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VIDYA, v. 29, n. 2, p. 71-86, jul./dez., 2009 - Santa Maria, 2010.

ISSN 2176-4603 X

RITOS E RITUAIS - VIDA, MORTE E MARCAS CORPOR AIS:


A IMPORTÂNCIA DESSES SÍMBOLOS PAR A A SOCIEDADE
RITES AND RITUALS – LIFE, DEATH, BODY PAT TERNS:
THESE SYMBOLS AND THEIR IMPORTANCE FOR SOCIET Y

PATRÍCIA REGINA CORRÊA DIAS*

RESUMO ABSTRACT

Embora existam provas de que a prática dos It may be proved that the rituals practice happens
ritos/rituais acontece desde os primórdios, ainda from the beginning. Today is a lit tle scientific
hoje é uma área de pouca exploração científica, exploration area, with taboos, prejudices and
cercada de tabus, preconceitos e deduções. deductions. Therefore this paper resumes some
Por esses motivos, este ar tigo retoma leituras de impor tant anthropology’s scientist lectures,
cientistas da antropologia, tais como Cazeneuve Ca zeneuve (s/d), Gennep (1978) and Malinowski
(s/d), Gennep (1978) e Malinowski (1978) para (1978) to show that beliefs, rites, rituals and
demonstrar que as crenças, ritos, rituais e cultos cults are make and felt by dif ferent ways and
são efetivados e sentidos de diferentes formas e they contribute for people’ education, social’s
contribuem essencialmente para a formação e knowledge and representations are increased
educação das pessoas. Através deles, elaboram- by rites.
se conhecimentos, ampliam-se representações.
Key words: rites/rituals; anthropology; social
Palavras-chave: ritos/rituais; antropologia; symbols; society.
símbolos sociais; sociedade.

* Graduada em Língua Por tuguesa pela FAFI-BH; Pós-graduada em Língua Por tuguesa pela PUC-Minas; Mestre em
Educação pela PUCMinas/Bolsa CAPES; Docente do Instituto Superior de Educação Anísio Teixeira/Fundação Helena
Antipof f, em Ibirité, MG.

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INTRODUÇÃO atreladas à religião desses mesmos grupos.
O rito, então, não é uma celebração fechada no
A prática dos rituais ocorre desde os tempo e no espaço, antes, porém, transcende
primórdios. Sua impor tância reside no seu as delimitações físicas dos locais onde
desenvolvimento e imposição silenciosa aos acontecem. Assim, torna-se impor tante ampliar
par ticipantes, em sociedades simples ou conhecimentos acerca do campo ritualístico na
complexas. Sua aceitação e repetição é uma escola, pois desconhecê-lo significa ignorar a
demonstração da própria necessidade de sua sua rica demanda cultural.
existência, sendo que a polissêmica significação As instituições das quais os jovens fazem
desses eventos pode ser explicada pelas par te, tais como a igreja, a família, a escola,
características, necessidades e evolução de os grupos de amigos, determinam seus papéis
cada sociedade. e se reafirmam através dos ritos e rituais, ou
Não se pode negar a eficácia do ritual seja, determinados símbolos são precípuos à
para demonstrar sentimentos coletivos, como vida social dos indivíduos.
símbolos míticos, ou determinadores de alguma
essência religiosa. Sabe-se, entretanto, que as DA NATUREZA POLISSÊMICA DOS RITOS E
crenças, ritos, rituais e cultos são efetivados RITUAIS
e sentidos de diferentes formas e contribuem
essencialmente para a formação e educação Durkheim (1978, p. 206), ao se referir
das pessoas. Através deles, elaboram-se às sociedades mais simples, destaca o
conhecimentos, ampliam-se representações. fato de que os ritos considerados bárbaros,
Na sociedade, o envolvimento com as diferentes e bizarros, traduzem, em sua
intenções veladas das pessoas se dá pelos essência, necessidades humanas aplicadas à
símbolos que elas usam no seu cotidiano. vida social:
Ampliar estudos sobre eles, na escola, significa
Por mais simples que seja o sistema
enveredar por um mundo superficialmente que estudamos, nós reencontramos
conhecido, pois a simbologia cultural é ampla e nele todas as grandes idéias e todas
pesadamente subjetiva. Será possível descobrir as principais atitudes rituais que estão
o verdadeiro significado de determinadas na base das religiões mais avançadas:
distinção das coisas em sagradas e
subjetividades no contex to escolar? profanas, noção de alma, de espírito,
Essa pergunta se liga a asser tiva de que em de personalidade mítica, de divindade
diferentes instâncias, como a família, a igreja e a nacional e mesmo internacional, culto
negativo com as práticas ascéticas
escola, as pessoas, a qualquer tempo, carregam
que são sua forma exasperada, ritos de
consigo sua natureza simbólica. Dessa maneira, oblação e de comunhão, ritos imitativos,
para conviverem em sociedade, serão, de cer ta ritos comemorativos, ritos de expiação.
forma, influenciadas pelos rituais no contex to Aqui nada falta de essencial (DURKHEIM,
1978, p. 221).
onde vivem. Durkheim (1978) afirma que os
ritos nascem nos grupos e suas funções são Ca zeneuve (s/d, p. 27), ao se referir
fazer emergir, manter ou recriar cer tas ideias à impor tância dos estudos ri tualísticos,

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aponta-os como solução a alguns problemas e repassados, de indivíduo para indivíduo,
sociais fundamentais, porque toda a condição de geração a geração, por outros modos de
humana1 é exposta aos ritos e rituais. O rito é, conhecimento que não são, naturalmente, da
para ele, uma ação seguida de consequências teoria para a prática, mas sugere ser o contrário.
reais – é uma linguagem e algo mais do O ato ritual par te da prática vivenciada para a
que isso. Obedece a uma lógica, tem uma teoria/interpretação. E isso faz dele sempre um
finalidade, estrutura e causa, e acrescenta um símbolo a ser absorvido por novos indivíduos
resultado real aos par ticipantes, sendo que em novas épocas, sucessivamente.
sua evolução pode ser lenta e imperceptível, Cazeneuve (s/d, p. 18-19) reflete: por
de maneira que uma mudança brusca na que recorremos à linguagem ritualística,
sociedade pode fazer desaparecer todo um aparentemente insensata, ao invés de recorrer a
conjunto ritual e fazer aparecer outro que, por outras linguagens? Por que existem os ritos e
sua vez, se manterá, repetindo-se. o que há neles que os tornam insubstituíveis e
Pela repetição e rigidez para a mudança, os faz com que sejam repetidos por tanto tempo?
ritos acabam por constituir um fenômeno social Seriam eles solução para algum problema social,
para pesquisa rico e, muitas vezes, indiscutível. e, por tanto, dotados de tanta impor tância?
Entretanto, um determinado rito observado em Perguntas aparentemente simples e corriqueiras,
cer to lugar pode ser (re)significado por novas mas que, numa segunda leitura e sob outros
observações fora dos modelos sociais em que olhares, com cer teza, traduzem em sua
nasceu, se desenvolveu e foi realizado durante simplicidade linguística grande complexidade
um espaço de tempo, pois as interferências social, histórica, subjetiva.
da vida humana transformam as condições de Para Lima-Mesquitela, Mar tinez e Lopes-
vida de determinado povo, e essas mesmas Filho (1991), são funções dos ritos manter
interferências refletem na prática ritual. Um rito, a cultura integrada e estabelecer ligações
então, com o passado dos indivíduos envolvidos,
para que eles possam reviver determinadas
Parece ser uma noção que se repete
segundo regras invariáveis onde não
experiências já vividas por seus antepassados.
se vê que o seu cumprimento produza Sem a repetição das experiências, muitos
efeitos úteis. Ele é também um acto significados podem ser esquecidos no
cuja eficácia (real ou pretendida) não decorrer do tempo. Ao se repetirem, mantêm e
se esgota na ligação empírica das
causas e dos efeitos. Se ele é útil, estabelecem uma coerência dentro da cultura
não pelas vias puramente naturais e é e ao mesmo tempo ajudam-na a funcionar
por aí que ele se diferencia da prática harmonicamente. Afirmam, também, que
(CAZENEUVE, s/d, p. 13).
os sistemas de rituais existem em todas
as culturas, e, entre todos os significados,
Não ser útil pelas vias puramente naturais
o mais impor tante será aquele gerado na
significa que os ritos são apreendidos, repetidos
1
Por condição humana entende-se o conjunto das determinantes que se impõem ao indivíduo, isto é, o condiciona-
mento geral ou a totalidade das condições a que a sua acção está sujeita e que limitam o campo do seu livre arbítrio
ou da sua indeterminação (CAZENEUVE, s/d, p. 23).

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cultura de origem do indivíduo. Para esses Tosta (1997), ao pesquisar sobre os
autores, os rituais e suas significações são de integrantes de duas Comunidades Eclesiais de
natureza emocional, pois provocam reações Base do bairro Petrolândia, em Contagem, Minas
semelhantes nos indivíduos de um mesmo Gerais, Brasil, evidencia vários posicionamentos
grupo, se configurando em maneiras próprias daqueles grupos a respeito da missa e do
de ver o mundo, de agir e pensar coletivamente. culto. Duas das falas dos próprios atores
No entanto, os sistemas de sinais na sociedade determinam a missa como “o fato central da
não podem ser confundidos unicamente com experiência religiosa, pois nela é possível
mudanças corporais e psicológicas, pois celebrar fé e par tilha com o Deus” (TOSTA,
fazem par te da individualidade das pessoas 1997, p. 302). O momento da comunhão
(LIMA-MESQUITELA; MARTINEZ; LOPES- é, então, quando ocorre uma inversão de
FILHO, 1991, p. 137-138). papéis entre Deus e o fiel. Isto é, um ocupa
Por sua vez, o rito funciona como um o lugar do outro na medida em que durante
conjunto de regras estabelecidas pelo culto, a comunhão Deus vem ao encontro do fiel
sendo esse último a expressão coletiva de (na Terra) e o fiel vai ao encontro de Deus
adoração e veneração de uma divindade (LIMA- (no céu) e ocorrem manuseios de objetos
MESQUITELA, 1991, p. 141); religião e magia sagrados para esse fim, afirma a autora, ao
são fenômenos inventados pelos humanos citar Da Mat ta (1990).
numa tentativa de controlar o Universo, porque Ao frequentar a missa e o cul to, os fiéis
as religiões apresentam uma série de tabus estão assumindo os ri tuais executados na
irrecusáveis aos seus seguidores. A religião igreja como uma narrativa repeti tiva, que
seria uma forma de reconciliação, pois é uma carrega o sentido de reforçar a memória de
expressão de desejo, ou de agradecimento quem par ticipa e demonstra a naturalidade
e a magia tende a forçar a natureza e seus e gosto das pessoas ao par ticiparem desse
efeitos (LIMA MESQUITELA, 1991, p. 140). ritual. Essas ideias se traduzem nas falas
Na religião, encontram-se práticas grupais e dos fiéis:
práticas individuais, das quais se destacam:
a gente vai à missa também pelo ritual,
a crença em seres sobrenaturais, a pois a gente busca o que já sabe. Na
personificação de fenômenos naturais, missa está se repetindo uma cer ta
o culto de antepassados, o medo dos história (sic) que a gente já sabe,
sonhos, etc. A religião pressupõe mas a gente precisa ouvir e quer ouvir
normalmente uma igreja, o que faz que também (TOSTA, 1997, p. 306).
a grande maioria das práticas religiosas
sejam práticas sociais ou de grupo
Essa proposição sugere a presença
(por exemplo as procissões, missas
e peregrinações do nosso catolicismo de uma ação consciente do indivíduo ao
tradicional); porém, não é raro que par ticipar dos cultos, o que pode parecer
muitos devotos mantenham uma mais do que a vontade de tentar controlar
relação individualizada com o sagrado
através de orações e outras formas de o universo, mas antes uma admiração à
prece (o rosário por exemplo) (LIMA possível inversão do papel fiel x Deus. Não
MESQUITELA, 1991, p. 140).

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quer dizer, contudo, que o fiel se torna um metimento interior com os valores e
idéias que estão sendo expressos. [...]
Deus capaz de controlar o que lhe convém,
Ao banalizar os rituais, relegando-os a
mesmo de maneira imaginativa, no entanto, um aspecto super ficial, eles continuam
a troca temporária de papeis ocorre dentro a subestimar a primazia do ritual na so-
de lugar específico para ele, nesse caso, o ciedade contemporânea. Tal perspecti-
va, se não for impedida, poderá varrer
templo. Seguindo esse raciocínio, cabe-nos o conceito de ritual para fora do campo
descrever o tempo como o espaço destinado de consideração científica (MCLAREN,
para a troca entre o sagrado e o profano. 1992, p. 50-51).
Estar ali permite ao fiel, mesmo que seja
Não se trata de combinar gestos mecânicos
temporariamente, rever ter sua condição
sem uma interiorização, mas sim a par tir
de simples ser humano para a poderosa
de ações hereditárias do grupo ao qual o
condição de ser um Deus, embora humano.
indivíduo faz par te, compreender que aqueles
Mesquitela (1991) e seus coautores
gestos são impor tantes para a própria
afirmam que, para o funcionamento harmônico
sobrevivência do grupo. Por sua vez, os
da sociedade e da cultura, as simbologias
gestos e atitudes, por não serem aleatórios,
são repetidas por seus integrantes, época obedecem a determinadas regras e arranjos.
após época. Ritos e rituais diferentes para Nesse sentido, o rito ultrapassa as barreiras
conviver com situações naturais. Entretanto, sociais e invade o terreno religioso e das
sentimentos tão inerentes e comuns a todos crenças, ao se aproximar do culto.
nós são explicitados por meio de rituais de Em Mapinhane, Moçambique, África, um
passagem da vida carnal para espiritual. ritual comum é o Nza ku bonga,marcha e um
Outras significações são trazidas para gesto de agradecimento a Deus por ter criado o
os rituais por intermédio de tarefas, como homem. Ele acontece, normalmente, na Igreja
danças e adivinhações, lendas, enigmas, após receberem o Corpo de Cristo (Ação de
provérbios, sentenças e mitos. O que delega Graças) ou em outros momentos sagrados,
aos ritos não apenas dor, como no caso da por exemplo o batismo ou o casamento: Eu te
circuncisão (incisão) ou no caso da tatuagem, agradeço, Senhor/ O que Te darei?/ Oh meu
do piercing, dos alargadores de orelhas. Senhor!/ Deste-me os pais, Senhor/ O que Te
Todavia, sob outras leituras e teorias, teóricos darei?/Mostras-me sinais, Senhor/ O que Te
podem estabelecer conexões diferenciadas darei? (ADGENTES – LEIGOS MISSIONÁRIOS
sobre os rituais. Segundo MC Laren: DA CONSOLATA, 2008, faixa 5)2.
No Brasil, um dos rituais vividos na maioria
Os cientistas sociais da linha dominante
das Igrejas Católicas é a Missa em Ação
tendem a assemelhar ritualista a uma
conceituação pálida de alguém que de Graças. Nesse ritual, notam-se gestos
executa gestos ex teriores mecânica e semelhantes aos dos africanos, tais como as
per functoriamente – sem um compro- músicas entoadas para louvar e dar graças ao
2
Nza ku bonga Hosi Dadani/Nzi ta ku nyika a yine ke?/ We hosi ya mina/ A vapwali u nzi nyikeleko Hosi (Nzita ku
nuyika a yine ke?)/ Zikombiso u nzi kombako Hosi (Nzita ku nuyika a yine ke?) (ADGENTES – LEIGOS MISSIONÁRIOS
DA CONSOLATA, 2008, faixa 5).

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Ser Supremo, os cantos de entrada, de louvor, como batismo, aniversários, casamentos,
ofer tório e comunhão. Esses cantos podem mor te e funeral.
ou não ser acompanhados de dança. Nos dois Os Vatswa de Mapinhane, Moçambique,
rituais citados, o significado contido em Nza durante o ritual da “missa de corpo presente”
Ku Bonga: Agradeço a Deus e o Supremo e cantam muito. Eles entoam hinos antes,
seus símbolos, o corpo de Cristo (hóstia) e o durante e depois de o corpo chegar na igreja.
sangue/vinho e a promessa de repetir o ritual São cantos que aparentemente significam o
da comunhão em nome D’ Ele, em memória lamento da mor te. Numa cerimônia desse
D’Ele. Repetindo tais ritos contidos no ritual tipo em Mapinhane, em 17 de junho de 2008,
da missa, os fiéis podem ser aceitos no destacaram-se as capulanas4, indumentárias
Reino dos Céus, como reza a liturgia católica. próprias da cultura. Por seu uso e as
Tosta (1989, p. 64), ao mencionar aspectos diferentes formas como as pessoas se
litúrgicos da missa, afirma: relacionam com ela, a capulana demonstra
e revela uma maneira de ser de um povo
a missa se constitui no momento peculiar e rico em tradições.
privilegiado, ao mesmo tempo em que
o mais tenso da Instituição Católica,
Outra demonstração carregada de
através do qual ela reafirma seus peculiaridade é o culto aos mor tos. O respeito
princípios e seu papel na sociedade. ou a tristeza pela mor te Mapinhane se nota no
Privilegiado, na medida em que é um olhar desse povo e em seus silêncios. Povo que
espaço de arregimentação e de reunião
de fiéis em um ritual repetitivo, diário,
já conviveu com a guerra étnica (por tugueses e
no qual a Instituição afirma e reafirma moçambicanos); a guerra civil (moçambicanos
seus significantes (TOSTA, 1989, p. 64). da FRELIMO x RENAMO)5 e, mais recentemente,
a guerra contra a fome, a SIDA (Síndrome de
Segundo Van Gennep (1978), a sociedade Imunodeficiência Adquirida), as DSTs (Doenças
geral possui sociedades autônomas cujos Sexualmente Transmissíveis), o analfabetismo,
contornos são definidos pelo grau de a malária. Normalmente, as pessoas são
civilização. Exemplificando, esse autor cita as enterradas nos terrenos onde moram e,
sociedades leigas, as religiosas, a nobreza, geralmente, elas escolhem o lugar onde querem
as finanças e as classes operárias. Para ele ser sepultadas.
(GENNEP, 1978, p. 26), nas sociedades menos
evoluídas3, o mundo sagrado se sobrepõe O corpo do homem, morador da região
de Mujavange, chegou acompanhando
ao profano em praticamente todos os atos por um ancião. Foi colocado ao chão,
sociais, como nascer, casar, plantar, morrer... em frente ao altar da igreja, enquanto
pois as bases essenciais desses atos são todos cantavam. A biografia do mor to
religiosas. Por tanto, são marcadas por ritos, foi lida pelo filho dele, em Língua
Por tuguesa, enquanto o ancião traduzia
3
Categoria utilizada por Van Gennep para definir as sociedades onde o mundo sagrado predomina sobre o profano
(GENNEP, 1978, p. 26).
4
As capulanas, em Moçambique, são panos com valores simbólicos. Dentre suas utilizações, destacam-se o
casamento, o funeral e o batismo.
5
FRELIMO: Frente Liber tadora Moçambicana e RENAMO: Resistência Nacional Moçambicana (HERNANDEZ, 2005, p. 607).

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para a língua Xi-tswa. Uma missa foi e o invisível. Por isso os defuntos continuam
rezada em Xi-tswa e logo após o corpo
per tencendo à família. Eles os enterram
foi levado para o terreno da família. Os
homens, amigos da vítima, carregaram próximos as casas, para dar continuidade
o caixão para colocá-lo no carro que o aos dois mundos, e consideram que,
transpor taria, em seguida. As mulheres, como são membros da família, podem,
atrás, seguiam em silêncio.6
inclusive, influenciar na vida da comunidade
A mor te e os rituais fúnebres significam (MARTINEZ, 2005, p. 225-226).
muito para eles e são transmitidos por seus Os parentes, vizinhos e conhecidos
antepassados, fazendo-se notar, agindo par ticipam do cor tejo fúnebre. Um pequeno
pesadamente sobre a realidade daquelas grupo fica em casa, cuidando da limpeza
pessoas. Há muito medo refletido no e preparando a refeição para os que
depoimento de um morador da região: acompanham o falecido no enterro. Par te da
comida pode ser preparada em alguma casa
Para o africano, a mor te assusta muito. vizinha. O cadáver é envolto em um pano
Segundo o que pensamos, devemos
nos dirigir para a casa daquela pessoa.
branco e colocado em um caixão de madeira,
É alguém que nem todo o dinheiro do revestido com pano negro. Chegando
mundo pode comprar. A vida é surpresa, no lugar preparado, o chefe da família é
por isso, a mor te, para nós, também
o primeiro a se aproximar da cova, para
é uma surpresa. Na África do Sul,
compra-se o caixão. Quem trabalha nas receber o defunto, acompanhado de duas
minas tem... nós fazemos uma retirada a três pessoas. Junto ao defunto, colocam-
atrás do mor to e então seguem nossos se alguns objetos usados por ele durante
rituais (Sérgio, morador da região,
18/06/08). sua vida e algum per fume ou talco. Depois
de colocar o caixão na fossa, o chefe da
O exemplo determina um conceito família deposita um pouco de terra, seguido
próprio do envelhecimento, admiração e por pessoas da família, sempre em ordem
respeito aos anciãos. É um ideal, uma meta hierárquica, do mais velho para o mais novo.
que todos desejam alcançar. Nesse período, Antes de saírem, evoca-se a proteção dos
a pessoa tem condições de avaliar o que fez antepassados. Terminado o enterro, seguem
durante a vida, se foi uma pessoa produtiva, para a casa do falecido. Alguns queimam
teve filhos, foi bem sucedida socialmente, o er vas junto à cova e evocam proteção,
que lhe resta é somente esperar uma vida erguendo-as aos quatro pontos cardinais e
próspera junto de seus antepassados, ou pedindo que nada de mal aconteça naquela
seja, a mor te. região (MARTINEZ, 2005, p. 231).
Sobre os significados da mor te, Mar tinez Em São José de Mapinhane, paróquia
(2006, p. 225-226) afirma que, para os da Missão de Mapinhane, por exemplo, a
Vatswa, ela é o tempo de plenitude, a missa, mesmo estando calcada nas regras
continuação entre os dois mundos: o visível da Santa Sé em termos de li turgia, é rezada

6
Registro de campo, Mapinhane, 19/06/08.

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em dois idiomas: X i-tswa e Por tuguês. da crença, amigos, parentes, vizinhos que
Os cantos são entoados em X i-tswa e o há muito não se viam, numa opor tunidade
celebrante e tradutor, na maioria das vezes, de “parar” a vida e refletir sobre a mor te, ou
é um morador da região. Na igreja são sobre a vida. Inclusive a do mor to.
resolvidos, após a missa e publicamente, Retornamos, agora, às obser vações
problemas da vila (escola, igreja, jovens, de Ca zeneuve (s/d), pois até aqui as
crianças), de maneira que ali a igreja complex idades simbólicas e linguísticas
mantém uma função social e não puramente são evidentes e se traduz em em duas
religiosa e ritualística. maneiras de se tratar um cadáver, que para
No Brasil, para os fiéis da religião católica, mui tos, não passa de uma massa corporal
o ritual das exéquias, como é chamado pela iner te e sem vida. Poderia, nesse caso,
Legislação Diocesana (GOUVEIA, 1994, p. 1), ser tratada de qualquer forma. Por que os
é um momento de consolação e de esperança. homens, então, preferem repetir as práticas
Consolação porque o defunto, incorporado simbólicas na sociedade?
pelo Batismo em Cristo, passa da mor te à Na definição de Gennep (1978), as
vida, é purificado e seu corpo aguardará a sociedades menos evoluídas (GENNEP,
ressurreição dos mor tos. 1978, p. 26) são aquelas em que o mundo
Na prática, é costume que o corpo seja sagrado se sobrepõe ao profano, dada a
preparado pela funerária e enviado a um local natureza essencial dos ritos, a religiosa.
para ser velado, onde permanece exposto à O fato de o indivíduo per tencer a uma
visitação. O velório pode ser na casa do mor to, sociedade configura a obrigatoriedade das
no próprio cemitério no qual será enterrado ou passagens de uma sociedade a outra, ou de
cremado, ou até em velórios cedidos por órgãos uma situação social a outra (GENNEP, 1978,
municipais e de lá segue cor tejo fúnebre para p. 26). São situações pré-determinadas e
o cemitério, seguindo o carro que carrega o associadas às passagens da natureza, tais
corpo. É comum chamar um Sacerdote para como as mudanças da lua, ou as estações
rezar a “missa de corpo presente” ou a Missa do ano, pois nenhuma categoria social - das
de Exéquias, para a Igreja. grandes e pequenas sociedades, mais ou
Não muito raro nessa cerimônia ou menos simples - ou biológicas - dos animais
durante o velório, é possível que alguém racionais ou irracionais - não podem ser
se habilite em contar alguma “piada” ou independentes da natureza.
anedota. Pode ser essa atitude um possível Para as meninas da sociedade brasileira,
remédio para alívio da dor? Ou uma tentativa completar 15 anos constitui uma impor tante
de se manter alienado durante um momento data, o que pode significar ter atravessado
tão triste? Isso porque o velório para os as fronteiras biológicas - transformar-se
brasileiros é de ex trema impor tância, no em moça, menstruar - e as fronteiras do
sentido de que se encontram ali, independente desenvolvimento social - par ticipar de bailes

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ou ter consentimento para escolher um para a adolescência ou da vida de solteiro
parceiro (namorar). Pode significar, todavia, para a vida de casado, o que obriga o
frequentar o Ensino Médio (curso secundário), indivíduo a vivenciar um período entre dois
começar a pensar na universidade e vida mundos – o mundo do profano e o mundo
profissional para uns. Para outros, é a do sagrado. A fase de estar entre um mundo
marca de entrada no mercado do trabalho, e outro é chamada, por Gennep (1978), de
ou constituição familiar. Em todos os casos, período de margem. Passar de uma fase a
esses atos representam a passagem de um outra significa despojar do homem velho e,
estágio social para outro. literalmente adquirir uma pele nova (GENNEP,
Já em Moçambique, os ritos de iniciação 1978, p. 153). Os rituais, então, propiciam as
para uma mulher são condições para assumir passagens acontecerem:
seus papéis na sociedade, conforme Paulina Nascimento, puberdade social, casa-
Chiziane (2006, p. 48-49): mento, paternidade, progressão de
classe, especialização de ocupação,
Os ri tos de iniciação são como o mor te. A cada um desses conjuntos
baptismo cristão. Sem baptismo acham-se relacionadas cerimônias cujo
todo o ser humano é pagão. Não tem objeto é idêntico, fazer passar um indi-
direi to ao céu. No sul, homem que não víduo de uma situação determinadas a
lobola7 a sua mulher perde o direi to outra situação igualmente determinada.
à paternidade, não pode realizar o Sendo o mesmo objetivo, é de todo ne-
funeral da esposa nem dos filhos. cessário que os meios para atingi-los
Porque é um ser inferior. Porque é sejam pelo menos análogos, quando
não se mostram idênticos nos detalhes
menos homem. Filhos nascidos de
(GENNEP, 1978, p. 27).
um casamento sem lobolo não têm
pátria. Não podem herdar a terra do
pai, mui to menos da mãe. Filhos ficam Há, também, os ritos que conservam a
com o apelido materno. Há homens passagem material simbólica, abaixo de um
que lobolaram suas esposas depois marco ou uma por ta, por exemplo. Gennep
de mor tas, só para lhes poderem
dar um funeral condigno. Há homens
(1978, p. 38) cita lugares tais como: Marrocos,
que lobolaram os filhos e os netos já Mongólia, Andes, Alpes, Assam, Tibete.
crescidos, só para lhes poder dei xar Outra maneira de representar a “passagem”
herança. Mulher não lobolada não tem é utilizar a analogia da sociedade como uma
pátria. É de tal maneira rejei tada que
não pode pisar o chão paterno nem
casa, com todas as suas características:
mesmo depois de mor ta. por tas, paredes, corredores. A facilidade
de trânsito entre um cômodo e outro é, para
Os ritos remetem ao ato de atravessar Gennep (1978), diretamente proporcional ao
fronteiras, seja de um lugar para o outro, ou nível de desenvolvimento das sociedades. Nas
atravessar fases da vida social, da infância sociedades mais simples, os compar timentos

7
Lobolo, naquela região, é o pagamento do dote à família da noiva, ou esposa.

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são isolados uns dos outros, o que torna a dali. Mui tas vezes, dada a pouca idade para
adoção de cerimônias mais comuns, por elas o casamento, as meninas são enviadas
apresentarem proximidade maior dos ritos à Casa de Tinta para ser preparadas ao
de passagem material. Não quer dizer que matrimônio. O noivo-marido deve pagar
qualquer indivíduo possa entrar na casa para retirá-la de lá, numa espécie de dote.
livremente. Por isso, os indivíduos sempre As formas de pagamento podem ser em
transi tam entre muitas divisões, porque dinheiro ou a base de trocas (alimentos,
a vida em sociedade passa a ser uma joias, roupas).8
sucessão de etapas e acontecimentos
A moral tradicional dos Cabindas
que ocorrem de maneira linear. É possível
visa basicamente a compor tamentos
transi tar de uma ocupação à outra, ou de tendentes à coesão e for talecimento
uma idade a outra. E como mecanismo de da família, da etnia. Por isso o
acesso entre um espaço e outro usam-se as argumento da obrigatoriedade é a
tradição dos antepassados. Nesta
cerimônias e os rituais, em que a sagacidade perspectiva, as fal tas e os crimes
entre um espaço e outro ou entre um rito são o da deterioração da coesão
e outro é ex plicada pelo fato de que as do grupo: fur tos, roubos, insul tos,
divisões são mais densas ou menos densas feitiçaria, fal tas sexuais contra o
direito de terceiros. No que concerne
de acordo com o grau de desenvolvimento à moral sexual, constituem fal tas
da sociedade em questão. gravíssimas as práticas de relações
Seguindo esse raciocínio, viver a vida sexuais com raparigas ainda não
em sociedade significa par ticipar de uma iniciadas (chicumbe), isto é, sem que
elas tenham passado pela «casa das
troca contínua, que implica em movimentos tintas»; a prática de relações com
como agregar e desagregar, constituir e mulher sobre o solo ou sem ser em
reconstituir, morrer e renascer, algumas das local vedado e cober to; a prática de
relações sexuais com mulher casada
muitas atividades essencialmente humanas.
ou a viver maritalmente. A mulher
Viver é também agir, parar, esperar e casada ou amancebada é obrigada
repousar para recomeçar e poder agir de a guardar fidelidade ao marido ou
maneira diferente. ao companheiro. O homem, porém,
não é obrigado a guardar fidelidade à
Em Cabinda, Angola, a garota que passa
esposa ou à companheira9.
para a adolescência fica algum tempo
dentro da Casa de Tinta. Dentro dessa casa, O ritual de agregação é um tipo de ritual que
ela recebe instruções de sua madrinha que acontece quando um estranho é recebido em
dizem respeito à vida adul ta. A Casa de um lugar. Um estrangeiro poderá ser recebido
Tinta é real, um lugar físico destinado ao por uma sociedade de diferentes modos:
isolamento da menina. Assim que ela estiver pode-se delegar a ele poder ou tomam contra
preparada para a vida adul ta, ela pode sair ele medidas em defesa mágico-religiosas
8
Registro de campo, Belo Horizonte, 20/11/08.
9
Registro de campo, 11/03/09.

80
(GENNEP, 1978, p. 41). Muitos podem fugir, Uma maneira de agregar alguém, em
se armar, até que o estrangeiro consiga Mapinhane, é pelo cumprimento em forma
entrar na sociedade. Após a aceitação, feita do aper to de mão. Aper tam-se as mãos três
depois da comprovação das intenções do vezes: uma na posição de frente para quem
estrangeiro, acontece o período de margem, se está cumprimentando, outra na posição
com a troca de presentes e finalmente a com os polegares cruzados e volta-se para
agregação, com a comensalidade, ou seja, os a posição inicial, em sinal de confirmação.
ritos de agregação por contato direto, como Segundo os nativos Matswa, esses toques
descreve Gennep: significam que o nativo gostou de quem está
cumprimentando, teve simpatia à primeira
[...] observo que os ritos descritos
vista, ou seja, recebeu e aceitou quem chegou
por Ciszewski em suas pesquisas
classificam-se da seguinte maneira: ali na região. Isso pode acontecer em qualquer
comensalidade individual ou coletiva, momento, com estrangeiros ou não.
comunhão cristã simultânea, serem Entre os brasileiros, é possível identificar
ligadas as pessoas comuma mesma
corda ou cinto, segurarem a mão , dar
toques similares. Existem grupos nas escolas
o braço (abraçarem-se), colocarem que “combinam” os seus toques de mãos,
juntas o pé sobre o lugar da lareira, treinam com os companheiros para que
trocarem presentes (tecidos, vestidos), todo encontro seja marcado com o “toque”.
armas, moedas de ouro ou de
prata, ramalhetes de flores, coroas,
Nas duas culturas o significado não parece
cachimbos, anéis, beijos, sangue,sacra ser diferente. Trata-se da aceitação do outro
cristãos (cruzes, círios, ícones), pelo grupo. Mais que um aper to de mão, o
beijar os mesmos sacra (ícone, cruz, ato significa trocar e tocar o outro, em uma
evangelho), pronunciar um juramento
(1978, p. 43-44). irmandade. Em outras palavras, é como se
fosse dito: “Eu te aceito. Pode fazer par te do
Por meio dos rituais de agregação acontece meu grupo e de minha vida social”.
mais que um toque corporal. Há uma troca de Outras categorias destacadas por Gennep
personalidade que marca a continuidade do (1978, p. 70) foram o rito de iniciação à
relacionamento em questão, em forma de uma puberdade fisiológica e social, à circuncisão e
comunhão. à mutilação. Para o autor, há diferença entre a
Da Mat ta (1981), ao relacionar o mundo puberdade física e a social e, embora ela seja
do ritual ao cotidiano, destaca a ação do marcada pelo desenvolvimento corporal, fato
aper to de mãos. No nosso dia a dia, isso pode que não define categoricamente condições
parecer simples, mas não quando esse ato para o indivíduo viver como adolescente,
adquire um significado especial. Para isso, há variantes corporais e sociais para que o
basta, para Da Mat ta, que o coloque em uma indivíduo possa fazer par te do meio ao qual
situação especial, ou seja, o significado desse per tence. Os ritos da puberdade têm em sua
ato passa a ser mais que um aper to de mãos essência o caráter sexual, pois caracterizam,
ao ser contex tualizado. para o sujeito, a passagem de um mundo

81
assexuado para um sexuado a par tir de seu reunir pelos mesmos interesses, os quais
desenvolvimento corporal. São momentos, podem ser, inclusive, sentir as mesmas dores
tanto no menino quanto na menina, difíceis físicas ao se marcar com uma tatuagem ou um
de se datar. Por isso, é impor tante diferenciar piercing. Entretanto, essas atitudes talvez não
(e não convergir) a puberdade física e a possuam o mesmo sentido religioso e cultural
puberdade social. A circuncisão, por outro que a circuncisão em Moçambique, uma vez que
lado, é tratada por Gennep (1978) como se tatuar ou colocar um piercing determina uma
um rito social, dada à grande variação legitimação/marca de grupos urbanos.
cronológica de quando ela é praticada. Outras formas de marcar o corpo podem
O autor delimita idades entre 2 a 13 anos se aproximar da circuncisão, como a troca
(GENNEP, 1978, p. 74). de dentes, ou a mutilação de outras par tes,
Para os moçambicanos, a cultura da como a última falange do dedo mínimo no
circuncisão significa muitas coisas e pode, caso da África do Sul (GENNEP, 1978, p. 75).
inclusive, resultar na comensalidade, como As mutilações são uma forma de “diferenciação
citado por Paulina Chiziane, em relação à definitiva” (GENNEP, 1978, p. 76). No entanto,
cultura moçambicana: pintar o corpo, usar determinadas roupas
ou máscaras, marcam uma diferenciação
As culturas são fronteiras invisíveis
construindo a for taleza do mundo.
temporária. Segundo Araújo (2007), em 2007,
Em algumas regiões do nor te de a mutilação genital foi proibida no Egito,
Moçambique, o amor é feito de fruto da luta de Warris Dirrie, somaliana e
par tilhas. Par tilha-se mulher com o embaixadora da ONU. O Egito foi o décimo
amigo, com o visitante nobre, com
o irmão de circuncisão. Esposa é quinto país que aderiu à sua campanha, que
água que se serve ao caminhante, ao tem por objetivo disseminar a proibição da
visitante. A relação de amor é uma mutilação pelo mundo. São vinte e nove os
pegada na areia do mar que as ondas
países onde a ex tirpação do clitóris é comum.
apagam. [...] No sul, a situação é bem
outra. Só se entrega a mulher ao irmão Nesses países, 97% das mulheres casadas
de circuncisão quando o homem é responderam que não têm clitóris e a OMS
estéril (CHIZIANE, 2006, p. 41). (Organização Mundial da Saúde) estima que
aproximadamente 150 milhões de mulheres
O irmão de circuncisão é aquele que
já tenham passado por esse ritual. E, a cada
vivenciou, no mesmo período, no mesmo grupo,
dia, 8 mil meninas passam pela circuncisão
os ritos de iniciação. Por meio da circuncisão,
feminina (ARAÚJO, 2007, p. 45). A operação
provoca-se no menino ou na menina uma
ex põe as mulheres a infecções, dores para
marca eterna. Como a marca da tatuagem, os
urinar e manter relações sexuais, assim
piercings, os cor tes de cabelos (moicanos,
como problemas no par to e menstruação.
rastafáris, surfistas...) ou mesmo a decisão
Mesmo com todos esses problemas, dois
de não cor tá-los. Essas marcas demonstram
terços das mulheres não querem o fim
desejos únicos de determinado grupo de se

82
das cirurgias por optarem em manter as aspectos fundamentais para a vida, individuais e
tradições desses povos: sociais (MARTINEZ, 2005, p. 165-166).
Outro exemplo nesse sentido, é o ritual de
A prática ex iste desde a Antiguidade,
para garantir a pureza sexual das
iniciação feminina dos Vatshwa10 de Moçambique,
garotas. É um ri to de passagem as meninas recebem as instruções de sua tia
para a vida adul ta. Arrancam o paterna mais velha, essa tia é encarregada de
cli tóris porque acredi tam que,
preparar todos os rituais, desde as instruções até
se não fizerem isso, as mulheres
ficam fora de controle, sexualmente a alimentação e o local para que aconteçam os
falando, diz a socióloga americana ritos de iniciação da menina.
Hanny Lighfoot-Klein, especialista Assim, retoma-se Durkheim (1984, p. 33), que
no assunto (ARAÚJO, 2007, p. 45).
nos chama a atenção para os ritos de iniciação
As mulheres que não passam por esse quando destaca que a criança apenas pode
rito em sua cultura não têm chance de se ter conhecimento do dever por intermédio de
casar. Sob outra interpretação, pode parecer seus pais ou professores; ela somente poderá
assustadora essa prática, mas se trata de saber aquilo que o dever é, por meio da forma
um ritual comum daquela região, como diz pela qual eles lho revelarem, por meio da sua
Mar tinez (2005, p. 166). linguagem e da sua conduta.
Ele atenta para o fato de que as iniciações Em relação à escola, deve-se compreender
não podem ser reduzidas apenas no ato da que se trata de um ambiente heterogêneo em
circuncisão, pois se trata de algo muito mais crenças e valores, ambiente nesse sentido
profundo e amplo, tal como um processo por si só privilegiado para ser feita uma
completo composto de fatores que têm muita observação e interpretação de jovens e sua
impor tância para o jovem como indivíduo e cultura ritualística. Por isso mesmo, Mc Laren
membro da sociedade. Em primeiro lugar, trata- (1992), ao longo da pesquisa sobre os rituais
se de um processo psicológico de evolução na sociedade mais complexa, em uma escola
da personalidade, quando o indivíduo passa de confessional católica canadense, não os
adolescente para adulto; trata-se, também, de banaliza traduzindo-os como acontecimentos
um processo de inserção do jovem na sociedade super ficiais. Antes, porém, esse autor
como membro competente, com direitos e determina a impor tância e o reconhecimento
deveres; de um processo de formação, quando dos rituais contemporâneos, subestimados
o indivíduo recebe as normas de convivência e como estudo científico por autores que
valores éticos; pedagógico, quando permite um preferem entendê-los em sociedades
exercício dos valores e a socialização do jovem; pequenas, monolíticas, a nível de subsistência
religioso, pois o jovem entra em contato com as [sic] (MC LAREN, 1992, p. 51). Para ele, em
entidades espirituais e as práticas rituais do povo; função desse raciocínio, o ritual está sendo
finalmente, de um processo de inserção global roubado de sua verdadeira significação,
na vida da sociedade, em que se encontram os porque são considerados anacrônicos ao
10
Os Vatshwa, ou o povo Matswa, vivem ao sul de Moçambique.

83
século X X e muitos autores descrevem os aparelhos celulares, fato que os permite
rituais modernos como invólucros simbólicos acessar, mesmo que precariamente, o mundo
que vivem na roupagem da cultura - um midiático. Talvez haja, nesse momento, uma
lugar em que os antropólogos revistam as possível mudança de atitudes em relação aos
aparências ex teriores da sociedade (MC ritos da cultura tshwa.
LAREN, 1992, p. 52). Mc Laren (1992), ao se referir aos rituais
O termo ritual costuma ser associado, de resistência, os define como rituais de
frequentemente, aos estudos que enfocavam conflito, que transformarão os alunos em
os princípios religiosos de sociedades mais combatentes e antagonistas com o objetivo
totêmicas, “primitivas”, maneira pela qual a de subver ter as regras e padrões impostos
televisão costuma levar ao ar programas que pela escola e pela sala de aula. São rituais
descrevem cenas ritualísticas como bizarras, conscientes que dão um feedback às
estereótipos que exemplificam claramente instruções do sistema educacional. Nesses
uma visão etnocêntrica sobre esse assunto, termos, ao destacar a indisciplina, os jovens
processos que o enfatizam negativamente, ao estão demonstrando, de maneira ritualizada,
invés de destacar sua reputação positivamente, que a sala de aula, especificamente, deve
como um processo de significação social notória rever seus conceitos e práticas.
(MC LAREN, 1992, p. 47), capazes de carregar
significações conotativas de regeneração, CONSIDER AÇÕES FINAIS
limpeza e purificação; energia e luz para a nova
vida; disciplina, organização; sacrifício, mor te e A sociedade necessita do jovem para
novo nascimento; novo estado e missão. assumir ações no futuro, contudo, é preciso
Hoje, torna-se ex tremamente impor tante que ele viva o presente. E é ele mesmo
o diálogo entre as culturas par ticipantes da quem mostra, de maneira ritualística, uma
escola e as necessidades da população, por linguagem que talvez demonstre um caminho
meio da elaboração e efetiva ação de trabalhos a ser seguido por seus mestres no sentido de
entre os jovens, que, de cer ta maneira, possam melhorarem ainda mais a forma de educar.
provocar neles reflexões e aler tá-los para a Resta saber o que fazer com as evidências
experiência de vida. É natural que a escola, em de que a escola lida de maneira errônea
meio a esse emaranhado de acontecimentos, com o universo juvenil. Espera-se que, num
receba pessoas de vários lugares, o que a futuro próximo, ele possa ser compreendido
torna um espaço multicultural, composto por e entendido em suas dimensões ideológicas,
crenças e saberes de diversas etnias e culturas. para que mais vozes par ticipem do processo
Como cada grupo social tem suas próprias educativo. Para tanto, não se deve erradicar
características, sentimentos e interesses os rituais de sala de aula, mas ao contrário, é
próprios do lugar onde vivem e convivem, os preciso lê-lo e entendê-lo como um momento,
jovens mapinhanenses, por exemplo, mesmo um limiar de passagem, um rito que
sendo de uma sociedade rural, com pouco demonstra o que a própria escola deve fazer.
acesso aos computadores e a mídia, possuem E enquanto os mestres atuais não fizerem algo

84
por seus neófitos, o ritual será repetido pela DURKHEIM, Emile. Sociologia, Educação e
necessidade de sua existência. Moral. Por to: Rés, 1984.
A escola é uma instituição, de um modo geral,
vítima dela mesma. As dificuldades, as situações DURKHEIM, Emile. Da divisão do trabalho
de conflitos e a necessidade de adaptação e de social; As regras do método sociológico;
atualização devem, de fato, serem lidas, vistas e o suicídio; as formas elementares da vida
repensadas. Esperamos que a análise feita possa religiosa. Émile Durkheim; seleção de tex tos
servir, de alguma maneira, para novas leituras e de José Ar thur Giannot ti; traduções de Carlos
reflexões. Por isso ela não termina aqui. Ela se Alber to Ribeiro de Moura et al. São Paulo:
despede, com a cer teza de novas paragens, Abril Cultural, 1978. (Os Pensadores).
novos encontros e novas indagações: quais
DURKHEIM, Emile; RODRIGUES, José
os símbolos demonstrados em uma sala de
Alber tino. Emile Durkheim: Sociologia. 2 ed.
aula? Como a sociedade e a escola enxergam
São Paulo: Ática, 1984. (Grandes Cientistas
os jovens e seus rituais? Como a sociedade
Sociais 1).
se vê?
GENNEP, Arnold van. Os ritos de passagem.
Referências Petrópolis: Vozes, 1978.

AD GENTES/LEIGOS MISSIONÁRIOS DA HERNANDEZ, Leila M. G. A África na sala de


CONSOLATA. Nza Ku Bonga. In: Entre povos. aula: visita à história contemporânea. São
Leigos Missionários da Consolata, 2004. 1 CD Paulo: Selo Negro, 2005.
(35min). Faixa 5. LIMA-MESQUITELA, Augusto; MARTINEZ,
ARAÚJO, Tarso. O fim da faca. O país campeão Benito; FILHO, João Lopes. Introdução
mundial da ex tirpação de clitóris torna a prática à antropologia cultural. Lisboa: Editorial
ilegal, mas esse costume está longe de acabar. Presença, 1991.
Revista Superinteressante, São Paulo, outubro
de 2007, Edição 244, p. 45-50. MALINOWSKI, Bronslaw. Argonautas do Pacífico
Ocidental: um relato do empreendimento e
CAZENEUVE, Jean. Sociologia do rito. Por to: da aventura dos nativos nos arquipélagos da
Rés, [19__]. Nova Guiné Melanésia. 2. ed. São Paulo: Abril
CHIZIANE, Paulina. Niketche. 4. ed. Maputo: Cultural, 1978.
Ndjira, 2006, 334 p.
MARTINEZ, Francisco Lerma. El Pueblo
DIAS, Patrícia Regina Corrêa. As personas Tshwa de Mozambique. España: Ediciones
juvenis e os rituais na escola: um estudo em Laborum, 2005.
duas escolas da rede agostiniana; Brasil - Belo
Horizonte - Barreiro e África - Moçambique - MC LAREN, Peter. Rituais na escola. Em
Mapinhane. 2009. 157 f. Disser tação (Mestrado direção a uma economia política de símbolos
em Educação) - Pontifícia Universidade Católica e gestos na educação. Trad. Juracy C.
de Minas Gerais, Programa de Pós-Graduação Marques e Ângela M. B. Biaggio. Petrópolis:
em Educação, Belo Horizonte, 2009. Vozes, 1991.

85
TOSTA, Sandra de Fátima Pereira. A missa e o
culto vistos do lado de fora do altar: religião
e vivências cotidianas em duas comunidades
eclesiais de base do bairro Petrolância,
Contagem, MG. 1997. 372f. Tese (Doutorado
em Antropologia Social) – Depar tamento de
Antropologia Social da FFLCH, Universidade
de São Paulo, 1997.
TURNER, Victor Wit ter. O processo ritual:
estrutura e anti-estrutura; Trad. De Nancy
Campi de Castro. Petrópolis: Vozes, 1974.
VARAGNAG, André. As categorias de idade
numa sociedade tradicional. Rio de Janeiro:
Zahar, 1968.

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