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Cidades- Comunidades e Territórios

Jun. 2004, n.0 8, pp. 9-20

Os Significados do Território na Perspectiva do Desenvolvimento


Para uma Análise dos Problemas e Tensões Actuais
António Fragoso*

Resumo: O território tem sido considerado de distintas formas ao longo do tempo. Neste
artigo pretendemos apresentar os significados que lhe têm sido atribuídos, a dois níveis
diferentes: primeiro, como resultado de um conjunto de fenómenos que ocorreram a nível
global; segundo, como resultado das mudanças que se foram desenhando nos conceitos do
desenvolvimento comunitário e local.

Palavras-chave: território; globalização; relações local-global; desenvolvimento comunitário;


desenvolvimento local.

Os Significados do Território produção haveriam de beneficiar, de forma


numa Perspectiva Global relativamente igualitária, as pessoas das mais
diferentes sociedades.
Como parece natural, até à Segunda Guerra Os teóricos da modernização retiveram estes
Mundial o espaço e toda a problemática que o princípios básicos aliados aos princípios do
rodeia foram relativamente ignorados pela maioria Keynesianismo, mas a sua acção e ideologia foi
dos investigadores. As concepções da importância muito mais além. Fundamentalmente, viam as
do espaço vão surgindo associadas com os economias "atrasadas" dos países mais pobres
primeiros conceitos e acções de desenvolvimento dominadas por uma agricultura de subsistência;
planificado, no pós-guerra, crescendo no clima do caracterizadas por baixas taxas de acumulação de
paradigma da modernização e sofrendo as naturais capital e investimento; por um sector de comércio
influências das suas linhas estruturantes. Neste externo diminuto; por uma baixíssima produtivi­
sentido, é bom ter em mente uma perspectiva dade apesar do seu potencial de trabalho abundante
global das premissas fulcrais da modernização, e, finalmente, caracterizadas por um baixo índice
que grosso modo se poderiam sintetizar em dois de crescimento económico. Seria precisamente
pontos. I) A concepção de que existiria um único contra estas tendências que se haveria d e
processo de evolução social, sendo o seu estádio desenvolver a estratégia económica d a moderni­
de desenvolvimento mais avançado aquele que foi zação (Youngman, 2000), o que implicaria a
atingido p elos EUA na década de 50. Este criação de um terceiro sector muito forte, baseado
pressuposto que hoje vemos no mínimo como na industrialização e na agricultura comercial.
simplista foi avançado por Rostow (2000 [1960]), Seria inevitável a movimentação do trabalho
mas a verdade é que, não obstante as críticas - agrícola excedente para os restantes sectores e
bastante ferozes e perfeitamente naturais à luz do muito em particular para os serviços. Acreditava­
clima da Guerra Fria - de autores marxistas como -se nesta "movimentação" como se fosse algo
Baran e Hobsbawm (1969), conseguiu impor-se muito evidente, na medida em que o crescimento
durante alguns anos1. II) O crescimento do terciário absorveria o trabalho excedente.
económico foi eleito como a grande finalidade do No entanto, em muitos países a realidade foi antes
desenvolvimento, posto que se acreditava que os marcada pelas falências dos agricultores
rendimentos obtidos através dos aumentos de incapazes de acompanhar as exigências de

' Equiparado a Professor-Adjunto do grupo de Sociologia, Escola Superior de Educação, Universidade do Algarve. Contacto: aalmeida@ualg.pt
1 Como é óbvio não foi Rostow o único a impulsionar esta teoria e seríamos inclusivamente mais rigorosos se falássemos do esquema unificado
de Clark-Roslow-Vernon.

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mecanização e comercialização internacional da primordial para conseguir o funcionamento pleno


produção, até porque a mecanização crescente das instituições económicas e políticas modernas.
acabou por criar dificuldades também no terciário. E como parece óbvio, a educação representaria um
Há, no entanto, uma questão que nos parece instrumento central para conseguir as mudanças
crucial: o projecto da modernização nunca teria necessárias e assim produzir a nova individuali-
conhecido uma expansão e uma amplitude tão dade moderna.
grandes, se não fora pela sua capacidade de De qualquer forma, o desenvolvimento foi (é?)
promover ideais ou mitos que nada têm que ver visto essencialmente como crescimento econó-
com a esfera económica. As grandes preocupações mico, ou seja, como a produção que se vai
em torno do crescimento económico acabam por aumentando devido à expansão desse sector
atrair conjuntos de ideias e conceitos de muitos moderno e devido à exportação de produtos
outros campos de conhecimento. A concepção de primários – tanto maior quanto mais eficaz for a
que a área económica determina as escolhas integração de novos países no sistema económico
de grupos e de sociedades e que outras dimensões e financeiro do capitalismo internacional. Daqui
da vida social se comportam à sua imagem, se compreende a necessidade da implantação de
constituiu-se por conseguinte num dos pressupos- medidas políticas e económicas que promoviam,
tos fortes da modernização (Sousa, 1991). Mais do ou mesmo forçavam esta integração de cada vez
que impulsionar mudanças de índole económica, o mais países, o que paralelamente constituía uma
desenvolvimento sempre necessitou de promover medida de luta contra os do “bloco soviético”.
o aparecimento de novos valores, normas, insti- Avançadas estas breves ideias sobre a
tuições e organizações que têm de facto sido modernização, parece-nos claro que neste
introduzidas visando a transformação da ordem macrocontexto pouca margem de manobra havia
social (Brohman, 1996) e seria uma quase para o surgimento de concepções territoriais alia-
ingenuidade pensar o contrário. É então obrigató- das ao desenvolvimento, e que de alguma forma
rio colocar a seguinte questão: quais são as bases incluíssem noções que extravasam as preocupações
culturais, educativas, psicológicas ou sociológicas economicistas centrais. Compreende-se que para
que contribuíram para a formação do homem os países que então se consideravam “desenvol-
moderno, dotado de uma nova racionalidade vidos”, o único problema que aparecia com
moderna? – Posto que só o «novo homem moder- relativa frequência fosse a forma como o próprio
no» poderia participar adequadamente numa crescimento económico se manifestava de forma
modernização que implica o afastamento radical desigual no espaço, o que conduzia a desigual-
em relação à tradição e aos valores por ela impli- dades regionais claramente perceptíveis. É assim
cados. As nossas respostas são necessariamente que, segundo Benko (1999), a visão das regiões
curtas, mas teremos espaço para pelo menos por parte dos Estados surja fundamentalmente
balizarmos algumas tendências gerais determinan- como um problema, impondo-se a região como uma
tes. Talvez que em primeiro lugar seja de referir unidade de análise tão-somente porque represen-
a escola de sociologia dominante nos Estados tava uma preocupação importante da consciência
Unidos durante os anos 50, a do funcionalismo colectiva, concretizada na necessidade de políti-
estrutural de Talcott Parsons, que considerava a cas meramente correctivas.
mudança social como um processo de evolução Consequentemente (e ignorando agora
do simples ao complexo. Mas associada a esta muitos factos, acontecimentos e correntes
perspectiva foram aparecendo teorias psicológicas importantes…) foi preciso esperar até à crise
que também nos extremos da evolução moderna final do paradigma da modernização, para que
postulavam uma «personalidade moderna», que surgissem novos rumos. Não só porque a moder-
incluía inequivocamente termos como a motivação nização começava a ruir de forma inexorável, mas
ou o sucesso. Como refere Youngman (2000), a também porque a crise de 73, em certo sentido,
associação destas dimensões, explanadas à volta representava ainda o fracasso dos modelos
de uma dicotomia tradição/modernidade, teve como simplistas de interpretação das economias. Ora
resultado a ideia que seria necessário moldar os como afirma Reis (1988), as crises sentem-se de
comportamentos humanos modernos, condição forma mais evidente a nível local. É no local onde

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se concretizam e se transformam no “sentir evoluções se fizeram sentir, dado que coincidem


humano” os problemas específicos e simulta- com a radicalização do discurso do desenvolvimen-
neamente se pode criar alguma capacidade de to comunitário, por influência de autores como
reacção a estes mesmos problemas que afectam as Paulo Freire ou outros que, desde os países mais
vidas das populações. Pouco a pouco, começou a pobres, exprimem a sua insatisfação com a
tornar-se nítida a desconfiança em relação aos dominação ocidental, criando as suas próprias
modelos dominantes de desenvolvimento, ao alternativas radicais – educativas, sociais, etc.
mesmo tempo que se ia afirmando a crença, Como nos parece evidente, os significados
sobretudo nas zonas mais excluídas, que seria outorgados ao território vêm a sofrer alterações
necessário mobilizar os recursos humanos profundas sobretudo depois dos anos 90, não
endógenos (económicos, ambientais e culturais), porque só então fossem nítidos os impactos de uma
aparecendo assim o território concebido, ele globalização mais ou menos galopante, mas
próprio, como gerador de desenvolvimento sobretudo porque é a partir dessa década que mais
(Precedo, 1994). Há, portanto, a partir de meados estudos sobre o fenómeno vão aparecendo, sendo
dos anos 70, uma mudança importante: as críticas discutidos nos meios científicos e nos mais
às noções desenvolvimentalistas, ou a necessida- variados sectores sociais. Não é objectivo deste
de urgente de distinguir em termos conceptuais e artigo discutir especificamente a globalização.
práticos o crescimento do desenvolvimento, Desta forma dispensamo-nos de avançar com os
conduziram a um questionamento profundo dos conceitos base, a entrar no debate sobre se a
instrumentos até então usados – políticos, de globalização é ou não uma consequência da
decisão ou planificação, técnicos, etc. Numa modernidade, etc. Mas consideramos que para os
síntese superficial, o espaço já não era só uma nossos propósitos são interessantes algumas idei-
matriz amorfa que de forma secundária mate- as de David Harvey que, aliás, sempre esteve mui-
rializava as influências de um certo modelo de to preocupado com as questões do espaço, bem
desenvolvimento (apenas subsequentemente um como alguns breves apontamentos de Ülrich Beck
objecto de planeamento), mas consolida-se e Zygmunt Bauman.
progressivamente a convicção de que o espaço é Talvez possamos começar pela questão – é
sujeito de planeamento (Lopes, 1984). certo, já muito debatida – da globalização da
Também na década de 70 começam a produção nos últimos anos, particularmente pela
emergir perspectivas territoriais críticas, que acção das grandes corporações multinacionais.
avançam com propostas de desenvolvimento Já Fröbel et al. (1980) argumentavam sobre uma
alternativas. Algumas foram suportadas por nova divisão do trabalho na qual a produção de
movimentos sociais de certa importância, outras mercadorias vinha a desagregar-se em segmentos,
ficaram mais restringidas aos meios científicos. que podem ser atribuídos a qualquer parte do
Do que então era considerado o Terceiro Mundo mundo que ofereça as combinações mais
surgiu o paradigma territorialista auto-centrado, proveitosas de capital e trabalho. A questão é
materializado por Friedmann e Weaver (1979) retomada num outro sentido por Beck (2000), ao
como uma estratégia de resistência consciente ao avançar com as consequências dessa divisão de
movimento de internacionalização do capitalismo trabalho para uma certa redução do poder do
e ao domínio crescente das grandes corporações. Estado-Nação ou, posto de outra forma, para a
O pressuposto de base deste paradigma diz-nos transformação de um Estado-Nação que no
que para promover o desenvolvimento e a passado era profundamente territorial, em
satisfação das necessidades das populações é direcção a formas de controlo e regulação que
fundamental dar atenção aos recursos endógenos agora já não atravessam esse mesmo Estado, em
de um território, implicando-se as próprias nenhum dos sentidos. As noções de poder territorial
populações nesse processo. Tratar-se-ia de um de um Estado vêm, diz-nos o autor, do seu
processo gradual de emancipação, assente na enraizamento num lugar específico, da legislação
aprendizagem social explanada à volta dos corrente que produz, ou da defesa das suas
problemas sentidos nesse território. Não é de fronteiras físicas. Mas a globalização criou uma
estranhar que tenha sido nos anos 70 que estas multiplicidade de círculos sociais, redes de

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comunicação ou relações de mercado, nenhuma remete-nos, assim, para a capacidade reduzida das
delas enraizadas num espaço determinado, que comunidades reinventarem e reconstruírem os
literalmente atravessam os limites dos Estados seus próprios sistemas de normas e valores no
nacionais. que se refere a questões determinantes, mas
Esta aniquilação do espaço é também, ou simultaneamente espreita no hall das interrogações
talvez sobretudo, explanada em torno das relações sobre a autonomia do território e sobre a sua
de espaço-tempo e por aqui podemos começar a capacidade de resistência.
aproveitar as ideias de Harvey. Para o autor, toda Avançados estes apontamentos, resta-nos
a história do capitalismo tem sido caracterizada por tentar saber o seguinte: que novas concepções de
um progressivo acelerar do ritmo de vida, de modo território temos depois desta “passagem” mais ou
que se verifica actualmente um fenómeno de menos intempestiva da globalização? Em primeiro
compressão do tempo-espaço, que tem levado à lugar, é profundamente questionada a noção do
aniquilação do espaço através do tempo (Harvey, “território como fronteira”. Quer isto dizer que as
1990). Ora a aniquilação dos limites espaciais definições geográficas do espaço como algo que
permitiria a expansão da percepção do mundo pode ser delimitado seja para que propósito for,
como um sistema único. Aqui seria fundamental a ficam postas em causa pelos canais e pelos fluxos,
capacidade que o capitalismo tardio tem de pelas redes e pelas novas relações sociais que
reorganizar a sua própria geografia, produzindo perpassam esse espaço. Bastaria afirmar que quer
uma paisagem geográfica adaptada à sua dinâmica o capital quer o trabalho conhecem hoje uma
de acumulação num momento particular da mobilidade surpreendente. Por isso mesmo, o
História, apenas para destruir e reconstruir essa território como fronteira afigura-se hoje como
paisagem geográfica para acomodar a acumulação, uma bizarria inconsistente com a evolução das
numa data posterior. O processo envolveria sociedades.
aspectos distintos (Harvey, 2000): i) reduções no Segundo, salientamos as rápidas evoluções do
custo e no tempo de movimento sobre o espaço, território enquanto matriz para inscrição de
através de inovações tecnológicas contínuas; ii) a tendências económicas. Nos primeiros tempos da
construção de estruturas físicas para facilitar esse modernização o território aparecia em distintas
movimento, assim como para apoiar as actividades correntes (na verdade, poucas foram discutidas
de produção, distribuição e consumo; iii) a aqui…) como matéria sem especificidades
construção de uma organização territorial, desde próprias notáveis para além daquelas que podiam
os poderes de Estado para regular o dinheiro, até quantificar-se para obter mais rendimentos. Desta
aos meios de coerção e violência, que formam forma, o espaço era analisado para se estimarem
parte dos aparelhos de soberania. Nesta súmula as melhores localizações para unidades de
muito breve, talvez seja possível ver a globalização, produção, por exemplo, ou para de uma forma
essencialmente, como um processo de produção de geral se avaliarem as suas potencialidades
um desenvolvimento temporal não coincidente com económicas “naturais”. É certo que foi a partir dos
o geográfico. anos 70 e muito por responsabilidade de autores
Por último, Zygmunt Bauman tem estudado que queriam uma modernização “reformada”
os impactos humanos da globalização, falando por (Apter, 1987), de forma a dar-se atenção às
vezes das novas assimetrias que foi capaz de criar. questões da pobreza ou da desigualdade
Por exemplo, se é certo que os meios de comuni- crescentes (Friedmann, 1996), que surgem as
cação electrónica libertaram as elites do espaço, tentativas de afirmar que o desenvolvimento há-de
por outro lado o espaço é ainda muito importante ser humano. Nestas versões que tentam colocar
para as comunidades locais, posto que os lugares as pessoas acima do crescimento económico, o
de encontro público representam, por natureza, “território como inscrição” dá lugar a um outro que
focos de criação de normas e valores. Mas os se quer sujeito de planificação e dotado de novas
espaços locais onde se tomavam importantes potencialidades.
decisões já não são questionáveis, dado que as Mas julgamos que esta fase foi curta. De
decisões não têm em conta os microcontextos facto, o acelerar do ritmo da globalização tornou
(Bauman, 1998). Este breve apontamento possível trespassar este território, fazendo-o

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retornar à sua anterior condição de matéria em dois sentidos complementares: como uma
cinzenta, ou mais ainda: afinal, a aniquilação do espécie de combate contra os impactos globais que
espaço pelo tempo, a capacidade de mudança das minam o território; e tentando pensar num outro
paisagens geográficas do capitalismo tardio e o global composto por adição de uma multiplicidade
enorme contraste que estas tendências têm em de pequenos locais resistentes, quase tentando
relação a um espaço local ainda importante, mas reinventar o global através de múltiplos inputs no
completamente esvaziado do seu poder de sistema. Mas por outro lado talvez seja cenário
questionar decisões… inauguram uma tensão que comum o aparecimento de muitos territórios que
em certo momento há-de ter sido original: um integram elementos globalizantes, de forma
grande número de comunidades presas à tradição consciente ou não. Entre estes dois extremos do
abriga a contradição de saber que depende do “território como resistência” e do “território como
espaço para uma série de funções sociais integração” há um sem número de posições
importantes, mas essa noção de espaço/território intermédias, obviamente determinadas pelas
não tem funções válidas na vida moderna. Muitas estratégias que os actores sociais concretizam.
destas comunidades, neste processo de transição Em conclusão, precisaremos cada vez mais de
social acelerada – em destaque as rurais – este tipo de investigações que, centradas num
apresentam tensões igualmente preocupantes: território que pode ter dimensões muito variáveis,
culturalmente não podem deixar de ser populações se proponham a estudar a realidade social nesta
perspectiva. Que acções e estratégias dos actores
rurais, mas o seu modo de vida rural não é rentável
sociais podem ser consideradas de resistência?
economicamente, determinando uma decadência
Quais as consideradas de integração? E qual o
inexorável que por sua vez arrasta consigo
cenário conjugado resultante? As questões
mudanças sociais significativas. Há, portanto, uma
colocadas são simples, mas as eventuais respostas
descontinuidade gritante entre a evolução dos
parecem-nos complexas.
padrões culturais e sociais, que se torna
Um último apontamento que queremos
especialmente visível em certas situações, como
deixar refere-se ao território como repositório de
apontámos para o caso dos jovens adultos de um tendências eventualmente opostas. Dir-nos-ão
local na serra algarvia (Fragoso e Lucio-Villegas, que o tempo dos binómios ou das dicotomias
2004a). De qualquer das formas, há um sentimen- exclusivistas parece ter terminado e não podíamos
to geral que estas e outras tendências trouxeram estar mais de acordo. Precisamente, o que
um estranho significado de território, que mais se defendemos é que nunca antes foi tão necessário
parece hoje a um “território vazio” – imagem que encorajar análises que interpretem fenómenos de
alude também aos fenómenos migratórios provoca- sinal oposto como fazendo parte de uma mesma
dos por tendências macro que não parecem poder realidade social complexa, a merecer igual
ser significativamente travadas por qualquer complexidade de análise.
tipo de acção vinda do próprio território, especial-
mente quando falamos de territórios de menor Os Significados do Território
dimensão humana. numa Perspectiva Local
Terceiro, há um questionamento sério da
autonomia do território, esvaziado de antigas Na primeira secção deste artigo analisámos
funções e ainda procurando novas potencialidades os significados do território à luz das evoluções
nos fenómenos mais recentes. Esta autonomia históricas, económicas e sociais trazidas pelos
ver-se-ia tanto mais reduzida quanto mais grandes paradigmas de desenvolvimento. Estes
decisivas são as grandes questões que, de forma grandes paradigmas funcionam como um marco
transversal, afectam as vidas das pessoas que nele teórico muito amplo, enquadrando as perspectivas
vivem. Os níveis de autonomia de que o território territoriais mais localizadas, mas os dois níveis de
ainda dispõe jogam-se, de seguida, nas novas análise podem conjugar-se com vantagem. Deste
relações entre o local e o global. Alguns autores modo, não nos parece descabido olhar agora para o
têm insistido aqui numa versão do “território desenvolvimento comunitário e local, conceitos nos
como resistência”, uma resistência consciente e quais o território ocupa um lugar de destaque, pelo
culturalmente situada que tenta combater o global menos numa primeira abordagem.

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Nunca nos cansaremos de lembrar que os em países africanos ou outros2. O que isto significa
conceitos não se originam no vazio, mas sim num é que não obstante aparecerem determinadas
determinado contexto histórico, social e político que palavras e frases numa folha de papel impressa,
é preciso ter em conta. Caso contrário, perderemos temos a obrigação de ir mais além e analisar as
de vista os significados que verdadeiramente lhes intenções e sobretudo as aplicações práticas, na
foram sendo atribuídos e estaremos, como mais ou acção, que eram plasmadas a coberto desses
menos fervor, a mentir retrospectivamente ou a conceitos. Desta forma, o desenvolvimento
reinventar passados que nunca aconteceram. Nos comunitário que nos aparece nesta primeira fase
discursos do desenvolvimento comunitário e do é utilizado de muitas formas diferentes, desde
desenvolvimento local estes cuidados de contextua- uma simples forma de administração colonial
lização devem ser redobrados. Frequentemente são centralizada (simplesmente tentando «desenvol-
mencionados como se o que é assumido hoje ver» as comunidades sobre a sua alçada), até um
como válido sempre o tivesse sido; como se fosse mero instrumento de controlo social, ou como uma
indiferente falar de desenvolvimento comunitário forma sub-reptícia destinada a promover uma
na América do Sul, Europa ou África; como se integração pacífica de grupos sociais que
dentro da Europa houvesse alguma sombra de poderiam provocar contestações, agitação social e
consenso sobre o que são estes conceitos; ou como desintegrações indesejadas, sobretudo em
se, finalmente, Portugal não fosse um contexto muito contexto das difíceis transições para a indepen-
especial, quanto mais não seja pelos aconteci- dência. Mayo (1994) é especialmente clara nesta
mentos sociopolíticos da sua história recente. questão.
Esta enorme diversidade de situações, contextos, O segundo elemento que temos que consi-
semântica e significados faz com que seja extre- derar para entender este percurso do desenvolvi-
mamente difícil falar do desenvolvimento territorial mento comunitário é precisamente a influência
com alguma correcção. Daí que a nossa própria central que o paradigma da modernização –
versão seja apenas isso – uma voz mais entre as anteriormente já mencionado de forma breve –
muitas, tão sujeita aos problemas que brevemente teve sobre este conceito. Ora também aqui o
enunciámos como as demais. desenvolvimento comunitário se impõe como um
Para um bom entendimento das trajectórias processo ou como um conjunto de processos
realizadas pelo desenvolvimento comunitário é dirigido para a integração social e apostando nas
preciso contar com dois elementos centrais. vertentes (quase únicas) do crescimento
O primeiro diz respeito ao momento histórico económico. Tratava-se, pois, de um processo de
do surgimento do que então se chamou o desen- aprendizagem que estabelecia relações, formas
volvimento das comunidades: em contexto de intervenção e valores que estavam na base da
colonial ou na transição de antigos países colo- transição da comunidade para formas de coesão
nizados para outras formas de governo. Como é social caracterizadas pelos direitos individuais e
óbvio, não poderia nunca ter aparecido neste suportadas por uma divisão de trabalho crescente
contexto e assumir-se armado com algumas das (McClenaghan, 1999). Assim, na maioria dos
características que hoje em dia lhe são apontadas: países Ocidentais o desenvolvimento comunitário
desde o enfoque dado à participação, até às ideias representou um instrumento normalizador que,
sobre a emancipação dos sujeitos (surgidas apenas aparentando uma união comunitária, promovia o
durante o período de radicalização dos discursos seu oposto e participava na promoção dos grandes
do desenvolvimento comunitário, geralmente ideais da modernização: o crescimento económi-
enquadradas pelo paradigma sociocrítico co, o individualismo e a pretensa igualdade dos
originado na escola sociológica de Frankfurt). processos de evolução de qualquer sociedade.
Mas isto não quer dizer que a participação não Para os propósitos deste artigo, portanto, é
seja referida nas definições de desenvolvimento essencial realçar que o desenvolvimento comu-
da comunidade que foram aparecendo nos anos 50 nitário foi durante longos anos a seguir ao
e muitas delas emanadas por gabinetes coloniais pós-guerra um instrumento particularmente

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Em Rodriguéz (1970) podem ser consultadas muitas destas definições.

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Os Significados do Território na Perspectiva do Desenvolvimento

centralizado, que partia da acção governamental e comunidade é um conceito movediço que requer
que, geralmente, assentava em tentativas de uma reflexão conceptual cuidada, ainda que não
promover acções de desenvolvimento de forma nos cause nenhum transtorno o seu uso generali-
estritamente técnica e científica (Nogueiras, 1996). zado – desde que se insista mais no seu uso
Esta versão que aqui apresentamos afasta-se, imagético que no seu valor como conceito absoluto
radicalmente, dos sonhos nostálgicos de uma ou orientador.
comunidade como armazém de sentimentos de Em todo o caso, a verdade é que o desenvol-
mutualidade e solidariedade, perdidos no vimento comunitário seguiu o seu trilho como se
percurso histórico das sociedades; mas também munido de uma tranquilidade surda, incorporando
das imagens mais ou menos populistas, ou mais a comunidade como unidade de estudo. E isto,
ou menos românticas, do desenvolvimento comu- pensamos, foi um erro estratégico, pois que a
nitário como mola da emancipação dos sujeitos e imagem de fronteira prevaleceu no conceito, ainda
fonte de aproximação a formas mais directas de que possivelmente por desvirtudes de interpre-
democracia. tações apressadas ou feitas sem os devidos
Se o que dissemos tem alguma validade, cuidados. De agora em diante, que território é
quais são os significados que se descobrem nos este que nos é apresentado como finalidade última
territórios deste tipo de desenvolvimento? De dos esforços de desenvolvimento? É, sobretudo, um
novo nos aparece o território como inscrição de território dotado de uma terrível ambiguidade
vertentes económicas; de novo nos aparece um que busca um espaço bem determinado sem na
território esvaziado de potencialidades humanas realidade poder fazê-lo, ambiguidade que atraiçoa
ou incapaz de ditar os seus destinos; e aparece- tanto como a similitude entre o português e o
-nos, isso sim, um território claramente dotado de castelhano. Muitos esforços teriam que ser feitos
uma unidade de análise – a comunidade – que para provar que um determinado território é de
muito frequentemente assenta numa visão do facto uma comunidade… e esses esforços seriam
espaço como fronteira. De facto, nas definições inúteis posto que, escolhendo um território de
mais comuns de comunidade, quase sempre é dimensão muito maior (e não de dimensão
referido que se trata de uma zona geográfica que reduzida), tal “prova” conseguiria ser feita com
se pode delimitar com certa facilidade, ainda os critérios disponíveis, numa latitude tão grande
que essa delimitação esteja imbuída de determi- que poderíamos abarcar desde uma pequena
nismos relacionais. Vejamos, apenas por exemplo, aldeia isolada numa planície, até um bairro
a seguinte definição: comunidade é “um agrupa- urbano, ou a comunidade formada pelos países da
mento de pessoas que se percebem como unidade União Europeia.
social, cujos membros participam de alguma Sob um ponto de vista conceptual, no
característica, interesse, elementos, objectivo ou entanto, é inegável que muitos autores foram
função comum, com consciência de pertença, incorporando ao desenvolvimento comunitário
situados numa determinada área geográfica na características que o afastam da simples questão
qual a pluralidade das pessoas interage mais geográfica delimitada de forma rígida. É assim que
intensamente entre si que noutro contexto” os problemas e as necessidades das populações
(Ander-Egg, 1982: 45). Por outro lado, sempre tentam ser postas como o ponto de partida das
houve uma espantosa diversidade nos elementos iniciativas deste desenvolvimento, baseado na
que servem para definir o conceito, de tal forma participação das pessoas para tentar resolver
que, mesmo que não tenhamos espaço para esses mesmos problemas, com a finalidade de se
encetar aqui essa discussão, comunidade rapi- melhorar a sua qualidade de vida (como é possível
damente se tornou um sinónimo de desconfiança. ver, por exemplo, em Reszohazy (1988)). Neste
Tranformou-se numa espécie de amiba capaz de sentido, o território ganha novos significados.
materializar tudo ou quase tudo para todas as É sobretudo uma questão dinâmica da sua
pessoas, segundo os seus propósitos teóricos ou plasticidade, porque se o ponto de partida e o
práticos, ou até segundo os seus desejos mais ponto de chegada assentam numa concepção
idiossincráticos, de tal forma que muitos têm subjectiva qualitativa operacionalizada nos
vindo a propor o abandono do termo. No mínimo, sujeitos que habitam um território, não medida

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apenas pelos rendimentos obtidos nas várias Por outro lado, o desenvolvimento local como
actividades económicas, é de facto o próprio conceito, sobretudo ao longo dos anos 80 e falando
território que se afirma como sujeito de especificamente em Portugal, pôde em certas
desenvolvimento. versões ir ganhando um conjunto de característi-
Numa fase posterior, as muitas característi- cas que o dotaram, de facto e finalmente, de um
cas que se foram aglutinando ao conceito de carácter aproximadamente radical. Não só
desenvolvimento comunitário – que parece ter elegendo as pessoas de populações em dificul-
resistido aos que o acusavam de centralista, dades várias como o ponto de partida e simul-
defendendo interesses instalados e sem real taneamente de chegada, mas também pela ênfase
interesse pelas necessidades das populações – no colectivo como unidade filosófica e de trabalho
constituíram-se como um novo problema. Já de si concreto, na participação das pessoas como forma
era difícil confiar num conceito que se baseia de solucionar os problemas por elas sentidos, no
em algo tão suspeito como “comunidade”. Mas carácter endógeno dos processos (Melo, 1988;
quando se adicionam três, sete, dez novas Vachon, 2000) e na forma de empreender uma
características a um conceito, quando a variabi- integração que vá mais além do envolvimento
lidade é tão grande que temos que conversar sectorial completo, mas que entenda que é a
longamente apenas para saber se uns e outros cultura o locus ideal para pensar no tal desenvol-
estão a falar do mesmo, ou quando há o sentimento vimento integrado (Silva, 1994, 2000). Visto de esta
inevitável de perseguir um conceito que apenas é
forma (e ignorando outras características do
operacionalizado depois da escolha idiossincrática
desenvolvimento local), tratar-se-ia de um
da visão específica que nos interessa, relegando os
processo implicando alguma redistribuição de
restantes elementos para uma espécie de gueto
poder, capaz de provocar grandes mudanças a
conceptual… as resistências aumentam. O facto é
nível local… em suma, seria um processo que,
que para as pessoas preocupadas com o desenvol-
a contra-corrente, poderia efectivamente fazer a
vimento ao nível microterritorial, especialmente
diferença e repor algumas injustiças trazidas pelos
aquelas que se movem na acção, até o território
como fronteira é importante. Quanto mais não novos tempos modernos.
fosse, porque qualquer programa de financiamen- Em Portugal, no entanto, o local não
to exige que se diga onde vai a acção decorrer. consegue escapar à referência geográfica por
Estes elementos levaram, acreditamos, a uma dois motivos centrais, na nossa opinião: primeiro,
situação onde o conceito foi mantido porque porque muitos estudos se passaram a debruçar
precisávamos dele e dada a inexistência de sobre unidades que pareciam, de forma natural,
alternativas para a sua substituição – mesmo adaptar-se ao trabalho participativo à micro-
quando eram claros os problemas conceptuais que -escala – como acontece com as freguesias.
se levantavam de forma constante. Segundo, porque esse mesmo local-freguesia tem
O “surgimento” do desenvolvimento local – especificidades óptimas para a acção, entre os
na verdade e como afirma Amaro (1998) parece quais a delimitação geográfica claramente
antes ter-se aglutinado gradualmente em redor de estabelecida, a existência de órgãos de governo
várias utopias – parece ter trazido algum alívio a local como as Juntas, um tecido associativo
estas inquietações que alguns acharão ridículas. culturalmente situado capaz de se constituir
O local, desde logo, não apareceu conotado com o como fulcral nas parcerias indispensáveis, ou até
espaço ou, pelo menos, deixou a questão vaga e algumas especificidades que com mais ou menos
abriu-se a uma flexibilidade que se adequa à clareza vão passando como identitárias e nalguns
especificidade de cada caso concreto. Foi possível casos funcionam como factor de união num
ouvir, por exemplo, Alberto Melo a dizer que o colectivo julgado fundamental pelo desenvolvi-
local é onde as coisas acontecem, o que pode mento local.
aludir de forma inequívoca à importância fulcral Os anos 90, contudo, vão trazendo outras
de se iniciar a acção pelos interesses e problemas realidades que não deixaram de ter influência
das pessoas, ou simplesmente ao facto de ser sobre um território que parecia querer assumir-se
nessa unidade territorial que as mais distintas como um pouco mais dono dos seus destinos, com
tendências ganham corpo, nome e sentir. uma maior capacidade de reacção perante os

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Os Significados do Território na Perspectiva do Desenvolvimento

acontecimentos que o iam enquadrando a nível dificuldades crescentes na leitura do seu mundo
macro. Em primeiro lugar, o neo-liberalismo que em rápida transição, se quisermos numa
desde o início dos anos 80 se vinha cimentando. perspectiva Freiriana. Essas tensões são de vária
Contrariamente ao que poderíamos pensar, ordem e qualidade: entre a tradição e a moderni-
pensamos que viu nestas pequenas iniciativas a zação; entre o global e o local; entre a resistência e
nível territorial local algo que combinava a integração das estratégias globalizantes; entre
perfeitamente com os seus propósitos. Num uma participação inócua e consequente e uma
clima de retracção estatal em que os direitos participação contra-hegemónica; entre um colec-
educativos e sociais foram desde logo os mais tivo sobretudo imaginado e um individualismo
penalizados pelos cortes de financiamento e pela sem apelo; entre a aprendizagem como formação
des-responsabilização consequente, é muito humanista e a formação rigidamente dirigida ao
conveniente que aqui e ali vão aparecendo mercado laboral; e por aí adiante.
iniciativas que recorram a financiamentos não Evidentemente, falta-nos falar de um nível
estatais para irem preenchendo os vazios que, de certo modo, tem aparecido de forma
deixados por essa retracção. Longe já iam os transversal ao longo deste artigo: falamos das
tempos, também, em que a participação popular tensões entre os distintos significados do espaço e
representava uma ameaça – precisamente porque da sua importância para compreender fenómenos
essa mesma participação interessa objectivamente complexos. Isto, porque se considerarmos um
ao Estado neo-liberal – sobretudo porque esse território de reduzida dimensão, é muito possível
discurso foi sucessivamente co-optado pelos que descubramos que o espaço é, ainda, de uma
discursos da direita. Em segundo lugar, a importância considerável a muitos níveis; mas ao
globalização que parece acelerar a eficácia dos seus mesmo tempo, romper com as fronteiras desse
impactos inclusivamente a nível local. espaço talvez seja essencial para as pessoas que
É neste cenário que o desenvolvimento habitam esse espaço. Esta é mais uma das tensões
territorial local aparece muitas vezes invocando o que teremos que ter em conta e talvez seja
seu estatuto de resistente a estas tendências, como benéfico para o claro entendimento desta questão
podemos ver, por exemplo, em Melo (1995, 1999). avançarmos alguns elementos de uma investigação
Durante algum tempo, a resistência do local terá que realizámos (Fragoso, 2003).
eventualmente sido realçada pelo medo da perda Tratava-se de um estudo de casos múltiplo
da identidade dos pequenos locais face a uma centrado numa freguesia serrana do norte algarvio,
crescente homogeneização, pelo diluir constante que pretendia estudar as mudanças provocadas
da sua importância num mundo onde só os mais pelos processos de desenvolvimento local que
fortes sobrevivem e pelo facto de muitos locais, em ocorreram, desde 1985 até ao ano de 2002.
Portugal, permanecerem ainda mansamente na O espaço social que a freguesia nos apresenta era,
tradição, quando o resto do mundo, especialmente desde logo, uma questão a merecer alguma
o urbano, empreende caminhadas galopantes em atenção. A freguesia tem actualmente cerca de
direcção à modernização. Assim se compreende o 1000 residentes; mas apenas cerca de 200 vivem
acentuar desta dimensão umbilical do desenvol- em Cachopo, aldeia cabeça da freguesia que
vimento local, que pretende eleger o local como concentra todos os serviços. Os restantes 800
resistência. habitantes estão dispersos por cerca de 55 montes
Actualmente, pensamos que o território que se espraiam numa área montanhosa de cerca
local é principalmente marcado por um série de de 200 Km2. Alguns destes montes estão em risco
tensões que o atravessam e caracterizam. O “ter- de ficar desabitados em breve (como aconteceu
ritório-tensão” abarca, então, uma espécie de com Estragamanténs) e o maior deles alberga
conflito permanente entre tendências que nalguns tão-somente cerca de 60 pessoas. Esta ocupação
casos são, inequivocamente, de sinal contrário, mas peculiar do espaço conjugada com outros factores
cujo resultado final é imprevisível – como configura, desde logo, uma série de problemas
imprevisíveis são todos os processos de mudança que de forma particularmente notória colocam em
social – ainda mais quando, na sua maioria, os dificuldades extremas três grupos em particular:
territórios são habitados por pessoas com as crianças, as mulheres e os adultos mais velhos.

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CIDADES Comunidades e Territórios

Foi já com a investigação no seu fecho (as inves- peso da tradição nas relações de género ainda
tigações nunca estão terminadas, mas decidimos existentes em Cachopo), em que se dá uma grande
encerrá-las nalgum ponto que julgamos conveni- liberdade aos homens e não se permite que as
ente) que nos lembrámos de aplicar, a título mulheres o façam sem que se gere uma forte
exploratório, alguns conceitos base da investiga- crítica social, especialmente quando falamos de
ção sobre redes sociais aos dados que tínhamos relações que extravasam o carácter familiar.
obtido, numa tentativa de explicar alguns É assim que os canais e fluxos estabelecidos pelas
fenómenos que permaneciam menos claros. Temos mulheres, de uma forma geral, são desde logo
que realçar que não estudámos a rede social de mais reduzidos e claramente sujeitos a um limite
forma exaustiva como provavelmente o fariam os socioespacial. Assim se explica, embora apenas
investigadores do campo, nem falámos com todos parcialmente, que o simples facto de que um
os habitantes perguntando-lhes ao certo com quem grupo de mulheres iniciar uma formação profis-
se relacionavam e como, etc. Os resultados obtidos sional – ficando oito horas por dia fora do seu
são para ser vistos com precaução. espaço tradicional, com todas as demais
Podemos no entanto dar um pequeno consequências que isso tem para a vida familiar e
exemplo da importância do espaço social sobre para as relações entre géneros – despolete
outro tipo de factores, considerando o elemento reacções tão violentas.
de género. Muitos dos montes da freguesia Não temos espaço para fornecer mais
constituem pequenas sub-redes com fluxos exemplos, mas acreditamos que o facto principal
diferenciados entre si e entre a cabeça de está argumentado: o espaço e os seus significados
freguesia, que naturalmente constitui a sub-rede continuam de facto a ser importantíssimos neste
de maior importância. Alguns destes montes que território, em distintos sentidos. Mas o que
ficam geograficamente mais próximos de Cachopo interessa agora é analisar a importância do
possuem canais de comunicação e fluxos entre os rompimento das fronteiras desse espaço. Durante
actores relativamente fluidos. Mas o cenário mais a nossa investigação foi claro um fenómeno a que
normal é que estas relações sociais entre um de- chamámos o “espaço social limitado” (Fragoso e
terminado monte e Cachopo sejam feitas através Lucio-Villegas, 2004): a dimensão total da rede
de canais temporários que no dia-a-dia funcionam social tem uma capacidade reduzida para
com base na necessidade (mais imperiosa, menos acomodar grupos e actores centrais dentro
imperiosa) de aceder aos serviços disponíveis, desses grupos, desde que se proponham a realizar
resultando em fluxos reduzidos e, sobretudo, numa diversas actividades sociais. Há, portanto, sinais
rede total bastante fragmentada. Tudo isto pode ser muito claros de uma competição intra-rede pelo
natural; o surpreendente é encontrar montes de espaço social de intervenção. Mais, embora se
reduzida dimensão humana nos quais parecem trate de actores que durante anos agiram muito bem
existir alguns níveis de fragmentação internos. enquadrados pelo Projecto Radial e a associação
Como exemplo, achamos que os papéis de In Loco, no sentido da criação de colectivos, há
género se encontram claramente associados com o uma intensa competição individual (obviamente,
espaço. As mulheres gravitam, ainda hoje em dia, também explicada por outros factores) em
quase estritamente à volta das suas casas e da direcção à centralidade e status, por parte dos
pequena propriedade rural familiar. Todos os seus sujeitos mais activos – tanto, que chegam inten-
esforços são devotados à sua manutenção e à da cionalmente a bloquear iniciativas que seriam
unidade familiar. Em contraste, os empregos benéficas para a freguesia, tão-somente porque
possuídos pelos homens permitem que estes se foram propostas pelo grupo do lado. O facto de que
libertem com mais facilidade das sub-redes em a rede total constitui um espaço social limitado
que residem e que estabeleçam canais para a troca representa muitas vezes um bloqueio à acção,
de recursos com outras sub-redes, ou até com exactamente porque dada a dimensão da rede é
redes externas à da freguesia. Mas isto é válido, difícil descobrir alternativas internas para
não apenas para as relações estabelecidas em prosseguir com os processos, sobretudo nas
consequência da actividade profissional, mas ocasiões em que surgem conflitos. No nosso caso
também para os tempos de lazer (sem dúvida pelo foi muito claro que as pessoas que em determina-

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Os Significados do Território na Perspectiva do Desenvolvimento

dos momentos conseguiram trazer avanços desenho e na configuração da rede social, que
consideráveis para os processos, foram precisa- pode ou não coincidir com a dimensão espacial.
mente aquelas que conseguiram escapar a este Força-nos, portanto, a valorizar os factores
espaço social limitado: foram capazes de procurar relacionais e a estar mais próximos da forma
e encontrar actores, entidades ou instituições como as pessoas e grupos se relacionam uns com
externas ao território, coordenar-se com elas e os outros – aspecto bastante importante quando
assim enriquecer o processo (provando que as uma parte significativa dos bloqueios que surgem
articulações externas são fundamentais para o em processos de desenvolvimento local têm uma
desenvolvimento local). Mas, evidentemente, os origem relacional.
restantes actores sociais, sobretudo os perten- Muito mais haveria que dizer sobre estes
centes a outras sub-redes, fazem-lhes “pagar a fenómenos, que aqui apenas tocámos superfi-
factura”. Do ponto de vista do território e cialmente. O que neste momento queremos realçar
principalmente colocando-nos na perspectiva dos é apenas o seguinte: em territórios com determi-
sujeitos, a grande contradição está aqui: embora nadas características, os significados atribuídos
não haja alternativas internas para planificar e ao espaço social são ainda determinantes. Não
executar determinadas acções, devido à limitação obstante a existência de tendências globalizantes
social do espaço, o rompimento com os limites da para a aniquilação dos sentidos mais tradicionais
rede, fundamental para desbloquear os processos, desse espaço, ou talvez porque causa delas, existe
traz dificuldades acrescidas na aceitação social dos um número significativo de tensões permanentes,
actores que o empreendem. algumas das quais são nitidamente prejudiciais ao
A aplicação embrionária e exploratória da trabalho do desenvolvimento local.
investigação sobre redes sociais trouxe-nos Para concluir este texto, podemos talvez
algumas vantagens importantes. Para a finalidade dizer que o território é para nós algo muito fluido,
deste artigo, interessa-nos sobretudo considerar o que como vimos não se esgota na sua concepção
seguinte: as redes sociais têm os seus desenhos tradicional de território como espaço ou território
particulares e o ambiental estrutural da rede como fronteira. Consideramos que inclui uma
pode, assim, trazer quer oportunidades quer série de características talvez abusiva, mas que de
constrangimentos à acção individual e colectiva uma forma muito pragmática derivam das nossas
(Wasserman e Faust, 1994). Nesta linha, fomos próprias percepções enquanto investigadores que
efectivamente capazes de dar explicações se dedicam ao desenvolvimento local em espaços
para acontecimentos e fenómenos que até então rurais, num meio marcado por grandes
estavam menos claros, nomeadamente ganhando dicotomias – a região Algarvia. Como já referimos
outra perspectiva sobre as situações de bloqueio anteriormente, considerarmos que há muito
aos processos de desenvolvimento local que espaço para reflexões diversas sobre este tema…
surgiram no nosso caso. Mas para além deste nunca deixará de nos surpreender o imenso
aspecto mais óbvio, parece-nos que a investigação número de questões que permanecem por
sobre redes sociais nos liberta um pouco dos responder, permanentemente questionando um
constrangimentos espaciais que poderiam território que já foi considerado como indiferente,
eventualmente estar presentes, quer na acção como acabado, como revitalizado, como resistente,
quer na investigação. Permite que um investigador como integrador, como reactivo ou como palco de
se centre, não nos aspectos geográficos de enormes tensões. Felizmente a história, como bem
delimitação de um território qualquer, mas no sabemos, não acaba aqui.

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CIDADES Comunidades e Territórios

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