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Público • Sexta-feira 29 Outubro 2010 • 47

A candidatura do poeta político alimenta-se da aliança espúria de dois oportunismos, o de Sócrates e o de Louçã

Terá a esquerda reformista coragem


para se separar, de vez, de Alegre?

O
NUNO FERREIRA SANTOS
nde é que estaria Manuel Alegre, se fosse vai ser indispensável trabalhar mais e ganhar me-
hoje Presidente da República? Talvez ti- nos, vai ser incontornável acabar com o laxismo e
vesse viajado ontem para Londres para a falta de exigência que marcam tantos sectores da
“sensibilizar” as agências de rating, uma vida portuguesa, com destaque para a Educação.
vez que o custo dos juros da nossa dívida Essas mudanças terão sempre a oposição dos revo-
soberana voltou a ultrapassar a fasquia dos 6 por lucionários e dos lunáticos, mas não é certo sequer
cento. Ou talvez não. Talvez tivesse preferido voar que seja possível formar uma coligação alargada de
José antes para Bruxelas, onde, pedindo uns minutos reformistas sensatos. Mais: o bloco de apoio a estas
Manuel a Passos Coelho e outros a José Sócrates, tentaria mudanças não será realizado em primeiro lugar
Fernandes encontrar-se com Angela Merkel entre o almoço e pelos partidos, pois estes estão demasiado com-
Extremo oinjustamente”.
jantar para lhe explicar que “Portugal foi tratado prometidos com o statu quo; tal bloco terá sim de
contaminar os partidos, levando-os a romper os
ocidental Patético, não é? É. Mas foi isto que o poeta can- actuais equilíbrios, feitos de jogos de interesses, de
didato disse, numa entrevista ao Diário de Notícias, distribuição de prebendas e clientelas e de coloniza-
que devia estar a ser feito pelo Presidente da Re- ção de um Estado cada vez mais tentacular.
pública. Uma entrevista tão reveladora que é um O próximo Presidente da República ou compreen-
manifesto a favor da reeleição de Cavaco Silva. Uma de e está em sintonia com o indispensável processo
entrevista que deveria levar a esquerda democráti- de superação da crise, ou colocar-se-á contra ele. É
ca e moderada a cortar de vez amarras com quem por isso que neste momento, como noutros momen-
continua a dar sinais de perigosa alucinação. E de os temas etéreos que aproximam a esquerda alegre tos da democracia portuguesa – a luta pela democra-
desfasamento da realidade. e irresponsável de um certo PS, antes a realidade cia, a construção europeia –, a linha de separação não
Num país onde a dívida externa ultrapassa os 515 pura e dura de como viver num país falido. Nesse passa pelo centro de espectro político, antes pelo
mil milhões de euros (três vezes o PIB) e a dívida pú- debate tudo separa os revolucionários do Bloco dos interior do PS. Manuel Alegre fica do lado de lá dessa
blica os 125 mil milhões, Alegre acha que o mal está que, no PS, ainda têm os pés na terra. linha. Cavaco Silva do lado de cá. Do lado onde está o

N
nos quatro mil milhões do BPN, que por enquanto centro-direita e também começa a estar a esquerda
nem saíram do Orçamento. Após anos de irrespon- o momento que o país atravessa, esta cli- moderada. E uma parte importante do PS.
sável despesismo e défices acumulados, num tempo vagem não é secundária. E não é secun- Não há muito espaço para estados de alma ou
em que Portugal perdeu a capacidade de tomar auto- dária porque vai ser preciso construir divagações estéticas e não perceber como vivemos
nomamente decisões porque não tem dinheiro, isto em Portugal um grande bloco social e de novo um momento de encruzilhada é não per-
é, depois de nos termos colocado numa posição em cultural que apoie as reformas duras e ceber o que vai estar em causa nos próximos anos
que, por estarmos sempre de mão estendida, somos difíceis que nos esperam nos próximos anos – por em Portugal. Manuel Alegre, com a sua entrevista
obrigados a cumprir compromissos de redução da certo em toda a próxima década. Vai ser necessá- ao Diário de Notícias, ajudou a desfazer algumas
despesa, um político que nunca disse uma palavra rio mudar mesmo de vida, vai ser necessário que dúvidas. A previsibilidade da declaração de recan-
sobre a forma desvairada como gastávamos afirma- o Estado e os particulares gastem menos, vai ser didatura de Cavaco Silva também. Afinal quem é
se chocado: “Aqueles que andaram nos campos de preciso mudar a legislação falsamente protectora que deseja, por muito poucos poderes que tenha o
batalha a defender a independência nacional nun- que agrava o desemprego, vai ser urgente conter o Presidente, um inquilino imprevisível em Belém?
ca pensaram que lhes podia aparecer um dia um crescimento imparável do chamado Estado social, Jornalista (twitter.com/jmf1957)
inimigo chamado mercados financeiros.” Inimigo?
Chama-se inimigo a quem nos empresta dinheiro
para levarmos uma vida desvairada? E não será que
só dependemos desses mercados financeiros porque
Não há espaço para Salomão: os vilões da negociação orçamental
não sabemos viver senão a crédito e acima das nos-
sas possibilidades? Alegre devia sabê-lo. E, se não a Houve quem procurasse, num escrever um documento com aquela dez vezes esse valor. É pois muito
o sabia podia, ao menos, tê-lo aprendido, se tives- espúrio exercício de “equilíbrio” extensão não é possível em pouco estranha, e totalmente postiça, a
se lido os discursos onde o actual e “equidistância”, repartir mais de uma hora, o espaço que “inflexibilidade” de um ministro
As mudanças de que Presidente alertou para as conse- salomonicamente em parte mediou entre o fim da reunião face a um défice futuro, quando
quências trágicas do percurso que iguais pelo Governo e pelo PSD e a conferência de imprensa do nos défices passados e presente foi
Portugal precisa terão estávamos a percorrer pela mão do a responsabilidade pelo fracasso ministro das Finanças. Ou seja, o sempre um mãos-largas. Por fim,
sempre a oposição dos seu “camarada” José Sócrates. da negociação orçamental. documento em que se explicava a basta olhar para os protagonistas e
Mas não. Nessa entrevista foi Contudo, o dever dos jornalistas ruptura das conversações já estava para como estes se comportaram –
revolucionários e dos mesmo necessário insistir quatro é, para além de se esforçarem preparado antes de estas terem e notar que enquanto Catroga, um
lunáticos. Mais: são tão vezes para que dissesse alguma coi- por serem equilibrados, serem acabado sem acordo. O gato tentou adepto indiscutível da viabilização
sa de concreto sobre o Orçamen- rigorosos. E saberem ler os sinais, esconder-se, mas deixou o corpo do Orçamento, decidiu por si
difíceis que não é sequer to. Mais: riu-se com a hipótese de interpretando-os. todo de fora. quando viu a negociação bloqueada,
também fazer greve geral. Foram Nem sempre é fácil perceber Mas há mais. Ao analisar os Teixeira dos Santos mudou de
certo que seja possível outros dois dos muitos sinais de co- o que se passa no teatro da documentos que estiveram em atitude depois de uma passagem
formar a necessária mo tem embotada a sensibilidade política, até porque esta é feita de discussão e a cronologia dos pela residência oficial de São Bento.
para o que é mesmo preciso fazer encenações e de enganos, palco acontecimentos é possível perceber Depois de falar sabe-se com quem.
coligação alargada de em Portugal. O que não surpreen- de actores consumados. Só que, três coisas. Primeiro, que fora De resto, de pouco servirá
reformistas sensatos de: a sua candidatura é uma aliança por vezes, os indícios deixados no o PSD a percorrer quase todo o procurar mais os culpados. Todos
espúria de dois oportunismos, o de terreno são tão fortes que não é caminho em direcção a um possível os dias aumenta o número dos
Sócrates e o de Louçã. Sócrates apoia-o (ou finge que preciso ser Sherlock Holmes para acordo, e nem em alguns temas que consideram este Orçamento
o apoia) apenas para não ter mais maçadas e não se perceber o que se passou. E não de elementar bom senso ou de muito mau. Todos os dias cresce
envolver em nova trapalhada, como há cinco anos. era preciso ser detective para, na rectidão democrática (como num a percepção de que, única e
A única prioridade de Sócrates é sobreviver a todo passada quarta-feira, perceber a correcto prestar de contas relativo exclusivamente por causa da
o custo e sem olhar a meios, Alegre nem entra nos distância que ia entre o discurso à execução orçamental de 2010) situação em nos encontramos, ele
seus cálculos. Já Louçã comprou um sarilho ao BE de Eduardo Catroga, dito de forma o Governo mostrara a menor das acabará por não ser chumbado. E
com a esperança de, através do poeta candidato, emocionada e espontânea à saída boas vontades. Depois, porque o todos os dias é mais claro que os
criar uma fractura no PS, ou, no limite, dar força a da reunião com o Governo, e o que restava em cima da mesa era responsáveis por todo este sarilho
uma ala dita “de esquerda” mais favorável ao namo- de Teixeira dos Santos. Porquê? uma migalha – pouco mais de 200 são os que aqui nos trouxeram, em
ro com os bloquistas. Para ele, Alegre começou por Porque este último foi lido aos milhões de euros –, sobretudo especial o primeiro-ministro.
ser instrumental e está a tornar-se num fardo, até jornalistas e estes sabem, porque quando sabemos que este ano a Haverá um amanhã e é tempo de
porque na campanha eleitoral não se vão discutir esse é também o seu ofício, que derrapagem orçamental andará por começar a pensar nele.

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