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ENSAIO

Algo mais do que um bigode em comum


SÁBADO, 8/03/2008 l biss@gazetadoparana.com.br l (45) 3218-2528

Honoré de Balzac e Lester Bangs revelam os abismos e sombras na alma do jornalismo cultural

SILVIO DEMÉTRIO Nascido em 1948 no


DA REDAÇÃO condado de Escondido
na Califórnia, Lester Ban-
Se Honoré de Balzac gs foi uma daquelas tra-
tivesse escrito resenhas jetórias curtas e intensas
críticas de álbuns de rock que se fazem sentir atra-
seu nome seria Lester vés da história. Morreu
Bangs. Isto é só uma brin- com apenas 33 anos em
cadeira e, no caso, não função de uma overdose
toma mais do que o bi- de Valium, em 1982. Seu
gode em comum a ambas estilo como crítico era
as figuras como um traço marcado por uma retóri-
fisionômico do qual se ca ácida e ao mesmo tem-
desdobram outras afini- po encantadora. Ao des-
dades. Há algo mais do crever um disco, Bangs
que uma aparência fisio- Balzac e Bangs, afinidades transcendem distâncias na história DIVULGAÇÃO falava dele como um vi-
nômica semelhante. Tan- sionário ensandecido e
to Balzac quanto Bangs paranóico enxergando
são figuras que oscilam da paixão mais des- começo do século XIX. “As Ilusões Perdidas” cias no retrato do que é desprezível. Impren- sentidos sobre sentidos em todo e qualquer
lavada pelo que fazem à perfídia mais abso- é um livro que faz parte da “Comédia Hu- sa sublime. Balzac vai tão longe nisto que mínimo detalhe, numa intensidade crescen-
luta em relação ao mesmo objeto – a ativi- mana”, e foi essencialmente publicada em chega a dedicar uma monografia especial- te até provocar uma microfonia poética que
dade do crítico de cultura que publica sua forma de folhetim entre 1935 e 1936 em Pa- mente à caracterização dos tipos que fre- torna sua crítica musical um gênero de poe-
produção na imprensa diária. ris. Nela Balzac descreve todos os vícios da qüentam as redações. “Os Jornalistas”, que sia. Mas nada disto acontece sem uma dose
Honoré de Balzac nasceu em 1799 e, du- imprensa da época. É possível considerar a no Brasil tem uma tradução publicada pela aterradora do melhor sarcasmo punk ino-
rante os 51 anos que vão se seguir, sua pro- seguinte equação: “As Ilusões Perdidas de Ediouro, com prefácio obrigatório assinado culado de forma letal no coração dos sonhos
sa vai construir uma obra monumental, “A Balzac” está para o jornalismo assim como por Carlos Heitor Cony, é um estudo antro- enlatados da indústria de clichês conhecida
Comédia Humana” – uma das grandes ma- “O Príncipe” de Maquiavel está para a polí- pológico desse universo fascinante do jor- como Mundo das Celebridades. Se o con-
trizes que inaugura e dá forma à novela rea- tica. A zona de sombras que Balzac explora nalismo visto sob o ângulo da literatura. teúdo dos textos de Bangs é algumas vezes
lista. Uma infinidade de personagens com- com sua lupa realista ao dissecar a impren- E de um bigode como traço de seme- amargo, sua poética afina com a ambrosia
põe o universo ficcional de Balzac, mas uma sa parisiense no século XIX o leva a compor lhança, do rosto de Balzac se reverbera e se da música das esferas. Imprensa sublime,
figura em especial se coloca como síntese um retrato dos principais tropeços que a de- reconhece a fisionomia do maior de todos, tanto quanto em Balzac, aversão e paixão
de sua obra, Lucien de Rubempré, o prota- sencaminham de um horizonte ético. Para o padroeiro de toda a crítica pop no jorna- segundo uma mesma medida excessiva,
gonista de “As Ilusões Perdidas”. Um de seus Balzac esta é a essência mesma da impren- lismo contemporâneo: Lester Bangs, que co- portanto sublime. Essa capacidade de nu-
mais fortes personagens, criado com com- sa. A iminência do abismo à espreita como meçou na imprensa especializada em rock trir paixão por algo do qual se conhecem as
ponentes diretamente autobiográficos, Ru- constante. E isto ao mesmo tempo faz da im- com uma crítica do disco “Kick Out the Jams”, sombras torna tanto Bangs quanto Balzac ir-
bempré incorpora em si toda a virulência prensa algo irresistível para Balzac – sua co- do grupo MC5, na então contracultural “Ro- remediavelmente humanos e condenados
de Balzac contra a imprensa. Atitude para- média demasiadamente humana. Todas as lling Stone”, quando sua redação ainda fica- às contradições inerentes aos que são au-
doxal vinda de alguém que não conheceu máculas da promiscuidade dos críticos ávi- va em São Francisco no final dos anos 60. A tênticos por natureza. Uma amostra do gê-
outro ofício e que por ele sacrificou grande dos por ingressos para o teatro, os grandes carreira na “Rolling Stone” vai durar até 1973, nio intempestivo das críticas de Lester Ban-
parte de sua vida envolvido em dívidas con- esquemas dos livreiros para verem suas quando o editor Jann Wenner demitiu Ban- gs começa a ser publicada no caderno “Ga-
traídas na difícil arte de administrar um em- publicações apresentadas como imprescin- gs depois de considerar insultoso um artigo zeta Alt” a partir desse domingo. A tradução
preendimento editorial. Conta-se que díveis, enfim, o que se chama de “jabá” no sobre o grupo Canned Heat. Depois do inci- de “Como Ser Um Crítico de Rock” é um tex-
Balzac era o escritor predileto de Lênin. O jornalismo cultural – está tudo exposto e dente, Bangs muda-se para Detroit e vai edi- to ainda inédito no Brasil e mostra toda a
líder da revolução soviética via nos perso- devidamente mapeado pela pena implacá- tar a revista “Crêem”, fase sua que é retrata- virulência do estilo de um dos maiores críti-
nagens balzaquianos um retrato mundano vel de Balzac. Tanta aversão, mas também da no filme “Quase Famosos”, de Cameron cos de rock de todos os tempos: Lester Ban-
dos hábitos da alta burguesia francesa do ao mesmo tempo tanta paixão pelas minú- Crowe. gs é um clássico, o Balzac do rock-and-roll.

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