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ANAIS DA VI SEMANA DE ANTROPOLOGIA DESAFIOS DA ALTERIDADE

OS KAINGANG NA CURITIBA
PROVINCIAL

Pedro Henrique Ribas Fortes Resumo: No século XIX as cidades do Para-


pedrohrfortes@gmail.com ná tornaram-se palco de intensos contatos
Mestre em Antropologia | PPGA/UFPR entre lideranças políticas e indígenas, apesar
das narrativas historiográficas tradicionais
Bolsista CAPES
minimizarem e até mesmo desconsiderarem
esta situação histórica. Durante muito tempo,
governos e assembleias reais, imperiais, pro-
vinciais e municipais estiveram empenhados
em garantir a aproximação ou o afastamento
de indígenas, segundo os interesses e especi-
ficidades do período e região. Os registros do
século XIX, identificados no Departamento de
Arquivo Público do estado do Paraná (DEAP-
-PR), demonstram que indígenas de diversas
regiões encontraram na atual capital do es-
tado do Paraná um espaço próprio para suas
negociações. A análise dessa convivência
revela uma profunda relação entre a política
indigenista, vigente na sociedade curitibana e
a política indígena, representada aqui pela po-
lítica Kaingang, que desafiou em diversos mo-
mentos da história os discursos unilaterais da
política e administração províncial. Nesse tra-
balho iremos analisar as práticas dos governos
provinciais para garantir o afastamento dos
indígenas das cidades, bem como, as estra-
tégias utilizadas pelos Kaingang para garantir
o acesso a esses espaços e o diálogo com as
autoridades.

Palavras-chave: política indígena; índios na ci-


dade; Kaingang.
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PEDRO HENRIQUE RIBAS FORTES

O site da prefeitura de Curitiba, na seção posta maneira de comprová-la através de


intitulada “O Curitibano” (www.curitiba.pr.gov. uma “simples observação” contemporânea,
br/idioma/portugues/curitibano), resume parecem estar em consonância com a tese de
toda a formação populacional da cidade até Wilson Martins sobre o suposto inevitável em-
o século XIX na seguinte frase: “os habitantes branquecimento da população paranaense. O
de Curitiba eram índios, mestiços, portugue- autor também acredita que seus argumentos
ses e espanhóis”. O restante dos parágrafos podem ser facilmente comprovados, “bas-
sobre o assunto destaca as imigrações ale- ta olhar o Paraná para sabê-lo”, além disso,
mãs, polonesas, italianas, ucranianas, japone- continua, “não é, depois, somente a alvura da
sas, sírias e libanesas, com destaque especial pele o que impressiona o observador do ho-
para a imigração de europeus ocorrida a partir mem paranaense: é todos os conjuntos de
da segunda metade do século XIX. traços físicos europeus, que se substituíram
aos da definição clássico do brasileiro” (Mar-
A dessemelhança entre as descrições
tins 1989: 135). Nem o autor, muito menos o
desses dois períodos não é gratuita, tam-
site definem que olhar é esse, nem de onde,
pouco é resultado de acontecimentos menos
ou para onde, especificamente deve-se olhar,
notáveis no primeiro. Na verdade, trata-se de
apesar de podermos supor.
uma visão muito difundida na historiografia
regional, amplamente defendida por diver-
sos políticos e intelectuais paranaenses. Os
indígenas, nessa perspectiva, são os repre-
OS REGISTROS DOS KAINGANG NA
sentantes do passado “primitivo” da cidade,
CIDADE DE CURITIBA NO SÉCULO XIX
sendo definitivamente excluídos da história As menções a presença dos Kaingang na
curitibana na metade do século XIX, quando, cidade de Curitiba no período do Paraná Pro-
frente à instauração da província do Paraná, a vincial até o alvorecer da república brasileira,
cidade abandonou suas raízes coloniais cal- podem ser encontradas em Correspondências
cadas no sistema escravista e conquistador, de Governo e Códices Avulsos que estão ar-
inaugurando um momento de grande cresci- quivadas no Departamento de Arquivo Público
mento demográfico e econômico devido aos do Paraná (DEAP-PR). As primeiras tratam da
contingentes imigrantes. rotina administrativa do projeto de conquis-
ta, catequese e civilização dos índios, onde
A “transformação definitiva” se daria com
se pode visualizar a correspondência oficial
os imigrantes europeus, um importante ele-
entre os aldeamentos e os órgãos administra-
mento urbanizador, alçado em algumas nar-
tivos provinciais, como a tesouraria, diretoria
rativas como divisor de águas, principalmente
geral dos índios e a presidência. Além disso,
com a formação de uma elite empresarial local
um grande número delas trata das correrias,
que promoveu o desenvolvimento econômico
ataques ou invasões a fazendas, aldeamen-
da cidade. Compartilhando dessa perspectiva,
tos, freguesias, vilas e municípios. Devem-se
o site salienta a prática da observação con-
destacar os contínuos registros que atestam
temporânea dos curitibanos e seus costumes
a fragilidade das finanças e do orçamento
como a maior ferramenta comprobatória des-
público destinado às frentes de execução da
sa herança. Com o intuito de “construir uma
catequese e civilização dos índios, que diante
existência melhor”, segundo a apresentação,
das contingências, dificilmente conseguiriam
podem-se perceber as influências dos imi-
auxílio imediato do governo provincial.
grantes por toda a cidade, “incorporadas pela
sociedade de adoção a tal ponto que nem cau- Os Códices Avulsos consistem nas cópias
sam surpresa ou despertam curiosidade”, mas dos ofícios entre o poder Imperial e seus Mi-
também, “espelhada no rosto multifacetado nistérios competentes ao tema, e os setores
do curitibano de hoje.” (id) da administração da província. Tratam das
medidas centralizadoras e solucionadoras
Tanto essas constatações como a su-

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das questões e conflitos que escapavam da outros centros de poder para fazer suas quei-
alçada da província: a criação e extinção de xas, que incluíam algumas direcionadas ao
colônias e aldeamentos, nomeações de car- próprio poder provincial. Justamente por isso,
gos como diretores gerais, missionários e em 1870, alguns grupos Kaingang queixosos
presidentes da província; determinações de de não serem recebidos pelo presidente da
vencimentos de funcionários do projeto indi- província do Paraná dirigiram-se ao Rio de
genista; a instituição de cargos e o revesti- Janeiro, então capital do Império. No ano an-
mento de prestígios a indígenas; e o repasse terior, as queixas das autoridades provinciais
de todos os registros sobre o estado dos alde- haviam feito o Ministro da Agricultura proibir a
amentos, e dos indígenas da província de uma presença de indígenas em Curitiba. Dessa vez,
forma geral. (Marchette 2007: 9) entretanto, o Ministro Jerônimo José Teixeira
Júnior, encaminhou um ofício ao vice-presi-
Os registros indígenas na cidade de
dente da província do Paraná, onde ordenava,
Curitiba no século XIX remetem a realidades
terminantemente, que não se permita que os
extremamente distintas. Muitas vezes trata-
indígenas da província se apresentem no Rio
vam-se de indígenas que buscavam refúgio de
de Janeiro (RJ)1, já que tal trânsito era extre-
algum ataque a aldeamentos, a busca pelos
mamente oneroso à Fazenda Pública. Para
brindes e ferramentas, sua prisão pelas auto-
resolver a situação, determinou que fosse
ridades policiais, à prestação de algum escla-
responsabilidade das autoridades provinciais
recimento solicitado, ou mesmo, a reivindica-
recepcionarem e atender os indígenas no que
ção de terras e o descontentamento com os
fosse necessário. (Id)
órgãos e metodologias da política indigenista.
O clima de certa autonomia política regional, Como se percebe, a viagem até a capital
derivada da emancipação do Paraná em 1853 do Império parece ter surtido certos efeitos
e do fortalecimento de parte de suas elites, na política indigenista regional, já que, como
possibilitaram o fortalecimento da presença era de se esperar, interrompem-se as regu-
política de algumas lideranças indígenas jun- lamentações que se referem à proibição do
to à administração provincial, política esta, transito de indígenas na cidade, pelo menos
cabe dizer, distinta em seu formato geral e nos temporariamente. Em 1880, durante a visita
seus objetivos. Apesar disso, a livre presença de D. Pedro II a Curitiba, o frei Luiz de Cemitile,
dos índios nas cidades estava proibida, assim responsável pela catequese dos indígenas de
como sua atuação política nesses espaços. São Jerônimo enviou uma carta para a admi-
Logo as reclamações para com a presença nistração provincial, requisitando autorização
indígena perpassaram diversos níveis institu- para que os indígenas pudessem ir à capital
cionais, e logo chegam aos olhos dos mais al- da província a fim de “beijar a mão do pai e
tos escalões do Império. O próprio Ministério protetor deles”. Este pedido foi prontamente
da Agricultura, autoridade máxima da política negado no mesmo despacho, sobre o argu-
de terras no período, e no limite, da política mento de que acarretaria despesas e nada de
indigenista, encaminhou um aviso para o pre- útil a catequese dos indígenas. Porém, a ne-
sidente da província no dia 31/08/1869, onde gativa não impediu que os desobedecessem
se ordena terminantemente, que se evitem à orientação das autoridades provinciais, até
ao máximo as viagens de grupos indígenas à por que, parece que o verdadeiro motivo dessa
Curitiba. (Leão 1869) viagem era o desejo de expor suas reivindica-
ções diretamente ao imperador. Não se sabe
É ilustrativo como, frente a tais proibições
se estes foram recebidos pelo imperador, é
mais contundentes, alguns grupos buscaram
provável que não, mas é certo que nos dias da
visita de D. Pedro II, segundo Ofício de João
1
Não foram identificados, ao menos nessa análise, Batista B. de Proença, 19 indígenas fizeram
o registro das reivindicações e reclamações desses gastos e despesas na cidade que totalizaram
grupos no Rio de Janeiro, que por certo, contribuiriam 26.780 mil réis. (João Batista B. de Proença
muito para esta análise.
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1880) requerimentos de verbas, com destaque para


à hospedagem e alimentação dos indígenas
na Hospedaria dos Imigrantes. Este se trata
AS VISITAS CONSTANTES DOS de um caso exemplar da dificuldade dos co-
KAINGANG lonizadores em categorizar a presença dos
índios no ambiente urbano, não sendo difícil
Constatou-se desde 1854 a constância imaginar os maus entendidos entre os diver-
de um regime de entrega de brindes e ferra- sos grupos que transitavam entre esses am-
mentas, associado ao alojamento em hos- bientes.
pedagens ou casas alugadas, cujos recibos
foram devidamente identificados ao longo de Em meio ao aparato burocrático que se
todo o período provincial. Esse sistema bus- formava, a lei institucionalizava a manutenção
cava regulamentar e controlar as condições de uma prática muito disseminada entre co-
de tal presença: os locais de permanência e lonos e missionários, desde os primórdios do
de trânsito dentro do perímetro da cidade e as contato entre índios e não índios, cuja temá-
condições dos pagamentos e reembolsos das tica consta nos registros históricos de grande
despesas feitas. Em março desse ano, o juiz parte das sociedades indígenas, do extremo
municipal e de órfãos de Curitiba, Joaquim sul ao norte da Amazônia. Da mesma maneira,
José Pinto Bandeira, encaminhou em corres- são constantes as referências à degeneração
pondência oficial ao presidente da Província e o vício que os índios adquiriram diante des-
Zacarias de Goés e Vasconcelos, uma soli- ses objetos, constituindo-se tal argumenta-
citação de despesas com o fornecimento de ção em um dos topos mais instrumentados
diversos gêneros aos índios de Palmas (PR) nas descrições colonizadoras, ao lado das
que passaram por Curitiba, salientando que digressões sobre a antropofagia e selvageria.
age dessa forma, conforme ordens recebidas Buscava-se uma técnica de atração simples
pelo mesmo presidente da província. (Bandei- e eficiente, visto que os índios mostravam-se
ra 1854). arredios a outras formas de contato.

Tal política revelou-se mais em uma for- Se a vida “errante” que levavam os ín-
ma de regular a presença dos indígenas na dios não-aldeados era considerada oposta
cidade, já que não se conseguia simplesmen- aos projetos civilizadores, o descontrole so-
te coibi-la através da força. Além do contro- bre o trânsito e a presença de índios mansos
le sobre o local da instalação dos indígenas, e semi-mansos nas cidades passam a ser
garantia-se sua volta para os aldeamentos, considerados como os elementos centrais do
igualmente financiada pela província do Para- fracasso do projeto destinado aos índios. No
ná. Ao contrário dos pagamentos dos índios mesmo sentido, a oferta de brindes passa a
de Palmas, seu acolhimento não podia ser ser vista como o oferecimento somente dos
atrasado, visto se tratar de um suposto risco maus hábitos da civilização. Como salientava
aos moradores a livre circulação dos índios. o presidente Fleury, “se, em vez das virtudes
Os indígenas eram hospedados em lotes ou ensinadas pelo catholicismo lhes levamos os
hospedarias, e os gastos feitos eram geral- vícios de nossa sociedade, não é catechése;
mente pagos pela rubrica da catequese. creamos-lhe, pelo contrário, uma nova dificul-
dade. (Fleury 1865).
A prática acompanharia todo o período
estudado, variando, contudo em diversos as- Entre os registros analisados, a presença
pectos. Os registros dos gastos da catequese mais marcante, sem sombra de dúvidas, está
e civilização dos índios merecem ainda um na figura do cacique Condá, que compareceu
trabalho a parte, que relacione a flutuação do com mais frequência à cidade, em compa-
orçamento financeiro, as medidas propostas ração a qualquer outra liderança ou cacique
por índios e não índios diante da escassez dos do período. Condá apresentava suas queixas,
recursos. São inúmeros as tabelas, recibos e reclamações e reivindicações de terras, mas
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também, instituía e fortalecia alianças, bem res imagens cristalizadas que caracterizam
como, a garantia de acesso a ferramentas e os indígenas ou como representantes de um
os brindes. Em 1857, o cacique se dirigiu a passado intocável e referente as mais antigas
Curitiba para tratar pessoalmente com o pre- raízes da formação do povo brasileiro, ou a
sidente sobre a questão dos Xokleng no sul do florestas remotas e inexploradas. As cidades,
estado. Segundo a documentação, o próprio contanto, são espaços reservados aos civili-
Condá propôs a formação de uma “diligência zados e em oposição completa aos territórios
amigável” para com os índios, “que hostilisão indígenas e a natureza. Dissolvidas e disse-
as imediações do porto de União no Yguassu”, minadas em sensos comuns nas grandes ci-
salientando ainda, “que há probabilidade de dades brasileiras, persistem associações do
serem os mesmos que hostilisão na estrada tipo, “índios e floresta/natureza, por um lado,
da matta.” (Francisco Ferreira da Rocha Lou- e não índios e cidade/civilização, por outro”
res 1857). Sabemos, contudo, que não havia (Nunes 2010: 11).
nada de amigável em tais incursões dos indí-
Após a independência em 1822, como
genas liderados por Condá, que se remetiam
demonstra Monteiro, desvela-se progressi-
a conflitos que independiam da presença
vamente uma questão contraditória que age
dos conquistadores. Juracilda Veiga salienta
como plano de fundo para o relacionamento
que teve a oportunidade de registrar diversas
das esferas estatais com os indígenas – ao
historias contadas pelos Kaingang sobre os
mesmo tempo que se autorizava e até mesmo
conflitos com os Xokleng, nos três estados do
se outorgava as incursões e guerras punitivas,
sul. Os grupos citados, segundo a autora, são
refletia-se sobre o seu papel na formação do
inimigos preferenciais, e tais conflitos não se
povo brasileiro, instituindo um passado ho-
tratavam de episódios circunstanciais, “mas
mogêneo e comum a todos os brasileiros. Este
de uma prática cultural partilhada e constitu-
histórico comum seria dado através da mesti-
tiva do modo de viver desses povos.” (Veiga
çagem e destacaria “a identidade desta nova
2009: 290 - 291) Pode-se dizer, que em muitas
nação americana no contexto da separação
dessas incursões os colonizadores e o apa-
política.” Para todos os efeitos, confinou-se o
rato provincial é que foram cooptados pelos
indígena nos discursos históricos preconcei-
indígenas e seus regimes políticos, sendo
tuosos e nesse passado primitivo, representa-
essa aproximação potencializada pela aliança
do pelo Tupi costeiro que habitava as regiões
instituída a partir do desejo de guerrear com
da colonização primordial portuguesa nas ter-
um “inimigo em comum”. Os gastos com a
ras brasileiras (Monteiro 2001: 130).
comitiva de Condá nessa oportunidade, e nas
inúmeras outras, foram pagos pela conta da No Paraná, mais precisamente em sua
catequese e civilização dos índios. capital provincial, a manutenção dessa ima-
gem foi remanejada com a chegada dos imi-
Como se pode constatar, um dos elemen-
grantes, alçados por alguns, como Wilson
tos centrais da política indigenista do período
Martins e outros historiadores e cientistas
(e em parte até os dias de hoje) era (e ainda
sociais conservadores, como um elemento de
o é) o controle e regulamentação da posse e
ruptura, tanto desse passado antigo onde o
acesso dos indígenas aos territórios, sejam
indígena teria diluído entre os colonizadores
rurais ou urbanos. A política indigenista e a
através da miscigenação, quanto do restante
sua variação na prática, levada a cabo pela
da sociedade nacional, que nessa perspectiva,
elite construtora do estado em meados do sé-
apresentaria elementos mais contundentes da
culo XIX, entendia que tais populações só po-
influência fenótipa e cultural dos indígenas. O
deriam existir de maneira integrada a socieda-
primeiro aspecto, aliás, serviria como elemen-
de nacional, para tanto deveriam se despir de
to comprobatório da imagem de uma região
seus distintivos étnicos e culturais.
mais branca e europeia, enquanto o segundo
No Brasil prevaleceram em muitos seto- para reafirmar a pretensa superioridade civili-

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zatória do europeu diante da fragilidade primi- te, um grupo de Guarani chegou à capital do
tiva do indígena. Aldeamento de Nossa Senhora do Loreto de
Pirapó, buscando abrigo e ataques recentes a
Como em outras localidades do estado
localidade. Chegavam também indígenas que
brasileiro, o discurso da mudança de certos
repassavam informações para serem utiliza-
aspectos da sociedade indígena com o esta-
das na guerra contra o Paraguai:
belecimento do contatos e alianças com não
índios foi instumentado como indicador do [...] um Índio de nome Candido Venite que
vai para a Capital em companhia do Admi-
abandono definitivo de certos costumes, e
nistrador do Aldeamento Indigina o Pirapó
consequentemente, de suas regras essenciais Joaquim Antônio Pereira, cujo índio e co-
de organização social e política. Para bem da nhecedor da Republica de Paraguay, por la
verdade, tal transformação realmente ocorria, residido por muitos anos [...] Diz este índio
que os Paraguayos não só fundaram uma
entretanto não como os administradores das
guarda a margem direita do Iguatemy, e
políticas indigenistas acreditavam. abrirão uma estrada pelo novo território [...]
(Lopes 1861).
Os indígenas buscavam os brindes e fer-
ramentas, e consequentemente as cidades Porém nem tudo passava aos olhos dos
que detinham a maior concentração desses administradores. Em Junho de 1861, o Minis-
objetos. Estes foram manuseados e instru- tro da Agricultura havia sido informado pelo
mentalizados pelos indígenas para garantir presidente que um grupo de 24 Coroados re-
a continuidade da relação com os novos alia- quisitavam terras para se assentarem. Sua
dos, segundo as modalidades políticas inter- resposta foi pelo estabelecimento destes em
nas que se orientavam para o mundo exter- algum aldeamento já fixado na província. Ao
no. No caso dos grupos e chefias territoriais indagar o diretor geral dos índios sobre os
Kaingang que frequentemente se dirigiam indígenas que haviam sido alojados, recebido
para Curitiba no século XIX, não só sabiam da brindes e alimentação na cidade, o presidente
concentração desses bens junto a presidência tem uma resposta extremamente desagradá-
da província, como sabiam que os presiden- vel:
tes detinham a palavra final dos fog na maior
[...] pede V. Exª informações sobre os vinte
parte das decisões que envolviam as políticas e quatro indígenas que visitaram a Capital;
fomentadas para os índios. Apesar de ter que tenho a informar a V. Exª, que estes Indios,
lidar com o desprezo de muitas das autorida- segundo as indagações que sobre elles te-
nho feito, são pertencentes as muitas tribos
des, que se empenhavam em instituir a cidade
que intermedião o Jattahy e os Campos de
como um espaço restrito para o livre trânsi- Guarapuava, com especialidades nas cam-
to de indígenas de acordo com a separação pinas que mesmo existem entre os rios Ivay
instituída entre locais destinados para os sel- e Piquiry, e que de annos a esta parte hos-
tilisão os habitantes daquelles campos e os
vagens e primitivos, o ambiente da natureza
da Colônia Theresa; sendo por este motivo
e da cultura, mantinham o branco pacificado que o Governo Imperial mandou crear o al-
e e garantiam a posse dos estranhos objetos deamento do Chagu”. (Loures 1861).
e instrumentos dos não índios, com os quais
A informação dava conta de que não se
mantinham os mais diversos interesses práti-
tratava de índios mansos e aldeados, e sim,
cos e simbólicos.
de selvagens que se entregavam as barbá-
No início da década de 1860 eram fre- ries das correrias. Este é só um exemplo da
quentes as visitas e a permanência dessas incapacidade dos governantes de dar conta
começava a se prolongar cada dia mais. Em das classificações e situações que eles mes-
08/02/1861 o diretor do aldeamento de São mos fomentavam aos indígenas. Pouco tem-
Jerônimo salientou que se dirigiu a Fazenda po depois dessa passagem, uma nova visita
Fortaleza com os Coroados que estavam em dos Coroados aldeados em São Jerônimo foi
busca dos brindes, como aí não receberam registrada, “Nesta data seguem para esta Ca-
nada se dirigiram a Curitiba. No mês seguin- pital vinte indígenas da tribo dos Coroados,

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dizem atrás de missangas brancas e facões balho. Instalado nesse ambiente multi-voca-
levando para trocar belíssimas [ilegível] fre- cional, o índio seria instruído aos fundamen-
chas etc”. (Castelnuevo 1861). Diante do in- tos religiosos, que além de determinar aos
tenso fluxo, e sem a capacidade de discernir índios os dogmas católicos, fundamentaria
os verdadeiros interesses dos índios (até sua vida moral entre os civilizados. O traba-
mesmo sua procedência), em 1864 o inspetor lho na terra e o auto sustento do aldeamento,
da Tesouraria da Fazenda da província, infor- junto à disciplina e hierarquia militar, combi-
mou a José Joaquim do Carmo, presidente da nariam para terminar de moldar o trabalhador
província “sobre o problema da ociosidade nacional que tanto se desejava, e dissolvendo
dos índios fixados temporariamente na ca- os traços da vida errante anterior, e “terminan-
pital [Curitiba], e sugere seu retorno imedia- do o trabalho que a natureza não o fez”.
to para o interior.” A solução para a questão,
seria que estes permanecessem no quartel da
polícia, incorporando-os a disciplina militar,
como parecia ser a vontade do próprio diretor
geral dos índios da província, Rocha Loures.
(Barros 1864).

Apesar dos planos civilizatórios busca-


rem justamente a integração do indígena a
sociedade nacional, seus resultados só se-
riam satisfatórios se o índio transcorre-se to-
das as etapas de um longo processo. Pode-se
agrupar tais instâncias na tríade “Conquista,
catequese e civilização”, como disse Pádua
Fleury, presidente da província do Paraná em
1865. (Fleury 1865).

A presença do indígena nas cidades, sem


passar por todo o sistema significava além
de um grande retrocesso a catequese, uma
grave transgressão as delimitações dos espa-
ços destinados aos selvagens e aos bárbaros
por um lado, e aos civilizados por outro. Para
que o indígena pudesse acessar livremente
tais espaços deveria antes, necessariamente,
deixar de ser índio. Isso só seria possível se,
como índio, fosse exposto à força, pelo me-
nos a seus instrumentos amedrontadores,
que o impressionasse e o subjugasse frente
à superioridade bélica dos civilizados. As se-
duções nos aldeamentos se dariam a partir
do estabelecimento de trocas ou da oferta de
brindes, que podiam variar de armamentos e
instrumentos de trabalho a quinquilharias e
miçangas, mas só serviriam após o amedron-
tamento.

Como se dizia no período, tratava-se de


utilizar o medo e os brindes para lhes amansar
e preparar o espírito para a catequese e o tra-

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