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Brito, Lâmia
Todas as funções de uma cicatriz / Lâmia Brito. --
1. ed. -- São Paulo : Ed. do Autor, 2017.
ISBN: 978-85-922815-0-2
contatos: lamialais@gmail.com
facebook: www.facebook.com/lamiabrito
instagram: @lamiabrito
twitter: @lamiabrito
site: www.lamiabrito.com.br
DOBURRO, 2017
desculpe o atraso,
fiquei presa num poema.
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trent reznor
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quis saber porque eu tinha tantas cicatrizes. contou uma por uma.
quarenta e três. uma por uma, assim, em voz alta, parecia que eram
mil. revirou meu corpo para ver se não tinha esquecido nenhuma.
talvez tivesse. perguntou como, onde, quando, os motivos.
dei risada. não porque era engraçado, mas porque não fazia sentido.
quarenta e três riscos tão parte de mim que no frio somem. pulsam
sincopados quando estou com raiva. incham de suor e empatia.
adaptam-se a cada transformação. são tatuagens que eu mesma
fiz. acidentes que eu escolhi causar. cirurgias que a vida decidiu
que eu tinha que fazer. e nas que eu rejeitei, nasceram queloides.
esta é a função da cicatriz: autoaceitar. eu sofri todo o processo.
a ferida se abriu e aquele vermelho tão vivo impossível não
estancar e aquela dor impossível não sentir e então, pela primeira
vez, era vida de verdade. tudo o que estava fragmentado no ar de
repente virou uma coisa só e era palpável, era dor física, muito
mais suportável. do vermelho, pro roxo, pro verde, pra cor da
minha pele. esta é a função da cicatriz: recompor. uma experiência
por cicatriz e a vida é feita de memória. as recentes são as mais
latentes, por isso o corpo vira diário. estigma voluntário, marcas
de ressurreição. encontrei na base da lâmina a terapia e não foi
tristeza, ainda que argumentativa, mas desejo de conexão. isto não
é sobre superação e final feliz, este não é um livro de autoajuda.
cada palavra, uma gota de sangue que escorreu. esta é a função da
cicatriz: relembrar.
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eu moro nas coisas deixadas por pessoas que não significam mais
e da janela do meu quarto eu passo o dia organizando o horizonte
eu limpo a sujeira que a chuva não é capaz
já cuidei dos gatos e esvaziei as gavetas
eu sei o que esses móveis vão dizer quando você for embora
vou juntar todas as lágrimas e vou regar as plantas
nascerá uma cidade intransitável
o barulho da cidade
dos carros
escavadeiras perfurando tímpanos
não adianta fone de ouvido
vivemos metafisicamente
do olho ao umbigo
com todo o cuidado do mundo
pra que a realidade não esmoreça
a pobreza
a sujeira
a arte
a hipocrisia
o terror
a sorte
a vida do outro
e mudamos de canal.
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amor é possessão
medo é constante
ciúme é tolerável
tristeza dez miligramas
alegria baseado de ponta
tudo convenção
nessas inversões
em que a moral insiste em existir
o limite já está dado
não caio mais em conversa de elevador:
entre o frio e o calor, eu prefiro a solidão.
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sem perspectiva
sem expectativa
dalí da sua imagem fez-se surreal
MARIA
da rua à formalidade
contrato feito no passado
tentado a acreditar em destino
mal do homem conformado
enfrentamento diário
passo apertado
olhar sanguinário
palavra mal dada
nó não atado
foco à direita
viveu em barraco
sofreu em moeda
trabalhou por comida
rezou santo errado
andou pra caralho
agora o que dizem
é que sucumbiu
viu em novela
sua vida não bela
acordou assustado
não dormiu tempestade
jornal cobre janela
a imprensa não vem até aqui
de preto e vermelho
sem pátria e bandeira
que grita seu norte
sem medo e contando com a sorte
um dia
quando isso tudo passar
eu vou olhar pra você
e contar que nos dedos de uma só mão
os amores que eu tive foram de doer
e me fizeram hoje este coração duro te pedir abrigo
não porque me vi apaixonada
mas porque em meio a esta paixão-razão que me foge
me flagrei muito cansada.
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é tipo quando você come alguma coisa e aquela coisa fica lá no seu
estômago horas te estufando e fazendo uns barulhos esquisitos e
não querendo sair dali e te enchendo te irritando te paralisando não
te deixando fazer mais nada e aí você pega essa coisa e coloca na
sua cabeça e multiplica por mil coisas e faz essas coisas gritarem
por socorro peloamordedeus socorro querendo urgentemente uma
saída porque você tem certeza que tem uma bomba-relógio no seu
cérebro tic-tac-tic-tac-tic-tac-tic-tac-tic-tac-tic-tac que vai explodir
a qualquer momento e elas precisam sair de lá por algum lugar e aí
você tem que tampar os ouvidos com a pressão de uma panela de
pressão porque essas coisas estão gritando é ensurdecedor é vazio
e transborda ao mesmo tempo e você não consegue parar pra pensar
numa solução e você sabe que as coisas que estão lá vão explodir a
qualquer momento e não dá pra pensar não tem como pensar e está
escuro por quê tá escuro você queria ter mais mãos pra não ouvir e
não ver e você já não sabe mais se é estômago revirado ou cabeça
em ponto de aneurisma e sempre vem alguém perguntar o que tá
acontecendo se você precisa de ajuda quer uma água senta aqui
respira vai passar mas ela não quer saber se você precisa de ajuda
ela só quer saber de alguma coisa pra contar na próxima vez que
encontrar os amigos dela e então você chora e deita e depois tudo se
apaga e termina.
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couraça
carcaça
ferro em brasa
marcada
vinte e cinco anos de procura
que não deu em nada
PARA PEDRO
nós mudamos, meu irmão. antes era uma coisa meio confusa, meio
“eu só vim aqui pra olhar” e você me seguia por onde eu ia e o que
quer que eu fizesse você não questionava. a gente lia livros pela
estrada, comia horrores na beira dos postos de gasolina (eram
aqueles pães de forma com queijo que eu roubava do mercado da
esquina). achava que tudo era um filme sessão da madrugada desses
que se vê por acaso, sem créditos no final. a gente também escrevia.
era tudo ruim, melancólico demais – bocage, augusto dos anjos,
geração beatnik, não dava pra ser feliz assim. mas foi pela escrita
que a gente não se matou. e pela música também (aquele punk rock
salvou nossas vidas). as viagens pro centro da cidade eram nosso
abismo particular. só o dinheiro da condução no bolso, como a gente
conseguia ficar tão louco? e tudo ficou louco demais quando eu não
quis mais voltar. foi uma história bem triste pra nós, não sei pra
quem mais. porra, mano, eu só tinha dezesseis. eu parei de escrever.
você acabou com o estoque de cadernos e o mundo encolheu. dois
mil e cinco foi o ano que nunca existiu.
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PARA R.V.
a faca
mesmo cega
corta
só depende de quem segura.
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você me quebrou
como criança perversa
e sua boneca
você me desmontou
abandonado
trancado
POESIA ENCRAVADA
encontra o amigo
pra esquecer o amor
típico.
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atravesse a cidade
declame poesia
grite
eu não vou ouvir
evite o toque
não toque no assunto
figurinha
repetida
não
completa
alma.
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um convite informal
pra estabilizar a turbulência dos nossos dias
passou pela minha cabeça em ligar pra você
mas achei que pareceria estranho querer conversar
sobre as coisas que explicam a morte pré-avisada
você some
eu calo
você preta
eu pálido
você viaja
eu escrevo
você bahia
eu rio de janeiro
as unhas encravam
a carne sangra
os lábios tentam
só se escuta ranger.
não há deus
não há dor
não há vergonha
vai além
transcende.
quase lá...
vivendo todos os séculos de uma vez
todo o gozo que se fez
de olhos bem fechados
nossa prática é a arte lençol adentro.
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jéssica balbino
todas as funções de uma cicatriz
foi composto em bodoni 72 oldstyle 10,
e impresso na gráfica psi7 em março de 2017
em papel pólen 90g/m 2 para o selo do burro.