-se a deduzir daí que esse novo
carpo num conjunto de dispositivos discursivos, institucionais, p¿líticos, regime de crescimento, valendo-se de outros mecanismos além da inflayáo
jurídicos e económicos que formam urna rede complexa e movediya, sujeita dos ativos imobiliários e financeiros, coincidirá espontaneamente com urna
a retomadas e ajustes em funyáo do surgimento de efeitos nao desejados,
as vezes contraditórios com o que se buscava inicialmente. Podemos falar, 20
Sobre o conceito ampliado de "dispositivo" como rede de elementos heterogéneos que
pertencem tanto ao discursivo como ao "social náo discursivo", ver Michel Foucault
Dits et écrits IJ, 1976-1988 (Paris, Gallimard, 200 1), p. 299-3Ül. '
21
18
Friedrich Hayek, La constitution de la liberté, cit., p. 13. ldem.
19 22
ldem, Droit, légíslation et liberté, v. III (Paris, PUF, 1981), p. 181. Ver capítulo 6 deste volume.
386 ., A nova razáo do mundo Condusáo- O esgotamento da democracia liberal e 387

contestayáo direta da racionalidade neoliberal é algo muito imprudente. Mas os dispositivos náo tenham efetivamente "nenhum fundamento no ser"
prognosticar o advento iminente de um "capitalismo bom", com normas de e, consequentemenre, estejam fadados a "produzir se~ próprio sujeito",
funcionamento saneadas, ancorado duradouramente na "economia real", que nem por isso repetem a "cesura que em Deus separa sef e ayáo, ontologia
respeita o meio ambiente, preocupa-se com as necessidades das populayóes e práxis" 25 : ao conidrio -dO governo dos homens por Deus, que remete ao
e- por que náo?- zela pelo bem comum da humarlídade,-isso é, com toda problema teológico da encarnayáo, eles se constituem a partir de condiyóes
a certeza, se náo urna história edificante, ao menos urna ilusáo táo nociva históricas sempre singulares e contingentes e, portante, possuem um cará-
quanto a utopia de um mercado autorregulador. É mais certo que estejamos ter exclusivamente "estratégico", e náo "destina!" o u "epocal". Sobre esse
entrando em urna nova fase do neoliberalismo. ponto, convém recordar a observayáo de Foucault sobre a especificidade da
Pode acorrer que, no plano da ideo logia, essa nova fase seja acompanha- nova problematizayáo do governo, tal como ela aparece entre 1580 e 1660:
da de certa forma de "retorno as fontes". Afinal, o apelo a"refundayáo do se nessa ocasi:io a ayáo de governar dá lugar a tematizayáo, é porque náo
capitalismo regulado" náo recupera as t6nicas dos refundadores dos anos conseguiu encontrar um modelo "nem da parte de Deus nem da parte da
1930, opondo o bom "código de trinsito" das regras do direito a"lei natural" n at ureza" 26 . Em o u tras p al avras, nao
- e" a "heranya teo1'og1ca
. "do governo dos
cega dos velhos adeptos do laissez-faire? Talvez venhamos a assistir, quem homens e do mundo por Deus que explica o fato de o governo dos homens
sabe, por um desses movimentos pendulares cujo segredo só a ideologia pelos homens ter se; tornado um problema, mas é, na verdade, a crise do
possui, a um vigoroso retorno da variante especificamente ordoliberal. Essa modelo do "govemo pastoral" do mundo por Deus que libera a reflexáo
possibilidade náo está excluída, sobretudo porque durante muito tempo a _sobre a arte de governar os homens. O que é verdadeiro para o surgimento
variante ordoliberal foi relegada por sua concorrente austro-americana a urna dO . . problema geq.l do governo é verdadeiro também para a constituiy:io
posi<;:áo subordinada, se náo pura e simplesmente ignorada23 . da forma especificamente · neoliberal da governamentalidade. Esta última
Também náo reconheceríamos o-caráter estratégico do dispositivo neo- náo é a sequé:ncia necessária do regime de acurnulayáo do capital nem urn
liberal se o assimilássemos ao Gestell do último Heidegger ou a oikonomia avatar da lógica geral da encarnay:io nem um misterioso "envio do Ser", do
da teologia cristá do século II de nossa era, como Agamben sugere indire- mesmo modo que n:io é urna simples doutrina intelectual ou urna forma
tamente em O que é um dispositivo? 24 • Falar como ele de uma "genealogia efé:mera de "falsa consciencia''.
teológica'' dos "dispositivos" de Foucault é náo compreender que, embora No entanto, a racionalidade neoliberal pode articular-se a ideologias es-
tranhas apura lógica mercantil sem deixar de ser a racionalidade dominante.
Como diz muito acertadamente Wendy Brown, "o neoliberalismo pode
23
Com toda a certeza, essa ignodnda, que pode chegar apura e simples denegas:áo (o
impar-se como governamentalidade sem ser a ideologia dominante" 27 . Mas
ardo liberalismo niio é neoliberalismo), é urna das razóes da redus:áo do neolibcralismo
a ideología do livre mercado; a outra é a inversáo da relayáo de causalidadc entre
globalizas:áo das finanyas e razáo neoliberal aqual fizemos alusáo no capítulo 8. Desse
2
modo, instauro u-se urna dupla identificas:áo: o neoliberalismo nada mais é do que " Ibidem, p. 25. Essa ideia é retomada e aprofundada em Giorgio Agamben, "Etre et
o mercado autorregulador acarretado pelas finan-ras. Daí a condusáo precipitada de agir", em Le regne et la gloire: homo sacer, IL 2 (Paris, Seuil, 2008), cap. 3, p. 93-109
que a crise financeira assina o atestado de óbito do neoliberalismo. [ed. bras.: O reino e a glória: homo sacer, JL 2, trad. Selvino]. Assmann, Sáo Paulo,
24 Boitempo, 2011].
Giorgio Agamben, Qu'est-ce qu'un disposítif (Paris, Rivages, 2007), p. 22-8 [ed.
26
bras.: O amigo & O que é um dispositivo?, trad. Vinicius Nicastro Honesko, Chapecó, Michel Foucault, Sécurité, territoire, population (París, Gallimard/Seuil, 2004, Coles:áo
Argos, 2014]. O termo Gestel! significa o arranjo que dispóe do homem abrigando-o Hautes Études), p. 242.
27
a desvelar o real "no modo do comando", o que para Heidegger define a essénda da A autora acrescenta lago em seguida: "A primeira remete ao exercício do poder, a
técnica moderna. Quanto a oikonomia dos teólogos, ela permite pensar o governo segunda, a urna ordem de eren-ras populares que pode ou náo ser perfeitamente
dos homens e do mundo como aquele que Deus confia a seu Filho. É significativo conforme com a primeira e que pode até mesmo oferecer um lugar de resisténcia
que Agamben dé ao conceito de "dispositivo" urna extensáo dificilmente compatível a governamcntalidade", Wcndy Brown, Les habits neufi de la politique mondiale,
com a preocupa~o foucaultiana da singularidade histórica (ibidem, p. 31). cit., p. 67.
388 ., A nova razio do mundo Conclusio- O esgotamento da democracia liberal " 389

n'áo há dúvida de que isso náo acontece sem tensóes ou contradiyóes. Nesse se apresentalargamente anernica. A esquerda de inspirayáo blairista já rnostrou
sentido, o exemplo norte-americano é cheio de ensinamentos. O neoconser- no passado que a celebrac;:áo Hrica da modernidade em todos os seus aspectos,
vadorismo se impós nos Estados Unidos como a ideologia de referencia da inclusive o da liberalizayáo dos costumes, poderia perfeitainente articular-se a
nova direita, embora o "reor altamente _moralizador" dessa ideo logia pareya racionalidade neoliberaJ. Nio é impossível que ern outro plano, o da política
incompatível com o caráter "amoral" da racionalid.ade neoliberal28 • Urna econ6mica, cerros elementos da doutrina keynesiana venham prestar apoio a
análise superficial poderia nos levar a pensar que estamos diante de um "jogo prática do governo empresarial- retomada orc;:amentária temporária, suspen-
duplo". Na realidade, entre neoliberalismo e neoconservadorismo existe urna sáo provisória dos critérios de estabilidade monetária, medidas para comer
concordancia que náo é nada fortuita: se a racionalidade neoliberal eleva a a especulayáo dos mercados etc., todos elementos que náo implicam LUna
empresa a modelo de subjetivayáo, é sirnplesmente porque a forma-empresa mudanya na divisáo fundamental dos rendirnentos entre capital e trabalho, o u
é a 'Jórma celular" de moralizaráo do individuo trabalhador, do mesmo modo seja, a reativayáo de um cornpromisso salarial comparável aoque se instaurou
que a família é a. "forma celular" da moralizayio da crianya29 • Daí a exaltayáo no pós-guerra. Por si só, no entamo, esse apoio puramente circunstancial e
incessante do indivíduo calculador e responsável, na maior parte das vezes pela "pragmático" náo é capaz de afetar a lógica normativa do neoliberalismo,
figura do pai de fanúlia trabalhador, económico e previdente, que acompauha urna vez que esta só poderia ser derrotada por revoltas de grandes extensóes.
o desmantelamento dos sistemas de aposentadoria, educayáo pública e saúde.
Muito mais do que wna simples "zona de contato", a articulayáo da empresa
coma família é o ponto de convergencia ou intersecyáo entre normatividade Inventar outra governamentalidade
neoliberal e moralismo neoconservador. Por isso, é sempre perigoso criticar o ··:fi nova racionalidade, propóe um tremendo desafio a esquerda: náo
conservadorisrno moral e cultural em no me do pretenso "liberalismo" de seus a
poden do content'ar-se com urna crítica incisiva ''mercantilizayáo genera-
partidários no campo da política económica, porque, ao tentarmos mostrar lizada'', ela tem de inventar urna resposta política "a altura'' d¿ que o· regi-
a "incoed:ncia'' destes últimos, revelarnos sobretudo nossa incornpreensáo me normativo dominante tern de inédito. Na medida em que este último
da diferenya que separa o neoliberalisrno do "laissez-faire" e, ainda por cima, implica o definhamento irreversível da democracia liberal, a esquerda náo
corremos o risco de ter de assurnir urna espécie de laissez-faire integral e sis- pode contentar-se em defender a democracia liberal, corno tende a fazer.
temático para salvar a coerencia de nossa própria crítica. Náo que ela náo deva mais defender as liberdades públicas, mas deve evitar
Mas a concordincia entre neoconservadorisrno e neoliberalisrno náo faze-lo em nome dessa democracia, por exemplo, opondo "autoritarismo
significa que um amálgama ideológico, combinando ingredientes de proce- neoliberal" e "democracia liberal". Para citar mais urna vez Wendy Brown:
dencias diversas, náo possa tornar o lugar de urna corrente de ideias que hoje
Defender a democracia liberal em termos liberais é náo só sacrificar urna
visáo de esquerda, masé também, por esse sacrifício, desacreditar a esquerda,
reduzindo-a tacitamente a nada mais do que urna objec;:áo permanente ao
28
lbidem, p. 86, nota 6. Devemos observar que, na mesma nota, a autora trata o regime estabelecido: um partido de reclamac;:óes, em vez de um partido com
neoconservadorismo como urna "ideología'': "Neoliberalismo e neoconservaddrismo visáo política, social e econ6mica alternativa. 30
diferem sensivelmente, em especial porque o primeiro funciona como racionalidade
política, enguanto o segundo permanece urna ideologia''. No prefácio da edü;:áo Por essa rnesrna razáo, náo poderíamos retomar a crítica marxista da
francesa e no segundo ensaio ("Le cauchemar américain"), ela fala do neolibera- "democracia formal", porque seria ignorar que o esgotamento da democracia
lismo e do neoconservadorismo como duas "racionalidades políticas". De nossa liberal priva essa crítica de qualquer fundamento: a governamentalidade
parte, acreditamos que náo há simetria possfvel entre a racionalidade neoliberal e
neoliberal náo é democrática na forma e antidemocrái:ica nos fatos; ela
a ideología neoconservadora.
29
A empresa constituí a "base ético-política'' do neoliberalismo. Na realidade, desde
as origens do neoliberalismo em Wilhehn Rüpke, a forma-empresa é pensada como
30
forma de "moralizac;:áo-responsabilizac;áo" do indivíduo (ver capítulo 3 deste volume). Wendy Brown, Les habits neufi de la politique mondiale, cit., p. 78.
390 " A nova razáo do mundo Conclusáo- O esgotamento da democracia liberal " 391

sirnplesmente náo é rnais democrática, nem mesmo no sentido formal, mas Também nesse caso, devemos recordar que o neoliberalismo náo se confunde
nern por isso identifica-se corn um exercído ditatorial ou autoritário do com o todo-mercado, de modo que náo há sentido algum em designá-lo
poder. Ela é adernocrática. A cisáo entre o "cidadáo" e o "hurgues" é coisa do como "ultraliberalismo:' _para dar a entender que existida um liberalismo
passado, assirn como o apelo a urna reunificayáo do hornero com ele próprio. "respeitável", que náo renunciada aos instrumentos de intervenyáo de Estado.
Ainda pela mesma razáo, a esquerda náo pode propOf-se a "dar novo fólego Nunca é demais repetir: Hayek náo é um "ultraliberal", mas um "neoliberal"
a sistemas decadentes", amparando a combalida democracia representativa partidário de wn Estado forre, como muitos outros neoliberais34 • Quanto
comas escoras bambas da "democracia participativa" 31 • Também náo pode ao libertarismo, quer defenda o Estado mínimo, quer exija a aboliyáo do
estacionar numa linha de recua que consiste em o por "liberalismo político" Estado, ele náo é um "ultraliberalismo", mas outro liberalismo, cuja relayáo
e "liberalismo económico", pois tal posiyáo equivaleria a desconhecer que como neoliberalismo náo pode ser reduzida a urna simples diferenya de grau.
as próprias bases do liberalismo "puramente político" foram minadas por A única pergunta que vale a pena fazer, na realidade, é se a esquerda
um neo liberalismo que é tudo, menos "puramente económico". De modo pode opor urna governamentalidade alternativa governamentalidadea
mais amplo, todo o espayo ocupado por aquilo que se convencionava neoliberal. Ao final de sua aula de 31 de janeiro de 1979 sobre o Nasci-
chamar "social-democracia" é direta e radicalmente contestado, já que essa mento da biopolítica, Foucault se pergunta se existiu algum dia algo como
a
denorninayáo devia seu sentido possibilidade de estender a democracia urna "governamentalidade socialista autónoma''. Sua resposta é inequívoca:
política mediante o reconhecimento de direitos sociais que definern cena sempre falto u tal governamentalidade. O que a experiencia histórica revela
cidadania social, como complemento e reforyo da cidadania política clássica. _é que o socialismo sempre esteve "associado" a o u tras governamentalidades.
A esse respeito, devernos dizer a que ponto certo léxico contribui para As~im; póde asso.ciar-se a urna governamentalidade "liberal" ou, ainda, a
obscurecer as coisas. Náo há e náo poderia haver "social-liberalismo", sim- um~ governametitalidade ''~dministrativa''. Daí a questáo: o que seria urna
plesmente porque o neoliberalismo, sendo urna racionalidade global que governamenralidade intrinsecarnente socialista? O que Fouciult afirma é
invade todas as. dimensóes da existencia humana, veda qualquer possibilidade que essa governamentalidade é inencontrdvel no socialismo e em seus textos.
de prolongamento de si mesmo no plano social. Ponanto, é enganadora a E, como náo se pode encontrá-la, "é preciso inventá-la'' 35 •
analogía que sugere que o "social-liberalismo" é para o neoliberalismo o que Para compreender a necessidade dessa invenyáo, devemos retornar um
a "social-democracia" foi para democracia política. Por outro lado, o que existe a
breve instante própria ideia de "governo". Segundo Foucault, governar
realmente é um neoliberalismo de esquerda que náo tern mais nada a ver com
a social-democracia ou coma democracia política liberal32 • Na vei-dade, o que
o liberalismo em questáo, Em compensayáo, anuncia o fim do ultraliberalismo, essa
o prefixo "social" dissimula mal é a equas:áo sumária pela qua! o liberalismo é
escola de pensamento criminosa fundada por Milton Friedman" (entrevista publi-
abusivamente identificado com o laissez-faire económico. O mesmo pode ser cada no jornal Le Monde, 2-3 nov. 2008). A "criminalizayáo" da Escola de Chicago
dito da etiqueta de "ultraliberalismo", distribuída generosamente por grande apresenta duas vantagens. Em prirneiro lugar, permite fingir que náo existiu nada
parte da esquerda - mais generosamente ainda, aliás, porque ela se sente entre Adam Smith e Milton Friedman, portanto, permite resumir o neoliberalismo
a sua versáo friedmaniana! Em segundo luga1~ tem a funyáo de acobertar a direita
tentada a aproximar-se vergonhosamente da ortodoxia neoliberal ambiénte33 •
francesa, considerada "ainda muito gaullista'' (sic), o que indiretamente diz muito
sobre as razóes íntimas da impoténcia da esquerda francesa com respeito a essa direita.
34
Ver capítulo 9 deste volume. Serge Audier náo se esforya muito para evitar essa sim-
31
Como sugere Lo"ic Blondiaux em Le nouvel esprítde la démocratie (Pa1"is, Senil, 2008), plificayáo, fazendo de Friedrich Hayek o autor de urna "nova utopia ultraliberal" para
p. 100. melhor op6-lo ao liberalismo "anticapicalista'' de Wilhelm Rüpke. Ver Serge Audier,
32
Ver capítulo 6 deste volume. Le Col!oque Walter Lippmann. Aux origines du néolibéralísfne ,(Latresne, Le Bord de
33 Como observam com razáo Gérard Desportes e Laurent Mauduit em L'adieu au I'Eau, 2008), p. 234.
35
socialisme (Paris, Grasset, 2002), p. 290. A atirude adotada por Michel Rocard Sobre todo esse desenvolvimento, ver Michel Foucault, Naiss'ance de la biopolitique
diante da crise financeira é muito esclarecedora nesse sentido: "A crise arual náo póe (Paris, Gallimard!Seuil, 2004), p. 93-5.
392 o A nova razáo do mundo Conclusáo- O esgotamento da democracia liberal • 393

cOnsiste em "dispar as coisas", estando entendido que "coisas" náo sáo as coi- leis se identificarla pura e sirnplesmente com a dependencia em relayáo
sas por oposiyáo aos homens, mas todos os "intricamentos entre os homens as coisas 40 . o princípio dá soberania da lei, elevado a absoluto por urna
e as coisas" 36 . De ceno modo, portanro, a ideia de governamentalidade une espécie de cruzame?to _do limite, tende a tornar o goVerno dos homens
a ideia do governo dos homens a ideia da administrayáo das coisas, ao passo totalmente supérfi~o; na medida em que, nesse caso, governar consiste em
que o paradigma da soberania faz prevalecer a rela~io direta do soberano assegurar a execuyáo das leis, ternos o direito de nos perguntar que tipo
com esses homens que sáo sujeitos dele37 • de atividade restaria a um governo- que náo teme mais que as leis sejam
Essa correlayáo entre um governo dos homens preocupado em náo violadas. O ideal seria, no fim das cantas, que a invencibilidade das leis
contrariar a natureza das coisas e urna administrayáo das coisas que permitisse aos homens prescindir de qua!quer governo.
se vale da liberdade dos homens é que vai dar um impulso decisivo a Alguns se perguntaráo, sem dúvida, o que esse reconhecimento-
reflexáo sobre a arte de governar, permitindo que ela se liberte do an- -denegayáo da governamentalidade por parte de Rousseau tem a ver com
tigo quadro jurídico da soberania. Porque, no interior desse quadro, a a necessidade de inventar urna governamentalidade de esquerda. Essa
primazia da lei náo faz mais do que refletir a relayáo direta da vontade relayáo é indireta, mas nem por isso é menos real. A esquerda se construiu
do soberano corn a vontade dos súditos, esta última sernpre suspeita de historicamente em torno da referéncia ao marxismo·. Ora, este último deve
tentar desobedecer e sempre chamada ao dever de obedecer. Assirn, todas a Saint-Simon certa concepyáo de governo. Em Do socialismo utópico ao
as tentativas de refundar a reoria da soberania sobre novas bases esravam socialismo científico (1883), Engels refere-se em termos elogiosos a urna obra
fadadas a conservar essa primazia, ou aré mesmo a acentuá-la, a ponto de Saint-Simon intitulada L'industríe; ''A passagem do governo político dos
de torná-la urna verdadeira sacralizayáo da lei. Isso vale em particular ho.J?ens a urna administrayáo das coisas e a urna direyáo das opetayóes
para a tentativa de Jean-Jacques Rousseau: ao mesmo tempo que renta de produyáo, pd~tanto a· ,'aboliyáo do Estado' a:cerca da qual se fez tanto
construir um espayo para a administrayáo das coisas e para o governo barulho ulrimamente, encontra-se já claramente enunciada' aqui" 41 • De
dos homens, ele se empenha ern subsumir estes últimos ao princípio da faro, foi Saint-Simon que elaboro u a distinyáo fundamental entre governo
soberania. Assim, no verbere "economia política'' da Enciclopédia, dis- e administraráo. Essa distinyáo coincide com urna verdadeira oposiyáo
tingue "economia pública", o u "governo", de "autoridade suprema", o u entre dois tipos de regime: o "governamental o u militar", de um lado, e o
"soberania''. O governo, do qual dependem tanto o governo das pessoas "administrativo o u industrial", de outro'12 • Nas sociedades pré-industriais,
quanto a administrayáo dos bens, deve ser estritamente subordinado ao também chamadas sociedade "militares", a ordem social procede inteira-
soberano, que é o único a deter o poder de fazer as leis. Daí o problema mente do comando, o que explica a predominancia do governo: a ayáo de
que, segundo ele, é para a política o que o problema da "quadratura do governar consiste no exerdcio do poder de comandar outros homens por
círculo" é para geometria: '"pOr a lei acima do homem" 38 . Há somente parte de cenos homens e, como tal, é necessariamente arbitrária. Isso náo
urna maneira de fazer isso: "substituir o homem pela lei" 39 • O ideal, por- se deve em absoluto a forma do governo (monarquia absoluta ou parla-
tanto, seria que as leis políticas adquirissem a mesma inflexibilidade e a mentarismo), mas a esséncia dessa ayáo- a arbitrariedade encontra-se na
mesma imurabilidade das leis da natureza, de modo que seja impoSsível
aos homens desobedecé-las, já que entáo a dependencia em relayáo as
40 Idem.
41
Friedrich Engds, Socialisme utopique et socialisme scientijique (Paris, Éditions Sociales,
36 Idem, Dits et écrits JI, cit., p. 643-4. 1977), p. 99 [ed. bras.: Do socialismo utópico ao socialismo científico, trad. Rubens
37 Idem, Sécurité, territoire, population, cit., p. 50. Eduardo Frias, 2. ed., Sáo Paulo, Centauro, 2005].
38 Jean-Jacques Rousseau, "Considérations sur le gouvernement de Pologne", em CEuvres 12
Saint-Simon diz, em essenda, que a espéde humana "está destinada a passar do regime
completes (Paris, Gallimard, 1995, Cole<;:áo La Pléiade), t. III, p. 955. governamental ou militar para o regime administrativo ou illdustrial". Citado em
39 Idem, "Émile", em CEuvres completes, cit., t. IV, p. 311. Émile Durkheim, Le socialisme (Paris, PUF, 1992, Cole<;:áo Quadrige), p. 179.
394 " A nova raúo do mundo Condusáo- O esgotamento da democracia liberal ., 395

própria essencia de toda vontade, e a aifáO de governar consiste em homens assim dizer, seu elemento natural" 45 . É justamente esse "vago" que a verdade
dar ordens a outros homens 43 . da ciencia vence, e é por issü que "a ayao de governar é nula, o u quase nula,
Nas sociedades indusrriais modernas, as coisas sao muito diferentes. enquanto 'ayao de_ c?m~n~ar"'. Portanto, se existe sobérania, ela só pode
Os dentistas e os industriais é que sáo investidos d~s funifÓes de direyao, consistir "num princípio derivado da própria natureza das coisas", náo
náo em razáo de sua aptidao para conseguir que os outros obedeyam a sua "numa opiniáo arbitrária alyada a lei pela massa'' 46 • Em todo caso, tanto
vontade, isto é, em razáo de seu poder, mas unicamente porque sabem mais no rousseaunismo como no saint-simonismo, a atividade do governo é
do que os outros. Nessas condiyóes, náo sao mais os homens que dirigem subalterna, seja porque a soberania pertence as leis oriundas da vontade,
os homens, mas é a verdade que fala diretamente pela boca dos dentistas seja porque equivale a própria verdade. No saint-simonismo, o marxismo
e dos industriais, e é sabido que nada é menos arbitrário do que a verdade. retomará duas ideias-chave: primeii:o, que o ·governo tem, antes de rudo,
a
É impossível resistir verdade, só se pode tender a ela, porque ela nao urna funyáo de polícia que repousa essencialmente sobre a violencia e a
comanda, mas impóe-se por si mesma, fazendo-se reconhecer. Portante, a coeryao; segundo, que o governo regulado pela verdade é aquele que tende
coeryáo governamental está fadada a desaparecer, da mesma forma que a a sua própria supressao na administrayáo das coisas. Mas ele entenderá por
arbitrariedade. Na sociedade industrial, a ayao governamental é reduzida verdade náo mais aquele "princípio imutável derivado ·da natureza das coisas",
ao mínimo e tende a zero, de modo que o governo orientado pela verdade mas a-verdade que a história faz advir e que sua racionalidade manifesta. Seja
é o governo que governa o mínimo possível e tende aprópria supressáo. o como for, soberania das leis ou administrayao científica das coisas tem em
ideal saint-simoniano é precisamente o da substituiyao total do governo _ comum o fato de retirar da ayao de governar qualquer justificayáo. Conduzir
baseado na arbitrariedade do comando pela administrayao baseada no 'os.-~omens náo ~ curvá-los sobo jugo inflexível da lei nem faze-los reco-
conhecimento da verdade. nhecer a forya de· urna ve~dade. É por nunca ter sabido reconhecer isso que
Esse ideal, retomado pelo marxismo, pressupóe tuna dissociayao radical a esquerda esteve sempre condenada a regular-se por governaffientalidades
entre a ayáo dos homens sobre as coisas, o u "administrayáo", e a ayáo dos emprestadas. É precisamente nisso que a governamentalidade de esquerda
homens sobre os homens, o u "governo": "Nunca é demais repetir que nao há ainda está por se inventar.
aifáo útil exercida pelo homem, senao a do hornem sobre as coisas. A ayáo
do homern sobre o homem é sempre, em si mesma, prejudicial a espécie,
pela dupla destruiyao de foryas que acarreta" 44 • Como vemos, essa concep- fu "contracondutas" como práticas de subjetivaqáo
yáo absolutamente negativa do governo só quer desfazer o nó que a própria Conrudo, a governamentalidade náo poderia ser reduzida ao governo dos
ideia de governamentalidade deu entre ayao sobre os homens e ayáo sobre outros. Em sua outra faceta, ela compreende o governo de si. O tour de force
as coisas, reduzindo a ayáo de governar a coeryáo e comalldo. do neo liberalismo foi unir essas duas facetas de maneira singular, fazendo do
Como em Rousseau, aqui também a especifiddade da arte de governar governo de si o ponto de aplicaifáo e o objetivo do governo dos outros. O
é escamoteada. Obviamente, Saint-Simon nao cochila em atacar Rousseau, efeito desse dispositivo foi, e ainda é, a produyáo do sujeito neoliberal, ou
que para ele é mais um daqueles "legistas" que submetem a socied~de a neossujeito. A esquerda náo pode ignorar essa realidade; ao contrário, deve
arbitrariedade das leis. A seu ver, na nova ordem das coisas "náo há mais reconhece-la para melhor enfrentá-la. A pior das atitudes de sua parte seria
lugar para a arbitrariedade dos homens, nem mesmo para a arbitrariedade preconizar um retorno ao compromisso social-democrata, keynesiano e for-
das leis, porque urna e outra so mente podem exercer-se no vago que é, por dista, em Wbito nacional o u europea, sem se dar conta de que a dimensáo

43 Retomamos aqui a argumenta<¡áo de Durkheim (ibidem, p. 177 -8).


45
44 Saint-Simon, Écrits politiques et économiques (Paris, Pocket, 2005, Coles:áo Agota), Ibidem, p. 330; grifo nosso.
46
p. 327. Idem.
396 • A nova razáo do mundo Conclusáo- O esgotamento da democracia liberal e 397

dos problemas mudou, as foryas presentes náo sáo mais as mesmas e a glo- Isso náo significa que devemos ser indiferentes as mudans:as de governo o u
balizayáo do capital destruiu até as bases de tal compromisso. No entamo, a política de qualquer novó governo. Seguramente, significa que a atitude
é essa atitude que se ve com frequencia despontar por trás da reduyáo do que se deve adatar el? tal circunstancia deve obedecer a um único critério:
neoliberalismo a urna regressáo ao "capitalismo puro" das origens. Sem o usar em que medida os atos.desse governo favorecem o u, ao contrário, entravam
regozijar-se abertamente, a esquerda pega-se espreitando os sinais precursores a resistencia a racionalidade neoliberal? Consequentemente, nesse caso a
de um retorno do pendulo a urna regulayáo direta da parte dos governos. questáo do governo enquanto institui¡¡áo é secundária em relayáo a questáo
Presta pouca atenyáo ao fato de que esse "retorno" se opera em benefício de do governo como atividade que estabelece urna relayáo consigo mesmo e,
um Estado empresarial. De bom grado, contrapóe a "boa" racionalidade da ao mesmo tempo, urna relayáo com os outros. Ora, essa relayáo dupla diz
regulayáo do Estado a "má" racionalidade da concorrencia. Fazendo isso, respeito precisamente a constituiyáo do sujeito ou, em outras palavras, as
negligencia o fato de que a racionalidade do capitalismo neoliberal náo é práticas de subjetivayáo.
urna racionalidade puramente económica e, ao mesmo tempo, perde de vista Compreender isso requer desfazer-se da ilusáo de que o sujeito alternativo
a diferenya das condiyóes históricas, que impede qualquer retorno a urna poderia ser encontrado de urna forma ou de outra como "já aí", a maneira
racionalidade económica administrativa e planificadora (supondo-se que esse de um dado que quan,.do muito se deve ativar ou estimular. Urna primeira
retorno seja desejável, o que no mínimo é contestável). A questáo náo é como forma dessa ilusáo, da qual o marxismo sofreu no passado, é a de urna loca-
impor ao capital um retorno ao compromisso anterior ao neoliberalismo, lizayáo ontológica do sujeito da emancipayáo humana: haveria no ser social
mas como sair da racionalidade neoliberal. ~m local determinado que levaria a opressáo a seu cúmulo, ou seja, urna
Sabemos, porém, que é mais fácil fugir de urna prisáo do que sair de da~se que seria ao mesmo tempo urna "náo classe", urna "classe universal"
urna racionalidade, porque isso significa livrar-se de um sistema de normas que' realizada em ·~uas con,diyóes de existencia a "perda total do homem" e a
instaurado por meio de todo um trabalho de interiorizayáo. Isso vale em qual caberia, por consequencia, realizar a "reconquista total" dO homem47 •
particular para a racionalidade neoliberal, na medida em que esta tende a Essa ilusáo se apoia na ideia de um privilégio ontológico de exterioridade,
trancar o sujeito na pequena "jaula de ayo" que ele próprio construiu para em virtude do qual esse sujeito social estaria situado num "fora" radical
si. Assim, a questáo é, primeiro e acima de tudo, como preparar o caminho relativamente as relayóes de poder em que sempre sáo pegos os atores de
para essa saída, isto é, como resistir aqui e agora a racionalidade dominante. wna sociedade. Encontramos semelhante ilusáo de exterioridade na tese
O único caminho praticável é promover desde já formas de subjetiva¡¡áo de urna "autonomia ontológica da multidáo", defendida por Michael Hardt
alternativas ao modelo da empresa de si. A esquerda poderá argumentar que e Antonio Negri 48 • Obviamente, esses autores repetem que nenhum lugar
o neossujeito se formou a partir de condiyóes que foram criadas em grande dentro do espayo do "lmpério" escapa a investida do biopoder, mas isso
parte por urna reorientayáo r:idical da política governamental. Portanto, pode é para conferir a multidáo um lugar ontológico próprio, que lhe permite
ceder a tentayáo, caindo na armadilha de urna analogia enganosa, de espe- subrrair-se- ao menos em parte- ao controle imperial49 • O desconhecimento
rar que urna mudanya de política consecutiva a urna mudanya de governo
crie as condiyóes da construya.o desse outro sujeito. Isso seria ignorar iue a 47
Reconhece-se aqui a tese enunciada por Marx a respeito do proletariado em Crítica
reorientayáo operada pelo neo liberalismo, sendo voluntarista, náo teve nada da jilosojia do direito de Hegel [trad. Rubens Enderle e Leonardo de Deus, 3. ed., Sáo
de criayáo ex nihilo. Ela se apoiou num movimento da economia mundial Paulo, Boitempo, 20 13] eA ídeologia alemá [trad. Rubens Enderle, Nélio Schneider
alinhado a nova norma da concorrencia, de modo que os sujeitos foram e Luciano Cavini Martorano, l. ed. rev., Sio Paulo, Boitempo, 2011].
48
como que internamente "vergados" a essa norma por múltiplas técnicas de Michael Hardt e Antonio Negri, Empire (Paris, Exils, 2000) e Multitude (Paris,
10/18, 2006) [ed. bras.: Multidáo: guerra e democracia na erd do ímpério, trad. Clóvis
poder. Além do mais, significada esquecer que náo se sai de uma racionali-
Marques, Rio de Janeiro, Record, 2005].
dade o u um dispositivo por urna simples mudanya de política, assim como 49
Para urna crítica a essa tese, ver Pierre Dardot, Christian Laval e El Mouhoub
náo se inventa outra maneira de governar os homens mudando de governo. Mouhoud, Sauver Marx? (Paris, La Découverte, 2007).
398 " A nova razáo do mundo Conclusáo- O esgotamento da democrada liberal • 399

do.processo de subjetivayáo posto em prática pelo neoliberalismo é tal que a


de France dedicado Hermeneutica do sujeito (1981-1982), insistem num
Negri chega a afirmar que os "homens novos" do comunismo já estáo aí, mesmo ponto: o cuidado de si está ligado náo a urna relayáo primordial
produzidos pela própria dinámica do novo "capitalismo cognitivo" 5°. consigo mesmo, m~~~-~ urna verdadeira tekhné, a tekhizé tou biou [arte da
Outra forma dessa mesma ilusáo de _um sujeito pré-dado encontrou vida], que faz do "si" o término de toda urna ascese (askésis).
urna formulayáo precisa na renovayáo da "teoria crítica'' tentada por Axel Isso mostra a que ponto devemos assimilar a nossa maneira a liyáo do
Honneth em sua análise da "reificayáo" 51 . No capítulo 5 de seu tratado, neoliberalismo: o sujeito está sempre por construir. A questáo se resume, en-
ele analisa o fenómeno da autorreificayáo. Sob esse termo, devemos pensar táo, em saber como articular a subjetivayáo aresistencia ao poder. Ora, essa
urna conduta reificante de si mesmo que seria tuna "espécie de engarro" da questáo está precisamente no centro de.todo o pensamento de Foucault.
relayáo de reconhecimento que teríamos de imediato com nós mesmos. O Mas, como mostrou Jeffrey T. Nealon, parte da literatura secundária norte-
que está em questáo aqui, portanto, náo é nada mais do que a primazia dessa a
-americana deu enfase, ao contrário, fratura que existida entre as pesquisas
relayáo consigo mesmo "do ponto de vista da ontologia social" 52 . A afirmayáo de Foucault sobre o poder e as do último período, que tratam da história
dessa primazia encontra-se no fundamento de toda a análise: "nós sempre da subjetividade56 • Segundo esse "Foucault consensus", como jovialmente o
já nos reconhecemos" 53 • Certamente náo se trata mais de fnndamentar essa batizou Nealon, os sucessivos impasses do neoestruturalismo dos primór-
primazia na posiyáo privilegiada de urna dasse social qualquer. A questáq dios e-da análise totalizante do poder panóptico teriam levado o "último
ainda é saber se "é preciso supor previamente urna forma de relayáo consigo Foucault" a abandonar a quest:lo do poder e a interessar-se exclusivamente
mesmo 'originária', normal, que permitida descrever a reificayáo como um _pela invenyáo estética de um estilo de existencia desprovido de qualquer
a
desvio problemático" 54 • Referindo-se temática heideggeriana da "preo- düp_ensáo polític~. Mais ainda, se seguirmos essa leitura despolitizante de
cupayáo", Honneth nos remete para além da reelaborayáo de Foucault do Fo~cault, essa es-i:etizayáo ·da ética teria antecipado a mutayáo neoliberal,
conceito de "cuidado de si" 55 . Isso significa ignorar que, para Heidegger, a fazendo precisamente da invenyáo de si urna nova norma. Na realidade,
"preocupayáo" náo é o equivalente de urna relayáo originária de familiaridade longe de ser ignoradas, essas questóes acerca do poder e do sujeito sempre
consigo mesrno, mas antes wn modo de dispersáo e imersáo no mundo que estiveram intimamente articuladas, mesmo nos últimos trabalhos de Fou-
faz da apropriayáo de si rnesmo urna tarefa atribuída ao Dasein. "Primeiro cault sobre os modos de subjetivayáo.
e no rnais das vezes", para falarrnos como Heidegger, em Honneth o que Se há urn conceito que teve p;¡1.pel decisivo a esse respeito, foi o da "con-
predomina é o esquecimento de si, náo o reconhecirnento de si. A mesma traconduta", tal como elaborado na aula de lQ de mar1=o de 1978 57 • Essaaula
observayáo vale rnais ainda para Foucault. O volume 3 de História da sexua- trata, em grande parte, da crise do pastorado. Tenta precisar a especificidade
lidade, intitulado O cuidado de si (1984), bem como o curso do College das "revoltas", ou "resistencias de conduta", que sáo como o correlato do
modo de poder pastoral: se tais resistencias sáo denominadas "resistencias
de conduta'', é porque sáo resistencias ao poder enquanto conduta e, como
50
"Nous sommes déja des hommes nouveaux'', entrevista de Jean Birnbaum com tais, elas próprias sáo formas de conduta, contrárias a esse "poder-conduta''.
Antonio Negri, Le Monde, 13 jul. 2007.
O termo "conduta'' ad~ite dois sentidos: o de uma atividade que
51

52
Axel Honneth, La réijication: petit traité de théorie critique (Paris, Gallimard, 2007). consiste em conduzir os outros, o u "conduyáo", e o que remete manei- a
Ibidem, p. 93.
ra como o indivíduo conduz a si mesmo sob o efeito dessa atividade de
53
Ibidem, p. 105.
54
Ibidem, p. 94. Essa pretensa "originalidade" tem certa relac;áo coma pressuposic;áo
de urna exterioridade da liberdade no que diz respeito as relac;óes de poder contra 56
JeffreyT. Nealon, Foucault Beyond Foucau!t: Power and its Inte.nsijications Since 1984
a qual se construiu a noc;áo foucaulriana de governamentalidade. Ver a lntroduc;áo (Stanford, Stanford University Press, 2008).
deste volume. 57
Michel Foucault, Sécurité, terrítoire, population, cit., p. 195-232 (sobre a etapa fun-
55
Ibidem, p. 101-2 e p. 136, nota 17. damental constituída por esse conceito, ver p. 221, nota 5).
400 " A nova razáo do mundo Conclusáo- O esgotamento da democracia liberal e 401

conduyáo 58 • A ideia de "contraconduta'' apresenta a vantagem, portanto, consigo da empresa de si determina imediata e diretamente cerro tipo de
de significar diretamente urna "luta contra os procedimentos postos em · relayáo com os outros (a concorréncia generalizada), inversamente a recusa
ayáo para conduzir os outros", ao contrário do termo "inconduta'', que se de funcionar como Wll?- ell_lp_resa de si, que é distanciamento de si mesmo e
refere apenas ao sentido passivo da palavra59 • Pela contraconduta, tenta-se recusa do total autoengajamenro na corrida ao bom desempenho, na práti-
tanto escapar da conduta dos outros como definir pafa si rrlesmo a maneira ca só pode valer se forem estabelecidas, com relayáo aos. outros, relayóes de
de se conduzir com relayáo aos outros. cooperayáo, cornpartilhamento e comuriháo. De fato, que sentido teria um
Que interesse pode ter essa observayáo para urna reflexáo sobre a resisten- distanciamento de si mesmo que náo tivesse nenhuma ligayáo com a prática
a
cia governamentalidade neoliberal? Pode-se argumentar que esse conceito cooperativa? Na pior das hipóteses, o de um cinismo misturado ao desprew
é introduzido no ámbito de urna análise do pastorado, náo da governa- pelos trouxas; na melhor, o de uma simulayáo o u um jogo duplo, talvez ditado
rnentalidade. Precisamente, a governamentalidade, ao menos em sua forma por wna preocupayáo plenamente justificada de preservac;áo pessoal, porém
especificamente neoliberal, faz da conduta dos outros pela conduta deles para extenuante ern longo prazo para o sujeito; seguramente, náo o de urna contra-
com eles rnesmos o verdadeiro objetivo que se deseja alcanyar. A característica conduta. Sobretudo porque esse jogo poderla levar o sujeito a refugiar-se- na
própria dessa conduta para consigo mesmo, isto é, conduzir-se corno urna falta de coisa melhor- numa identidade de comp~nsayáo, que ao menos tem
empresa de si mesmo, é induzir imediata e diretamente certa conduta com a vantagem de certa estabilidade, em contraste como imperativo de superayáo
relayáo aos outros: a da concorréncia com os outros, vistos como empresas infinita de si rnesmo . .Ora, a fixayáo da identidade, seja de que natureza for,
de si rnesrnos. A consequéncia disso é que a contraconduta como forma de lü"!Jge de ameayar a ordem neoliberal, aparece, ao contrário, como bater em
resistencia a essa governamentalidade deve corresponder a urna conduta que retirad~ para os sujeitos cansad\'s de si mesmos, para tOdos os que abandonaram
seja indissociavelmente urna condura para consigo mesmo e urna conduta a corrida ou foram el!:cluídos dela logo de saída; piar, ela reproduz a lógica da
para cornos outros. Náo se poderla lutar contra um modo de conduyáo táo concorrencia no nível das relayóes entre as "pequenas comunidades". Longe de
indireto por urna conclamayáo arevolra contra urna autoridade que supos- valer por si mesma, independentemente de qualquer articulayáo coma política,
tamente se exerce por urna coeryáo externa aos indivíduos. Se "a política a subjetivayáo individual está ligada no rnais profundo de si mesma subjeti- a
náo é nada mais, nada menos do que aquilo que nasce com a resisténcia a vayáo coletiva. Pura estetizardo da ética é, nesse sentido, pura e simples renúncia
governarnentalidade, a primeira sublevayáo, o primeiro confronto" 60 , isso a uma verdadeira atitude ética. A invenyáo de novas formas de vida semente
quer dizer que ética e política sáo absolutamente inseparáveis. a a
pode ser urna invenyao coletiva, devida multiplicayáo e intensificayáo das
Asubjetivayáo-sujeiyáo constituída pela ultrassubjetivayáo, devemos opor contracondutas de cooperayáo. A recusa coletiva de "trabalhar mais", ainda
a
urna subjetivayáo pelas contracondutas; governamentalidade neoliberal como que seja apenas local, constitui um bom exemplo de aritude que pode abrir o
maneira específica de conduzir a conduta dos outros, devemcis opor, portante, caminho para essas contracondutas: ela rompe o que o saudoso André Gorz
urna dupla recusa náo menos específica: a recusa de se conduzir em relayáo a denorninava com muita justiya "cumplicidade estrutural" que une o trabalhador
si mesmo como urna empresa de si e a recusa de se conduzir em relayáo _aos ao capital, na medida em que "ganhar dinheiro", cada vez mais dinheiro, é o
outros de acordo com a norma da concorréncia; Nisso, essa dupla recusá náo objetivo determinante de ambos. Ela abre uma primeira brecha na "coeryáo
está ligada a urna "desobediencia passiva'' 61 . Porque, se é verdade que a relayáo imanente do 'sempre mais', 'sempre mais rápido'"6 2 •

58
Ibidem, p. 196-7. A genealogia do neoliberalismo que ensaiamos nesta obra ensina que a
59 Ibidem, p. 205. nova razáo do mundo náo é um destino necessário que subju~ a humanidade.
60
Ibidem, p. 221, nota 5.
61 62
Atitude que seria como que o puro negativo da "obediencia passiva" aos poderes André Gorz, Ecologica (Paris, Galilée, 2008), p. 1 15 e 133 [ed. bras.: Ecológica, trad.
estabelecidos preconizada por Berkeley (De l'obéissance passive, Paris, Vrin, 1983). Celso Azzan Júnior, Sáo Paulo, Annablume, 201 O]. .
402 o A nova razáo do mundo

Ao conrrário da Razáo hegeliana, ela nao é a razáo da história humana; ela é,


de ponta a ponta, histórica, isto é, relativa a condü;:óes estritamente singulares
que nada permite que sejam pensadas como insuperáveis. O fundamental
- ÍNDICE ONOM~STlCO
é compreender que nada pode nos eximir da tarefa de promover outra
racionalidade. É por isso que a crenya de que a crise hnanceira anuncia por
sisó o fim do capitalismo neoliberal é a piar das crens:as. Talvez agrade aos
que pensam ver a realidade antecipar-se a seus desejos sem que precisem
mexer um único dedo. Seguramente conforta os que encontram motivo
nisso para congratular-se por sua "clarividencia'' passada. No fundo, é a
forma menos aceirável de renúncia intelectual e política. O capitalismo
neoliberal náo cairá corno urna "fruta madura" por suas contradiyóes in-
ternas, e os traders náo seráo a contragosto os "coveiros" inopinados desse
Aballéa, Fran<;:ois, 338 Bentham, Jcremy, 34,44-7,49-50, 58,60-
capitalismo. Marx já dizia com forya: ''A história náo faz nada" 63 . Existern
Adenauer, Koruad, 108,261-3 -2,64, 83, 94, 167, 175, 182,216-7,
apenas hornens que agern em condiyóes dadas e, por sua ayáo, tentarn abrir Agamben, Giorgio, 382;_386-7 220,291-5,299-300, 325, 358, 384
um futuro para eles. Cabe a nós permitir que urn novo sentido do possível Aglictta, Michel, 225, 280 Berkeley, Georgc, 400
abra caminho. O governo dos hornens pode alinhar-se a oturos horizontes, Albert, 11ichel, 258 Berlin, Isaiah, 47
alérn daqueles da rnaxirniza~áo do desernpenho, da produs:áo ilimitada, do And,~rsoh, Perry, 309
Bilger, Fran<;:ois, 112, 258
Aristóteles, 180 Bismarck, Otto von, 41, 121, 258
controle generalizado. Ele pode sustentar-se nurn governo de si rnesmo que
Aron, Raymond, 71, 99,383 Bhic, Tony, 234, 237-9,241-2, 304, 308-9
leva a outras relayóes corn os outros,- além daquelas da concorrencia entre
Blondiaux, LoYc, 390
Aubert, Nicole, 229, 363, 366
"atores autoernpreendedores". AE práticas de "cornunizayáo" do saber, de Bühm, Franz, 101, 105, 108, 111, 118-9,
Aubcey, Bob, 333-8, 346, 350
assisrencia rnútua, de trabalho cooperativo podem indicar os trayos de outra 165, 172, 185,269,378
Audier, Serge, 71-2, 75-6, 78, 80, 88, 391
razáo do mundo. Náo saberíamos designar melhor essa razáo alternativa Bolkestein, Frits, 247-9
Austin, John, 49, 167
senáo pela razáo do comum. Boltanski, Luc, 329
Bossuat, Gérard, 261
Bacon, Francis, 164
Brandt, Willy, 276
Balazs, Gabrielle, 365
Brown, Gordon, 204
Banco Central Europeu (BCE), 250-1, Brown, Wendy, 14, 20,377-8,382-3,
263
387,389
Banco de Compensa<;:óes Internacionais, Broyer, Sylvain, 113, 115, 120
279
Brunel, Valérie, 342, 344-5, 350
Banco Mundial, 194, 197-8, 204,275, Buchanan, James, 296, 299
283, 287, 311
Barre, Raymond, 99, 232, 255, 264
Cantillon, Richard, 151, 346-7
Barzelay, Michael, 296
Carlyle, 1bomas, 44
Basileia I, AcordÜs de, 280
Carnegie, Andrew, 54
Basileia II, Acordos de, 278, 280 Cassese, Sabino, 273, 290
Bastiat, Frédéric, 14-5,207 Castel, Robert, 230, 381
Beck, Ulrich, 347-8 Centro Internacional de Estudos para a
Becker, Gary S., 211, 21.4-5, 336 Renova<;::ío do Liberalismo, 72, 75
63 Karl Marx, CEuvres III (Paris, Gallimard, 1982, Cole<;:áo La Pléiade), p. 526. Bell, Daniel, 328, 355 Chadwick, Edwin, 221-¡ 403
404 " A nova razáo do mundo Índice onomástico "' 405

CÍ1auvet, Christophe, 293-4 Dewcy, John, 62 Fries, Fabrice, 265 Heidegger, Martin, 3~6, 398
Chémama, Roland, 370 Dixon, Keith, 237,240-1 Fundo Monetário Internacional (FMI), 20, Hirschmann, Albert 0., 381
Chesnais, Frano:;:ois, 200, 225 Dostaler, Gilles, 11, 58, 60, 163, 166, 185 29, 194, 196-8,204,282-3, 287 Hobb,, Thomoo, 49; 164, 166-7, 371
Chiapello, F-ve, 329 Dreyfus, Hubert, 191-2 Hobhouse, Leúnard, 60-2, 238
Chirac, Jacques, 249, 264 Drucker, Peter, -154, 224, 228 Gaeblcr, Ted, 306-7 Hobson, John Atkinson, 56, 60, 62-3
Chubb, john E., 224 Dufour, Dan y-Robert, 368-70 Galbraith, James Kenneth, 233, 272 Hofstadter, Richard, 51
Clarke, Peter, 62 Duménil, Gérard, 22-3, 195 Galbraith, Jolm Kenneth, 55 Honneth, Axel, 398
Clave, Francis Urbain, 99 Dumont, Louis, 65 Gamble, Andrew, 189-90,238 Hood, Christopher, 301, 309
Clinton, Bill, 307-8 Durand, Jean-Pierre, 338, 354, 363 Gauchet, Marcel, 38, 323 Hoover, Herbert, 74
Comissáo Europeia, 32, 239, 246-8, 265, Durkheim, Émile, 46, 51, 324, 393-4 Gaudin, Jean-Pierre, 275 Hufty, Marc, 311, 380
268,282,311 Gaulejac, Vincent de, 229, 363 Hume, David, 95, 164, 168, 173, 176
Comissáo Trilateral, 72, 194 Ehrenberg, Alain, 353-4, 366, 374 Gaulle, Charles de, 99, 264 Hume, LeonardJ., 293
Comire de Basileia para o Controle Ban- Élie, Bernard, 218 Gautier, Émile, 51 Huntington, Samuel, 194
cário, 279 Engds, Friedrich, 393 General Agreement on TJ.riffs and Trade Husserl, Edmund, 101, 112
Corrunun, Patricia, 101, 106, 111, 113, Erhard, Ludwig, 108-9, 112, 114, 116-8, (Gatt), 283
258-9, 267 120,122,256-7,259,261,263 Gewirtz, Sharon, 381 Illouz, Eva, 365, 367
Comte, Auguste, 37, 46, 50-1, 56, 82, 128 Escala de Chicago, 20, 218, 291, 391 Giddens, Anthony, 233¡ 237-40, 308 Instituto Internacional de Coopetaqáo
Comunidade Econ6mica Europeia (CEE), Escola de Manchester, 41 Gildcr, George, 206,211-2 Intelectual, 71
252,255,263 Etzel, Franz, 262 .G:irod, Antoni, 340-1
Comunidade Europeia do Carváo e do Ao:;:o Eucken, Walrer, 33, 101-5, 108-9, 111-4, Gist¡¡,rd d'Estaing, V~éry, 255, ~?4, Jobert, Bruno, 232, 289
(Ceca), 246, 255 132,157,247,249,256 Gleadle, Pauline, 352 Jorion, Paul,- 204
Considine, Mark, 222 Gollac, Michel, 227, 363
Ewald, Franyois, 230, 347, 349
Cornélius, Ndarine, 352 Kant, Emmanuel, 172-3, 257
Gore, Al (Albert Arnold Gore Jr.), 307-8,
Corte de Justiya Europeia, 246 310 Kelsen, Hans, 167
Faguer, Jean-Pierre, 365
Couppey-Soubeyran, Jézabd, 202, 279 Gori, Roland, 339, 354 Kessler, Denis, 230, 347
Faucher-King, Florence, 241-2, 300
Courpasson, David, 331 Gorz, André, 401 Keynes, John Maynard, 58-9, 62, 68,233
Fauroux, Roger, 31 O
Coutrot, Thomas, 227 Graz, Jean-Christophe, 276 King, Desmond, 273
Federal Reserve (FED), 201,281
Crouch, Colin, 382 Greenspan, Alan, 15, 281 Kirzner, Israel, 134, 140-l, 145-8,303
Ferguson, Adam, 95, 160, 162-4, 379
Crozier, Michel, 194 Greffe, Xavier, 296, 308-9 Klein, Naomi, 20, 194, 198, 287-8
Finger, Matthias, 311
Culpepper, Pepper D., 227 Grossman-Doerrh, Hans, 1O1 Klein, Rudolf, 289
Foessel, Michael, 361
Fórum Económico Mundial, 72 Grave, Andrew, 370 Klump, Rainer, 1O1
Darwin, Charles, 51-2, 54, 56, 166 Guattari, Félix, 355, 369
Foucault, Michel, 17-8,25-6,34,38,69,
Debouzy, Marianne, 40 79, 103-4, 106-9, 112, 123, 125, 127, La Boétie, Étienne de, 3 55
Defoe, Daniel, 151 132, 135, 164, 173-4, 181, 185, 191- Hadot, Pierre, 338, 343 Lacan, Jacques, 321-2, 368-70, 372
Dejours, Christophe, 362 -2, 216,242, 256, 268, 324, 334-6, Halimi, Serge, 195 Lallement, Michel, 227
Delanoe, Bcrtrand, 252 338-9,343, 357-8, 385-7, 391, 398-9 Laseh, Scott, 201
Hall, PeterA., 227
Deleuze, Gilles, 355-6, 369 Franck, Louis, 246,255, 275 Lascoumes, Pierre, 273, 303
Hardt, Michael, 287, 397
Delors, Jacques, 196,232,238,249, 267 Franldin, Benjamín, 332 Hawkins, Mike, 54 Laurent, Alain,. 15, 57,62-3, 100
Demailly, Lise, 338 Freeden, Michael, 37, 63,238 Laval, Christian, 397
Hayek, Friedrich, 33, 47, 71, 73,75-7, 79,
Dcnord, Franyois, 71, 76, 79 Freud, Sigmund, 360, 368 81, 94-5,99-100, 119-20, 125, 134-5, Lavergne, Bernard, 72, 75-6
Descartes, René, 164 Friedman, David, 182 138, 143, 149-50, 155, 157- Lavoie, Marc, 218
Desportes, Gérard, 390 Friedman, Milton, 150, 194, 205-9, 212, -85, 205,208,218,268-9, 299, 378, Le Coz, Pierre, 339,354
Destun de Tracy, Antoine-Louis-Claude, 217-9,223-4,303,383,391 383-4, 391 Le Gales, Patrick, 241-2, 273, 300, 303,
163 Friedman, Rose, 209, 212 Hayward, Jack, 289 317,380
406 " A nova razáo do mundo Índice onomástico • 407

Le Goff, Jean-Pierre, 289 Murray, Charles, 21 O Rocard, Michel, 310,390 Spencer, Herbert, 45-54, 64, 83, 88, 169,
Lebrun, Jean-Pierre, 327, 368-70 Museu Social, 72 Rockefeller, David, 194 207,241,377
Légeron, Patrick, 362 Rockefeller, John D., 54-5 Spitz, Bernard, 310
Lepage, Henri, 206, 208,210,298 Nasse, Philippe, 362 Rodrik, Dani, 198 Spitz, Jean-Fabien, 61
Lévy, Dominique, 22-3, 195 Nealon, JeffreyT., 399 Roosevelr, Franklin Delano, 74 Starbatty, Joachim, 257
Liberty and Property Defence League, 46 Negri, Antonio, 287, 397-8 Ropke, Wilhelm, 33, 71, 78-9, 92, 105-7, Steel, Ronald, 74
Linhart, Daniele, 338 Niskanen, William, 297-8 109-10, 114, 116, 120, 122-31, 157, Stigler, George, 150, 205
Lippmann, Walter, 58, 66, 73-5, 77-85, Nozick, Roben, 182 160, 205, 261, 388, 391 Stiglitz, Joseph, 13, 15, 198
89-99, 133, 157, 185, 211, 271-2 Rosa, Jean-Jacques, 298 Strange, Susan, 282
List, Friedrich, 41 Ohmae, Kenichi, 286 Rose, Nikolas, 332-3, 358-60 Strassel, Christophe, 258
Locke, John, 34, 132, 167, 169-70, 177, Organizas;áo para a Cooperas:áo e Desen- Rothbard, Murray, 134 Strauss-Kahn, Dominique, 252
182-4, 326,379 volvimento Económico (OCDE), 155, Rouban, Luc, 290, 318 Sumner, William Graham, 55
Longuet, Stéphane, 136, 184 197,246-7,274,282,308,311 Rougier, Louis, 71, 73-5, 77, 79-81, 84,
Lordon, Frédéric, 204 Organizas:áo Mundial do Comércio 86-8, 98, 104, 133, 185 Taylor, Michael W., 46
(OMC), 282-3, 287 Rousseau, Jean-Jacques, 55, 119, 392-4 Thatcher, Margaret, 15, 27, 185, 189, 194,
Malthus, "Ihomas, 52-3,241 Osborne, David, 306-7 201, 220,222, 237-8,242, 289,303,
Rueff,Ja¡;;ques, 71,75-8,99,221,253-5
Mandelson, Peter, 237 309,331
Mandeville, Bernard, 139 Palier, Bruno, 227 Théret, Bruno, 289
Sa'idane, Dhafer, 202, 279
Marliere, Philippe, 237, 309 Parisot, Laurence, 347 Tietmeyer, Hans, 120-2,261,264
Sainari, Gilles, 313
Marlio, Louis, 72, 75-6 Paye, Jean-Claude, 382 Tilliette, Bruno, 335, 338
Sairlt~Martin, Denis, 274, 288, 309
Marshall, Thomas Humphrey, 381 Pesin, fabrice, 258 Tocqueville, Alexis de, 42-5, 56, 194
Saint-Simon (Claude Henri de Rouvroy,
Martucci, Francesco, 253 Peters, B. Guy, 305 Tort, Patrick, 46-7, 52, 54
comte de Saint-Simon), 46, 393-4
M=, Kad, 19-21, 23, 25, 27, 323,356, Pezet, Éric, 339, 350-2 Tratado Constitucional Europeu (TCE),
Sarkozy, Nicolas, 13,233,310,314,361
368,397,402 Picq, Jean, 31 O 249-53, 264
Sauviat, Catherine, 225
Mauduit, Laurent, 390 Pierru, Frédéric, 313 Tratado de Maastricht, 251
Say, Jean-Baptiste, 14, 41, 151, 306
Mauss, Marcel, 364 Pignarre, Philippe, 366 Tratado de Roma, 120, 246, 251-3, 257,
Schalchli, Ulrich, 313
Melman, Charles, 368, 370-2 Pinochet, Augusto, 184, 383 262,265
Schmitt, Carl, 382
Mill, James, 44 Piro u, Gaetan, 74 Truchy, Henri, 76
Schrüder, Gerhard, 223, 233-4, 258
Mili, John Stmrt, 42-5, 56, 60-1,63, 82, Platáo, 339 Tullock, Gordon, 296-9
Schuman, Robert, 253, 261
169, 171, 194 Plihon, Dominique, 11, 193, 197, 199-200,
Schumpeter, Joseph, 147, 152-4 Unesco, 71
Mine, .Alain, 14 202,279
Schutz, Will, 344 Uniáo Europeia, 20, 29, 155, 247, 251-2,
Mintzberg, Henry, 315 Pobnyi, Kad, 19, 23, 47, 57, 63-7,76,
126,271,323 Seccareccia, Mario, 218 260-1,263,287
Mises, Ludwig van, 33, 73,75-9, 133-8,
140-6, 149-51, 155,205,208,214 Pollitt, Christopher, 290-1, 316 Senellatt, Michel, 106, 123 Uny, John, 201
Mitterrand, Fran<;ois, 243 Poncet, Jean-Frans:ois, 102, 112, 11.4,/256 Senghor, Léopold Sédar, 275 Uzunidis, Dimitri, 152
Moe, Terry M., 224 Power, Michael, 315-6 Senior, Nassau William, 221
Mongin, Olivier, 361 Sennett, Richard, 364-5 Varone, Frédéric, 302
Monnet, Jean, 261-3 Rabinow, Paul, 191-2 Silicani, Jean-Ludovic, 304-5 Véron, Nicolas,277
Mouhoud, El Mouhoub, 11, 193, 397 Reagan, Ronald, 15, 189, 194,209,211, Simonin, Laurence, 111, 117, 252, 267 Vinokur, Annie, 313
Movimento das Empresas da Frans:a 220,222,242,306 Smiles, Samuel, 332 Visscher, Christian de,- 302
(Medef), 230 Rey, Olivier, 372 Smith, Adam, 34, 42, 44, 53, 59, 104, Volkoff, Serge, 227, 363
Müller-Armack,.Alfred, 105,108,119-21, Ricardo, David, 41, 53 139, 151, 163-4, 179,379,381
123,257,262 Richet, Isabelle, 222 Sociedade Mom-Pelerin, 22, 71-3, 99, Wagner, Adolf, 56,
Murphy, Kevin M., 215 Robbins, Lionel, 76-7, 141, 146 120,184,205 Wagner, Peter, 259
408 o A nova razáo do mundo

Walras, Léon, 163, 275 Whitehead, Alfred, 143


Watanuki, Joji, 194 Wilkens, Andreas, 261-3
Weber, Max, 16, 19,226,232, 323, 330, Williamson, John, 197
334,354,367 Wright, Tony, 238, ÍNDlCE ANALÍTTCO
Welcker, Cad Theodor, 174 Wright, VinceJ;l_t, 273, 290

''A maior fdicidade para o maior número Capital


de pessoas", 63-4 e seg., 96, 293-4, -humano, 215, 365
325
regime de acumulayáo do-, 195-6,
Ayáo 199,202,385
-humana, 140 e seg. Capitalismo renano, 255 e seg., 259,
-pública, 272-5,278,288-9, 303 261-2
~conforme e náo:'conforme,-113 Catalaxia, 160
Accountability, 200, 301-2, 350 e seg. Cidadáo, 319
Adaptao;:áo, 89 e seg., 340, 343, 360-1 consumidor-cidadáo, 116 e seg., 320
Agenda, náo agenda, 58-60, 69, 273, 278 Cidadania, 380
Agente racional, 298-9, 313 -civil, 381
Anarcocapitalismo, 134, 181-2 - política, 381
Arre de governar, do governo, 37, 311-2 -social, 381
Artifício, artificialismo, 105, 161 Civilizaqáo, 44-5, 95, 143, 168
Ascese, 337 Coeryáo, 168 e seg.
ascetismo, 333-4, 355-6 Coletivismo, 73, 93, 97, 107, 123 e seg.
asceses do desempenho, 338 e seg. Common Law, 94 e seg., 167
Auditoria, 301-2,315,317 Comum
Autocontrole, 228-9, 279 razáo do-, 402
Autorregulao;:áo, 278 comuniza¡¡:áo, 402
Avaliao;:áo, 21.7, 225-6,229,281,296-7, Concorrencia, 53-4, 123, 135, 153,223-4,
304-5,314-7 226-7,239-40, 246, 250-2,265-7,
290, 298-9, 303-5, 377
Bem comum, 183 - das legislayóes, dos sistemas institu-
Benchmarking, 227-8,277,302,312 cionais, 263, 266-8
Blairismo, 233 e seg., 308-10 direito de-, 265-6
Burocracia, 208-10,232,296-301,307, ordem de-, 102\ 110
318-9 Concorrencialismo, 50-6, 135, 246
Conhecimento, teoria do, divisáo do, 143,
Cákulo,214-5, 218-9, 291-6, 300-1 163
41 O • A nova razáo do mundo Índice analítico "' 411

Cünscrvadorismo, neoconservadorismo, -privado, 118-9, 165 Ethos (da autovaloriza¡¡:.io), 333 Homoagem, 140,146
84, 189-90, 289-91, 388-91 -público, 107, 119, 165,278,289, Europa, 245 e seg. -calculador, competitivo, produtivo,
Consumo, consumidor, 214-5,223-5, 378 e scg. Evoluyáo, evolucionismo, 165-6 322
303-4,307,320 Divisáo do trabalho, 53, 89-90 - econ6mica, 153 - eficaz, 327
Constitui¡;:áo econ6mica, 110 e seg., 249-7, Dümínio de si, 336-7, 3.41 Excesso de si, 357
250-5, 364,366 Ideologia
Excrcícios, 339 e seg.
Construtivismo, 164, 182 amálgama ideológico, 388-9
Economía política (ciencia da), 214-5
Contraconduta, 397 e seg., 399-401 -e racionalidade, 230-2, 387-8
Economía social de mercado, 119 e seg., Finanyas, financeüizayáo, 199-205, 225-6,
Contrato, contratualismo, 51, 69 253, 257-9, 264 279-82 luta ideológica, 150, 205-9
contratualizayáo, 324 Eficácia, 273-5 Ingeréncia, 87, 134
Funyáo pública, 206, 289, 306, 319
Cosmo Eficiencia, 178, 312 lnovayáo, inovayáo schumpeteriana, 154
Funcionário público, 297, 315, 317
do mercado mundial, 343, 356-7 Egoísmo, 291-6,298-9,313 lnteresse(s), 293-5, 320
Forma
Emprego, empregabilidade, 220-1 harmonizayáo dos-, 295
- de vida, 367
Darwinismo, darwinismo social, 50-2, Empresa, 40, 225-9, 378, 288-91 prindpio de junyáo dos-, 294-5,299-
54-5, 130-1 -300
cultura da-, 151,289,328 Gestáo (management), 40
Democracia, 58-9, 194,269,299-300, Interferencia, 136
empreendedor, 300, 306 - da alma, 342 e seg.
317 Intervencionismo
empreendedor de si, 333 e seg. gercncialismo, 290,317
desdemocratizayáo, 382 - administrativo, 80
empreendedorismo, 144-6 "nova gestáo", 226~9
-do consumidor, 137, 142, 319-20 crítica do, 136
entrepreneurship, 134, 145, 147 nova gestáo pública, 331-2,240-1,
-liberal, 323, 379 e seg. - de Estado, 73
espírito de-, 131-2 ·274; 290 e seg., 3.01 e ~eg.,jl2 e seg., - judidário, 181
- totalitária, 184, 383
pequena -, 128 e seg. 317-20
Depressáo, sin toma depressivo, 366 e seg. - juridico; 75, 80, 86
-de si, 333 e seg. Governanya
Desejo, 328, 333, 360 -liberal, neoliberal, 76, 85-6, 87-8
Epimeleia, 336 -de empresa, 200, 275-8
Desempcnho (peiformance), 290, 302, Escolha, liberdadc de escolha, 216, 223,
305,314,317-8 -de Estado, "boa governanya", 275-7, Justi\a comutativa, 180
304-5 290, 311, 380
Desenvolvimento pessoal, 341, 345 -distributiva, 180
Esferas de vida, 322 e seg. -mundial, 277 e seg., 286-8 -social, 159, 180
Desregula¡;:áo, 202, 279 Esporte (modelo do), 354 Governo
Desregulamentayáo, 197, 279, 281-2 Esquerda moderna, neoliberalismo de auto-, 140 Keynesianismo, 59, 233, 236, 246, 259
Despotismo, 43, 172-3 csqucrda, 51 e seg., 233 e·seg., 245,
-dos homens (e administrayáo das
Dessimbolizayáo, 368-70, 373 273,291,308-10
coisas), 391-2, 393-5 Laissezfaire, 57-9, 64-8, 81, 158, 191,
Destruiyáo criadora, 153 Estado
- dni, 131-2, 144,339,395-6 253, 281-2
Dever, 295 - bolsista, 204
- empresaria1, 305-9, 313 free trade, 41, 104
Diagnósticos clínicos (do neossujeito), 361 -dedireito, 103,171-5 Lei(s)
e seg. instituiyáo e atividade do-, 391-2
-de bem-estar, 192, 209-15, 289-91, -de evoluyáo, 46-7, 50-3
Disciplina, sistema de disciplinas, discipli- 292,297 Governamentalidade
- da natureza, 48
namento, 197, 215-6, 220-1, 225-6 -forre, 97 e seg., 157, 182, 190, 311 -de esqucrda, socialista, 391 e seg.
Liberalismo
Dispositivo - neoliberal, 204, 278 -e pastorado, 387, 399
- construtor, 74, 85, 87, 124, 131
caráter estratégico do-, 385-6 -social (we/fare), 121, 128 -e soberanía, 391-3
crise do -, .70
-de eficácia, 357 e seg. Estratégia(s), estratégico, 191 e seg., 217 natureza da-, 296
-económico (e político), 37 e seg.,
-de dcsempenho/gozo, 353 e seg. Ética - neoliberal, 280, 378, 365-6 66-7,281-2
- globru, 384 -da conversáo, 334 Gozo de si, 372 e seg. -novo (e reformador), 56-63, 68
Direito -da abnegayáo, 334 -social, 72
-civil, 95 -do trabalho, 334 Hibridayáo, 277-82 -sociológico, 124, 131
-penal, 165 e política, 400-1 Homero ultraliberalismo, 390-1
412 "' A nova razáo do mundo Índice analítico "' 413

Uberdade(s) individual(ais), 142, 148, - monetária, 196, 199, 218-9, 264 Soberania, 183-4, 275-7 Quadro
168, 170,384 -reguladora (e de ordenayáo), 113-5 Subjctivayáo -eprocesso, 111,113
Libertarismo, libertaristaB, 391 Poder autossubjetivayáo, 356-7 -institucional, 102
Limite, limitayáo, 174 e seg., 195 - supremo, 183-4 - financeira, contábil, 201, 351-2 -jurídico-político, 105
Praxeologia, 142_ e seg. transubjetivayáo, 356-7
Mais-de-gozar, 355-6 Principios ulrrassubjetivayáo, 356-7, 372 Taxis (e cosmo), 161
Máo invisível, 164 - constiruintes, 113 Subsidiaridade (principio de), 109, 129-30, Técnica de si, 344, 352
Mercado - reguladores, 115 257 Terceira via, 124-5, 130-1,233 e seg., 313
coordena¡¡;áo do -, 146-7 Pdvatizayáo, 191, 197, 202-3,271 Sujeito, subjetividade Thesis (e nomos), 165-6
equilíbrio do-, 135 Propriedadc - econ6mico, 140 Traca (e concorrenda), ·111
processo de-, 139 e seg. conceito de-, 170-1 - neoliberal, 322 e seg.
-de trabalho, 220, 222, 235 direito de-, 45 - neossujeito, nova subjetividade, 326-8, Utilitarismo, 46-8, 63
- comum, 246, 261-3 361 e seg. Utilidade (princípio de), 50, 293, 326,
proprietádo, 128-9
-institucional, 253-5 - plural, 322 e seg. 357-8
-de si, 132
-político, 297-9 - político, 320
Psicanálise, 321, 360,372
mercadorizayáo (marketization), 202, - produtivo, 324 e seg. Valor acionádo, 200, 351-3
"Psi" (discurso), 357 e seg.
275,304 Superayao de si, 343, 356-7 Valorizayao de si, 340
Public Choice, 232,291,296-302,318
Maximizar, maximizayáo, 141, 145,294 Vigiláncia, 293-7,315,413
Mundo da vida, 379 Racionalidade
Monetarismo, 200, 218-9
-global, 191, 241-3, 390
Movimento, contramovimento, 63 e seg.
-política, 190
Razáo-mundo, 381
Naruralismo, 73 e seg.
Reconhecimento
Nomocracia (e teleocracia), 162
demanda de -, 368
Nova direita (New Right), 190, 273, 290-1
-de si, 397-9
Reduyáo eidética, 112
Objetalizayáo, 371
Regras
Ordem
- abstratas, formais, gerais, 162, 164,
-e ordenayáo, .101-2 169-70, 174-5
-quadro, 119 -de conduta, 118-20, 169-70
- espontiinea, 160 e seg. - do Estado de dir~ito, 174-5
Ordoliberalismo, ordo, ordoliberaís, 101 e regulayáo, 193-9
"8" 157-9, 246-50, 255-60, 265-9
Responsabilidade, responsabilizayáo, 212-3,
Organizaqáo, 161, 165 221-2,230-1,238-9
Risco, sociedade do, 86-7,346-9
Paixáo(óes), 169
Panóptico, modelo, sistema, 294-5 Self-help (autoajuda), 332
Perversáo comum, 370 Social-democracia, social-liberalismo,
Pleonexia, 371 389-91
Política Sociedade
- de sociedade, 106, 122 e seg. -de direito privado, 118-9, 165,
-de quadro, 265 268-9, 378
-económica, 106, 193, 198-99 "grande sociedade", "grande associa-
-liberal, 158 'áo", 92-3, 98-9
' o e;: A o

ESTADO~de SiTIO
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Foucault, meme brilhante e inquieta na busca das razóes e
desrazóes do mundo contemporiineo, este livro foi composto
em Adobe Garamond Pro, corpo 10,5/13,5, e imprcsso em
papel Avena 70 g/m 2 peh gráfica lntergraf, em abril, para a
Boitempo, com tiragem de 3 mil exemplares.

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