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A Universidade Operacional! Marilena Chani A Reforma do Estado brasileiro pretende moderni- zar e racionalizar as atividades estatais, redefinidas e distri- buidas em setores, um dos quais é designado Setor dos Servigos Nao-Exclusivos do Estado, isto é aqueles que podem ser realizados por instituigdes no estatais, na qua- lidade de prestadoras de servigos. O Estado pode prover tais servigos, mas nao os executa diretamente nem execu ta uma politica reguladora dessa prestagio. Nesses scrvi- 508 estio incluidas a educacio, a saiide, a cultura ¢ as utili- dades piblicas, entendidas como “organizagées sociais” prestadoras de servigos que celebram “contratos de ges- tio” com o Estado. A Reforma tem um pressuposto ideolégico bisico: 0 mercado é portador de racionalidade sécio-politica e agen- te principal do bem-estar da reptiblica. Esse pressuposto leva a colocar direitos sociais (como a satide, a educagio ¢ a cultura) no setor de servgos definidos pelo mercado. Dessa maneira, a Reforma encolhe o espago piiblico democri- tico dos direitos ¢ amplia 0 espago privado nao sé ali onde isso seria previsivel — nas atividades ligadas & pro- dugio econémica —, mas também onde nio é admissivel — no campo dos direitos sociais conquistados. © pressuposto da Reforma do Estado é 0 assim cha- mado “colapso da modernizacio”, ou o declinio do Es- tado de Bem-Estar que deve receber a racionalizadora trazida pela economia politica neoliberal, nascida de um gmupo de economistas, cientistas politicos e filésofos, en- tre os quais Popper e Lippman, que, em 1947, reuniu-se em Mont Saint Pélérin, na Suiga, volta do austefaco Hayek € do norte-americano Milton Fried man. Esse grupo opu- nha-se encarnigadamente contra o surgimento do Estado de Bem-Estar de estilo keynesiano € social-democrata contra a politica norte-americana do New Deal. Nave- gando contra a corrente das décadas de 50 ¢ 60, 0 grupo elaborou um detalhado projeto econémico e politico no qual atacava 0 chamado Estado Providéncia com scus cencargos sociais € com a fungio de regulador das ativida- des do mercado, afirmando que esse tipo de Estado des- truia a liberdade dos cidadios ¢ a competigio, sem as quais nfo ha prosperidade. 1 Essa expressio & de Michel Freitag em Le naufage de Puniversité, Editions de la Découverte, 1996. Essas idéias permaneceram como letra morta até a crise capitalista do inicio dos anos 70, quando o capitalis- mo conheceu, pela primeira vez, um tipo de situagio imprevisivel, isto é, baixas taxas de crescimento econémi- coc altas taxas de inflagio: a famosa estagflagio. O grupo de Hayek, Friedman © Popper passou a ser ouvido com respeito por que oferecia a suposta explicagio para a cri- se: esta, diziam eles, fra causada pelo poder excessivo dos sindicatos ¢ dos movimentos operirios que haviam pressionado por aumentos salariais e exigido 0 aumento dos encargos sociais do Estado. Teriam, dessa mancira, destruido os niveis de lucro requeridos pelas empresas € desencadeado os processos inflacionsrios incontroliveis, Feito o diagnéstico, o grupo do Mont Pélerin propés os remédio: 1) um Estado forte para quebrar 0 poder dos sindicatos ¢ movimentos operirios, para controlar os di- heiros paiblicos e cortar dristicamente os encargos soci- ais ¢ os investimentos na economia; 2) um Estado cuja ‘meta principal deveria ser a estabilidade monetiia, con- tendo 0s gastos sociais ¢ restaurando a taxa de desempre- go necessaria para formar um exército industrial de reser- va que quebrasse o poderio dos sindicatos; 3) um Estado «que realizasse uma reforma fiscal para incentivar os inves- timentos privados e, portanto, que reduzisse os impostos sébre o capital ¢ as fortunas, aumentando os impostos sdbre a renda individual ¢, portanto, s6bre o trabalho, 0 consumo ¢ 0 comércio; 4) um Estado que se afastasse da regulagio da economia, deixando que proprio merca- lo, com sua racionalidade propria, operasse a desregulaci em outras palavras, aboli¢io dos investimentos estatais na produgio, aboli¢io do contréle estatal sdbre 0 fluxo fi- nanceiro, dristica legislagio anti-greve e vasto programa de privatizagio. O modélo foi aplicado, primeiro, no Chile, depois na Inglaterra ¢ nos Estados Unidos, expandindo- se para todo o mundo capitalista (com exce¢io dos pai- icos) € depois da “queda do muro de Berlim”, para o leste europeu. Esse modélo politico tornou-se res- ponsdvel pela mudanga da forma da acumulagio do ca- pital, hoje conhecida como “acumulagio flexivel” e que ‘no havia sido prevista pelo grupo neoliberal. De fato, éste propusera seu pacote de medidas na certeza de que abaixaria a taxa de inflagio ¢ aumentaria a taxa do cresci- mento econémico. A primeira aconteceu, mas a segunda ses a ao por que 0 modélo incentivou a especulagio financei- raem vez dos investimentos na produgio; monetarismo superou a indiistria. Donde falar-se em “capitalismo pés- industrial”, E esse modelo, com os ajustes monetaristas que vem sendo aplicado para a Reforma do Estado bra- sileiro, Essa Reforma, porém, exige que compreendamos 0 nnexo necessario entre a forma anterior do Estado ¢ o que se propde agora para reformé-lo, Francisco de Oliveira’, analisa 0 “colapso da moderni- zagio” a partir das transformagées econdmicas € politi- «as introduzidas pelo proprio Estado de Bem-Estar com a criagio do fundo publico, Este se caracteriza: 1) pelo financiamentos simultineo da acumulagio do capital (os gastos publicos com a produgio, desde subsidios para a agricultura, a inddstria © o comércio, até subsidios para a ciéncia e a tecnologia, formando amplos setores produti- vvos estatais que desaguaram no célebre complexo militar- industrial, lém da valorizagio financeira do capital por meio da divida piblica, etc); € 2) pelo financiamento da reprodugio da forga de trabalho, aleancando toda a po- pulagio por meio dos gastos sociais (educagio gratuita, medicina socializada, previdéncia social, seguro desem- prego, subsidios para transporte, alimentagio e habitagio, subsidios para cultura ¢ lazer, salitio familia, salirio de- semprego, etc). Em suma, o Estado do Bem-Estar intro- duziu a repiblica entendida estruturalmente como gestio dos fundos piiblicos, os quais se tornam pré-condi¢ao da acumulagio € da reprodugio do capital (¢ da formagio da taxa de lucro) ¢ da reprodugio da forga de trabalho por meio das despesas sociais. Numa palavra, houve a socializagio dos custos da produgio © manutengio da apropriagio privada dos Iucros ou da renda (isto é, a ri- queza nio foi socializada). ‘A acio de duplo financiamento gerou um segundo salirio, 0 salirio indireto, ao lado do salirio direto, isto é 6 direto & aquele pago privadamente a0 trabalho € 0 indi- recto é aquele pago publicamente aos cidaclios para a re- produgio de sua fora de trabalho. O resultado foi o aumento da capacidade de consumo das classes sociai particularmente da classe média ¢ da classe trabalhadora; ou seja, 0 consumo de massa Nese processo de garantia de acumulagio reprodu- io do capital e da forca de trabalho, 0 Estado endivi- dou-se e entrou num processo de divida piblica conheci- do como déficit fiscal ou “erise fiscal do Estado”. A isso deve-se acrescentar 0 momento crucial da crise, isto é, 0 instante de internacionalizagio oligopélica da producio ¢ 2 Francisco de Oliveira “O surgimento do anti-valor. Capital, forga de trabalho efundo piblico”, ins direitos do antivalor. ‘Acconomia politica dahhegemonia imperteits, Colegdo Zero Aesquenda, Pewipolis, Vozes, 1998. da finanga, pois os oligopélios multinacionais nio enviam 408 seus paises de origem os ganhos obtidos fora de suas fronteiras ¢, portanto, nfo alimentam 0 fundo piblico nacional, que deve continuar financiando 0 capital ea for- 5a de trabalho. Fi isso 0 “‘colapso da modernizagio” € a origem da aplicagio da politica neoliberal, que propde “enxugar” ou encolher 0 Estado. (Ora, 0 que significa exatamente 0 fundo piblico (ou a maneira como opera a esfera piiblica no Estado de Bem- Estar)? Como explica Francisco de Oliveira, o fundo pi- blico € 0 anti-valor (no é o capital) ¢ éa anti-mercadoria (40 &a forga de trabalho) e, como tal, é a condicio ou 0 pressuposto da acumulagio e da reprodugio do capital ¢ da forga de trabalho. E nele que vem por-se a contradi- io atual do capitalismo, isto é, ele é o pressuposto neces sério do capital e, como pressuposto, é a negacio do pré- prio capital (visto que o fundo piiblico nio é capital nem trabalho). Por outro lado, o lugar ocupado pelo fundo piiblico com o salério indireto faz com que a forca de trabalho no possa ser avaliada apenas pela relagio capi- tal-trabalho (pois na composigo do salirio entra tam- bém o salitio indireto pago pelo fundo publico). Ora, no capitalismo clissico 0 trabalho era a mercadoria padrio que media valor das outras mercadorias € da mercado- ria principal, o dinheiro. Quando o trabalho perde a con- digo de mercadoria padrio, essa condigio também é perdida pelo dinheiro que deixa de ser mercadoria ¢ se torna simplesmente moeda ou expressio monetiria da relagio entre credores ¢ devedores, provocando, assim, a transformagio da economia em monetatismo, Além disso, com sua presenga sob a forma do salirio indireto, 0 fundo piiblico desatou o lago que prendia 0 capital forga de trabalho (ou o salitio direto). Essa amarra cera 0 que, no passado, fazia a inovagio técnica pelo capi- tal ser uma reagio ao aumento real de salirio ¢, desfeito 0 ago, o impulso a inovagio tecnolégica tornou-se pratica- mente ilimitado, provocando expansio dos investimen- tos ¢ agigantamento das {orcas produtivas cuja liquide € impressionante, mas cujo lucro nfo é suficiente para con- cretizar todas as possibilidades tecnolégicas. Por isso mes- ‘mo, o capital precisa de parcelas da tiqueza piiblica, isto é do fundo publico, na qualidade de financiador dessa concretizacio. Esse quadro indica que 0 fundo piiblico define a esfe- ra piiblica da economia de mercado socialmente regulada ‘e que as democracias representativas agem num campo de lutas polarizado pela diregio dada ao fundo piblico. Visto sob a perspectiva da luta politica, o neoliberalismo nio é, de maneira nenhuma, a crenga na racionalidade do mercado, 0 enxugamento do Estado ¢ a desaparigio do fando pablico, mas a posi¢io, no momento vitoriosa, que decide cortar o fundo piblico no polo de financiamento dos bens e servigos publicos (ou 0 do salitio indireto) ¢ maximizar 0 uso da riqueza piiblica nos investimentos ‘exigidos pelo capital, cujos lucros nao sio suficientes para cobrir todas possibilidades tecnolégicas que ele mesmo abriu, Que 0 neoliberalismo € a op¢io preferencial pela acumulagio ¢ reprodugio do capital, o montante das di- vidas ptiblicas dos Estados nacionais fala por si mesmo. ‘Masisso significa também que a luta democritica das classes populares esti demarcada como luta pela gestio do fun- do piblico, opondo-se gestio neoliberal. Ora, neste momento, do lado da educagio, a batalha republicana s6 conta derrotas (ou vit6rias neoliberais). No caso especifico da universidade, sua nova posigio no se tor de prestagio de servigos indica um eclipse da idéia de dircito social, explica porque volta & baila a tese do ensino piiblico pago para que justiga seja feita, pois “os ricos devem pagar pelos pobres”, De fato, a cantilena “os ricos devem pagar pelos po- bres” significa, em primeiro lugar, que os ticos sio vistos como cidadios (pagam impostos ¢ mensalidades) ¢ os pobres nio (mesmo que saibamos que, neste pais, os ri- cos justamente no pagam impostos); em segundo lugar, que a educagio nio € vista como um direito de todos, ‘mas como um direito dos ricos e uma benemeréncia para 0s pobres; em terceiro lugar, que a cidadania, reduzida a0 pagamento de impostos ¢ mensalidades, e 0 assistencialismo, como compaixio pelos deserdados, des- troem qualquer possibilidade democritica ¢ de justiga Embora a visto liberal reduza a democracia a0 regime da lei da ordem, essa imagem deixa escapar o principal, isto 6, que a democracia est fundada na nogio de direitos, e por isso mesmo est apta a diferencis-los de privilégios e caréncias. Os primeiros sio, por definigio, particulares, io podendo generalizar-se num interesse comum nem universalizar-se num direito porque deixariam de ser pri- vilégios. Caréncias, por sua vez, so sempre especificas € particulares, nflo conseguindo ultrapassar a especificidade © a particularidade rumo a um interesse comum nem universalizar-se num direito, A cantilena “os ticos devem pagar pelos pobres” reforga a polarizagio entre privilé- gio e caréncia ¢ longe de ser instrumento de justiga social € a impossibilidade de que esta seja instituida pela ago criadora de direitos que ‘a defini¢io mesma da democra- cia, quando esta nfo é simplesmente identificada, 4 ma- neira liberal, a0 regime da lei e da ordem, Em outras pa- lavras, somente a idéia de igualdade de condigdes (€ no a propalada igualdade mercantil das oportunidades) sus- tenta a ideia de criagio € conservagio dos direitos ¢ esta- belece o vinculo profundo entre democracia ¢ justiga social. Quando, portanto, a Reforma do Estado transforma a educagio de dircito em servigo e percebe a universida- de como prestadora de servigos, confere um sentido bas tante determinado 4 idéia de autonomia universitiria, ¢ introduz termos como “qualidade universitiria”, “avalia- io universitaria” e “flexibilizagio da universidade” Durante a ditadura, todos estio lembrados, uma das, bandeiras de luta das universidades puiblicas foi pela auto- noma, isto é para que as decisdes universitirias fossem tomadas pelas proprias universidades em seus érgio colegiados. Essa luta foi mais candente no caso das uni- versidades federais, diretamente dependentes de atos da presidéncia da reptiblica, explicando porque um dos ele- mentos chaves do combate era a conquista da elei¢io direta dos ditigentes universitirios (reitores e diretores de unidades). Sob suas miltiplas manifestagdes, a idéia de autonomia, como a prépria palavra grega indica — ser autor do noms, ser autor da norma, da regra ¢ da lei —, buscava no s6 garantir que a universidade piiblica fosse regida por suas proprias normas, democraticamente ins- tituidas por seus érgios representativos, mas visava, ain- da, assegurar critérios académicos para a vida académica ¢ independéncia para definir a relagio com a sociedade € com Estado. Numa palavra, autonomia possuia sentido sécio-politico e era vista como a marca propria de uma instituigio social que possuia na sociedade seu principio de acio ede regulagio. Ao ser, porém, trasnformada numa otganizagio administrada, a universidade pablica perde a idéia e a pritica da autonomia, pois esta, agora, se reduz & gestio de receitas e despesas, de acordo com 0 contrato de gestio pelo qual o Estado estabelece metas ¢ indica- dores de desempenho, que determinam a renovagio ou no renovagio do contrato. A autonomia significa, por- tanto, gerenciamento empresarial da instituicio © prevé ‘que, para cumprir as metas ¢ aleangar os indicadores im- postos pelo contrato de gestio, a universidade tem “au- tonomia” para “captar recursos” de outras fontes, fazen- do parcerias com as empresas privadas. Nao s6 isso. ‘Como tem explicado a ANDES, 0 MEC tende a con- fundir autonomia e autarquia e, por conseguinte, a pensar auniversidade pablica como um érgio da admininstragio indireta, gerador de receitas e captador de recursos exter- nos, A“flexibilizagio”, por seu turno, é 0 corolério da “au- tonomia”. Na linguagem do Ministério da Educagio, “lexibilizar” significa: 1) eliminar o regime tinico de tra- balho, 0 concurso piblico ¢ a dedicagio exclusiva, substi- tuindo-os por “contratos flexiveis”, isto é, temporitios € precirios; 2) simplificar os processos de compras (as lici- tages), a gestio financeira ¢ a prestagio de contas (sobre tudo para protegio das chamadas “outras fontes de fi- nanciamento”, que no pretendem se ver publicamente cexpostas ¢ controladas); 3) adaptar os curriculos de gra- duagio ¢ pés-graduacio as necessidades profissionais das diferentes regides do pais, isto é, 4s demandas das empre~ sas locais (als, é sistematico nos textos da Reforma refe- rentes aos servigos a identificagio entre “social” ¢ “em-

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