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Gottlob Frege, O Pensamento – uma investigação lógica.

(Der Gedanke – eine logische


Untersuchung, 1918). Trad. Claudio F. Costa, 1999.

DOIS INDIVÍDUOS PODEM TER ACESSO AO MESMO OBJETO?

1. O contexto do problema e sua colocação (p. 58-66)

Frege considera as leis do ser-verdadeiro (Wahrsein) como a ocupação da lógica. “Lei”


é aqui compreendida mais no sentido da necessidade que caracteriza as leis da natureza do que
no sentido das leis morais, com as quais os acontecimentos nem sempre convém. Por outro
lado, a verdade não convém ao que acontece, mas ao que é. Ainda assim, as leis do ser-
verdadeiro prescrevem um acontecer, qual seja, o tomar algo por verdadeiro (Fürwahrhalten),
podendo por isso ser denominadas “leis do pensamento”. O acontecer determinado pelas leis
do pensamento não é idêntico ao acontecer prescrito pelas leis da natureza, o que importa para
distinguir o pensamento de um mero processo anímico, regido por leis psicológicas, no qual é
sempre possível que o tomar algo por verdadeiro seja determinado por um componente não-
lógico. Não é do tomar algo por verdadeiro assim descrito que aqui se trata, mas do ser-
verdadeiro.
A verdade é a finalidade da ciência. Se empregamos como uma propriedade
(Eigenschaftswort) de algo visível e tocável, está claro que não é em virtude daquilo que nele
há de visível e tocável que a verdade lhe convém. Predicamos verdade de figuras,
representações, frases e pensamentos. À figura e à representação a verdade convém em virtude
da intenção (Absicht), pela qual se estabelece uma relação de correspondência entre o sujeito e
o objeto da intenção. Assim, verdade é tomada como termo relacional (Beziehungswort).
Entretanto, a verdade como ser-verdadeiro não pode designar uma relação, dado que neste caso
o ser-verdadeiro só seria possível se o sujeito e o objeto coincidissem completamente, o que
justamente é necessário evitar, para que seja mantida a relação de correspondência, entre uma
igura ou representação e o “que” do movimento relacional. Do dito se conclui que não é às
figuras ou às representações que o ser-verdadeiro originariamente convém. Aquilo que há de
verdadeiro nas figuras e representações reduz-se simplesmente à verdade de uma frase.
A intenção é o expresso na frase. Na intenção se fundamenta a relação entre uma figura
ou representação e o algo a que correspondem. No entanto, não é àquilo que na frase constitui
algo meramente audível que a verdade convém. A intenção reside no sentido da frase, o qual
será doravante denominado pensamento (Gedank), o depositário da verdade: “o pensamento,
que em si mesmo é não-sensível, veste-se com a roupagem sensível da frase, tornando-se assim
apreensível para nós. Dizemos que uma frase expressa um pensamento” (p. 61).
Há tipos diferentes de frase: imperativas, exclamativas, assertivas e interrogativas.
Apenas por meio de asserções é possível expressar pensamentos. Quanto às frases
interrogativas, entretanto, cumpre notar que não possuem sentido completo as que são
introduzidas por pronome interrogativo. Mas há aquelas frases interrogativas às quais
correspondem asserções, às quais respondemos simplesmente “sim” ou “não”. A esse segundo
tipo de frases interrogativas, no entanto, falta a asserção, assim como às asserções falta a
convocação. Diferenciando-se nisto, a frase interrogativa e a assertiva que lhe corresponde
possuem em comum o conteúdo, o sentido expresso na frase, do qual a verdade originariamente
convém. Assim, na expressão do pensamento, o asserir (manifestação do juízo) é precedido,
nesta ordem, pelo pensar (apreensão do pensamento) e pelo julgar (reconhecimento da verdade
do pensamento). “Mesmo naquilo que se apresenta sob a forma de uma frase assertórica, pode
ser sempre questionado se contém uma asserção” (p. 63). A assunção da forma assertiva é
posterior à sua expressão, donde residir propriamente a verdade na forma assertórica.

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O conteúdo da frase assertórica não coincide, pura e simplesmente, com o pensamento.
O conteúdo pode ir além do pensamento expresso na frase, como é o caso, por exemplo, dos
artifícios da linguagem poética e do emprego de sugestões discursivas na linguagem cotidiana
que, ainda que não sejam de todo inócuas, nada alteram quanto à verdade. O conteúdo também
pode ficar aquém da expressão do pensamento como, por exemplo, no caso do emprego do
tempo presente, tanto para fazer uma indicação, quanto para suprimir qualquer indicação
temporal, ou como nos casos em que se emprega o pronome “eu” que, expresso por diferentes
seres humanos, irá exprimir pensamentos diferentes. Também aos nomes próprios
correspondem diversas possibilidades de modos de apresentação da coisa designada, portanto,
diversos pensamentos que, não obstante, devem concordar entre si quanto ao valor-de-verdade.
A partir disso surge o problema que constitui propriamente o tema do questionamento.
A introdução da última diferenciação, entre frase assertórica e pensamento, permite perceber
que até aqui se pressupôs que, em uma mesma asserção, dois indivíduos distintos apreendem o
mesmo pensamento. Mas pode ser que não seja o caso. “Cada um de nós é apresentado a si
mesmo de um modo especial e originário, pelo qual não se é apresentado a mais ninguém” (p.
66). No emprego do pronome “eu”, por exemplo, surge a possibilidade de que para cada um
dos indivíduos o sentido seja algo completamente diferente daquilo que é para o outro. Em
última instância, esta mesma dúvida pode ser estendida a todos os enunciados assertóricos,
donde resultaria uma impossibilidade de que dois indivíduos captassem o mesmo objeto.
Coloca-se então a questão: “É realmente o mesmo pensamento, aquele que aquele homem
primeiro expressou, e que agora esse outro expressa? ” (p. 66).
É possível que tenhamos acesso aos mesmos objetos sensíveis. Assim é que podemos
aplicar a mesma denominação a objetos idênticos. Mas, assim como os objetos sensíveis
existem no mundo externo, os pensamentos poderiam ser simplesmente representações
(Vorstellungen), conteúdos do mundo interno inapreensíveis a qualquer indivíduo que não seja
seu portador. O problema a ser investigado pode, portanto, ser enunciado nos seguintes termos:
da mesma forma que dois indivíduos podem ter acesso ao mesmo objeto externo, será possível
que acessem os mesmos pensamentos? A investigação começa por distinguir entre objeto
externo, representação e pensamento.

2. O terceiro reino (drittes Reich): a distinção entre objeto externo, representação e


pensamento (p. 66-69)

Como se mostrou a possibilidade de que os pensamentos em nada sejam distintos de


representações, como conteúdos do mundo interno. A única distinção que ainda se mantém é
aquela entre os conteúdos do mundo interno (doravante simplesmente referidos como
“representações”) e os objetos do mundo externo. Frege apresenta então quatro distinções entre
os objetos externos e as representações: 1) os objetos do mundo externo podem ser percebidos
pelos sentidos, as representações não; 2) os objetos externos transcendem à consciência; as
representações constituem o conteúdo da consciência (Bewusstseinsinhalte); 3) os objetos
externos são autossuficientes se comparados às representações que, por serem conteúdos da
consciência, necessitam de um portador (Träger); 4) os objetos externos podem ser percebidos
por muitos indivíduos, mas não é possível que mais de um indivíduo tenha a mesma
representação, toda representação possui um único portador.
A seguir demonstra-se que pensamentos não são representações mostrando os absurdos
que decorriam da identificação dos pensamentos com o conteúdo do mundo interno. Se os
pensamentos fossem representações então eles pertenceriam a um único portador, não havendo
assim ciência comum a muitos, já que cada um teria acesso apenas ao conteúdo de sua própria
consciência. O verdadeiro seria mera opinião que não diria respeito a ninguém mais além de
seu portador. Nestas circunstâncias, se eu comunicasse a outro indivíduo a minha opinião

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segundo a qual pensamentos não são representações, ele nada poderia objetar. Assim, Frege
conclui, “os pensamentos não são nem coisas do mundo exterior nem representações” (p. 69).
Estabelecida a distinção entre objetos externos, representações e pensamentos, Frege
demonstra que estes últimos constituem um terceiro reino (drittes Reich), o dos pensamentos,
que se assemelha ao das representações, porque os pensamentos não são objeto de percepção
sensível, assemelhando-se também, por outro lado, aos objetos externos, por existirem
independentemente de portador. Assim, o reino dos objetos é objetivo e real, o das
representações é subjetivo e real e o dos pensamentos é objetivo e não-real. Para efeito desta
classificação, o critério de objetividade é a possibilidade de acesso intersubjetivo e o de
realidade é a possibilidade constatação espaço-temporal.

3. A demonstração da existência de objetos comuns (p. 69-73)

No entanto, anuncia-se ainda uma objeção, contra a possibilidade que constitui o


referente da questão que foi posta inicialmente, qual seja, a de que dois indivíduos captem o
mesmo pensamento. À distinção entre representações e pensamentos poder-se-ia objetar que a
existência do objeto externo é ilusória e que cada qual só teria acesso às suas próprias
representações. Em última instância, a existência de um objeto externo seria indiferente, porque
cada um teria acesso apenas às suas próprias representações. “Nesse caso eu teria somente o
meu mundo interior e nada saberia de outros homens” (p. 70). Frege então deriva as
consequências desta tese notando que “no curso de tais considerações os opostos se convertem
um no outro” (p. 70).
Frege começa por considerar a posição do “fisiologista dos sentidos”, para o qual o
objeto externo constitui, através das impressões sensíveis, o testemunho mais confiável das
coisas. Para ele o objeto externo está, portanto, distante de ser uma representação. No entanto,
o objeto externo não é o que propriamente vivenciamos, senão a sua manifestação na
consciência. “Se chamamos àquilo que emerge em nossa consciência de representação, então
vivenciamos propriamente apenas representações, mas não as suas causas” (p. 71). Assim, os
objetos se convertem em representações. Entretanto, esta é apenas a primeira parte do processo.
Não sendo o objeto nada mais que representação, o eu também se dissolve, não podendo ser
distinguido das representações. Mas, se o eu é uma representação, então as representações não
são tidas por nenhum portador. E assim se dá a conversão ao oposto: “Se não há nenhum
portador as representações, então não há nenhuma representação; pois representações precisam
de um portador, sem o qual elas não podem subsistir” (p. 72). Não havendo um portador das
representações, elas se convertem novamente em objetos autossuficientes, e a tese na qual se
baseia a possível objeção ao acesso de um indivíduo a algo que não seja sua representação é
levada a afirmar o que pretendia negar.
A consequência da dissolução do eu nas representações é absurda: não podem haver
vivências se não houver aquele que as vivencia. Ao contrário, o eu pode ser tomado como objeto
pela consciência sem que seja uma representação sua. Pode ser que ao eu esteja associada uma
representação, mas neste caso ela será apenas uma dentre outras representações cujo portador
é o eu, que não pode ser concebido como uma representação. Disto decorre a primeira
conclusão: “É portanto falso o princípio segundo o qual só pode ser objeto de minha
consideração, de meu pensamento, o que pertence ao conteúdo de minha consciência” (p. 72).
Por analogia, Frege demonstra ainda a existência de um outro homem que seja, como
eu, portador autossuficiente de suas próprias representações, do qual eu tenho uma
representação, mas com a qual ele não se confunde, assim como eu não me confundo com a
representação que tenho de mim mesmo. Um médico luta por extinguir não sua representação
da dor do paciente, mas a própria dor. Este médico pode comunicar sua representação a um
outro e, neste caso, ambos têm como objeto comum uma representação, a saber, da dor do

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paciente, que não se confundo com a própria dor. Assim, dois indivíduos podem não apenas ter
como objeto comum uma coisa, como também uma representação.
O homem possui um mundo interior (Innenwelt), cujos conteúdos são suas
representações, e possui também um mundo circundante (Umwelt), por meio do qual pode
tornar-se objeto de sua consciência algo do qual ele não é portador. A possibilidade do engano
não contraria, para Frege, o acesso da consciência ao mundo circundante. A dúvida é um
fenômeno constitutivo do mundo exterior. “Não obstante, a probabilidade é aqui e em muitos
casos dificilmente diferençável da certeza, tanto que podemos ousar julgar sobre as coisas do
mundo exterior. E precisamos ousar, mesmo sob o perigo do erro, se não quisermos sucumbir
a perigos muito maiores” (p. 73).
Frege conseguiu estabelecer um argumento que refuta o princípio segundo o qual só
temos acesso a nossas próprias representações. Na argumentação contra a impossibilidade de
acesso a objetos comuns, por outro lado, ele recorre à probabilidade, ousando, como afirmou
acima ser preciso, julgar como certa esta probabilidade de que “nada me impede agora de
reconhecer outros homens como portadores de representações, à semelhança de mim mesmo”
(p. 73). A força das produções humanas reforça a certeza nesta probabilidade.

4. Uma breve teoria do conhecimento (p. 74-77)

Não temos pensamentos do mesmo modo que temos representações, embora em ambos
os casos estejamos nos referindo à fenômenos da consciência. As representações são produções
da consciência, os pensamentos não. Ao modo como captamos pensamentos, Frege denomina
apreender (fassen). A faculdade de apreender pensamentos é o “poder de pensar” (Denkkraft).
Os fatos (Tatsachen) buscados pelo cientista da natureza nada mais são que pensamento
verdadeiros. Se tudo fosse representação, a psicologia conteria todas as ciências, inclusive a
lógica e a matemática, o que não poderia ser mais contraditório com a natureza dessas ciências
que, “quando muito, tratam da mente, não das mentes” (p. 74). O ser pensante é portador do
pensar, não do pensamento.
Não é possível ter acesso ao objeto externo apenas através da percepção sensível, uma
vez que as percepções tidas por dois indivíduos distintos podem, quando muito, ser
semelhantes, jamais idênticas. Se só tivéssemos acesso às percepções sensíveis não haveria
acesso ao mundo externo. “Ter impressões visuais é de fato necessário para se verem as coisas,
mas não é suficiente. O que ainda precisa ser adicionado nada tem de sensível. E isso é
exatamente o que nos descerra o mundo exterior; pois sem esse algo não-sensível, cada qual
permaneceria fechado em seu mundo interior” (p. 75). O mundo exterior não é, portanto,
composto apenas por objetos externos, mas também por pensamentos.
Resistimos a denominar real a algo como pensamentos. De fato, o real (wirklich) está
submetido à causação (wirken), enquanto que há pensamentos que aparentemente são
imutáveis, como o teorema de Pitágoras, por exemplo. Não obstante, há pensamentos mutáveis,
que agora são verdadeiros e em outro momento já não mais o são. Na verdade, pensamentos
não são mutáveis nem imutáveis, mas atemporais, de modo que, para que a frase tenha sentido
completo se faz necessária a determinação temporal. “O praesens em ‘é verdade’ não indica,
pois, a atualidade do falante, mas é, se a expressão é permitida, um tempus da atemporalidade
(Urzeitlichkeit) ” (p. 76). Na frase assertiva, a determinação do tempo pertence apenas à
expressão o pensamento, enquanto que a verdade atemporal. A determinação temporal é um
caráter inessencial do pensamento, porque se deve apenas ao fato de que o pensamento é
apreendido. O pensamento age porque a ação do homem é mediada por pensamentos. Os
pensamentos são, neste sentido, reais, porque capazes de produzir efeitos.

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