1
O conteúdo da frase assertórica não coincide, pura e simplesmente, com o pensamento.
O conteúdo pode ir além do pensamento expresso na frase, como é o caso, por exemplo, dos
artifícios da linguagem poética e do emprego de sugestões discursivas na linguagem cotidiana
que, ainda que não sejam de todo inócuas, nada alteram quanto à verdade. O conteúdo também
pode ficar aquém da expressão do pensamento como, por exemplo, no caso do emprego do
tempo presente, tanto para fazer uma indicação, quanto para suprimir qualquer indicação
temporal, ou como nos casos em que se emprega o pronome “eu” que, expresso por diferentes
seres humanos, irá exprimir pensamentos diferentes. Também aos nomes próprios
correspondem diversas possibilidades de modos de apresentação da coisa designada, portanto,
diversos pensamentos que, não obstante, devem concordar entre si quanto ao valor-de-verdade.
A partir disso surge o problema que constitui propriamente o tema do questionamento.
A introdução da última diferenciação, entre frase assertórica e pensamento, permite perceber
que até aqui se pressupôs que, em uma mesma asserção, dois indivíduos distintos apreendem o
mesmo pensamento. Mas pode ser que não seja o caso. “Cada um de nós é apresentado a si
mesmo de um modo especial e originário, pelo qual não se é apresentado a mais ninguém” (p.
66). No emprego do pronome “eu”, por exemplo, surge a possibilidade de que para cada um
dos indivíduos o sentido seja algo completamente diferente daquilo que é para o outro. Em
última instância, esta mesma dúvida pode ser estendida a todos os enunciados assertóricos,
donde resultaria uma impossibilidade de que dois indivíduos captassem o mesmo objeto.
Coloca-se então a questão: “É realmente o mesmo pensamento, aquele que aquele homem
primeiro expressou, e que agora esse outro expressa? ” (p. 66).
É possível que tenhamos acesso aos mesmos objetos sensíveis. Assim é que podemos
aplicar a mesma denominação a objetos idênticos. Mas, assim como os objetos sensíveis
existem no mundo externo, os pensamentos poderiam ser simplesmente representações
(Vorstellungen), conteúdos do mundo interno inapreensíveis a qualquer indivíduo que não seja
seu portador. O problema a ser investigado pode, portanto, ser enunciado nos seguintes termos:
da mesma forma que dois indivíduos podem ter acesso ao mesmo objeto externo, será possível
que acessem os mesmos pensamentos? A investigação começa por distinguir entre objeto
externo, representação e pensamento.
2
segundo a qual pensamentos não são representações, ele nada poderia objetar. Assim, Frege
conclui, “os pensamentos não são nem coisas do mundo exterior nem representações” (p. 69).
Estabelecida a distinção entre objetos externos, representações e pensamentos, Frege
demonstra que estes últimos constituem um terceiro reino (drittes Reich), o dos pensamentos,
que se assemelha ao das representações, porque os pensamentos não são objeto de percepção
sensível, assemelhando-se também, por outro lado, aos objetos externos, por existirem
independentemente de portador. Assim, o reino dos objetos é objetivo e real, o das
representações é subjetivo e real e o dos pensamentos é objetivo e não-real. Para efeito desta
classificação, o critério de objetividade é a possibilidade de acesso intersubjetivo e o de
realidade é a possibilidade constatação espaço-temporal.
3
paciente, que não se confundo com a própria dor. Assim, dois indivíduos podem não apenas ter
como objeto comum uma coisa, como também uma representação.
O homem possui um mundo interior (Innenwelt), cujos conteúdos são suas
representações, e possui também um mundo circundante (Umwelt), por meio do qual pode
tornar-se objeto de sua consciência algo do qual ele não é portador. A possibilidade do engano
não contraria, para Frege, o acesso da consciência ao mundo circundante. A dúvida é um
fenômeno constitutivo do mundo exterior. “Não obstante, a probabilidade é aqui e em muitos
casos dificilmente diferençável da certeza, tanto que podemos ousar julgar sobre as coisas do
mundo exterior. E precisamos ousar, mesmo sob o perigo do erro, se não quisermos sucumbir
a perigos muito maiores” (p. 73).
Frege conseguiu estabelecer um argumento que refuta o princípio segundo o qual só
temos acesso a nossas próprias representações. Na argumentação contra a impossibilidade de
acesso a objetos comuns, por outro lado, ele recorre à probabilidade, ousando, como afirmou
acima ser preciso, julgar como certa esta probabilidade de que “nada me impede agora de
reconhecer outros homens como portadores de representações, à semelhança de mim mesmo”
(p. 73). A força das produções humanas reforça a certeza nesta probabilidade.
Não temos pensamentos do mesmo modo que temos representações, embora em ambos
os casos estejamos nos referindo à fenômenos da consciência. As representações são produções
da consciência, os pensamentos não. Ao modo como captamos pensamentos, Frege denomina
apreender (fassen). A faculdade de apreender pensamentos é o “poder de pensar” (Denkkraft).
Os fatos (Tatsachen) buscados pelo cientista da natureza nada mais são que pensamento
verdadeiros. Se tudo fosse representação, a psicologia conteria todas as ciências, inclusive a
lógica e a matemática, o que não poderia ser mais contraditório com a natureza dessas ciências
que, “quando muito, tratam da mente, não das mentes” (p. 74). O ser pensante é portador do
pensar, não do pensamento.
Não é possível ter acesso ao objeto externo apenas através da percepção sensível, uma
vez que as percepções tidas por dois indivíduos distintos podem, quando muito, ser
semelhantes, jamais idênticas. Se só tivéssemos acesso às percepções sensíveis não haveria
acesso ao mundo externo. “Ter impressões visuais é de fato necessário para se verem as coisas,
mas não é suficiente. O que ainda precisa ser adicionado nada tem de sensível. E isso é
exatamente o que nos descerra o mundo exterior; pois sem esse algo não-sensível, cada qual
permaneceria fechado em seu mundo interior” (p. 75). O mundo exterior não é, portanto,
composto apenas por objetos externos, mas também por pensamentos.
Resistimos a denominar real a algo como pensamentos. De fato, o real (wirklich) está
submetido à causação (wirken), enquanto que há pensamentos que aparentemente são
imutáveis, como o teorema de Pitágoras, por exemplo. Não obstante, há pensamentos mutáveis,
que agora são verdadeiros e em outro momento já não mais o são. Na verdade, pensamentos
não são mutáveis nem imutáveis, mas atemporais, de modo que, para que a frase tenha sentido
completo se faz necessária a determinação temporal. “O praesens em ‘é verdade’ não indica,
pois, a atualidade do falante, mas é, se a expressão é permitida, um tempus da atemporalidade
(Urzeitlichkeit) ” (p. 76). Na frase assertiva, a determinação do tempo pertence apenas à
expressão o pensamento, enquanto que a verdade atemporal. A determinação temporal é um
caráter inessencial do pensamento, porque se deve apenas ao fato de que o pensamento é
apreendido. O pensamento age porque a ação do homem é mediada por pensamentos. Os
pensamentos são, neste sentido, reais, porque capazes de produzir efeitos.