GAZETA DO POVO
40 EDIÇÃO SEMANAL, DE 29/12 A 4 DE JANEIRO DE 2019
❚❚Aos 16 anos de idade Enes
Kanter já era um jogador
de basquete profissional.
Nascido na Suíça, mas filho
de pais turcos, o jovem atle-
ta se tornou um nome im-
portante no basquete local
após uma carreira de sucesso
nas categorias de base. Como
muitos atletas europeus, no
entanto, seu objetivo não era
ficar em seu país, mas sim
jogar nos Estados Unidos, lar
da NBA, a maior liga de bas-
quete do mundo.
Para os grandes jogadores
da Europa, o trajeto mais co-
mum passa por estabelecer-
-se em times regionais, par-
ticipar dos grandes campeo-
natos do continente e, após
conquistar uma boa reputa-
ção, inscrever-se na lista de
jogadores disponíveis para
as equipes americanas – na
liga norte-americana não é
possível negociar uma con-
tratação diretamente sem
antes colocar seu nome em
uma grande lista, permitin-
do que as equipes escolham
novos jogadores a partir de
uma ordem pré-definida.
Geralmente os escolhidos
são jovens americanos, ob-
servados de perto por olhei-
ros e torcedores durante suas
passagens pelas universida-
des locais, enquanto jogado-
res europeus precisam de
carreiras já estabelecidas
em times importantes.
Enes Kanter, entretanto,
optou por cortar caminho:
ao invés de assinar contra-
tos com grandes equipes da
Europa, ele resolveu se mu-
dar para os Estados Unidos.
Aos 17 anos comprometeu-
-se com uma universidade
de ponta no basquete ame-
ricano, disposto a jogar de
graça ao invés de ganhar os
milhões que receberia em
seu país. Mal conseguiu en-
trar em quadra, mas mesmo
assim chamou atenção das
equipes da NBA e, em 2011,
apenas dois anos após sua
chega à América, tornou-
-se o terceiro escolhido em
uma lista com centenas de
atletas. Seu futuro no me-
lhor basquete do mundo es-
tava garantido.
Nas esquinas
de Istambul
Basquete é um esporte
popular na Turquia, país
com boas participações em
torneios internacionais e
jogadores com passagens
Divulgação
impor tantes pela NBA.
Naturalmente, Enes Kanter
tornou-se uma enorme cele-
bridade em seu país após en-
trar de forma meteórica no
basquete americano. Sua rea-
ção à fama, no entanto, foi
muito diferente da habitual
a estrelas tão jovens: Kanter
resolveu tornar-se uma voz
contrária ao regime políti-
co de seu país e uma figura
de conscientização interna-
cional sobre a situação atual
da Turquia.
Desde a Guerra da Inde­­
pendência e a consolidação
como república em 1923, a
Enes Kanter, Turquia orgulha-se de ser
pivô do New um país laico, em contato
York Knicks: com os modos de vida oci-
deserdado dentais e respeitoso com as
pelos pais liberdades individuais. Essa
e impedido realidade parece ter muda-
de voltar do radicalmente na últi-
à Turquia. ma década, já sob comando
do atual presidente, Recep
Tayyip Erdoğan.
Kanter, assim como diver-
sos outros críticos do atual
governo, afirmam que di-
reitos básicos têm sido re-
vogados, adversários polí-
ticos vêm sendo persegui-
dos, a imprensa vem sen-
do calada e leis tornaram-
-se cada vez mais autoritá-
rias e religiosas.
A tensão política no país
levou a uma tentativa de gol-
pe de estado em 2016, recha-
çada pelo governo e pela po-
pulação, principalmente is-
lâmica, que apoia fortemen-
te o governo de Erdoğan.
Informações sobre o golpe
são escassas e divergentes:
enquanto críticos do pre-
sidente afirmam que tudo
não passou de uma farsa
para legitimar o aumento
da violência e do controle
por parte do governo, fon-
tes oficiais da Turquia afir-
**POLÍTICA INTERNACIONAL mam que tudo foi orquestra-
do por Fethullah Gülen, líder
CESTAS PELA
político exilado nos Estados
Unidos desde 1999.
Conexão América
LIBERDADE
Desde que chegou aos
EUA, Kanter é um vocal de-
fensor de Fethullah Gülen,
um líder islâmico que pre-
ga tolerância, moderação
e autonomia das leis fren-
te à religião. Estima-se que
Jogador turco da NBA, Enes Kanter usa a visibilidade milhões de turcos sigam as
ideias de Gülen, todos con-
que a maior liga de basquete do mundo proporciona trários ao conceito de “Nova
para confrontar o regime de Recep Tayyip Erdoğan Turquia” proposto pelo go-
verno atual, um país plena-
❚ Murilo Basso mente inserido, inclusive em

sua Constituição, aos precei-
tos do Islã.
Hoje uma celebridade
tanto em seu país quanto
nos Estados Unidos, Kanter
tenta ampliar o alcance das
palavras de Gülen alertando
sobre os abusos do atual go-
verno sem, no entanto, abrir
mão de sua própria religião.
Ao nunca esconder a im-
portância do islamismo em
sua vida, Enes acabou levan-
do os times que o contrata-
ram na NBA a compreender
seus modos de vida – o que
incluía, até mesmo, contratar
cozinheiros capazes de cozi-
nhar comida “halal”, ou seja,
alimentos que atendam ao có-
digo islâmico de preparação.
Sua religião nunca foi
uma barreira: conviveu aber-
tamente com companheiros
de equipe de diversas cren-
ças, que inclusive eram in-
centivados a experimentar a
comida “halal” que era pre-
parada para ele. Assim co-
mo Gülen afirma ser, a vi-
são que Kanter possui do is-
lamismo é, ao menos em dis-
curso, inclusiva e tolerante.
Causas e
consequências
Enes cresceu frequentan-
do uma das escolas do mo-
vimento Hizmet, liderado
por Gülen – havia cerca de
300 instituições na Turquia
e mil ao redor do mundo.
Essas escolas são conhecidas
pelo rigor acadêmico e por
priorizarem o conhecimen-
to em ciências, o que refle-
te a crença central de Gülen
em uma espécie de diálogo
inter-religioso; uma busca
por um ponto de conexão
entre a “verdade científica”
e a “verdade religiosa”.
“As escolas comandadas
por Gülen têm historica-
mente ênfase em matemá-
tica, ciências e inglês, mas
há doutrinação nos ensina-
mentos de Gülen”, pondera
Aykan Erdemir, ex-integran-
te do parlamento turco.
“Gülen é muito bom em
apresentar a face de um gru-
po religioso progressista
oprimido. E, claro, há prin-
cípios importantes ali: reli-
gião, ciência, diálogo. Mas
eles também são naciona-
listas extremos”, completa
Steven A. Cook, membro do
Council of Foreign Relations
e dedicado a estudar o ce-
nário geopolítico no Oriente
Médio e na África.
“Eles achavam que iam me calar. Mas
não vão. Porque é isso que eles fazem.
Estão fazendo muito pior para muitas
pessoas que não têm a plataforma
que eu tenho. Então, não posso calar a
boca. É minha responsabilidade.”
Enes Kanter, jogador de basquete da NBA
Mas mesmo longe de seu
país, Enes Kanter foi aos pou-
cos sentindo o impacto de
seu apoio a Fethullah Gülen.
Primeiramente deixou de ser
convocado para jogar pela
seleção turca de basque-
te, acusado de “desavenças
com seus companheiros”.
Logo em seguida seu passa-
porte foi revogado pelo go-
verno turco, impedindo que
ele possa deixar os Estados
Unidos. Já após o golpe em
2016, seu pai – um profes-
sor universitário na Turquia
– foi preso pelo governo e,
em seguida, publicou uma
carta aberta deserdando o
filho, pedindo que abrisse
mão de seu sobrenome.
“Com um sentimento
de vergonha, peço descul-
pas ao nosso presidente e
ao povo turco por ter um
filho assim”, escreveu o pai
de Enes – Kanter não fala
com os pais desde então e
pessoas próximas a ele acre-
ditam que a declaração é um
misto de verdade e pressão
do governo.
Pouco tempo depois, Enes
recebeu o aviso de que fo-
ra condenado a quatro anos
de prisão na Turquia por ter
escrito críticas ao presiden-
te Recep Tayyip Erdoğan no
Twitter, ainda que sua con-
ta na rede social seja intei-
ramente bloqueada no país.
“Não sei se um dia ele po-
derá voltar à Turquia”, diz
Hank Fetic, empresário de
Kanter.
Mesmo assim nenhum
desses eventos diminuiu o
tom das críticas de Enes,
que insiste na importância
de que a comunidade inter-
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nacional saiba dos horrores
que estão ocorrendo em seu
país, se dizendo a voz de “mi-
lhões de inocentes que não
podem se fazer ouvir graças
à opressão do regime”. As re-
presálias, então, aumenta-
ram, dessa vez tendo como
alvo sua família: o passapor-
te de seus pais foi revogado e
ambos foram recentemente
condenados a 10 anos de pri-
são por “conspiração” contra
o atual presidente.
Antes uma república par-
lamentarista, a Turquia ado-
tou após o golpe um presi-
dencialismo que coloca ain-
da mais poder nas mãos de
Erdoğan, facilitando o com-
bate aos opositores do regi-
me. Nesse momento, o país
é um dos líderes mundiais
em jornalistas presos, o que
dificulta ainda mais o aces-
so às informações e à exten-
são das violações aos direi-
tos humanos exercidas pe-
lo governo.
Respostas
Enes Kanter não pode vol-
tar à Turquia nem entrar em
contato com seus pais; não
possui passaporte, não po-
de viajar e ainda não possui
cidadania americana. Tudo
que lhe resta, por enquan-
to, é o basquete e o alcan-
ce que a NBA tem ao redor
do planeta.
“Se alcançarmos as fi-
nais da NBA, vamos levar
Erdoğan à loucura”, afir-
mou Kanter durante a últi-
ma temporada do basquete
americano. Mais do que tra-
balho ou competição, o es-
porte tornou-se para ele uma
ferramenta de visibilidade,
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um holofote que ele preci-
sa aproveitar para fazer de-
núncias e clamar por inter-
venção internacional.
Se para muitos atletas a
fama é um capricho ou uma
frivolidade, para Kanter, ago-
ra, fama é uma questão de
vida ou morte: sua populari-
dade e o alcance de suas pa-
lavras funcionam como raras
ferramentas de resistência
ao regime de Recep Tayyip
Erdoğan. Pode ser pouco
frente ao poder de todo um
governo que parece ter mas-
sivo apoio popular, mas exi-
lado e com seus pais encar-
cerados, sem ter maneiras
mais efetivas de luta, essa re-
sistência é tudo que lhe res-
ta. Vencer jogos passa a ser,
para ele, uma questão polí-
tica: tudo que Enes Kanter
pode desejar, nesse momen-
to, é ser ouvido, e que o es-
porte possa funcionar como
uma plataforma.
No caso de Kanter, tra-
ta-se também do caminho
mais rápido para causar co-
moção popular. Para alguém
que aos 17 anos pulou eta-
pas, jogando-se em uma cul-
tura estranha para realizar
seus sonhos, o senso de ur-
gência é uma sensação co-
nhecida. Mas agora a urgên-
cia se dá porque a vida de
sua família está em jogo:
Kanter não tem outra saída
que não seja vencer, tanto
no esporte quanto na polí-
tica, simultaneamente; pa-
ra ele, as duas coisas anda-
rão juntas até que sua men-
sagem seja capaz de trans-
formar a situação do país ao
qual ele, por ora, não pode
mais retornar.
“Ele é um jovem incri-
velmente corajoso. Ele po-
deria ter se sentado e sim-
plesmente jogado basque-
te, mas escolheu falar. Sua
consciência não permite que
ele fique em silêncio”, diz
Y. Alp Aslandogan, diretor-
-executivo da Alliance for
Shared Values.
Opinião compartilha-
da pelo próprio Enes: “Eles
achavam que iam me calar.
Mas não vão. Porque é isso
que eles fazem. Isso é quem
eles são. Sou famoso, e eles
LEIA “CARROS
estão fazendo isso a mim e à
AUTÔNOMOS
AJUDARÃO
minha família, mas eles es-
A FUGIR DA tão fazendo muito pior para
OPRESSÃO muitas pessoas que não têm
POLICIAL” EM a plataforma que eu tenho.
leia.gp/carros- Então, não posso calar a boca:
autônomos é minha responsabilidade”.