Você está na página 1de 13
‘Antliee Pelcolégion (2004), 4 (XXII): 768-777 A vida depois da vida: Reabilitagao psicolégica e social na transplanta¢a4o de orgaos (*) «Fazer um transplante é nascer nova- ‘mente sem ler morrido verdadeiramente.» (Testemunho) 1. A PSICOLOGIA DO PRE-TRANSPLANTE. 1.1. 4 adaptagéo & doenca propésito de um transplante como terapia é © de proporcionar um melhoramento significa- tivo na satide do paciente, aumentando a sua pro- dutividade, incrementando a sua auto-estima, for- talecendo em geral o seu nivel de ajustamento reduzindo a tensio na familia. (*) Baseado em Dissertacdo de Mestrado subjugada ao tema “Transplantagdo Pulmonar: Como se sobrevi- ve auma morte anunciada?”, Fevereiro de 2003, ‘© meu sincero agradecimento ao Prof. Doutor Ri ‘Aragio pelo acompanhamento deste trabalho. (¢*) Mestre em Psicopatologia e Psicologia Clinica € bolseira de Doutoramento em Psicologia Aplicada pela Fundacdo para a Ciéncia ¢ Tecnologia. EDITE TAVARES (**) Bunzel (1992), citando Shapiro, refere que a transplantago é um proceso € nao um aconte- cimento. E um processo que continua ao longo de toda a vida do receptor. Apesar do énfase que se coloca no acto cinirgico, € o que o precede ¢ 0 que se Ihe segue que é, para os pacientes e para aqueles que 0 rodeiam, 0 permanente foco de atengao. Sio profundos os problemas psicosso- ciais a enfrentar antes e depois do transplante. Tal como confirma Bohachick (1992) a trans- plantagdo € um processo que se conceptualiza numa série de etapas que envolvem stressores si- gnificativos. O reconhecimento da doenga amea- gadora da vida ¢ 0 primeiro grande confronto. A vida do dia a dia anterior ao transplante & caracterizada por uma constante sensacao fisica de estar doente. Sao frequentes os contactos com 10s médicos e hospitais, por forma a manter o me- Ihor possivel a condigdo do paciente, prevenindo a sua deterioragao ou morte. ‘A constante ameaga de morte ea incerteza do prognostico de vida, s80 desafios fundamentais. A.alteragao dos modelos de vida, a incapacidade para o trabalho, a altera¢do da auto-estima que advém do desempenho do papel de invélido, da alterag4o do seu papel no seio familiar, do au- mento da dependéncia, poderdo ser indutores de perturbaeSo emocional significativa, Fonseca (1992, 765 p. 53) apresenta uma citaglo dramaticamente ilus- trativa deste sentir: «Somos uma espécie de Zombies... como que proximos da morte. Parece-me que 60- mos a morte viva... alguém que devia es- tar morto mas ndo est.» Na luta contra a angiistia emergente s80 mobi- lizados os mecanismos de defesa do individuo, sobretudo a negacdo. Esta forma de organizar toda uma estrutura protectora perante a adver- sidade, € a mais comumente utilizada quando a ameaca a vida e a ansiedade dai resultante se tor- nam ameagadores do equilibrio do individuo. Bo- nisch, citado por Bunzel (1992), refere que quan- to mais inesperada e brusca ¢ a comunicagdo a0 paciente da doenca e das suas consequéncias, mais répida e profundamente 0 processo de negacio se instala, Traduz-se num repidio consciente ou ndo, de parte ou da totalidade do significado, an- siedade, medo e outros aspectos negativos do adoe- cer. A negagao da doenca e da necessidade de tra- tamento é frequente ¢ util dentro de determina- dos limites. Constitui um auxilio manutengao do optimismo necessério 4 continuagao do trata- mento. O ultrapassar dessa fronteira pode contri- buir para 0 estabelecimento de uma psico-rigidez nestes pacientes. O perigo permanente ¢ a neces- sidade de controlo sobre a vida pulsional, contri- ‘buem para a inflexo do psiquismo no sentido de um desgaste da vida fantasmatica e imagindria. Toda a modificacdo material e afectiva é reduzi- da, O individuo aproxima-se do pensamento ope- ratbrio. O factual, 0 técnico so privilegiados. Ins- tala-se ento uma hiper-adaptacdo ao tratamento que langaré consequéncias para as etapas seguin- tes do exigente processo que é a transplantagéo de Srgios. 1.2. Consentimento e motivagao para o trans- Plante de orgdos: Do consentimento & cul- pabilidade A confrontagdo com a existéncia de uma do- ena terminal a que se associa a necessidade de realizagdo de um transplante como tinica forma de sobrevivencia, e a forma como tal facto ¢ trans- mitido pela equipa médica, é sentido pelos pa- cientes como o primeiro momento de grande di- ficuldade em todo 0 proceso que envolve esta 766 teraptutica (Bunze!, 1992; Bohachick, 1992). Re- Jatam este momento como o mais “esmagador” de toda a sua historia de transplantacZo. Tal facto é testemunhado pelo estudo de Jalowiec et al. (1994), efectuado com 175 transplantados car- diacos que referiram como principal e mais in- tensa fonte de siress no periodo pré-transplante, © conhecimento da necessidade da sua realiza- fo. ‘Apés a sua aceitacdo, a entrada numa lista de espera para transplante, & tida como 0 segundo momento mais dificil de todo 0 processo. Uma vvez na lista de espera, os pacientes podem ser cha- mados para a cirurgia a qualquer hora do dia ou da noite, dada a imprevisibilidade inerente & dis- Pponibilidade dos érgaos. E 0 “terror do telefone” (Bunzel, 1992). Alguns pacientes relatam o iso- lamento que sentiram relativamente aos amigos ¢ familia, dado o receio que estes tinham em esta- belecer contacto, pois teriam a nogo de que qual- quer toque de telefone seria perturbador, o seu familiar aguardava a todo 0 momento “Aquele toque do telefone”. Reduziam entdo ao minimo as chamadas para ndo o assustar. O contributo da tecnologia permitiu a existéncia de bips e de te- Ieméveis que iriam cumprir a mesma funcio. Mas a tensdo sentida ¢ relatada como equivalen- te. Estes dispositivos tém a vantagem de que tor- nam possivel a saida de casa com mais tranqui- lidade, mas 08 toques frequentes (alarmes falsos) durante o dia e a noite transformam esses auxi- ios em igualmente stressantes. A angisstia inerente & procura de um dador é inevitavel, bem como a que resulta do longo tem- po de espera que advém do limitado nimero de 6rgdos disponiveis. Este, frequentemente longo, periodo de espera, ¢ gerador de grande instabili- dade fisica e psicolégica. A espera é acompanha- da de reflexdes sucessivas sobre a decisao toma- da, sobre a correcgio ou incorrecgao de se ter acedido & realizagio de um transplante, sobre a chegada do érgao doado que se receia mesmo que no venha a tempo. Estes altos e baixos sio relatados como profundamente perturbadores. O periodo de espera para o transplante ndo s6 afecta aquele que a aguarda, mas também todos 0s que fazem parte do seu tecido social, familia- res, amigos, vizinhos, colegas de trabalho. Dos 47 pacientes transplantados cardiacos entrevista- dos no estudo de Bunzel (1992), 64% referem te- tem sido confrontados com comentarios desen- corajantes na sua rede social. Sentimentos de cul- pa e vergonha sio também encontrados entre es- tes pacientes, sobretudo quando o tempo de es- pera pelo dador foi longo. Vivenciam pensamen- tos para eles dificeis de aceitar, tais como: «Pen- sei: ¢ inverno, estamos nas férias de Natal ¢ ndo ha gelo nas estradas, portanto ndo ocorrerdo aci- dentes graves. Que azar o meu!» (p. 310). Neste periodo de espera o paciente sobretudo regride a estédios anteriores do seu desenvolvi- >Ynento, tendo necessidade de aceitar uma relagio de profunda dependéncia com 0 meio que 0 ro- deia, Tal facto toca profundamente o seu ser nas mais variadas areas. £ a auto-estima que se en- tristece, 0 auto-conceito que se lamenta, a ima- ‘gem corporal que se desgosta, a identidade se- xual que se fragiliza... Enquanto que o medo e a angistia acompa- nham as primeiras referéncias & transplantagao, alivio e motivagdo para continuar séo vivencit das quando finalmente & encontrado um dador (Bun- zel, 1992). A transplantagdo de érgdos, ¢ um sistema in- teractivo paciente-familia-equipa de transplante que funciona numa zona de interface, de vida possivel para o receptor e de certeza de morte para 0 dador. Mas os candidatos a receptores de uum érgao no sto apenas receptores passivos de uma tecnologia. Sao antes de tudo pessoas que vo viver antecipadamente com ansiedade, com medo mas também com a emogo ¢ expectativa de melhorarem e de poderem vir a aceder a uma vida plena. Representard uma experiéncia trans- cendente na existéncia do proprio, impregnada também pela significagao fantasmética do orga, fonte da vida fisica e afectiva. 2. A PSICOLOGIA DO POS-TRANSPLANTE 2.1. O pés-operatério e suas emogées: Da ci- rurgia é alta hospitalar A concretizagao cirirgica do transplante mo- biliza grande e profunda atengdo, esté-se nada menos nada mais que a restaurar vida. Porém 0 acto médico bem sucedido nao pée fim a todas as preocupagées. Muitas delas apenas ai come- am. Findo 0 acto médico e resgatada a vida, so- bem ao palco com todo o seu protagonismo os icolégicos do pds-operatério. O fim faz acordar o ser ¢ com cle 0 acu sentir. periodo p6s-operatério imediato ¢ um tem- po de grandes implicagdes emocionais. Tomando ‘como referéncia um evoluir clinico normativo, 08 primeiros trés a oito dias so passados na Uni- dade de Cuidados Intensivos. £ um momento de paradoxo. E um momento de grande desconforto fisico, inerente a cirurgia, mas ¢ ao mesmo tem- po um momento de profunda emogdo para a pes- soa transplantada. £ a consciéncia de ter dobrado © “Cabo das Tormentas”, de se ter afastado da- quela percentagem de 15% de insucessos no pos- -operatério imediato, de ter dado um grande paso a caminho da vida. ‘Apés uma cirurgia bem sucedida, sentimentos de extremo bem estar ¢ euforia podem estar pre- sentes. O grau de independéncia da pessoa trans- plantada aumenta rapidamente, ela é encorajada a comegar o mais cedo possivel a sua reabilita- 40 fisica, Sao descritos sentimentos de “come- ‘gar uma nova vida, renascer saudavel”, sentimen- tos que podem ser interrompidos abruptamente aquando das primeiras complicagdes pés-opera- torias (Bunzel, 1992). Acontecem entéo, fre- quentemente, os primeiros momentos de depres- sio. Durante a hospitalizago apés a cirurgia, as reacgdes depressivas sdo frequentes, alternando ‘ou ndo com periodos de euforia associados aos medicamentos corticdides necessarios a terapéu- tica pés-transplante. Estes parecem potenciar al- teragdes de humor bruscas provocadas por pe- quenos acontecimentos (Mai, 1993; Dew, 1994; Bourgois et al., 1990; Allilaire, 1990). Sintomas delirantes sdo também encontrados no pés-operatorio numa incidéncia que varia con- soante os autores entre 20% e 35% de acordo com Mai (1993), Factores cinirgicos, farmaco- Iogicos, metabélicos ¢ ambienciais associados 4 cirurgia, podem determinar a ocorréncia de tal sintomatologia, apresentando maioritariamente remig&o sem tratamento. A par da depressio, as perturbacdes ansiosas constituem um dos quadros clinicos mais fre- quentes no periodo posterior a transplantacao. Observam-se em geral miiltiplas manifestagdes de ansiedade, taquicardia, falta de ar, pressio no Peito, etc., num espectro que pode ir do nervosis- mo transitério aos epis6dios de panico (Mai, 1993; 767

Você também pode gostar