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REVISTA MULTIDISCIPLINAR N° 04 - DEZEMBRO DE 2007 / ISSN 1980-5950

SINTESES
Hip � Hop: instrumento de aprendizagem e forma��o da cidadania�

FERREIRA, Karina Heringer Mariano²

O relato de experiência aqui apresentado visa demonstrar alguns aspectos vivenciados com o Trabalho de Conclusão do Curso de Pedagogia,
apresentado à Faculdade de Presidente Prudente, no primeiro semestre de 2007.
O tema escolhido refere-se à necessidade de utilizar instrumentos pedagógicos diversificados na educação através de análises e discussões sobre as
influências sócio-educacionais advindas da disseminação do mercado industrial da cultura. Para tanto foi apresentado o Hip-Hop como um possível
instrumento de aprendizagem e formação da cidadania.
Através das análises e discussões foi possível entender que o Hip-Hop pode proporcionar, por meio de seus elementos artísticos, contribuições para a
construção da autonomia das crianças e dos adolescentes em idade escolar.
Esta não foi a primeira vez que o tema Hip-Hop foi estudado, porém, este trabalho apresentou linhas de estudos mais direcionadas a prática cotidiana
dentro da sala de aula, levando em consideração os objetivos e as necessidades atuais da educação e da formação do cidadão consciente e
responsável pelos seus atos.
Atendo-se a esta idéia de construção cidadã, foi elaborada uma proposta de trabalho a ser aplicada em uma sala de aula da 3ª série do Ensino
Fundamental. Tal proposta objetivou utilizar o Hip-Hop como um instrumento de aprendizagem que pudesse ir além da praxe pedagógica atual
fazendo, assim, os alunos refletirem sobre o contexto atual da sociedade em que vivem.
Para que esta proposta educativa conseguisse ter aparato teórico, foi necessário estudar questões educativas, sociais, políticas, econômicas e
midiáticas que envolviam o tema Hip-Hop. Além disto, foi necessário ter em vista que os educadores brasileiros têm muitas dificuldades em trabalhar
com o contexto dos alunos e com a construção de valores a partir da arte. Para tanto, foram de suma importância os estudos já realizados por Magro
(2002) e Abud (2005), pois seguiam os paralelos entre a música e formação cidadã tão importante para a realização do mesmo.
Não foi fácil elaborar o trabalho, sobretudo em função da escassez bibliográfica. Os temas encontrados não seguiam as mesmas linhas de objetivos
delimitados neste trabalho, por isso, este foi baseado principalmente nos Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Fundamental de Língua
Portuguesa, Artes e também na sua Introdução, além de textos retirados da Internet e livros ligados indiretamente ao tema.
Quanto ao Hip-Hop e os materiais disponíveis, foi possível entender que este significa: Hip (saltar) e Hop (movimentando os quadris) e que é formado
por várias expressões artísticas e culturais como a música, a dança e as artes plásticas. Seus objetivos são de apontar, discutir e propor resoluções
aos problemas sociais, políticos, econômicos e culturais em que vivem as populações desfavorecidas economicamente no Brasil.
De acordo com Diógenes (1998, p. 121), o Hip-Hop é formado por três elementos:

Expressão corporal – O break é uma dança de grande impacto visual acrobática e estética, mundialmente conhecida. Surgiu nos Estados Unidos na
década de 60. Foi uma forma que os jovens pobres norte-americanos encontraram para simbolizar a situação dos jovens soldados que se
encontravam na guerra do Vietnã (os mutilados pela guerra).
Relato Musical – O RAP (rhitym and poetry) caracteriza-se pelo enfoue político que é dado nas letras e o número reduzido de batidas por minuto
(BPM). Surgiu nos bairros pobres da Jamaica a partir do improviso de poemas falados em cima de trechos de antigas músicas negras e logo foi
transportado para as favelas dos Estados Unidos onde desenvolveu-se como alternativa de diversão para os garotos e garotas pobres que ao podiam
pagar entrada nos clubes da sociedade.
Manifestação gráfico-plástica – O Real-Grafitte – estilo de desenho de traços livres e feitos visuais, caracterizado, principalmente, pela diversidade de
tonalidades e cores utilizadas, pode ser feitos em paredes, roupas e telas. Trata principalmente de temas sociais.

No entanto, mesmo com tantas formas artísticas, o Hip-Hop passa por um problema de difusão do seu trabalho através da mídia, que envolve várias
questões e onde a mais agravante delas é a sua não divulgação.
Atualmente a TV, o rádio, o cinema e a Internet conseguem construir e desconstruir culturas e valores muito rapidamente. No entanto, como
destacado por Adorno (1999 apud Bertoni, 2001), com a possibilidade de melhor comunicação entre os indivíduos, surge também uma indústria
mercadológica de cultura, a fim de promover uma identidade coletiva desejável aos padrões sociais mais baixos da sociedade, divulgando assim,
modelos étnicos, políticos, econômicos, sociais, modísticos e de valores, vinculados ao prazer da imagem e da sedução, mantendo o seu público cada
vez mais massificado, inconsciente e preso à corrente de produção.
Seguindo esta linha de reflexão sobre os problemas sociais, a prática educativa cotidiana não pode simplesmente ignorar este tipo de “Movimento
Cultural”, pois pesquisadores e estudiosos da educação devem sempre estar abertos a mudanças e tentar inovar sua prática, movidos a uma ação
educativa que seja mais significativa para seus alunos. Assim, pode-se salientar:
No contexto da proposta dos Parâmetros Curriculares Nacionais se concebe a educação escolar como uma prática que tem a possibilidade de criar
condições para que todos os alunos desenvolvam suas capacidades e aprendam os conteúdos necessários para construir instrumentos de
compreensão da realidade e de participação em relações sociais, políticas e culturais diversificadas e cada vez mais amplas, condições estas
fundamentais para o exercício da cidadania na construção de uma sociedade democrática e não excludente. (BRASIL, 1996a, p.32)

Por se tratar de um Movimento Cultural dos “excluídos”, o Hip-Hop passa por privações da mídia que, atualmente, têm um grande poder ideológico
sobre a sociedade, não permitindo, assim, que as idéias expressas por essa manifestação cultural sejam facilmente divulgadas.
Além disso, é possível salientar que:

O problema do preconceito disseminado na sociedade em relação às falas dialetais deve ser enfrentado, na escola, como parte do objetivo
educacional mais amplo de educação para o respeito à diferença. Para isso, e também para poder ensinar Língua Portuguesa, a escola precisa livrar-
se de alguns mitos: o de que existe uma única forma “certa” de falar – a que se parece com a escrita – e o de que a escrita é espelho da fala – e,
sendo assim, seria preciso “consertar” a fala do aluno para evitar que ele escreva errado. (BRASIL. 1996 b, p. 15)

O segundo passo para a elaboração da proposta foi entender qual a importância da música, da dança e da arte em geral na educação e na formação
do cidadão. Não bastava compor um trabalho pedagógico sem fundamentar os objetivos de sua aplicação, pois era necessário entender em quais
âmbitos seriam importantes as suas contribuições para a mesma.
O PCN cita alguns objetivos gerais e específicos da arte como expressão e comunicação dos alunos:

 a arte como expressão e comunicação dos indivíduos;


 elementos básicos das formas artísticas, modos de articulação formal, técnicas, materiais e procedimentos na criação em arte;
 produtores em arte: vidas, épocas e produtos em conexões;
 diversidade das formas de arte e concepções estéticas da cultura regional, nacional e internacional: produções, reproduções e suas
histórias;
 a arte na sociedade, considerando os produtores em arte, as produções e suas formas de documentação, preservação e divulgação em
Neste sentido, fica visível a importância da arte na formação educativa da criança e do adolescente e, também, o quanto poderia ser importante o
uso do Hip-Hop na escola, estabelecendo uma ligação entre a educação formal e o uso de instrumentos diversificados para uma melhor significação
na aprendizagem, ficando sob a responsabilidade do professor fazer a mediação entre as atividades cognitivas, culturais e artísticas dos alunos onde:
Ensinar arte em consonância com os modos de aprendizagem do aluno, significa, então, não isolar a escola da informação sobre a produção histórica
e social da arte e, ao mesmo tempo, garantir ao aluno a liberdade de imaginar e edificar propostas artísticas pessoais ou grupais com base em
intenções próprias. E tudo isso integrado aos aspectos lúdicos e prazerosos que se apresentam durante a atividade artística. (BRASIL, 1996 c, p. 27)

O passo mais importante da proposta foi dado na tentativa de entender quais as influências sociais que o Hip-Hop poderia promover nos alunos, onde
através de denúncias, ele aponta que uma melhor qualidade de vida dos indivíduos longe das drogas e da violência não pode ser feita através da
negação dos problemas sociais. Afinal, estes são problemas existentes em todo o mundo e devem ser tratados e encarados como uma parte
significante da estrutura da sociedade. Segundo MATSUNAGA (2006, p. 43):

Desta forma, do modo como cantam e o que cantam, os rappers muitas vezes são considerados pela mídia como os “sociólogos” sem diploma, que
buscam entender e denunciar os problemas sociais, configurando-se como narradores urbanos. A partir das letras, há uma denúncia quanto às
desigualdades sociais vivenciadas e compartilhadas entre tantos sujeitos que moram na periferia, desprovidos de seus direitos como cidadãos, sem
saneamento, educação, lazer, saúde.

Após construir esse repertório teórico, foi elaborada a proposta de atuação em sala, através de um plano de aula a ser desenvolvido na terceira série,
“2º Ciclo do Ensino Fundamental” com a faixa etária entre 9 e 10 anos de uma escola Municipal da cidade de Martinópolis situada a Oeste do Estado
de São Paulo.
A escolha da sala na qual foi aplicado o plano de aula foi antecedida por uma autorização prévia documentada e entregue a Direção da escola,
juntamente com os materiais da aula. O principal objetivo da proposta era que o trabalho pudesse servir como ponto de partida para a construção da
autonomia, justificada pelo uso de uma prática pedagógica que teria como intuito promover interesse dos alunos pela participação ativa e reflexiva na
aula. Mais detalhadamente, no plano de aula estava disposto que, através do rap, pretendia-se apresentar e propor reflexões sobre as questões
sociais atuais, bem como as causas e efeitos das mesmas, proporcionando a construção de sua autonomia.
Os alunos foram dispostos em grupos pela professora da sala que também permaneceu durante toda a aplicação da proposta. Todos tinham em mãos
os materiais necessários para a execução e acompanhamento da aula, mas a sala encontrava-se bastante inquieta, o que promoveu desordem e
dificultou um pouco a aplicação da aula.
Em linhas gerais, os alunos gostaram e participaram da aula, fizeram críticas e reflexões inesperadas. Não existiram negações ou omissões ao tema
trabalhado, no entanto, problemas correlacionados à violência apareceram durante a aula. Tal circunstância já havia sido mencionada na criação da
proposta e o Hip-Hop aparece como um ponto de partida na batalha contra a violência escolar e social. A seguinte colocação é feita por RK, integrante
do grupo Aliados do Gueto em entrevista com a Revista Planeta Hip-Hop (2001, p. 07):

É uma questão de sentar e conversar, não adianta expressar a violência e não mostrar a solução. Por isso você tem que passar para a molecada um
aspecto positivo, deixar claro que eles podem sair daquele meio, é só ter fé e estudar. Nós temos que passar o lado positivo, pois é a única saída
para o lado negativo.

Neste caso, o Hip-Hop entra aqui como forma de aproximação do professor para com o aluno, através de um diálogo mais aberto e irrestrito aos
conhecimentos puros e simplesmente pedagógicos primando pela formação de valores. O trabalho de Rodrigues (2002) informa que Marx e Engels
alimentavam uma utopia, pois diziam que a exploração só deixaria de existir quando os explorados se apercebessem de sua exploração e somente
assim, haveria uma revolução social e política.
Através desta linha de pensamento é que este trabalho foi desenvolvido, lutando contra a alienação através de uma prática pedagógica, onde o
professor consiga fazer uma revolução do pensamento nas crianças e adolescentes pensando neles, enquanto futuros cidadãos atuantes na
sociedade.
Ao final da aplicação da proposta pedagógica foi possível comprovar que o Hip-Hop, além de auxiliar na prática pedagógica da sala de aula, realmente
contribui para a formação cidadã dos alunos e consegue alcançar os objetivos propostos nos PCN porque encontra-se desvinculado da cultura
midiática perpassada por valores que devem ser criticados.
Assim, este trabalho fez com que os aparatos teóricos construídos ao longo do curso de pedagogia fossem colocados em prática na atualidade escolar
brasileira, conseguindo a junção entre teoria e prática. Esta experiência foi extremamente gratificante, pois fez entender, na realidade da sala de
aula, o que é necessário ser e fazer pelos alunos hoje, para uma sociedade não excludente e mais democrática através de estudos árduos,
significativos e inovadores. E isto só foi possível de ser feito graças ao trabalho multidisciplinar disponibilizado pelo curso de graduação que conseguiu
promover uma formação baseada no mesmo princípio, o de formar educadores conscientes de suas responsabilidades. Portanto, a atividade de TCC
permitiu entender que através da Educação toda uma sociedade pode ser melhor.

Referências Bibliográficas

ABUD, Katia Maria. Registro e representação do cotidiano:a música popular na aula de história. In.: Cad. CEDES. v.25 n.67: Campinas, 2005.

ADORNO, Theodor W. & HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento:Fragmentos filosóficos. Trad. de Guido Antonio de Almeida. Rio de
Janeiro: Zahar, 1986.

BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria do Ensino Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais. Introdução. Versão da
Internet, 2006 a.

BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria do Ensino Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais. Língua Portuguesa. Versão
da Internet, 2006 b..

BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria do Ensino Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais. Artes. Versão da Internet,
2006 c.

DIÓGENES, Glória. Cartografias da cultura e da violência:gangues, galeras e o movimento Hip Hop. São Paulo: Annablume; Fortaleza : Secretaria
da cultura e do Desporto, 1998.

MAGRO, Viviane Melo de Mendonça. Adolescentes como autores como autores de si próprios: cotidiano, educação e o Hip Hop. Tese
(doutorado). Unicamp: Campinas, 2002.

MATSUNAGA, Priscila Saemi. Mulheres no hip hop:identidades e representações. Dissertação (Mestrado em Educação) Unicamp: Campinas, 2006

PLANETA HIP-HOP. São Paulo: Editora Escala Ano II – nº 10, 2001.

RODRIGUES, A. T. Sociedade, Educação e Emancipação. In: ______. Sociologia da Educação. 3 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.

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