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FONSECA, Inara
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea da Universidade
Federal de Mato Grosso
Bolsista CAPES
278
inarafferreira@gmail.com
LEITE, José
Professor Associado VI da Universidade Federal de Mato Grosso
jcleite343@gmail.com
RESUMO
Este trabalho pretende analisar e compreender a realidade obstétrica brasileira através das perspectivas
dos estudos decoloniais, da crítica antropológica e do feminismo decolonial. Para isso, tratamos do
desenvolvimento dos saberes e da prática obstétrica dialogando com alguns conceitos derivados de tais
abordagens. Escolhemos a opção decolonial (epistêmica, teórica e política) crendo que é necessária uma
renovação crítica e utópica nas produções científicas na América Latina, a qual compreenda e atue no
mundo a partir de saberes outros que não o eurocêntrico. Quanto a crítica feminista, acreditamos que
nada mais justo que num trabalho no qual se pretenda investigar a condição das mulheres grávidas, haja
vozes de mulheres analisando criticamente as práticas de parturição num contexto sócio-histórico.
Interessa-nos compreender como o eurocentrismo como subjetividade hegemônica colaborou para
formação do cenário obstétrico atual brasileiro.
ABSTRACT
This paper aims to analyze and understand the Brazilian obstetric reality through the perspectives of
decolonial studies, anthropological critique and decolonial feminism. For this, we take care of the
development of knowledge and obstetric practice dialoguing with some concepts derived from such
approaches. We chose the decolonial option (epistemic, theoretical and political) believing that it is
necessary a critical renewal and utopian in scientific production in Latin America, which understand and
act in the world from knowledge other than the eurocentric. The feminist critique, we believe it is fair
that a work in which it is intended to investigate the condition of pregnant women, there are women's
voices critically analyzing the childbirth practices in a socio-historical context. We are interested in
understanding how eurocentrism as the hegemonic subjectivity collaborated to form the current
obstetric Brazilian scene.
INTRODUÇÃO
Madrugada, 1º de abril de 2014, Adelir Carmen Lemos de Goes, 29 anos, em trabalho de
parto aguarda juntamente com o marido e sua doula 1 o momento ideal para dirigir-se ao hospital
e ter o tão sonhado parto normal. Entre uma contração e outra, recebe massagens da doula. O
marido oferece castanhas para que tenha mais energia, afinal não sabem quantas horas o parto
durará. A doula faz exercícios de agachamento juntamente com Adelir, o movimento ajuda a
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parir, relembra a profissional. Em toda a casa, ressoa o som calmo das músicas meditativas,
escolhidas a dedo por Adelir e o marido durante o período gestacional. A campainha toca.
Todos se surpreendem, quem poderia ser àquela hora? Na porta, um oficial de justiça
acompanhado de dois policiais armados indica que Adelir não terá direito a escolher o seu
parto: ela deve partir imediatamente para o hospital e realizar uma cirurgia cesárea. Adelir tenta
resistir, mas é informada que possuem um mandato judicial. Adelir, então, é amarrada na
ambulância, medicada e nada mais vê. No hospital, o marido e a doula são impedidos de entrar
na sala cirúrgica, embora Adelir tenha garantido por lei (PL11108/2005) o direito a
acompanhante. Adelir é submetida a uma cirurgia cesariana contra sua vontade.
Apesar de uma parcela da descrição do relato ser ficção, a história, os personagens, a
coerção estatal e os abusos não o são. Na cidade de Torres (RS), Adelir sofreu uma série de
violências obstétricas em decorrência de uma denúncia médica. De acordo com Adelir 2, durante
à tarde do dia 31 de março, a parturiente havia se consultado com uma obstetra, no Hospital
Nossa Senhora dos Navegantes, e a médica ordenado internação para realização de uma
cirurgia cesárea. Recebendo uma negativa de Adelir, que se sentindo bem retornou para sua
casa, a obstetra acionou a Justiça em nome do bem-estar do nascituro (supostamente a gravidez
era de risco e o parto normal prejudicaria o bebê) para concessão de liminar, condução e
intimação. Um mandato foi expedido no mesmo dia. O caso, amplamente divulgado pela mídia,
mobilizou profissionais da área da saúde, da sociedade civil e foi considerado um grave
desrespeito aos direitos humanos.
Embora outras situações de coerção estatal no parto não sejam constantemente
midiatizadas, as relações de poder e a violência no momento do parto são comuns no Brasil 3.
1
Profissional do sexo feminino que acompanha a mulher grávida no pré-parto, nascimento e pós-parto a fim de
garantir conforto físico e emocional a parturiente.
2
Entrevista cedida a jornalista Anelize Moreira, da Rede Brasil Atual, em 07/04/2014. Disponível em:
https://soundcloud.com/redebrasilatual
3
De acordo com pesquisa Mulheres brasileiras e gênero nos espaços públicos e privados - 2010, realizada pela
Fundação Perseu Abramo, uma em cada quatro mulheres brasileiras sofre algum tipo de violência durante o parto.
1. A COLONIALIDADE DO PODER
Em O encobrimento do Outro – a orixe do mito da Modernidade, Dussel (1992) explica
que o primeiro momento da constituição histórica da Modernidade deu-se entre 1492 e 1636.
Para o filósofo, ao tratar do fato Habermas comete um equívoco ao apontar que apenas a
Revolução Francesa, a Reforma Protestante e o Iluminismo foram constitutivos da
Modernidade. Dussel defende que foi justamente o descobrimento e a conquista da América
que permitiram a constituição do ego moderno.
De acordo com Dussel, antes do descobrimento, o mundo para a Europa Ocidental se
dividia em três partes: Europa-África-Ásia. Sendo a segunda, na perspectiva eurocêntrica e
racista, indigna de constar na história universal devido ao caráter bruto que sua população se
encontrava (HEGEL, x) e a última em processo de desenvolvimento. É entre 1502 e 1506 que,
ao descobrir uma quarta parte na Terra, a Europa “produz uma auto interpretação de si mesma”
(DUSSEL 1992:41) – de provinciana e renascentista, ela torna se moderna. Assim, com o
surgimento da Modernidade, a Europa Ocidental constitui-se como centro do mundo e coloca
todas as demais culturas como periféricas.
Quijano (2005) afirma que três fatores colaboraram para esse eurocentramento: 1)
controle do ouro das colônias na América que assegurava uma posição de privilégios; 2)
vantajosa localização na vertente do Atlântico por onde eram feitas as rotas do mercado
mundial; 3) controle do mercado mundial (capital comercial, trabalho e recursos de produção)
devido a progressiva monetarização que os metais preciosos da América estimulavam e
permitiam. Do eurocentramento, surgia uma relação assimétrica entre o centro e as demais
periferias, tanto na produção de conhecimento como na distribuição do poder.
A noção de colonialidade do poder, conceito criado por Anibal Quijano (1989), é
amplamente utilizada pelos autores decoloniais para denunciar a persistência de estratégias de
dominação coloniais após o fim do processo de colonização dos países da América Latina. De
acordo com Castro-Gómez e Grosfoguel (2007) o conceito decolonial surge para transcender o
discurso de que com o fim das administrações coloniais ocorre a transformação das antigas
colônias em Estado-nação.
Dussel (1992) aponta que a colonização da vida cotidiana da população indígena foi o
primeiro processo europeu de modernização. Os ataques aos saberes locais eram a prática
necessária para a conquista e a domesticação do modo como os nativos viviam e reproduziam a
vida humana. Era necessário alienar o Outro como o Mesmo para dominá-lo. Mignolo
(2010:12) aponta que a matriz colonial do poder “é uma estrutura de níveis entrelaçados”, assim
há colonialidade em vários níveis, incluindo nos saberes. A colonialidade do saber está
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diretamente ligada com a dimensão epistemológica. Quijano explica que para legitimar a
epistemologia colonial eurocentrada os colonizadores exerceram operações para o controle das
subjetividades: 1) expropriaram as populações colonizadas; 2) reprimiram as formas de
produção de conhecimento dos colonizados; 3) forçaram a aprender a cultura dos dominantes.
A expansão do colonialismo europeu expandiu a perspectiva eurocêntrica do
conhecimento e com ela a naturalização das relações coloniais entre europeus e não europeus.
Assim, a epistemologia colonial se espalha: a perspectiva europeia racionalista deve se impor a
outras visões de mundo. O processo de invisibilidade e alienação das formas de existências
não-europeias (indígenas e negros) é fundamental para compreensão de como ainda hoje
admitisse a “ideologia eurocêntrica sobre a modernidade como uma verdade universal”
(QUIJANO, 2005:24). Da colonização construiu-se a América Latina atual que embora jamais
se constituirá como o Mesmo insiste em identificar-se com o ideal eurocentrado. Excluindo e
deslegitimando as práticas cotidianas das populações a margem do sistema mundo patriarcal e
capitalista, ainda que novas identidades ditas nacionais tenham sido assumidas com o fim do
período colonial.
Para Lander (2005), o discurso científico é uma das estratégias mais eficazes para
naturalizar as relações sociais assimétricas e o entendimento da realidade. Com uma concepção
de sociedade que se pretende hegemônica e universal o conhecimento outro e o conhecimentos
do Outro é impedido de se desenvolver. A diversidade de saberes e experiências são
substituídas por intersubjetividades eurocentradas.
No caso do parto, com o eurocentrismo “como modo de produção e de controle da
subjetividade e, em especial, do conhecimento” (QUIJANO, 2005:10), a experiência da
parturiência torna-se engendrada pela racionalidade técnica e quaisquer outras vias que não
sejam a medicalização no parto são reprimidas. O reflexo dessa lógica é claramente visualizado
nos dados estatísticos sobre as práticas de parto no Brasil. Ainda que sejamos fruto da mistura
de raças, a diversidade de saberes na partenagem desaparece quase que totalmente para reinar
razão. A mulher europeia burguesa não era entendida como seu complemento,
mas como alguém que reproduzia raça e capital por meio de sua pureza
sexual, sua passividade, e por estar atada ao lar a serviço do homem branco
europeu burguês. (LUGONES, 2014:936)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os estudos sobre as práticas de parturição demonstram que aparentemente a violência
obstétrica no Brasil não diferencia classe ou idade: basta que seja fêmea. Estatisticamente, o
país é campeão em cirurgias cesarianas e em violência obstétrica tendo o fato sido classificado
pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como epidêmico. Apesar dos dados, a
naturalização do saber biomédico como única alternativa legítima tem fortalecido a
racionalidade técnica dentro das práticas de assistência ao parto, na medida que contribui para
um processo de “patologização” do parto através da construção de uma cultura de medo que
desqualifica o corpo feminino como sujeito de sua própria experiência.
Através do cruzamento das perspectivas antropológicas e decoloniais, fica claro que: 1)
o modelo hegemônico de assistência ao parto impossibilita a diversidade de experiências e
simbolismos relativos a tal evento; 2) a biomedicina pode ser compreendida como um projeto
de colonialidade e, portanto, produtora de assimetrias e relações de poder; 3) a colonialidade do
gênero se materializa no cotidiano das práticas de parturição colaborando para naturalização da
violência obstétrica.
Um provérbio africano afirma que “hasta que los leones tengan sus próprios
historiadores, las historias de cacería seguirán glorificando al cazador”. Dialogando com
Davis-Floyd, acreditamos ser necessário construir novas perspectivas teóricas-práticas de
assistência ao parto que valorizem o conhecimento da mulher sobre o seu próprio corpo e a
diversidade de saberes existentes, descolonizando as relações de gênero e de saberes. Mais, se o
eurocentrismo – como estratégia de dominação colonial – permanece nas obscurecências da
Modernidade faz se mais do que necessário construir uma teoria de gênero crítica
não-eurocentrada. Só será possível despatriarcalizar, se primeiro nos descolonializarmos.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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2010. Disponível em: http://www.fpabramo.org.br/sites/default/files/pesquisaintegra.pdf
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Análise de Situação de Saúde. Brasília: Editora do Ministério da Saúde, 2012.
BEAUVOIR, S. O Segundo Sexo: A Experiência Vivida. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira,
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DINIZ, Carmen Simone Grillo. Assistência ao parto e relações de gênero: elementos para uma
releitura médico-social. Dissertação (Mestrado em Medicina Preventiva) – Universidade de
São Paulo, São Paulo, 1999.
LUGONES, María. Colonialidad y género, Tabula Rasa. Bogotá - Colombia, No.9: 73-101,
julio-diciembre 2008.