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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

ESCOLA DE SERVIÇO SOCIAL

TRABALHO DE CONCLUSÃO DE DISCIPLINA


SSP710 Teoria Política – Prof. Dr. Mauro Iasi

José Garajau da Silva Neto

Rio de Janeiro
2015
1
Ensaio sobre uma nova política no velho novo mundo

José Garajau da Silva Neto1

1. Introdução

Nos tempos atuais, em meio aos limites explícitos aos quais somos expostos
diariamente no que diz respeito às relações humanas, a teoria política, sob
qualquer abrangência, aparece dignamente aprazível como fonte de análise do
cenário global. Não que pudesse ser diferente, porém é lícito se apontar que,
via de regra, há uma segmentação orientada para que se velem possíveis
meios através dos quais a consciência política esteja presente como
modeladora de uma sociedade.
Para nós, esse véu é a consequência de um processo histórico específico, a
história da sociedade moderna propriamente, que engendra o “indivíduo
moderno” inevitavelmente estranho 2 às suas relações gerais diante da
sociedade como um todo, de seu agrupamento mais próximo e enfim, de si
mesmo. Não obstante, o resultado não poderia ser outro que não aquele
preconizado (e deveras debatido) ao longo de toda a história da teoria política:
a legitimação de uma natureza humana fatalmente egoísta, que persevera
exclusivamente por sua própria existência, sem qualquer possibilidade de que
se amplie a ação do humano com um ser social, em vias de buscar a virtude e
a felicidade gerais como modus operandi em seu processo de instauração de
uma sociedade.
O presente ensaio tem o objetivo de mostrar em linhas gerais, a trajetória do
pensamento político de Aristóteles a Marx e seus contemporâneos, assim
aventurando-se a supor o desenvolvimento da noção de ser social de acordo
com os autores estudados.

1
Doutorando do Programa EICOS, no Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio
de Janeiro.
2
Em linhas gerais, o estranhamento (Entfremdung) é um fenômeno em que o homem se torna
alheio em sua relação com a natureza e consigo mesmo (MARX, 1983, p. 155). Segundo
Mészáros (2007, p. 19-20), “é um conceito que tem quatro aspectos principais: o
estranhamento em relação ao produto de seu trabalho, em relação ao trabalho, em relação a si
mesmo como ser genérico, e em relação aos outros homens.” Estende-se, portanto, desde a
mediação fundamental que permite a vida humana, que é o intercâmbio homem-natureza, até a
relação do homem consigo mesmo e com os demais homens em sua forma máxima que é o
gênero humano.
2

2. Aristóteles e a aurora do fenômeno político

Foi na Grécia antiga que se naturalizou o fenômeno político, onde por questões
particulares, no cerne da crise da pólis, Aristóteles emergiu como o pensador
que buscava descrever a forma correta da condução em direção à vida plena,
que é o bem maior. Para o autor, “toda comunidade se forma com vistas a
algum bem, pois todas as ações de todos os homens são praticadas com
vistas ao que lhes parece um bem3”.
Esse bem maior na pólis não poderia depender, senão, da virtude do
governante como elemento centralizador do sucesso da empreitada dessa
sociedade4. Nesse sentido, como precursora do fenômeno político, a Grécia e,
por que não dizer, Roma, são exemplos do que à sua época representava uma
espécie de governo para todos. Isso se explicita nas seguintes palavras do
filósofo:
Sabemos que toda cidade é uma espécie de associação, e que toda
a associação se forma tendo por alvo algum bem; porque o homem
só trabalha pelo que ele tem conta de um bem. Todas as
sociedades, pois, se propõem qualquer lucro – sobretudo a mais
importante delas, pois que visa a um bem maior, envolvendo todas
5
as demais: a cidade política.

Aqui, além de deixar claro o que representa a associação que representa uma
cidade como aquela que traduz uma vontade inerente em busca de um bem
comum, Aristóteles atesta que tal associação de homens possui como fim mais
elevado o fato de instituir-se como cidade política. O filósofo grego vai além ao
definir de forma clara os tipos de união que determinam o que, posteriormente,
dar-se-á como a cidade propriamente; por exemplo, a união entre um homem e
uma mulher, ou entre senhores e escravos. Outrossim, trata-se de uma “união
de famílias6”.

3
ARISTÓTELES, Política. p.13
4
Não cabe aos limites de nosso trabalho pormenorizar a forma detalhes morais e éticos, tais
como o papel dos escravos, das mulheres e crianças, influenciavam no caráter geral da
formação social da pólis. No entanto, somos cientes do caráter ambíguo que tais questões
trazem, principalmente em comparação à condição social atual. O núcleo de nosso debate, no
entanto, se situa nas considerações acerca da natureza humana, seja ela como for, de acordo
com a centralidade do tema da virtude e dos meios para adquiri-la.
5
Ibidem, idem.
6
Ibidem, p.16.
3
Vale ressaltarmos, o que o filósofo grego enfatiza explicitamente é a
naturalidade da formação social para o homem, de modo que tal configuração
organizacional se estabeleça a fim de suprir necessidades do grupo, tendo-se
vida feliz. Assim, para Aristóteles, o fim último da associação humana é a
felicidade.
Sobre isso Chauí diz que “não é preciso buscar nos deuses, nas leis ou nas
técnicas a origem da Cidade: basta conhecer a natureza humana para nela
encontrar a causa da política [...]. Nessa concepção, a Natureza funda a
política7”. Assim, seguindo o pensamento do filósofo grego, temos nas palavras
de Chauí o que denota a teleologia aristotélica. A natureza obriga o ser a ser o
que é, de modo que ela [a natureza] é o fim de todas as coisas. Ainda, vê-se
claramente o que se encontra nas primeiras linhas da Ética a Nicômaco, livro
de Aristóteles escrito a seu filho: em linhas gerais, todos os seres buscam a
felicidade.
É importante salientar que não há uma noção clara, por exemplo, da
individualidade na concepção aristotélica. Isso representa uma visão da
coletividade como centralizadora e objeto para a qual se deve buscar esse
bem.
Arriscamos dizer que o bem da cidade é mais importante que o bem do
indivíduo. Na visão do filósofo, um governo virtuoso, ou seja, aquele que é justo
por natureza, representa o bem universal em detrimento do bem particular. A
virtude é aqui um critério de determinação das formas de governo e, ao mesmo
tempo, reafirma o caráter universal e não-particular do que, por definição, é a
polis.

2.1 Maquiavel, Hobbes e a política moderna

A Idade Moderna é marcada pela fundação de uma nova forma de pensamento


no que diz respeito à política. Em termos metodológicos, ao contrário de uma
teleologia como no caso de Aristóteles, Nicolai Maquiavel acreditava piamente
que a história é dada por ciclos e, ao contrário de deverem ser, fatos
simplesmente são. Suas respostas devem ser encontradas no presente vivido.

7
CHAUÍ, 1998, p.380.
4
Essa foi a maior ruptura trazida por Maquiavel à contemporaneidade em
relação ao pensamento político medieval que aqui descrevemos através de
Aristóteles.
Dessa maneira, a principal característica do pensamento de Maquiavel diz
respeito a encarar de forma pragmática as relações políticas. Mais
precisamente, o autor italiano disserta acerca de como se conquistar e manter
um Estado. Nesse sentido, a virtude da política passa a ser a – manutenção do
Estado ou governo. Assim, o autor abandona acima de tudo a definição
escolástica de um bom governo. Não é essa sua principal preocupação.
O pensador italiano então, n’O Príncipe, entende os sujeitos como “... ingratos,
volúveis, simulados e dissimulados, covardes e gananciosos de ganhos8”. Para
tanto, apenas coerção ou a força são capazes de conter tais paixões humanas,
essas que representam o traço inato de malignidade humana.
Não obstante, vemos nesse pensamento fundante da política moderna o
alimento que deu a Thomas Hobbes a base para a construção do pensamento
de que o estado civil é um contraponto ao estado de natureza. O autor inglês é
aquele que dá origem à ideia de um contrato que, ao ser explicitado, apenas
representa um fato dado: o de que há um Estado anterior à formação da
sociedade. Assim, ao contrário de Aristóteles que pensa em uma associação
como teleologia, na visão de Hobbes, ao contrário, para compreendermos
verdadeiramente o que chama de estado de natureza, devemos nos lembrar do
período no qual não havia outra forma de segurança senão a própria força para
lhes garantir em vida. Desse modo, os sujeitos viviam em temor e perigo e sua
vida era “sórdida, pobre, solitária, embrutecida e curta9”. Ao mesmo tempo,
citando Hobbes,
Considerando então a ofensividade da natureza dos homens uns
com os outros, deve-se acrescentar um direito de todos os homens
a todas as coisas, segundo o qual um homem invade com direito, e
outro homem com direito resiste, e os homens vivem assim em
perpétua difidência, e estudam como devem se preocupar uns com
os outros. O estado dos homens em sua liberdade natural é o
10
estado de guerra.

8
MAQUIAVEL, N., 1997, p.107.
9
HOBBES, T., Leviatã, 2008, p.46.
10
HOBBES, T., Elementos, 2002 p.96.
5
E dessa maneira, Hobbes compreende o estado de natureza como a
inexistência de obstáculos entre você e seu objeto de desejo. Através da
determinação de um Estado soberano, abre-se mão dessa liberdade natural. O
Estado se torna a representação de uma multiplicidade de vontades em uma só
vontade. A insegurança e o medo do estado de natureza tornam necessários a
outorga do poder e do direito, dando assim origem à sociedade civil.
Não nos cabe aqui dissertar acerca de pormenores que, no sentido que se
seguirá, nos farão remontar às origens do liberalismo político em Locke. Nos
basta compreender que caminhamos no sentido de compreender, em
Maquiavel, a necessidade de conquista e manutenção de Estados, enquanto
Hobbes questiona o núcleo de sua necessidade inerente à sociabilidade
humana. Ambos atribuem à figura do Estado uma malignidade humana que
necessariamente precisa ser domada via coerção da agência do Estado
através do poder das leis. Para esses autores o homem é, via de regra,
medíocre.
Não obstante, cabe-nos salientar as palavras de Locke que o colocam além de
tudo já mencionado aqui em nomes de Thomas Hobbes. Como segue, o autor
inglês
todo homem tem uma propriedade em sua própria pessoa. A esta
ninguém tem qualquer direito a não ser ele mesmo. O trabalho de
seu corpo e a obra de suas mãos [...] são propriedade sua. Por isso,
seja o que for que ele tira do estado que a natureza proporcionou e
ali deixou, ele misturou aí o seu trabalho, acrescentando algo que
11
lhe é próprio, e assim o torna sua propriedade.

Percebemos aqui em Locke a ideia de que a propriedade auferida através do


trabalho torna-se, para o autor, legítima. Desse modo, um passo importante é
dado no que diz respeito à centralidade conceito de indivíduo, no que diz
respeito à teoria política. A própria ideia de propriedade, legitimada
fundamentalmente através do trabalho humano, é um elemento não tratado até
então por seus contemporâneos e, claramente inexistente na teoria política
clássica. Já Locke parte desse conceito que lhe é central, o da propriedade
adquirida através do trabalho. Para nosso trabalho tal fato é de suma
importância.

11
LOCKE, J., Segundo Tratado sobre o Governo Civil e outros Escritos, 2001, p.19
6
O nascimento do pensamento liberal, então, se dá em Locke no sentido de que
a legitimação da propriedade privada dos meios de produção traz consigo o
pilar do liberalismo econômico, qual seja, o de que há um consentimento
natural na legitimação de um governo, que pode ser deposto pelo povo (no
caso, composto pelos burgueses). Locke, como defensor do Estado
Absolutista, vê o poder do Rei como o que inviabilizaria uma Guerra Civil,
ainda, legitimando os valores da aristocracia burguesa, já que dá aos nobres o
controle do Poder Legislativo. Em suma, como um liberal, o autor inglês toma
como dado o fato de que os indivíduos concedem ao Estado um direito de
governar. Nas palavras do autor, no estado de natureza da humanidade, há
perfeita liberdade para ordenar-lhes as ações e regular-lhes as
posses e as pessoas conforme acharem conveniente, dentro dos
limites da lei da natureza, sem pedir permissão ou depender da
vontade de qualquer outro homem [...]. O estado de natureza tem
uma lei de natureza para governá-lo, que a todos obriga; e a razão,
que é essa lei, ensina a todos os homens que (...) nenhum deles
deve prejudicar a outrem na vida, na saúde, na liberdade ou nas
12
posses .

Via de regra, vemos aqui que a teoria política trata daquilo que é inconciliável
na sociedade em geral: o fato de que há conflitos oriundos dos interesses
antagônicos dos indivíduos que devem ser integrados por um Estado que se
torna um corpo acima dela. Ademais, Locke considera que a sociedade é
arrumada como uma solução contra ataques de inimigos, estabelecendo-se
através de um contrato em vias de protegerem-se mutuamente, garantindo
suas liberdades individuais. O Estado, então, trabalha para os indivíduos, cujas
liberdades se dão em relação ao próprio Estado.

3. Rosseau e a sociabilidade inata

Chegando em Jean Jacques Rosseau, adentramos uma concepção de política


que, como no salto qualitativo ocorrido entre a política medieval (grosso
modo, coletivista) e a política moderna (idem, individualista) traz uma nova
consideração. Ao passo que, como vimos tanto em Hobbes como em Locke, a
sociedade aparece como uma determinação natural e pré-social, para

12
LOCKE, J., Carta acerca da tolerância; Ensaio acerca do entendimento humano; Segundo
tratado sobre o governo. 1978, p.35-6.
7
Rosseau, ao contrário, o que é próprio da socialização é justamente tornar os
sujeitos como resultantes dessa interação. A ideia que perpassa o Contrato
Social, ao invés de ter como meta a manutenção da esfera privada e do
isolamento como tal, traz consigo a busca de uma “articulação entre o publico e
o privado, de modo que a sociabilidade se torne um elemento constitutivo
imanente ao próprio indivíduo.13”
Vale lembrar aqui uma passagem do Discurso sobre a origem e os
fundamentos da desigualdade entre os homens, na qual Rosseau diz que
Tal foi ou deveu ser a origem da sociedade e das leis, que deram
novos entraves ao fraco e novas forças aos ricos, destruíram
irremediavelmente a liberdade natural, fixaram para sempre a lei da
propriedade e da desigualdade, fizeram de uma usurpação sagaz um
direito irrevogável e, para lucro de alguns ambiciosos, daí por diante
sujeitaram todo o gênero humano ao trabalho, à servidão e à
14
miséria.

Assim o autor claramente ratifica a origem da desigualdade, contrariando de


certa maneira a Locke, à propriedade privada. Na tentativa de compreender o
que denomina como a servidão humana, Rosseau reconhece a impossibilidade
de realmente determinar tais articulações de forma absoluta, porém n’O
Contrato Social o autor visa determinar de que maneira essa liberdade perdida
do homem pode ser restabelecida ao menos no nível civil.
Como partidário de uma ideia que posteriormente foi desenvolvida por
Immanuel Kant, Rosseau acreditava que a obediência às leis prescritas por si
mesmo (já que faz parte de uma sociedade na qual o contrato estabelecido
assim determina) é um ato de liberdade. No Contrato Social o autor parte do
pressuposto de que o funcionamento da máquina política é determinado pelo
povo e nisso reside sua verdadeira liberdade. Como diz sobre isso,
Nascimento,
Um povo, portanto, só será livre quando tiver todas as condições de
elaborar suas leis num clima de igualdade, de tal modo que a
obediência a essas mesmas leis signifique, na verdade, uma
submissão à deliberação de si mesmo e de cada cidadão, como
15
partes do poder soberano.

13
COUTINHO, C.N., De Rosseau a Gramsci, p.17.
14
ROSSEAU, J., Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens,
p.269.
15
NASCIMENTO, M.M. Rousseau: da servidão à liberdade. In: WEFFORT, Franciso (Org). Os
Clássicos da Política. São Paulo: Atica, 1991. p.196
8
Aqui já vemos uma diferença marcante entre os conceitos de liberdade em
Rousseau e nos liberais, aqui marcados por Locke. No caso do autor francês, a
liberdade ganha um aspecto distinto de nível social – o fato de que as leis são
criadas pelos próprios homens para que possam segui-la. Essa articulação
entre o privado e o público é a inovação de Rosseau que nos interessa. Ao
mesmo tempo, vê-se aqui outro aspecto igualmente distinto na filosofia do autor
que, de acordo com Coutinho, citando Engels16, mais tarde será elaborado por
Hegel e Marx, qual seja, o de que essa noção de liberdade implica
necessariamente uma plasticidade do indivíduo que se aplica à sua condição
histórica e social específicas, de modo que ao se alterar o rumo da sociedade
civil, pode-se alterar, igualmente, o rumo de suas leis e de sua normativa moral
e ética. Nesse sentido, a liberdade rousseauniana se realiza na sociedade, ao
mesmo tempo que através dela. Aí vemos um componente dialético
embrionário, dado o fato de que nos defrontamos com uma espécie de
aufhebung, qual seja, a de que não existe uma oposição entre o indivíduo e a
sociedade, de modo que a vontade daquele deve se sobrepor a desta como um
somatório de indivíduos, mas sim um processo formador da liberdade, no qual
esses indivíduos, por reconhecerem a necessidade da vida em sociedade,
engendram a construção de um ambiente aprazível para todos. Esta
sociedade, destes indivíduos como seres sociais per se, é formada para que
lhes seja possível a satisfação de suas necessidades como indivíduos porém
também como sociedade civil.
Sem embargo, o pensamento de Rousseau traz consigo o embrião de uma
crítica que veio a se cristalizar mais tarde com Marx. Tal crítica se baseia na
instituição da propriedade privada e, consequentemente, na divisão do
trabalho. O autor francês foi capaz de desde então compreender, nas palavras
de Coutinho, “um antagonismo entre a essência social objetiva da humanidade
e a existência singular de cada indivíduo17” e, desse modo, já desde seus
tempos compreendia a questão da necessidade de emancipação do ser

16
“Em Rousseau, já nos encontramos não só com um processo de ideias idênticas, como duas
gotas d’agua, às que se desenvolvem em O cpital de Marx, mas também, em detalhes, com
toda uma série dos mesmos giros dialéticos que Marx emprega [...] E se Rousseau, em 1754,
ainda não podia se expressar no jargão hegeliano, ele já estava, dezesseis anos antes de
Hegel nascer, profundamente contaminado pela peste hegeliana, pela dialética da contradição,
pela teoria do logos, pela teologia, etc.” (ENGELS, F apud COUTINHO, C.N, p.21)
17
COUTINHO, C.N, p.24
9
humano, dados os grilhões concebidos com a acentuação dessas relações de
reprodução social.
Por fim, nos vemos agora capazes de seguir rumo à última etapa de nosso
trabalho, qual seja, a de trazer à tona o pensamento de Marx sobre a questão
da emancipação humana, em meio ao encontro de sua concepção da teoria do
Estado.

4. Marx, Sociedade e Natureza

Em vias de finalizar nosso trabalho, adentraremos a obra de Karl Marx e


Friedrich Engels a fim de buscar uma síntese daquilo que já foi colocado: como
condições históricas determinadas engendram distintos modos de se pensar a
relação da sociedade com o indivíduo e, também, como essa sociedade (aqui,
de indivíduos) se relaciona com seu meio18.
Para tanto, nos basearemos na abertura do Manifesto Comunista, dos autores
acima referidos, no qual dizem que

A história de toda a sociedade até hoje é a história de luta de classes.


Homem livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, burguês da
corporação e oficial, em suma, opressores e oprimidos, estiveram em
constante antagonismo entre si... [...]. A nossa época, a época da
burguesia, distingue-se, contudo, por ter simplificado os
antagonismos de classe. Toda a sociedade está a cindir-se, cada vez
mais, em dois grandes campos hostis, em duas grandes classes em
19
confronto direto: a burguesia e o proletariado.

Fica patente a forma como os autores percebem a cisão dualista existente na


sociedade. Sabemos que é n’O Capital que Marx se debruça mais
tecnicamente nos aspectos objetivos das relações de opressão existentes na
sociedade capitalista por meio da posse dos meios de produção por parte dos
burgueses e dessa falta por parte do proletariado.
Muito embora nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos Marx tenha apontado
para o conceito da alienação humana, cujo oposto lemos como sua
emancipação, seus escritos posteriores indicavam uma importância mais
18
O presente trabalho não é de monta suficiente para que passemos por todos os pormenores
da metodologia marxiana (que aqui bem poderia incluir uma apreciação com as acepções de
Hegel acerca do mesmo assunto). Mesmo assim, deixamos o registro de que em um trabalho
de maior monta, tal apreciação certamente será pormenorizada.
19
MARX, K e ENGELS, F. Manifesto do partido comunista. Moscou: Edições Progresso, 1987.
p.35.
10
central no critério da igualdade ao invés do tratamento direto da questão da
liberdade.
Não obstante, a não-centralidade (tão direta) da ideia de liberdade não a
sobrepuja do discurso de igualdade preconizado por Marx. Na realidade, o
autor parte do pressuposto de que no capitalismo, tal liberdade é impossível.
Para tanto, o autor não se furta de expor com clareza que a motor para o
desenvolvimento dessa liberdade se encontra na superação do modo de
produção capitalista que impede a manifestação plena das múltiplas
potencialidades humanas existentes, já que a desigualdade estrutural não
permite o pleno desenvolvimento das forças individuais. Sobre isso, Eagleton
diz que
É desta maneira que Marx resolve o paradoxo do individual e do
universal: para ele, o último termo significa não algum estado de ser
supra-individual, mas simplesmente o imperativo de que cada um
deva estar incluído no processo de desenvolver livremente suas
identidades pessoais. Porém, enquanto homens e mulheres ainda
precisarem ser recompensados de acordo com seu trabalho, as
20
desigualdades inevitavelmente persistirão.

Outrossim, apenas com a supressão da propriedade privada seria possível que


os trabalhadores (que obviamente constituem a maior parte da população, se
comparados com os detentores dos meios de produção) pudessem de fato
manifestar as aspirações mais íntimas, atingir a verdadeira liberdade. Apenas
em uma condição de igualdade tal manifestação se daria como possível.
Não é à toa que o movimento da maturidade de Marx foi o de instituir uma
forma através da qual esse antagonismo estrutural da configuração social
pudesse ser superado em direção a uma forma de sociabilidade realmente
plena, nos níveis individual, particular e universal. A posição radical de Marx
pode ser vista em uma declaração d’A questão judaica, quando diz que
Antes de poder emancipar os outros, precisamos emancipar-nos. A
forma mais rígida da antítese entre o judeu e o cristão é a antítese
religiosa. Como se resolve uma antítese? Tornando-a impossível. E
como se torna impossível uma antítese religiosa? Abolindo a
21
religião.

20
EAGLETON, Terry. Marx e a liberdade. Trad. de Marcos B. de Oliveira. São Paulo: Editora
UNESP, 1999. (Coleção: grandes filósofos). p.49-50.
21
MARX, K. A questão judaica. Rio de Janeiro: Gráfica Editora Laemmert, 1969.
11
Sem embargo, percebemos que para Marx, tal supressão do modo de
produção é a única maneira de se engendrar uma sociedade que forme um
indivíduo livre.
Cabe-nos observar, ademais, a diferença fundamental do conceito marxiano de
liberdade dentro do processo de reprodução do metabolismo social que é a
produção dos bens. Marx não entende, como no caso de, por exemplo,
Hobbes, Locke e Rousseau, que exista qualquer estado natural supramundano
que defina a liberdade como conceito em si. A liberdade em Marx é
conquistada através do fim dos grilhões que tornam possível a apropriação do
trabalho de um indivíduo para com outro.
O fato de o início d’O Manifesto Comunista trazer a ideia da sociedade de
classes, ou seja, da luta perpétua entre aqueles que possuem e os que não
possuem meios para reproduzir sua própria existência, mostra a intenção do
autor: a luta por uma sociedade sem classes é uma luta por uma verdadeira
emancipação política, que visa suprimir toda e qualquer relação de dominação
e, consequente, de alienação, no seio da estrutura social burguesa. Dessa
maneira, o indivíduo poderia afirmar-se como sujeito, ao invés de, na condição
do capitalismo, ser um mero objeto de um outro.
Por mais que não tenhamos podido nos alongar nos pormenores da teoria
política marxiana, principalmente em seu desenvolvimento metodológico à
partir de Hegel, acreditamos ter sido possível tornar claro o porquê de, acima
de tudo, Marx ser contemporaneamente demandado nos debates acerca da
atual crise ontológica vivida no capitalismo.
Sem que haja desigualdade, temos uma sociedade politicamente livre, já que
não há a limitação de um indivíduo em relação a outro para a manifestação
verdadeira de seu próprio propósito.
Terry Eagleton exprime de maneira magistral o que acreditamos ser a grande
virada ontológica proposta por Marx desde sua juventude e desenvolvido-se
mais tarde em sua Magnum opus, o Capital.

Somos livres então, quando como artistas, produzimos sem o


aguilhão da necessidade física; e esta natureza é para Marx a
essência de todos os indivíduos. Ao desenvolver minha
personalidade individual dando forma ao mundo, estou também
realizando o que tenho de mais profundo em comum com os outros,
de tal maneira que o ser individual e o genérico são em última análise
12
o mesmo. Meu produto é minha existência para o outro, e pressupõe
22
a existência do outro para mim.

5. Conclusão

No presente trabalho procuramos trilhar um caminho da teoria política desde


os tempos medievais, com Aristóteles e chegando à teoria política moderna
iniciada com Maquiavel.
Sabemos da obviedade de que tal tema é deveras denso e que em um ensaio
desta monta seria uma tarefa difícil resumir tamanho escopo teórico em
poucas páginas.
Acreditamos, no entanto, que tivemos nosso objetivo alcançado. Nossa
verdadeira intenção disse respeito a perpassar a noção da relação entre o
indivíduo e a sociedade, e mais especificamente do quê é esse indivíduo
naturalmente em relação a essa sociedade que o forma, que ele mesmo forma.
Via de regra percebemos uma diferença fundamental no tratamento dado ao
sujeito nos tempos medievais (quando este era inexistente e mesclado à pólis)
em relação ao sujeito que surgiu com Maquiavel, de natureza maligna e
mesquinha.
Mais adiante entramos em Hobbes, Locke e Rousseau, que, ainda atentos à
natureza humana, assumiam, grosso modo, um estado de guerra perpétuo que
ainda partia de uma natureza pré-social para o sujeito.
Vemos em Marx (para não dizer em Hegel e/ou no método dialético) a epítome
do processo de formação do ser social, o qual mesmo embrionário em
Rousseau, se manifestou mais tarde com a dialética de Hegel e Marx. O que
aquele iniciou, este transformou em uma síntese magistral da gênese do ser
social contemporâneo, de modo que temos indivíduos implicados em uma
estrutura produtiva opressora e imoral e que, só através da superação dessas
relações, que são fundantes e essenciais, poder-se-á despertar o pleno
potencial humano como tal.
Ademais, vemos a diferença ética e política entre o pensamento liberal e o de
Marx, já que para aqueles a liberdade individual que é fundante para a ideia de
igualdade.

22
EAGLETON, T., op. cit., p.29-30.
13
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARISTÓTELES. A Política. Tradução Nestor Silveira Chaves. São Paulo:


Escala, 1988.

COUTINHO, C. N. De Rousseau a Gramsci: ensaios de teoria política. São


Paulo: Boitempo, 2011.

EAGLETON, Terry. Marx e a liberdade. Trad. de Marcos B. de Oliveira.


São Paulo: Editora UNESP, 1999. (Coleção: grandes filósofos)

HOBBES, T. Leviatã. São Paulo: Martins Fontes, 2008

_________. Os elementos da lei natural e política: tratado da natureza


humana, tratado do corpo político. Trad. Fernando Dias Andrade. São
Paulo: Ícone, 2002. (Col. Fundamentos do direito).

LOCKE, J. . Segundo Tratado Sobre o Governo Civil, e outros escritos:


ensaio sobre a origem, os limites e os fins verdadeiros do governo
civil 3ª edição; Petrópolis: Vozes, 2001.

________. Carta acerca da tolerância; Ensaio acerca do


entendimento humano; Segundo tratado sobre o governo. Trad. de
Anoar Aiex. 2ª ed., São Paulo: Abril Cultural, 1978.

MAQUIAVEL, N. O príncipe. 2. ed. Tradução de José Cretella Jr. e Agnes


Cretella. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.

MÉSZÁROS, I. A teoria da alienação em Marx. São Paulo: Boitempo


Editorial, 2007.

MARX, K. Trabalho alienado e superação positiva da auto-alienação


humana (Manuscritos econômico-filosóficos de 1844). In: FERNANDES,
Florestan (org). K.Marx, F. Engels – História. São Paulo: Ática, 1983.

_______. A questão judaica. Rio de Janeiro: Gráfica Editora Laemmert, 1969.

MARX, K e ENGELS, F. Manifesto do partido comunista. Moscou: Edições


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NASCIMENTO, M.M. Rousseau: da servidão à liberdade. In: WEFFORT,


Franciso (Org). Os Clássicos da Política. São Paulo: Atica, 1991.

ROUSSEAU, J. Discurso sobre a origem e os fundamentos da


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São Paulo: Abril Cultural, 1978.

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