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Compreender
Olivier Dekens
Co mpreender
T radução
Paula Silva
llllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllll/111
20101662
Compreender Kant
Edições Loyofa
r liTULO ()f{!GIN,\L.:
Co111pre11dre f...:a11t
(' Arrnand Col in 2003
ISBN: 2-200-26426-7
sumário
J:l :· Introdução
I S I i> A d isposição filosófica 9
201 01 662-1 Uma filosofia da filosofia 1O
A natureza filosófica 11
A herança kantiana 13
Capitulo 1
CAPÍTULO IV
Capitulo V
O arq ui pélago da política 171 As obras de Kant são citadas segundo a paginação da edição de referência dita
Resistências do político 171 "da Academia de Berlim" (abreviatura "AK" seguida do número do volume
História e política 173 em romano e a página)
O direito e a racionalidade política 181
Política sensível e política racional: a necessidade da ação 189
Conclusão
O dever de filosofar 197
O filósofo e sua atualidade 198
A infância do pensamento 199
7
Introdução
A disposição filosófica
Há filósofos sobr e os quais nos per gun tamos às vezes por que sua obra
con tinua a influenciar, muito tempo depois de sua morte, o campo do
pensamen to A influência de um texto filosófico pode dever-se à sua qualidade
objetiva, à personalidade do homem que o engendrou, à ruptura que
introduziu no curso tranqüilo da história das idéias ou ainda ao momen to de
sua irrupção Quando se trata de Kant, uma questão assim parece desti tuída de
sentido, pois os seus escritos superam, em originalidade e força conceitual,
os escritos da maior parte de seus contemporâneos, bem como da maior
parte da produção filosó fica As razões do sucesso são aqui manifestas:
criatividade da obra, majestade do sistema, sutileza das análises - tudo
isto concorre para a excelência do propósi to Mais ainda: a filosofia de Kan
t parece condenar todo pensamento ulterior a um novo exame de seus
próprios princípios, tornados frágeis pelo sopro da crítica Como refletir
seriamente sobre a origem dos conhecimen tos humanos sem levantar a
questão de seus limites, nos pr óprios termos, insubsti tuíveis, da Crítica da
razão pura? Como fundar a consciência moral, mesmo que fosse para
contestá-la em seguida, sem evocar o que Kant chama de um fato da razão: a
presença em nós, misteriosa e incompreensível, da lei? Como dizer o belo, os
fins da humanidade ou os do individuo sem aplicar essa
9
Compreender A disposição filosófica
faculdade de julgar da qual Kan t soube, malgrado tudo o que se possa ao incondicionado -é justamente o que é preciso preservar e salvar, desem
censurar even tualmente em sua definição, exprimir a flexibilidade tão baraçando-a de seus aspectos mais contestáveis e de suas errâncias ilegitimas
particular? Há, pois, um antes e um depois de Kan t, e teremos ocasião de A crítica pode assim ser entendida como um dispositivo intelectual destinado a
mostrar em que essa revolução filosófica é sem dúvida uma revolução, para afirmar o direito a uma disposição do homem com relação à metafisica
além da invejável fortaleza em que a tradição situa, de bom grado, o kantismo
O kantismo é, pois, uma filosofia da filosofia por sua letra -a
elaboração da reflexão como princípio de todo pensamento -e por sua
finalidade -sal var o filósofo natural que habita em todo homem Tal é, ao
Uma filosofia da filosofia menos, o sentido último das análises que gostaríamos de propor aqui, e o
de algumas observa ções que nos parece necessário acrescen tar a esta
Mas há mais ainda Para expressá-lo de modo simples, o pensamen to critico breve apresentação, antes mesmo de en trarmos no cerne do corpus
parece-nos dever ser definido como uma filoso fia da filoso fia Devemos nos kantiano
en tender bem sobre esta fórmula, que poderia ser apenas um slogan Kan t
não propõe, em nenhum caso, uma filosofia última, que reagruparia,
unificando as, as tentativas anteriores, fornecendo-lhes desse modo a caução
A natureza filosófica
do sistema Kan t, como homem e como filósofo, não tem tais pretensões
Mas não se trata tam pouco de reduzir o pensamen to crí tico a uma longa
Define-se comumente a crítica kan tiana como uma avaliação dos poder es da
interrogação so bre a iden tidade da filosofia, em que Kan t seria só um
razão, tan to teórica como prática 'Tra tar-se-ia, em suma, de determinar os
exemplo entre outros desse exercido habitual que consiste em perguntar "o
limites da razão cognoscente e o dever da razão agente Tudo isso é verdade
que é a filosofia?" Esse estilo de prosa consti tui um verdadei ro gênero na
E preciso acrescentar, primeiramen te, que esse procedimento não visa princi
história do pensamen to, que não gerou apenas obras-primas Dito de outro
palmente a restringir as aspirações da razão, mas antes a guiá-la, a fim de que
modo: se o criticismo é uma filosofia da filosofia, não é por se furtar ao
ela manifeste seu valor, sua utilidade e sua vocação da maneira mais sólida e
trabalho da construção da fi losofia, mas porque inventa a própria forma de
mais legitima Kant constrói, pois, seu pensamen to como uma defesa e uma
reflexividade que toda filosofia põe em andamento
ilustração da razão humana em seu destino fundamen tal Convém, pois, que
Neste sentido, Kant, em cada um de seus escritos, faz duas coisas ao mes
nos interroguemos brevemente sobre a natureza dessa faculdade
mo tem po: de um lado, elabora, e muito bem, as condições de possibilidade do
A razão kan tiana é, primeiramen te, o poder mais elevado do espirito, pelo
conhecimen to, da moral ou do juízo estético (en tre ou tros); de outro, deter
qual as regras do entendimen to -que organiza a experiência dos sentidos -
mina, de modo casual, o próprio instrumento de seu pensamen to, aquilo que
são conduzidas à unidade de um principio' Esta razão é, contudo, marcada
deve em suma figurar no princípio de todo procedimento filosófico
por uma tendência mais essencial ainda: aspira ao infinito, ao além dos fenô
A obra kantiana é, portanto, uma filosofia da filosofia por uma razão ain
menos, ao que Kant chama de Idéias Não é, pois, a arma triunfante de um
da mais profunda, que se poderia expressar assim: o pensamento crítico pre
espirito in teiramente senhor de si, mas a faculdade própria do homem, pela
tende ser a elaboração de uma filosofia do homem como animal filosó fico.
qual este se abre obscuramente àquilo que não pode verdadeiramente conhe
Kant considera, com efeito, que há, no mais profundo do ser humano, um
cer: Deus e a liberdade. Na origem do projeto kantiano, acha-se assim uma
desejo, uma tensão apon tando para o além da experiência, que seria ilusório
potência inquieta, "curvada sob o peso de questões que não pode descartar"',
preten der controlar A natureza metafísica do espírito é um dado, ou antes,
que ela pr ópria produz, sabendo que não poderá responder a elas Se ela não
uma disposição originária do pensamento, que a filosofia pode e deve
é, como acabamos de ver, uma faculdade perfeitamente independente, não se
exprimir, mas que não é chamada a combater Kant vai mais longe Esta
tendência de pensar Deus, a liberdade, o mundo -esta orientação do
homem em direção
1 Cf Crítica da razão pura (doravante CRP), A 302/B 359
2 lbid . A Vil
10 11
Compreender A disposição filosófica
12 13
Capítulo 1
A definição kantiana da
filosofia
Uue é filosofia?
Di to isto, é impor tan te ler um pouco mais aten tamen te alguns tex tos expli
citamen te destinados a determi nar os objetos da filosofia Kant põe ai em
andamen to a separação cr í tica , e expõe a organização de seu pensamen to, e
enuncia o resultado da aplicação da reflexão à totalidade dos objetos possí
veis de análise
15
Compreender A definição kantiana da filosofia
Os objetos da filosofia que faz o inven tário dessas condições, forma o esqueleto da metafísica, se
pelo menos nos con tentarmos com esta definição puramente teórica do
Dois textos podem ser aqui evocados O primeiro é tirado da Teoria transcen termo A separação entre um saber legítimo e uma pretensão ilegítima de
dental do método, que fecha a Critica da razão pura Kant define aí o conceito saber é a pri meira função da filosofia Essa separação torna necessária a
de inter esse da r azão, isto é, as questões às quais a razão está condenada a elaboração do que Kan t chama de transcenden tal, isto é, o conjunto das
responder por seu próprio interesse A passagem é das mais célebres: condições de possibilida de do conhecimento, concei to em torno do qual se
organiza a primeira Critica.
Todo interesse de minha razão (tan to especulativo como prático) concentra-se Vol taremos a este ponto
nas três questões seguintes: A primeira questão concerne ao saber, à ciência, em suma, a tudo o que
1ª Que posso conhecer? Kant chama de teoria. A segunda é, por sua vez, exclusivamen te prática. O
2ª Que devo fazer? que significa simplesmen te que se tra ta, para Kan t, de refletir sobr e a ação
3ª Que posso esperar'? 1 e sobre a maneir a de conduzi-la Elaborar a ques tão "Que devo fazer?"
consis te, pois, em explici tar aquilo que se apresen ta à consciência como
obrigação moral A filosofia absolu tamen te não delibera mais aqui a respei
O segundo texto em que uma mesma tentativa de definição aparece é o
to da nat u reza de nosso saber; ela não é mais, nesse sen tido, transcenden
da Lógica. Não se trata aqui propriamente de um texto de Kant, mas de ano
tal, mas trata do que a razão prática deve ser enquan to faculdade moral Os
tações feitas por ocasião do cutso de lógica que ele deu ao longo de sua vida
Fundamentos da metafisica dos costumes e a Crítica da razão prática
de professor Kant r epete aí as três perguntas citadas, explicando que se trata
aplicam-se em responder a esta questão, que é, para Kant, a mais importan te
não somente de determinar os fins da razão, mas também de delimitar o cam
A última questão é muito mais difícil de compreender Retenhamos pro
po da filosofia' Dito de outro modo: a Filosofia é um pensamento que tenta
visoriamente que Kan t, ao respondê-la, determina o que o homem pode es
responder às questões que a razão se põe, ou antes, que ela é obrigada a se pôr
perar de uma vida conduzida segundo o respeito à lei moral Essa questão
Essa divisão tripartida do tr abalho da filosofia é cômoda, e Kant esforça-se por
vem, pois, logicamente na seqüência da segunda e concerne, muito direta
r espeitá-la cada vez que apresenta sua obra O que ela nos ensina?
men te, como diz a Lógica , à religião Isso não significa que os textos que
As três perguntas não nos dizem o que é a filoso fia , mas aquilo de que ela
I<ant consagra à religião - principalmen te A religião nos limites da
se ocupa Seu primeiro objeto, a resposta à per gun ta "Que posso conhecer?",
simples razão
corr esponde, diz Kan t na Lógica , à metafisica Esta observação de Kant traz,
-respondam à questão Pode-se até dizer que é bastan te delicado atribuir
na verdade, pouco esclar ecimen to sobre a natureza exata do trabalho reque
a uma única obra a tarefa de respondê-la Digamos simplesmente, e ainda
rido. Pode-se, contudo, compr eender esta afirmação com base no que ele es
provisoriamen te, que a cada vez que Kan t se in terroga sobre a finalidade
creve em outra parte sobre a metafísica, por exemplo nos Prolegômenos a toda
do homem como ser moral e ten ta estabelecer que gênero de felicidade
meta fisica futura: "a critica, e só ela, contém em si o plano total bem
um ho mem virtuoso tem o direito de esperar ele responde a essa terceira
examinado e provado, e mesmo todos os meios de execução que permitem
questão E é a este titulo que a Critica da faculdade de julgar , mas também
realizar a me tafisica como ciência"3 Em outros termos: a metafisica é a forma numerosas passagens da Critica da razão prática corr espondem a esse
exaustiva e detalhada da critica, considerada como a exposição das condições
objetivo
de possibi lidade a prio1i e dos limites do conhecimento humano A Critica da A filosofia kantiana -e 2 filosofia em geral -deve abordar sucessiva
razão pura , mente o problema dos limites do conhecimen to, o do dever e, enfim, o das
esperanças legítimas de todo homem Tal programa de trabalho pode fazer
1 CRP, A 805/B 833 pensar que a filosofia se reduz, no fundo, a um conjunto sistemático de conhe
2 Cf Lôgica. AK [X, 25; trad Guillermit, Paris, Vr in, 1969_ p 25
cimentos que um estudan te consciencioso poderia assimilar progressivamen
3 Prolegórnenos AK IV, 365; P li, p 152
te Kant não se atém naturalmente a esta concepção escolar da filosofia, que
ele qualifica até mesmo de escolástica Acrescenta, pois, um pouco adiante,
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17
Compreender A definição kantiana da filosofia
Os objetos da filosofia que faz o inventário dessas condições, forma o esqueleto da metafisica, se
pelo menos nos con tentarmos com esta definição puramente teórica do
termo A
Dois textos podem ser aqui evocados O primeiro é tirado da Teoria transcen separação entre um saber legitimo e uma pretensão ilegítima de saber é a pri
dental do método, que fecha a Critica da razão pura. Kant define ai o meira função da filosofia Essa separação torna necessária a elaboração do que
conceito de in teresse da razão, isto é, as questões às quais a razão está Kan t chama de transcenden tal, isto é, o conjun to das condições de
condenada a responder por seu próprio in teresse A passagem é das mais possibilida de do conhecimento, concei to em torno do qual se organiza a
célebres: primeira Critica. Voltaremos a este pon to
A primeira questão concerne ao saber, à ciência, em suma, a tudo o que
Iodo in teresse de minha razão (tanto especulativo con10 prático) concentra se Kan t chama de teoria A segunda é, por sua vez , exclusivamen te pr ática. O
nas três questões seguin tes: que significa simplesmen te que se trata, para Kan t, de refletir sobr e a ação
1ª l1ue posso conhecer? e sobre a maneira de conduzi-la Elaborar a questão "Que devo fazer?"
2ª Que devo fazer'? consis te, pois, em explici tar aquilo que se aprese n ta à consciência como
3ª Que posso esperar'?1 obrigação moral. A filosofia absolu tamen te não delibera mais aqui a respei
to da natu reza de nosso saber; ela não é mais, nesse sentido, transcenden
tal, mas trata do que a razão prática deve ser enquan to faculdade moral Os
O segundo texto em que uma mesma tentativa de definição aparece é o
Fund amentos da meta fisica dos costumes e a Critica da razão prática
da Lógica Não se trata aqui propriamente de um texto de Kant, mas de ano
aplicam-se em responder a esta questão, que é, para Kant, a mais importan
tações feitas por ocasião do curso de lógica que ele deu ao longo de sua vida
te
de professor Kant repete ai as três pergun tas citadas, explicando que se trata
A última questão é muito mais difícil de compreender Retenhamos pro
não somente de determi nar os fins da razão, mas também de delimitar o cam
visoriamen te que Kan t, ao respondê-la, deter mina o que o homem pode es
po da filosofia' Dito de outro modo: a Filosofia é um pensamen to que ten ta
perar de uma vida conduzida segundo o respeito à lei moral Essa questão
responder às questões que a razão se põe, ou an tes, que ela é obrigada a se pôr
vem, pois, logicamente na seqüência da segunda e concerne, muito direta
Essa divisão tripartida do trabalho da filosofia é cômoda, e Kan t esforça-se
mente, como diz a Lógica , à religião Isso não significa que os textos que
pm respeitá-la cada vez que apresenta sua obra. O que ela nos ensina?
Kant consagra à religião - principalmen te A religião nos limites da
As três pergun tas não nos dizem o que é a filoso fia , mas aquilo de que
simples razão
ela se ocupa. Seu primeiro objeto, a resposta à pergun ta "Que posso
- respondam à questão Pode-se até dizer que é bastante delicado
conhecer?", corresponde, diz Kant na Lógica , à metafísica Esta observação
atribuir a uma única obra a tarefa de respondê-la Digamos simplesmente, e
de Kant traz, na verdade, pouco esclarecimen to sobre a natureza exata do
ainda provisoriamente, que a cada vez que Kan t se i n terroga sobre a
trabalho reque rido Pode-se, contudo, compr eender esta afirmação com base
finalidade do homem como ser moral e tenta estabelecer que gênero de
no que ele es creve em outra parte sobre a metafisica, por exemplo nos
felicidade um ho mem virtuoso tem o direi to de esperar ele responde a essa
Prolegômenos a toda metafisica fiitura: "a cri tica, e só ela, contém em si o
terceira questão. E é a este titulo que a Crítica da (acuidade de julgar, mas
plano total bem examinado e provado, e mesmo todos os meios de execução
também numerosas passagens da Critica da razão prática correspondem a
que permitem realizar a me tafísica como ciência"3 Em outros termos: a
esse objetivo
metafísica é a forma exaustiva e detalhada da critica, considerada como a
A filosofia kan tiana -e a filosofia em geral -deve abordar
exposição das condições de possibi lidade a priori e dos limites do sucessiva men te o problema dos limi tes do conhecimento, o do dever e,
conhecimento humano A Critica da razão pura , enfim, o das esperanças legi timas de todo homem Tal programa de
trabalho pode fazer pensar que a filosofia se reduz, no fundo, a um
1 CRP. A 805/B 833 conjunto sistemático de conhe cimentos que um estudan te consciencioso
2 (f Lógica. AK IX. 25; trad Guillei mit, Paris, Vrin. 1969. p 25
poderia assirnilar progressivamen te Kant não se atém naturalmen te a esta
3 Prolegôrnenos, AK !V 365; P II_ p 152
concepção escolar da filosofia, que ele qualifica até mesmo de escolástica
Acr escen ta, pois, um pouco adiante,
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Compreender A definição kantiana da filosofia
na teoria transcenden tal do método, que a filosofia não é uma disciplina que defi nida como a "ciéncia da relação de todo con hecimen to e de todo uso da
se domine ou que se possua, mas urn exercício, sempre iecon1eçado, o exer razão para o fi m últi mo da razào h u mana"' Responder à questão do homem
cício de uma razão crítica, desconfiada de tudo, principalmen te de si mesma consiste em elucidar, em seu fundarnen to, essa disposição particular do seI
(2.ue ensinamen to ex trai r disso para o nosso propósito? Simplesmen te humano, explici tando o princí pio das três primeiras questões, organizando-se
que a esséncia da filosofia está em uma aplicação, mais que em seus o conjun to em torno do conceito de fim A na tureza filosófica é a condição de
objetos, e que defini tivamen te a elaboração das condições de possibilidade possibilidade da filosofia sob todas as suas formas: descrever o homem resul
do trabalho filosófico consti tui u n1a defin ição ben1 rnelhor de sua na tureza ta , pois, em mostrar por q ue e como há filosofia
que o enu n Para designar essa aptidão par ticular do hornem e1n relação ao que o
ciado de seus campos de aplicação Isso significa concretamen te também que transcende, Kan t emprega o belo termo "cultura"7 Essa qualidade propria
a partilha cri tica que f u nda a divisão ele filosofia em trés questões repousa men te humana confere ao homem toda a sua dignidade e o torna digno de
numa experiência da filosofia mais origi nal, aquela que a Crítica da faculdade respei to Ela é o que permi te a todo sujei to dar-se fins, objetivos, pri ncipies
de )1iiga1 " desenvolve longamen te e obrigações; mas é também, em Kan t, sinônimo de uma certa receptividade
às Idéias ou, de modo mais geral, ao que transcende a experiência sensivel
Reten hamos simplesmen te aqui alguns índices da presença da cultura
A filosofia como antropologia nas descrições que Kan t nos dá do homem No campo teórico, vi mos que o
homem tende na turalmen te ao absoluto: é, literalmen te, mais forte que ele
O tex to da Lógica con tém urna quarta questão, ausen te da Crítica da No campo moral. as coisas se apresen tam um pouco diversamente: mas I<an t
razão pura: "O que é o homem?" I(ant não se contenta em acrescen tar um fala de novo de uma "cultura da razão' º para designar a aptidão para escutar a
objeto de estudo ao catálogo dos ternas possiveis de reflexão Sublinha logo, em exigéncia da lei moral, malgrado sua severidade e a i nfelicidade a que parece
uma observação cheia de conseqüências: "no fundo, poder-se-ia pôr tudo isso condenar o individuo Dá-se o mesmo no ca1npo estético: não é possível, diz
na con ta da an tropologia, porque as trés questões se repor tam à última"' A I(an t, sentir alguma coisa como o sublime, na arte ou na nat ureza, sem ser a
filo sofia não seria, no fundo, senão uma forma de an tropologia An tes de 1ni11ilna receptivo ao que ultrapassa a nat uieza O homem kan tiano, nessas
tentar compreende, por que Kan t afirma isso, observemos simplesmen te que diferen tes figuras, manifesta, pois, uma racionalidade 1narcada por uma forrna
esta tese só faz formular claramen te o que havíamos assinalado desde a de passividade, de abertura ao infi ni to Se a filosofia kan tiana é uma antro
introdu ção: a filosofia kan tiana como defesa da na tureza metafisica do pologia, e se toda filosofia deve sê-lo, seria, pois, por esta única razão: há no
homem é ne cessariamente, ao mesmo tempo, uma filosofia da filosofia e uma coração do homen1, como no coração do pensamen to, um só e inesmo desejo
filosofia do homern, indlssociáveis entre si Dizer o que é o homem e definir a das Idéias Resta com preender agora aquilo a que conjun tamen te tendem o
filosofia procedem de um só e único esforço de concei tuação do desejo de homem e a filosofia A junção ou a quase iden tificação en tre a cultura, a filo
metafísica que anima u:n e ou t10 sofia, a metafisica e a humanidade poderá então ser feita, e nosso percurso do
A relação entre filosofia e antropologia não é simples de estabelecer no pensamen to kan tiano se desen rolar, sem que percamos de vista essa singular
tex to kan tiano Kan t não diz somen te que a reflexão sobre o homem unifica conf usão de in teresses en tre o homem e sua razão
e resume a metafísica, a moral e a religião Afirma, precisa1nen te, que há no
homem uma certa disposição par a a finalidade que preside à própria filosofia,
4 Isto será objeto de de1nonstração no capít ulo seguinte A respeito desse pon to, subs ctevemos 6 lbid
as análises de Aléxis PH!LONENKO em sua introdução da Critica da faculdade de julgar Paris. 7 Cf C ritica da faculdade de ;ulgar (doravan te CFJ). AK V, 265; P li, p
Vrin. 1993, p 11 1036 3 F undanientos da met afísica dos costumes. AI< IV .396; P li. p
5 L ôgica , AK IX, 24; trad Gui!!ern1i t, p 25 254
18 19
Compreender A definição kantiana da filosofia
Os fins do homem Locke Para sim plificar, pode-se dizer que a fundação da ciência obtida por sua
definição como unidade entre a sensibilidade e os conceitos do entendimento é
Num texto curto, publicado no outono de 1786 - Que é orientar-se no um efeito secundário do empreendimento kan tiano. Kant salva os fenômenos,
pensa
determina precisamente a condição de seu saber, elabora os limites insuperáveis
lnento? -, Kan t formula, ainda mais claramen te que na c·ritica da razão pura ,
de todo conhecimen to cien tifico ludo isso é verdade Con tudo, não é esse o ob
o principio que fundamenta sua concepção do homem e da metafisica Escreve
jetivo primeiro da tarefa da crítica Salvar a ciência só tem significado, para Kant,
que o espírito tem o direito de ultrapassar os estritos limites do conhecimento
se esse procedimen to permite salvar a liberdade e a metafísica como disposição
teórico, ou seja, os da experiência sensível, para se aventurar no espaço imenso
na tural do homem Os tex tos são, quan to a esse pon to, ele grande clareza, mais
do supra-sensivel A crí tica, nesse sentido, deve preservar "o direito da neces
ainda, talvez, na segunda edição da Crítica da razão pura que na primeira
sidade da razão, corno principio subjetivo"!l A razão kan tiana não é razoável,
O pr efácio da segunda edição esforça-se para esclarecer o estatuto do tex
tende sempre a ultrapassar os limites de seu uso teórico legítimo Ao mesmo
to que apresen ta I(an t escreve aí, especialmen te, e esta frase é da mais alta
teinpo, como é justamente no espaço do supra-sensivel que se acha seu in ter es
i111portância:
se fundamental, quer dizer, aqui a lei moral, convém consolidar essa tendência
orien tando-a corretamen te A filosofia crí tica pode então ser definida como
U nia crítica que restringe a razão especulativa é segu ra1nen te negat iva nisso,
uma jurisdição do direito da necessidade da razão, que o con trola e o r eafirma,
mas ao suprimi r, assim, ao n1esmo tempo. utn obstáculo gue restringe o uso
ao mesmo tempo T rata-se simplesmen te de preservar os in teresses da razão,
prático, ou ameaça mesmo aniquilá-lo_ ela ê, de fato, de urna uti lidade positiva
que seu mau uso ou um ceticismo muito vi rulen to poderiam pôr em perigo
e muito i mportan te, desde que se esteja convencido de que há um uso prá tico
Esses interesses, dissemos, são de três tipos. A preocu pação epistemoló
absoluta men te necessário da razão pura (o uso moral)lll
gica, a preocupação moral e a questão da finalidade do individuo e da humani
dade são os três ca1npos em que a razão vai buscar seu in teresse Este é, a cada
Este trecho exige duas observações. Primeiro, a cri tica supõe como um
vez, diferen te É do interesse da razão não pretender conhecera supra-sensível
fato indubi tável a existência de um in teresse prátic:n da razão l(an t não de
no campo teórico: é de seu in teresse, ao contrário, não u tilizar a sensibilidade
monstra por que a moral é vital; ele o afirma como um dado incon testável E m
na elaboração do dever moral Mas o pensamento kan tiano, como filosofia
segundo l ugar, o obstáculo que se trata de destruir é a negação da liberdade,
sistemática, não pode se con ten tar em enumerar esses diversos in teresses
que resultaria da extensão ao supra-sensível das leis da causalidade que con
Irá esforçar-se para organizar sua arqui tetura, distinguindo o que é essencial
vêm aos fenômenos sensiveis Quebrando o impulso da Iazão teórica em suas
à razão do que, e1n defini tivo, é só um meio a serviço de u1n fim mais elevado
pretensões de con hecer o supra-sensivel, a cri tica abre um espaço para a razão
É talvez nesta singular hierarquia das diferen tes facetas de racionalidade que
prática, que não é mais um espaço de conhecimen to cientifico, mas um espaço
reside a originalidade do kan tismo
de pensamen to e de ação Tal delimitação não é, em nenhum caso, uma mar
ca de ceticismo ou um procedimen to repressivo Kan t precisa: é tão absurdo
Salvar a liberdade considerar que a crítica não traz nada de positivo quan to dizer que a polícia é
inútil sob o pretexto de que ela restringe a violência individual"
A celebridade bem compreensível da Crítica da mzão pura e uma longa tradição A lógica do argumen to kan tiano pode facilmen te ser reconstruida a partir
da i n terpretação fizeram do pensamento critico uma filosofia do conhecimento, do segundo prefácio Interessa à razão reconstruir uma moral; ora, toda moral
preocu pada, antes de mais nada, ein fundar a ciência, como tentara1n fazê-lo, supõe que a liberdade seja possível; é preciso, pois, que a critica da razão es-
antes dela, os racionalismos do século XVII ou as teorias empiristas nascidas d e
10 CRP. B XXV
11 lbid
9 Que é orientar-<;e no pensamenro?_ AK Vl!l. 137; P II, p 534
20 21
Compreender A definição kantiana da filosofia
pecula tiva não torne con tradi tório o conceito de liberdade Mostrando que as É nesse espiri ta que é preciso compreender as palavras famosas do se
leis da física, principalmen te a lei da causalidade necessária, só se aplicarn gundo prefácio: "Devia, pois, suprimi r o saber, para encon trar um lugar para a
aos fenómenos sensíveis, Kan t torna pelo menos pensável uma liberdade, f(
14
Suprimir o saber consiste em demonstrar a ilegitimidade de um conheci
delas escapando Ele não pretende ter uma in tuição dessa liberdade; menos men to que pre tendesse ul trapassar a experiência; encontrar u 1n lugar para a fé
ainda um conhecimen to cien tífico; con tenta-se em afirmar que a idéia da significa resti tuir à moral o espaço deixado vazio pelo dogmatismo moribundo
liberdade é compatível com a de um m u ndo. Em ou tros termos: a crítica da dos racionalisrnos não-criticas Niais concretamen te ainda: a crítica da r azão
razão pura per m ite à disposição metafísica que constit ui o ser h umano pura penni te suprimir as ilusões e os erros do espí ri to que pudessem levar
manifestar-se legi ti mamen te num campo de pensamen to não submetido toda 1netafisica à mesma depreciação
às condições do saber cien tifico Com o estabelecimento dos limi tes deste, A prilnazia concedida à prática não é o fato de u ma simples hierarquiza
abre-se um universo, um espaço de liberdade, de dever, um lugar também ção dos problemas da filosofia Ela apóia-se em uma determ inação da razão
para que a idéia de Deus não seja mais uma quimera ou conceito vazio de como faculdade capaz de tudo, do melhor como do pior: a crí tica é só a
uma teologia pretensiosa sepa ração entre uma me tafísica legítima, quer dizer, a inoral, e uma
metafísica da ilusão, que pre tende conhecer, quando se tra ta só de pensar
12 A 800/B 828
13 Cf A 806/B 8:34 14 B XXX
22 23
Compreender A definição kantiana da filosofia
i mpossível; deve, em seguida, indicar e1n que consiste a 1netafísica co1no ciên quais inevitavelmente conduz Nesse sentido, é uma "pseudociência
cia , quer dizei; como conjunto sistemático das condições de possibilidade do sofistica"rn, uma tagarelice dogmática insuportável que não repousa em
conhe cimento; ela pode, enfim, em toda a sua necessidade e em todo o seu nada de sólido Kant desqualifica aqui a quase totalidade de seus
valor, pensar a metafísica como doutrina da liberdade. É verdadeiramen te predecessores, ao menos no campo da filosofia alemã, ao menos aquela que
impossível compreender a crí tica sem esclarecer uma terminologia que Kant acreditou poder abster -se de uma reflexão sobre os limites de nosso saber
emprega de modo muito desordenado e fr eqüen temen te surpreendente Pode-se e deve-se pensar Deus, a alma, a liberdade: mas pretender conhecê-
Convém estudar em detalhe cada um dos sentidos possíveis do termo los esbarra na impostura
Desde Os sonhos de um visionário , Kan t declara-se um apaixonado pela No primeiro sentido, a metafisica é uma disposição; no segundo, é um erro
metafi sica, mesmo se ela mui tas vezes não lhe manifesta estima15 A Critica da Kan t não exclui que ela possa ser qualificada de ciência, mas é obrigado, para
razão pura diz isso de maneir a mui to mais explicita: a metafisica é, antes de demonstrá-lo, a adaptar sensivelmen te sua própria definição inicial da me
mais nada, uma tendência ineren te ao espírito humano, que não pode se tafisica Não se trata mais aqui de uma tendência ao supra-sensivel; não se
satisfazer só com a experiência sensível e inevitavelmen te afirma no mundo trata tampouco de ir além da experiência, mas de compreender o que a torna
supra-sen sível os conceitos de que a razão tem necessidade, em virtude de possível A metafísica como ciência conserva o gosto do universal e da neces
sua própria sidade, que justifica que se persista em chamá-la assim Mas a universalidade
natureza Na determinação desta disposição, Kant oscila entre o elogio e o em questão é interpretada como o índice do caráter a priori das condições de
opróbrio: ora ela é a filha querida da razão, um "germe originário sabiamen te
experiência. Um conhecimento teórico absolu tamen te certo e universal é
organizado em vista de grandes fins"16; ora ela é essa dialética inevi tável da pas sivei desde que se conten te em estabelecer o sistema completo das
razão que finalmen te a conduz a se enganar Mas, em todos os casos, a metafí condições de possibilidade do conhecimento teórico. A metafisica é então
sica deve ser protegida, n1ais que destruida O ho1nem nunca renunciará a ela, uma ciência
como não renuncia a respirar17; mais ainda, ela tem como vocação completar a dos limites da razão humana e contém todos os princípios puros da razão
19
cultur a da razão, conduzindo-a a seu verdadeiro destino No fundo, é idên tica à filosofia transcendental em seu conjunto
24 25
Com preender A definição kantiana da filosofia
Cartografia filosófica aqui do conhecimento à legislação Concre tamen te, isso significa que, no ter
reno da experiência, dois tipos de legislação coabitam: o do en tendimento que
O percurso gue nos propusemos aqui - uma leitura das duas i n consti tui as leis da na tu reza e o da r azão que elabora as leis da liberdade
troduções da Crítica da faculdade de julgar -só terá como objeto
compreender melhor o princípio arquitetônico do pensamen to kan tiano A O entendimento e a razão são duas faculdades inteiramen te distin tas,
análise das duas primeiras Críticas , que descrevem a população concei tua! do con tudo igualmen te legisladoras no terreno da experiência Quando o enten
campo teórico e do campo prá tico, será assim preparada pela elucidação da dimen to está no poder, estamos no campo da nat ureza e do conhecimento
teórico; quando a razão tem força de lei, estamos no campo da liber dade e,
distinção en tre teoria e prá tica A cronologia das obras, que vê a Crítica da
pois, da prática Dito de outro modo: a Critica da razão pura é o código jurídico
faculdade de julgar concluir em parte o empreendimen to kan tiano, deve, pois,
ser derrubada em favor de uma ordem lógica: compr eender primeiro como do en tendimento cognoscen te; a Crítica da razão prática é o da razão agente
Kant estabelece a cartografia do pensamen to; refletir em seguida sobre as
características e os limi tes do ca1n po teórico; analisar, enfim, os fundamentos
morais do campo prático, aquele para o qual tudo é defini tivamente 21 C rttica da faculdade de julgar, 1-\K V 174; P li. p 92 7
empreendido A estética, a história e a polí tica 22 l bid
23 lbid
26 27
Compreender A definição kantiana da filosofia
Essas duas legislações coexistem no terreno da experiência Con tudo -e nhuma contradição no procedimento de Kant: assinala somente que é preciso
é dai que Kan t tira o sen tido da palavra "campo" -, "existe um abismo imen talve buscar em outra parte o verdadeiro pon to de passagem entre os campos
so en tre o carnpo do conceito da natureza, enquanto sensivel, e o campo do da ctenoa e da moral, da natureza e da liberdade, um lugar que se encontraria
conceito de liberdade, enquanto supra-sensivel"24 A legislação do en tendimento no fundamen to da teleologia como da estética A reflexão, que é a base co
concerne à experiência e repousa sobre a experiência A legislação da razão con mum das duas manifestações possíveis da faculdade de julgar, é sem dúvida
cerne també1n à experiência -trata-se do agir concretamente -mas repousa o principal ator da organização do espaço filosófico É ela quem estabelece os
por definição no além da experiência, não sendo concebivel em outra par te a limi tes dos diferentes campos; é ela quem assinala a cada conceito o espaço de
liberdade A terceira Crítica tem, pois, como único objeto preencher esse abismo, seu uso legítimo; é ela quem ten ta organizar as pon tes e as passar elas entre as
não por simples preocupação com a unidade sistemática, mas an tes porque "o diversas zonas de influência do en tendimento e da razão. Retornaremos, bem
concei to de liberdade tem o dever de tornar efetivo, no mundo sensível, o fim en tendido, a esse problema quando lermos em detalhes os desenvolvimentos
imposto pot suas leis"" Desse dever de influência Kant conclui pela necessi de Crítica da faculdade de julgar Lembremos aqui apenas aquilo que, no texto
dade de pensar a natureza de tal sorte que ela concorde com a possibilidade dos das introduções, pode ajudar-nos a compreender o conjun to da obra de Kant: 0
fins postos pela liberdade Não se pode afirmar mais claramente o primado da papel primordial da reflexão na organização do espaço filosófico
prática, que já evocamos acima Se se reconstitui o conjunto do procedimento:
1 A Filosofia como cartografia delimi ta dois campos. de tal sorte que toda pas
Geofilosofia
sagem parece excluída
2 O primado da prática impõe, con tudo, que a moral tenha uma in íluência
Posição da disposição metafísica no fundamento do homem e da filosofia; ne
real
cessidade de consolidá-la, em virt ude da destinação moral elo homem; insti
no n1undo da experiência sensível tuição de uma divisão crítica como melhor meio de preservar os direitos da
3 Esse mundo deve, pois, ser concebido para se acei tar em si o exercido da necessidade da razão; invenção de uma técnica territorial conduzida pela r e
liberdade flexão para levar a bom termo essa divisão. Essas diferentes etapas nos condu
zem na turalmen te ao in teresse por esse dispositivo reflexivo
A faculdade de julgar é precisamen te a insistência de tal unidade final dos Que é a reflexão? Ela é, diz Kan t, "o estado de espírito no qual nos dis
campos e dos poderes do espiri ta E a terceira Crítica, a simples descrição dos
pomos, primeiro, a descobrir as condições subjetivas sob as quais podemos
diferen tes meios utilizados par a alcançar esse objetivo 20
chegar a conceitos" 'Trata-se somente, num primeiro momen to, de nos
A filosofia critica pode ser concebida como um vasto trabalho de organi
in teressarmos pela relação entre nossas representações -in tuições,
zação do terri tório Importa, pois, saber um pouco mais precisamente o que o conceitos,
texto que acabamos de comen tar nos permi te entender -a quem idéias - e as diferentes fontes de conhecímen to Mais exatamen te -
efetivamen te cabe tal missão As duas i n troduções não são sempre claras e ela pode então ser qualificada de transcendental -, a reflexão conf ronta
quan to a esse pon to Ora Kant parece atribuir ao juízo teleológico - os di ferentes tipos de relações possíveis entre represen tações para
aquele que postula a organização finalizada da natureza -a tarefa de determinar a faculdade de conhecímento onde esta relação se dá Pode,
unificação dos campos, ora o juizo estético -que estatui sobre a beleza e a assim, se pronun ciar sobre a relação entr e dois dados sensíveis e decídir
feiúra da arte ou da natureza -é considerado o verdadeiro tema da passagem, sob qual conceito esses dados seriam convenien temente colocados para
dado que exprime a livre relação en tre as diferentes faculdades do espíri to produzir um conhecimento
Essa dupla tendência não indica ne- Tomado em sua maior simplicidade, o trabalho de r eflexão é uma desig
nação de residência Não tem outra função senão designar o lugar próprio de
28 29
Compreender A definição kantiana da filosofia
uma represen tação, isto é, detern1inar sua fon te: é, pois, uma generalid ade, da experiência A filosofia crí tica apóia-se n u m fato para desembaraçar-se logo
a mesma que preside ao vasto recorte territorial da i n trodução à Critica da dele, em favor da questão do direi to, única que verdadeiramen te in teressa a
faculdade de 1ulga1: A filosofia reflexiva é u m pensamen to vagabundo, gue Kant Dá-se o mesmo no campo prá tico. Kan t considera -veremos isso tam
per corre o espaço d as represen tações para determinar suas linhas de força e bém -que a consciência moral é um fato, gue ademais é um fato da Iazão
decidir o lugar na tural de cada uma delas Sem efetuar esse trabalho de Esse fato é indubitável, e a moral não pode explicá-lo, só pode explicitá-lo
reflexão, a filosofia corre o risco de tombar nos extremos do racionalismo ou A partir d ai, tratar-se-á, para Kan t, de determi nar o que a moral é de
do sensua lismo, duas tendências represen tadas por Leibniz e Locke, direito, mesmo que nen hum ato moral jamais tenha sido realizado Na
segundo Kan t A origi nalid ad e do modo de pensar kan tiano, sua potência configuração teórica, assim como na situação prá tica, a filosofia vai e vem
ele ruptura em rela ção às duas maiores corren tes da filosofia do século XVIII entre fato e di rei to, da mesma manei ra que oscila en tre os diferen tes
provêm da reflexão, pois é ela guem julga a origem das represen tações e campos de legislação E sse cará ter par ticular do procedimen to kan tiano é,
consta ta gue não é única Leibn iz, diz Kan t, considerava q ue todos os talvez , a marca de sua reflexividade constitu tiva Vol taremos a este pon to
fenômenos são, em defin i tivo, cognoscíveis unicamen te pelo en tendimen to;
Locke afirrnava, ao con trário, que os concei tos desse mesmo en tendiinen
to eram apenas u ma elaboração sofisticada dos dados sensoriais Crítica e filosofia
A filosofia crítica, graças a seu procedi men to tópico, estabelece que o
en tendi mento e a sensibilidade são "duas fon tes i n tei ramen te diversas An tes de entrar no texto da Critica da razão pura , convém dizer algumas pala
de re presen tações, mas gue não (podem) julgar as coisas de modo vras sobre o termo "critica" Kan t é muito eloqüen te sobre esse pon to, sem que
objetivamen te válido senão quando estão em relação"" Vê-se que a reflexão contudo se possa fixar as diferen tes abordagens que ele propõe n uma única
não in tervém somen te na divisão critica ou na tópica; ela é parte in tegran te defin ição Digamos, a tí tulo preliminar, que a crí tica está pt esen te em cada
das teses mais impor tan te de cada uma das Criticas, aqui a da necessária uma das etapas que até agora atravessamos: ela é aquilo que toma como objeto
colaboração entre o en tendimento e a sensibilidade na constituição dos a disposição metafísica; é aquilo pelo que o bom e o mau uso dessa metafísica
conheci men tos objetivos
são separados; é, enfim, aquilo que produz o exercício da reflexão Mesmo se
parece ativa na totalidade do trabalho filosófico, não se confu nd e com ela
Sua relação com a filosofia em geral é talvez, aliás, o que melhor a determina
Ouid;uns. qU1d fact1 Kant é muito preciso em relação a isso, logo no início da Primeira introdução
à Crítica da faculdade de 1ulgar:
U ma última observação sobre a reflexão Instrumen to de comparação, ele re
corte e de passagem, ela parece dispor de uma flexibilidade ausen te nas fa Se é verdade que a filosofia é o sistema do conhecimen to racional por concei tos,
culdades norma tizan tes que são o en tendimento, no campo da natureza, e ela já se acha suficientemen te assim diferenciada de uma cri tica da r azão pura;
a razão, no da liberdade Podemos nos pergun tar se ela não está, também,
esta con tém sem dúvida uma investigação filosófica que contempla a possibili
no princípio da oscilação, característico do pensamen to kan tiano, entre fato dade de tal conhecimento, mas não per tence, como par te, a tal sistema: é ela, ao
e direito Consideremos a Critica da razão pura Seu pon to de partida é mui to con trário, que esboça e1n primeiro lugar a idêia desse sistema e o põe à prova
20
claro, como veremos: aí temos ciência, matemáticas e física, e o fato é que elas
são coroadas dé sucesso, ao con trário d a metafisica Mas Kan t só se in teressa Os dois verbos que concluem esta citação são essenciais: a crítica é, ao
pelo fato cien tífico para dizer o direito de toda ciência, independen temen te de mesmo tem po, o esboço da filosofia como sistema e seu pôr à prova Precede,
sua existência real Iviesmo se a ciência não existir, ela deve respei tar os lin1ites
JÜ 31
Compreender
Capitulo li
pois, à filosofia, como a planta do arquiteto precede a construção do edifício;
mas continua a agir ao longo do trabalho do pensamento, enquan to má cons
ciência deste pensamento, tão pron ta a ir além de sua esfera de legi timidade
A critica não é um empreendimento de destruição Ela, antes, se
A invenção do
pergun ta como transformar em ciência o que é dado como uma disposição
natural do espírito humano Procede de uma ten tativa de reorientação
transcendental
dessa dispo sição, de consolidação de sua tendência geral, da qual vimos o
valor, acom panhada de uma estrita limitação de suas pretensões teóricas
Uma segunda definição de crítica merece ser aqui lembrada:
Ela é um tratado do método, não sistetna da própria ciência; mas estabelece todo
o tl'açado desta, tanto no que diz respei to a seus limites co1no a toda a sua estru
tura inter na 29
32 33
Compreender A 'ir1venção do transcendental
reteremos o que visivelmente faz pressagiar a descoberta do transcendental, conhecimen to tem sua dignid ade e sua clareza próprias, e utiliza
no que reside, sem dúvida, a autên tica novidade do kan tismo representações específicas, o espaço e o tempo, sem as quais nenh uma
experiência é passivei Esse rápido percurso mostra bem que a Critica da
razão pura está muito longe de se reduzir a uma simples compilação
A apreciação do problema critico sistemática das descobertas anteriores Kan t colocou bem algumas das balizas
necessárias à completa formulação do projeto crí tico; mas o essencial não
O primeiro texto verdadei ramen te significativo de Kan t é sua História geral está ainda explicitado e é preciso esperar até 1781 para que, enfim, seja
da natureza e teoria do céu (1755) Kan t mostra-se ai extremamen te evidente a originalidade desse projeto
preocupado em respeitar, em suas grandes linhas, a metafísica sistemática
dos mestres da Escola, Leibniz e Wolff Ao mesmo tempo desenvolve, no
que concerne à ex plicação dos fenômenos, um mecanismo estrito que nunca Psicologia e crítica
desapa1ecerá in tei ramen te de sua obra Já nessa obra afirma, igualmen te,
que esse mecanismo não pode fornecer prova demonstrativa da não-existência Kant não é o único filósofo ele seu tempo a se interessar pelo funcionamento
de Deus No mesmo ano, Kan t publica sua Nova explicação dos princípios do das faculdades de conhecimen to e pela construção do saber humano Se
conhewnento metafisico, onde opõe a incer teza da metafisica aos sucessos da existe uma especificidade do procedimento crí tico, não está na natureza de
ciência, apreciação que reencontramos no principio da Critica da razão pura seu objeto, mas, antes, no método empregado Desde Descartes, os filósofos
A Monadologia física , que aparece no ano seguinte, acen tua a ru ptura com quiseram construir o quadro do conhecimen to, mostrando igualmente a partir
Leibniz, apesar da origem do titulo, que a ele se reporta É também Leibniz de quais fontes este está constituido Cassirer o diz muito justamen te, em sua
que ele toma como alvo no tex to de 1759: Ensaio de algumas considerações Filosofia das Luzes:
sobre o otimismo
O ano de 1763 é mais rico, sob muitos aspec tos O Ensaio para A psicologia está ( ) colocada explici ta1nen te na base da teoria do conheci1nen to
introduzir na filoso fia o conceito de grandezas negati vas estabelece, com e até a Crítica da razão pura de Kant reivindicará esse papel mais ou menos sem
efeito, pela pri meira vez a distinção entre a lógica e a existência, esta contestação 2
34 35
Compreender A invenção do transcendental
3 CRP, B 1
4 B IX
36 37
A invenção do transcendental
Compreender
A revolução copernicana
mine em parte a priori seu objeto, além de fazer dele experiência Kan t chama
de "conhecimento teórico puro" a descrição do a priori das ciências Dá dois O principio mimético do prefácio não significa que a metafisica irá repetir,
exemplos disso: a matemática e a fisica A primei ra é in teiramen te pura, já que sem modificações, o trabalho da física, con ten tando-se em m udar o objeto
seus objetos não lhe são dados pelos sentidos; a ciência só o é parcialmente, já É preciso, simplesmente, tr anspor a razão pri ncipal do sucesso da física para
que uma física se1n objetos materiais seria um absurdo a metafisica, isto é, perguntarmo-nos se não se poderia admi tir que os
A que se deve o sucesso dessas duas ciências? Quanto à matemática, objetos devem se regular por nossa faculdade de conhecimen to, e isso a
1
compreende-se facilmente que uma disciplina que produz por si mesma seus priori In ter vérn, então, a famosíssima referência a Copérnico: ele
concei tos r.ão pode cair no erro; aqui o conhecimen to a priori é a descrição do consegue explicar os movimentos do céu modificando o estado do espectador
que a própria ciência colocou no objeto que analisa A fisica apresen ta uma e fazendo-o girar em torno dos astros em repouso, em vez de um ponto fixo e
configuração mais complexa, e é preciso dessa vez estudar o rnodo operatório imóvel. A revolução copernicana do pensa1nen to crítico pode, então, ser
dessa ciência para compreender seu sucesso Tomemos Galileu: ele faz descer assim formulada:
num plano inclinado bolas de peso determinado a priori , portan to, antes da
experiência Que faz ele, na verdade? Antecipa a experiência, submete-a ao que Se a in tuição devesse se guiar pela natureza dos objetos, não vejo co1no se
ele 1nesmo postulou, ao confron to entre o a priori de sua decisão e o a pode ria saber alguma coisa a priori; e. ao con trário, se o objeto (como objeto
posteriori da experimen tação produzida pelo conhecimento A física só tem dos sen tidos) se guia pela nat ureza de nossa faculdade de in tuição, en tão
sucesso sob a condição de "forçar a natureza a responder às suas questões, em posso mui to bem supor essa possibilidade 7
vez de se deixar conduzir por ela à vontade"5 Ela só tomou o caminho seguro
da ciência depois de ter compreendido que não se pode apreender a natureza A metafisica torna-se uma ciência a partit' do momen to em que contém
sem ter pos os conceitos a priori que o en tendimen to impõe aos dados sensoriais, para
tulado sua racionalidade O problema fundamental da metafísica permanece que jun tos consti tuam uma experiência Nas palavras de Kan t: "Das coisas, só
Esta, por definição, supõe conhecer objetos que ultrapassam o território da conhecemos a priori o que nelas colocamos"ª A lógica triunfava porque dizia
experiência: o que é preciso fazer para que ela obtenha um sucesso comparável respeito só a si mesma; a física era coroada de sucesso porque ia ao cncon tl'o
ao da física, mesmo que seus objetos estejam além de todo conhecimento expe da natureza; a metafísica terá uma sorte igualmen te invejável no dia em que
rimen tal? Como escapar de uma vez por todas dessa situação escandalosa, até compreender que seu único objeto de conhecimen to seguro reside no que o
mesmo vergonhosa, que vê a rainha das ciências se comprometer em combates entendimen to introduz por si rnesmo na experiência, ou pelo menos indepen
den temen te de seu con teúdo sensível
duvidosos e ser reduzida a um jogo retórico, onde os adversários manobram
sem avançar nada de sólido? Como, enfim, conceber que nossa mais alta fa
A própria idéia da revolução copernicana apóia-se ein uma determinação
culdade possa exercer sua verdadeira função, conforme à disposição metafísica original e complexa do concei to de a priori Este nunca significa apenas, em
Kant, o que significa na linguagem corren te: o caráter daquilo que precede a
que constitui a humanidade? A consequência se impõe:
experiência A relação en tre um concei to a priori e a experiência é mui to mais
complicada e diversificada do que uma simples an terioridade temporal Pode
Devia pensar que o exemplo da matemática e da física -que se tornaram, pelo
mos atribuir-lhe duas qualidades específicas: primeiro, o a priori torna passive]
efei to de uma revolução produzida de um só golpe, o que elas são agora -foi
a experiência; em seguida, ele a estru tura Isso quer dizer, no que concerne ao
no tável o bastan te para refletir no pon to essencial da mudança no modo pensar
menos à razão teórica, que os concei tos a priori constitutivos da metafisica da
que lhes foi tão van tajoso, e para imitá-las aqui, ao 1nenos a titulo de tentativa,
nat ureza são, ao mesmo tempo, as condições de possibilidade de uma expe-
tanto quanto o permite sua analogia, co1no conhecimentos racionais, com a
n1etafisica6
7 B XVll
B B XVlll
5 B XIE
6 B1''V-XV! 39
38
A invenção do transcendental
Compreender
40
41
Compreender A invenção do transcendental
A definição do transcendental
O transcendental é no fundo o a priori originário, do qual vai provir tudo
o que nas matemáticas, na física e na metafisica pode ter pretensão ao uni
A determinação do objeto da obra parece se fazer por toques sucessivos Os
versal Fazer o inventário completo e sistemático do que pode ser qualificado
pon tos de vista possíveis sobre a obra são múltiplos: a questão da metafísica, a nesse sentido de transcenden tal será o único objeto da estética e da analitica
fun dação da ciência, a elaboração dos fins da razão, a distinção entre os transcendentais
diferen tes tipos de juízo ou a oposição en tr e o a posteriori e o a priori são
várias aberturas legitimas no texto Um conceito parece, contudo, se impor,
com a vantagem de se achar no cruzamento dessas diversas abordagens, o de A estética, ou o a priori dos sentidos
transcendental
O fato é curioso Apesar de esse termo ser indispensável para uma justa Se todo conhecimen to não procede in teiramen te da experiência, deve sempre
compreensão do procedimen to critico, Kant não o define no prefácio ao menos começar por ela É, pois, lógico que um estudo das condições de
(qual quer que seja a edição escolhida, de 1781 ou 1787), mas espera o fim pos sibilidade do conhecimento também principie pela análise de seu
da in trodução para fazê-lo Pode-se considerar que é importan te para ele, nascimento
antes de mais nada, 1narcar a verdadeira função da crítica - salvar a
metafisica -, depois descrever os conceitos constitutivos da ciência, antes
12 B 25
de indicar o ter mo que vai permitir empreender esse duplo trabalho A 13 A 25/B 40
definição, canônica e muitas vezes retomada no texto, diz o seguin te:
42 43
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A invenção do transcendental
Compreender
44 45
Compreender A invenção do transcendental
bem entendido, que o espaço seja um dado psicológico, cronologicamen te an tuição Segu ndo ponto essencial, que marca a diferença de importância entre
terior à percepção: indica simplesmen te que a forma "espaço" precede logica
0 espaço e o tempo: este é "a condição formal a priori de todos os fenômenos
men te toda sensação espacial, sem que seja necessário situar essa forma na
em gera1"20 Por quê? Simplesmente porque sendo a forma do sentido interno
consti tuição psicológica do espírito -a percepção de nós mesmos -o tempo é a condição de in tuição de todos
Num segundo tempo, Kan t re toma a análise dessa forma do pon to de os fe
vista transcenden tal É preciso então indicar como a intuição pura do espaço nômenos, cada um entre eles, inclusive os fenômenos espaciais, sendo objeto
permi te a formação de ou tros conhecimen tos a priori A resposta é, desta vez, de uma represen tação in terna ao espírito Duas situações são, pois, passiveis:
extremamente r ápida: o espaço é a condição de possibilidade pura de toda o objeto percebido é espacial e ele se repor ta ao tempo pela mediação da r e
in tuição sensivel de um objeto externo; torna passive!, assim, a geometria, presen tação in terna que tenho dele; ou o objeto percebido pertence primeira
que, no fundo, não é mais que um jogo de representações puras, tomadas na men te ao meu espirita, e então o tempo é sua condição imediata. O tempo
própria trama pura do espaço não é defini tivamen te nada mais que uma condição subjetiva de nossa relação
Kant extrai imediatamen te as consequências disso: de um lado, o espaço com o mundo; sem o sujeito cognoscente, ele não existe
não pode ser uma propriedade das coisas em si, isto é, dos objetos conside O espaço e o tempo vão per1nitir construir ciências puras como as mate
rados independen temen te de nossa faculdade de conhecer; por outro lado, é máticas, e a parte pura de ciências empiricas como a física I\1ão concerne1n
ao mesmo tempo a forma pur a de todos os fenômenos externos e a condição em nada às coisas em si e, por sua dimensão subjetiva, são elementos bem
subjetiva da sensibilidade, quando esta recebe seu objeto pelo sentido exter ieais da construção do conhecimento Kan t quer exatamen te mar car aqui sua
no O espaço assim concebido é, portanto, real, já que faz parte de um sujeito ruptura com Leibniz Este afirmava, com efeito, que a sensibilidade era uma
sensível que também o é; mas o espaço também é ideal, dado que não é mais faculdade de conhecimento inferior à razão, mas de mesma natureza Para ele,
que uma condição de possibilidade da experiência como para Wolff, conhecemos as coisas em si confusamente pela
sensibilidade, claramente pela razão Kan t responde que não conhecemos
absolutamente nada das coisas em si pela intuição sensível, a qual está
O tempo da reservada à percepção fenomenal
representação A estética transcendental atingiu seu objetivo Podemos agora compreen
der como proposições sintéticas a priori são passiveis corno elaboração das
Kant repe te de modo idêntico a peração a propósito do tempo Aí ainda, não formas puras da sensibilidade, o espaço e o tempo Mas a outra metade do
se embaraça com detalhes inúteis e sua argumentação cabe em algumas linhas caminho, pelo qual podemos compreender como in tuições podem entrar na
O tempo é a forma pura do sen tido interno, sem a qual a percepção da consti tuição de uma ciência do mundo, deve ainda ser percorrida A analí
simulta neidade e da sucessão seria impossivel O tempo não é um conceito tica transcenden tal irá se debruçar sobre esse problema, não sem encon trar
discursivo formado tar diamente pelo entendimento para organizar os dificuldades de uma amplitude inteiramente diversa daquelas que a estética
fenômenos tem porais; está sempre ai, como condição desses fenômenos A soube resolver em poucas palavras
exposição metafí sica coincide aqui com a exposição transcendental: a
demonstração do caráter a priori do tempo repousa, em última análise, na
afirmação de sua necessidade em toda experiência, esta sendo inconcebível A ana lítica.
sem temporalidade" Conceitos, pri ncípios,
Curiosamente, as conseq üências extraídas dessa exposição são mais im subjetividade
portan tes que a própria exposição Primeiro pon to que Kan t trata de subli
nhar: o tempo não existe nas coisas, mas nas condições subjetivas de sua in- A ar ticulação entre a estética e a analí tica repousa na noção de r epresen
tação Na sensibilidade, o espírito recebe passivamen te um cer to tipo de r
epresen-
19 A 34/B 48
20 A 34/B 50
46
47
Compreender
A invenção do transcendental
O que é o entendimento? Sob este aparen te tradicionalismo oculta-se na realidade uma profunda
inflexão do sentido ela conformidade ao objeto, que a analítica irá revelar Que
Chama-se de entendimento nosso poder de pensar o objeto da in tuição sen entende Kant por "verdade"? Não se trata aqui de supor que o espírito hu
sível a fun de conhecê-lo Sem ele, o objeto na.o é pensad o; mas sem in tuição mano seja capaz de realizar juízos conforme à própria natureza das coisas,
o objeto nem sequer é dado Kan t o diz numa fórmula que se tornou -não independentemen te daquilo que delas podemos conhecer No fundo, a verda de
sen1 razão -célebie: "Pensamen tos sem con teúdo são vazios; in tuições sem não é mais que a conformidade de um objeto às condições a priori de todo
conceitos são cegas"22 conhecimen to O termo não tem sentido, pois, senão na estrei ta esfera daqui
O estudo do funcionamento do en tendimen to é a lógica Esse termo lo que é cognoscível, quer dizer, um mundo fenomenal experimen tável pelo
pode jogo conjunto da sensibilidade e do en tendimento O analítico transcenden tal,
qualificar uma grande diversidade de disciplinas distintas, que Kan t vai i ni que enumera os princípios sem os quais nenhum objeto pode ser pensado, é
cialmen te tratar de designar A lógica pode se dividir primeiro em u ma lógica
assim , ao mesmo tempo, uma lógica da verdade
geral, que descreve o funcionamen to do pensamen to sem considerar seu ob
Mas o espírito humano tem a tendência a não respeitar os limi tes dessa
jeto, e uma lógica de uso par ticular, que é só uma especialização da primeira,
legi tima utilização do en tendimen to, quer dizer, tende a direcioná-lo para
em função de um campo de objetos específicos Esta última, útil na construção
objetos que não foram previamente dados à in tuição sensível A parte da ló
das ciências particulares, não in teressa a Kan t, e assim ele a deixa de lado gica transcenden tal consagrada à verdade deve pois ser completada por um
Voltando à primeira, retoma sua divisão, separando a lógica geral aplicada, estudo critico dessa ilusão ele saber, que por ser ilusão não é, con tudo, menos
que irá estudar o entendimen to em sua relação com suas condições sensíveis
real A dialética transcenden tal irá se consti tui r em lógica da aparência , admi-
21 A 50/B 74
23 A 56/B 81
22 A 51/B 75 24 A 58/B 82
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Compreender A invenção do transcendental
tindo-se que a tendência à ilusão não se dá em meio à reflexão desordenada, em prioridade, sobretudo por ser complemen tado por algumas observações
mas sob o domínio de uma necessidade racional do espírito. Habituados por essenciais à compreensão da epistemologia kantiana
dois séculos de in terpretação a separar radicalmen te a analítica e a dialética
transcenden tais, muitas vezes esquecemos que elas fazem parte de uma to
talidade, a lógica transcendental: essa continuidade de propósi to não deverá As categonas
ser perdida se quisermos compreender que o espír i to humano procede logi
camen te mesmo quando se engana
A apresentação dos conceitos puros do en tendimen to que Kant, conforme
uma tradição que se originou em Aristóteles, chama de categorias é um dos
momen tos mais conhecidos e comentados da analítica transcenden tal Seu in
Conceitos e1uizos teresse, todavia, não está ligado ao quadro de categorias em si, mas antes ao
conceito de sintese, que Kant apresenta longamen te no início dessa terceiia
Kant tem gosto pelas distinções Mal acabara de introduzir a diferença entre seção
analí tico e dialético quando in troduziu nova cisão no interior da analítica O entendimento julga A lógica geral estuda esse poder de juízo indepen
Esta comporta dois momentos sucessivos: a analítica dos conceitos e a den temente de todo conteudo dado. A lógica transcenden tal tem como mate
analítica dos princípios A primeira é "a decomposição, ainda pouco tentada, rial, por seu lado, aquilo que a estética transcenden tal lhe deu, quer dizer, uma
do pr óprio poder do entendimento""; a segunda "um cânon para a variação da sensibilidade a priori O pensamen to humano é feito de tal maneira
faculdade de julgar que lhe ensine a aplicar aos fenômenos os concei tos do que não pode apreender essa variação sem produzir esponta11ean1ente uma uni
en tendimen to"2ü A primeira cuida da enumeração daquilo que o dade do objeto, sem o que este não é sequer cognoscive] A esse ato espontâneo,
entendimento produz esponta neamen te; a outra, da aplicação aos dados da que consiste em ''acrescentar representações diferen tes umas às outras" e em
sensibilidade dos resul tados da atividade do en tendimen to, uma aplicação "apreender sua diversidade em um conhecimento"'", Kant chama "síntese"
confiada à faculdade de julgar A sequência imediata do texto, longe de clarificar essa definição, intro
Como elaborar uma lista completa dos concei tos do en tendimento? Po duz várias ambigüidades Kan t escreve então estas linhas que servirão de base
demos aqui tomar como base o próprio trabalho do entendimento Para que para a in terpr etação de Heidegger:
serve o en tendimen to? Ele funciona antes de tudo como um poder de ligação
entre diversas representações, sejam estas recebidas na sensibilidade ou con A síntese em geral é, como veremos n1ais tarde, o simples efeito da imaginação,
cebidas pelo próprio entendimen to. Fazer uso do entendimento é julgar, quer urna função da alma cega mas indispensâvel, sen1 a qual não teria1nos absolutamen te
dizer, conduzir à unidade de um objeto uma pluralidade de r epresentações,
nenhum conhecimento, mas de que apenas raramente temos certa consciência 20
diferen tes tanto por sua fon te como por sua natureza Tal identificação do
en tendimento ao poder de julgar permite que Kant disponha de um fio con
Na origem, a síntese é um ato da imaginação Mas a explici tação dessa
dutor na elaboração de uma lista de conceitos do entendimento: a cada tipo
função sintética da imaginação e sua clarificação conceitua! pertencem à esfe
de juizo corresponde, com efeito, um conceito particular, aquele que permite à
ra do en tendimento, que irá nomear pelas categorias os diferen tes conceitos
diversidade ser unificada pela função lógica do juizo O quadro de todos os
i ndispensáveis à síntese Mais precisarnen te ainda: a sintese, que é o objeto
jul
da lógica transcendental, é o ato pelo qual o produto da síntese da
gamen tos possiveis 27 que Kan t propõe não tem, portan to, senão uma função
imaginação é, por sua vez, sintetizado sob a unidade de um concei to O
secundária em relação ao quadro dos conceitos, que são o objeto próprio dessa
conhecimento de um objeto consiste, assim, na sucessão ordenada de três
primeira parte do analítico É este segundo quadro que deve nos interessar
etapas:
25 A 65/B 90
21l A 132/B 111
20 A 77/B 103
27 Não nos parece indispensável reproduzi-lo aqui O leitor o encontrará etn A 70/B 95
29 A 78/B 103 Paia a leitura de HEIDEGGE R, o indispensável I<ant et !e probleme de la
1nétaphysique. Paris, Gallimard, 1953
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Compreender A invenção do transcendental
1 A apreensão da variação da in tuição pura, dada no espaço e no tempo tir dos quais os outros poderão ser encontrados por derivação Kan t prefere
2 A sin tese da imaginação, que reúne as in tuições sem con tudo pern1i tir deixar a seus sucessores o cuidado da exaustividade e ater-se a precisar por
um conhecimento três breves observações os pri ncípios de seu quadro:
3 A síntese do en tendimen to, que consti tui a unidade do obje to de
experiência 1 As ca tegorias são de dois tipos Ou se repor tam aos objetos da in tuição
possivel3° (quantidade e qualidade), e então referem-se a ca tegorias maten1áticas; ou
concernen1 à existência desses objetos, ern suas relações 1nútuas ou em sua
31 relação ao en tendin1en to, e então fala-se de categorias dinârnicas (a física irâ
Estas três etapas permitem dispor de um conhecimento puro a priori do
objeto, sem que esse conhecimen to seja vazio, pois há verdadeiramen te in u tilizá-las amplamen te)
tui ção pura, ou cega, pois há realmen te unidade do conceito Agora que a 2 Este quadro foi constr uido em quatro séries de três ca tegorias A terceira re
função sintética do entendimen to está esclarecida, Kan t pode apresen tar o sulta sempre da associação das duas primeiras Assin1, a totalidade é a adição
quadro das categorias e comen tá-lo da pluralidade e da unidade
3 A ligação en tre a categoria da identidade e a forma do juízo à qual ela deve
corresponder, o juizo disjun tivo, não é eviden te, exceto se tomamos a iden
Quadro das categorias tidade como uma causalidade reciproca entre elemen tos distintos, embora
reunidos pelo juízo
1
Da Todos esses atores estão presentes no palco: intuições puras, concei tos pu
Quantidade ros, a sensibilidade, o entendimento Falta compreender por que cenário esses
Unidade
Pluralidade
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A invenção do transcendental
Compreender
tensão 33 No caso do conhecimento, fazer uma dedução consiste em avaliar dedução terá sido bem-sucedida quando os conceitos do en tendimen to forem
a legitimidade do uso de certos conceitos, fundando-se não nos fatos, mas reconhecidos como condições a priori da possibilidade de toda experiência,
atendo-se somen te ao direito: quando tiverem conquistado a legi timidade daquilo que é indispensável31
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Compreender A invenção do transcendental
diretriz da primeira dedução é a seguin te: a unidade do objeto da experiência sidade: a única fonte possível de tal conceito é a própria consciência no seio
provém da i n tervenção da espon taneidade do en tendimen to, que realiza três da qual se encon tra reunida a diversidade das representações A unidade do
sínteses sucessivas, e completa assim a receptividade da sensibilidade de ma
objeto de experiência possível é o efeito de uma transposição da unidade da
nei ra a produzir, in fine, um objeto unificado consciência para a experiência, unidade que sintetiza, em úl timo lugar, o pro
A primeira dessas sínteses é a da apreensão na intuição 'Toda repiesentação, duto das duas primeiras sínteses
a priori ou a posteriori , de um objeto externo ou de uma idéia de nosso próprio Não nos enganemos sobre o sentido que Kan t atribui à palavra "consciên
espí ri to se dá como uma modificação temporal deste A diversidade do dado cia" Ele não afirma que a simples presença empirica, no seio da consciência,
intuitivo não pode, todavia, ser reunida em urna represen tação salvo se a in da diversidade represen tativa basta para unificá-la Ele afirma que a condi ção
tuição é capaz de percorrer essa diversidade para unificá-la Esta primeira síntese a priori da u nidade do objeto encon tra uma "consciência pura, originá r ia,
é pura, quer dizer, a prioh, ela é constitutiva de uma primeira forma de unidade, a imutável", que ele chama de aperce pção transcendental Nos dois termos do
da represen tação, mas não basta para realizar a unidade do objeto de
procedimen to cognitivo se encon tram dois princípios igualmen te puros e
conhecimento
não-suscetíveis de ser intuídos; de um lado, a apercepção transcenden tal cor r
O conhecimento de um objeto não é concebível se o reduzimos a uma re
espondendo à unidade numérica necessária ao conheci men to; de out i o, o ob
presen tação pontual. Para que possamos construir pouco a pouco esse
jeto transcenden tal, quer dizer, o objeto não-empírico, que é causa inteligível
conheci mento, é preciso que a representação atual desse objeto seja ligada a de toda fenomenalidade'°
priori à re presentação passada do mesmo objeto, de tal modo que a Que conclusão tirar dessa tripla sín tese e da posição fi nal da
continuidade deste seja assegurada Não se trata, como fez !-lume, de reduzir o apercepção transcendental? Simplesmente que o que torna possível a
conhecimen to à reprodu ção habitual de um fenômeno, mas de afomar a experiência é aquilo que consti tuiu o objeto do conhecimento A objetividade
necessidade transcendental de uma capacidade de reprodução das é a própria subjeti vidade do espíri to que conhece, como subjetividade
representações passadas, que Kant atribui à imaginação Kant insiste nessa transcenden tal, por isso un iversal e portan to necessária As leis do espíri to
especificidade da imaginação, assim descrita: são as leis dos fenômenos, exatamente o que era preciso estabelecer
A dificuldade da primeira edição não aparece, todavia, senão após essa
A sin tese reprodutiva da imaginação pertence aos atos transcendentais do es descrição complexa, por ém convincen te, da construção do objeto Kan t parece
pírito e, a eles relacionad a, chamaremos também esta faculdade de faculdade com efeito deslocar o principio da unidade da apercepção transcenden tal par a
transcendental da imaginação:rn a imaginação, colocando como condição de unidade da apercepção uma sínte
se originária mais fundamen tal do que esta , que seria o efeito de uma forma ,
A reprodução da represen tação pela imaginação não pode, todavia, pro ela própria originária da imaginação como imaginação produtora An tes das
duzir por si só a unidade do objeto É preciso, com efeito, que a represen tação três sínteses e no principio de cada uma delas residi ria uma potência unifica
passada esteja relacionada à represen tação presente por um conceito de uni dora pura, provenien te de um modo de imagi nação distinto e an terior à sua
dade que ne1n uma nem outra pode fornecer. A síntese do reconhecilnento no função reprodutor a. Kan t conclui pois:
conceito consiste em reunir a diversidade imaginativa pela representação de
um objeto de conhecimento geral em sua unidade Esse conceito de unidade, O princípio da unidade necessária da sin tese pura (produção) da imaginação é,
não sendo em si objeto de experiência, corresponde a "alguma coisa em geral pois, anterior mente à apercepção, o fundamen to da possibilidade de todo conhe
= X', em que o X em questão simboliza a abstração conceitua! constitu tiva da cimento, particularmente da experiéncia'11
unidade do objeto Portanto, o problema ainda não está resolvido. De onde
vi rá esse concei to de unidade se a experiência não nos fala senão da diver-
4Il A 10 7
41 A 118
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Compreender A invenção do transcendental
o que e uma analítica dos princípws? os dois parceiros a ser ligados, irá restringir o conceito do entendimento às con
dições efetivas de sua aplicação aos dados da sensibilidade°' Sem esquema, um
O que Kant chama aqui de faculdade ele julgar não é, na verdade, uma nova conceito é tão vazio como se não se aplicasse a nada, pois carece do n1eio
fa culdade do conhecimen to Trata-se antes de um outro nome do dessa aplicação Com o esquema, pelo contrário, o conceito se adapta ao seu
en tendimento, quando este é concebido em sua dimensão prática e em sua objeto, pode subsumir a diversidade sem que a distinção das faculdades o
aplicação efetiva; uma aplicação que procede, diz Kan t, de "um talento rpeça
particular, que absolu ta mente não pode ser apreendido, mas somen te O funcionamento do esquema é na verdade estranho, e o propno Kan
exercido"51 A analítica dos prin cípios é, assim, o estudo das modalidades t, em um lirismo que não lhe é costumeiro, faz dele uma espan tosa
concretas de trabalho da faculdade de julgar, seja em sua função sintética em descrição:
relação à diversidade sensível, seja nas regras universais, an teriores a toda
experiência Ieal Esta série de divisão completa-se enfim na posição de um Esse esque1natismo do entendimento puro, em vista dos fenômenos e de sua
termo novo, o esquematismo51, com o qual Kan t designa a elaboração das simples forma. é urna arte oculta nas profundezas da alma humana, cujos segre
condições sensíveis do en tendimento operante dos do funcionamento nos será difícil arrancar da natur eza para pô-los a desco
berto aos nossos olhos 55
51 A 133/B 172 -54-Cf A 1:40/B 179: '·A esta condição formal e pura da sensibilidade cujo conceito d.e en
52 Cf A 136/B 175 tendimento é restrito em seu uso chamatemos esquema desse conceito do entendimento·
53 Cf A 138/B 177 55 A 141/B 181
51i A 145/B 184
62 63
1
Os pnncíp 1os do entendimento Os desdobramentos que Kan t consagra a cada um desses princípios são
puro longos e complexos Retenhamos aqui simplesmen te o essencial
Como anunciou, I(ant irá agora analisar os princípios que cria o entendimen Os axioma s da intuição
to em seu exercicio sintético Esses princípios são aquilo que ordena antes da "Todas as intuições são gr andezas extensivas"!i!J A percepção pelos sentidos só é
experiência seu desenvolvimen to Podemos, assim, fazer sua lista exaustiva possível pela constr ução progressiva (extensiva) da grandeza do objeto intuído
suben tendendo que fazem parte do conjunto sistemático condições a priori A intuição de um obje to espacial se faz, assim, pela ex tensão do pon to à linha,
desta experiência, com as formas da in tuição e as categorias depois da linha à ampli tude A geometria não é senão o conjunto sistemático dos
Kant começa por lembrar qual é o principio dos juizos analíticos Nada difeien tes usos deste principio
de revolucionário aqui, e para dizer a verdade a questão não lhe in teressa
realmente; Kant se con tenta em repetir aquilo que todos os filósofos sempre As antecipações da perce pção
afirmaram: o princípio da con tradição é "o princí pio universal e plenamente "Em todos os fenômenos, o real, que é un1 objeto da sensação, tem u1na gran
suficiente de todo conhecimen to analítico"57 O essencial está, sem dúvida, na deza intensiva, quer dizer, u1n gr au "ºª Toda sensação é dotada de uni grau de
determinação do principio supremo dos julgamen tos sintéticos, os quais cons intensidade determinado: certamen te não se pode pr ever esse grau, mas pode-se
tituem em si um verdadeiro aumento do conhecimento Kan t propõe, então, a antes da percepção antecipar o fato de que ela terâ um grau Nas palavras de
seguin te fórmula, que na realidade retoma os resultados de toda a Analítica: Kant: "Todas as sensações não são, pois, dadas como tais senão a posteriori ,
mas sua propriedade de ter uni grau pode ser conhecida a prior(
Em urna experiência possível, o princípio supremo de todos os julgamentos sin
téticos é, pois, que todo obje to é submetido às condições necessárias da unidade A:; analogias da experiência
sin tética intui tiva da variedadeun ·'A experiência não é possível senão pela represen tação de uma ligação necessária
das percepções '·Gl As coisas aqui se complicam consideravelmente, e não convém
Um juízo sintético não é legitimo se não se realiza a unidade da que nos dele nhau1os nesle pun lu 111ais longau1e n te O que diz Kant'? <.J. _ue a ex
diversida de pela utilização coordenada da totalidade dos elementos periência supõe a lígaçao do dlverso no tempo {\Jão sendo este objeto de unia ex
precedentes estu dados: a in tuição sensível, o conceito do entendimento, a
periência, mas somente a forrna de u1na in t uição, é preciso que o entendimento
unidade originaria men te sintética da apercepção transcenden tal e o co1npense essa ausência fornecendo o concei to de uma r elação temporalmente
esquema Os principias que Kan t irá se empenhar em descrever não são detern1inada l\lão se pode conhecer u m fenômeno temporal senão ilnpondo à
senão modulações particulares desse principio supremo, em função da
experiência os conceitos de pern1anência, de sucessão e de sirnultaneidade A
categoria relativa em cada caso Kant elabora um quadro completo
analogia pennite indicar a priori uma iden tidade de relação ao tempo entre os
distinguindo previamente os principias mate máticos que se reportam ao
fenômenos estudados, segundo as difer entes n1odalidades temporais da ligação
fenômeno em sua totalidade:
Kan t aprovei ta para post ular sua concepção da substância e da causalidade, unia
concepção em que o criticismo manifesta uma inegável originalidade
1
Axion1as da intuição
2 3 "Em toda mudança de fenômenos a substância persiste, e seu quancurn não
Antecipações da Analogia s da aumenta nem diminui na natureza ··liZ A experiência da 1nudança supõe a experiên
percepção experiência
4
Postulados do pensamen to empirico em 59 A 162/B 102
geral üU A 166/B 20
7 G1 A 176/B
57 A 151/B 218 52 A
191 182/B 224
50 A 158/B 19
7
64 65
L
Compreender A invenção do transcendental
eia da permanência, pois ao menos uma parte daquilo gue muda, pelas razões já Os postulados do pensa1nento en1p frico e111 geral
evocadas, não deve mudar Este elemen to permanente não pode ser o próprio O sentido da palavra "postulado·· aqui en1pregada por J(an t é absolutamen te
tem po É preciso, pois, que um conceito a priori , o de substância, sirva de aná logo ao seu significado ma temático Assim como um post ulado
"substrato de toda determinação do tempo"6J Pensar que uma substância pode 1natemático é uma pr oposição indemonstrável, necessária a priori para a
nascer ou morrel' é, no fundo, supor a passagem de uma temporalidade a outra, o produção de um con ceito dado, assim os post ulados são aqui principias a priori
que é absurdo que determinam não o objeto, mas sua relação com a faculdade de conhecer em
"Todas as mudanças se dão seguindo a lei da ligação da causa e do efei to geralªª
"IM A simples percepção de uma sucessão de fenõmenos não per mi te absol O primeiro desses princípios ê o da possibilidade: "Aquilo que se harmoniza
utamen te saber qual precede logicamente o ou tro O conhecirnento da relação com as condições formais da experiência (quanto à intuição e aos concei tos) é
entre dois fe nômenos supõe, por sua vez , que sua ordem seja determinada Sem possive f'U!l Mostra simplesmente que um objeto não pode ser considerado pos
tal ordem a experiência permanece in1possivel: "não é, pois, senão porque sivel senão ao respei tar as condições a priori de toda a experiência O con
submeternos a se qüência de fenô1nenos à lei da causalidade, e por conseguin te teU.do dessa experiência não ê absolutan1ente detenninado por isso; somen te é
toda mudança, que a própria experiência, quer dizer, o conhecimen to empirico posta a condição minitna de sua possivel realidade objetiva
desses fenômenos é O segundo postulado só faz prolongar o priineiro Ele designa, desta vez ,
5
possive1··G A causalidade é a condição a priori do conheci1nento de toda ligação aquilo que o conhecimen to de um objeto con tétn necessariamente para que esse
de fenômenos e, na verdade, já de sua simples distinção Graças a ela, o espaço es objeto possa ser qualificado de real: "O que é coerente com as condições mate
capa da anarquia da percepção bruta, assim como a substância permitia escapar riais da experiência (a sensação) é real"m A realidade de um objeto não pode ser
da pulverização das temporalidades A posição empirista é, pois, invertida En conhecida senão pela percepção sensível que dela temos Essa observação parece
quan to Hume deduzia a causalidade da experiência de uma conjunção repetida sensata, mas tem, como a dialética mostrará, um alcance restritivo essencial, que
dos dois fenômenos, Kan t afirma gue ela é an ter ior à própria experiência destes retira toda legi timidade à posição de existência de um objeto nâo-sensivel
Sa bemos por experiência que tipo de r elação causal existe entre dois fenômenos· O texceiro postulado, o da necessidade, assiin se enuncia; ··aquilo cuja coe
sabemos antes da experiência que essa relação será causalªª rência em relação ao real é determinada de acordo com as condições gerais da
··Todas as substâncias, na medida em que podem ser percebidas como si ex periência é necessário" 11 Kant apressa-se a pr ecisar o sentido que atribui à
mul tâne;is no espaço, estão em uma ação recipioca uui versal."ITT A terceira neces sidade Não se trata de afirmar a necessidade absolu ta deste ou daquele
analo gia é na realidade derivada da segunda A experiência da simultaneidade objeto, mas somen te de afirmar que a relação entre os fenômenos é determinada
supõe a causalidade reciproca; é pieciso que a relação temporal en tr e os dois a priori segundo o princípio de causalidade Um fenômeno é se1npre
fenômenos simultâneos seja determinada a priori, e não pode sê-lo senão pelo hipoteticamente necessário Ou mais simplesmente: nada acontece sem razão
conceito de urna comunidade dinâmica de interação causal Esta apresen tação dos postulados é ao mesmo te1npo a opor tunidade para
Essas três analogias constituem jun tas os princípios mais fundamentais Kan t de deixar claia sua posição e1n relação ao idealismo Convém dedicar a
da experiência da natureza, quer dizer -como sempre em Kan t -, da esta breve passagem um interesse especial, pois trata-se, para Kan t. de se
própria natu reza Sem esses princípios, nenhuma experiência seria possivel, e a si tuar em relação à história da filosofia em geral, em torno do problema da
própria idéia de natureza se reduziria a um conglomerado informe e desordenado realidade dos obje tos exteriores
de percepções
63 A 183/B 226
64 A 189/B 232 6U Cf A 234/B 28
65 A 189/B 234 7 G9 A 218/B 265
70 A 218/B 266
66 Cf A 202/B 24 7: ··o principio da relação de causalidade na sucessão dos fenômenos
71 !bid
vale, pois. tarnbém an teriormente para todos os objetos da experiência (submetidos às condi
ções da sucessão), pois é. ele inesmo, fundamento da possibilidade de tal expeiiênci;(
67 A 211/B 256
67
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A invenção do transcendental
Compreender
cede a um im portante esclarecimen to de sua posição, por um lado nos Prolegô Kant chega ao fim de u ma par te essencial do projeto cri tico É a hora dos ba-
n1enos , por ou tro na segunda edição da Critica da razão pura lanços, e Kan t torna-se por uma vez lí rico:
Dois adversários são aqui apon tados O primeiro, o idealis mo dogmá tico
de Berkeley, afirma que as coisas são apenas idéias e que o próprio concei to Agora, não somen te percor remos o país do en tendimen to puro, exarn inando
de uma substância ma terial é um absurdo72 I(an t o rejei ta com uma cada parte sua co1n cuidado, mas ta mbém o medi1nos, ne!e detenninando .pa t:a
frase: cada coisa o seu lugar E n tretan to, este país é u1na ilha, encerrado pela propna
esse idealismo baseia-se num erro, que consiste em considerar o espaço u ma
propriedade das coisas em si Como nenh um con hecimen to destas é possível, natureza en1f ron teiras imutáveis É o país da verdade (um nome sedu tor), cerca
o idealista é condenado à renunciar à realidade do espaço, e, em seguida, aos do de uin vasto e turbulen to oceano, sede pr ópria da apa réncia, onde rnan tos de
objetos espaciais A estética transcenden tal mostrou qual era a verdadei ra na névoa, onde bancos de gelo em vias de derre ter apresentan1 a imagen1 enganosa
tureza do espaço, não é sequer necessário vol tar a isso de novos países e não cessam de acenar com vãs esperanças ao navegador que
O idealismo problemático é um adversário mais tenaz, e também , ao partiu para a descober ta, levandoo a aventuras a que não pode ren unciar, inas
1
mesmo tempo, mais inteligen te Descartes, q ue o re presen ta, não afirmava que jarnais poderâ levar a bon1 termor
que o inundo não existe Ele demons trava, todavia, que a experiência i n terna
da consciência é mais certa do que a dos objetos exteriores, e q ue a precede A viagem crí tica é um exercício perigoso O filósofo não pode se con ten tar
Rejeita r esse idealismo represen ta, pois, mostrar por que "nossa experiência com as fron tei ras bem delineadas cio pais da verdade Ele deve se aventurar
lnterna em si, indubi tável para Descartes, não é possivel senão sob a suposição além clelas, não pelo gosto do erro, n1as em razão do desejo metafísico, dessa
tendência do espiri ta humano a superar os limi tes de suas legi timas preten
da experiência externa" 13
sões O com primen to da dialét ica t ranscenden tal está à altura da medida
A demonstração pode ser reconstr u ida da seguin te maneira: a consciên
da
cia de meu es tado in terior é uma consciência da mudança Ora , toda cons
extensão infinita do oceano da aparência
ciência da mudança supõe a experiência de u n1 elemen to permanen te, em
relação ao qual há m udança; como esse elemen to não pode estar em mim - O en tendimen to, como o espíri to de que faz parte, não é razoável Ele não
é sequer capaz de determinar seus próprios limi tes Portanto, irá naturalmen
como o tempo não é em si objeto de uma experiência -, ele deve ser afirmado
te ul trapassar seu uso empírico -sua aplicação aos dados da sens1b1hdade por
fora de mi m O mundo é demonstrado pela necessidade de afirmá-lo pa ra
in termédio do esquematismo -e cair em um uso transcendental Este consiste
que uma experiência de mi m mesmo seja possível A demonstração é sur
em reportar um concei to "às coisas en1 geral e ern si , ao passo que o uso
preenden te: a permanência da matéria é provada pelas exigências do sen tido
empi rico 0 refere simplesmen te aos fenôrnenos , quer dizer, a objetos de uma
i n terno, se1n nenhuma referência à experiência externa A especificidade do
expe riência possivel"75 Não nos enganemos Kan t não entende o "transc
idealismo tra nscenden tal é assim defini tivamen te afirmada O m u ndo é
detal"
real como algo que procede de uma condição de possibilidade da expenenCJa O
termo, nesse contexto, designa uma inclinação do entendimento para a trans
72 Cf G BE R!\E l r:v, T rais dialogues entre fly!a s et Phi/011016 Kant deforma sensivelmen cendência, inclinação inevi tável, porém ilegí tima
te o pensamento de Berkeley, e podemos duvidar da confiabilidade das infonnações de que
dispõe
73 B 275 74 A 235/B 294-295
7fi A 238/B 298
68
69
Compreender A invenção do transcendental
Consciente, sem dúvida, da ambigüidade da expressão de uso o erro Mas esse erro é o fruto da razão, não pode ser totalmen te ignorado,
transcenden tal, Kant esclarece que é ela, na realidade, imprópria Não há u nem se produzir sem uma certa lógica Este é, aliás, o sentido da integração da
tilização de uma faculdade senão quando esta realiza efetivamen te aquilo dialética transcendental na lógica transcendental: o espirita humano é feito
para o que é feita O entendimento não tem utilidade senão na subsunção dos
de tal modo que é ordenado mesmo quando se engana A aparência transcen
dados da sensibili dade, conforme a unidade da apercepção transcenden tal.
dental é o nome kantiano desse erro significativo que a razão provoca quando
Em sentido estrito, a utilização transcenden tal é uma contradição É melhor pr etende poder eximir-se dos limites do conhecimento legitimo e conhecer
falar de significado trans cenden tal dos conceitos do entendimento, uma realidade suprafísica
entendendo-se com isso que eles são assim considerados independentemente
de sua condição de eficácia
Di to de outro modo: a analitica dos conceitos é indissociável da dos prin
A natureza filosófica do ser humano
cipias Toda ruptura reconduz ao absurdo de uma faculdade privada dos seus
meios de ação
Há sem dúvida um motivo mais profundo para essa singular atenção aos
Sendo todo conhecimento a síntese de um conceito, de uma ou várias in de vaneios do espírito Pode-se, com efeito, interpretá-la a partir da
tuições, aquele que, sucumbindo ao uso transcendental, pretenda conhecer as disposição metafisica, cuja importância vimos na introdução Se essa
coisas em si deve dispor de uma intuição do objeto, não submetida às tendência ao incon dicionado, se tal desejo está na origem do próprio
condições da sensibilidade. O objeto de tal intuição inteligivel é o nownenon projeto crítico, a análise dos recônditos para onde esse desejo conduz
Mas, como tal intuição está absolutamente excluida, o conceito de noumenon quando não é dominado constitui um momento essencial da obra kantiana
pode ter tão somente um significado negativo, objeto impossível de um O respeito à disposição natural das idéias subordina a filosofia
conhecimento im possível70 Esse conceito tem tão-somente uma função transcenden tal propriamente dita à metafisica Se a primeira bem pode
protetora, para limi tar as pretensões da sensibilidade de desrespeitar suas estabelecer as condi ções do uso legitimo do entendimento e assegurar a
próprias formas certeza das ciências fisicas e matemáticas, a questão da possibilidade daquilo a
A dialética transcendental não irá, portan to, tratar desses nownena , que que aspira o espirita humano constitui o "núcleo e o caráter próprios da
na verdade são conceitos completamente vazios Kan t afirma, desde as pri metafisica",, Essa ordem de priorida de implica uma grande prudência no
meiras páginas do texto: o objeto da dialética não é o uso transcenden tal das trabalho de posicionamento das fronteiras da critica teórica Uma vez que o
categorias, o que procede do erro ou da insensatez de uma faculdade não sub desejo das idéias não pode nem deve ser con testado, essa critica deverá
metida à critica: tratar-se-á de estudar os principias positivos que a razão espe contentar-se em impedir que a inevitável aparência, que é seu produto, se
ra poder postular Mesmo se, finalmente, essa pretensão vier a sofrer a mesma corrompa70 Vemos que se trata de encon trar um equilíbrio
sorte do uso transcendental do en tendimen to, ela merece que nos atenhamos
entre a sede da metafisica e a preocupação transcendental Tal preocupação, tal
a ela, na medida em que é o fruto de nossa mais alta faculdade, e certamente
prudência, tal atenção ao valor próprio da disposição do homem às idéias já se
na medida em que abre novas perspectivas para a prática
justificam em níveis estritamente teóricos pela impossibilidade de fato de ir ao
seu encontro Mas o desejo da metafisica tem, além do mais, uma destinação
prática que desta vez legitima de direito o trabalho da critica teórica
A dialética, ou o desejo das idéias
A imagem de um país da verdade, com fron teiras bem traçadas, cercado por 77 Prolégomene'i à toute métaphysique future, AK IV 32 7; P II. p 105
um vasto oceano de erro, sem limites nem principias, poderia levar a crer que 78 Cf ibid , AK IV, 328; P II, p 106 ··Essas idéias estâo si tuadas na natureza da razão
a dialética transcenden tal tem uma função antes de tudo negativa: a de evitar assim como as categorias na natureza do entendimen to, e. se elas cornportam uma aparência
que pode facilinente seduzir, essa aparência é inevitável. en1bora se possa. sem dúvida, impedir
que ela se conompa ,_
76 Cf A 253/B 308
70 71
Compreender A invenção do transcendental
Também a necessidade vital da disposição metafisica encon tra-se posta que deve ser feito das faculdades do espíri to E nquan to um pr incipio imanen
a serviço de uma outra necessidade, desta vez prática, que exige da critica da te se con tém in teiramente nos limites da experiência sensível, um pri ncípio
razão especulativa que assegure ao menos a possibilidade de um certo uso dos transcenden te supõe a existêncià de uma realidade que, por definição, não é
conceitos do supra-sensível Ai também Kant atinge o cen tro do argumen to apresentável sob uma forma sensível Ainda mais importan te sem duvida: o
com a afirmação de que "estou convencido de que há um uso prático absolu transcenden tal depende do bom ou do mau uso do entendimen to; o transcen
tamen te necessário da razão pura (o uso moral)"79 O desejo das idéias está na den tal procede da razão, quando produz regras que têm toda a aparência de
base, ao mesmo tempo, da tendência ao absoluto teórico que é preciso limi tar princípios objetivos sem, no entan to, possuir sua legitimidade A função da
e da obrigação de submetê-lo a uma cri tica da razão pura para que sua dimen dialética é defini tivamen te determinada por essa distinção:
são moral seja concebível A atitude própria do homem em relação às idéias
tem, portan to, para além de seu uso de homogeneização do conhecimen to, A dialética transcenden tal con tentar-se-á, pois, em atualizar a aparência dos juí
uma função prática, pois ela torna "possível uma passagem dos concei tos da zos transcendentes e ao mesmo tempo impedir que ela nos engane113
nat ureza aos concei tos prá ticos"ºº e assegura "às próprias idéias morais
uma solidez e uma ligação com os conhecimen tos especulativos da razão"°' Essa dialética não é produ to da ignorância, nem o produ to de um
Podemos, assim, considerar que a dialética transcendental tem ao menos sofisma mais ou menos engenhoso Ela é indissociável da própria razão An
três objetivos: estudar o funcionamento do espirita humano quando este se dis tes de es tudar os princípios transcendentes, Kan t deve, pois, voltar
pe1sa na aparência; reconhecer a importância da tendência natural do homem à logicamen te a uma definição mais precisa da razão, que no fundo não tem
metafísica; preparar para a abertura à prática que a segunda Critica completará verdadeiramen te dado an terior Ele o reconhece de imedia to; ter que dar tal
O racionalismo kantiano está, talvez, por in teiro neste respei to à razão sob definição o coloca em si tuação difícil" Mas é possível esperar chegar a isso
todas as suas formas Jamais será questão de se estabelecer uma policia retomando o procedimen to que havia funcionado tão bem par a o
repressiva da razão, mas se1npre uma escuta co1npreensiva de seu movimento entendimen to Passar pelo in termé dio da simples u tilização lógica, quer
próprio, tan to mais particularmente quan to este indique a verdadeira dizer, formal, da faculdade considerada, para em seguida elaborá-la como
vocação do homem, a vocação moral A dialética é uma crítica da razão poder de conhecimento A razão deve, nesse sentido geral. ser definida como o
desviada, aquela que crê conhe cer o que não é cognoscível, aquela que se poder dos princípios, quer dizer, a faculdade de levar à unidade dos principias
perde na divagação mística, apoiando se em uma intuição in telectual ao uma pluralidade de regras de en tendimen to A relação da razão com a
mesmo tempo absurda e impossível experiência não é, pois, inexistente, mas é imediata, só o entendimen to possui
uma f unção sin tética na experiência sensível
Sob sua forma estritamen te lógica, a razão é o poder de inferir, tal como
Bom e mau uso da a vemos operar em um silogismo Sob a forma transcendental, sua função sin
razão tética não só organiza proposições formais; ela tende positivamente a unificar
a totalidade daquilo que é condicionado, quer dizer, dado na experiência, sob
O tex to da dialética abre-se com uma precisão terminológica fundamen tal um conceito incondicionado produzido por ela mesma A r azão irá assim, de
É preciso, com efeito, distinguir cuidadosamente o uso transcenden tal das acordo com sua tendência natural a escapar aos limites da experiência, produ
cate gorias, que não é, afirma Kant, "senão um simples erro de nossa zir uma série de proposições fundamentais, que será preciso avaliar Muitos
faculdade de julgar quando não está suficien temen te contida pela crítica"", elemen tos são, pois, comuns ao entendimento e à razão: mas, embora o pri
do uso trans cenden te da razão, que se opõe concei t ualmen te ao uso imanen meiro não possa f uncionar senão na imanência, a segunda interessa-se apenas
te que pode e pelo incondicionado, pelo transcendente
83 Cf A 299/B 355
79 CRP, B XXV B,1 Cf A 299/B 355
ao A 329/B 386
81 Ibid
02 A 296/B 352 73
72
Compreender A invenção do transcendental
A razão, em seu funcionamen to natural, produz conceitos que relaciona 1 A unidade absolu ta e incondicionada do sujeito pensante, que, pelo conceito
com os do en tendimento, mas que, por sua vez, não podem ser dados na expe de alma, será o objeto de u1na psicologia racional
riência. Kant irá dar um nome a tais conceitos, apoiando-se na tradição filosó 2 A unidade absoluta e incondicionada das condições do fenôn1eno, que, pelo
fica Cuidando para não criar inutilmente um termo novo, ele decide chamar concei to de mundo, será o objeto de uma cosmologia racional
de idéias os conceitos da razão, essa palavr a, de origem platônica,
3 A unidade absolu ta e incondicionada da condição de todos os objetos de pen
significando imediatamente para a linguagem comum, assim como para a
samento em geral, que, pelo conceito de Deus, será o objeto de uma teologia
filosofia, uma entidade infi nitamen te distante da sensibilidade Kan t
transcendental
envolve-se, então, em uma interpretação das idéias platônicas que tende a
reconduzi-las a principias sintéticos, o que elas eviden temente não são para
Platão Mas pouco importa aqui a fidelidade da leitura kantiana, desde que se
A razão em questão
tenha presen te o parentesco com os dois tipos de idéias, em sua comum
superação das possibilidades da experiência
Essas três idéias são produzidas por um r aciocinio dialético, natural ao espíri
Conforme a pr ópria função de uma filosofia transcenden tal, é preciso
to humano e, na verdade, inevitável Kant esclar ece ainda -novamente a
agora fazer um quadro exaustivo das idéias da razão. Podemos, a partir do
ob sessão pelo vocabulário mais adequado possível -que esse raciocinio
momento em que as pensamos em sua relação sintética com o que é condicio
assume três formas: a do paralogismo, no caso da psicologia; a da antinomia,
nado, qualificá-las de transcendentais Nesse sen tido, cada uma delas corres
no caso da cosmologia; e a do ideal, no caso da teologia
ponde a uma das modalidades do juizo sintético, tais como as encontramos no
quadro dos juízos que a analítica apresen tou:
O obstáculo do Eu
Será preciso buscar em prúneiro lugar um incondicionado da sintese categórica penso
em urn sujeito; e1n segundo lugar um incondicionado da sintese hipotética dos
membros de uma série; e1n terceiro lugar um incondicionado da sintese
O paralogismo transcendental é um falso raciocinio que leva a uma ilusão ine
disjuntiva das partes e1n um siste1naH 5
vitável, mas analisável Essa ilusão é, aqui, o conceito fundamental da psicolo
gia racional: a alma Que se pode legitimamente dizer da expressão Eu penso?
As idéias transcenden tais são certamente conceitos transcenden tes, mas Podemos inicialmente afirmar que ela expressa a condição fundamental de
não se deve por isso considerá-las vãs e supérfluas06 Elas têm ao menos, como todos os conceitos e de todo conhecimento, o que Kant chama de apercepção
Kant mostrará mai,s adiante, uma função de homogeneização e de unificação transcenden tal; podemos também dizer que temos uma in tuição da alma pelo
dos conhecimentos experimen tais; e têm também, sem dúvida, como disse sentido interno, assim como tivemos uma do corpo pelo sentido externo Mas
mos acima, uma função de indicação de seu verdadeiro campo de legi timida entre a função lógica do sujeito transcendental e o conhecimento sensível da
de: a moral quilo que somos como alma e corpo não há lugar para um conhecimento do
Assi m determinadas, as idéias transcendentais formam um sistema, na Eu penso A psicologia racional é uma ilusão da ciência, pois pretende dizer
medida em que podem ser levadas à posição de um incondicionado da síntese algu ma coisa sobre a alma como conceito racional, embora na realidade a
das condições Kant especifica, en tão, de que natureza pode ser esse incondi simples posição do Eu penso seja seu único texto, seu único conteúdo
cionado, anunciando assim o plano que irá se seguir: verdadeiro"
A psicologia racional, ao pôr a alma como incondicionado da síntese de
to dos os fenômenos do sentido interno, crê poder atribuir-lhe um certo
B5 A 323/B 3 79 número de qualidades: a alma é uma substância imaterial, simples e,
B6 Cf A 329/B 385 portanto, incor-
74
Bl Cf A 343/B 401
75
A invenção do transcendental
Compreender
76 77
Compreender A invenção do transcendental
que existem somen te o simples e o composto O argumen to é simples: ou o ber determinado é uma impostura O mesmo vale para o conhecimento da
pensamento não pode suprimir a composição, e assim não pode ser negado, composição. Uma substância material não é cognoscível senão em urna intui
ou pode fazê-lo, mas então o que permanece é o simples, do qual há em ção sensível limitada; nada permite ter uma posição definida sobre o caráter
segui da composição A an títese postula que o concei to de simplicidade é divisível ou não da matéria
absurdo, pois nada na experiência lhe corresponde
O terceiro conflito é, sem d úvida, mais complexo e mais importante por
suas consequências práticas A tese afirma a possibilidade de uma causalidade A d1stmção dos pontos de
pela liberdade, esta determinada como o incondicionado, na origem de uma vista
série causal? Dito de ou tro modo: uma causa sem causa. A antítese afirma
o absoluto determinismo da nat ureza, em nome do absurdo de uma causa Os dois conflitos seguintes são muito mais difíceis de resolver Mais exata
sem causa, que é, no fundo, uma anomalia da natureza Finalmente, o quarto men te, não se poderá colocar em posição antagônica os protagonistas alegan
conflito opõe a tese da existência de Deus como causa do m undo, fundada na do seu erro cornu1n Será necessária muita sutileza para reconciliá-los, pois
necessidade de uma causa primeira, à sua negação ambos tem razão, mas segundo diferen tes pon tos de vista Consideremos a
liberdade No sentido cosmológico, ela é o poder de começar, por si mesmo,
uma série causal'° Assim definida, ela não pode ser senão uma idéia, pois toda
A solução pelo erro experiência supõe uma determinação causal dos fenômenos, o que justamen
te exclui o ato liv1e Kant insiste: essa liberdade transcendental, embora não
O conflito não pode durar indefinidamen te Antes de tentar reduzi-lo, Kant passe de uma idéia, funda a liberdade prática, quer dizer, "a independência do
empenha-se em mostrar a força de cada uma das partes presen tes As quatro árbitro em relação à pressão dos impulsos da sensibilidade"91 Sem a idéia da
teses procedem do dogmatismo, na medida em que efetivamen te postulam a liberdade, a reflexão moral em seu conjunto perde todo o sentido. O in teresse
existência determinada de um cer to númeio de realidades Elas têm um in da razão ern sua vocação prática exige que se salve de uma maneira ou de
teresse prático, dando um fundamen to intelectual ao nosso sentimen to de outra essa liberdade Subentendendo-se que não se trata de demonstrar
liberdade; têm um in teresse especulativo, pois nos permitem a esperança de experimen talmente a existência, é preciso ao menos poder indicar a
um conhecimen to finito; e, finalmente, têm a van tagem da popularidade, em possibilidade de sua idéia, quer dizer, a inteligibilidade de uma conciliação
razão de sua proximidade com o senso comúm O adversário do dogmatismo, entre a natureza determi nista e a liberdade determinan te
o empirismo, não pode se valer de um in teresse qualquer, excluindo a liber A causalidade por liberdade não pode ser sensível: ela é, pois, necessa
dade e Deus; não pode aspirar à popularidade, em razão de sua desmesurada riamen te in teligivel Ao se considerar o homem enquanto objeto transcen
pr udência e de seu ceticismo constitutivo; por outro lado, tem um grande in den tal, quer dizer, enquan to fundamen to dos fenômenos que constituem
teresse teórico, pois tudo o que afirma é verificável experimentalmen te sua experiência, nada impede de atribuir-lhe uma liberdade in teligível, não
Como decidir e libertar, assim, a razão, da desagradável situação em que se aplicando então a causalidade senão ao desenr olar fenomenal de seus atos
se encontra? Apesar da complexidade do texto, a situação é relativamen te A causalidade por liberdade, atribuida ao ser humano como coisa em si, em
sim ples Consideremos o primeiro conflito Tese e antítese repousam no nada é implicada pelas condições de possibilidade do conhecimento -
conceito de mundo, ao qual são atribuídas qualidades opostas, a infinid ade es paço, tempo, necessidade causal Pode, pois, conciliar-se muito bem com
ou a fini tude Seu erro comum consiste em apoiar-se em um pretenso o absoluto determinismo aplicando-se aos atos humanos, uma vez que
conhecimen to do mundo, ao passo que não podemos possuir senão uma estes, após uma impulsão inteligível, acham-se con tidos na rede das leis
in tuição bastan te limitada. O mundo não pode, em sua totalidade, ser dado naturais No fundo, tudo é uma questão de perspectiva:
em uma experiência humana Apenas podemos ter uma idéia a respeito,
determinar como tarefa aumentar indefinidamen te seu conhecimento, mas
90 Cf A 533/B 561
pretender possuir um sa-
91 A 534/B 562
78
79
T
.
Compreender
A invenção do transcendental
1
Assim, liberdade e nat ureza, cada qual en1 seu sentido completo, estariam jun Para que se/Vem as
tas e sem nenhum confli to nas mesmas ações conforme as aproximamos de sua idéias?
cau sa in teligível ou de sua causa sensive192
Idéia da alma, idéia do mundo, idéia da liberdade, finalmente, ideal de Deus
O homem é cidadão de dois mundos Dotado de razão e de en tendimen Todos esses conceitos são o efeito inevitável da racionalidade Como tais, não
to, faculdades absolu tamen te distin tas da receptividade da sensibilidade, se pode considerá-los como erros, e devem poder desempenhar um papel par
ele participa de um universo onde a causalidade nat u ral não tem mais poder ticular na vida do espirita, desde que se lhes aplique uma disciplina dada, úni
de le gislar Essa participação explica, sem dúvida, que se possa censurar ao ca capaz de evitar errâncias transcendentais
homem suas ações, visto que seu desenrolar fenomenal é evidentemen te A elaboração da utilidade das idéias funda-se em Kant no pr incipio de
determinado temporal e espacialmen te Podemos, assim, atribuir ao sujeito uma função reguladora dos conceitos da razão. Tomemos a idéia de mundo,
agen te a total responsa bilidade por seus atos, reconhecendo ao mesmo que, como vimos não pode corresponder a nenhum conhecimen to verdadeiro,
tempo que a relação da liberdade como causa inteligível para seus efeitos pois a totalidade dos fenômenos não é suscetível de ser d ada em uma intuição
sensíveis sempre perma necerá incompreensível\JJ sensível Devemos, por isso, considerá-la insensata e inútil? Kan t responde
de modo negativo: na medida em que não se confunde o uso consti tutivo do
mundo com seu uso regulador, a idéia tem uma legitimidade e um valor
Deus como ideal
Não nos resta, pois, outro valor a atribuir ao princípio da razão senão aquele de
uma regra da progressão e da grandeza de uma experiência possivel, depois de ter
Teremos ocasião de falar mais ad ian te da concepção kan tista de Deus e da
mos mostrado suficien temen te não haver nenhuma como principio constitutivo
religião Mas a idéia de Deus in tervém uma primeira vez no pensamen to cri
dos fenômenos em si95
tico não sob o aspecto propriamen te religioso, mas como prod u to natural da
razão em sua busca de integralidade. A razão, por sua própria consti tuição e
A idéia do mundo como idéia reguladora forma o horizon te de toda
pela tensão que a distingue, "precisa do concei to daquilo que é absolu tan1en
ciên cia dos fenômeno.e; Nesse sentido, pode ser o lugar do princípio de
te in tegral em sua espécie, de modo a poder esti1nar e medir, em
progressão, não no sentido de uma totalidade real, mas no sentido de uma
conseqüência, o grau e a falca do que é incompleto""' Sem dúvida, um ideal totalidade ide al, em que somen te o pensamento pode acompanhar o
não é jamais apre sen tável na experiência, mas é exigido pela razão como conhecimen to em sua construção sintética
substrato de toda a realidade, como fundamen to da determinação completa Kant repete a operação em relação ao ideal de Deus Depois de ter r ejei
desta. Deus é o nome transcenden tal desse princípio Vê-se de pronto que tado a totalidade das provas que se possam dar de sua existência, Kan t
nada há de religioso em tal afirmação da divindade O in teresse dessa afirma que o ideal do ser supremo é
passagem reside muito mais na análise paciente que Kant fará d as diferentes
tentativas de demonstração da existência de Deus Voltaremos a isso adian te, um principio regulador da r azão, que consiste em olhar cada ligação no mundo
pois essa análise não é determi nan te no itinerário da dialética transcendental como se ela pr oviesse de uma causa necessária absolu tamen te suficien te, a
fim de fundar ai a regra de uma unidade sistemáticaªu
92 A 542/B 569 O essencial desta tese reside no con10 se Deus não é o principio constitu
93 Cf A 557/B 585: '·mas porque o caráter inteligível traz justainen te esses fenõn1enos e
esse caráter empírico nas ci rcunstâncias presentes? Aí está uma questão que vai n1ui to aléin
tivo da unidade do real, no sentido de poder efetivamente perceber fenome-
do poder de nossa razão de dar-lhe resposta
94 A 570/B 598
95 A 516/B 544
96 A 619/B 64 7
80
81
Compreender A invenção do transcendental
nalmen te seu trabalho Ele não é senão o horizon te de unidade dessa mesma que, ao mesmo tempo em que não se integram verdadeiramen te ao desenvolvi
realidade, um horizon te produzido pela razão, que faz como se houvesse real men to da primeira Crítica, são sua instrutiva elucidação
mente um Deus no principio do real
O texto da disciplina determina, num primeiro tem po, o que é no fundo
Kan t volta, enfim, a esse uso regulador das idéias em um apêndice que
um conhecimen to filosófico Kant o define como um conheci men to racional
conclui a dialética, e que lhe é exclusivamen te consagrado Insiste ai no
por concei tos, quer dizer, um conjunto de proposições transcenden tais pelo
caráter indispensável de tal uso: com efeito, somen te as idéias transcenden
qual é inicialmen te post ulada a possibilidade de um con heci men to em
tais po dem construiI por sua união o focus imaginarius do conhecimen to,
geral Con traria1nen te às matemáticas, que constroem seus próprios concei
esse ponto imaginário para o qual tendem todas as regras do en tenclimento 97
tos e de finições, a filosofia não u tiliza nem definições, nern axiomas, nem
A razão realiza um trabalho preparatório em vista do en tendimento As
den1onstra ção A racionalidade filosófica não deve, por tan to, querer imitar
idéias não são o que a razão acrescenta ao conhecimen to da nat ureza para
as matemáti cas, ela deve submeter-se a essa disciplina da humildade
pensar sua unificação, elas são o que a razão postula an tes mesmo que in
Há ainda assim uma even tual utilização polêmica ela razão A r acionalida
terve nha o entendimen to, ele maneira a que este encon tre um campo de
de c ri tica não deve se perder em vãs questões Ela deve con ten tar-se em esta
aplicação preparado pelos princípios de homogeneidade, de variedade e de
belecer os limi tes da razão, con trapondo seus adversários dogmático e cético,
afinidade de todas as leis que poderá em seguida formular"° Nesse sentido,
cujas diferentes posições enraizam-se sempre em um esquecimen to desses
as idéias funcionam um pouco como um esquema: mas, enquan to o esquema
limites. A razão eleve, por fim, fazer uso muito pruden te das hipóteses e das
une con ceitos e in tuições na constituição de um efetivo saber, a idéia une
provas: as primeiras, para opor-se às i n tenções destrutivas das teses adversas;
entre si as leis do en tendimen to, sem poder afirmar-se como um conhecimen
as segundas, somen te se são verdadeiramen te conclusivas e demonstram tan
to novo A
to o resul tado co1no o procedirnen to racional que a isso conduz
idéia jamais será senão algo análogo a um esquema 0 !l, ela não terá jamais, ao
Aqui term ina nosso longo percurso da primei ra Crítica Ele não tem a
menos no campo teórico, verdadeira f unção detei minan te; o que a razão fará
pre tensão de ter esgotado o assunto M ui tas in terpretações divergen tes
no campo prático é bem mais essencial à sua vocação fundamen tal
podem ser apresen tadas desse tex to em todos os pon tos extraordinário
Aquela que aqui propomos é modesta, nào tern ou tro objetivo senão ler no
texto o tra balho da disposição filosófica que nos parece ser a base da obra
O que é uma
kantiana e da racionalidade humana
metodologia?
97 A 644/B 6 72
83
98 A 65 7/B 686
99 A 665/B 693
100 A 707/B 736
82
Capitulo Ili
o fato do dever
Factum rationi.
A moral como reflexão
sobre a consciência da obrigação
A hipótese que nos guiará ao longo desta travessia pela filosofia moral de
Kan t pode ser assim formulada: a moral kan tiana é uma reflexão sobre a
consciência da lei, do mesmo modo que sua filosofia teórica é uma reflexão
sobre a ciência Nos dois casos, o pon to de par tida não é questionado, ciência
e consciência moral são considerados um fato eviden te, que será preciso ela
borar e não legitimar
85
Compreender O lato do dever
O fato da consciência moral te no julgamen to do povo. A busca do principio supremo da moralidade que
constituiu este primeiro texto é, além disso, explicitamente destinada a um
No caso da moral, as coisas se tomam, é claro, ainda mais complicadas pela público popular, considerando que a consciência comum tem mais necessidade
impossibilidade de demonstrar a existência de um só ato au tenticamen te mo de ser esclarecida e consolidada do que de ser instruída
ral Todavia, apenas a presença em nós da obrigação, ainda que jamais fosse A Fundamentação é uma cômoda porta de entr ada para a moral kantiana
acom panhada de efeitos, represen ta para Kan t o pon to de partida de toda Mas a verdadeira elaboração dessa moral, no que possui de mais original, en
filosofia prática, cará ter admirável da humanidade, analogon ético do céu es contra-se, sem dúvida, na Crítica da razão prática Sem rnmper de modo
trelado acima de nossas cabeças 1 algum com o texto preceden te, Kan t formula muito claramente o principio
do con junto de sua moral: a existência em nós de um fato misterioso, fato da
razão, fato da lei, fato da liber dade
A evidência da moral
Esse caráter fundamen tal do procedimen to kan tiano apar ece desde o texto O fato da
de juven tude, de título sugestivo, consagrado à Investigação sobre a evidência razão
dos princí pios da teologia natural e da moral (1763)2 Kan t mostra aqui que a
filosofia, con trariamen te à matemática, deve parti r daquilo que parece evi O fato de a moralidade não se submeter aos critérios da razão teórica já apa
den te, para analisá-lo ou even t ualmen te corrigi-lo. O fim do texto é bem rece, bem entendido, na Fundamentação da metafísica dos costumes, sobretudo
claro a esse respei to: a consciência da obrigação é um dado indubi tável do quando Kan t afirma que a inexistência de um único ato moral passível de com
espíri to humano, e as filosofias do sentimen to moral têm razão de insisti r provação não invalida em absoluto a determinação racional feita a seu respei
sobre sua dime nsão ao mesmo tempo primitiva e universal Uma n1etafisica to Tódavia, a distinção entre razão prática e razão teórica in tervém apenas no
dos cos tumes apenas poderá aplicar a um tal sentime n to o poder do racio momen to em que essa ausência de exemplo de ato moral é suprida pela po
nal, a fim de distinguir o n úcleo a priori , o único capaz de resisti r às ten tações sição de um fato da moralidade a partir do qual pode se desenvolver uma crí
do egoismo e do in teresse tica da razão pr ática, paralela e comparável em sua estru tura à da razão pura
O primeiro grande texto da moral kan tiana -a Fundamentação da Enquan to a Fundamentação da metafísica dos costumes , atendo-se sobretudo
meta física dos costumes -retoma esse procedimento Kan t reconhece, com à rejeição da experiência, deixa afinal em suspenso a questão propriamente
efeito, que uma verdadeira fundação da metafisica dos costumes não pode ser transcendental da possibilidade do dever, a Crítica da razão prática admite, com
senão o fato de uma Critica da razdo prática Mas, como no campo 1noral o o fato da razão, uma transgressão da distinção racionalidade/sensibilidade
conheci mento comum já se encontra em grande parte na verdade, basta, ao para responder a essa pergunta a partir de uma experiência sem dúvida sin
menos num primeiro tempo, formular e estruturar a evidência moral sempre gular, porém real
presen- Há a obrigação Uma crítica da razão prática, não é, pois, a demonstração
da existência, no homem, de um conceito de dever; ela é a aplicação racional
de um dado experimental ao mesmo tempo indubi tável e inexplicável: a
1 Cf aqui a célebre conclusão da Critica da razão prática (CRPr) AK V 161; P II, p 801- cons ciência da lei moral Parte dai, logicamen te, o texto kantiano Na medida
802: "Duas coisas enche1n o coração de uma admiração e de uma veneração sem pre novas e
em que a nat ureza obedece a leis que a ciência determina por seu
sempre crescentes, na medida em que a reflexão nisso se detenha e refli ta: o céu estrelado
sobre mim e a lei tnoral em mim Essas duas coisas, não é pr eciso que eu as procure ou que faça procedimen to cognitivo, o sujeito humano, como sujeito livre, não pode
delas con jecturas além do meu horizon te, como se estivesse1n envoltas e111 trevas ou conceber a lei moral senão como uma regr a que pode ou não ser aplicada
situadas em uma região transcendente: eu as vejo diante de mim e as associo imediatamen te Não será, pois, questão de estudar a experiência dos costumes para
à consciência de n1inba existência ·
determinar suas constantes, mas de enunciar simplesmen te aquilo que o
2 Para rnais inforn1ações. remetemos à intiodução de Jean FERRARI na edição de La P!éia·
de (P 1. p 201-213) sujeito deve fazer, quer ele o faça ou
86 87
Compreender O fato do dever
não O conceito kantiano corresponden te a essa regra prática, eventualmente O terceir o teorema tira as consequências dos dois primeiros Se toda a
seguida de efeitos, é o imperativo3 O dever moral, que formula o imperativo, matéria da von tade é rejeitada na busca de um fundamen to do dever, só resta
provém da própria razão, não pode ser objetiva e universalmen te válido senão a própria forma de todo dever como conteúdo da obrigação moral:
sob a condição de uma total abstração das circunstâncias subjetivas e contin
gentes que cercam o ato propriamente dito O rigor e a severidade da moral Quando um ser razoável deve pensar suas máximas como leis gerais prdticas,
kantiana não devem, pois, ser interpretados como a consequência filosófica de não pode pensá-las senão como máximas que encenam o princípio determinan
uma tendência psicológica do individuo Kan t, marcado pelo pietismo de sua te da von tade, não em r elação à matéria, mas somente quan to à formaG
educação ou pela rigidez de sua personalidade Estes são os instrumentos de
uma completa análise daquilo que deve por princípio ser a moral, supondo-se Dito de outro modo: a única matéria possível para uma obrigação moral
que tal coisa seja possível de natureza universal é a própria forma da universalidade, quer dizer, a forma
As primeiras páginas da analítica da razão pura prática, como de resto do da legislação Kan t o diz de maneira notadamen te resumida:
essencial da Funda1ne11tação, consistem em uma paciente supressão dos elemen
tos que a moral não pode integrar Assim, o primeiro teorema enuncia que: uma lei pr ática que eu reconheça como tal deve ser própria para uma legislação
universaF
todos os princípios práticos que supõe um objeto (matéria) da faculdade de de
sejar como princípio determinante da von tade são em seu conjun to empiiicos e Resta agora identificar tal lei e encontrar as palavras para descrevê-la
não podem servir como leis práticas 4 An tes de seguir Kan t nesse esforço de explicitação do dever, é preciso que
nos detenhamos no estatuto deste conceito de lei mor al, de um lado
O homem é um ser de desejo Ele tende a querer realizar um cer to núme indicando por que ela se mostra como um fato e, de outro, mostrando como
ro de objetivos, na medida em que essa r ealização lhe proporciona um senti ela é, ao mesmo tempo, uma obra de nossa liberdade Parece-nos que o
estudo do imperativo categórico que expressa a obrigação não tem sen tido
mento de prazer Esse sen timento, embora legitimo, não pode de modo algum
senão se compreende mos previamente que a moral kan tiana não tem como
ser fonte de obrigação, pois depende da configuração subjetiva do indivíduo
objeto dizer aquilo que devemos fazer, mas, mais fundamentalmente,
desejante, e, portan to, da experiência Como se poderia obter de tão frágil
explicitar esse fato misterioso que nos leva a fazer, que somos obrigados e,
base a indispensável universalidade do dever? Kan t amplia imediatamente o
portan to, livres
alcance do argumento, assinalando que a totalidade dos princípios materiais
Vejamos, pois, o texto em detalhe A von tade deve ser pensada como de
fundados no prazer pode ser en tendida como uma submissão da ação à busca
terminada pela simples forma da lei, pois todo o con teúdo iden tificável foi
da felicidade e ao amor de si5 Voltaremos a este pon to, mais detidamen te ex cluido Essa excl usão da matéria significa também que a ex periência
abordado na Fundamentação Lembremos apenas que Kant, longe de despre sensível, em sua totalidade, é aqui inútil e até mesmo perigosa Ao mesmo
zar a felicidade, a exclui em virtude de sua simples inadequação teórica às tempo, é pr eciso constatar que existe em nós uma consciência da lei, que
necessidades de um fundamen to racional do dever nós enten demos que devemos, mesmo se nada fazemos. Kan t ataca, então,
a questão propriamen te transcendental -como é possível um imperativo
3 Cf CRPr, AK V, 20; P II. p 628: ""Ora, para um ser em quen1 a razão não é o ú nico prin cipio categórico?
detern1inante da von tade. esta regra constitui um ilnperativo, quer dizer, uma regra que é deter -postulando, sem demonstrá-la, a existência de um fato da mzão:
rninada por um dever que expressa a exigência objetiva iinposta pela ação
4 lbid . AK V 21; P 11. p 630
5 Cf ibid . AK V 22; P l i, p 631:..todos os pr incipios práticos materiais pertencein, Podemos chamar a consciência desta lei fundamental u111 fato da razão, por que
corno tais, em seu conjun to, a uma 111es1na e única espécie. e podem ser classificados sob o não se pode deduzi-la, mesmo por sofis111as, dos dados anteriores da razão, por
princípio geral do amor de si 1nesmo ou da felicidade pessoal'
89
Compreender
O fato do
dever
91
Compreender
O falo do dever
estabelecido por essa distinção: a liberdade e o determinismo irão coexistir lei moral não fosse primeiro claramen te concebida e1n nossa razão, jamais nos
mas segundo dois pontos de vista diferentes. O homem como ser sensivel acharíamos autorizados a admitir uma coisa tal corno a liberdade (embora essa
ser determinado por leis feno1nenais: o homem, pertencendo por sua razão a idéia não implique con tradição) Por outro lado, se não houvesse liberdade, a lei
uma natureza inteligivel, será capaz de ser livre, quer dizer, estar ele mesmo moral não poderia absolutarne11te ser encontrada dentro de nós12
na
origem de uma cadeia causal
Par a compreender este tex to é preciso lembrar aquilo que já dissemos
A filosofia kan tiana dá, assim, vários sen tidos ao termo "liberdade" Po do fato da razão A consciência da lei moral se dá em nós racionalmente; a
demos distinguir três deles: a liberdade transcenden tal, a liberdade prática e a partir desse fato inexplicável, pode-se deduzir -como sua condição de
liberdade como autonomia. As duas primeiras são descri tas na Crítica da
possibilida de -a liberdade Se esta funda no ser a realidade da consciência
razão pura; a última, na F'undan1entaçdo e na Critica da razão prática
moral, esta última não tem sentido senão para um ser livre e constitui o revelador
A liberdade transcenden tal é o poder de começar por si mesmo um dessa liberdade A introdução do texto repete ainda de modo diferen te: a
estado cuja causalidade não é submetida, por sua vez, segundo a lei da descoberta em nós da lei moral é um meio de demonstrar a existência da
natureza, a uma outra causa que a determine temporalmen te Kan t defi ne
liberdade, que por sua vez torna concebível a própria idéia de uma moral 13
a natureza como um conjun to de fenômenos condicionados pela causalidade.
A lógica da Critica da razão prática pode, enfim, ser assim reconstituída:
Há , pois, Imediatamen te um confli to entre natureza e liberdade, que Kant
o prefácio e a introdução indicam por que a liberdade é o fundamento da
chama de an tinomia Kan t faz então da liberdade transcenden tal uma Idéia ,
moral; o primeiro capitulo da analítica estabelece pelo fato da razão que essa
quer dizer, u_m conceito produzido pela razão, inteiramen te independen te
liberda de é real, e formula explicitamen te a obrigação moral; os capitulas
da experiên Cia O sujei to que age é, pois, livre quando está no princípio de
seguintes estudam sua aplicação
uma sucessão ca usal: mas o é apenas como noiunenon , causa incognoscivel
A imbricação dos conceitos de dever e liberdade é aqui constante, como
dos fenômenos, O conflito é resolvido com a indicação de que repousava na
se Kant se dedicasse a aprofundar cada vez mais a relação esboçada na nota
ignorância da dis
que acabamos de citar. Essa in timidade culmina no parágrafo in titulado "Da
tição crí tica en tre o que é objeto da experiência e cio conhecimen to e 0
dedução dos principias da razão pura pr ática":
que nao pode ser senão pensado
A segunda concepção da liberdade é determinada pela primeira. Se afi r Essa analitica [ ] mostra, ao mesmo tempo, que esse fato está inseparavelmente
mamos que o homem é, de certo pon to de vista, independen te dos fenômenos
ligado, e mesmo idêntico, à consciência da liberdade da vontade 14
ele é capaz de agir e assim de inserir-se na experiência para modificar 0 se
curso, dando-se regras de ação. Kan t qualifica de liberdade prática essa in ter
pr etação da Lberdade: ele a considera uma aptidão antes de tudo psicológica,
A função da moral
sem analisar m ten-amente a relação desta com a liberdade transcendental A
doutrina kan tiana da liberdade não encontra, todavia, sua completa coerência
senão na Critica da razão prática
Havíamos partido deste ponto: a moral é uma evidência A filosofia critica
contentar-se-á em estabelecer a realidade desse fato, por um lado para expli-
A diferença de estatuto entre a liberdade transcendental e a liberdade
como autonomia é mui to clara desde o prefácio deste úl timo tex to. E nquan
to a primeira não é senão uma possibilidade exigida pela moral, a segunda é 12 lbid . AK V 4; P li, p 610
13 Cf ibid , AK V 15; P l i. p 624: "e se podemos agora encontrar meios de provat que essa
real e se dá pela própria lei moral. O texto é célebre e essencial, mesmo se
propriedade per tence efetivamen te à vontade humana (e assim igualmente aquela de todos os
Kan t curiosamen te o relega a uma nota: seres razoáveis), será assirn demonstrado não somente que a razão pura pode ser prática. mas
que ela somente, e não a razão empir icamente limitada, é prática de modo incondicionado·
14 lbid , V 42; P li, p 658
Gostaria apenas de observar que a liberdade é possivelmen te a ratio essendi da
lei moral, mas que a lei moral é a ratio cognoscendi da liberdade Com efei to, se a
93
92
Compreender O fato do
dever
citar suas modalidades, por outro para consolid ar sua infl uência na von tade
humana Esses dois aspectos são, ademais, indissociáveis no espírito de Kan t: ralidade; a preocupação de afirmar essa pureza tornar-se-ia, assiln, anterior à
mostrar por que a consciência moral é um dado inexplicável con tribui para própria vida da moral, uma preocupação cujo esquecimen to seria, como afirma
dispensar-lhe um efeito rnáximo no agir h umano Essa vocação concreta da Kant na Doutrina da virtude , a eutanásia da moral'' O combate contra a dialética
17
moral kan tiana, sua preocu pação em i nfluenciar realn1ente o compor tamen to natural do espíri to humano, sempre pron to a submeter a lei ao desejo , impõe
do homem, aparece desde a Fundamentação da metafísica dos costumes se, então, não apenas como uma necessidade teórica, 1nas primeiramente corno
Kan t reflete, com efeito, desde a primeira seção, com ceI ta admiração uma questão de vida ou morte da moralidade, quer dizer, in fine , da humanidade
so bre a faculdade de julgar prática da humanidade A função da Dito de outro modo: o objetivo primeiro da moral kantiana não é a construção
humanidade deve, pois, ser limitada nesse campo: não se tra ta de in de uma nova ética do comportamento, mas a salvaguarda do abismo que separa
troduzir considera ções estranhas ao conhecimen to moral comum, mas a descrição teórica e a descrição prática, ou a obsessão de não oferecer à expe
somen te de expor mais claramen te e mais completamen te os principias e o riência senão a fina ponta de uma lei, purificada de tudo o que possa perturbar
sistema. "A inocência é uma coisa bela; mas é pena que saiba se preservar sua dolor osa inscrição no corpo do ser razoável, ainda que essa lei não viesse a
tão pouco e que se dei xe tão facilmente seduzir'"L a filosofia moral deve ter conseqüências maiores que a má consciência daquele que a tomasse
simplesmen te proteger a consciência comum, dar-lhe uma solidez e uma Essa preocu pação com a pureza do descritivo não é, todavia, sarnen te a
consistência suplementar Ela deve, sobretudo, ir ao encontro da dialética marca de uma probidad e exemplar em 1elação à lei: ela enraiza-se em uma
natural do espírito humano, que bem gostar ia de acomodar a justa preocupação aparentemen te oposta, a da eficácia da lei ou de sua mais profun
consciência que tem do dever à satisfação de suas tendências e seus desejos da penetração no espírito do homem como ser razoável Essa busca da eficá
A filosofia deve, finalmen te, produzir uma critica completa da razão prática cia apar ece desde o início da Pundan1entação da rnetaffsica dos costurnes: assim
para fortalecer definitivamente os elemen tos como a divisão do trabalho é condição para a saída do estado de bar bárie, as
morais já presen tes no conhecimen to popular sim essa divisão, aplicada à filosofia, impõe-se para aumen tar a ren tabilidade
É, pois, ainda uma vez e muito logicamente na Crítica da razão prática do trabalho do pensamen to'" Preservar o dever de toda con tribuição estran
que essa preocupação toma sua forma conceitual mais satisfatória, pois a geira, de toda sedução exterior, é assegurar-lhe uma influência mais poderosa
clareza da elaboração do fato inicial da consciência moral está diretamen te do que todos os motivos que se possam encontrar no campo da experiência;
ligada à sua penetração no coração do homem é permitir-lhe maior influência na vontade; é, finalmen te, dar-lhe um espaço
Se no pensamen to kantiano a afirmação do formalismo moral e de sua maior na consciência e, desse modo, a esperança, se não a certeza, de uma real
justificação é absolu tamente determinan te, um dos elementos desse forma aplicação do dever moral, ainda que apenas em autên tica receptividade à lei
lismo - a pureza da lei - parece ser para Kan t o objeto de uma A pureza da lei é, assim, a vida da moral e sua própria dignidade, o que lhe
especial preocupação e de uma atenção reiterada, como se o que impor permite servir de princípio pr á ticorn; a pureza da obrigação -sua indecidibi-
tasse para a moral não fosse tanto a realidade da moralidade mas a afirmação
mais pura e, por conseguin te, a mais dura do fato da obrigação, livre de toda
16 Cf Doutrina da virtude. AK VI. 378; P rI I. p 655: "Se não obser varmos essa distinção,
empiria, mas também de toda dimensão an tropológica, sentimen tal e até se postularmos em princípio a eudemonia (o principio da felicidade) em lugar do da e!eutero
mesmo -como mostraremos -de todo aspecto teórico nomia (princípio da liberdade na legislação interior)., disso resultará a eutanásia (a n1orte suave)
A pureza da lei não seria, pois, simplesmen te uma das conseqüências da de toda a moral'
17 Cf FMC . AK IV, 405; P II. p 266: ··Assim se desenvolve insensivelinente no uso prático
elaboração kantiana do dever moral -na resistência à sensibilidade ou na es
da razão comum. quando cul tivada. uma dialêtica'·
tri ta posição da distinção teórica/prática -mas, na raiz do conjunto de proce 18 Cf ibid . AK IV 388; P II. p 244: ''Na medida em que os trabalhos não são diferencia
dimentos argumentativos da moral kantiana, a condição de existência da mo- dos e divididos. em que cada um ê um ·a1tísta dos sete instrumentos· as atividades per mane
cem na maior bar bárie'
19 Cf ibid . AK IV 411; P II. p 2 73: '"que é essa pureza de origem que os torna precisamen
15 Fundamentação da metafisica dos costurnes ( F!v!C), AK IV, 405; P 11. p 265 te dignos.. como o são, de nos servir de princípios práticos supremos·
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Compreender
O fato do dever
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96
Compreender
O lato do dever
O pnncípio da
universalidade finalidade permite determinar os meios para atingi-los, sem que seja necessário
sair do conceito deste fim É claro que as coisas são mais complexas para os
A par tir dessa definição da obrigação, Kant pode enunciar a do imperativo: "a conselhos de prudência, pois o fim -a felicidade -é uma idéia tão indetermi
represen tação de um princípio objetivo, na medida em que esse principio é nada que é difícil entender como se poderia dai deduzir uma descrição tão pouco
exigível para uma vontade, chama-se um comando (da razão), e a fórmula do precisa dos meios para alcançá-la A tal ponto que "o problema que consiste em
comando charna-se um imperativo"25 O imperativo enuncia, pois, o dever para determinar de modo seguro e geral qual a ação a favorecer a felicidade de um
um ser que não o respei ta necessariamen te Ele não diz Iespei to, assim, a um ser razoável é um problema absolutamente insolúvel"'" Estabelecer condições
ser perfeitamente bom, em quem o querer está de imediato de acordo com a de possibilidade do imperativo categórico apresenta dificuldades bem mais im
lei moral. Por conseguin te, não há imperativos senão para os homens, sendo o portan tes Com efeito, não se pode deduzir o dever da finalidade da ação, ou de
ser divino nat uralmente, e por definição, moral suas conseqüências, pois o ato não seria mais, então, realizado por dever, mas
É preciso, entretanto, proceder às distinções indispensáveis no interior do em vista de um r esultado O imperativo categórico deve, pois, ser considerado
conjunto dos imperativos Alguns, os imperativos hipotéticos, afirmam a neces como uma proposição sintética que une a vontade e a lei moral
sidade prática de aplicar certos meios para chegar a um fim visado. Um ou tro, Curiosamente, Kan t abandona subitamen te a busca dos fundamentos
o imperativo categórico, representa a necessidade de uma ação em si mesma, do imper ativo categórico, como se bastasse ter notado suas especificidades
sem que essa necessidade derive de um objetivo qualquer Os primeiros Como uma solução satisfatória do problema implica uma cr itica da razão prá
afirmam que uma ação é boa em vista de um fim possível (o imperativo é, tica -esta é esboçada na terceira seção -, I(an t con tenta-se em insistir
então, qualificado de problematicamente prático) ou real (neste caso é chamado no fato de que o imperativo categórico é uma lei prática, que se impõe
de necessariamen te prático); o segundo declara a ação necessária em si indepen den temente de toda finalidade particular Isto posto, pode ser ú til
mesma, e enuncia assim um princípio apodicticamen te prático (quer dizer, dar sua fór mula, na falta de melhor explicação
absolutamente necessário) A primeira formulação do impera tivo categórico baseia-se em sua iden ti
Kan t determina, em seguida, o conteúdo desses diferentes imper ativos dade de forma e conteúdo Um imperativo hipotético recebe seu con teúdo do
Aqueles que têm por objeto designar o melhor meio de se chegar a um fim pos fim buscado. O imper ativo categórico, por sua vez, comand a absolutamente:
sivel são irr-.perativos de habilidade Ele dá o exen1plo seguin te: se u1n r néclicu sua forma é a universalidade do dever; sua matéria é a necessidade de cumprir
quer rapidamen te curar seu pacien te, então deve proceder desta ou daquela o dever pelo dever Disso decorre que o imperativo categórico é in teiramente
maneira. Encontramos, por ém, um fim que os homens perseguem sempre: a definido pela necessária conformidade do principio de minha ação -sua má
felicidade Fala-se, então, de imperativos da prudência para qualificar o enun xima -com a forma da lei em geral, a universalidade. Pode-se en tão dizer
ciado dos métodos mais eficazes para sua conquista. Finalmen te, o imperativo que o imperativo categórico afirma: "age unicamen te segundo a máxirna que
categórico não diz respei to ao conteúdo efetivo da ação e àquilo que even tual faz
27
mente poderia disso resultar, mas à sua forma somente, e à in tenção que pre que possas querer, ao mesmo tempo, que ela se tor ne u1na lei universal" A lei
side à ação Fala-se en tão de moralidade Enquan to os imperativos hipotéticos mor al é tão universal quan to uma lei da nat ur eza, que funciona aqui corno
deságuam em regras de habilidade e em conselhos de prudência, somen te o um modelo Devo agir de tal modo que a universalização de minha máxima
imperativo categórico supõe uma necessidade sem condição, e formula-se por seja para mim desejável Isso não significa interrogar-se sobre as possíveis
um comando Só ele, em definitivo, tem uma dimensão moral conse quências da minha ação (o que acon teceria se todo mundo fizesse
A questão é saber como esses imperativos são possíveis As regras da ha como eu?), mas aplicar-lhe um teste, permitindo identificar sua moralidade em
bilidade, os conselhos de prudência não represen tam problemas especificas virt ude da exigência, para o dever, de ser seguido como uma lei
Nos dois casos, a proposição que contém o imperativo é analítica: a análise da
98 99
Compreender O fato do dever
Kant indica um primeiro exemplo: tome-se um homem desesperado, de Em vez de esclarecer essa fór mula pelo estudo dos casos par ticulares,
sejoso de suicidar-se A máxima de sua ação é, pois, a seguinte: por amor a Kant adia o problema da aplicação do imperativo categórico -no caso espe
mim mesmo, pr efiro abandonar a vida Kant replica: o amor a si é um princípio cífico da razão pura prática -o problema da aplicação do imperativo categó
que leva ao desenvolvimen to da vida Não se pode fazer dele, sem con rico Ele prefere dirigir sua atenção para o conceito que irá unificar a idéia de
tradição, um motivo universal de destruição da vida O exame do preceito lei e a de liberdade: a autonomia
conduz aqui a uma contradição lógica no in terior da natureza O exemplo
seguin te obedece à mesma lógica O princípio de um individuo que toma
emprestado dinheiro, tendo decidido jamais devolvê-lo, consiste em dizer que a Autonomia e autopos1ção
necessidade legitima a men tira A universalização da máxima conduz
necessariamente à impossibi lidade de toda promessa e de todo con trato; a A Fundamentação não propõe uma teoria completa da autonomia O
men tira perde todo sentido, ao mesmo tempo em que o concei to de verdade conceito in tervém apenas na busca de urna nova form ulação do imperativo
A ação aqui examinada torna-se ela mesma contraditória, pois destrói a categórico capaz de fornecer uma determinação completa
instituição que se permi te não respei tar Os dois exemplos seguin tes são de A Critica da razão prática marca de modo mais sensível a importância da
natureza um pouco diferen te Kant não diz que a universalização da máxima da idéia de autonomia Nela realiza-se a junção de um conceito negativo da li
preguiça e do egoísmo leva a uma con tradição, mas que não posso querer essa berdade como independência em relação ao determinismo causal e de uma
universalização, na medida em que ela se con trapõe às necessidades da razão, concepção positiva, que a torna o agen te de uma determinação própria 29 Ela
no primeiro caso de desenvolver seu talen to, no outro de poder con tar com a se opõe a toda tentativa de submeter a vontade a uma determinação externa,
assistência do outro quer dizer, a um objeto O ser moral é livre porque é au tônomo, é moral porque
Agi r de modo con trário à moral consiste em estar conscien te da im está submetido a uma legislação que provém de sua própria razão
possibilidade de universalizar sua máxima, concedendo-se uma exceção à Que não nos enganemos, todavia, acerca do conceito de autonomia Kant
lei Não posso querer a universalidade da men ti ra, mas posso permi tir-me não compreende o sujeito humano como um ser todo-poderoso, capaz de afir
men ti r de tem pos em tempos, a titulo excepcional Como vemos, o impera mar sua própria lei O homem descobre em si a lei moral, ele a enuncia, tenta
tivo categórico funciona corno um teste teórico de moralidade Sua validade aplicá-la, mas não a cria, na verdade
vem da própria razão, ela não deve de modo algu m ser deduzida da natureza Assim como a razão teórica não estava livre para formular ou não as ques
humana e dos sentimen tos próprios ao homem A situação do filósofo mo tões da metafisica, tampouco é livre a razão prática em r elação à lei moral É
ralista é, assim, delicada Ele não pode, com efei to, f undar a moral sobre a claro, a autonomia da razão prática implica que, por ela, o homem é sujeito e
na tu reza, nem sobre a felicidade Por princípio, a lei que formula o imperati objeto da lei: mas ele não é livre para submeter-se ou não a ela A razão prática
vo ca tegórico vale por si mesma, e faz abstração de toda experiência real As é originariamente sujeita à lei, ela afeta a si mesma, abrindo em seu seio o
ten tativas para apoiar a moral em uma tendência do homem ou da nat ureza espaço de uma desproporção en tre seu poder e o que dela é exigido.O factum
são, ambas, provas de preguiça in telec tual
rationis é a 1narca dessa sujeição moral, tan to mais singular quanto é constit u
A Critica da razão prática não se preocu pa com exemplos Ela se tiva de verdadeira au tonomia Nesse sentido, o fato da consciência da lei é um
contenta em afirmar a lei fundamental da razão pura prática, sob uma forma
dom anterior ao exercicio da razão, o modo prático do ser-afetado da razão30
idêntica à da Fundamentação:
A razão prática institui-se na realidade especifica de um facturn incomensurá
vel para a razão, mas que, todavia, não vem senão de seu próprio bojo
Age de ta! 1nodo que a máxírna de tua vontade possa, ao rnes1no te1npo, sempre
va ler como pri ncípio de uma legislação universal 211
29 Cf ibid . AK V. 33; P 11. p 647
30 Cf J L NA NCY. L'im pêrati fcattigorique. Paris. Flamrnarion, 1983. p 21
C R.Pr AK V 30; P II, p 643
101
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Compreender O fato do dever
Não se trata, como se imagina, de voltar ao sentimento moral ou à de egoísmo; ela consiste sempre em uma conformidade com a virtude, ela
posição de uma natureza humana originariamen te moral, da qual decorreria pr ópria determinada pela disposição de escolher o justo meio, a boa medida
o essen cial de filosofia prática Mas Kan t, ao afirmar no principio de seu Não há aqui, contrariamen te ao que vimos na F'unda1nentação , um princípio
trabalho o fato da razão como consciência da lei, introduz na constituição de universalização das máximas da ação Trata-se antes de escolher, caso a
transcenden tal do homem uma forma de passividade àquilo que ultrapassa caso, o melhor, sem buscar uma perfeição inatingível ou um bem absoluto A
sua finitude, que dá um tom particular ao conjunto d a moral kantiana, ética é questão de discernimento, de deliberação quanto ao que é preferível
temperando sem cessar a vontade de autonomia osten tada pela presença em vista das circunstâncias, das pessoas envolvidas ou das conseqüências
insistente de uma lei que a previsíveis do ato
razão sem dúvida formula, mas que não criou31 Para Aristóteles, como para muitos filósofos, especialmente dos séculos
XVII e X:Vlll, a busca da felicidade define o quadro de toda a moralidade É
claro que encon tramos na história da filosofia uma grande variedade de de
A critica da fe/ 1c1dade finições da felicidade, segundo se incorpore a ela a virtude, o prazer, a pr eo
cupação com o outro ou mesmo considerações, sociais, estéticas, políticas ou
Autonomia versus heteronomia Kan t opõe o principio último de sua moral à religiosas Em todos os casos, o critério de avaliação dos comportamentos é
totalidade dos princípios materiais, que submetem a von tade a um objeto que sua colaboração mais ou menos importan te para a construção da vida boa
lhe é externo Um de seus principias materiais, a felicidade, atrai I(ant certamente não é o primeiro a con testar essa proximidade entre mo
singularmen te a atração de Kant Sua critica da felicidade, mais sutil do que ralidade e felicidade. Desde a Antiguidade, isso foi questionado com a
se possa ter dito, marca a originalidade kantiana entre o rigor da afirma ção de que a verdadeira moralidade poderia implicar uma forma de
determinação racional de sua moral e sua relativa benevolência em relação renúncia à felicidade A moral kantiana é, todavia, a forma mais perfeita e a
àquilo que o homem deseja mais severa dessa critica da idéia de felicidade, de que Kant não nega o
Distingue-se, geralmente, na filosofia prática, a ética da moral Nada na caráter desejável, mas cuja inutilidade postula na elaboração da moral
etimologia dos dois termos justifica essa distinção Ela é, na r ealidade, o fato A idéia da felicidade está muito presen te nos textos de Kant Ela jamais é
de uma convenção de in terpretação, destinada a separar duas maneiras de criticada por si mesma, nem rejeitada como um princípio fundamen talmente
conceber o papel d a filosofia moral Fala-se, assim, de ética para designar mau, mas sempre formulada em uma hierarquia que a submete ao dever, úni
uma reflexão sobre os meios de se chegar a um fim almejado, definido co conceito autêntico de moral Kant o aborda de uma grande diversidade de
comumente pela expressão "vida boa"; a moral, ao contrário, é en tendida pontos de vista tanto em sua Fundamentação da metafisica dos costumes como
como o estudo das normas universais da ação Essas duas orien tações corr na Crítica da razão prática
espondem esque maticamen te a duas tradições: a primeira, que parte de Desde a primeira seção da Fundamentação, Kan t reconhece que pode pa
Aristóteles, é chamada teleológica (tem a ver com os fins); a segunda, que recer natural querer assegurar a própria felicidade Ele também observa que,
parte de Kan t, é chamada deon tológica (relativa à norma) se todo homem persegue a felicidade, é absurdo fazer dela uma obrigação A
A corrente de pensamen to nascida com Aristóteles põe no cen tro de toda definição que dá da boa von tade certamente corrobora essa análise, pois o valor
ética o conceito de felicid ade. Mais exatamen te; a vida feliz é considerada desta deve ser estabelecido sem referência a um fim visado, ou a um resultado
o bem supremo, aquele ao qual necessariamen te tende toda atividade
esperado, e, portanto, sem referência a uma felicidade even tualmente obtida
humana Essa felicidade não é, para Aristóteles, uma forma mais ou menos
A felicidade intervém uma segunda vez na Fundamentação no momento
sofisticada
em que Kant afirma a distinção entre o imperativo categórico e o imperativo
hipotético Entre esses últimos encontram-se os imperativos da prudência, que
31 Cf sobre este ponto G KR UEGER, Critique et rnorale chez I<ant'. Paris. Beauchesne, 1961. p enunciam o que é preciso fazer para chegar ao fim que todos perseguem, o
129:"[Na autonom ia. a razão] se faz o n1andatário da lei. ela quer por si mesn1a fazê-la tespei
bem-
tat ; quer dizer. a razão proclama a lei em seu nome próprio como se fosse o autor dessa lei
Ela se apropria da lei con10 se fosse seu próprio projeto. e é precisamen te desse modo que é
obrigada pela lei
103
102
Compreender O fato do
dever
estar. Como são passiveis tais imperativos"? Em principio, basta analisar o fim
para deduzir seus meios. Mas o problema aqui é que esse fim, a felicidade, é tão Fal ta determinar o objeto da razão pura prática, ou da vontade, conteúdo
um conceito muito pouco determinado, a tal ponto que, "apesar do desejo que do segundo capi tulo da analitica Kant poderá enfim, uma vez resolvida essa
todo homem possui de chegar a ser feliz, ninguém jamais pode dizer em questão, debruçar-se sobre as modalidades efetivas do agir moral
termos precisos e coerentes o que verdadeiramente deseja e quer"32 O
procedimento de Kant é simples: suponhamos -o que ele contesta -que a
moralidade possa ser identificada com a felicidade; não é sequer possível O bem e a mai
estabelecer comandos se o objetivo visado é tão indeterminado quanto o é a
felicidade Por concei to da razão prática en tendo a representação de um objeto como um
A Critica da razti.o prática reformula em termos ainda mais precisos essa
efei to possível pela liberdade'·'
recusa a in tegrar a felicidade aos fundamen tos da moral. Ela é ai descri ta
como um princípio empírico, que se pode buscar por meios amorais, e que
O conceito de possibilidade deve aqui ser esclarecido Não se trata de sa
compromete a pureza da mor alidade ao submeter a von tade a uma determi
ber se o sujei to é fisicamen te capaz de alcançar um objetivo proposto à sua
nação externa Todavia, Kant matiza essa posição especificando que "a razão
vontade: tr ata-se de estabelecer o juizo que decidirá se alguma coisa é ou não
pura prática não exige que se renuncie a toda pretensão de felicidade, mas
um objeto para a von tade como razão prática, quer dizer, para a vontade au
somen te que, desde de que se trata de dever, não a tomemos absolutamente
tônoma Kant fala, assim, de possibilid ade moral, determinada pela própria
en1 consideração" 33 O bem-estar não é in teiramen te negativo, poique dá às lei, independen temen te do fato de que o objeto seja ou não efetivamen te rea
vezes ao individuo os meios para cumprir seus deveres Mas fazer disso um lizável Será qualificado de bem o "objeto necessário da faculdade de desejar""
pri ncipio moral provocaria danos comparáveis à i n trodução de dados
e de mal "o objeto necessário da faculdade de aversão"" Teremos en tendido,
sensí veis nas 1natemáticas
em vista do que precede, que esses concei tos de bem e mal não são absoluta
Finalmen te -esta é uma con tribuição especifica da segunda Crítica
mente determinados pelos de prazer e dor Eles são postulados a priori pela
-, a felicidade é considerada por Kan t um dos dois elemen tos consti tu própria lei moral, independentemen te de toda sensação agradável ou desa
tivos do bem supremo Kant afirma que a von tade é necessariamente
gradável Toda tentativa de definir a ação moral a partir de um concei to do
determinada para visar o bem supremo Este não é nem a virtude sem a
bem definido independentemen te da lei é absurda, e os antigos muitas vezes
felicidade, nem uma fe licidade sem virtude, mas a unidade dos dois conceitos incorr eram nesse err o fatal. Em lugar de partir de uma idéia confusa do bem
Resta decidir qual sua relação A tese segundo a qual a busca d a felicidade soberano, fazendo da ética uma lenta aquisição desse bem, é preciso conceber
produz um principio de in tenção virt uosa é absolutamen te falsa, na medida a moral como a posição de uma lei moral que determina a priori seus próprios
em que a boa vontade não deve depender de sua capacidade de nos dar objetos Quer er o bem é pois, in fine, quer er a forma da lei, e não poderá ser
felicidade Por outro lado, pensar que a intenção virtuosa produz a felicidade
qualificad a de boa senão a ação que terá com sucesso passado pelo teste de
é parcialmen te justificado, se ao menos se distingue o tempo da virtude
universalização de sua máxima Kant apenas percorre a problemática do bem
-nossa vida terrestre -e o tempo da felicidade -uma even tual vida
e do mal como objetos da liberdade. longe de se desinteressar pela questão,
futura A felicidade em questão jamais será objeto da experiência, mas somen
ele prefere tratá-la em sua maior dificuldade: de um lado, refletindo na possi
te um ideal que se pode esperar se, duran te a vida, zelarmos para dela nos
bilidade última do bem supremo como conciliação da felicidade e da virtude;
tornarmos dignos Voltaremos a este ponto
de outro, perscrutando a parte sombria da humanidade, pelo conceito de mal
Posição do fato moral, filosofia da liberdade, purificação progressiva da
lei, elogio da autonomia Os principais elementos da moral kantiana ai es-
104 105
Compreender O fato do dever
radical Nos dois casos, Kant aventura-se até os confins da moral e da religião, A faculdade de julgat sob as leis da razão pura prática parece, pois, submetida a
e é, pois, sob esse aspecto que encontraremos novamente o bem e o mal
dificuldades particulares, pr ovenien tes do fato de que uma lei da liberdade
deve se aplicar a ações, como evento que ocorre no mundo sensível e, portanto,
nessa qualidade, pe1 tencente à natureza:i 7
A moral do ato
O problema seria insolúvel se fosse preciso determinar uma ação parti
O itinerário da Critica da razão prática é limpido Após ter definido a lei moral
cular pela lei moral Na realidade, essa não é a função da faculdade de
e postulado a consciência dessa mesma lei como fato da razão, após ter deter
julgar prática Ela deve simplesmente passar de um principio universal
minado quais poderiam ser os objetos da von tade, Kant irá ater-se à aplicação
racional -a lei -a uma determinação universal dessa lei, considerado o
concreta da lei em atos efetivos
ato previsto - a máxima A mediação exigida da faculdade de julgar faz
a ligação do universal racional ao universal conceitua!: ela deve, por
conseguinte, ser confiada ao
A t1polog1a
entendimen to, a passagem seguinte, entre máxima e ação, não cabendo a uma
38
Conforme o caráter ainda fundamental da segunda Critica , ele não irá aqui critica da razão prática, mas sim a uma doutrina da virtude Podemos assim
tomar as leis enunciadas pelo en tendimen to -as leis da natureza como
analisar virtudes par ticulares, que seriam exemplos de manifestações empí
ricas do agir moral Ele con ten ta-se -isso é o essencial -em elaborar um um modelo de universalidade para as máximas da ação moral:
método universal que permite determinar a priori a moralidade ou a imora
lidade de um ato -a tipologia; em seguida, em pensar a repercussão feno A regl'a da faculdade de julgar sob leis da razão pura prática é esta: pergunta a ti
menal da lei no espir ita humano: o respei to Cumprido este úl timo trajeto, mesmo, considerando a ação que tens em vista como procedente de uma lei da
a moral terá realizado aquilo pelo que se havia empreendido seu estudo: a natureza em que tu mesmo serias par te, se ainda poderias vêla como possível
posição de um ser racional como ser sob a lei, e a descrição das modalidades para tua vontade:rn
dessa obrigação
O problema da tipologia é o seguinte: como fazer a ligação entre a lei Qualquer leitor da Fundamentação da metafisica dos costumes terá, sem
moral, universal e supra-sensível e a ação moral particular, que procede da dú vida reconhecido o critério de universalidade que permitia avaliar a morali
sensibilidade, mas da qual não podemos a priori afirmar a existência? A dade das máximas Kan t con ten ta-se aqui em formalizar melhor esse critério,
Crítica da razão pura levantava uma dificuldade semelhante, buscando um aproximando-o do paradigma de toda universalidade que é, para ele, a lei da
meio de aplicar conceitos puros do entendimento aos dados da sensibilidade natureza A tipologia é de uso muito cômodo: poderia eu, por exemplo, querer
O esque matismo permitia resolver esse problema de modo relativamente viver em um mundo onde o principio da mentira fosse tão fixo e determinado
fácil, pois dispomos realmente de intuições empíricas, que se subsumem aos quanto uma lei da natur eza? Posso querer mentir, concedendo-me uma exce
conceitos através da faculdade de julgar teórica e da imaginação. Na ção à r egra, não posso querer que essa exceção se torne a regra
prática, é muito diferen te Na verdade, não apenas não temos nenhum O procedimento kantiano, aqui, é do começo ao fim analógico: não so
exemplo de ato moral comprovado, ao qual se aplicaria facilmente a lei mente na tipologia, propriamente dita, mas desde o parágrafo 8 da
moral, mas tampouco existe elemento homogêneo à razão e à sensibilidade, primeira parte, no gesto pelo qual Kant desloca o pmo querer para uma
ao passo que havia um -o tempo -entre a sensibilidade e o entendimento esfera supra sensivel, onde irá servir de quase-Eu transcenden tal, e onde
A distância entre a liberdade e a natureza, a lei e a ação, par ece objetos -o Bem
impossível de ser preenchida:
107
O fato do dever
Compreender
questional' sua pur eza A divisão teoria/prática é, assim, finalmente pre_servd
de toda contaminação, graças ao fato da consciência da lei e à elaboraçao teon
e o Mal -lhe serão propostos A pon to em que o momento de pureza máxi ma
ca do teste de universalização: resta então, como verdadeiro lugar de aplicação
da lei -a afirmação do Faktwn -bem poderia ser sua traição, na medida em
da lei em sua pureza, apenas o efeito desta na sensibilidade, marca única de seu
que inaugura o piocesso analógico, fornecendo-nos o conceito de uma nature
valor moral, única saída também para essa pur eza em sua recusa de qualquer
za supra-sensível, construido sobre o modelo da natureza real
desenvolvimento teórico, de qualquer mediação, de qualquer esquematização
Essa suspei ta de traição às fron teiras estabelecidas por Kan t, no
que, ao quei er assegurar sua aplicação, dest ruiriam sua essência
cam po crítico, entre universo teórico e universo piático não é justificada
senão se o processo de universalização das máximas, de acordo com o
modelo de universalidade das leis da natureza, entra na determinação da
Respeito e
lei moral Se, ao con trário, podemos mostrar que ele permanece na humanidade
realidade in teiramen te teórico, e não serve senão de modo de exame
epistêmico da validade da má xima, a suspeita pode ser afastada e a O exame da máxima da ação pela tipologia não fornece em si mesmo nenhu
tipologia devolvida ao devido lugar - defini tivamente limitada ma razão de agir moralmente Kant, muito afastado da ética socrática que
O exercício de pensamen to da tipologia consiste em considerar a ação e supõe ser bom o agir desde que se conheça o bem, deve, pois, logicamente,
sua máxima fazendo-a sofrer um exame, a fim de julgar sua qualificação propor um outro motivo para a razão prática O capitulo seguint.e da segunda
moral: não se trata absolutamente de dar à máxima assim transformada um Crítica irá buscar tal motivo Sua identificação não garanttra, evidentemen te,
alcance concreto, ou um efei to na realidade, mas de conceder-lhe ou não uma nenhuma ação moral efetiva; mas permi tirá compreender o que se passa com
aprova ção mor al. A inclinação, o desejo ou a aspir ação à felicidade são uma vontade quando esta é determinada somente pela lei moral, excluindo
descartados pela única razão de sua inadequação puramente epistêmica em
qualquer outra razão de agir
relação ao cri tério de universalidade; desse modo, a reflexão moral não se Respei to é o nome desse motivo Kan t assim o define:
apresen ta como a busca de uma aplicação da lei, mas como, segundo as
palavras de Ricoeur, um "pacien te exame dos candidatos ao título de bom, O respeito <la lei tHural é, pois, u t11 se11li111en tu pt udu:ddo pot un1a causa in te
sem restrições"'º A tipologia não é, pois, senão a formalização mais geral e lectual, e esse sentimento é o único que conhecemos a priori e do qual podemos
mais completa des se teste teórico e - como oper ação de comparação 42
perceber a necessidade
entre uma máxima e o tipo na tural de sua necessidade -o fato de um
juizo reflexivo", que permite discriminar as máximas morais e aquelas que
Esse sentimento, bem entendido, não é um sentimento 1noral que dê va
não o são A natureza em sua legalidade aparece, pois, como o modus lidade moral a toda ação que dele decorra, mas a marca dolorosa da inscrição
operandí de um exame teórico da má xima, em virt ude da clareza de sua da lei no corpo sensível, causa de uma emoção especifica que reconduz a
necessidade e da determinação de sua cau salidade -elementos ausentes de ambi güidade do fato da razão, não sendo nem totalmente racional, ne1
uma lei moral que não diz nada além do ser-obrigado do sujeito -, e em tampouc_o in teiramente sensível. Esse sentimento particular é motivo da
virtude igualmen te, é preciso reconhecer, da presunção de uma quase- razao pur a pr a tica não como causa da ação moral, mas como rebaixamen to,
identidade entre a forma teórica do en tendimen to puro e a forma pr ática desencorajamen to da vontade, conscien te de sua inadequação ao que dela é
da razão pura exigido O respeito aparece, então, como forma subjetiva do fato da razão,
A tipologia, assim reconduzida a uma função teórica de verificação da va talvez uma via de escuta da razão prática, demarcando na sensibilidade um
lidade da máxima, não entra de maneira alguma na determinação da lei, r esi campo de moralidade, e não-patologia; e talvez o respei to seja igualmente a
dindo inteiramen te no Faktum da obrigação, e ela não pode, por conseguin te, única verdadetra aphcaçao
109
108
Compreende
r
da lei, nem juízo da ação -questão da tipologia -, nem fundação das leis O fato do
do com portamento -questão da doutrina da virtude -, mas pura dever
obrigação, puro sinal da humanidade submetida à lei'° O respeito é, assim,
não somente a marca da pureza da lei4-1 mas também, como móvel da
,
razão prática, o cará ter distin tivo da moral, sua mais clara manifestação Age de modo a tratar a humanidade tan to em tua pessoa como na pessoa
Essa definição original do respeito confirma nossa hipótese de partida: de qualquer outr o sempre ao mesmo tempo como u1n fim, nunca
a moral kan tiana não é senão uma paciente elaboração da pureza da lei, simplesmente como um meiofi
não é senão o respei to pela lei, não é senão receptividade ao próprio dever de
melhor fundamen tar a obrigação Como é muitas vezes o caso, a Crítica da razão prática desenvolve uma
Um segundo argumento pode aqui ser avançado em favor da tese idêntica, mas sob luz diversa Kan t deduz imediatamente a dignidade
prioridade do respeito no conjunto da moral de Kan t Será, com efeito, a do ho mem e sua personalidade da presença nele do d ever, manifesta no
partir desse sen timen to específico que Kan t construirá sua teoria da respeito A grandeza do homem não está em sua hipotética capacidade de
humanidade Desde a Fundamentação da metafísica dos costumes, o agir moralmen te; ela se encon tra naq uilo que o liga, em sua condição
respeito é aquilo que dá à hu manidade que recebe a lei sua dignidade, seu sensível, a uma ordem inteligível: a ordem da liberdade O homem não é
valor incondicionado 45 Vejamos rapidamente esse texto grande porque é bom; ele é grande porq ue tem consciência do seu dever
Depois de ter estabelecido a universalidade como forma do O homem de Kant não é, pois, definido exclusivamente por sua
imperativo categórico, Kant ir á esforçar-se para completar a primeira finitude, ou pelo infinito que se dá nele, mas pela relação entr e um e ou tro.
fórmula por uma segunda, que determina, ao menos parcialmen te, a A natureza do homem não deve, pois, ser en tendida simplesmente em
matéria possível do de ver Esta não pode de modo algum ser um objeto oposição àquilo que se dá como supra-sensível: Idéia, lei, Bem, mas como
da experiência, pois essa submissão da von tade à sensibilidade destruiria a fundamen to sub jetivo da relação do homem finito com aquilo que o
moralidade É preciso, pois, que a finalidade do imperativo categórico, transcende. "Quanto a esse fundamento, pouco importa onde ele se
aquele que leva o ser razoável a submeter-se ao critério da universalização, encontre"/lJ: não é nem sensibi lidade, nem racionalidade, misterioso como
seja um fim em si, algo que tenha um valor absolu to Ora, o único ser'que essa presença em nós da idéia de nossa perfeição, em que não vemos como
jamais poderá ser reduzido a um meio é o homem A von tade não é moral "a natureza humana pode ser-lhe receptiva"" A humanidade qualifica
senão quando tem como 1notivo o respeito por aquele que é o portador da precisamente essa cisão no homem entre
vontade, a humanidade Ao fazê-lo, ela nada persegue de exterior a si finitude e santidade: com efeito, "se o homem é, sem dúvida, mui5to
sua pessoa, deve ser para ele santa" º A
pouco santo"4!l, "a humanidade, empersona
mesma, mas apenas o ser particular que é dotado dessa faculdade de querer
lidade é, pois, o conceito que em Kant qualifica essa idéia de santidade,
O homem não é uma coisa, mas uma pessoa: ele não pode ser empregado
"na tural, mesmo para a razão mais comum, que pode facilmen te
unicamente como um meio, mas deve sempre ser visto como um fim Dai a
apreendê-la"" Kan t não quer dizer com isso que a santidade é a coisa mais
famosa fórmula:
compartilhada do mundo, mas sim que a na tureza humana é definida por
esse elo entre o homem e a idéia de sua perfeição
43 Cf ibid . AK V 16: P 11. p 100- 101: '·Não se destina a julgai as ações ou mesmo a fun dar a Também a personalidade qualifica em Kan t o desdobramento da
própr ia lei 1noral obje tiva. en1 vista de dela fazer uma 1ná-.xima em si'
44 Cf ibid , AK V, 79; P 11. p 704 ·· por conseguinte, essa humilhaçao não se dá senão re!ativan1en
consciên cia moral, que Kan t designa como uma "disposição in telec tual
te à pureza da lei" originária"51: por ela, o homem, que todavia só está implicado consigo
45 Cf FlvIC. AK IV 436; P II, p 303: "Pois ben1. a legislação que determina todo o valor deve ter mesmo, concebe um
precisarnen te para isso u ina dignidade. quer dizer. um valor incondicionado, inconipa ráve!, que
traduz a palavra respeito, ú.nica que fornece a expressão conveniente da estima que un1 ser
razoâvel deve ter por esse valor" 45 Cf ibid , AK IV 429; P l i. p 295
47 A religião nos liniites da sin1ples razão. AK VI 21; P III. p 31
4G lbid . AI( VI. 61: P Ili. p 76
110 49 CRPr. AK V, 87; P 111. p 714
50 [bid
51 lbid
52 Doutrina da virt11de. AK VI. 439; P III, p 72 7
111
outro (o homem em geral) para julgar suas ações"' E m sua relação com a
í
Idéia da lei moral, que é sempre ao mesmo tempo a Idéia de sua própria
Compreender
santidade, o homem manifesta uma disposição à personalidade, uma
compreensão dessa "idéia da humanidade considerada de modo
intelectual"°': o homem é pois de finido por sua receptividade à Idéia de
humanidade, que o afeta e o determina, ainda que apenas na má consciência O fato do
dever
113
Compreender
O fato do dever
é a seguin te: o homem concebe a lei moral, ela faz dele um ser digno e para Age segundo uma máxima cuja lei univer sal possa ser para todos do que pro
ele um dever de elevar-se cada vez mais no sen tido do concei to de humanida por-se (i.nsm
de que funda sua personalidade É assim "para o homem um dever trabalhar
para sair da rusticidade de sua natureza, da animalidade, para elevar-se até a
J(ant permanece no registro do universal que caracteriza suas obias an
humanidade"" Di to de outro modo:
teriores Mas aqui, muito mais do que na Fundamentação e na segunda Critica ,
ele irá i n tegrar à sua moral qualidades sensíveis e efetivas, únicas capazes de
A razão moralmente prática ordena-lhe isso, de modo absoluto, e faz deste firn
permi tir à lei um acesso real e concreto ao espirita humano Ao menos é este o
um dever, a fim de que ele seja digno da humanidade que o ha bi ta5!l
objeto do texto que se segue imediatamen te à formulação do principio supre
mo de toda doutrina da virtude
Conceber a felicidade do ou tro como um dever é certamente estar mais O conceito de receptividade ao dever que expressa o respeito surge, no
próximo do dever comum O argumen to kan tiano é ainda assim curioso: dese
texto da Doutrina da virtude , associado àquilo que Kan t chama de pré-
jo necessariamen te a felicidade; mas desejar minha felicidade não é, em si,
noções estéticas E n tr e essas qualidades morais não-r acionais que se pode
mo ral; assim, a única felicidade que pode ser um dever é a felicidade do outro
exigir do homem, mas que oferecem ao dever condições favoráveis, Kant
Kant prossegue Esses dois deveres não podem de modo algum resultar coloca o senti mento moral Este é, ao mesmo tempo, o que antecede a
de uma obrigação jurídica Ele o disse anteriormente, a ética não determina recepção do dever e o efeito da lei mor al sobre o espírito As duas formas de r
atos, mas máximas Ela deixa, pois, ao livre-arbítrio o cuidado da atuação, não
eceptividade acham-se aqui singularmente in tricadas, em um jogo de
possuindo a não-observância do dever moral por definição nenhuma conse
reciproca condicionalidade que faz do sentimento o elemento auxiliar do r
qüência real O dever ético é, assim, diz Kan t, de ampla obrigação: pode-se
espeito, e do respeito a causa do sentimento. Como disposições naturais, as
estar moralmente satisfeito por ter obedecido ao dever moral, não se pode por pré-noções estéticas não podem ser objeto de uma obrigação: aliás, não é
isso ser recompensado juridicamente Kant aplica imediatamente esse critério preciso forçar o homem nesse senti do, pois todo homem as tem em si,
aos dois deveres fundamentais. A perfeição pessoal depende da situação de
embora despertas apenas pela consciência da lei Essas qualidades morais não
cada um, nada de preciso pode aqui ser prescrito à liberdade, devendo a razão entram na constituição da moralidade pro priamente dita, mas unicamente em
con ten tar-se com uma máxima bastan te vaga: "Cultiva as forças do teu sua aplicação Elas não são necessárias, como o serão os conceitos da religião
espíri to e do teu corpo para torná-las aptas a todos os fins que possam se racional que abordaremos adiante; elas são, todavia, indispensáveis à vida da
oferecer a ti, ignorando aqueles que possam ser os teus"'º O mesmo em moral, e são pois, ao menos marginal men te, integráveis a uma metafísica
relação à ge nerosidade física e moral do outro: nada pode determinar a priori dos costumes
o limite dos sacrifícios que posso dever permi tir para a felicidade dos outros Esse estatuto in termediário da receptividade estética aparece mui to cla
Depois de ter assim indicado o que podem ser os deveres de virtude, Kant ramen te na determinação kantiana do sentimento moral Este é , com efei to,
volta ao que deve constituir seu principio fundamen tal Também ai o conceito "a receptividade ao prazer ou à dor, provenien te unicamen te da consciência do
de humanidade revela-se determinante Com efeito, a humanidade não é, em acordo ou do conflito entre nossa ação e a lei do dever"61 É a repercussão sen
defini tivo, senão uma r elação da humanidade consigo mesma, ou ainda o timen tal da representação da ação em sua r elação com o dever Quando essa
ho mem dando-se por fim a humanidade que o habi ta Pode-se, então, represen tação precede o ato e o conduz, o sentimen to é estético e patológico,
formular esse princípio da seguin te maneira: portan to exclui-se da moralidade; quando, por outro lado, vem após a repre
sentação, ele é estético e moral Esse sentirnen to não é, pois, indispensável
53 lbid AK VI, 387: P 111. p 666 à obrigação que se dá antes dele, mas tem a função de r evelador, no sentido
59 lbid
60 lbid . AK VI, 392; P 111. p 673
115
Compreender
O fato do
dever
117
Compreender O fato do dever
Respeito por si e pelo outro; sentimen to de prazer e de dor sofrida pro cação da metafisica dos costumes excluía por principio toda função positiva
ceden te da represen tação do dever; esses dois elemen tos, en tre ou tros, para esse tipo de sen timento. O que de modo eviden te estava excluído da
par ticipam da aplicabilidade da lei moral As qualidades morais e os deveres fundação da moralidade pode ser reconhecido agora como um suplemen to
da virtude não são, é claro, esquemas verdadeiros, pois a lei moral não útil dessa mesma moralidade
pode jamais ser apr esen tada em uma i n tuição. Mas Kan t não hesita em O formalismo moral kantiano não é atenuado por essa abordagem re
confiar aos sen timen tos estéticos, tais como se apresen tam nos casos lativizada da receptividade estética Ele é antes aprofundado em um de seus
individuais, um papel de quase-esquematização dos pri ncipias puros do traços, a receptividade racional, que o fato da razão designa A exigência da
dever" Tam bém no catequismo moral que conclui a Doutrina da virtude aplicação da lei é o pano de fundo do que consti tui, ao mesmo tempo, o co
Kan t insistirá na necessidade de u ma receptividade do aluno, não a ração da moral kantiana e o cmação do homem: a razão afetada Ela provoca
exemplo de u m ou tro não uma reviravolta na construção da metafísica dos costumes, rnas urn de
homem (receptividade patológica) mas à Idéia de humanidade nele (recep senvolvimento estético do sen timen to originário, consti tutivo de um quase
tividade moral) esquematismo moral Encon trar emos um procedimento comparável em um
A partilha critica entre uma boa e uma má receptividade estética permite, campo completamente diferente, o da religião Ainda ai, nenhuma negação
pois, sem ameaçar a autonomia, prolongar a receptividade originária da razão da prudência critica e da rejeição do dogmatismo metafisico Todavia, a efeti
em uma figura moral não-racional, que, no entan to, é essencial à elaboração vidade da lei moral exige que certos conceitos estranhos aos fundamentos da
dos deveres particulares moral encontrem no espírito humano um espaço de receptividade, condição
Se os sentimen tos estéticos não podem ser objeto de um dever direto, do pr óprio Bem Supremo Esse percurso da Doutrina da virtude é sem dúvida
eles são objeto, todavia, de um dever indireto: o homem deve cultivar essas parcial, e deixamos de lado muitas análises particulares nas quais se expressa
disposições naturais, que permitem às vezes obter do livre-arbí trio o que ape a sutileza psicológica do espirita kantiano O essencial nos parece, ainda
nas a represen tação racional do d ever não teria podido obter Assim, Kan t assim, residir nessa profunda preocupação com a eficácia, que é tanto mais
afinna sobre a comiseração que, sem o impulso desse sentimen to em relação original quanto mais se enraiza em uma preocupação aparen temen te inversa,
ao outro, não é certo que o puro concei to do dever resul te em sua execução É a de uma purificação e de uma racionalização extrema dos conceitos morais
claro que tal disposição estética não eleve ser estabelecida como fundamento
da ação, que perderia, então, sua moralidade; mas pode às vezes ser desejável
ou mesmo necessário apoiar a ação moral em uma motivação ex tra-racional 11!l Da mora l à religião, ou a religião mora l
A exigência de efetividade da lei moral justifica assim uma reduzida severida
de em relação aos sen timen tos estéticos, no limite estreito de sua utilidade, Há muitas maneiras de se abordar a religião kantiana, se por isso entendemos
levando-se em con ta a realização da moralidade É a esse ti tulo que Kan t fala o que Kant diz filosoficamente de Deus e da relação que o homem mantém
ainda de um principio de receptividade à retribuição é tica, que permi te ao ho com ele Podemos, em um primeiro momen to, nos interessar pelo aspecto
mem gozar legitimamente de sua própria virtude, ao passo que a Frmdamen- triplamente teológico do problema, estudando a recusa que Kan t propõe de
toda prova teórica da existência de Deus, depois a função que ele atribui à
idéia de Deus em sua filosofia do conhecimento Podemos, assim, insistir na
fiG _C.f ibid . AK V!, 468; P Ili, p 766: "Entretanto. assirn como se exige uma passagem função moral da referência a Deus, e na complementaridade entre moral e reli
d_a n1etaf1s1ca da nat ureza para a física, que ten1 suas regiaS particulares. assim se exige, a gião Podemos, enfim, enfatizar o concei to de religião da razão, detalhando
justo ti t ulo, algo de análogo da n1etafisica dos cost un1es. ou seja. esquematizar. de certo
inodo os as conseqüências críticas que tal concei to implica para as religiões reveladas e
pri ncípios puros do dever pela aplicaçào destes aos casos da experiência, e apresentá los pr.on as instituições eclesiásticas Todas essas abordagens são legitimas, e tentar
tos para o uso moial prático' emos sucessivamente indicar sua pertinência
59 e'. ibid ·. AK VI, 45 7; p III. p 752: ..pois esse sentimen to é, pois, UITI impulso implan
tado em nos pela natureza, de fazer aquilo cuja execução a represen tação do dever. por si só,
nào alcançaria··
119
1 18
1
O fato do dever
Compreender
nosso .
da filosofia é, talvez, precisamente essa especificidade humana, cuja função A reunião do dever e de uma felicidade conforme à sua plena realização pro
na moral kan tiana acabamos de descr ever, quer dizer, o fato, para o homem, duz a Idéia de um Bem Supremo, depois, sob a condição deste, a Idéia de um
75
de estar sob a lei moral. É nesses termos que Kan t determina o objetivo final legislador moral todo-poderoso, exterior ao homern Se a articulação desses
da própria criação: não um ser santo, mas um ser defeituoso, elemen tos -moralidade, felicidade, Bem Supremo, Deus -é absolutamen te
considerada a lei que, justamen te porque ele não consegue ser-lhe clara, sua realização prática depende da receptividade do homem à questão da
adequado, se per gunta o que poderá esperar A partir dessa insuficiência
do homem, o Bem Supre mo -voltaremos à suposta evidência desse
principio - como unidade da felicidade e da moralidade está excluído 70 CF J, AK V, 458; P li. p 1266
como objeto de experiência na terra e remetido à condição de um progresso 71 lbid . AK V 469: P 11. p 1281
12 Cf ibid . AK V, 4 74; P II, p 1285-1286: ·'temos, assim. e1n nós um princípio que é
indefinido da moralidade e à atividade de um Deus que proporciona uma suscetível de deterrninar a idéia do SU?ra-sensível en1 nós e. desse modo, também aquela do
felicidade perfeita à perfeição assim alcan çada Sem entrar nos detalhes supra-sensivel fora de nós
dessa prova moral da existência de Deus -o que faremos mais à fren 73 Cf Teoria e prática, AK VI I I. 2 78; P !li, p 256 -·Renunciar ao seu fim nat ural. a felicida
te -, é preciso notar que Kant, depois de tê-la expos to, observa que de, pois isto. co1no todo ser razoâvel finito. em geral. ele não pode'
711 A religião nos limites da sin1ples razão, AK VI, 5; P II. p
"ela já se encon trava na faculdade racional do homem em sua 17 15 Cf ibid . AK VI. 6: P III. p 18
1 20 121
Compreender
O fato do
dever
7ü Para uma apresentação detalhada desse texto. rernetemos à introduçào fei ta por Syl·
77 Cf CRP. A 594/B 622
vaio ZAC na edição da Plêiade (P I. p 305ss )
JD lbid
79 R DESCAR r Es, !viéditations métaphysiques. V Ed Adam-Tannery, t IX. p 53
122
123
r!
Compreender O fato do
dever
Deus postulado
maneira de pensar comum às filosofias helenisticas e enfatizar an tes a hetero
Havíamos anunciado no inicio desta seção: a afirmação efetiva de Deus é sub geneidade dos principias que conduzem à felicidade ou à vir tude Somen te um
metida em Kant à da lei moral, por intermédio de um concei to original do Bem julgamen to sintético poderá estabelecer a relação entre esses dois termos E ,
Supremo. Este é produto natural da dialética do espiri ta humano, tenden te portan to, somente uma relação de causalidade pode ser postulada en tre elas,
necessaria1nente ao incondicionado Essa tendência é a causa, no campo teóri conforme a lição da Critica da razão pura
co, da ilusão transcenden tal; ela exige, no campo prático, a realização do Bem Primeiro caso: a felicidade é a causa da virtude É fácil ver o absurdo de
Supremo, quer dizer, a efetividade da unidade da lei moral e da felicidade Essa tal afirmação, que faria da autonomia moral uma consequência da busca de
dialética prática, apesar de sua complexidade, pode no fundo ser reduzida a um objeto exterior, a felicidade, busca cuja moralidade nada assegura Igual
uma fórmula bastan te simples: o Bem Supremo realiza a sintese daquilo que destino aguarda a segunda possibilidade: imaginar que a felicidade possa
nós devemos fazer e do que desejamos realizar provir da realização do dever moral significa desen tender-se em relação à
Essa síntese, todavia, não é justa para com seus componen tes A vir tude r ealid ade d a seqüência prá tica d as causas e dos efeitos no mundo O u se
como respei to efetivo da lei moral sempre vem primeiro; em Kant, ela é o Bem comete um erro de 1ure, submetendo a virtude à felicidade; ou se comete
Supremo, aquilo que devemos absolutamen te perseguir O Bem realizado, ou um erro de facto , fazendo a operação inversa Nos dois casos, esvazian1os o
Bem Supremo, não é, no fundo, senão o Bem Supremo acompanhado de uma concei to de Bem Supremo de todo con teüdo, ao passo que sua possível reali
satisfação sensível proporcionada à sua realização, a felicidade Se devemos , zação é exigida da razão prática
pois, postular esse concei to como o objeto final da von tade, não é pelo fato do Esse confli to, que Kan t chama naturalmente de uma an tinomia,
caráter efetivamen te universal do desejo de ser feliz, mas em razão do fato da encontra uma solução não na condenação igual das duas proposições
obrigação moral, que nos impele a ser virt uosos preceden tes, mas na relativa aceitação da segunda opção, amplamen te
Resta estabelecer a modalidade da síntese consti tutiva do Bem Supremo relativizada Kan t toma todas as precauções para dizer:
Duas soluções, não mais, podem aqui ser consideradas: ou a busca da virtude
significa, no fundo"", buscar a felicidade, ou buscar a virtude produz mecani !\Ião é impossível que a moralidade da in tenção tenha, como causa, corn a felici
camen te a felicidade Kant ilustra essas duas opções com duas referências à dade, como efeito no mundo sensível, uma conexão necessária, senão imediata
história da filosofia: ao n1enos mediata (por in termêdio de um autor inteligivel do mundo) -
co nexão que, em uma natu1eza que é simplesrnen te objeto dos sentidos,
O epicurista dizia: ter consciência de sua máxima conduzindo à felicidade, eis aí jamais poderá ocorrer senão casualrnentellG
a virt ude; o estóico: ter consciência de sua vir tude, eis a felicidadeª1
Dito de maneira mais simples: a vir tude é causa de uma felicidade real
Kan t apressa-se em precisar que esses dois pensadores não souberam que se dá em outra parte, além do mundo sensível e graças à ação de Deus A
pensar corretamente a relação entre a virtude e a felicidade, ten tando desajei seqüência imediata do texto, no qual Kant retorna à even tual con tribuição dos
tadamente incluir uma na outra, ou vice-versa, ao passo que, na realidade, se estóicos e epicuristas, nada altera ao principio de sua solução de autonomia
trata de dois conceitos in teiramen te distin tos Para Epicuro, todo o bem É indispensável ir além da experiência sensivel para que o conceito de Bem
reside na virtude, estando a virtude con tida na idéia de uma felicidade Supremo seja possivel, o que ele deve ser, pois é necessário
corretamen te buscada; para um estóico, todo o bem está na virtude, sendo A suspeita de uma traição dos limites definida pela primeir a Critica é leva
a felicidade reduzida a um efeito secundário da virtude É preciso, pois, da a sério por Kant De que modo a razão se permite postular algo cuja expe
romper com essa riência jamais poderemos fazer? A resposta kantiana é extr emamente fir me:
o interesse prático tem a supremacia em relação à razão teórica, e esta deve
86 Cf CRPr, AK V 111; P II, p 743
87 lbid . AK V 111; P II. p 744
ao Ibid . AK v. 11s: P 11. P 748
126 127
O fato do dever
Compreender
Deus post ulado faz oscilar a filosofia prática de Kan t da moral para a
adaptar-se às exigências da moral, sem, é claro, renunciar ao essencial, quer reli gião, definida como reconhecimento de nossos deveres como
dizer, à impossibilidade de um conhecimen to do supra-sensível°' mandamentos di vinos O homem, ao pensar Deus como aquele que írá fazer
No fundo, a doutrina dos postulados se reduz a essa posição de uma pri da felicidade perfei ta a seqüência da santidade idealmente alcançada, modifica
mazia da razão prática Devemos pensar aquilo que não podemos conhecer em seu olhar sobre a lei moral Ela, pois, não é mais somente a marca de sua
virtude de uma obrigação absoluta, e que não sofre nenhuma restrição autonomia, mas também a assinatura de um Deus, único capaz de realizar a
Um postulado da razão prática é "uma proposição teórica, mas que, como plenitude pelo Bem Supremo
tal, não pode ser provada, na medida em que é inseparavelmente ligada a uma A moral não é senão a doutrina que nos ensina a ser dignos da felicidade
lei prática, que tem a priori um valor incondicionado" 90 É dessa natureza a afir A r eligião nos dá a esperança de chegar verdadeiramente a isso. A diferença é,
mação da imortalidade da alma A lógica do argumento é fácil de reconstruir sem dúvida, essencial, mas o r egistro é sempre o mesmo, o de uma pacien te
"Eu" devo ser perfeitamen te virtuoso, portanto santo, para poder aspirar à fe'. dedução de todos os efeitos da presença em nós da lei moral. Talvez esteja aí
licidade Ora, tal perfeição não é possível aqui embaixo É preciso, por conse a chave para compreender a curiosa adjunção aos dois primeiros postulados,
guinte, poder progredir indefinidamen te para a santidade, e para isso possuir por Kant, de um terceiro postulado, o da liberdade Deve-se postular a liber
uma alma imortal Postular essa imortalidade é indispensável para poder pen dade como condição fundamental da busca da santidade, primeiro elemen to
sar a possi bilidade do Bem Supremo Mas isso ainda não é o bastante se falta do Bem Supremo Jamais se conhece a liberdade, mas é preciso pensá-la, o
o instrumento da síntese efetiva entre a santidade futura e a felicidade espe que, no fundo, já dizia a analítica da r azão prática, fazendo da liberdade a ratio
rada Kant é, pois, obrigado a fazer um segundo postulado, que nos concerne essendi da consciência da lei
em primeiro plano no âmbito desta seção: a existência de Deus. A ordem dos Deus indemonstrável, Deus postulado, Deus incognoscível, mas que deve
postulados é essencial. O primeiro torna passive! o Bem Supremo, a santidade; ser pensado: a teologia kan tiar.a é uma questão de moral, como deverá ser a
o segundo assegura a conexão dessa santidade com a felicidade, sem o que 0 religião, inclusive em seus aspec tos institucionais
Bem Supremo não tem sentido O estatuto dessa posição da existência de Deus
é, na verdade, curioso Kant afirma que a necessidade de admiti-la não é senão
subjetiva; é um dever tender à santidade, mas não se pode considerar um dever Deus moral
equivalente a afirmação da existência de Deus Ele deve então introduzir um
conceito novo, que permita pensar a afirmação subjetivamen te necessária da Antes de abordar a religião propriamen te dita, e o texto que Kan t lhe
quilo que, pela razão teórica, procede da hipótese, o de crença racional" O que consa gra, gostaríamos de nos deter nesta curiosa expressão de teologia
Kant faz na Critica da faculdade de julgar, sob nome de prova moral, é moral, que l(ant utiliza aqui, o mais das vezes, em ressonância com um
absoluta mente semelhante: também aí, Deus é demonstrado pela necessidade outro conceito, também surpreendente: o de fé racional
prática de pensá-lo, mesmo se, como veremos, o conceito de Deus assim
obtido tem, na terceira Critica, uma função teórica que não possui na segunda
A religião como
moral
129
Compreender
O lato do dever
mais clássicos, mas na maneira pela qual ele os seleciona, não conservando
intenção religiosa imanente a todas as nossas ações conforrnes ao clever"!IG
como características divinas senão o que pode ser vir à moral Encon tramos
A religião como expressão da possibilidade do pensamen to ao infinito de
nesta breve passagem o principio de toda teologia moral Essa disciplina não é
Deus já estava presen te, de modo implícito, na receptividade da razão à lei
uma descrição de Deus em sua relação com o mundo natural, nem uma deter
A Doutrina da vi rtude não diz outra coisa quando coloca o conceito ele
minação daquilo que é em si mesmo, mas uma redução de Deus à sua dimen
Deus no interior da consciência moral Obscuramen te, é claro, mas necessa
são moral A leitura que aqui propomos apóia-se nessa idéia de uma redução:
riamen te, a razão prática se obriga a agir em conformidade com a Idéia de
tanto a teologia como a r eligião serão submetidas a uma espécie de exame
Deus, que representa agui aguele a quem devemos prestar con tas"' A Idéia
seletivo, que exclui do campo da legi timidade toda proposição moral suscetí de Deus, não sua r ealidade, é necessária para formular eficazmen te a lei; ela
vel de diminuir o efeito da lei moral A religião e a teologia são necessárias é também a Idéia de um juiz, peran te o qual compar ece o homem, inclusive
por causa da moral: mas é também por causa da moral que é preciso reduzi- o homem nownenal Há, pois, no próprio seio da moral um dever de religião,
las a seu núcleo racional, a fim de assegurar um máximo de eficácia à lei que nada mais é que um dever do homem para consigo mesmo, mas que em
moral sua forma especifica manifesta a inadequação da obrigação ao nosso poder
Definida de maneira bastante geral em Kan t como o conhecimento de
todos os nossos deveres enquan to mandamen tos divinos, a religião tem so
br e a moral a van tagem de tornar sensível a obrigação moral pela idéia de A refeição da /Jeteronomia do rel!
Deus, sem dever postular um Deus objetivamente cognoscivel Ela decorre gwso
da moral, sem dúvida, para permitir que se pense na possibilidade do Bem
Absoluto -a doutrina dos postulados -, mas também para oferecer ao Essa surpreenden te proximidade da religião e da moral não é passive] senão
de ver uma formulação mais eficaz Nas palavr as de Kan t: pela her ança critica entre uma legitima receptividade à idéia de Deus e a he
teronomia de uma religião11ão purificada de seus con teúdos extramorais. O
l.\lão poden1os tornar sensível a obrigação (a coerção moral) sem pensar, ao mes principio dessa herança é, como se disse, um principio de redução: "Trata-se
mo tempo, en1 um outro e em sua vontade (cuja razão universalmen te legislado menos de saber o que Deus é, em si mesmo (em sua natureza), do que o que
ra não é senão a porta-voz), quero dizer, Deus!l 3 é pa1a nós con10 ser es n101ais" 9fl A religião é esvazia<lü <le Lu<la on lulugia e de
toda prática que lhe seja derivada Kant parece proceder aqui por uma espé
A introdução da idéia de Deus na moral não altera nada em sua matéria; cie de red ução transcenden tal, que não conserva de Deus senão sua relação
ela simplesmente permite à razão humana que a produz e a recebe em si obter comigo como ser livre, submetido à lei Como corretamen te obser va Eric
Weil, todo conhecimen to objetivo da nat ureza de Deus faria do homem um
uma 1
influência maior sobre a vontade na realização dos A passagem à r eli
deveres9'
gião inscreve-se no próprio movimento da moral buscando a melhor aplicação técnico da felicidade°' movido pelo temor, não o ser digno e responsável gue
A idéia de Deus é nesse sentido inevitável, ao menos para o homem que aceita é, mesmo em sua relação com a idéia de Deus O homem pode e deve pensar
fazer "um esforço moral sério"°' Mais ainda, o respeito pela idéia de Deus não
é jamais um ato unicamente religioso, destacado da realização do dever; ele é
"a 95 lbid , AK VI, 154; P Ili, p 184. nnta
97 Doutrina da virtude. AK VI, 439 ; P III, p 728: ''Ê preciso. pois, conceber a consciência como
principio subjetivo de contas a prestar a Deus dos seus atos; rnelhor. este último conceito está
93 Doutrina da virtude. AK VI. 487; P lll. p 786 se1npre contido em toda consciência de si n1ora! Aliás. isso não quer dizer que por esta
94 Cf O co11f/ito da s faculdades AK VII, 36; P III. p 83 7-838: '·A religião não se idéia, para a qual conduz inevitavelmente sua consciência, o homem esteja autorizado -nern,
distingue da moral en1 nenhum pon to pela matéria. quer dizer. pelo objeto. pois ela diz respeito aos deveres em con1 n1ais razão, obrigado -a admi tir tal ser supremo como existente realn1ente fora dele;
geral. mas sua difetença em relação a esta é puramen te formal, quer dizer. na medida em que é uma legislação da pois esta idéia não lhe é dada objetivarnente pela razão teórica, mas apenas subjetivamente
razão pura para dar à rnoral. graças à idéia de Deus produzida a partir desta mesma, uma influência na vontade pela razão prática, obr igando-se, ela n1esn1a. a agir confonne essa idéia'
humana a fi.m de que esta cumpra todos os seus deveres·· 98 A religião nos lirnites da sin1ples razão, AK VI. 139; P !II, p 170
95 A religião nos limites da si mples razão, AK VI. 153; P III, p 183 99 Cf E Wr:n., Problemes kantiens. Paris, Vrin, 1990. p 44
130 131
Compreender
Deus; mas ele deve sempre também limi tar seu pensamen to à ligaçào en tre O lato do dever
a soberania parcial de um ser marcado pela lei moral e a soberania absoluta
daquele que conduz o mundo
A cri tica kan tiana da religião irá se apoiar constantemen te neste princí pio U ma distinçào comparável aplica-se à Idéia personificada do bom princí·
de interpretaçào: o que interessa ao filósofo, na religiào, reside unicamen te pio que é o Cristo Essa idéia já ocupa um lugar en tre nós, e é um dever geral
naquilo que "con tribui para a realizaçào de todos os deveres humanos como par a a h umanidade não apenas ser-lhe receptiva, mas também elevar-se até
mandamen
um °
tos divinos ..10 Fora dessa con tribuição, a religião é vazia, ou é ela em direçào ao "arquétipo da intençào ética em sua pureza total"105 Aqui,
obstáculo ao bem 101 Ficam assim excluídos todos os dados sobrenaturais inde o Cristo é in tei ramen te originário da razão lTIOialmen te legislativa, que
vidamente conf undidos com o supra-sensivel e1n nós, toda crença puramente ma nifesta, pois, originariamen te, uma disposiçào em acolher sua Idéia
esta tutária sem efeito moral, todo misticis1no inimigo da razão A religião não Uma fé moral na figura ideal do Filho de Deus é possível e legítima; ela
é auten tificada, inclusive em seu aspecto histórico e biblico, senão na exata compreende um pouco de mistério, pois a presença dessa Idéia em nós é
me dida em que é demonstrada nos fatos sua capacidade de ''tornar
incompreensível IVlas só aun1entariamos o mistério se exigíssemos, alérn
melhores""" os homens e "reuni-los em uma Igreja universal (embora disso, que o homem acredi tasse na hipóstase sobrena tural dessa Idéia em
invisível)" 10" um homem particular De uma legí tima in tegraçào da Idéia do Cris to,
A receptividade da filosofia à idéia de Deus nào é legi tima senào se o passaríamos entào à ilegítima exigência de uma fé histórica completamen te i
pen· sarnen to rejeita o religioso patológico, equivalente no dogmatismo nútil
àquilo que a Doutrina da virtude excluía a tí tulo de sentimen to estético As prescrições do dever e todas as Idéias que susten tam sua aplicaçào
patológico estào gravadas pela razão no coraçào do homem A religião moral apenas
Kan t irá assim, munido desse princípio hermenêutico, considerar cada cons· ta ta essa situação, apenas dá crédito aos direi tos do coração Dar
um dos con teúdos positivos da religiào Atendo-se constan temen te aos provas de incr edulidade moral é , por outro lado, querer que m ilagres -
con· fins da filosofia, ele distingue, entào, uma legitima r eceptividade ou qualquer outra forma de historicidade -venham a consolidar o dever'"" De
desta aos conceitos moralmen te fecundos - Deus, é claro, n1as também, jure , a pura crença religiosa faz abstraçào da história como de toda
en1 parte, a graça ou o perdào -e uma receptibilidade patológica a encarnaçào insti tucio· na! Somen te a fraqueza humana explica que, de facto
comportamen tos inú· teis, ou mesmo doen tios, como o en tusiasmo e o m , a religiào insti t ui um serviço a Deus, um culto e um texto sagrado A
isticisrno herança crí tica deverá, pois, constan temen te ater-se a limitar a influência
A disposiçào moral do homem em experimentar a santidade da idéia de n1arginal da religião esta tu tária, sempre com o objetivo -ao menos, era o
dever é, para Kan t, absolutamente incompreensível Ela pode suscitar na alma que queríamos indicar com estes poucos exemplos -de permitir uma
uma emoção violenta, indo até a exaltação; mas, apesar de seu caráter eminen aplicaçào da lei mais eficiente
temente passional, essa emoçào, na medida em que desperta as melhores in
ten· ções 1norais, deve ser favorecida ·rodavia, e aí intervém a herança critica,
uma religiào racional deve evitar confundir o sentimen to de nossa própria A reduçào de Deus
dignidade com o efei to emocional de elementos ilegitimamen te integrados à
religiào, como os milagres, os mistérios ou um pretenso efeito da graça O principio redu tor tem como conseqüência uma formulação mui to particular
an terior ao aperfeiço· daquilo que con tém a idéia de Deus É preciso, com efeito, para apreensào
amento moral de si mesmo1°' De um lado, um sentimento intimamente ligado das idéias, e en tre elas a de Deus, só conservar "o que é necessário para a
ao respeito, de outro o entusiasmo, mui tas vezes acornpanhado de superstição possibi lidade de pensar uma lei moral"m 7 A reduçào do divino consiste, pois,
nào em negar ou em colocar o problema da existência de Deus, mas em nào
afirmar de
100 A religião nos li mites da si1npfes razão, AK VI. 110; P 1!1. p 133
101 Cf Le Conflit des facultés, AK VII. 48; P !11. p 852
102 lbid , AI( VII. 59; P 111. p 867
103 lbid 105 lbid . AI< VI. 61; P Ili, p 76
104 Cf ibid . AK VI. 53; P 111. p 70 10fi Cf ibid . AK V!. 84; P !l!, p 105: ··Revelar um grau punível de incteclulidade ê,
pois, re cusat-se a atribuir às ptescrições do dever. tais co1no estão gravadas no coração do homem
pela ra zão, uma autoridade suficiente. a menos que elas sejam, aléin disso, corroboradas por
132 milagres·'
107 CRP,., AK \\137; P li p 775
133
Compreender
O fato do dever
108 Opus posttanurn, AK XXH, 116; trad. Ivlarty, Paris, PUF, 1986. p
170 109 Ibid . AK XX, 22: trad M"' ty. p 209 110 Ibid . AK XXI I. 51; trad Marty, p 186
111 Ibid
112 Ibid
134 113 Cf CFJ, AK V, 485; P !I, p 1298
11!'! Cf Opus posnanwn , AK XXH, 48. trad Ivlarty_ p 184
135
r Compreender
O fato do
dever
seu caráter obrigatório Se Deus é um "ser que tem o poder de comandar todos por Deus r epresen ta analogicamente o respei to pela lei, o desvio pelo divino
115 acentuando a desproporção ética, dor da obrigação
os seres razoáveis segundo as leis do dever" , ele não pode eximir-se dessas leis
corno leis da razão, que a ele se impõem sem ser coe citivas, Deus as respeitando A in trodução de Deus na formulação dos deveres humanos tem igual
por elas mesmas Deus não é fonte do dever, mas figura e idéia da santidade, men te o efeito de aumen tar a força com a qual esses deveres se apresen tam à
perfeita adequação do agir ao dever: há deveres de Deus, não só porque tenha liberdade: ela tem função catalítica com relação ao poder coercitivo das leis da
mos que considerar divinos nossos deveres, mas tambêm porque Deus não está razão ético-prática não ao modificá-las -vimos que o pensamento da obriga
acima das leis como leis da razão ético-prática, nem tampouco, é claro, abaixo ção sempre precede a idéia de Deus como potência indulgen te por analogia -
delas Mais exatamen te: essas leis estão nele Como vemos, Deus não traz nada mas ao conferir-lhes um vigor suplemen tar120 A terceira função da passagem
à natureza do imperativo categórico, não constitui seu dever, nem funda sua ao teológico decorr e muito diretamente da segunda, pois o endurecimento
racionalidade A ordem das razões irá sempre da ética ao teológico: e, sublinha da lei que produz tem como conseqüência exasperar o efeito motor do dever
I(ant, "não consideraremos nossas ações obrigatórias porque são mandamentos Mesmo que Deus não exista, sua idéia deve ser considerada como uma força
de Deus, mas, pelo contrário, nós as vere1nos como mandamen tos divinos por motora agindo sobre a natureza do homem Este ponto encon tra-se em per
que a elas estaremos interiormente obrigados"116 feita continuidade com aquilo que Kant apresenta, notadamente em O conflito
Podemos legitimamente nos pergun tar por que Kant mantém tão firme das faculdades, sobre a utilidade das idéias da razão consider adas em relação à
mente a necessidade desse desvio analógico pela idéia de Deus, ao passo que realização da moralidade: é a influência das idéias que a religião expressa que
parece ter relegado a segundo plano, até mesmo abandonado, a demonstração a distingue da moral, diferença certamente formal, mas que separa duas for
de Deus por postulados Para que poderá aqui servir Deus?
mulações, uma mais eficaz do que a outra, de um mesmo dever121 Finalmente,
Com cuidado para não retirar de Deus todo o papel em seu discurso, Kan
também ai, sem ruptur a com o que precede, a refer ência a Deus é indispen
t irá multiplicar as observações indicando a utilidade de Deus para a moral
sável à realidade da obediência dos homens à lei Sem a postulação pela r azão
Po demos distinguir sucessivamen te quatro funções da referência a Deus:
ético-prática de uma idéia subjetivamente fundada da divindade " a razão dos
uma função de repr esentação da santidade, uma função catalitica na dicção
homens não seria disciplinada" 122
da lei, uma função motora, e, finalmente, uma função que se poderia
A teoria da religião elaborada no Opus postumum retoma muitos dos ele
qualificar de disciplinar A fórmula do conhecimento de todos os deveres
mentos avançados em obras anteriores 'Todavia, ela vai mais longe no mo
humanos como mandamento tem inicialmente a conseqüência de sublinhar
vimento de redução do divino, fazendo de Deus não somente nem principal
a santidade e a inviolabilidade desses dever es111 Mais ainda, o próprio
mente um conceito moral deduzido das necessidades do Bem Supremo, mas
imperativo categórico exige ser expresso nesses termos -" determinar
em primeiro lugar o principio de uma formulação do dever que não lhe deixa
todos os deveres humanos como mandamentos divinos já se encon tra ern
senão uma função analogicamente criadora, abstração feita de sua existência
cada imperativo categórico"118
A primazia da lei remete o teológico a não ser senão um instrumento de sua
-para que seja afirmada a diferença absoluta entr e o que é exigido de
dicção, um papel que a idéia de Deus sem dúvida está apta a desempenhar,
mim e aquilo de que sou capaz A idéia de Deus funciona aqui como a
sem que seja necessário supor um ser todo-poderoso fora de mim
acentuação da humildade do homem peran te a lei; Deus é -e partindo
A redução do divino a uma função definitivamente secundária na for
dai os deveres, que são os seus mandamentos -aquilo dian te de que
mulação dos deveres humanos tem o efeito ele deslocar a apreensão filosó
"todo joelho deve se dobrar""º O vocabulário paulino que Kan t utiliza
fica de Deus de sua natureza para a relação que ele pode ter com o homem
aqui indica que o respeito
137
136
j
Compreender
O fato do dever
123 A religião nos limites da sin1ples razão. AK VI. 139; P III p 170
124 lbid .
12{] Opus postumum, AK XXI. 149; trad Marty. p 252
126 lbid
127 lbid . AK XXI. 45: trad Marty. p 249
128 A religião nos llmit'es da silnples razão, AI< V!. 154; P III. p 183
129 Cf Opus postuminn. AK XXII. 118; trad Marty. p 171
130 Jbid . AK XXII, 15; trad Marty, p 201
138 139
CAPÍTULO IV
o princípio reflexivo
O lugar da reflexão
141
Compreender campo, o território e o domínio ·Trata-se, aqui, de tr azer uma solução para o conflito terri
torial entre nat ureza e liberdade; mais ainda, trata-se de mostrar que toda a Critica da
faculdade de julgar é uma ten tativa de reunificar em um só sistema as duas O princípio reflexivo
partes da filosofia, como indica o tit ulo da terceira seção da In trodução: "Da
cri tica da faculdade de julgar como meio de ligação das duas partes da
filosofia em um todo"' culdades que ai legislam Sub-repticiarnen te, Kan t introduz aqui um elemento
imprevisto: o sentimen to Com efeito, com o entendimento, a razão e a fa
culdade de julgar, estávamos, ao que parece, confinados ao campo do conhe
A função da faculdade de julgar cer Com esse sentimen to entra em cena um elemen to nem especificamen te
teórico ou cognitivo, nerr1 particularmen te intelectual A aproxirr1ação entr e a
O r aciocinio de Kan t é o seguin te: há dois domínios e, considerando sua le faculdade de julgar e o sentimento de prazer e de dor produz, sem que Kan t
gislação, duas faculdades de conhecer a que se referem, o en tendimento e a explique essa mudança, uma profunda inflexão do questionamento: de uma
razão Todavia, no conjun to das faculdades de conhecimen to, há um termo mediação epistemológica, o método kan tiano orienta-se agora para uma me
intermediário entr e o en tendimen to e a razão, ou seja, a faculdade de julgar diação estético-reflexiva Pela introdução do sentimen to, o problema da pas
Pois, em gesto muito problemático, Kant passa da tripartição das faculdades sagem é assim deslocado, ou recentrado em seu ponto de neutralidade, nem
de conhecer à das faculdades da alma Esse gesto constitui o elemen to-chave teórico, nem prático, nem pura espon taneidade, nem pura passividade
do conjun to do raciocínio, pois tem por objetivo afirmar o elo essencial entre Se o problema foi agora deslocado, não está inteiramente resolvido, pois
o papel de mediador da faculdade de julgar e aquele, nas faculdades da alma, aquilo em que se apóia - a afirmação do papel mediador do sentimen to
do prazer e da dor Esse laço permite estabelecer o fato de que uma cri tica do e sua analogia com o ela faculdade de julgar -ainda não está verdadeiramen te
juízo estético é aquilo que é preciso empreender para pensar a unidade das estabelecido A comparação da faculdade de julgar com o sentimen to se impõe
faculdades superiores do conhecer, e desse modo os domínios onde legislam porque a afinidade entre razão e poder de desejar, por um lado, entendimento e
Di to de outro n1odo: urna crilica <lu sen tirnen tu de prac;er ligado ao juízo poder de conhecer, por outro, é tão manifesta que os terceiros termos res pec
esté tico permite compreender como funciona a faculdade de julgar em sua tivos só podem se corresponder Com efeito, o en tendimen to responde
função de mediação entre razão e en tendimento, liberdade e natureza imediatamen te à faculdade do conhecimento, na medida em que impõe leis
A faculdade de julgar deve ter um princípio próprio em virtude de uma a priori; assim, a razão é imediatamen te legisladora da faculdade de deseja12
suposição posta pela necessidade, para toda faculdade, de respei tar as regras Essa dupla atribuição não represen ta um problema; mas pode-se, por outro
de seu funcionamento: no caso do entendimento e da razão, a regra é a lei, e as lado, perguntar qual é a real ligação entre a faculdade de julgar e o sentimen to
leis determinam um domínio; no caso da faculdade de julgar, a regr a é princí Kan t não diz, pois, como queria o paralelismo, que o sentimento do prazer e
pio de busca segundo leis, e principio puramen te subjetivo, que não determi da dor tem seu principio na faculdade d e julgar, mas mais misteriosamente
na senão a si mesmo. l(an t prossegue afirmando um paren tesco natural entre que há "urna certa conformidade da faculdade de julgar com o sentimento de
a familia das faculdades de con hecer e o das faculdades da alma: a faculdade de prazer" 3, cuja natureza não se pode, neste nivel, estabelecer, tampouco sua
conhecer, o sentimen to do prazer e da dor e a faculdade de desejar possibilidade, e que não é afirmada senão a ti tulo de suposição natural
O passo foi dado: havíamos partido de dois domínios, temos agora três Se reconstituímos o conjun to do procedimen to analógico, parece que o
faculdades da alma, com a forte suposição de que aquilo que faz a mediação objetivo da Critica da faculdade de 1ulgar -a mediação dos dominios
das faculdades da alma deve também fazer a mediação dos domínios e das fa- -não é alcançável senão em razão da analogia entre a mediação lógica das
faculda des de conhecer e a mediação sen timen tal das faculdades da alma,
1 CF J. AK V 176: P 11. p 930 analogia que, por sua vez, não é imaginável senão em vir tude de duas
teses: de um
142
2 Cf ibid . AI( V 168; P 11. p 918 Ou ainda Al<XX 20 7; P 11. p 359, "Ora, o poder de co
nhecer segundo conceitos ten1 seus princípios a priori no entendimento puro (em seu conceito
da natureza), o poder de desejar na razào (ern seu conceito da liberdade)"'
3 lbid . AK XX 208; P 11. p 860
143
O principio reflexivo
Compreender
144
Compreender Dois campos de intervenção da reflexão pura podem, então, ser designa dos no espaço
crítico: pri1neiramen te, no campo teórico, o espaço que separa as leis da natureza em sua
pluralidade, e a idéia de sua unidade; em seguida, no terri tório da experiência, o que nela se
refere, na qualidade de estética ao sentimento de prazer e de dor do sujei to O principio reflexivo
Nos dois casos, a faculdade ele jul gar reflexiva deve produzir ela mesma a
regra de sua determ inação e dispor, portanto, em seu princípio transcendental,
elo equivalen te a uma legislação justamen te onde esta não é mais possível a afirma pode ser considerado um juízo de conhecimen to, embora em nada
Se a estética surgiu como o pon to de neutralidade e de resolução do pro seja determ inan te e não se tra te aqui de aplica r urn concei to da razão a uma
blema da passagem entre os campos, res ta de termina r agora que ela é plu ralidade de concei tos do en tendimen to, mas de ju lgar universa lmen te
também o lugar de manifestação privilegiada da reflexão pur a em sua função seu livre acordo No juízo teleológico, pois, a razão e o en tendime n to é que
de quase estão relacionados, segundo um modo de relação semelhan te àquele que une
imaginação e en tendimen to no juízo estético
legislação da rede facultária, o que torna indispensável uma análise severa dos
elementos que distinguem estética e teleologia Juizo subjetivo, sentimen tal, estranho ao conhecimento, por um lado; juí
Essa distinção apóia-se em três séries de argumentos: a primeira funda zo subjetivo de alcance objetivo, e nesse sentido pertencendo, como tal, aos
juízos de conhecimento, do outro: assim delimitados, não parece que esses dois
se na diferença elas faculdades em jogo em um caso e no outro; a segunda, no
tipos de juízo reflexivos puros possam coexistit' em um mesmo espaço, tan to
operador subjetivo/objetivo aplicado ao princípio transcendental da faculdade
suas diferenças superam a semelhança de sua estrutura reflexiva E essa é a
de julgar; a terceir a, na determinação de um espaço mais ou menos próprio,
terceira via para distingui-los, cuja especificidade é indicar não apenas o que faz
mais ou menos especifico da teleologia e da estética na cartografia crítica
a diferença entre teleologia e estética, mas também estabelecer uma certa hie
O primeiro pon to é pos tulado por Kan t em sua elaboração da noção de
rarquia en tre elas, de modo que um dos dois tipos ele juízo, na medida em que
técnica ela natureza. Esta pode, com efeito, aparecer em duas configurações
tem seu próprio pri ncípio, manifesta com mais pureza ainda a reflexão pura
facultárias di feren tes Quando a ap t eensão do que é diverso da sensibilidade
Os juízos teleológicos têm, em uma primeira abordagem, a van tagem de
pela imaginação concorda livremen te com a apresentação do concei to pelo
fechar o sistema da filosofia e de pertencer mais do que os juizos estéticos à
en tendimen to, sem que este seja deter1ninan te, "en tendimen to e
crí tica da razão pura em seu sentido mais geral" Ao mesmo tempo, a teleolo
imaginação combinam-se recipr ocamen te na simples reflexão para apresen
gia pertence de fa to ao campo teórico, uma vez que o juízo teleológico serve
tar sua obra, e o objeto é percebido como final unicamente pela faculdade de
de pri ncípio heurístico e deve ser considerado um princípio transcenden tal de
julgar" 13 Essa finalidade do objeto é aqui subjetiva, e o juízo que a postula
conhecimen to Se a teleologia não é o lugar privilegiado da passagem en tre os
não pode, pois, ser qualificado de juízo de conhecimento, mas de juízo r
domínios, é porque o princípio da reflexão pura não se apresen ta aí segundo
eflexivo estético Este é, assim, consti tuído pelo livre jogo da imaginação e
seu mais elevado grau de pureza, e porque é novamen te na estética que se
do entendimen to O juízo teleológico, por sua vez, põe em jogo outras
expressa essenciahnen te esse princípio, co1no principio do consenso, no sen
faculdades, pois com para os conceitos do en tendimen to com a razão e seu timen to, das faculdades da alma e das faculdades de represen tação
principio sistemá tico, qualificando, então, de final a forma do objeto,
O primeiro argumento que Kant apresen ta em prol dessa recentralização
permitindo o acordo dessas duas faculdades em sua apr eensão" Essa da questão da reflexão para o estético consiste em afirmar que apenas 0 juí
finalidade é objetiva, e o juízo que
zo estético con tém seu próprio fundamen to de determinação, sem que este
dependa de nenhuma maneira de outro poder de conhecer, ao passo que o
13 lbid . AK XX. 221: P ll. p 874 principio elo juízo teleológico deriva, em certo sentido, do ptincípio unificador
1ll Cf ibid , AK XX, 221; P II. p 875: ·· e se a faculdade de julgar compara tal conceito do
da razão, mesmo se este não tem aí papel determinan te10 A partir desse ar
entendimento com a razão e com seu pr incípio da possibilidade de um sistema _ então, quando
essa forma é reencontrada no objeto. a finalidade é objeto de um juízo de apreciação objetiva' gumen to fundamen tal, Kant irá trazer, em acusação contra a teleologia, toda
uma série de elemen tos a favor dessa primazia do estético tendo em vista a
pureza da reflexão que ai se faz
146
147
Compreender não apenas conceitos"", ao passo que a "faculdade de julgar teleológica nào é senão a fa
culdade de julgar reflexiva em geral"", quer dizer, a reflexào determinada pelo
domínio teórico em que ela se aplica, que não se determina in teiramen te a si mesma
Assim, imediatamente depois de ter distinguido as duas par tes da Critica
Finalmen te, é preciso observar que, se o conceito de uma finalidade real da natur eza é
da faculdade de julgar, Kan t afirma que somen te a faculdade de julgar
certamen te um princípio regulador do poder de conhecer", o juízo estético é, em 1elação ao
estética, na medida em que é a única que contém um princípio reflexivo puro,
sentimento, constitutivo 20
constitui uma "faculdade particular de apreciar as coisas segundo uma regra,
Essa posição da primazia do estético em relação à pureza do principio re O principio reflexivo
flexivo ai empregado permite a Kant finalmente afirmar, ao final da In trodução,
que o jogo sentimental das faculdades é sem dúvida aquilo que torna possível o
acordo entre os campos teórico e prático A estética é assim, defini tivamente, o A estética do bel
lugar de expressão de toda a passagem, o ponto onde se mostra, pura, a reflexào o
em sua funçào de unidade e de compatibilidade transcendental As duas partes
da terceira Critica irão, sem dúvida atrair nossa atenção Mas a primeira deverá O que é um juizo de gosto? É um juízo que certifica a existência de um prazer
sempre ser considerada, além de suas teses próprias, a expressão da harmonia especial ligado à represen tação de um objeto dado Não se refere à pr ópria
fundamen tal entre os diferentes momentos do pensamen to kan tiano natureza desse objeto, mas sim ao jogo das faculdades em sua apreensào A
estética não é, pois, a descriçào das qualidades que um objeto deve possuir
para ser qualificado de belo; ela é a análise do sen timen to particular que ne
cessariamen te acompanha o juízo "este objeto é belo"
Do belo ao sublime:
as faculdades em sua livre correspondênci a
O que é o belo?
Nào se pode dizer que Kant seja um verdadeiro conhecedor em matéria de arte
Suas reflexões sobre o belo não pretendem ser urna rnedi taçào sobre a arte tal O primeiro momen to do tex to abor da a qualidade desse juízo de gosto Kan t
corno ela existe, mas urna deterrninaçào fundamental daquilo que é o belo, caso procede por con traste com os outros tipos de juízos possíveis Assim, embora
tal conceito tenha sen tido Encontramos traços desse trabalho desde 1764 em o juízo que trata do bem suscite um interesse prático, embora o juizo que tra
Observações sobre o sentimento do belo e do sublime Kant, por urna série de ta do que é agradável não se faça sem um in teresse sensível, o juízo do
obser vações mui tas vezes pertinentes, coloca ai o esboço de sua distinção gosto é totalmen te desin teressado O espectador do belo nào tem nenhum in
fundamen tal entre o belo e o sublime Mas é preciso esperar a Critica da teresse particular pelo objeto Pode-se assim dizer que
faculdade de julgar para assistir à elaboração de urna verdadeira teoria do belo
o gosto é a faculdade de julgar e de apreciar um objeto ou um modo de represen
tação por uma sa tisfação ou por um desprazer. independenten1ente de qualquer
interesse Chama-se belo o objeto dessa sa tisfação 21
17 lbid . AK V 194; P I I. p 951
10 lbid . AK V 194; P 11. p 952
19 Cf ibid , AK V, 19 7; P li p 955 O segundo momento é, sem dúvida, mais importante A própria idéia de bele
20 Cf ibid za contém uma pretensão ao universal ausente da apreciação do caráter agradável
Dizer de alguma coisa que é bela significa, na realidade, exigir que todo homem
formule o mesmo juízo Não nos confundamos: I<.ant não afirma que a universa
148
lidade do juízo de gosto deve ser confirmada pela ex1'eriéncia, corno se a beleza
fosse o produto de urna sondagem Essa voz universal necessária a todo juízo de
gosto é apenas urna Idéia", urna exigência de direito, nào uma constatação de
fato
É fácil entender: essa exigência deve ser fundada, ou melhor, deve po
der apoiar-se em um princípio que permi ta sua realização Kan t afirma en tào
que o estado da alma consecutivo à repr esen tação do belo é um prazer co
municável universalmen te, na medida em que é o juízo de um livre jogo das
faculdades, no caso a imaginação e o entendimen to Sendo estas faculdades
149
O princípio reflexivo
Compreender
O senso comum
universais, tambérn o é seu livre jogo, o que torna co1nunicável o prazer que
delas se ex trai A imaginação e o entendi men to não estão aqui em uma Definido segundo a qualidade, a quantidade e em sua relação com a finalidade, o
relação determinan te, corno é o caso do conhecimento Essas faculdades belo não se define segundo o gênero de prazer que proporciona Kant especifica
estão em uma relação flexível, livre, desprovida de conceito, em singular aqui o que é no fundo a comunicabilidade do prazer estético Ele a condiciona
harmonia a u1n senso connun , que permi te compreender como se poderia exigir o assenti
men ta de todos a cada vez que se considera belo um objeto Esse senso comum
é o resul tado do livre jogo de nossas faculdades" Não é absolutamen te a coloca
Da finalidade ção empírica em comum dos juízos estéticos É o que deve ser pressuposto para
que um prazer universalmente comunicável seja simplesmente possível. Graças
Para compreender como funciona tal harmonia, Kant in trod uz a idéia da à posição dessa norma ideal do senso comum, pode-se legi timamente exigir ele
fi nalidade, objeto do terceiro momento Na realidade, o prazer obtido pela ou tro que julgue o belo como eu, e que experimente um idên tico prazer acerca
con templação do belo não pode ser o fato de uma relação qualquer entre a dos mesmos objetos, exigência sem dúvida de direito, não de fato Talvez nada
i maginação e o entendimen to Não há prazer senão na "consciência da fina haja no mundo de belo, mas se existe o belo é preciso então assim julgá-lo Kan t
lidade puramen te formal no jogo das faculdades de conhecer do sujeito"" O termina sua exposição destacando a legalidade livre da imaginação, aqui em rela
sentimento do belo é a constatação de que nossas faculdades são capazes de ção com o en tendimento, anunciando a revolução que irá provocar o conceito de
se organizar livremente em um equilíbrio finalizado. A finalidade em questão
sublime nessa harmonia facultária Voltaremos a este pon to mais detidamente
não reside, pois, no próprio objeto: uma obra de arte, uma paisagem não têm
nenhuma finalidade objetiva, no sentido de possuír em uma u tilidade ou uma
perfeição pr óprias Ela não pode ser senão subjetiva, mesmo se faz uso de
A questão do gosto fundamento e
uma faculdade própria da objetividade, o en tendimen to d1alét1ca
O juízo do belo sempre é un iversal Mas isso não implica que se possa
determinar um critério un iversal do belo, que seria por hipótese válido em U1n rápido olhar no índice da terceira C"riticn confirma: essa ohra foi constr uí
Lu<las as épocas e para todas as civilizações, como o é um conceito do en ten da de maneira estranha Podia-se, com efei to, esperar que Luna reflexão acerca
dimen to em sua u tilização cognitiva Não se pode falar de um Ideal de beleza da arte e da estética em geral prolongasse a definição da beleza Mas não é o
como de um ar quétipo, quer dizer, uma simples Idéia da razão, segundo a qual que acontece, e l(an t prefere i nserir aqui suas reflexões sobre o sublüne Só
se possa julgar esteticamen te os objetos artísticos e naturais Kan t especifica depois disso retoma o desenvolvimen to natural da obra, procedendo à dedu
ainda: essa Idéia da beleza não é o resultado de uma pluralidade de experiên ção dos juízos estéticos, quer dizer, à análise aprofundada de sua condição de
cias sucessivas, pelas quais se possa estabelecer os pon tos comuns de todas as possibilidade Pode-se, todavia, justificar essa construção observando que não
coisas belas Ela é, anterionnent:e à experiência , a Idéia de uma harmonia das é absurdo fazer a teoria de todas as configurações facul tárias (entendimen to
fa culdades em seu livre jogo, condição mesma da existência do belo, do
imaginação par a o belo; razão-imaginação para o sublime), antes de indicar
mesmo modo que o esquema tismo é a condição da experiência do
seu principio. Por amor à simplicidade, apresen taremos separadamente o
verdadeiro" Kant dai extrai, por fim, uma terceira definição do belo:
início da analítica do sublime, passando imediatamen te à dedução dos juízos
estéticos, relativos -como diz Kan t de imediato -não ao sublime, mas ao
A beleza é a forma da finalidade de um objeto, na medida em que é percebida
belo
nesse objeto se1n representação de un1 fzrn 2 li
O que é um juizo de gosto? Sua primeira característica é determinar "seu
objeto (como beleza) do pon to de vista da satisfação, reivindicando a aprova-
23 Jbid . AK V 222: P 11. p 982
24 Cf ibid , AK V 234: P li, p 997
25 Jbid . AK V 236: P 11. p 999 2ü Cf ibid , AK V, 238: P 11. p 1001
150 151
Compreender
ção de cada um, como se se tratasse de um juizo objetivo"27 Como juizo esté O principio reflexivo
tico, é sempre subjetivo, e não pode ser relativo senão a um objeto particular
Dir-se-á de uma tulipa que ela é bela, não se pode dizer de todas as tulipas que
são belas Ao mesmo tem po, esse juízo particular se dirige a todos os sujeitos, Assi m determinado, o gosto não é dependen te de um in teresse qualquer,
deles exigindo um acordo perfei to Essa concordância do universal e da subje ne1n para o que é agradável, nem para o que é bom Ele não é senão o nome
tividade é possível quando se concebe uma livre concordância das faculdades, das faculdades em liberdade, ou do universal humano quando não está deci
dido nem a conhecer, nem a agir moralmente
imaginação e entendimen to, fornecendo à primeira a liberdade do juízo, à se
Apenas depois de ter assim refletido sobre o próprio sentido do termo
gunda sua universalidade, como faculdade da lei Kan t sem dúvida já indicou
beleza e sobre suas condições Kan t finalmen te se in teressa, poderiamas di
brevemen te em que consistia o prazer suscitado por essa concordância Mas
zer, pela beleza na arte Não podemos evitar certa decepção com o con teúdo
efetivamente não disse por que era possível. A resposta a essa pergunta é rá pi
das análises kan tianas a r espeito, tão grande é o con traste entre a acuidade de
da e simples O concei to ele beleza afirma somen te que
suas análises filosóficas e a ausência de sensibilidade artística autên tica
Podemos, ainda assim, relembrar um cer to número de teses funda1nen
podemos legi tin1a1nente supor presen tes universalmente em cada homem essas
tais que tiveram uma influência considerável na estética do idealismo alemão
condições subjetivas da faculdade de julgar que encon tramos em nôs, e que cor r
e na filosofia da arte dos dois últimos séculos A primeir a, e sem dúvida a
etamen te subsumimos o objeto dado sob essas condições211 mais significa tiva dessas teses, é a seguin te:
A universalidade das faculdades do conhecimen to legitima a universali A arte não pode ser chamada de bela senâo quando temos consciência de que se
dade de seu livre jogo no juízo ele gosto A concepção dessa universalidade, to tra ta indubi tavelmente de arte mas toma para nós a aparência da natur eza30
davia, supõe um movimento do espíri to, ou mais exa tamen te da faculdade de
julgar reflexiva, que se abre ao u niversal a partir do singular À idéia de tal po A arte deve parecer com a natureza ao mesmo tempo e1n que manifesta
der da faculdade de julgar Kan t chama senso comum, termo que já havia em seu caráter próprio, e deve evitar a imi tação laboriosa Na realidade, somen te
pregado antes, mas que desta vez considera do ponto de vista da reflexão em a in teligência permite essa singular concordância entre a nat ureza e a arte,
geral Afirmando que ultrapassa aqui os limi te de uma critica do gosto, Kan t uma in teligência tomada aqui como disposição ina ta do espíri to, um talen
especifica o que entende por senso comum, atribuindo-lhe três ináxi rnas: to par ticular para inscrever em u ma produção cul tural original e exe1nplar a
finalidade presen te na natureza A in teligência não é o gosto Ela procede de
1 Pensar por si n1esn10 -1nâxima do entendimento uma capacidade prod utiva, não é comunicável como o prazer estético, ela é
2 Pensar pondo-se no lugar do ou tro mâxima da faculdade de julgai esse poder de dar uma alma à matéria
3 Pensa r em concotdãncia consigo mesmo -máxima da razão 2 ª A criação artística é o prod uto da imaginação Esta não é somente o pra
zer de in t ui r ou de perceber pelos sentidos Ela pode também, no livre jogo
O juízo de gosto u tiliza mais particularmen te a segunda máxima, que de que é capaz, prod uzir uma idéia estética , à qual nenhum concei to determi
Kant qualifica de pensamento aberto Julgar o belo é, com efeito, sempre sair nado será adequado O poeta nada mais faz que apresen tar tais idéias: elas
ele condições subjetivas para adotar momen taneamente um pon to d e vista evocam -essa é a razão de seu poder -o além da experiência, ao mesmo
universal, presen te em todo juizo estético tempo em que revolucionam a legalidade do en tendime nto" Ela tem da idéia
a tensão para o infini to que, por direi to, têm as idéias da razão; mas toma
corpo na sensibilidade, utilizando-a para animar o espírito, fazendo-o tender
27 lbid . AK V 281; P li, p 105 7
para aquilo que não é mais sensibilidade Essa animação do espíri to é o indi
20 lbid . AK V 290; P li, p 1068
29 Cf ibid .AK V 294; P li, p 1073-1074 cio de uma obra genial: ela sempre faz pensar muito, nada dá a conhecer
152
30 lbid , AK V, 306; P 11, p 1088
31 Cf ibid . AK V 314; P 11. p 109 7-1098
153
Compreender artes, hierarquizando-as A importância desta parte da terceira Critica é acima de tudo
histórica, ela nada nos ensina sobre a natureza própria da beleza
Con trariamente ao enorme edifício da dialética transcenden tal da Crí tica da razão
As páginas que se seguem aplicam o critério aqui definido às artes exis
pura , a dialética da Critica da faculdade de julgar é de grande concisão Os problemas
ten tes Como é costume seu, Kant divide e classifica os diferen tes tipos de
abordados não têm a mesma ampli tude, nem a mes ma dificuldade Por que uma dialética?
Simplesmen te porque a faculdade de julgar, assim como a razão, tende às O princípio reflexivo
vezes a afi rmar teses aparen temen te contraditórias, naquilo que Kant
chama de an tinomia do gos to Ela opõe as seguin tes afirmações:
priori i n tuições corresponden tes a conceitos do en tendimen to, dispondo-se
1ª Tese O juízo de gosto não se f unda em conceitos, pois nesse caso seria de esquen1as; ou se submete a priori uma in tuição a um concei to da razão,
possível contraditá-las (decidir por meio de provas) que por definição não pode ser apresentada na sensibilidade A faculdade
de julgar reporta-se nos dois casos a seu poder de ligação Mas, embora a
2ª Antitese O juízo de gosto funda-se em conceitos, pois do con trário não se apresen tação do concei to do entendimen to seja indire ta no esquematismo,
poderia sequer, apesar da diversidade contida nesse juízo, discuti-lo (promover a a apresentação simbólica é indireta Tomemos o segui nte símbolo. Um moi
pretensão à unanimidade necessária a esse juízo):12 nho é o símbolo de um Estado despótico, diz Kan t Que faz aqui a faculdade
de julgar? Primeiramen te, ela aplica o conceito de causalidade ao moinho: o
Dito de ou tro modo: se há concei to, deve ser possível falar do belo como moinho é determ inado em seu movimento por uma força que lhe vem do ex
do conhecimento; se não há conceito, nada se pode dizer a respeito A con terior Em seguida, ela aplica a regra da reflexão que acaba de usar para outro
tradição é apenas aparente. l\la realidade, o juízo de guslu u tiliza certamen te objeto, o Estado É claro que não há nenhuma relação direta entre o moinho
um conceito, o de finalidade subjetiva, mas sem que esse conceito seja deter e o Estado despótico Mas o funcionamen to da causalidade é análogo nos
minan te Não se pode pois contradizer o gosto, quer dizer, demonstrar que dois casos: esse Estado é governado do exterior pelo déspota como o moinho é
o outro está errado em fazer um juízo diferen te do nosso Ao mesmo tempo, movido do exterior pelo ven to"
uma vez que há conceito, há universal em quan tidade suficien te para que se Falta definir em que o belo é o símbolo do bem, indicando a proximidade
possa disctir a respei to e, eventualmen te, não estar de acordo acerca daquilo do funciona1nen to da reflexão no juízo estético e no juízo moral Primeir o
que deve ser considerado belo elemen to a ser atribuído a tal analogia: o caráter imediato do prazer propor cio
Os últimos parágrafos da dialética são em mui tos sen tidos mais im nado por um e outro conceito Mais importan te, sem dúvida, o belo e o bem
portan tes do que essa solução, na verdade bastante previsível, da antino agradam independen temente de qualquer interesse empírico Terceiro ele
mia do gosto Kan t apresen ta ai sua concepção do simbolismo, a partir ela men to: a imaginação é livre nos dois casos Livre quando ela concorda com a
tese f undamen tal segundo a qual o belo é o símbolo do bem Conscien te, legalidade do en tendimen to; livre, ainda, quando aprecia o acordo da von tade
sem dúvida, do caráter enigmático de tal afirmação, Kan t aplica-se, inicial com ela mesma na ação moralmen te boa Finalmente, uma e outra agradam
men te, a distinguir o simbolismo do esquematismo Dois tipos de apresen universalmen te Esse conjun to de semelhanças faz com que o gosto seja uma
tação (hipotipose na linguagem kan tiana) são passiveis: ou se apresen ta a propedêutica à moral, ensinando a imaginação a encon trar uma satisfação au
tên tica fora da sedução da sensibilidade"
An tes de passar da finalidade subjetiva do juízo estético à finalidade obje
32 lbid , AK V 339; P III, p 112 7 tiva do juízo teleológico, gostaríamos de vol tar a esse texto tão impressionan
te que é a analítica do sublime Ele parece provocar, assim como o conceito que
154 apresen ta, uma espécie de sismo na organização do sistema kan tiano, tal seu
impacto sobre as categorias habi tuais A importância dessa passagem r eside
-ao menos será esta nossa hipótese de leitura -no poder de ruptura
intro duzido pelo sublime, um poder que revela -bem mais que outros
textos -a verdadeira base do pensamento crítico
155
Compreender A passagem do belo ao sublime apóia-se em três argumentos: primeiramente, na diferença das
faculdades em jogo nos dois casos; em seguida, na diferença de es tatuto desse jogo de
faculdades, que, justamente, não está mais unificado no su blime; e finalmente, na diferença de
O desequilíbr io do sublime
função da imaginação nessas duas situações
O principio reflexivo
Do belo ao sublime
38 lbid
39 lbid , AK V 245: P 11. p 1011
157
Compreender harmoniosa das for mas e leis: o caos, a desordem, a desolação, a tempestade ou o oceano
em fúria A con tr afinalidade do sublime torna impossível sua utilização na consideração da
natureza Adernais, ela funda a exclusão do sublime da crítica da faculdade
Depois de ter afirmado a oposição entre a finalidade do belo e a con tra
de julgar a estética propriamen te dita, que leva Kant a rejeitar em apêndice o texto que lhe
finalidade do sublime, Kan t indica imedia tamen te q ue, stricto sensu , só é
é consagrado40
su blime o sentimento do espíri to suscitado à vista de um objeto particular
da natureza, não o próprio objeto, salvo se por extensão O que na natureza
po deria provocar a emoção do sublime seria, então, aquilo que em si se
A inadequação do sublime
apresenta como con trário à ordem, ao ordenamento, à organização
O princípio reflexivo
O segundo traço desregulador do sublime é sua inadequação ao poder de
repre sentação Trata-se, aqui, não de um dos poderes de conhecer
-sensibilidade, imaginação, entendimento, razão, faculdade de julgar - e a razão, o que resulta na revelação do sentimen to de urn poder supra-
mas do dispositivo constitutivo da apr esentação esquemática, que une a sensivel em nós e, dessa forma, na terceira definição do sublime, a mais
sensiblilidade, a imagina ção e o en tendimento Afirmando que o sublime lhe completa: "É sublime aquilo que revela urna faculdade do espírito que
é inadequado, Kan t não diz que o objeto dito sublime é incognoscível, mas ultrapassa qualquer critério dos sentidos, pelo único fato de que não se pode
que na ten tativa que pode riam empreender essas faculdades - cujo uso senão pensá-lo"43
é normalmente cognitivo - para compreendê-lo esteticamen te, quer A impotência da imaginação em apresentar o infinito que a razão dela
dizer, em relação livre urnas com as outras, elas fracassarão, e esse fracasso exige não pode ser revelada em outro campo senão o da estética. Com efeito,
as fará sofrer Essa inadequação aparece mais particularmente do ponto de no campo teórico, a cooperação da imaginação com o entendimen to sempre é
vista da quantidade, ou do ponto de vista matemático O sublime é, então, possível, mesmo com uma imensa grandeza, pois esta pode ser matematica
aquilo que é grande, para além de toda com paração" : é "urna grandeza que men te divisível e mensurável Mas a estimativa estética da grandeza obedece
a urna lógica absolutamen te diferen te: não se trata aqui de medir sucessiva
só é comparável a si rnesrna"42 A experiência do sublime ocorre quando a
men te as partes de um objeto, estimativa da grandeza que não tem limites,
imaginação, corno faculdade de avaliar a grandeza, é convocada pela razão,
mas sim de apreender imediatamente, de um só golpe, a in tegr alidade do
no momento em que a percepção do objeto informe ou absolutamente
ob jeto Limitada à gr andeza apreensível de um único golpe, sem composição,
grande deve tender ao infinito, respondendo assim à sua exi gência de
a imaginação atinge seu limite, ela sai do jogo que a ligava ao entendimen to
totalidade absoluta Kant desloca aqui o lugar da inadequação e pro jeta o
no sentimento do belo e se atemoriza dian te de seu novo parceiro Ela cai,
desacordo poder/objeto para um desacordo facultário entre a imaginação
nada mais pode apresen tar, exceto sua impotência O entendimen to está
perdido, a imaginação diminuída, mas nessa diminuição já se elevam urna outr
a faculda de e urna outra finalidade
40 Cf lbid . AK V. 246; P II. p 1012: ·· A teoria do subliine [é] un1 simples a pêndice do
juízo estético''
41 Cf ibid , AK V 24 7: P II. p 1013
42 Ibid , AK V, 250: P II. p 250 A violência do sublime
43 Ibid
44 Cf ibid . AK V 260: P II. p 1030
159
4ü lbid AK V 25 7: P 11 p 1026-102 7
iil lbid , AK V, 257: P 11. p 1026
43 Cf ibid
49 lbid , AK V, 2 71: P li p 1044
161
O principio reflexivo
Compreender
Os fins da natureza
O parentesco entre a teoria do sublime e a 1noral, como se ve, é cada vez
mais afirmado Finalmente, ele se apóia em uma certa racionalidade do Esclareçamos de imediato: Kan t não afirma que a natureza é organizada por
sublime princípios finais determinan tes que perm itiriam sua explicação Seu conceito
de finalidade da natur eza se constrói, pelo con trário, por uma série de restri
ções que definem seu campo de legitimidade. Trata-se apenas de mostrar em
Racwnalidade do sublime que a harmonia entre o en tendimen to e a razão perm ite estabelecer analogi
camen te uma finalidade da nat ureza, que nos assiste em seu conhecimen to
A função da razão na gênese da emoção do sublime toma a forma de uma
A faculdade de julgar reflexiva con ten ta-se aqui em enu nciar um principio
certa r eceptividade"° do espíri to às Idéias Segundo o complexo
regu lador da ciência, que o faz tender à sua mais elevada unidade
mecanismo que ana lisamos, a emoção sublime supõe a incompatibilidade
da imaginação com as idéias da razão: não há, pois, emoção sublime salvo
se essa incom patibilidade pode ser sentida, e portan to se o espírito está em
A teleologi a no principio da
relação com as Idéias Essas Idéias não são nem Idéias estéticas, nem a ciência
Idéia da totalidade indetermi na da, rnas Idéias racionais e práticas, o que
aparece muito claramente no texto, pois Kan t fala do campo prático" em
A finalidade posta pela faculdade de julgar teleológica não é subjetiva, na me
cuja dir eção a razão atrai a imaginação, e depois das Idéias éticas52 , dida em que não trata da organização finalizada elas faculdades Ela tem, sem
necessárias à correta percepção do sublime Se a pri meira intervenção da dúvida, um alcance objetivo Mas essa objetividade não é material, no sentido
razão como causa do desprazer do sublirr1e é "automáti ca'', essa segunda
em que o concei to de fim aqui afirmado significa que as coisas são realmen
in tervenção como condição do seu prazer exige, assim, uma disposição
te determinadas por aquilo a que parecem tender Kan t afina, pois, progr
suplementar que não é dada de imediato -a receptividade - e uma
essiva men te sua concepção de finalidade, para limitá-la aos seres
cultura sem a qual o que é sublime aparece simplesmente corno aterrori
organizados, cuja apreensão não se pode fazer sem usar uma tal concepção
zante A afetação da razão como condição de possibilidade da
Podemos, então, enunciar o seguin te princípio:
universalidade da cultura, do respeito e, portanto, da emoção sublime faz
da exposição desta ao mesmo tempo sua dedução: o sublime tem, assim, o
Um produto organizado da nat ureza é um produ to no qual tudo é fi1n e recipro
privilégio de afirmar imediatamente pelas faculdades que supõe e põe em
camen te também é meio51·
jogo a universalidade dos juízos estéticos que lhe dizem respei to"
O sublime jamais terá sido apenas uma emoção Mas, penetrado pelas
linhas ela racionalidade que ela harmoniza, essa emoção não tem significado Nem a razão, nem o entendimento podem produzir tal conceito Mas sua
senão como expressão de uma idealidade especifica, idealidade estética e prá posição dá a uma e ao outro um fio condutor indispensável à ciência A utiliza
tica, ou estética porque prática, sem no entanto ser estética da prática Ele é ção da finalidade da natureza permite uma ampliação do conhecimento, sem
o lugar da concen tração dos opostos transcenden tais, forma última do pon to que no entanto seja necessário excluir o r11ecanis1no dessa mesma natureza,
de neutralidade que nos apareceu ao longo de nossa lei tura das I n troduções cujo en tendimento é postulado pela legalidade A faculdade de julgar não é
como lugar próprio do questionamento critico aqui siinples instrumen to supérfluo, que viria, ao final, unificar uma ciência
da na tureza que poderia a justo titulo deixá-la lado Ela é a condição
inevitável da própria ciência, o rebaixamento da relação harmoniosa das leis
50 Cf ibid . AK V. 265; P li. p 1036 da natureza em
51 Cf ibid . AK V 265; P 11. p 103 7
52 Cf ibid
53 Cf ibid . AK V 280; P 11, p 1055: ··nossa exposiçào dos juízos sobre o sublime da natu 54 lbid . AK V 366; P 11. p 1168
ieza foi ao n1esmo ten1po sua deduçao··
163
162
O princípio reflexivo
Compreendei
164
165
Podemos, em primeiro lugar, distinguir três sentidos para a palavra "cultura", A condição for mal sob a qual a na tur eza pode sozinha alcançar essa intenção
corresponden tes às três disposições fundamen tais do homem À disposição final que lhe é própria é essa disposição na relação dos homens entre eles em que
166
59 Cf A religião nos limites da simples razão. AK Vl. 26; P Ili, p 37-38
GO Teoria e prdtica. AK VIIC 279; P II, p 256
61 Cf Doutrina da virtude_ AK VI. 485; P lfl, p 784
167
Compreender A civilização da disciplina precede, como a habilidade, a cultura moral: ela dá lugar a uma
organização política fundada no direi to de coerção e que, como todo corpo político, inclusive a
República, não precisa da moralidade em ato dos cida dãos Nesse estágio de cultura moral, a
ao dano que se causam as liberdades em conflito 111útuo opõe-se o poder
oposição e mesmo a guerra con tinuam a ser, pois, um meio indispensável para fazer progredir
legal,
a civilização; apenas quan do a receptividade às idéias se tiver desenvolvido, ou quando uma
err1 um todo que se chama a 5ocíedade civiJfi1
abertura às idéias tiver sido organizada no seio das instituições de direito estri to, uma outra
forma de política será concebível, baseada não mais no direi to de coerção, mas O princípio reflexivo
na suscetibilidade à Idéia do direi to Voltaremos a este ponto
A cultura, que Kant considera o fim último da natureza, dá lugar a uma
civilização da habilidade, por um lado, e à sociedade civil, por outro Mas a como unidade da moralidade e da felicidade Deus é a causa moral sem a qual
pr ópria essência da cultura reside em outra parte Ela é antes de tudo essa essa unidade não é concebível, nem por conseguin te a idéia de um objeto final
capacidade moral do homem em vista da qual o próprio mundo foi criado. A postulado, en tretan to, pela faculdade de julgar'"
faculdade de julgar teleológica postulava em seu principio um substra to supra As restrições habituais não tardam a se seguir: nada é eviden temen te
sensível da unidade da natureza lemos uma via de acesso a esse supra-sen determinado teoricamen te por essa prova moral Não se trata senão de uma
sivel: o ho1nem como ser moral, quer dizer, como nournenon Ai está o objeto crença prática, indispensável à ação, o que, como destaca Kan t, não é pouco
final da criação, pois não podemos mais nos pergun tar por que tal ser existe, Com efei to, deve-se considerar essa crença como
sendo o homem moral seu próprio fim"
Assim, chamar o objeto final da natureza não nos traz novos conhecimen o principio pennanen te do coração, que admi te co1no verdadeiro aquilo que é
tos, pois este é ainda um resul tado da reflexão. Mas pode-se, dessa forma, es necessário pressu por como condição para a possibilidade do objeto final moral
pecificar um pouco o conceito de Deus que resultava da teleologia física Deus suprerno, e111 razão da obrigação que dai decorrelHi
não é, en tão, pensado unicamente como principio intencional da finalidade da
natureza, mas também como o ser que irá organizá-la ern vista da moralidade Dificilmen te se pode ir mais longe no conceito de Deus Com essas linhas,
do homem Podemos, então, reflexivamen te -ainda não há saber teológico chegamos ao final do edifício ela terceira Critica Como vemos, os objetivos do
-atribuir-lhe a onisciência, a onipotência, a bondade e a justiça que são ne texto, tão diversos quan to con tradi tórios, foram todos, ao menos parcialmen
cessárias a essa organização 6 1' te, abordados A reflexão encontrou sua regra, na estética como na teleologia A
Vimos como Kant postulava a existência de Deus como postulado da natureza encontrou sua unidade final As faculdades puderam se harmo
razão prática; ele volta a esse pon to por um caminho um pouco diferente nizar A filosofia encon trou no supra-sensível - que aflora no sublime,
O argumen to é simples: a faculdade de julgar nos conduz necessariamen te no simbolismo do belo como na moralidade do homem -a condição
à idéia de um objetivo final Este é, em sua forma perfeita, o bem supremo suprema de sua unidade, a chave da passagem entre liberdade e na tureza
Será ainda preciso passar pela política kan tiana Nós a vimos no esforço
empreendido por l(an t para inscrever concretamen te a lei moral na natureza,
62 CF J, AK VI. 432: P l i. p 1235
63 lbid . AI( V 436; P li, p 1239 ainda que apenas no respeito; veremos um mes1no esforço aplicado na tensão
üq Cf ibid . AK V 444; P l i, p 1250 entre a normati vidade política originada do direito e a massa humana em que
deverá se mani festar A faculdade de julgar reflexiva irá aí encon trar trabalho a
fazer
168
169
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Capitulo V
o arquipélago da política
Resistências do político
171
O arq11ipélago da politica
Compreender
letivarnente realizar para formar u111a com unidade justa, dotada de uni
senso comu1n, presente na estética, o lugar próprio do questionamen to políti poder legitimo Aqui, a experiência é esvaziada em beneficio de consider
co1 Estas duas primei ras in ter preta ções não nos parecem fundadas Sem ações estr i tamen te racionais Encontramos igualmente em Rurno à paz per
negar a complexidade dessa questão, dois argumen tos podem aqui ser pétua alguns elementos que penni tem pensar a polí tica a priori com urna
invocados Por um lado, a politica não é simplesmen te um objeto a ser niesrna indepen dência em relação à experiência
tomado pela filosofia, mas um problema que, por direito, diz respeito a toda a 3 Ponto de vista téo1ico-judicativo: reflete, desta vez concretamen te, acerca do
filosofia, não somen te a uma obra particular Por outro lado, mais que podem fazer o poli tico, o jurista e o cidadão e111 si tuações particulares
fundamentalmen te, a poli tica é talvez um campo que resiste a toda tentativa ou em carnpos de aplicação específicos Encon tra111os, assim, na Doutrina
de compreensão sintética, pela dificulda de e pela diversidade de dificuldades do direito análises mui to concre tas em relação a cer tas passagens do direito
que suscita Assim, explicar a política com cer ta probidade filosófica exige do pri vado Esse pon to de vista aparece igualmente em certas passagens de O
que são as Luzes?, Teoría e prâtica , O conflito das faculdades e tanibém,
filósofo adotar uma pluralidade de pon tos de vista e de métodos respei tosa
sem dúvida, e111 Ru1no à paz per petua Pode-se também falar de registro
das diferen tes facetas da questão
juclicativo, já que o juízo r eflexivo, assiin como foi elaborado na terceir a
No arquipélago do poli tico, podemos distinguir três registros que Kan t
Critica , f unciona aqui como instãncia de passagen1entre a norma política,
a plica às vezes sucessivamen te, às vezes conjun ta1nen te ao problema polí
que é da ordem da razão, e as instituições reais, que são da ordem da
tico:
sensibilidade
172 173
Compreender O arquipélago da política
vimen to dos comportamen tos individuais parece proceder do mais completo associar-se, 1nas resiste espon tanemente a essa tendência, buscando sempre
caos, a história da humanidade em sua globalidade deve poder manifestar uma singularizar-se Essa tensão interior do homem o coloca na obrigação de que
certa coerência O filósofo, submetido a essa obrigação de racionalidade, deve, rer dominar seus semelhan tes, desenvolvendo seus talentos, não por bondade
pois, abandonar a consideração inútil das von tades particulares para ten tar ele alma, mas por ambição A humanidade em sua totalidade progride sob a
ler nos acon tecimen tos a presença de um desígnio da natureza 2 Essa influência dessa insociável sociabilidade: a exigência racional ai se realiza -a
expressão não deve ser en tendida como a crença, na verdade absurda, em um história é finalizada -, sem que seja preciso cair na ingenuidade de uma
projeto de uma nat ureza toinada no sentido de uma pessoa; Kan t apenas hu manidade concebida como agen te que realmente age com racionalidade
queI mostrar que é preciso encon trar na história um fio condutor que lhe Kan t indica, em seguida, a forma institucional resultante dessa disposi
confira uma coe rência semelhan te àquela que uma vontade todo-poderosa ção da na tureza: a humanidade, forçada a disciplinar-se para sobreviver, irá se
poderia lhe dar organizar politicamen te I n teriormen te, fundando uma sociedade civil juridi
A primeira etapa dessa busca consiste em postular os dois princí pios camen te estabilizada; ex teriormente, construindo uma sociedade das nações
seguin tes: de um lado, as disposições nat urais de uma criatura são sempre de modo a assegurar a paz coletiva Nos dois casos, não se pode esperar perfei
chamadas a se desenvolver in teiramen te; de outro, essas disposições nat ção ou progresso do próprio homem Deve1nos apenas esperar que uma me
urais, racionais, no homem, não pode1n se verificar senão no nivel da espécie, lhor construção jurídica impeça as pulsões humanas de obstar seu desenvol
não no nível individ ual Com base nesses dois princípios, Kan t deduzirá o que vimen to cul tural A formulação dessa organização finalizada da humanidade
poderia parecer proceden te de um otimismo ingênuo, indicando as corresponde à de um plano oculto da na tureza Mas também ai o vocabulário
modalidades do desenvolvimen to ela humanidade: kan tiano deve ser interpretado com prudência Kan t não diz que a natureza
deter1nina a história nesse sentido, o que equivaleria a atribuir a uma Idéia da
Cluis a natureza que o homem tirasse i n teirarnente de si mes1no tudo aquilo que razão -os fins da natureza -o poder que somen te possuem os conceitos do
ul tra passa o or denan1en to 1necânico de sua existência an in1al. e que não en tendimen to: determi nar positiva1nen te o inundo fenomenal
partici pa de nenhuma habilidade ou perfeição senão aquelas que ele n1esrno A Idéw de uma história universal deve, pois, ser tomada como texto teó
cdou para si, independentemen te do instin to, por sua própria razão 3
rico Mesmo se Kan t menciona a u tilidade prática ela formulação de um fim
da história, ela tem, antes de tudo, uma função reguladora, perm itindo uma
apresen tação mais sistemática dos acon tecimen tos históricos Assim, ela abr
A natureza, ao exigir essa racionalidade do progresso, na realidade conde
e uma perspectiva consoladora, que nos convida a não descrer do homem
na o homem à infelicidade. Com efeito, a razão é particularmen te inapta para
Sua vocação não é apresentar uma norn1a real para a ação humana
tornar feliz o homem Ela apenas pode torná-lo digno de ser feliz Ao mesmo
tem po, não se pode esperar do homem que ele seja imediatamen te racional; a
natureza vai ter que lu tar para obter de um ser não-razoável que este se com
Natureza e progresso político
porte co1no se seus atos fossem racionais Dito de outro modo: o otimismo his
tórico não pode repousar em uma concepção generosa da natureza humana; o
Kan t u tiliza a tese de uma finalidade da história em um segundo con texto,
homem é irracional, e ele não se submete espon taneamen te àquilo que a
bastan te diferen te A tese em si não foi modificada A questão ainda é afir
razão lhe apresenta como algo que deve ser realizado
mar que a na tureza orien ta os co1nportamen tos humanos para um objeto
A quarta proposição resolve esse problema: a na tureza irá se apoiar no ca
posi tivo, u tilizando o que aparen temen te procede de uma an tropologia
ráter híbrido do homem para obter dele o que responde à sua própria vocação ne ga tiva Mas a função dessa formulação é, desta vez, bem mais prática:
O homem é dotado de uma insociável sociabilidade Ele tende naturalmen te a Rumo à pa z per pétua irá, na verdade, fazer da finalidade da história um
motivo para esperar que a paz seja realmente possível, considerando que a
2 Cf Idéia de uma história universal do ponto de vista cosmopolítico. AK VIU. 18; P II, p nat ureza parece orien tar-se em sua direção
188
3 l bid , AK VIII, 19; P 11. p 190
175
174
Compreender O arquipélago da
politica
177
Compreender bem mais próximo da rnl tura, essa aptidão especificamen te humana de agir em função de fins
livremen te estabelecidos O concei to de natureza não é n1ais levado em con ta; é substituído
pelo de sinal histórico, designando este o indí cio procurado de um possível O arquipélago da po!itica
progresso moral da humanidade No horizon te dessa busca encon tr arnos a
idéia racional de uma república conforme aos di rei tos dos homens; mas es ta
idéia não é mais, aq ui, uma idéia simplesmen te reguladora ou o produ to é o próprio acon teci men to significativo O quadro traçado por Kan t da Revo
mecânico da na tureza Ela é aquilo que será neces sário aplicar nas i nsti lução Francesa é essencialmen te nega tivo: refere-se a atos ou delitos impor
tuições concretas - O conflito das faculdades con ten ta se em indicar por tan tes, pelos quais "o que era grande torno u-se pequeno entre os homens ou
que o homem é no fundo capaz disso Kan t não rejeita a an tropologia o que era pequeno tornou-se grande"7 , uma mon tanha de n1iséria e ele crimes
pessimista, que é o fundo comum de todas as suas obras sobre a história; ele horrendos "a tal pon to que um homem prudente, se pudesse, ao empreendê-la
antes a completa, mostrando que há, sem dúvida, no negro cora ção do homem pela segunda vez, esperando realizá-la com sucesso, decidiria, todavia, jamais
uma disposição para o direito e para a justiça arriscar tal experiência a preço tão al to"!I A Revolução em questão foi assim
O conjun to da segunda seção de O conflito das faculdades apresen ta-se descri ta como um verdadei ro desastre Povo cheio ele egoísmo e de pre tensão
à liberdade, os franceses manifestam, todavia, nas crueldades e apesar elos de li
como uma vasta cenografia destinada a avaliar a marcha rumo ao progresso
tos cometidos, uma cultura e uma aber tu ra ao direi to que l(an t acredi ta não
da humanidade O mundo é, assim, um palco onde se passam enredos mais
poder encon trar em outra parte Suscitada pelo egoísmo e realizada no pathos
ou menos significativos: do ponto de vista teleológico, o comportamento do
do en tusiasmo, a Revol ução nada tem de moralmen te legitimável; todavia, ela
home m é bastante desolador, o historiador não pode considerá-lo senão com
é também o sinal de que um povo atingiu um nível ele cultura suficien temen te
humor, já que o filósofo não lhe dá motivos de esperança, e sente-se até mes
elevado para que, em meio às paL\'.ões, possa se manifestar uma aber t u ra às
mo ten tado a desviar os olhos do espetáculo Do pon to de vista prático e mais
Idéias, a Idéia da liberdade e a Idéia do direito
propriamen te filosófico, o espetáculo pode ser ora igualmen te angustiante, se,
Este primeiro momen to não con tém ainda o sinal procurado, que nos de
como é o caso da concepção abderi tista de que Kant fala em primeiro lugar,
monstraria a disposição ao progr esso moral em ação na h umanidade Tal sinal
se considera que os princípios bons e maus da ação humana se anulam e se
só aparece quando voltamos a atenção não mais para o palco, mas para a sala
aparen tam a um "simples jogo de marione tes""; mas pode também ser mui to
de espetáculos, para a atitude dos espectadores da Revolução a seu respeito
mais in teressan te para o filósofo, e ser o indicio procurado do progresso A ce
O acon tecimen to significativo não pode consisti r em ações ou ern deli tos
nografia filosófica é, assim, o procedimen to pelo qual Kan t analisa o conjunto
im portan tes "Nada disso"', diz Kan t Pelo con trário:
da ação hu1nana, ao tnesmo ternpo a do ator, quer dizer, o palco propriamen te
dito dos grandes acon tecimen tos da história, e a do espectador, que, na me
T rata-se sin1plesmen te do niodo de pensar dos espectadores que se trai publica
dida em que suas emoções podem ser elas também igualmen te significativas,
men te nesse jogo das grandes reviravol tas e que, n1esn10 apesa r do perigo de
tem um papel essencial no teatro
que tat parcialidade pudesse tornar·se pata eles muito pr ejudicial. manifesta. en
I<an t vai aqui em busca de um acon tecimento no tempo que con tém
tre tan to, uma tomada de posição tão un iversal e, de qualquer rnodo,
um poder de significação independente do tempo, e que possa até mesmo,
desinteressada para os partici pan tes de uni partido con1parada aos do outrow
por uma espécie de retroatividade, conferir um sentido e uma direção
positiva a toda a história, inclusive a história passada O que se passa, na
O acon tecimen to não é uma manei ra de agir, mas de pensar, ou antes,
época, no palco do mundo? Uma revolução está em curso, a de um povo
de sentir uma emoção par ticular à vista de um espetárnlo determinado; não
cheio de espírito, a França, uma revolução sobre a qual Kan t apressa-se em
é o conhecilnen to do fa to revolucionário, inas a aber tura do espírito de um
observar que ela não
homem, o espectador estr angeiro da Revolução, quando está em condições
de elevar-se acima das condições subjetivas e ele aprovar essa Revolução, ape-
ü O conflito das faculdades , AK V!l. 82; P I!l, p 891
178 J lbicl
O lbicl . AK VII. 85; P 111. p
895 9 lbid . AK VII. 85; P 111.
p 894
10 lbid
179
r·
1
O aquipélago da política
Compreender
que, não podendo encon trar urna forma para se manifestar na sensibilidade,
sar do perigo e do pouco in teresse imediato que tem em fazê-lo A disposição consti tui-se como irrupção nessa sensibilidade, sern mediação, co1no Idéia
dos espectadores não é um dado exclusivo da sensibilidade, nem um juízo O Estado de direi to é, nesse sentido, uma coisa em si: algo que não reside na
determinan te em vista de um saber, mas a emoção pela qual eles se pàem a experiência mas que não tem significado senão para a experiência, mesmo
pensar a partir ele um pon to de vista universal, estando ligados pela sensibi quando e precisamen te quando esta o con tradiz A idéia da república em cuja
lidade à especificidade daquilo que se passa no palco O acontecimento que direção o acon tecimen to sinaliza deve se encon trar na base de todas as
acena é uma modalidade do juízo, aqui em situação política, juízo que se tr ai formas politicas Ela é, pois, "não uma quimera vazia, mas a norma eterna
publicamente e que, desse modo, adquire validade ao mesmo tempo moral e de toda constit uição polí tica em geral""
política, de acordo com o critério que Kan t conserva em Rtuno à paz per Assirn, o sinal da história não revela essencialmen te a esperança de urn
pétua 11 O cará ter significan te da publicidade é ainda aumen tado pelo fato passive! progresso Como idéia da razão prá tica no campo politico, a república
de induzir a certos riscos para o próprio espectador, sujeito de Estados que é também o focus imaginarius de toda polí tica efetiva, rumo à qual deve tender
não aderem forçosamen te à política revolucionária, tendo a invocação do a história; mas ela é sobretudo algo que se dá como norma de toda polí tica
perigo a função de destacar o desin teresse do espec tador A maneira de Isso não significa absolutamente que a ação política se define como uma pro
pensar dos espectado res poderia ser igualmen te o acon tecimen to que Kant dução de simulacro do ideal ou, pior que isso, como uma construção sensível
busca sem esse perigo1 mas isso ocorre de modo mui to mais evidente imediata da república ideal -política do sublime que seria o Terror 1'1 -,mas
quando aquele que afir1na sua aprovação arrisca realmen te sua vida ou seu sim que é a invenção das for1nas possíveis de manifestação, a cada vez singu
conforto lar, daquilo a que a Idéia nos obriga
A concordância no fato singular do entusiasmo, do desin teresse e da uni O pon to ele vista antropológico- teleológico nos terá conduzido do ideal
versalidade, possível na medida em que o espectador não está diretamente en regulador para a posição de uma norma racional É preciso, pois, mudar esse
volvido na Revolução, constit ui seu caráter moral e sua potência significante; registro para melhor entender ern que consiste exatamen te essa norma do
o que nele é revelado é a própria moralidade do homem e a possibilidade direito, apenas esboçada no Confli to das faculdades
para a espécie de progredir, ou o movimen to em si para o progresso, já
efetivo nesse pathos específico do en t usiasmo"
Nem a Revolução nem o entusiasmo são exatamente obras, que seriam O d ireito e a raciona lidade política
simplesmen te o objeto de uma experiência estética a reconhecer no que vê,
diretamen te e sem descon tinuidade, o ideal político encarnado: elas não são, A noção do polí tico aparece na Doutrina do direito como uma Idéia obtida
a f ortiori , belas obras, uma vez que precisamen te o que lhes confere um após um conjunto de exclusàes e de purificações destinadas a apresen tar in
poder indica tivo é sem dúvida da ordem do sublime Se o acon tecimen to fine um conceito puro do polí tico, desembaraçado de qualquer empirismo,
acena em direção ao ideal, à Idéia de comunidade e à Idéia de república, mas tam bém, de certo modo, de toda dimensão moral e de todo horizonte
jamais se encon trará, todavia, apresentação direta ou prova de tal Idéia: histórico Kan t persegue, ao fazê-lo, um duplo objetivo: por um lado,
afirmar o contrário é ceder a uma ilusão transcenden tal e acreditar que se delimitar no cam po jurídico o núcleo do direi to como dir eito a priori; por
pode aplicar as formas da sensibilidade a uma Idéia da razão outro lado, estabelecer a marca distin tiva de um direito resolutamen te
Nem obra, nem esquema, nem verdadeiramen te símbolo: o aconteci voltado para sua aplicação, definido, pois, antes de mais nada, por seu meio:
tnento é ainda outra coisa, a apresen tação que há na Idéia a apresen tar do a força
inapresentável , que não pode mais se dar de ou tra forrna senão sob a forma
imperativa O concei to de direito -a república -surge então como aquilo
13 lbid . AK VII. 91; P Ili, p 902
í1 Rumo â paz perpétua. AK Vll, 386; P [!!, p 382 1/J Cf J -F lYO f ARD. Le posnnoderne expfiqué aux enfants Paris. Galilée. 986. p 112-113
í2 O co11(/ito das faculdades. AK Vil, 85; P li!, p 895
181
180
Compreender O arquipélago da
política
Moral e direito
ética ou juridica As leis juridicas cuidam da liberdade exterior, assegurando
a conformidade das ações dessa liberdade com o direito, independen temen te
A elaboração do concei to de direito, que constitui o essencial do registro nor
de qualquer consideração ética -fala-se de legalidade -, ao passo que as
mativo em que pensamos ter visto um dos aspectos da filosofia politica de
leis éticas avaliam a pureza moral dos motivos da ação (no uso exterior e
Kant, resulta, assim, em sua rupt ura; apenas o direito a priori pode ser consi interior da liberdade), quer dizer, sua harmonia interna com a forma
derado verdadeiramen te normativo Essa cisão, que se anuncia desde o estudo universal da lei
da situação em relação com a moral, irá se acentuar na análise de sua realidade -fala-se neste caso de moralidade" O critério que Kan t observa não é, pois,
e resultará em um corte definitivo entre um direito ideal e um direito aplicado, nem o lugar da ação, nem seLt princípio, mas a escolha do pon to de vista do
estando o primeiro na origem de um Estado, segundo a idéia daquilo que Kan t ato: se este é reconduzido ao seu principio interno de determinação, e se esse
às vezes chama de República princípio é obedien te ao dever pelo dever, então há lei moral; se tomamos
o ato em si, sem considerá-lo em seu princípio de determ inação, então está
submetido à lei juridica Convém, pois, distinguir duas legislações: a que "faz
A d1stmção dos pontos de de uma ação um dever e desse dever, ao mesmo tempo, um móvel" -a legis
vista lação ética -e a "que não integra o móvel à lei e que, por conseguin te,
admite também outro móvel, difer ente da idéia do dever"" - a legislação
A delimitação da moral e do direito é, para Kan t, particularmen te complexa, jurídica A legislação ética não pode ser, assim, senão in terior, pois não pode
urna vez que ele procede, ao mesmo tempo, a urna dedução dos principios a aplicar meios exterior es de coerção que destruiriam sua moralidade, ao passo
priori do direi to a partir do conceito de razão prática e a uma exclusão de que a legislação jurídica pode ser, ao mesmo tempo, in terior e exterior
todo aporte moral no direito A primeira etapa do processo de elaboração do A distinção que no início parecia determinan te -a in terioridade
direi to tem o objetivo de descrever a natureza dos laços que man tém com a ética versus a exterioridade jurídica - é substi tuicla por uma distinção
moral no sistema geral da metafísica dos costumes Kan t apóia-se aqui em mais fina, que não cuida nem do uso da liberdade nem da nat ureza dos
uma análise da faculdade de desejar: esta pode focalizar o próprio objeto, é deveres, mais de dois pon tos de vista, duas legislações, dois tipos de
en tão fon te de um prazer prático; ou a represen tação do objeto, que dá determinação, qualquer que seja o gênero de ações ou de deveres
lugar a um prazer con templativo de tipo estético Esse prazer, o gosto, tem considerados A nat ureza dessa dis tinção torna bem difícil o estabeleci
sem dúvida um pa pel na filosofia prática, e Kan t não é hostil a essa inclusão mento ele uma relação de dedução ou de condição de uma das legislações em
da estética na moral ou na poli tica. A ten tação de fazer uma ciência relação à ou tra: ele todo modo, Kan t abso lu ta1nen te não considera que u1na
simplesmente empirica do direito, baseada na experiência e na afetividade si1nples transferência da ética ao jurídico ou uma simples extensão dos pri
humanas, é, sem dúvida, o principal risco de que a Doutrina do direito quer ncipias da moralidade bastem para a construção do direito Trata-se antes de
escapar Essa preocupação com a pureza não deve ser en tendida como um uma dualidade de regimes, conciliáveis sem ser idên ticos, que o filósofo
formalismo redutor: ela nos parece antes ser o sinal de um rigor pode analisar, no sentido quimico do termo
propriamente filosófico na determinação da especificidade do regime
jurídico, que não se aplicaria convenientemente à experiência salvo por ser
distin to quanto aos seus princípios Trata-se de Resistência da moral
esboçar o direito, não um esboço rápido e aproximativo, mas um desenho de
seu esquele to livre de toda carne Ao termo desse primeiro momento, Kan t chega a uma definição do direi
Tan to o direi to como a ética têm como objeto a faculdade de desejar, a to que conserva como diferença específica apenas a força Antes de estudar
von tade Desde que suas máximas sejam submetidas à condição de poder ser mais de perto essa surpreenden te determinação do direito, é preciso
vir de lei universal, toda von tade é moral, e a distinção ético-política opera, perguntar-se
pois, no próprio seio das leis morais, separando duas determinações da ação,
15 Cf Doutrina do direito. AK V!. 214; P III. p 458
1G Cf ibid . AI( VI. 219; P lll, p 464
182
183
Compreender O arquipélago da politica
se o procedimen to de l(ant atinge verdadeira1nen te seu objetivo e se a au to nesse nível, uma Idéia que a razão impõe à liberdade e que, em um estudo
noinia do direi to, tão almejada, não traz a marca de uma con ta1ninação por do direito propriamente dito como legislação externa, não pode cons tituir
u1na moral decididamen te muito resisten te Essa resistência da moral certa men se em móvel da ação Devernos, pois, por amor à eficácia, "fazer o conceito
te não está diretamen te presen te na defi nição do direito -"o conjun to das do direi to consistir na possibilidade de associar imediatamente a força recí
condições sob as quais o juízo de um pode ser harmonizado com o juízo do proca universal à liberdade de cada um" 10 E m ou tras palavras, e Kan t chega
outro segundo uma lei universal da liberdade"" -, mesmo se esta con tém, jun aqu i ao pon to mais radical da Doutrina do di reito , "o direito e a ha bilidade
tamen te com o conceito de liberdade, um elemen to eminen temen te moral,
de obrigar significam, pois, uma só e mesn1a coisa" 21
mas antes naquilo que permite a aplicação do direi to como direito estrito A
O amor à pureza encontia aqui seu limite extre1no: é preciso, sem dúvi
mor al, de que o direito mal ou bem se separou como pon to de vista radica l-
da, ver ai o sinal da von tade constan temen te reafirmada por Kan t de fundar
1nente disti nto, reencon tra o momen to em que deve encon trar sua efetividade
a au tono1nia do direi to, mesmo onde essa au tonomia se mostra impossível
como uma de suas condições de possibilidade, isto sob diversas formas Ela é,
Podemos ta mbém ler nessa tensão a afi rmação da primazia do'direito, em seu
primeiramen te, indispensável à consciência da obrigação que está na base de
m undo prciprio, sobre a moral na construção da ordem política Em qualquer
todo direi to, inclusive o direito e1n sentido estritorn; em seguida, mostra-se
caso, direi to e moral man têm relações mui to ambiguas, o que nos impede de
necessária para f undar a autoridade do legisladorrn mesmo que este quisesse
vislumbrar de maneira unívoca uma passagem qualquer entre essas legisla
sozinho assegurar a legitimidade de seu poder; finalmen te, de maneira mais
ções: os dois campos, as duas ilhas do arquipélago da filosofia prática são se
geral, ela é exigida pela legislação posi tiva par a dar-lhe uma base mais sólida
parados por um oceano que cer tamen te permite a navegação, mas não sem
Aparen temen te a elaboração da lei se faz sob o império do dever, que
perdas para ambos os lados E essa ambigüiclade preside à quebra do conceito
consti tui o elemen to com um da moral e do direito, bem mais que a liberdade
entre o direi to a priori , Idéia ligada ao imperativo moral, e o direi to estrito,
O dever an tes de tudo: esta é talvez toda a força da polí tica kan tiana, se
definido unicamen te pela coerção
ela existe: assegurar a independência do direi to insuflando em seu
formalismo mais estrito a exigência propriamen te 1noral que torna possível
sua aplicação
Dualidades do direito
A forma do d/feito Conf uso, o concei to de direi to o é de maneira exemplar, a tal pon to que
no momen to de descrever o que pode ser a perfeição de um objeto do pon to
de
Podemos agora, sem perder de vista esse domínio do dever sobre o direi to vista estético Kan t nos indica, na Crítica da faculdade de julgar, que a questão
- que não deixa de relativizar a pureza que Kan t queria atribui r-lhe do justo e o do i njusto é o lugar próprio da conf usão, e que muito raros "são
-, abordar a definição mais pura do direito, a do direi to estrito, que os homens e mesmo os filósofos que têm um concei to distin to de o que é o
apenas esboçamos a té agora Como virnos, o direi to é, em sua mais direi to"" Se o direi to é o protótipo da confusão, en tende-se a dificuldade de
ampla deter minação, o conjun to de condições que pertni tem a coexis Kan t para delimitá-lo Todavia, a ti tulo ele esboço, parece-nos possivel desta
tência universal men te determi nada de seres livres Deste direi to decorre, car dois aspectos essenciais do concei to de direi to
sem dúvida, uma obrigação, a de agir exteriormen te de tal modo que a livre O primeiro aspecto, que mencionamos na passagem e nos parece o mais
u tilização de meu arbí trio possa coexisti r com a liberdade de cada um, importan te com relação à sua situação política, reside no fato de que a dou
segundo uma lei uni versal, mas essa obrigação não tem força de lei A lei tri na dos costumes é uma dou tri na dos deveres antes ele ser uma dou trina
universal do direi to é, dos
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Compreender
23
direitos A r azão disso é que o único direito originário -a liberdade - O arquipélago da
não é conhecido, segundo a tese da Critica da razão prática que Kan t política
1etoma aqui implicitamente, senão pelo imperativo moral, "que é uma
proposição que or dena o dever, e a partir da qual se pode em seguida
desenvolver a faculdade de obrigar os outros, quer dizer, o conceito de direi que é buscado no horizonte Ele é a expressão da vontade universal moralmen te
to"" O imperativo categórico é o pr óprio principio do direito, que aparece prá tica, encarnada juridicamente, necessária e inteiramen te a priori segundo o
então ao mesmo tempo distinto da moral como pon to de vista externo e conceito de direito em geral Assim, o Estado é sempre um "Estado em Idéia , tal
dependen te da moral, na medida em que somente nela a palavra dever tem como deve ser segundo os principias puros do dileito"25; ele é a emanação po
um sentido lítica do direito en tendido como Idéia, e é desse modo que pode servir de "fio
O segundo aspecto que gos taríamos de des tacar é a idealidade do direito, condutor (normativo) a toda unificação efetiva visando a coisa pública'"' A Idéia
que mostramos ser o produto de um processo de purificação muito complexo, do Estado nasce diretamente do primeiw tipo de direito, e de nenhum modo do
mas que, finalmente, atinge seu objetivo: uma definição do direito indepen direi to estrito O Estado não é, pois, primeiramente o apoio institucional da
den te da experiência Essa independência pode constituir-se por uma abstra força, mas uma Idéia juridico-moral que, sem dúvida, é reguladora, como algo a
ção do sensível análoga àquela aplicada pela construção matemática; temos que tende toda comunidade real, mas mais ainda normativa, pois apresenta-se
então o direito estrito, quer dizer, a força Mas ela pode também existir como no interior de toda comunidade como exigência infinita de direi to
elaboração jurídica do dever, determinada in fine pelo próprio imperativo ca O soberano bem político ao qual tende toda ação política sob a idéia de
tegórico: temos, neste caso, uma Idéia do direito. Baseado no dever, o direi Estado de direito é, para Kan t, a paz perpétua; é pois mui to lógico que encon
to não pode ser senão racional e a priori e, apesar de todas as restrições que tremos no texto que elabora os meios de se chegar a essa paz -Riuno à paz
Kan t introduz em sua determinação -em particular, a exclusão da mmali
perpétua -a afirmação mais clara do que é, na realidade, a política
dade como móvel -, é , no que se refere a seu principio, determinado pela
A definição da polí tica no sentido mais próprio do termo surge no mo
lei moral A Idéia do direi to, assim definida, vale como extensão nas
men to em que, no texto, ela entra em conflito com a mmal: Kan t afirma, en
dimensões da comunidade do imperativo ca tegórico; ela deve realizar a Idéia
tão, não poder haver solução pacífica desse confli to, mas unicamen te submis
do direito na tural e constituir a expressão jurídico-moral da liberdade
são unilateral de uma à outra A poli tica é certamen te u1na arte, e uma arte
originária Mas não adquire força de lei nas i nstituições reais de que é a norma
senão por uma legislação civil cujo funcionamen to depende da aplicação do dificil; mas toda sua técnica é impoten te em face da moral, diante de quem
direito estri to: toda Consti tuição politica, todo Estado aplica não um, mas deve inclinar-se, como dian te de uma Ísis velada Essa tese nada tem a ver com
dois conceitos do direito; ambos apresentam diferentemente os dois traços que a clássica subordinação da polí tica a um certo número de regras deon tológicas
retive1nos -a presença do dever e a idealidade De modo que a preocupação e éticas Não há ingen uidade em Kant, mas um senso agudo do real: a mo1al
kan tiana de pu rificação do direi to conduz, inevi tavelmen te, à quebra do seu como amor não tem nenhum peso e1n polí tica, e aliás aí nada tem a fazer f\Ja
conceito realidade, Kan t entende pelo termo "moral" o que em todos os ou tros lugares
chama de direi to 17 , como elaborado na pri meira par te da M etafísica dos
costu mes, que recebe aqui, enfim, sua aplicação Não há concordância possível
A pol í tica a priori com o rigor do direito, a polí tica deve a ele submeter-se para poder aspirar ao
titulo de verdadeira política, sem o que não é, talvez, nada Em ou tros termos:
A Doutrina do direito busca, com base nesse conceito rival do direi to,
determinar o que deve ser um Estado que possa assegurar a coexistência O direito jamais deve ser adaptado à polí tica, 1nas é an tes a polí tica que deve
determinada das liberdades O Estado não é aqui apenas um meio, mas um fim, sempre ser adaptada ao direito2B
um objetivo e o
23 Cf Doutrina do direito. AI< VI, 23 7; P Ili, p 487 25 lbid . AK VI. 313; P Ili. p
24 Ibid . AK VI. 239: P 111. p 490 578 Zô lbid
21 Cf Run10 â paz perpétua , AI< VII., 383: P fll, p 3 79
2ü S obre u1n possi'vel direito de rnenti r por humanidade. AK VH, 429; P llI, p 440
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187
O Biquipêlago da política
Compreender
prá tico como oposição do ca1npo da razão pura teórica à do campo da razão
O conjun to dessas fórmulas, de grande lucidez, consti t ui o fundamen to pura prática, mas como uma cisão, no in terior da filosofia prá tica, entre um
da polí tica kan tiana e reitera ainda mais fortemen te do que na Doutrina direito 1noral a priori , teórico enquan to independen te de todo ernpirismo, e
do direi to a proximidade ou mesmo a iden tificação da Idéia do direito como u m direi to prático, apl icado O confli to entre a serpen te polí tica e a pomba
Idéia moral com a Idéia do politico, cuidadosamen te distinta daquilo que, em moral'º não se resolve pela i nsti tuição de uma política ele pomba, mas sim pela
nível polí tico, corresponderia ao direito estrito, quer dizer, à técnica poli afirmação segundo a qual a moral sempre está acima da pol í tica, ou mesmo de
tica Po demos nos pergun tar o que pode finalmen te significar tal iden que ela é sua condição inevi tável
tificação para a ação propriamen te dita: o di rei to pode sin1plesmen te varrer Oposição do direi to à prática, da polí tica à história, da moral ao prag
as insti t uições polí ticas que não lhe convêm? Deve-se, ao con trário, ten tar n1atisn10: poden1os nos pergun tar se o radicalismo da exigência kan tiana
inscrever esse di rei to apelando a uma prudência politica, uma a r te do não cond uziria a um verdadeiro cisma no in terior da filosofia prá tica de Kant
poder! Sem dúvida, não há retra tação de toda realidade histórico-política a partir da
O impera tivo categórico do politico consiste, assim, para toda instit ui idea lidade do direi to, mas a tensão entre esses dois pólos parece não poder
ção poli tica existen te, em tender -segundo as modalidades que será preciso ser re
estabelecer -à Cons ti t uição republicana, ú nica, afirma Kan t, perfei tamen <luzida sem deformação ou traição: não haverá unidade perfei ta do polí tico;
te adequada ao direi to dos homens'" O sinal mais claro da recusa kan tiana a exigência moral não poderá sub:neter a si a história e o Es tado tão facilmen
a condenar moralmen te a política encon tra-se na famosa idéia de um povo de te, e nenhuma dialética permi tirá conciliar dois can1pos tão cuidadosamen te
demônios que conseguiria instituir urn Estado republicano por um mecanis e tão obstinadamen te dis ti n tos O conflito subsiste, e talvez sempre vá
mo nat ural É preciso distinguir aqui duas perspectivas mui to diferen tes Por 11
subsis tir: , a República e o real jamais coincidirão. No entan to, não há
um lado, do pon to de vista teleológico, e em conform idade com o r ela tivo
nenhum paradoxo nessa determinação do politico, mas antes extrema
otimisn10 da Idéia de u1na história universal de urn ponto de vista
tensão, irredutível, que é o próprio lugar onde toda ação política deve
cos1nopolita , Kan t considera que o egoísmo e o desejo de conservação ele
i nscrever-se, e onde a filosofia se inscreverá, se for capaz
si tendem, por si n1esn1os, em direção à República, com uma única restrição,
que o povo de demônios disponha ao mesmo tempo ele entendimen to Por ou
tro lado -e isso nos parece be1n mais importan te -, o povo de
Política sensivel e política
demônios constit ui, en1 oposição ao povo de anjos que algu ns exigem para
racional: a necessidade da ação
assegurar a Consti tuição republicana, a prova de que a validade jurídica da
República e sua moralidade como Consti tuição mais adequada ao direito não
No arquipélago polí tico, o registro teleológico nos permi te esperar que aquilo
supõe a moralidade dos ci dadãos, no sentido primeiro do termo O Estado
que deve ser realizado, o Estado republicano, poderá ser realizado O terceiro
pode ser moral sem, todavia, supor uma vir tude qualquer entre os cidadãos
pon to de vista, que charnamos de técnico-judicativo, irá ater-se a realizar, tan
que não seja a obediência; mais ainda: um homem mau pode ser, juridicamen
to quan to possível, nas instituições reais o que se apresen tou como idéia nor
te, um bom cidadão Se a relação da moral con10 direito e da 1noral como ética
mativa Essa aplicação, que bem podemos chamar de ação polí tica, não pode
não apresen ta problema, já que o vicio privado pode coabi tar com a perfei ta
ser feita senão e1n três te1npos: primei ro, é preciso que o agen te 1nanifeste
legal idade, onde está, então, a ver dadei ra questão' É no pri meiro apêndice
uma certa receptividade à norma do direi to, que tome, pois, como um dever
que Kan t descreve essa discordância en tre a nioral e a politica, en tendida
a instauração de uma República; em seguida, é preciso que o juizo reflexivo
dessa vez como discordância no próprio seio da doutri na do direito Derrubando
assegure ao menos in telect ualmen te a passagem en tre o ideal racional e as
a terminologia comu m, Kan t chama a política concreta e efetiva de dou trina
for-
do direi to prático e a moral de dou trina do direi to teórico É claro que não se
deve entender a oposição do teórico e do
30 Cf ibid . AK VIII, 3 70; P Ili. p 365
31 Cf ibid . AI< VIII. 3 79; P Ili. p 375
29 Rumo à µn;:: perpétua , A K V!!!. 366; P l ll. p 366
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Compreender O arqu pélago da política
mas polí ticas sensiveis; finalmen te, é preciso que hornens possam assegurar, do espí ri to O juizo reflexivo irá pois ter que julgaI sobre a conveniê ncia
no Estado, que a idéia de República não será esquecida Dito de outro modo: a ou inconven iência das diferen tes formas poli ticas concretas com a id éia
justiça em ato exige cultura para receber a norma; refi, ex.ão para pensar a relação
norma tiva da República Em todos os casos, a faculdade de julgar deverá
entre a nonna e as ins ti tuições; e filoso fia para lembrar sem cessar que não se
operar en tre a razão e a sensibilidade, em uma configu ração próxima àquela
pode prescindir dessa norma
que Kan t analisou em sua teoria do sublime
A reflexão política -ou a politica do ponto de vista técnico-judicativo -
tem a função de pensar a possibilidade de um acordo ent1e o direi to e a polí ti
Cultura e política ca, aquela vista como moral, ou politica a priori , esta como técnica de governo
A concordância desses dois e1emen tos é necessária se queremos que o direito
A presença no Estado de urna receptividade ao que deve ser é a marca de uma seja aplicado De modo que, diz Kan t, "é preciso pensar na possibilidade de sua
forma política superior àquela que é o simples produto da disciplina; ao mes
combinação" 3'1 A reflexão procede muito diretamen te: ela afirma como uma
mo tempo, a cul tura polí tica não é possível senão quando a sociedade civil já se necessidade a concordância da polí tica com o direito, exigindo a submissão da
estabeleceu" A primeira forma ele política, cujo direito est1ito é o princípio, é primei ra ao segundo, o que não quer dizer, é claro, que essa concordância seja
assim a condição mínima do prog1esso das artes e da educação; estas, por sua constatada, mas que é uma Idéia, e que portan to orien tar-se nesse sentido é
vez , preparam o homem para "um domínio em que somen te a razão deve ter para a politica um dever
poder"33, e portanto para a moralidade; e é finalmente a cultura política, seguin A reflexão não se con ten ta em ler a normatividade ideal na história, na
do a moralidade mas restando diferente dela, que antecipa a invenção de uma politica e nas insti tuições; ela participa, pela invenção das 1egras de seu es
nova modalidade do político, a politica submetida à idéia de sua própria justiça tabelecimen to, ela emergência das políticas reais sob a Idéia do politico, cuja
A cultura como receptividade à Idéia do polí tico compreende a obrigação finalidade é se adequarem cada vez mais a essa Idéia O juízo reflexivo contém
de susci tar a forma republicana como manifestação política real de sua recep assim "a obrigação para o poder constitui n te de adaptar a essa Idéia o modo
tividade Haverá, pois, Estado de justiça apenas no cumprimen to do dever de do governo"35 Sem dúvida, esse t1abalho de adaptação é de longo prazo e, por
cultura, que torna o Estado receptivo à Idéia de norma republicana, não sem definição, in terminável; mas a impossibilidade de harmonizar perfeitamen te
que esse cumprimen to exija a aplicação de todos os recursos da reflexão que a Idéia e o governo não impede a reflexão de buscar ao menos a conformidade
destacamos da Critica da faculdade de julgar dos efei tos do governo ao direito, nem de tender a uma consonância n1áxima
do Estado com sua Idéia republicana
O melhor exemplo dessa reflexão política encon tra-se em Rumo à paz per
Política da reflexão pétua l{an t passa sucessivamente de u1na posição racional e normativa, a de
um Estado de nações, que põe um termo definitivo à guerra, a urna conside
A reflexão, no campo político, eleve ser precedida por uma sensibilidade à ração das medidas efetivas que poderiam, ao menos provisoriamente, obte1
Idéia que é ao mesmo tempo, visto que a Idéia aqui referida é urna Idéia po urna certa pacificação das r elações entre Estados A reflexão consiste em en
lítica, uma experiência da normatividade A reflexão começa, pois, no sen contrar urna forma de organização internacional r ealmen te aplicável, tenden
timen to da inadequação do espírito à lei que ai i n tervém, inadequação que do, ao mesmo tempo, à idéia de um Estado mundial Kan t procede, assim, em
Kant, no campo moral, chama ele r espei to, mas que pode ser aplicada igual dois tempos: primeiro, afirmar a república corno norma; depois, tentar tirar
men te no campo político se1n mudar radicalmente a nat ureza do sentimen to daí conseqüências no âmbito das relações in terestaduais
32 Cf CF J, AK V 432; P li, p 1235 3ll Rumo à paz perpétua. AK VIII. 372; P III, p 36 7
33 Ibid . AK V 433; P II. p 123 7 35 Doutrina do direito_ AK VI, 340; P Hl, p 613
190 191
O arquipélago da
Compreender politica
A única Constituição que pode ser apresen tada como um modelo e uma que celebram relações juridicamen te estabilizadas, em que cada un1 encon
obrigação para as nações é, com efeito, a Consti tuição republicana Kan t a de tra sua liberdade sem sujei tar-se a um ente mais elevado do que ele próprio
fine a partir dos principias em que se apóia: a liberdade de todos os cidadãos; Esse ptojeto não é uma quimera inú til Ele será construido não de um só
sua igual dependência em relação a uma instituição comum; sua igualdade de golpe, mas pela progressiva extensão dos princípios republicanos a partir de
direi tos A república é a única forma de governo que assegura um máximo de um Estado particularmente adiantado nesse sentido A aliança será fei ta de
liberdade para cada um, compatível com uma submissão de todos a um poder baixo para cima, por um crescimento indefinido dos acordos multilaterais Kan
par tilhado; esse poder garan te, ademais, a igualdade desse direi to Kan t t esclarece novamen te: o ideal seria a criação de um poder soberano único
logo de início afirma a dupla van tagem dessa Consti tuição: por um lado, Mas um fede ralismo livre é mais acei tável para os Estados, e é melhor uma
encarna a "própria idéia do direito"'°, definida de modo geral em Kan t como paz imperfeita, porém real, do que um conceito vazio ele sentido Kan t
sistema universal da liberdade; de outro, ela pode nos dar a esperança de uma substitui o que é verda deiro em teoria e exigível em direi to -um Estado de
pacifi cação permanen te nações em que os povos renunciassem à sua soberania -pelo que é urna
Os Estados, mesmo os repu blicanos, man têm, todavia, uma relação natu prática possível em direito, embora imperfeita: "o suplemento negativo de
ralmen te belicosa A solução para esse conflito permanen te é ao mesmo tem uma aliança permanen te"" O realismo kantiano não falhou Tampouco o
po semelhante e diferen te daquela que se impõe em politica in terna Como a respeito pela Idéia do direito
república, o direi to dos povos deve ser juridicamen te garan tido; mas, como Receptividade à norma juridica de um lado; ação elo juízo para inscrever es
os Estados são por definição soberanos, o principio de igual dependência em sas normas em uin material natural e humano que lhe resiste; os dois primeiros
relação ao poder comum, que constituía o segundo principio da república, não momentos da técnica política são da competência de todo homem, e mais ainda,
pode aqui ser exigido. Um Estado dos Estados é uma con tradição, somen te certamente, elos homens ele Estado Mas a classe dos filósofos, à margem dessa
uma federação dos povos pode ser imaginada. Essa situação não é ideal: uma atividade, r eceberá uma f unção singular, ao mesmo tempo critica e ativa
au tên tica civilização in ternacional exigiria sem dúvida uma unidade politica
real Mas os povos tiram, ao mesmo tempo, toda a sua majestade de sua so
berania E n tretan to, nada se perdeu Com efeito, mesmo quando os se en A filosofia em atas·
con tram em relações confli tan tes e violen tas, todos, ao menos verbalmente, função critica e função política
prestam homenagens ao direito, por exemplo instaurando um direito de guer
ra que poderia parecer absurdo Essa persistência da referência ao direito no Kan t define o papel da filosofia em relação à política em um anexo de Rumo à
próprio âmago dos problemas mais graves é, para Kan t, o sinal de uma "dis paz per pétua , que é, além ele tudo, um artigo secreto, quer dizer, um artigo cujo
7
posição moraP " no homem que é, ao mesmo tempo, urn motivo para esperar au tor considera delicado para sua dignidade declarar publicamente a autoria
a paz Os Estados, como entes soberanos, não podem resolver suas questões Kant afirma ser um dever para o Estado armado e pron to para a guerra consul
peran te um tribunal real; para isso seria preciso pressupor um poder superior tar as máximas dos filósofos Estes adquirem, pois, no seio do Estado uma fun
O único terreno efetivo para expressar suas queixas reciprocas é o campo de ção ele critica e de conselho indispensável ao Estado, sem que este estabeleça
batalha Mas o resultado da guerra não pode então ser outro senão um tratado formalmen te o dir eito da filosofia . Consultado em segredo, o filósofo pode falar
de paz, que faz cessar as hostilidades, sem todavia instaurar uma paz durável livre e publicamente O problema é que não é o único a dar sua opinião, e tem
A razão que formula aqui o impera tivo categórico do direito exige, todavia, a dian te de si a classe dos juristas Todas as condições do confli to ai se encon
paz Ela faz da insti tuição de uma aliança pacifica um dever para os Estados, tram: seu objeto é a politica, definida como Idéia do direito, o litigio consiste
aqui em saber quem, o filósofo ou o jurista, tem o direito de dizer o direito do
direito, quer dizer, a política a priori A filosofia encontra-se assim e1n uma nova
36 Humo à paz perpetua , AK V!ll, 351; P !li, p 342
37 !bid . AK VIII. 355; P Ili, p 341
193
..
1 Compreender . O arquipélago da politica
disputa, que não pode ser resolvida pelo Estado, uma vez que este não deve necessário que a U niversidade compreenda uma faculdade que seja, por um
dar preferência nem ao filósofo nem ao jurista, mas apenas escutar o filósofo lado, "independen te das ordens do governo"41 e, de outro, livre "não para dar
A filosofia deve então assumir seu estatu to critico e problemático compensan ordens, mas para julgá-las" 41: sem essa liberdade da filosofia, não haveria
do as insuficiências do direito e buscando melhorar as leis que os juristas se mais verdade ou justiça
contentam em aplicar A questão encontra aqui uma saída aceitável pelos dois Embora as faculdades superiores extraiam sua autoridade de escri tos e
protagonistas não por sua resolução, mas pelo deslocamento da política -seu de estatutos arbitrários - o teólogo, da Bíblia; o jurista, do direito civil; o
objeto -em duas partes: uma racional, objeto do filósofo; outra pragmática, médico, da legislação médica -, a filosofia é a voz livre do homem, a úni
objeto do jurista; de um lado, os principias do filósofo, do outro as sentenças ca faculdade que não tem outro guia senão a razão Kan t dá à filosofia um
do jurista'" A tarefa da filosofia será tão mais urgen te quanto os juristas não caráter extremamente ameaçador para as outras faculdades, pois seus "livres
fo rem sequer dignos dos símbolos que se der am -a balança e a espada -e raciocín ios"" as despojam de todo prestigio e, portanto, de todo poder efetivo;
abu sarem da segunda, colocando-a na balança quando puder em auferir a filosofia talvez não seja perigosa, mas seu papel critico pode, todavia, ser
beneficias O filósofo tem, então, o papel de restabelecer o equilíbrio muito desagradável para toda falsa autoridade, e é melhor "ter a gen tileza de
contrabalançando a tentação do jurista -dar primazia à espada sobre a mantê-la a uma respeitosa distância"1111
balança -por um esforço inverso, recriando assim as condições de um direito Qual é, então, a relação entre essa faculdade de crítica e a faculdade de
justo A filosofia, na medi da em que tem como objeto o núcleo a priori do direito que com ela partilha o objeto político? As duas faculdades adotam um
direito, continua a ser a única garantia de sua pur eza e de sua justa aplicação, ponto de vista absolutamen te diferen te: o jurista, cuja pr eocupação é a apli
motivo pelo qual o Estado tem todo o interesse em ouvir os filósofos, uma cação do dir eito, "busca leis que garantam o meu e o te u, não de acordo com
classe que talvez incomode, mas que jamais é verdadeiramente perigosa, pois sua razão, mas segundo o código pu blicamen te proclamado e sancionado pela
é incapaz, segundo sua natureza, de associar-se em hordas e clubes'º Tudo iria autoridade suprema"45 O filósofo, ao contrário, estabelece a propriedade a
bem nas relações tripartites entre Estado, os juristas e os filósofos se cada um partir de determinações ideais-racionais, como a Idéia de uma propriedade
se contentasse em reinar em seus dominios, cm suas respectivas partes do originária do solo e a Idéia de Estado Acerca de um único e mesmo objeto,
território m que seus conceitos são lei: para o filósofo, os princípios do o primeiro aplica a lei instituida, o segundo a instituiu idealmente l(an t não
direito; para os juristas, sua aplicação; para 0 legislador, a unidade dos diz o que o jurista deveria se i n terrogar acerca da moralidade dessas leis: não
principias e das sentenças Mas esse não é o caso, e a filosofia, submetida é esse o seu papel, pois é funcionário do Estado e não pode questionar a lei O
aos poderes combinados dos juristas e dos teólogos, enfrenta as maiores jurista nada tem a ver com o terri tório da r azão, e somen te a filosofia tem o
dificuldades do mundo para se fazer respeitar direito e o dever de refletir sobre a jurídicidade das leis, como o próprio Kant
A questão é grave: se o dir eito da filosofia é desprezado, não há mais a faz em Doutrina do direito, sem ter que refletir em sua aplicabilidade, sem ne
política, e restam apenas a obrigação estrita e a prudência política, que, como nhuma preocupação, pois este não é seu problema As terras da filosofia estão
vimos, não bastam para assegurar a sobr evivência do Estado Ela é tão grave submetidas à exclusiva legislação da razão, o que assegura a seu exercício uma
que Kant lhe consagra o conjun to do Conflito das faculdades, cujo objetivo liberdade total O governo tem, ademais, in teresse em conceder à filosofia tal
é estabelecer o lugar institucional da filosofia a fim de salvaguardar a poder, na verdade exorbitan te, a menos -afirma Kan t -que aja de modo
plenitude de sua liberdade de palavr a e de ação contrário a seu fim especifico e essencial; a autoridade pública pode, efetiva-
A defesa estatutária da faculdade de filosofia se impõe ao mesmo tempo
ao filósofo, como defesa de seu direito, e ao governante, como aquilo que 41 O conito das faculdades AI( VII, 19; P Ili. p 816
pode assegur ar a validade jurídica das leis em que se apóia Assim, é 42 lbid . AK VII. 19: P II. p 816
43 lbid
absolutamente
44 lbid
45 lbid , AK Vil. 25; P lll. p 822
194
Compreender
mente, não buscar a verdade, mas se sua finalidade é adm inistrar o direito
Conclusão
segundo a norma r epublicana, e esse d eve ser seu fim, está obrigada a deixar a
verdade se expressar em toda a sua exigência
A filosofia é, no âmbi to do Estado, i nstância crítica que o próprio Estado
torna passivei em vista de sua própria justiça, rnesmo que sofra m ui tas vezes
com seus julgamen tos A liberdade da faculdade inferior é às vezes difícil de
o dever de
suportar pelas faculdades superiores, mas na medida em que a filosofia não filosofar
defende a ou t1a coisa que a razão elas tem, a longo prazo, in teresse em escu tá
la . Se não foi suprim ido, o confli to entre a filosofia e o direito parece estar
domi nado pela tolerância do direito em relação à filosofia Infeliz men te, as
faculdades superiores não ren unciam facilmen te à sua pretensão de domin io:
a filosofia não deve, pois, cessar de defender a verdade, nem tolerar acordos
amigáveis'", mas jLtlgar, legislar como mestre de verdade, sem dar atenção ao
povo e à sua vaidade, nem aos jogos de poder que regem as faculdades supe
riores A regra da filosofia é a in transigência absoluta: como não pode se con
ciliar com quem quer que seja, ela é claramente destinada a um pa pel cri tico
em relação ao próprio governo e a ser a má consciência do Estado e de todos
os poderes O conflito não pode cessar e jamais cessará na medida em que o
filósofo assumi r com coragem seu papel polí tico de con testação do poder Esse
trabalho permi te man ter aberto, nas instituições, o espaço de uma referência
à Idéia do direi to; ele manifesta concretamen te o que pode ser a reflexão polí
tica ou a faculdade de julgar no campo polí tico
O edifício do pensamento kantiano é tão complexo, a diversidade de suas te
ses tão vertiginosa, que uma conclusão ern forma de síntese não tem nenhum
sentido Gostariam os sin1plesmente de in::;istir et n dui::; a::;pec tos
funda1nentais desse pensamen to, que já encontramos no inicio de nossa leitura
A filosofia crítica é uma filosofia da filosofia: ela não pode evoluir senão ao
supor uma pre disposição do homem à racionalidade e à metafísica, que
literalmente o obriga a não se contentar com o mundo que o cerca Esse desejo
metafísico justifica a necessidade de uma crítica da r azão teórica, que não
responderia a nenhuma função se o homem fosse naturalmente capaz de um
pensamento limitado Ele nos permite entender a singularidade da moral kan
tiana, que inscreve no co ração do homem uma lei, recebida no respeito, lei da
razão que deve ouvir, caso não a escute verdadeiramente Um mesmo desejo
suscita o exercicio do juizo reflexivo, que terá que julgar as relações complexas
entre a razão, o entendi men to e a imaginação Finalmente, podemos considerar
que a filosofia política de Kan t não é possível senão por uma suscetibilidade à
46 Cf ibid . AK VII. 33; P lll, p 833
idéia racional do direi to, que somen te urna disposição inicial à razão permite
entender
196
197
1
Compreender
O dever de filosofar
199
Compreender
Textos de Kant e tr
aduções
As traduções a seguir também são úteis, seja porque não aparecem na Biblio
thêque de la Pléiade, seja pela qualidade de seu aparato critico:
201
200
J
n
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tecipação
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An
75
127
1
204
Belo 9 19 148-152. 154-159. 161
169
Bem 90 102-107 109 111 116
119-121 126-130 132 134 13 7
138 149 154 155 161 168 184
Cam po 9. 12 13 16 18-20 22 23
25-32 3 7 40. 42 48 74. 82 86 94
95 108. 109. 117 119. 126. 130 139
141143 146-148 157 159. 160.
162. 163 171-173. 181 185 189
190 192. 196 199
Ca tegorias 51-53 58-62. 64. 70-72.
76.
77 155
Ca usalidade 21 22 52. 53. 63. 65-67
78-80 91. 92. 108. 12 7. 155. 164
Coisa em si 79 181
!
indice
Compreender
Conceito 12 13. 16 17 19. 21-24 26- 77 80 82 106-108. 142 143. 146 Fim 9 11. 12. 16. 19 20. 22 24. 27. Idéias 9. 11 12. 19 29 35 60. 68
31 34 36. 38-59 61-70. 72-78. 80-83 14 7 149-153. 155. 156. 158. 159 28 33 41 42. 48. 69 81. 83 86. 70- 72. 74. 75. II 81 82.
87-93 97 99-106. 108. 111 113- 163-165. 175 188 197 98 102-104 107. 108 110 111
99 120. 133.
125. 121 137. 153 160-162.
116
118-129 131 132. 134 135 137. Espaço 12 13. 20-23 26. 27. 29 30 35.41 113-116 121. 122. 124 130 150 168.
179 199
138 143 144-148 150-157. 160 44-47 52 54 61. 66. 68 77 79. 95. 101 163. 165-168. 172. 175. 178. 186 In teresse 16. 19-22. 29. 32. 51
163 164 166. 168. 169 175-178 119. 122. 139 145-14 7 156. 196 200 67
194-196, 199 78-80. 86. 117. 12 7. 149. 153
180·182 184-187 193194 199 Espirita lQ.J.3. 20. 23 24 2 7-29 32 34 155
Finalidade 1112. 17 18. 20 99. 110 180, 194-196 202
Consciência 9.13 li31. 32. 51. 55 57- 43 46-50. 56. 5 7. 69 71-73 75 77 134 144-146. 148. 150 151. 153- Intuição 22. 29 39 42. 44-49. 52-54
60. 81 86. 94. 95. 106 114. 115. 119 155 157-159 163-166 168. 172. 56 53.50 62. 64 65 67. 70. 72
68 76. 85-87 89 90. 93-9 7101 102 120 126. 152 153 156. 158·162. 173. 175. 177 191.196 75. 76 78 79. 81 82 90. 96 106.
106. 109 111 112. 115. 117126 164. 178. 179. 190. 191 Formas ela intuição 64 118. 155
129.
Esquema 62-64 82 118 155 180 Fundamento 17 19 23. 26. 29 34 5 7
131.138. 150 153. 184 196 199
Estado 29. 39. 68 92. 95. 149. 155. 61. 66. 78·80 88 89. 93. 99. 104 Juízo analitico 42. 64 124
Cultura 19. 24 162. 166-168 178 179. 177 111. Juízo determinante 145, 180
190. 199 180-182 186-196 112. 116-119. 122. 135. 144. 1';7 Juízo estético 10. 28. 142. 144 147
Estético 10 19 28. 115 117-119. 132 151.165. 171172. 176. 188
Dedução transcendental 53-55. 59. 60
Deus 10-12. 22 25 34 75. 78. 80-82 142-144 146-148 151-153. 155 148 151 152 155. 158. 162
119-139. 165 168. 169 157 158. 162. 171182. 185 Gosto 25. 35. 50. 69. 144. 149. 151- 171
Juízo reflexivo 108. 145-147. 173
Dever 9-12. 17. 20 22. 26. 28 85 87-91. E u 59. 75 76. 86. 89 99. 10 7 124 155
157 176. 182 189.191.197
128.93-99. 103. 104 110-118. 120 121 135 151 Guerra 168. 176. 191-193 Juizo sintético 41. 42 64. 74. 124
127-137. 139 167. 176 177 183- Justiça 168. 178 190 195. 196
186. 189-193 195. 19 7 199 Faculdade de julgar 10. 13. 17-19 26- História 9 10 26. 34-36. 43. 67 82.
Dialé tica 12 24 34. 49. 50 60 61 67 31. 50 61. 62. 72. 94 106. 107 128. 91. 133 166. 16 7. 171-178.
103 126. Lei 9 12. 17. 19-22 27 28. 40-42. 49
69- 73. 80. 82. 94. 95 122. 125 139
141-146. 148 149. 152. 154 181.188. 189 191. 198 5 7 61. 66. 79 82 85-102. 104-
126
151. 154 164 189 155 157.
158 163-169. 173. 185. 190 191. 121
Humanidade 9. 19. 20. 23. 26. 38. 86. 125. 126. 128-139 142. 143.
Dialética transcenden tal 34. 49 50. 60 196
Fé 23. 120 129 133. 138 94. 95. 105, 109-112 114. 116-118 145.
146. 152.156. 158 161. 163-
69- 73 80 82. 122. 154 Felicidade 17 88. 95. 98-100 102- 133. 16 7. 172-175 177-179 187
161. 165. 169 182-184. 186. 190.
167
Direito 11-13. 17. 20. 22. 23. 26. 29- 105.108. 113114. 120. 121 126-129. 195 197 199
31 36. 53 54 71 133 1'35. 149. 151 131 138 157. 166. 16 7 169.
134. Idealismo 67. 68 153 Liberdade 10-12. 20-22. 24-30 40 42
153 16 7-169 17J..173. 176-197 199 11. 21 22 27 30. 34 40
Fenômeno Idéia 22. 31. 39. 42 55. 56. 66. 76-82 78-81 87. 89-93. 95-97. 101.104-
Direito a priori 181 182. 185 44- 4 7 50 54. 56. 57. 59. 61. 63-67 92. 93. 99. 101 103105. 111.112 107 111. 114. 121. 123. 125.
Direi to estr ito 168 184-188. 190 69
75-77 79-81. 91 92. 97. 176 118-126. 130-138 141. 146.149 129.
135. 137 141-143. 152 153.
Dogmatismo 23. li 78. 119 132. Filosofia 9. 10. 1113 15-20. 22 23 150 152. 153. 160-162. 164. 165 167-176 179 183-186 192-196
169
164
Domínio 12. 50 141-143. 145-148 25-35 43. 67 71 74. 77. 82 8385 167-169. 172-176. 178-183 Limite 9 11-13 16. 17. 20-26. 29. 30.
167184. 190 194 196 86
91-97102-104 119. 120. 123 185-197. 199. 200 32. 36. 40. 49. 69- 71. 73 76. 77. 82.
126.
127 129. 132 138. 139. 142 145. Idéia do direito 168.179 186 188. 192 83, 96 111112 114.118,
85.
Entendimento 11. 21. 2 7-30. 37 39. 121.122.
147. 153. 169 171-173. 182 185. 189 193 196 127. 130-132, 134. 135 138.
40 44. 46 48-56 58-65. 69-71 73. 74. 152.
190. 193-200 Idéia do político 188. 190. 191 156. 159. 16 7. 185
206 207
Compreender Índice
Lógica 16-18. 21. 26. 34 37 39 48-51 104 106. 126-131133. 134. 142. 162 166. 16 7 169 172 177. 60-63 65-68. 72. 73 77. 79 80 83.
60 61. 71 73 75 93. 100 123 128 144. 145 152. 153. 164 165. 173 179 193 19 7. 199
190. 86 89. 9193 9 7. 99 100 104
87.
143 159 164 177 176. 179. 180. 190 191. 198 199 Revolução 10 33. 38. 39 55. 151 106
111-113. 115. 119. 120 125.
Luzes
13035
13436 173. 198 Politica 1326. 103 168 169 171-173. 178- 145 14 7. 152-154 157 161162
177 180-182 184-194 196-198 180 164 174. 177 178. 180. 182. 183
165
Mal 90. 105 106. 108. 116 184 Postulados 64 6 7 105. 128-130. 136 Sensibilida 20 21 23 30. 34. 44- 186. 188-194 198 199
Matemá tica 30 38 4143 47 52 53 Principias 9-11. 15. 19. 20. 25-27. 30 32 de 49-51 53-56.
4758-60. 62. 63 69. 70 Teologia 22 75. 86. 125 129. 130
64 67 71 83 86 104. 158. 186 34. 3 7 39. 42. 43 4 7. 49 50 53.55 74. 79. 80 87. 94 97. 106. 109-111 138. 165
Metafisica 10-13. 16-26. 29-32 34. 37- 57-62. 64-67. 70 73 7477 80-82. 113 146 153. 155 158. 173 180 Terri tório 13 28. 38 141 142. 146
43 45 46. 71. 72. 76 82. 86. 87. 9194- 86-89. 91-100 102-104 107 112- 181 190 191 199 194 195
96
101. 103. 107 110 112 113115 122 124 125 127. 128. 130-133 Simbolo 154 155 180. 194 Transcenden tal 16-18. 24-26 29. 33
117-119. 121 123 172. 182 187. 137 141-143 146-149. 151 163- Sintese 12. 41 42 51. 52 55-60 70 74. 36. 42-4 7. 49-51. 53-60 63 64. 68-76
197
Moral 9. 10. 12 H 17-23 28 29. 31 32 166 168 169 171. 172. 174 178 75 77. 126. 128 19 7 79-83 87. 89. 92 102. 107. 122 126
54. 72. 74. 79. 85-122. 125-139 155 182 183 186. 187. 190 192-194 Sublime 19 96 148 151. 155-162. 169. 131 138. 146-148 154. 156 162
160-162. 16 7-169 171. 172. 178 Prova 3134. 53. 81. 83 90. 100. 119 180. 181. 191 180. 199
179-192 197-199 120. 122-125. 128 133 154 165 Sujeito 19 4143-47 59. 6163 74-77 Irnnscendente 72-74 86
Moralidade 87. 94. 95. 98-100. 103. 104 169. 180. 188 80. 87. 92 101.105 108. 113. 123
106. 107. 109. 110 112. 115. 116 134. 138. 146. 150 152. 160. 180 Universal 25. 43. 5 7 60 63 64 66 86. 89
118-121. 127. 134. 137. 166-169. Razão 9-13 16-3 7 39. 40. 42.44 Supra-sensivel 20. 21 23-25. 27. 28. 99 100 106. 107 115. 116. 126 132
172
177. 180. 183 186 188 190 195 4 7-49 55 58 61 66-83. 86-114. 116- 72 106-108 111121 128. 132.
145. 149 150 152-154 16 7. 171-176
119 121 122. 125-139. 141-143 159-165. 168 169
161
179 180 182-185. 18 7 188. 192 198
Natureza 10 11 13 16-19 24 27-30. 145-14 7. 150-156. 158-164. 166-169
34 171-177 180-182. 185. 186. 189-
35. 38-42. 47-50 61. 63 65. 66 68 69 I'eleologia 29 145-14 7 163 165 168
Verdade 1112. 16. 21 31. 38. 49 54
71 72 74 77-80. 82 87 89-92 99 192 195-197. 199 169 176
61-64 66 69 70 75 85 86. 91 96
100 102 106-108. 111.114. 118. 125. Reflexão 11. 13 15. 18 22. 25. 26 29-31 Tempo 9. 10. 12 18. 20. 21 23 31
100 101. 106 112. 116 128. 154
127-129 131134-139. 141-144. 50. 60. 79. 85 86 96. 102 108. 122 33.35 3 7 39. 4145-47 49. 52. 54 174-176. 195
146
148. 149. 153. 154. 15 /.169. 141 145-148 151 152 155 164 196
172-178
182. 183. 190. 194. 198 165 168 169 171 173. 190. 191
N ecessidade 20 22-25 28. 29. 37 40 46 196 198 200
50. 52. 56 67 68. 72 78 79 87 88. Religião 17 18 80. 96 106. 111112. 115.
91
95. 96. 98-100 108. 109 118 120- 119-122 129-135. 137-139 167. 177
123
128. 134-138 142 156 189 191 República 168. 176-178. 180-182
197
188-192
Paz 172 173 175-177 180. 187. 188 Respei to 15. 17-19 27. 32. 34 39-41
191-193 49. 71. 72. 78. 86 87. 90. 96 98.
Pensar 10 12 17. 23-25. 28. 30. 32. 106
109-112. 115-118 125 126 130
38. 44 48 54 59 60. 66. 77. 82. 89. 97 132. 136 137 153 154. 157
161
208
209