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ARMAND FRÉMONT
Professor na U niversidade de Caei*

A REGIÃO,
ESPAÇO VIVIDO

T radução de A N T Ô N I O G O N Ç A L V E S

Revisão de A N T Ô N IO G A M A M EN D ES

Liv r a r ia A l m e d in a
COIMBRA ~ 1980
144 i

que precedera, a análise geográfica deveria contribuir para a


descriptagem dos lugares, de família em família e de apro­
fundamento em aprofundamento, do que representam, quer
dizer, do que mostram e do que velam.
CAPÍTULO II

OS ESPAÇOS SOCIAIS

O espaço social pode receber vários tipos de definições.


Numa acepção bastante vaga, o espaço social define o ter­
ritório de um grupo ou de uma classe numa dada região:
o espaço social de uma família, dos operários de uma fábrica,
das mulheres de uma aldeia, das pessoas idosas de uma
cidade... Uma concepção mais rica e mais sintética faz do
espaço social uma malha na trama das relações hierarqui-
zadas do espaço e dos homens: num território relativa­
mente restrito, mas não pontual, uma combinação bas­
tante forte das relações dos homens entre si, e dos homens
com os lugares, distingue-se por uma coerência particular,
de que os homens e as mulheres do grupo têm nítida cons­
ciência. Mas esta ligação dos grupos elementares aos seus
lugares de vida não se manifesta de modo nenhum homoge-
neamente na superfície do globo. Na multiplicidade quase
infinita dos casos, podemos todavia tentar reconhecer alguns
tipos fundamentais e, entre estes, movimentos e mutações
que modificam sem cessar a repartição e os valores dos
espaços sociais.

R E- io
146

1. TIPOS DE ESPAÇOS SOCIAIS

A coerência do grupo, que se traduz pela força das rela­


ções que unem os homens entre si, não se manifesta obriga­
toriamente por uma coerência análoga do espaço vivido.
Ao distinguir o rural e o urbano, pode construir-se, com
base nesta constatação, uma tipologia teórica em oito
figuras:

R ural/U rbano

1-2. Grupo e espaço sem coerência.


3-4. Grupo coerente sem coerência do espaço.
5-6. Grupo e espaço coerentes.
7-8. Espaço coerente sem coerência social.

Não teremos em conta os casos 1 e 2, que exprimem


a ausência de qualquer organização. Os outros três tipos
podem ser analisados a partir de numerosos casos.

A) O acampamento e o território

Os trabalhos dos etnólogos e dos geógrafos fornecem


múltiplos exemplos, muitas vezes notavelmente estudados,
de grupos sociais coerentes vivendo em espaços mal fixados.
As páginas de C. Lévi-Strauss sobre os índios da Amazônia
e do Mato Grosso são clássicos do gênero. Algumas gera­
ções de etnólogos têm feito uma longa série de estudos
sobre as sociedades «arcaicas» da Oceania, da Indonésia,
da Península Indo-Chinesa, da África, da América, das
margens Árcticas... Os geógrafos dão também, à sua ma-
147

FIG. 7. — Situação dos Tuareg Iilabakan na República do Niger


(segundo Bemus)

neira, uma contribuição para este conhecimento. A título de


exemplo, podemos reter as monografias de terroirs (*) afri­
canos realizadas sob a direcção de P. Pélissier e de G. Saut-
ter. Desta soma extrai-se uma linha geral. Na maior parte
do Terceiro Mundo, onde as densidades de população
permanecem reduzidas ou muito reduzidas, e onde as
influências da civilização industrial puderam penetrar,
pode observar-se, segundo modalidades muito variadas,
uma forte coerência dos grupos humanos, que se repar­
tem por territórios bastante mal definidos.

(*) Terroir — terreno agrícofa, unidade física agrícola. (N. R.)


Os pastores nômadas que vivem na periferia do Sahará
ou nos seus prolongamentos associam-se em grupos e tri­
bos cimentados por fortíssimas relações de hierarquia feu­
dal, de endogamia e de linhagem. E. Bernus (7) sublinha
assim, por exemplo, a notável coerência social do grupo dos
Tuareg Illabakan, que nomadizam, no coração da Repú­
blica do Niger, entre os pontos de água Sahelianos frequen­
tados naí estafllo seca (In-Aggar, Tofamanir, Tamaya, etc.)
e as pastagens saharianas de In-Gitan e de Teggida NTe-
semt, para onde se dirigem na estação das chuvas. Os gru­
pos e tribos estão federados numa organização piramidal
de tipo feudal, cuja recordação permanece apesar das remo­
delações incessantes devidas às rivalidades, às guerras, à
Administração. A endogamia é quase perfeita; as combi­
nações matrimoniais são múltiplas, mas com um tipo de
casamento preferencial entre primos cru/ados. «As únicas
relações colectivas decorrem no interior da tribo, quer se
trate de casamentos, de encontros diversos entre acampa­
mentos, no momento da «cura salgada» ou de grandes
festas religiosas (Ramadão, Tabaski)». O sentimento de per­
tencer a um mesmo grupo é pois vivo. Marca nitidamente
o desenrolar quotidiano da vida.
No entanto, o espaço vivido dos Tuareg Illabakan
parece muito mais difícil de delimitar. Nomadizam, com
efeito, num vasto território, de uma centena de quilômetros
de largura este-oeste, e de quase duzentos quilômetros do
sul ao norte. Os Illabakan não ocupam sozinhos estes
lugares. Os seus acampamentos encontram-se dispersos no

(T) E. Bernus, «Espace géographique et champs sociaux chez


les Touareg Illabakan (République du Niger)», in Terroirs africaitts
et malgaches, 1970.
1 / Estação seca
150

meio dos de outros grupos, tribos, etnias, principalmente em


redor dos pontos de água da estação seca. Aos diferrntes
grupos Tuareg, separados por nítidas clivagens sociais, acres­
centam-se diversos grupos de nômadas peul [fulas] ou árabes.
Ao longo de todo o Sahel, a tese de J. Gallais sobre o delta
interior do Niger, ou os trabalhos em curso de A. Lericol-
lais sobre o vale do Senegal, revelam esta mesma «inex-
trincável mistura de tribos pertencentes a grupos diferentes».
Além disso, estes territórios ocupados por vários são geral­
mente frequentados, quando muito, desde há algumas gera­
ções. O território dos Illabakan tem assim flutuado do
norte ao sul em função das guerras e das rivalidades de
tribos. Vasto, sem homogeneidade social, sem duração,
mal fixado, tratar-se-á de um espaço inorganizado?
A nomadização traduz uma notável adaptação dos
grupos às difíceis condições da natureza saheliana. Ao
ritmo das estações, as pastagens, os solos, mais ou menos
salgados, mais ou menos secos, os pontos de água (nas­
centes, furos, poços, poços artesianos, charcos) devem ser
perfeitamente conhecidos para assegurarem a subsistência
dos rebanhos de ovelhas e de dromedários. O território
carrega-se assim de valores econômicos duplicados por outras
percepções e sensações, que só um conhecimento íntimo
dos homens pode permitir captar. A lenta marcha para
norte do nomadismo da estação das chuvas, em pastagens
abundantes e no meio dos jogos e das festas, é a dos dias
felizes. N a estação seca, os pastores solitários seguem os
rebanhos entre os poços e as pastagens longínquas.
O acampamento constitui um elemento de relativa
fixidez ao longo dos percursos. O agrupamento das tendas
une na mesma vizinhança os membros de uma família ou
de várias famílias com laços de sangue ou de clientela entre
!
151

si. A tenda, essa casa que se desloca, é um lugar familiar,


um abrigo, um espaço de acolhimento onde se dá a hospi­
talidade. Os valores fundamentais da sociedade nômada
podem ler-se assim nesses signos que pontuam o território,
os acampamentos. Traduzem tanto a segregação dos sexos
no interior das tendas como a extrema fraccionação dos
grupos, as relações de hierarquia feudal, relações ambí­
guas com o estranho, hóspede ou inimigo. Tal é pois este
tipo de espaço social, que não se exprime de acordo com um
esquema simples associando a coerência do grupo à do
espaço. Numa subtil combinação de factores, o espaço
social não deixa por isso de ser uma realidade intensamente
vivida, com facetas múltiplas de acordo com as estações,
os sexos, as fracções, as categorias hierárquicas: vasto
território, percursos longínquos, lugares de reunião ou de
solidão, pontos de encontro à volta da água, círculo fami­
liar dos acampamentos, lugar doméstico da tenda...
O caso dos nômadas Tuareg é exemplar pela sua
complexidade. Os povos do Árctico, os índios da América,
os agricultores itinerantes ou semi-itinerantes da África, da
Ásia ou da Oceania revelariam muitas outras modalidades,
tanto sociais como espaciais, mas também esta mesma regra:
uma fortíssima coerência dos grupos está associada a uma
valorização e a uma organização do espaço tão delicadas
nas suas adaptações ecológicas como diluídas por vastos
territórios, muito desigualmente ocupados e percepcionados.
Em larga medida, as massas recentemente urbanizadas pro­
porcionam o mesmo esquema no seio das cidades do Ter­
ceiro Mundo. Os grupos encontram-se ou formam-se para
criarem os seus ilhéus de familiaridade, os seus acampa­
mentos na cidade, no meio do território incerto dos bairros
152

mal conhecidos, balizados no entanto pelos itinerários explo­


rados do trabalho e das relações comerciais.

B) A aldeia e o território («finage»)

Na aldeia e à volta dela, a coerência social exprime-se


do mesmo modo que a do espaço vivido pelos aldeões.
Os geógrafos utilizam de boa vontade complementarmente
os dois termos de «terroir» e de «finage» para designar
duas acepções do território aldeão, designando um em
termos jurídicos uma área específica de apropriação pri­
vada ou colectiva, marcando o outro uma homogeneidade
particular das condições de exploração do solo. Estas duas
definições conservam todo o seu valor. Mas há também
que sublinhar tudo o que a etimologia ou a vibração das
palavras exprime, (mesmo tratando-se de uma alteração do
latim territorium) diz r terra cultivada, trabalhada, diferen­
temente do percurso, muito mais extensivo. Finage indica
nitidamente um fim, um limite, em oposição a áreas ou
espaços mais vagamente circunscritos. A aldeia (village)
evoca ao mesmo tempo a pequena cidade (ville) e a villa
latina, a casa no campo. Casas agarradas à terra, um espaço
bem delimitado: aí temos todo o espaço social da aldeia.
Este tipo de organização ocupa áreas relativamente redu­
zidas na superfície do globo, as das grandes civilizações cam-
pesinas: as planícies e colinas da Europa e da Bacia medi-
terrânica, as savanas africanas e as suas margens, as pla­
nícies irrigáveis da Ásia das monções, particularmente da
China.
A aldeia da Kabília projecta numa linha de crista a sua
silhueta alongada por construções apertadas. P. Bourdieu
153

e outros sociólogos têm sublinhado a forte coerência da


comunidade nas sociedades da K abília(8). «Na comuni­
dade do clã ou da aldeia, os valores fundamentais, trans­
mitidos por uma tradição indiscutida, são admitidos por
todos sem serem explicitamente e deliberadamente afir­
mados...» Mouloud Feraoun descreveu a intimidade da
aldeia: a rua principal «de braços caprichosos», «asfixiada
na sua prisão de pedra», os bancos em que se vêm sentar
os homens e as crianças, o café mourisco, as mesquitas, os
três bairros que subdividem a aldeia, as casas de pátios
fechados sobre si próprios onde se atarefam as mulheres,
os campos em declive onde crescem o trigo, a cevada, a
oliveira e a figueira ( 9). O espaço social casa-se com todas
as inter-relações que unem o grupo aldeão. Mais ainda,
é parte integrante delas. A célula familiar abriga a sua inti­
midade na casa de pátio fechado e paredes cegas para o
exterior; encontra a sua subsistência nos campos cultivados
em comum pelos membros da família. A comunidade aldeã
exprime-se nas delimitações do «finage» e no agrupamento
do habitat; a sua vitalidade manifesta-se pela reunião dos
homens em redor das pequenas praças, pela presença de
alguns edifícios públicos como as mesquitas, os lagares de
azeite. A aldeia é também subdividida em clãs no inte­
rior dos quais se efectuam os casamentos: os bairros tra­
duzem estas clivagens no plano como na vida quotidiana
da aldeia. Este espaço é perfeitamente conhecido e inten­
samente vivido por cada habitante. Aos campos, às árvores,

(8) P. BOURDIEU, Sociologie de 1'Algérie, 1961; e «Paysans


déracinés en Algérie», Études rurales, 1964.
(») M. F eraoun, Le fils du pauvre, romance, 1954.
154

às construções, às ruas, às «lages brilhantes» dos bancos de


pedra, ligam-se valores que não são apenas econômicos.
O jovem da Kabília, o pequeno Fouroulou de Feraoun,
descobre por etapas este universo, ao mesmo tempo seu e
dos outros. Os primeiros passos da primeira infância efec-
tuam-se sob a protecção das mulheres na intimidade do
pátio, no meio de cântaros e potes. Os «gaiatos» machos
depressa se tornam os verdadeiros mestres das ruelas do
bairro até à praça da Djema, enquanto as raparigas per­
manecem sob o segredo doméstico. Um pouco mais tarde,
o jovem explora os campos trabalhando com o pai ou
jogando com outros garotos «até ao rio». Mais tarde ainda,
e é uma ruptura dramática, Fouroulou parte sozinho para
o colégio de Tizi-Ouzou. Nesta descoberta por etapas for­
ma-se um espaço social que permanecería fechado sem o
último episódio, e onde tudo está ligado, o espaço (a casa,
o bairro, a praça comunal, o «finage», os seus limites, a
cidade...), mas também o econômico (a subsistência, a
aprendizagem, a produção...), o social (o círculo das
mulheres, a família, o grupo dos jovens, os clãs, a comu­
nidade...) e o psicológico (da intimidade até à emancipa­
ção...). A aldeia parece assim enraizar-se na própria vida
dos seus habitantes como estes na vida da aldeia.
Que há de comum entre uma aldeia da Kabília e os
lugarejos esparsos de uma comuna da baixa Normandia,
ou então uma aldeia do Beauce apertada no meio de vas­
tos campos de cereais, ou ainda uma aldeia do baixo Yangzi
rodeada de arrozais irrigados? As estruturas sociais e eco­
nômicas, as paisagens, os modos de produção, as práticas
civilizacionais tudo com efeito as opõe. Alguns traços
comuns permitem no entanto aproximar estes espaços
sociais de aldeias (mesmo quando não agrupados...) e de
155

«finage». Em primeiro lugar, a perfeita delimitação de um


espaço de apropriação, no sentido amplo do termo. Em
segundo lugar, a domesticação do terreno, sem cessar
trabalhado e retrabalhado, conhecido e reconhecido (a pas­
tagem, o campo, o arrozal...), em oposição a espaços mais
próximos do estado natural, por vezes completamente apa­
gados (a lande, a floresta, a charneca, o mato, a colina
arborizada...). Em terceiro lugar, a antiguidade da implan­
tação, que se perde na memória do tempo, a força dos
usos, inscrita nas construções como na trama dos cami­
nhos e dos campos, o culto do que dura e se perpetua,
uma certa associação dos valores da terra, da família e
das crenças religiosas. Em suma, o enraizamento da vida.
As cidades dos tempos modernos, particularmente na
Europa, redescobriram por vezes, no seu estilo, este tipo de
espaço social. Os velhos bairros de artesãos e comerciantes
têm de facto os seus limites, a sua intimidade de conheci­
mento e de trabalho, as suas tradições enraizadas, a sua
simbiose da forma e do conteúdo, das funções e da acção,
da vida social e da sua realização psicológica. Mas bairros
industriais construídos na miséria do séc. xix ganharam
também raízes, a ponto de por vezes desafiarem os traçados
das renovações. Perto das escoras das minas, os alinha­
mentos de casas nortenhas, as paredes negras, as tabernas
e os horizontes de escória fecham no seu universo especí­
fico o espaço social dos proletários do carvão ( 10).

( 10) Cf. por exemplo, depois de Zola, o filme de Louis D aquin,


Le point du jour, 1948.
156

Ç) O alojamento e o espaço funcional

B uma outra lógica que se impõe, no quadro da socie­


dade industrial, que dá ao funcional inteira prioridade.
No seio dos grandes aglomerados contemporâneos, o espaço
social explode, enquanto o espaço das funções econômicas
impõe o rigor da sua armadura.
A primeira explosão é a da família. A sociedade indus­
trial condiciona migrações múltiplas, do campo para a
cidade, das cidades para outras cidades. Os planificadores
procuram esta «mobilidade» acrescida da mão-de-obra.
Os demógrafos seguem a sua progressão... Este movi­
mento tem como corolário a dispersão das famílias tradi­
cionais ao longo dos itinerários de migração, sendo os
mais desprovidos, pela idade, pela ausência de dinamismo
ou de qualidades intelectuais, aqueles que ficam mais em
atraso a caminho da cidade. Um segundo tipo de migração,
as migrações quotidianas associadas à dispersão funcional
dos lugares de trabalho, consagra o esboroamento da
família, reduzida ao casal. A célebre trilogia «metro-tra-
balho-cama» não deixa ao homem, à mulher e aos filhos
senão algumas horas breves de encontro em cada dia.
A segunda explosão é a das relações extra-familiares.
Todas as necessidades (incluindo necessidades artificial­
mente criadas) se encontram mais ou menos perfeitamente
asseguradas por uma função que deve antes do mais mani­
festar a sua eficácia. A fábrica para produzir, o armazém
de grande superfície para vender, a escola para ensinar, a
creche para guardar, a praia para esquecer, etc. A procura
das economias de escala traduz-se em todos os domínios
pelo gigantismo dos estabelecimentos, que implica o anoni­
mato e a massa das frequentações. Assim, dispersando as
157

suas relações por vários lugares especializados, os homens


apenas os conhecem pelas suas funções. O espaço torna-se
liso à força de banalidade estandardizada... J.M. Le Clézio
exagerou até ao pesadelo esta visão do mundo. «Habita­
vam na estação-serviço, conheciam a palavra Gulf, a pala­
vra Gulf-Life, a palavra Gulf-Lube, as bombas, a gasolina
côr-de-rosa, os charcos de óleo, a esplanada de cimento,
o telhado inclinado em equilíbrio sobre os seus quatro
pilares, e o grande minarete branco de pé contra o céu azul,
onde brilhavam as letras

G
U
L
F

Sabiam estas coisas sem as compreenderem, simplesmente


estando lá quando era preciso... Não tinham necessidade
de pensar ou de falar. Pertenciam à estação-serviço, eram
um pedaço de cimento entre todas as paredes, os pilares e
os telhados» ( 1J).
Depois de K. Lynch, que tentou captar a imagem per-
cepcionada das grandes cidades americanas, A. Metton
e M.-J. Bertrand descreveram, após longos inquéritos, os
espaços vividos no interior dos bairros da aglomeração
parisiense ( 12). Pediram nomeadamente às pessoas inqui­
ridas que desenhassem o seu bairro. As visões mais atro-

( n ) J.-M. Le Clbzio, Les gêants, 1973.


( 12) m. Metton e M.-J. Bertrand, «Les espaces vécus dans
une grande agglomération», VEspace géographique, 2, 1974.
158

fiadas são as dos grandes conjuntos e do habitat de pavi­


lhões... Nos H. L. M. ou Lojec do Mont-Mesly em Cré-
teil, «o bairro parece reduzir-se ao espaço percepcionado,
enquanto as respostas ao questionário revelam uma certa
desafecção por um meio de vida incompleto... faltam as
relações sociais indispensáveis à tomada de consciência
colectiva de um bairro, mesmo nesse coração do grande
conjunto, concebido no entanto para esse efeito». Na
massa dos pavilhões de Goussainville, o bairro esboroa-se
ainda mais, «reduzido a maior parte das vezes a um caminho
em baioneta através do dédalo das ruas, dò domicílio à
escola, à igreja ou à paragem de autocarro mais próxima
permitindo alcançar o centro-cidade».
O espaço da sociedade funcional não coincide exac-
tamente com o das cidades. Como mostrámos, os bairros
de imigração das grandes cidades do Terceiro Mundo, as
pequenas cidades, os bairros antigos das cidades euro­
péias e mesmo certos bairros industriais do séc. xix abri­
gam espaços sociais regidos por outros modelos. Inversa­
mente, o espaço funcional pode estender-se muito para
além das cidades... Faz chegar os seus planos regulares e a
sua solidão até aos campos de forte cultura industrial.
Sobretudo, conquista inexoravelmente as áreas de lazer e
de férias dos litorais e das montanhas mais próximas dos
grandes focos urbanos. Quase todas as costas da Bacia
mediterrânica se encontram assim recolonizadas.
Curiosa visão do mundo e impressionante estética.
Quando o observador se eleva de avião, como a câmara
de Antonioni em Zabrisky Point ( 13), apreende a ordem

( 13) M. A. A ntonioni, Zabrisky Point, filme, 1969.


159

superior das funções organizadas; a trama dos campos


e das ruas ganha belezas de traçado, enquanto os nós das
auto-estradas se abrem como corolas. Regressado ao solo,
à escala humana, o transeunte sente-se esmagado, por
pouco que aceite ver. Nas paredes de betão, os cartazes
selvagens e os graffiti parecem recuperar a solidão e a angús­
tia das primeiras idades.

2. MOVIMENTOS E MUTAÇÕES DO ESPAÇO SOCIAL

As sociedades não são imutáveis no tempo como no


espaço, é evidente. Os espaços sociais não se justapõem
uns em relação aos outros, separados por divisórias estan­
ques. O contacto entre os diferentes tipos, ou mesmo no
interior dos grandes tipos, exprime-se por mudanças, con­
flitos, movimentos, mutações... Como em muitos outros
domínios, pode ser mais importante captar a geografia
destas descontinuidades do que a da homogeneidade.
Numa primeira análise, revelaremos duas grandes cate­
gorias de contactos entre espaços sociais, a fronteira e a
aculturação.

À) A fronteira

A fronteira não se entende aqui no sentido político ou


administrativo do termo. A mitologia do Oeste Americano
dá à palavra um conteúdo econômico, social e cultural que
implica ao mesmo tempo um conflito e uma conquista
160

uma descontinuidade e um movimento. É esta definição


que deve ser tida em conta.
A Fronteira (que neste caso merece a maiuscula da espe­
cificidade) opõe durante a maior parte da história dos Esta­
dos Unidos as tribos índias pouco a pouco repelidas e os
pioneiros da conquista do Oeste. A literatura e o cinema,
de Fenimore Cooper a John Ford, fizeram desse conflito
a grande odisséia da nação americana. São dois espaços
sociais, com efeito, que se justapõem ou se imbricam con-
traditoriamente. Os índios, longe de formarem uma popu­
lação homogênea, subdividem-se em nações e tribos pro­
fundamente diferentes umas das outras, pela língua, a orga­
nização social, as técnicas de subsistência e a cultura. Con­
tudo, dos confins mexicanos à floresta canadiana, e das
florestas do litoral oriental à costa do Pacífico, os índios
continuam a ocupar vastos territórios, de contornos tanto
mais incertos quanto as guerras os põem sem cessar em
causa; as densidades de população mantêm-se muito bai­
xas, e a ocupação do espaço descontínua. Muito variadas
de acordo com as civilizações, as técnicas de subsistência
permanecem muito próximas de uma utilização parcimo-
niosa das possibilidades da natureza: cultura do milho
ou de feijões em volta das aldeias, caça na floresta, grande
caça aos bisontes nas planícies. O contacto com os Euro­
peus, a expulsão dos índios, as guerras imporão no decurso
dos últimos decênios a preeminência de uma «civilização
do bisonte e do cavalo» aos semi-nómadas guerreiros das
Grandes Planícies. No entanto, esics povos, em territórios
incertos, não são menos a prova de uma notável coerência
social e cultural, esta atestada pelos códigos de casamento,
a escolha dos chefes, a arte doméstica e religiosa, o culto
161

das forças solares, a coragem pessoal que une o homem à


ordem da natureza ( 14)...
O homem branco, movido por outros valores, nunca
compreenderá estes enigmáticos vizinhos, de quem depressa
fará seus inimigos, por cobiça, por apreensão e por desprezo.
Da Europa campesina e mercantil, os pioneiros americanos
importam, exarcebando-o, o culto do lucro e da ordem.
A sua avançada em direcção ao Oeste é acompanhada por
uma implacável conquista do espaço. Os «Westerns» feli­
zes acabam muitas vezes com a construção de uma casa,
a deflorestação, a edificação de cercas que delimitam niti­
damente a nova propriedade, no meio da qual se debatem
os animais destinados aos matadouros. A ordem da nova
sociedade, incompatível com as concepções precedentes,
manifesta-se pela nova ordem do espaço, que aplica em
toda a escala a sua trama de vias férreas, de estradas e
caminhos, de fronteiras de estados, de circunscrições, de
cercas de propriedades, de cidades, de aldeias e de casas...
Assim se desloca para o Oeste a Fronteira da América
branca, substituição de uma sociedade por outra, ao mesmo
tempo que mutação completa de todos os valores do espaço.
Existem muitas outras fronteiras. Nos confins meri­
dionais da Europa, longos conflitos opuseram os muçul­
manos e os cristãos no coração da península ibérica, os
Turcos e os cristãos no interior dos Bálcãs. O espaço do
Alfõld húngaro ou da Ibéria meridional conserva as mar-

O 4) Apenas retivemos, de maneira esquemática, algumas domi­


nantes, num quadro que, para ser exacto, deveria ser muito mais
pormenorizado. O aumento do interesse votado aos índios da Amé­
rica alimenta uma abundante literatura sobre esta questão.

R E- ii
162

cas da reconquista militar e feudal. Os agricultores chi­


neses do império dos Han estendendo os seus arrozais ou os
seus campos de trigo a todos os espaços utilizáveis, à custa
dos nômadas das estepes ou dos povos das colinas, os Tuji-
ques russos e mais tarde os sovkhozianos soviéticos lan­
çados ao assalto das extensões siberianas, os plantadores
de S. Paulo ou os viticultores oraneses da época colonial,
os cultivadores mouridas do Senegal contemporâneo que
fazem progredir as especulações do amendoim à custa das
actividades mais tradicionais dos pastores peuls ou dos
agricultores serreres, todos eles, numa lista mais simbó­
lica do que limitativa, animam ou animaram imensas fron­
teiras que aumentaram o espaço do camponês. A quase
nenhuma destas áreas pioneiras se aplica no entanto o
enraizamento das civilizações campesinas. Apesar da mul­
tiplicidade das formas, um estilo comum confere a estes
espaços pioneiros acentos que são mais os da conquista
abrupta do que da lenta domesticação. Os cultos da inti­
midade e da duração são substituídos pela exaltação dos
valores viris e do poder. A geometria nítida das tramas
agrárias imprime ao solo estas exigências.
Inversamente, os conquistadores nômadas das estepes
desenvolveram durante largos séculos a sua fronteira, à
custa da Europa e do Maghreb. Mas essa época está agora
enterrada. Uma nova fronteira, no interior das civilizações
campesinas, mordisca o espaço dos <<finage» e das aldeias, em
proveito das cidades. No entanto, neste contacto, é de um
modo ao mesmo tempo mais subtil e mais poderoso que se
operam as mutações contemporâneas. A aculturação, con­
quista do interior, substitui a fronteira.
163

B) A aculturação

A aculturação é «o conjunto dos fenômenos que


resultam do contacto directo e contínuo entre grupos de
indivíduos de culturas diferentes, e das mudanças subse­
quentes dos tipos culturais de um ou dos dois grupos» ( 15).
A aculturação constitui um fenômeno universal que
se encontra tanto nos contactos de civilizações ditas «pri­
mitivas» entre si como nas relações que unem ou opõem
as culturas campesinas £ civilização industrial. Na muta­
ção dos espaços sociais provocada pela aculturação, é este
último tipo que é particularmente importante examinar,
pois se exprime sob variadas formas nos cinco continentes.
A nova cultura da civilização industrial impõe-se lenta­
mente, mas quase inelutavelmente, às populações campesinas
dos países industrializados ou em vias de industrialização,
mesmo quando estas populações não se encontram fisica­
mente deslocadas. Como o mostraram E. Morin ou P. Ram­
baud ( 1(S), daí advém, sem mudança de espaço, uma muta­
ção fundamental dos espaços sociais, das relações dos
homens com os lugares...
P. Rambaud tem particularmente em conta quatro
poderosos veículos de aculturação no seio das aldeias fran­
cesas. Os novos métodos do trabalho agrícola, a mecani­
zação e a diminuição da mão-de-obra empregada trans-

( 15) Definição do Social Science Resecarch Council, 1935,


citado pela Grande Encyclopédie Larousse.
(lfi) E. Morin, Commune en France: la mètamorphose de Pio-
dèmet. Paris, 1967; P. R ambaud, Sociétè rurale et urbanisation Paris,
1969.
164

formam as concepções do tempo, da propriedade e do


próprio trabalho: do «trabalho pelo trabalho», passa-se ao
«trabalho pelo dinheiro». A escola difunde os modelos de
existência urbana, particularmente atractivos junto das rapa­
rigas, que «apreciam sobretudo as comodidades e o am­
biente oferecidos». O jornal (a que se deveria juntar mais
nitidamente ainda a televisão) desempenha provavelmente
um papel decisivo, nomeadamente dando nas suas infor­
mações mais importância a valores urbanos, como os do
ócio, do que ao próprio trabalho, e particularmente ao tra­
balho agrícola. O turismo, por fim, cria novos valores, e
uma alternativa de conjunto, «um modelo para o futuro»,
à sociedade rural.
Fortalecido por estas premissas, que apresentam con­
cepções do trabalho, do ócio, do tempo, da comunicação,
em plena evolução, P. Rambaud pode estudar «a reorgani­
zação social do espaço», colhendo exemplos sobretudo nas
aldeias montanhesas dos Alpes do Norte. O espaço vivido
tradicional aparece como uma «projecção da família, dado
primeiro servindo de modelo e de norma, definida pelo seu
estatuto de propriefário-trabalhadora de uma extensão
cujo papel é assegurar a sua permanência». O espaço social
está centrado na «casa»; opõe o espaço fechado do lar
doméstico, da conservação, da permanência, ao espaço
aberto das terras, das pradarias, da floresta, que asseguram
a produção e põem a família campesina em contacto com
a sociedade global. A coerência do projecto socio-cultural
(assegurar a permanência, a subsistência, a duração do grupo
familiar) inscreve-se na perfeita coerência de um espaço
social que é parte integrante sua, e que participa por con­
seguinte dos seus valores. Mas neste fundo cada vez mais
alterados vêm enxertar-se novas relações do homem com o
165

espaço. A estação turística impõe-se como uma promoção,


um projecto de futuro e de desenvolvimento, uma reali­
zação concebida para o ócio de uns e o lucro de outros.
O espaço social, outrora concebido nos seus limites pró­
prios como espaço-duração e espaço-subsistência, torna-se,
numa participação global na sociedade mais extensa (Paris,
Marselha, Nice... galgadas todas as distâncias), espaço-
-projecto, espaço-plano e espaço-dinheiro. Não se trata
apenas portanto de uma modificação do espaço de vida
físico da sociedade rural pela transformação do trabalho,
das deslocações, das comunicações (com novas profissões de
monitores, de criados de hotel, etc.) mas de uma mutação
dos valores do espaço em todos os domínios. Tal planície,
por exemplo, onde se faziam os fenos, pode evocar uma
longa série de sucessões de pais para filhos, o duro trabalho
de cada verão, particularidades de solo ou de humidade
distinguidas empiricamente, um conhecimento íntimo das
dobras do terreno assimilado desde os jogos de infância,
uma identificação da duração do grupo pelas suas recor­
dações inconscientes ou explícitas com a permanência espe­
cífica das rugosidades do espaço... Em alguns anos, a
mesma planície torna-se «terreno construtível», loteamento
ou pequeno anúncio, valor mercantil, possibilidade de rein-
vestimento e, um pouco mais tarde, vizinho e vizinha encan­
tadores pelo bronzeamento sazonal enamorados por uma
natureza diferente... As palavras novas traduzem os novos
valores do espaço. O bulldozer poderá passar sem escândalo.
A televisão tem proposto numerosas emissões, muitas
vezes de enorme acerto de tom, sobre estas mutações do
espaço social da aldeia. Adieu coquelicot! [Adeus papoila!],
preparado por F.-H. de Virieu, fez escândalo em 1969.
Um pouco mais tarde, uma emissão consagrada a uma
166

família bressana mostrou a passagem do espaço fechado dos


pais, nascidos com o século (estreitamente associado ao
trabalho sem rendimento, à subsistência...), à explosão do
espaço dos filhos, dispersos como operários, funcionários
e camponeses, estes últimos afectando novos valores ao seu
próprio espaço de vida. Mais exemplar ainda na sua irra­
diação sensível, o filme de Pascal Thomas Pleure pas la
bouche pleine [Não chores com a boca cheia] usa como
heroína uma adolescente, filha de artesãos rurais do Poi-
tou, entre dois amores e também dois espaços sociais...:
rapazinho da aldeia, passeios de bicicleta, recordações de
infância, rios, granjas, limiar dos bosques, serviço militar,
cheiros de erva e feno, eterno retorno da vida..., sedutor
um tanto ridículo vindo de algures, carro de sport, restau­
rante, escapadelas à cidade, praia, piscina, quarto e hotel,
projectos sem regresso ( 17).
A fronteira e a aculturação não se excluem mutua­
mente. Uma, mutação, a outra, movimento, completam-se
para participarem na espantosa transformação dos espaços
contemporâneos.

(17) p, T homas, Pleure pas la bouche pleine, filme, 1973.


CAPÍTULO m

AS REGIÕES

O estudo precedente dos lugares vividos e dos espaços


sociais deve permitir precisar a ou as definições que se podem
dar da palavra «região». A alternativa, há que lembrá-lo,
opõe definições de alcance muito geral, mas que permanecem
sempre vagas, e concepções muito mais exigentes nas suas
precisões, mas tais que a maior parte dos casos parece
escapar à regra.
De uma maneira geral a região apresenta-se como um
espaço médio, menos extensa do que a nação ou o grande
espaço de civilização, mais vasto do que o espaço social
de um grupo, e a fortiorí de um lugar. Integra lugares
vividos e espaços sociais com um mínimo de coerência e de
especificidade, que fazem dela um conjunto com uma estru­
tura própria (a combinação regional), e que a distinguem
por certas representações na percepção dos habitantes ou
dos estranhos (as imagens regionais). A região é menos
nitidamente conhecida e percepcionada do que os lugares
do quotidiano ou os espaços sociais da familiaridade.
Mas, na organização do espaço-tempo vivido, constitui um
168

invólucro essencial antes do acesso a entidades muito mais


abstractas, muito mais desconcertantes em relação ao
hábito... Seria a região o espaço que podemos visitar sem
nos sentirmos incomodados, um conjunto-regulação de
nível superior na organização do espaço de vida e na per­
cepção e valorização do espaço vivido? Alguns psicólogos,
como A. Moles e E. Rhomer, incitam a adoptar uma tal
definição, apresentando a região como «o conjunto dos
lugares aonde o homem pode ir e vir em menos de um dia,
quer dizer, sem dormir fora de casa, quer dizer ainda sem
fazer reservas, logo planos antecipados, noção de que as
polícias do mundo inteiro se deram conta perfeitamente» (t 8).
O espírito da definição parece excelente. Mas a sua formu­
lação é demasiado europocêntrica ou americanocêntrica
para poder ser plenamente adoptada.
Com efeito, o que foi mostrado dos lugares vividos
e dos espaços sociais confirma que, para além de uma
definição bastante geral, a análise não se poderia basear
validamente num modelo único de região. Os próprios
elementos que compõem este conjunto têm formulações
demasiado díspares para que a sua integração numa enti­
dade de nível superior possa ser reduzida a um tipo único.
Temos pois que nos decidir: as regiões são múltiplas. Das
análises precedentes extrai-se no entanto um fio condutor,
que deve permitir assentar uma abordagem do problema
em três modelos principais.

O 8) A. Moles e E. R ohmer, op. cit., 1972.


169

1. AS REGIÕES FLUÍDAS

A) Concepção geral

N a maior parte dos países do Terceiro Mundo, o fenô­


meno capital do enraizamento campesino não existe ou
manifesta-se apenas debilmente. Do mesmo modo, os domí­
nios espaciais da civilização industrial permanecem muito
reduzidos. Nestas condições, poder-se-ia concluir um pouco
apressadamente pela ausência de fixação dos homens aos
lugares e, por via de consequência, pela inanidade da noção
de região. Uma outra solução, muito frequentemente admi­
tida pelos economistas ou pelos geógrafos, consistiría em
não considerar como regiões senão conjuntos homogê­
neos definidos por particularidades físicas, as «regiões natu­
rais», ou então, nas análises das evoluções recentes, tudo
aquilo que se possa parecer com uma regionalização de
tipo europeu, por exemplo «as regiões polarizadas», ou
mesmo «as regiões em vias de polarização». Estas concep­
ções têm como inconveniente principal deslocar o problema,
mais do que tentar resolvê-lo procurando os elementos mais
específicos.
Os lugares existem... Lugares naturais: floresta, savana,
colina, vertente, rio... Lugares humanizados: arroteamento,
percurso, acampamentos, aldeias temporárias ou de implan­
tação recente... Lugares vividos: bosque sagrado, floresta
temida, acampamento familiar... Os homens existem tam­
bém, unidos entre si por estruturas sociais cuja coerência
foi sublinhada. Mas entre os homens e os lugares, as rela­
ções não parecem duravelmente fixadas, seja porque as
170

implantações pertencem a um passado próximo, seja porque


as migrações continuam. Nestas condições, a região não
pode de maneira nenhuma definir-se num espaço bem deli­
mitado, tão nítido nos seus contornos como na sua duração.
A região existe de facto, mas numa certa fluidez. Fluidez
em ligação directa com a prevalecente nas relações que
unem os homens e os lugares. Fluidez, quer dizer o carác-
ter daquilo que, como um líquido, é facilmente deformável,
móvel e cambiante, e deste modo bastante difícil de captar.
O estudo de um exemplo deverá permitir abordar melhor
esta realidade.

B) Um exemplo: o delta interior do Niger


segundo Jean Gallais ( lí>)

O delta interior do Niger ocupa, no seio da República


do Mali, uma superfície de 30 100 km2 (mais ou menos
100 km de oeste a este, e 300 km de sudoeste a nordeste).
Em 1959 contava cerca de 400 000 habitantes. Aqui temos
pois um conjunto sensivelmente mais vasto do que uma
aldeia ou mesmo do que um conjunto de aldeias. Mas é
também uma unidade nitidamente mais reduzida do que
um Estado, no entanto modesto, como a República do Mali
(em 1972, 1 240 000 km2, 5 260 000 habitantes) e, com mais
razão ainda, do que um grande espaço continental. Tra-
tar-se>á de uma região, e qual é essa região?

( ls) J. G allais, Le delta intérieur du Niger, I. F. A. N., Dakar,


1967.
171

Desde a introdução, J. Gallais coloca perfeitamente


o problema:

«A aproximação de uma certa paisagem natural e das marcas


humanas que nela se inscrevem constitui o exercício de base da geo­
grafia regional. No que diz respeito ao delta interior, este procedimento
não proporciona todas as satisfações intelectuais que se retiram de
certas análises comparáveis. A noção de uma região natural impõe-se
com vigor e, após uma observação mais pormenorizada, capta-se
a de uma região humana, mas a aproximação não se faz sem dis­
cordância.»

A região «natural» tranquiliza o especialista. Impõe


a sua unidade e os seus limites, o seu relevo caracterizado
por «uma planura sem montonia», o seu clima bem mar­
cado pelo ritmo sazonal, a sua paisagem vegetal e a sua
hidrologia, os seus sub-conjuntos de bastante fácil distin­
ção. Uma planície, um delta interior onde reinam a água
e a erva, uma espantosa «transfiguração sazonal», eis os
traços que permitem distinguir nitidamente esta região dos
espaços vizinhos. «A planura impressionante das grandes
paisagens do delta interior resulta de um aluviamento
duradouro numa região que desempenha o papel de arma­
dilha para sedimentos». Mas a planície escapa à mono­
tonia graças à presença das formas de piemonte, inselberg,
abóbadas couraçadas, cones de acumulação, e à justaposi­
ção de vários deltas elementares no seio do grande delta.
A paisagem de ervas e água transfigura-se ao ritmo das
cinco grandes estações destes confins sahelo-sudaneses:
estação das chuvas, de Julho a Setembro, «de cores cam-
biantes e cheiros carregados»; estação das inundações, de
Outubro a Novembro, com o rio «fortemente inchado...
submergindo as planícies mais elevadas e afundando as
172

pequenas bacias sob quatro ou cinco metros de profundi­


dade»; estação fria e luminosa, de Dezembro a Janeiro;
descida das águas em Fevereiro e M arço; longa estação
seca de Abril a Junho, «o tempo confundido... no calor e
na espera».
A região «humana» é muito mais dificilmente delimi-
tável. O delta é com efeito povoado por uma justaposição
ou imbricação de etnias em que nenhuma é plenamente
característica da região: Peuls (35 % da população total),
Marka (17 %, do mesmo grupo étnico dos Soninké, Sara-
kolé, Malinké), Bambara (16 %), Bozo (16 %), Bwa (7 %)
e vários outros grupos sem importância significativa. Ne­
nhuma etnia dispõe da supremacia no interior do delta.
Nenhuma etnia se encontra espacialmente limitada ao delta.
Estes povos, além disso, dedicam-se a actividades muito
diversas: os Peuls são sobretudo pastores; os Marka agrir
cultores ou comerciantes; os Bambara camponeses de aldeia,
os Bozo são pescadores, os Somono «barqueiros do rio»...
Todos estes povos (eles próprios subdivididos em grupos
inferiores) se distinguem por uma história, por uma língua,
costumes, uma repartição no espaço e um modo de repre­
sentação do espaço. A região «humana» parece escapar a
qualquer unidade. Rizicultura irrigada, agricultura seca à
base de milho-miúdo, criação de gado semi-nómada, pesca
e comércio urbano constituem uma tram a econômica dema­
siado lassa e heteróclita para soldar o conjunto. Sem escrita,
sem economia mercantil (a não ser marginalmente), sem
meios de locomoção eficientes num meio difícil, estas
populações comunicam dificilmente entre si. A região como
conjunto não é pois sentida pelos seus habitantes, e nenhum
nome vernáculo consagra a sua existência. E, o que é mais,
1
173

a pequena região, a sub-região, e mesmo o espaço aldeão


escapam à clara percepção dos homens, segundo J. Gallais.
O autor sublinha desde as primeiras páginas a intimidade
da marca humana, a precaridade das suas implantações,
a mobilidade das suas manifestações... Região muito fluida,
com efeito.
Mas a região existe ou não? O mérito de J. Gallais
é o de não se ter esquivado à pergunta com uma resposta
simplista. Com efeito, retomando a análise pela base,
sublinha como cada grupo de população assimilou de facto
uma certa organização do espaço... Neste quadro, a per­
cepção do espaço pode ser muito viva e extremamente
rica em gradações. Os Peuls distinguem assim o ouro,
antigo acampamento de palhotas provisórias e depois aldeia
sedentarizada, os sete dendê, bairros, o bourgou, pastagem
de savana ao abrigo de uma duna ou de um depósito alu-
vial, o leydi, espaço mais vasto que reúne os diferentes
elementos da vida do criador de gado. Da reunião dos
leydi, J. Gallais extrai uma organização superior, regional,
que cobre o delta interior e que é a projecção nesse espaço
da ordem social dos Peuls. O estudo das outras etnias mos­
traria outro tipo de relações com o espaço e visões mais
limitadas. Contudo, a cada etnia correspondem elos espe­
cíficos, um meio de adaptação, uma natureza mudada em
cultura.
A região existe, por consequência. Mas não obedece
aos esquemas racionais de uma ciência transparente. É certo
que a paisagem objectiva impõe a sua unidade, ao mesmo
tempo que a sua grandeza. Mas os homens vivem-na à sua
maneira, assimilando-a à sua própria organização com
meios tecnicamente limitados e bastante diferentes consoante
os grupos. Num grau médio da escala dos fenômenos geo-
174

gráficos, a região é este encontro de um quadro «natural»


e de «culturas» que o interpretam. Fluida, é também rela­
tiva.

C) Elementos de diferenciação

O modelo «delta interior do Niger» admite ele próprio


muitas variantes. O exame da tese de J. Gallais mostra aliás
como estas podem resultar de factores diversos, uns inte­
riores ao modelo, outros exteriores a ele, e fazendo-o
evoluir para outros tipos.
Se a fluidez dos constituintes é de regra, o equilíbrio
que cs reúne na mesma combinação pode revelar-se muito
variado de região para região. O extraordinário mosaico
étnico do delta interior é apresentado pelo próprio J. Gal­
lais rnmo excepcional em África, notabilíssimo para as
exigências da demonstração, mas quase levado ao limite
da complicação. Algures apenas se encontrarão, imbricadas,
duas ou três etnias, ou mesmo, ocupando incompleta ou
precariamente o espaço, uma só. O equilíbrio entre a ocupa­
ção humana e as possibilidades naturais encontra-se bas­
tante bem resumida pela noção de densidade de população.
A região fluida implica baixas densidades. Para além de
algumas dezenas de habitantes por quilômetro quadrado,
impõe-se uma agricultura intensiva que induz um certo
enraizamento campesino. Mas no quadro das baixas densi­
dades, o desvio pode ser grande entre os povoamentos muito
fracos (inferiores à unidade, ou de algumas unidades por
quilômetro quadrado), um caso médio como o do delta
interior, ou regiões um pouco mais povoadas (quinze a
trinta habitantes por quilômetro quadrado). N o primeiro
caso, em vastos espaços, Amazônia, Sahara, colinas e pia-
175

naltos da Indochina interior, confins árcticos, por exemplo,


a natureza parece apagar a presença dos homens e a região
torna-se de tal modo fluída que nos achamos de facto
perante os seus limites de validade. No primeiro caso, em
áreas mais limitadas e mais povoadas, bastante caracterís­
ticas da África negra e da América tropical, o enraizamento
tende a substituir a fluidez regional. No delta interior do
como aldeões com os seus terroirs e os seus finages. J. Gal-
lais conclui: «A organização humana do delta é dominada
por civilizações concorrentes. A primeira assegura a vida
aldeã pela estabilidade do habitat, o enraizamento do cam­
ponês, recorte, preciso dos finages... A segunda é m ar­
cada pela mobilidade, a instabilidade. A divisão em leydé
não aperta o homem num campo estreito.» Também a
região é um compromisso.
Uma segunda série de diferenciações é fornecida pela
sobre-imposição das estruturas funcionais da economia
mercantil às das regiões fluidas. Pode-se assim observar
que a cidade de Mopti, de criação no entanto muito recente
pois tem apenas meio século de existência, exerce uma atrac-
ção crescente sobre os campos do delta interior do Niger,
sendo a sua influência comercial transmitida por uma
rede de mercados hierarquizados. O fenômeno aparece
ainda mais nitidamente em volta dos drenos regionais
criados pela economia de tráfico colonial a partir de uma
grande metrópole portuária. A descolonização política não
altera em nada este movimento, muito pelo contrário.
A rede das cidades da América latina é em grande parte
construída segundo este modelo. Em África, o Senegal à
volta de Dakar (e do amendoim), a Costa do Marfim à
volta de Abidjan (e do café, da madeira, do cacau...) são
xceelentes exemplos de territórios em vias de «regionali-
,1

176

zação». Esta última palavra deve ser comentada pois, fre­


quentemente utilizada pelos geógrafos, parece muito abu­
siva neste emprego. Com efeito, «regionalização» implica
ausência de região antes do desenvolvimento da economia
mercantil, e reduz a presença de regiões apenas aos espaços
«polarizados». Belo exemplo de europo-centrismo e de
assimilação pelos cientistas apenas dos elementos das suas
próprias culturas. De facto, as regiões existem antes, mas
são diferentes, como tentámos mostrar. Muito pelo con­
trário, a sobre-imposição de uma nova armadura funcional
desestrutura o velho edifício das regiões fluidas. Entre um
e outra estabelece-se um compromisso duvidoso, que não
é já nenhum dos dois. Desenvolvem-se assim novos mons­
tros regionais. O estudo das regiões senegalesas permitida
mostrar um belo exemplo disso. Polarizadas como regiões
europeias, mas num desequilíbrio exemplar, desde a metró­
pole, Dakar (perto de um milhão de habitantes em quatro
milhões de senegaleses), aos seus primeiros satélites, Saint-
-Louis, Thiés, Rufisque, Kaolak, cidades médias e aos
longínquos e pequenos centro s-intermédios isolados do
Norte e do Este, Matam, Bakel, Kédougu, Tambaconda.
Mosaico de etnias à africana também, com os seus povos
Ouolofs, Peuls, Sérères, Diolas, Mandíngos, Toucouleurs,
Sarakolé, amalgamados numa nova fluidez, desde as aldeias
e os acampamentos do mato até aos bairros de lata, medinas
ou outros bairros de «abandonados» de Dakar e de Pikine.
É a cidade que devora a África ou a África que reconquista
a cidade?
2. AS REGIÕES ENRAIZADAS

O termo «enraizamento» tem sido empregado várias


vezes nas páginas anteriores. Implica, essencialmente no
177

quadro de civilizações campesinas, um certo tipo de rela­


ções entre os homens e os lugares. Os lugares pertencem
aos homens e os homens pertencem aos lugares. Daí um
modelo de região.

A) Concepção geral

Ao ler K. Buchaman (20), somos impressionados pelas


semelhanças que, apesar da distância, aproximam o espaço
chinês do dos campos europeus. Não afirma o autor desde
as primeiras páginas da sua obra: «paisagens tão humani­
zadas, seja qual for a sua escala, apenas existem em duas
regiões do globo, nas duas extremidades da Eurásia: na
área cultural ocidental saída do mundo mediterrânico e na
área cultural chinesa... Os campos europeus, os campos
chineses, são comparáveis a palimpsestos, antigos manus­
critos onde gerações sem conta gravaram a poesia — e a
miséria — da vida quotidiana, e que só parcialmente foram
apagadas pelos traços mais marcados da posteridade
seguinte, nessa sucessão ininterrompida de camponeses e
citadinos...» A definição das áreas culturais por Buchaman
parece um pouco restritiva. Os campos ocidentais p or certo
que não devem tudo apenas às difusões da bacia medite1
rânica, tal como as planícies irrigadas da Ásia das M oíí
ções se não encontram apenas sob a dependência histórica
e cultural da China. Além disso, a África tem também
os seus próprios finages e terroirs as suas aldeias de enrai­
zamento, mesmo quando parecem um pouco mais pre­
cárias do que as implantações dos campos europeus ou

(20) K. Buchanan, Vespace chinois, 1973.

R E-I2
178

asiáticos: assim, valorizadas de modo descontínuo, as


regiões no contacto da savana e da floresta, ou as das
lagunas litorais fecundadas pela rizicultura (2 *)• Nas suas
grandes linhas, a afirmação de Buchanan não deixa por
isso de ser válida.
As grandes civilizações campesinas (Mediterrâneo,
Europa, Ásia das Monções, África das savanas) projectam
no espaço os seus valores próprios, concedendo uma im­
portância muito grande à duração (a família, a história),
à renovação da vida (a mãe, o solo), à delimitação do
patrimônio (a casa, o finage e terroir). A terra incarna tudo
isso. Daqui resulta uma organização do espaço assente no
enraizamento, quer dizer, na ligação dos homens à terra,
da casa à região. Esta, à sua escala, exprime estes valores.

B) Um exemplo: As regiões da Baixa-Normandia e do Maine

A ligação dos homens do Oeste aos lugares da sua vida


quotidiana não precisa já de ser demonstrada. Exprime-se
a todos os níveis da hierarquia do espaço. A casa abriga a
família, o mais das vezes meio escondida num pátio por
detrás das sebes e das macieiras; é o domínio da mulher
e das crianças. A propriedade ou as terras de exploração
fornecem a subsistência, ou os rendimentos; é aí que tra­
balham os homens, por sua conta, também eles ao abrigo
das sebes, a maior parte das vezes. A vila reúne todas as

(21) Ver nomeadamente Terroirs africains et malgaches, op. cit.,


1970, assim como os trabalhos de P. P elissier sobre a Casamance ou o
Bas-Ouémé.
179

semanas os irmãos, os primos e os vizinhos, em redor da


missa ou do mercado; opera-se aqui uma ruptura no quo­
tidiano, que assegura a renovação do grupo pelo esboçar
dos casamentos e a transmissão dos bens. A ligação à casa,
à propriedade familiar, ao campanário da «região» esprime-
-se numa paisagem fragmentada que multiplica os limites
e os abrigos, as cercas e às árvores.
Mas não desaparecerá esta entidade superior que é a
região, sob os particularismos, no esboroamento do espaço
vivido? Com efeito nem sempre é fácil de delimitar. Na
Baixa-Normandia e no Maine, proliferam os nomes de
«regiões», alguns de pequeníssima dimensão. Só o depar­
tamento do Calvados subdivide-se tradicionalmente em
Região d’Auge, Planície de Caen, Planície de Falaise,
Bessin, Bocage virense, cinco subconjuntos para pouco
mais de quinhentos mil habitantes. Ainda que estes nomes
exprimam, muito mais do que um espaço vivido, uma
herança cultural, uma comodidade administrativa ou cien­
tífica. Os esboroamento acentua-se ainda se a análise
regional assentar no papel, muito real, das cidades peque­
nas e médias. Estas, pela sua antiguidade como pelas suas
funções e pelas suas sociedades, participam muito intima­
mente na organização do espaço regional. As suas burgue­
sias do séc. XIX compraram terras, edificaram fábricas,
atraindo a mão de obra rural, lançaram inovações agrí­
colas como a venda a Paris da manteiga, dos queijos, dos
bois e vitelas. As suas lojas e serviços atraem todas as
semanas ou meses os camponeses das comunas vizinhas,
mim raio de dez a trinta quilômetros. A descentralização
industrial relança por vezes novas actividades, para fazer
180

delas pequenos «pólos de desenvolvimento». Neste estádio


existe de facto, por conseguinte, uma realidade regional.
Mas é preciso constatar que se tratam de«pequenas regiões».
O departamento da Mancha oferece um exemplo per­
feito deste esboroamento. Para a imensa maioria dos
450 000 habitantes deste departamento, as grandes cidades,
Caen, Rennes, Paris, aparecem muito longínquas, mesmo
quando constituem o escoadouro habitual da emigração
(muito mais longínquas provavelmente do que Dakar para
um Ouolof ou um Toucouleur). O espaço vivido do quo­
tidiano fecha-se em redor da «aldeia», quer dizer, o lugarejo
familiar, e em redor da vila. A região, muito próxima das
suas raízes originais, não ultrapassa o horizonte de oito cida-
dezinhas, contando a mais povoada, Cherburgo, perto de
80 000 habitantes, e as outras menos de 20 000 habitantes,
excepto Saint-Lô (22 000 hab.). É pois à volta de Cherburgo.
Carentan, Saint-Lô, Coutances, Villedieu, Granville,
Avranches, Saint-Hilaire... que há que procurar as «regiões»
da Mancha. Regiões muito vivas, com efeito, com as suas
feiras e mercados, fábricas leiteiras, serviços, (crédito-
-agrícola, notários, liceus e escolas primárias, bailes e cine­
mas), comerciantes, por vezes novas fábricas, clientelas
rurais, e notáveis que asseguram a ligação entre estas e os
centros superiores de decisão.
Mas entre Paris e Saint-Hillaire-du-Harcouèt não se
encontra nada? Limitar-se-ia a região a estas células redu­
zidas que reúnem no máximo de 30 000 a 100 000 pessoas?
É forçoso reconhecer-se uma subdivisão em dois níveis para
captar convenientemente a realidade objectivaj assim como
a percepção que dela têm os habitantes.
No princípio do século, R. Musset só a muito custo con­
cedia algum crédito a uma região do Baixo-Marne, confun-
181

dida de facto com o departamento da Mayenne (22). O depar­


tamento, é certo que, agora antigo de quase dois séculos,
adquiriu na maior parte dos casos uma verdadeira consistên­
cia regional. Cria uma rede de serviços obrigatórios, os da
administração. Reúne à volta das prefeituras os notáveis à
procura de recomendações e de subvenções. «Ser da Man­
cha» ou «ser da Mayenne» tem pois um sentido, e como tal é
sentido pelos habitantes. Mas a este nível, as relações só
florescem plenamente quando uma grande cidade em desen­
volvimento lhes confere toda a força de uma atracção sufi­
ciente. Nem Saint-Lô na Mancha, nem Alençon no Orne,
nem Lavai na Mayenne têm, por diversas razões, esse peso.
A sua influência permanece inferior à área do seu próprio
departamento. Ao contrário, Caen e Le Mans, cujos aglo­
merados contam perto de 200 000 habitantes, desempenham
plenamente esse papel. À função administrativa vêm com
efeito juntar-se um comércio e serviços de nível superior e,
mais ainda, grandes fábricas atraentes para a mão-de-obra
regional. Assim se modelam uma região de Caen e uma
região do Mans, um tanto mais vastas que o departamento
do Calvados ou que o da Sarthe. Mas estas novas entidades,
cada vez mais afastadas das aldeias e dos finages, não esca­
parão ao enraizamento? De facto, camponeses e citadinos
permanecem ainda frequentemente ligados pelo parentesco.
Os rurais vão classicamente à cidade para os serviços, o
comércio, as distracções, a visita às crianças... Muitos cita­
dinos permanecem ainda profundamente ligados aos valores

(22) R. M usset, Le Bas-Maitie, 1917.


182

rurais. Na cidade, as casas-correnteza ou OS' pavilhões com


jardins são muitas vezes os substitutos dos espaços perdidos.
Aos domingos, as famílias regressam às aldeias para os

Z o n a d e InfluSncia:
D C ap ital regional d e Caen
A C e n tro regional do M ans
O C e n tro interm ediário d e Rennes
D e p artam e n to

FIG. 9.— As regiões da Baixa-Normandia e do Maine


183

passeios, nos caminhos escavados, as merendas, a pesca, a


caça, os lugares nunca esquecidos. Ainda há pouco, os
operários da S. M. N. «faziam as beterrabas» na planície
de Caen; os da S. A. V. I. E. M. transformam clandesti­
namente a oficina em mercado de batatas, manteiga, ovos,
legumes, frangos; todos eles sonham com gabiões nos pân­
tanos de Troam e Varaville ... Esta região das cidades é
pois também a dos empregados e operários de Hérouville,
nostálgicos dos campos baixo-normandos ( 23), ou dos ope-
rários-camponeses da Sarthe estudados por J. Dufour (24).
As suas raízes campestres não estão ainda rompidas.
Como o mostraram os estudos sobre as zonas de influên­
cia (25), confirmados pelos inquéritos de espaço vivido, a
organização regional assenta numa hierarquia de níveis
encaixados: a aldeia, a vila, a pequena cidade, a capital
regional. Seria no entanto inútil aplicar abstractamente este
modelo. Tomando o exemplo da Sarthe, E. Juillard mostrou
como é que ele evoluiu (26): o papel das pequenas cidades,
verdadeiras animadoras das regiões do séc. XIX, Sablé, La
Flèche, Saint-Callais, Château-du-Loir, La Ferté-Bennard,
atenuou-se, enquanto se desenvolvia a influência de Mans.
A evolução dos transportes modificou profundamente a
relatividade espaço-tempo e, por conseguinte, as próprias

(23) A. F remont, art. cit.; e as Mélanges Megnier, 1972.


(24) J. D ufour, Les ouvriers-pagsans de Ia Sarthe, trabalhos
em curso.
(2 5) A. Fremont, Le rôle des villes en France, Ia Basse-Nor-
mandie et le Maine, sob a direcção de J. Beaujeu-Garnier, N. E. D.,
1975.
(26) E. J uillard, «Espace et temps dans 1’évolution des cadres
régionaux», Mélanges Gourou, 1972.
184

regiões. No entanto, esta mutação operou-se de maneira


desigual conforme os conjuntos. Enquanto as regiões do
Mans e de Caen constituem tipos novos, a Mancha, mais
afastada das transformações, quase que conservou as suas
estruturas do séc. XIX, representando o Orne e a Mayenne
casos intermédios. O esquema dos níveis encaixados deve
pois ser corrigido em função de uma evolução muito desigual
na sua difusão.

C) Elementos de diferenciação

A leitura de G. W. Skinner, citado por Buchanan (27),


evoca bastantes analogias entre a organização tradicional
do espaço chinês, cujas aldeias se agrupam em «zonas de
mercado», e a do Oeste francês. «O universo autárquico do
camponês não se situa à escala da aldeia, mas sim do mer­
cado... Trata-se do conjunto da população compreendida
numa zona de mercado, que é em grosso a zona acessível
a pé a partir de uma vila (3,4 a 6,1 km.» O autor sublinha
conjuntamente a força dos laços sociais e econômicos que
unem as populações de uma zona, juntando-se as relações
de parentesco aos hábitos de serviço e de comércio. Neste
caso, meios de transporte muito mais rudimentares do que
nos campos franceses, associados a um menor desenvolvi­
mento das trocas, são normalmente acompanhados por uma
organização em redor de áreas reduzidas. O primeiro ele­
mento de diferenciação, interior ao modelo, deve pois ter em
conta as condições de transporte e de troca, que se encontram
aliás, a maior parte das vezes, em estreita correlação.

(27) K. B uchanan, op. cit., 1973.


185

É evidente que intervém outros factores de diferenciação.


Seria preciso uma fina análise e muita erudição para com­
parar na sua expressão regional as civilizações campesinas
do Oeste Europeu, da Bacia mediterrânica, da África das
savanas e das planícies irrigadas da África das Monções.
Quando muito realçar-se-á o papel muito diferente desem­
penhado pelas cidades nestas tradições, quase totalmente
apagado em África, discreto no Oeste da Europa, muito
particular na Ásia (com uma espécie de hiato econômico
entre cidade e campo), capital à volta do Mediterrâneo.
As etnias segmentam o espaço africano com descontinuida-
des não encontradas por outros lugares. E sobretudo, as gran­
des opções políticas do mundo contemporâneo abalam de
maneira muito diferenciada as velhas estruturas regionais.
O capitalismo triunfante da Europa Ocidental entrega os
seus campos ao desenraízamento e à aculturação. Nas
democracias populares da Europa do Leste encontram-se
fenômenos análogos, atenuados no entanto (ou acentuados?)
por uma difusão mais equilibrada das indústrias pelas
regiões. A «via chinesa» prolonga a tradição na revolução.
As comunas populares, muito próximas das «zonas de mer­
cado» estudadas por Skinner, são as raízes novíssimas e
antiquíssimas da revolução campesina.

3. AS REGIÕES FUNCIONAIS

A expressão «região funcional» entende-se aqui num


sentido um tanto diferente do adoptado por E. Juillard nc
seu artigo de 1962 ( 28). O espaço-funcional, segundo E. Juil

(28) E. J uillard, art. cit., 1962.


186

lard, é organizado pela hierarquia dos centros de polari­


zação, pela rede das cidades. A «região funcional» corres­
ponde à organização do espaço da sociedade industrial
chegada ao seu mais alto grau de crescimento, quer dizer,
de uma sociedade que atribui à «função» o nível mais alto na
hierarquia dos valores.

A) Concepção geral

J. K. Galbraith, H. Lefebvre, H. Marcuse, entre mui­


tos outros, analizaram os fundamentos das sociedades
industriais mais avançadas ( 29). O crescimento da produção
econômica deve ser aceite como um dogma ao qual tudo é
sacrificado. Para manter esse crescimento, o sistema social
condiciona o homem-produtor-consumidor, a ponto de o
fazer aderir, implícita mas totalmente, a uma nova cultura,
a da eficácia, da estandardização, da racionalidade tecnoló­
gica... Nascida nos Estados Unidos, esta nova visão do
mundo foi adoptada como um modelo pelos Estados mais
poderosos do globo nos anos 1955-1970. Tende a impor-se
ao conjunto do planeta. A sua projecção na organização
do espaço constitui uma verdadeira revolução da geografia.
A sociedade industrial dispõe de meios técnicos de uma
potência tal que pode transformar o espaço como nunca se
tinha podido imaginar... Subitamente, a enxada do camponês
africano parece pré-histórica, a charrua do agricultor euro­
peu, ou mesmo a trolha e o morteiro do artesão, arcaicos.

(29) Nomeadamente, J. K. Galbraith, La société d'abondance,


1968; H. Lefebvre, Critique de la vie quotidienne, 1968; H. Marcuse,
Vhomme unidimensionnel, 1968.
187

A adaptação prudente dos homens às condições naturais,


ou a domesticação lenta do espaço pelos camponeses, são
substituídas pela conquista da natureza. Todas as fronteiras
recuam. Para as necessidades da exploração mineira, edifi-
cam-se cidades climatizadas na noite polar ou na fornalha
Sahariana. As plataformas de perfuração continuam a explo­
ração petrolífera dos mares a profundidades cada vez
maiores. As cidades multiplicam os pisos de betão, debaixo
da terra e acima do nível do solo, criando um meio intei­
ramente condicionado. Em espaços é certo bastante redu­
zidos, ediíica-se um universo construído, cujos materiais,
muito elaborados, são fornecidos pela grande indústria,
betão, vidro sintético, aço, matérias plásticas. Populações
cada vez mais numerosas vivem neste meio.
A sociedade industrial abala as condições da comu­
nicação entre os homens. Duas revoluções técnicas contri­
buem para isso, a dos transportes e a dos meios de relação à
distância. O automóvel à disposição de cada trabalhador-
-consumidor dá-lhe uma enorme autonomia de deslocação
quotidiana, num raio de 100 a 200 km. O avião de velo­
cidade sub-sónica aproxima todos os continentes do pla­
neta: os grandes aeroportos internacionais estão a algumas
horas uns dos outros, no máximo a um dia inteiro de viagem.
As distâncias-tempo físicas acham-se pois completamente
transformadas. Pode gastar-se menos tempo a ligar «a jacto»
duas capitais europeias do que a vencer de carro a curta dis­
tância quilométrica que separa da província uma dessas
capitais, em dia de engarrafamento. Por fim, os meios de
comunicação à distância, e particularmente a televisão,
condicionam a segunda grande etapa nas mutações da
humanidade, depois da da imprensa, segundo MacLuhan.
A imagem difundida com a palavra torna-se acessível a dis-
188

tâncias quase ilimitadas. A técnica abala completamente


a noção essencial de distância-tempo, A terra inteira torna-
-se agora tão acessível como a área de uma aldeia para um
camponês do século passado.
A sociedade industrial faz explodir o espaço dos homens.
O espaço social dos produtores-consumidores, na dispersão
funcional dos lugares de trabalho, de alojamento, de ócio,
de serviços, como mostrámos no capítulo anterior. Mas
também o espaço econômico da função de produção, o
espaço político das decisões, o espaço cultural das criações.
As sociedades multinacionais, as relações internacionais da
produção subtendem uma política internacional e uma
arte internacional, esta última preferentemente abstracta.
Uma nova élite de viajantes sulca o globo, abolidas todas as
distâncias, veiculando por toda a parte as mesmas imagens,
tão à vontade em Chicago como em Tóquio ou no Rio,
pois que também os hotéis e outros lugares onde «descem»
em Chicago, em Tóquio ou no Rio suportam os mesmos
valores. O secretário de Estado americano H. Kissinger
personifica idealmente este homem novo.
Nestas condições, a região poderá ainda existir?

B) Um exemplo: a Renânia
Segundo E. Juillard (30)

A Europa renana, de Basiléia aos grandes portos holan­


deses, constitui incontestavelmente um grande espaço de
tipo funcional. As burguesias das grandes cidades mercantis30

(30) E. J uillard, UEurope rhènane, 1968.


189

do período pré-industrial, e depois os magnates do Ruhr


do séc. XIX, tinham preparado a emergência de um espaço
aberto para relações internacionais. A época contemporânea
consagra a supremacia desse eixo na Europa. As mais fortes
densidades de população, muitas vezes superiores a várias
centenas de habitantes por quilômetro quadrado, acumu­
lam-se na sua vizinhança, produtores de grande tecnicidade,
consumidores de alto nível de vida. Caminhos de ferro,
estradas, auto-estradas duplicam a via fluvial do Reno, tor­
nando fáceis os transportes de toda a natureza. Aos portos
(entre os quais Roterdão, o mais importante na Europa)
acrescentam-se os nós rodoviários e os aeroportos inter­
nacionais. Por fim, algumas das maiores firmas mundiais
(suíças, alemãs e holandesas) têm aqui os seus lugares de
origem, o seu terreno de eleição, os seus centros de decisão.
À penetração dos capitais americanos acrescenta a este
espaço econômico uma dimensão suplementar, a inter-
-continental. Zurique, Frankforte e Dusseldorf tornaram-se
lugares de irradiação mundial.
Pela qualidade das suas infra-estruturas, de uma extraor­
dinária densidade, pela força do seu crescimento, pelas inter-
-relações que ligam os seus estabelecimentos e as suas empre­
sas, a Europa renana distingue-se por conseguinte como um
grande espaço econômico de tipo funcional — um dos mais
notáveis do mundo. As suas características devem ser uma
vez mais sublinhadas. Este espaço é denso, tanto em homens
como em capitais, em infra-estruturas, em construções,
tecnologicamente muito evoluído, sem fronteiras, de uma
coerência perfeitamente funcional. E. Julliard sublinha-o.
«O progresso técnico conduz ao alargamento do quadro
espacial das actividades humanas e à modelação de grandes
espaços econômicos. Na idade do avião, da auto-estrada,
190

do télex, os 600 km que separam Zurique de Amsterdão


epresentam menos, em espaço-tempo, do que um departa­
mento francês antes dos caminhos de ferro. O que até aqui
era sucessão de espaços distintos ao longo de uma estrada
reveste uma coerência crescente. O eixo renano impõe-se
cada vez mais como uma das linhas de força da Europa...
O Reno toma-se de novo agregador. Os capitais, os homens
afluem a ele de todos os horizontes; as fronteiras que cor­
tam ainda o espaço renano perdem muito do seu significado».
E. Julliard nunca utiliza no entanto o termo «região»
para qualificar este conjunto, a que prefere chamar «espaço».
Com efeito, onde é que se encontra a região dos homens
neste concerto regional...? Nas margens do Reno, mas
também muito para além delas. O espaço profissional dos
quadros e dos homens de decisão estende-se a todos os
continentes. Uma parte crescente da população encontra os
seus ócios de Verão nos Alpes, nas costas do Mediterrâneo,
e mesmo em viagens mais longínquas ainda, graças aos
«charters». Inversamente, trabalhadores imigrados, da África
do Norte, da Jugosiávia, da Turquia, do Surinam, procuram
e encontram emprego nas fábricas de Colônia, Essen ou
Amsterdão. O espaço de vida dos homens não coincide
pois exactamente com o espaço funcional da economia.
Além disso, este conserva divisórias de ordem demográfica,
política e cultural. Será preciso acrescentar que as paisagens
renanas possuem diversidade suficiente para oferecer aos
seus habitantes um meio-ambiente muito variado, desde as
encostas vitícolas da Àlsácía e de Bade às grandes planícies
holandesas irisadas por canais, passando pelas bacias
fumarentas de Colônia ao Ruhr?
Nestas condições, são provavelmente a grande cidade
e a sua periferia rural ou a conurbação metropolitana que
191

c o n u rb a ç ã o
= = = = = Prin cip a is a u to e stra d a s e xis te n te s K l M a is d e 2 0 0 b a b ./ k m 2
■■1 ■ > V ia n a ve g á ve l d e g ra n d e im p o rtâ n c ia ■<■■■ e m c o n s tru ç ã o
uiumtii e m e s tu d o

FIG. 10. — A Renânia (segundo E. Juillard)


192

melhor correspondem à noção de região. E Julliard adopta


praticamente esta solução. Regiões fortemente polarizadas
de Zurique, Basiléia, Estrasburgo, Manheim, Frankfort.
Regiões metropolitanas da Renânia-Ruhr e da Randstad-
-Holland. Nestas superfícies reduzidas, a mais pequena
dessas unidades conta mais de 400 000 habitantes e o Ruhr,
a mais populosa, mais de 10 milhões. No universo da bana-
lização, são as grandes cidades que envolvem uma sociedade,
de massa nas fronteiras relativas do hábito. Com efeito
se os arredores residenciais desaparecem na uniformidade,
se os valores do espaço rural são cada vez menos perceptíveis
numa civilização que já não os sabe ver (um automobilista
na auto-estrada já não «vê» uma paisagem rural, mas sim
uma auto-estrada, as margens e algumas saídas...), as
grandes cidades distinguem-se no novo código do espaço
por funções específicas,indústrias de tal ou tal ramo, acti-
vidades terciárias, e também por monumentos, uma tra­
dição cultural, um certo ambiente. Polarizam assim as rela­
ções, paticularmente por intermédio do poderoso sector
terciário, ao mesmo tempo que focalizam as percepções
Por natureza, o espaço funcional é muito aberto. Mas «ser
de Colônia» tem com efeito um sentido. Enquanto a cidade
devora a região, a região identifica-se com a cidade.
A organização do espaço funcional é hierarquizada,
mas de maneira muito mais complexa que a das regiões
«enraizadas». A abolição das distâncias, a deslocalização
dos valores conduzem com efeito a uma extrema turbulân-
cia dos espaços de vida, à abertura das diferentes áreas
podendo ir até à explosão. Em resumo, parece no entanto,
possível distinguir:
— o espaço das firmas, que corresponde ao espaço
profissional das classes dirigentes; inscreve-se no nível
193

superior das relações internacionais; participa numa econo­


mia, numa política e numa cultura de extensão mundial;
— o espaço econômico das grandes combinações de
infra-estruturas e de inter-relações financeiras e industriais,
organiza-se em nebulosas densas em redor dos eixos e dos
pólos que se tomaram «pivots» da economia mundial;
— a região centrada na grande cidade ou confundida
com ela; projecta uma imagem específica, difundida pelos
meios de comunicação de massas, e que suscita um senti­
mento, real ou ilusório, de comunhão;
— o espaço social dos homens, espalhado por lugares
descontínuos; esta dominânia não exclui no entanto a sobre­
vivência ou a emergência de comunidades por vezes muito
vivas em bairros ou subúrbios, em redor de um estado ou
de uma actividade sem relação com a produção, desporto,
religião, raça, origem geográfica...

C) Elementos de diferenciação

O espaço funcional, em pleno florescimento, só se


encontra actualmente nos países que adoptaram mais
resolutamente as normas da sociedade industrial. N o qua­
dro dos países capitalistas, os espaços que melhor respon­
dem às definições precedentes são as grandes áreas metro­
politanas dos Estados Unidos, a Europa Renana, a região
parisiense, a Bacia de Londres e a Megalopolis japonesa.
Subsistem no entanto profundas diferenças entre estes con­
juntos. O desenvolvimento tecnológico mais avançado nos
Estados Unidos, associado ao reino absoluto da livre em­
presa, acentua a integração do espaço funcional em relação
à Europa. O gigantismo do espaço americano manifesta-se

R E -13
194

por dimensões regionais muito mais abertas. Os fenômenos


raciais de segregação acentuam os contrastes entre os cen­
tros, perto dos quais se encontram os guetos, e os subúrbios
«próprios» das classes «respeitáveis»; esta segmentação dos
espaços sociais no meio das mesmas regiões metropolitanas
é muito nítida nos Estados Unidos, enquanto na Europa
está ainda em esboço. A cultura regional, por fim, fecun­
dada pela história, deixa às cidades e aos campos europeus
muito mais rugosidade e seiva do que ao espaço quase novo
dos Estados Unidos. A Renânia é pois provavelmente um
modelo menos acabado de região funcional do que a região
metropolitana de Nova Iorque e, a fortiori, do que a de
Chicago ou Los Angeles.
Mas poder-se-ão incluir nesta mesma categoria as
regiões mais dinâmicas da U. R. S. S. e da Europa de Leste,
por exemplo a região de Moscovo ou de Leninegrado, o
Donbass, a região de Budapeste...? Entre os teóricos da
sociedade industrial, alguns não hesitam em considerar
que a sociedade soviética obedece praticamente às mesmas
normas que as do capitalismo avançado. O mesmo dogma do
crescimento, o mesmo culto da eficácia tecnológica, condi­
cionamento social de estilo diferente mas de finalidade talvez
análoga. E, com efeito, podem encontrar-se algumas seme­
lhanças entre as mais densas regiões da U. R. S. S. e as
dos Estados Unidos e da Europa Ocidental. Mas, mesmo
admitindo estas premissas, há também que reconhecer dife­
renças singulares. No entanto, avaliam-se ainda mal as
consequências para a vida regional da apropriação pelo
Estado dos meios de produção, da planificação c e n tr a liz a d a ,
do projecto socialista, do esforço de promoção cultural das
massas. Surgiram na U. R. S. S. grandes cidades, esmaltadas
de fábricas, universidades, grandes serviços colectivos.
195

Mas se a geografia soviética tem produzido estudos abun­


dantes sobre as regiões econômicas, permanece ainda muda
acerca o espaço vivido dos homens. Os trabalhos de
B. Kerblay fornecem muitas indicações interessantes acerca
da casa, da vida urbana «entre o real e o imaginário» ( 31).
Faltam os testemunhos. A região dos Soviéticos distingue-se
mal entre os legados da história, os objectivos do socialismo
e os imperativos funcionais da economia planificada.

(3t) B. K erblay, «La ville soviétique entre le possible et rima-


ginaire», Annales E. S. C.. 1970.
CAPÍTULO IV

OS GRANDES ESPAÇOS

N a hierarquia das combinações geográficas, devemos


reservar um lugar, para além das regiões, a grandes espaços
caracterizados por um pequeno número de factores objec-
tivos e de representaçõs, e que fecham assim o horizonte
antes do desconhecido do «vasto mundo». Os grandes espa­
ços devem ser subdivididos em duas categorias bem distin­
tas. Uns, com efeito, fundam a sua originalidade apenas
num número muito reduzido e muito específico de elementos
da combinação geográfica. Assim, por exemplo, os cor
juntos naturais dissociam-se de acordo com alguns crité
rios físicos, morfológicos ou bio-climáticos. Os outros,
muito mais ricos, integram vários factores de ordem dife­
rente, e particularmente alguns factores pertencentes a cada
uma das grandes cadeias de inter-relações da combinação
geográfica (ecológicos, sócio-económicos, sócio-culturais).
Estes espaços de civilização coroam o edifício hierarquizado,
mas não petrificado, das combinações geográficas.
198

1. OS GRANDES CONJUNTOS NATURAIS


E OS GRANDES ESPAÇOS ECONÔMICOS, AS NAÇÕES

A) Os grandes conjuntos naturais

É forçoso reconhecer honestamente o divórcio agora


consumado entre a «geografia física» e a «geografia humana»
ou a «geografia regional». Nos capítulos precedentes, ape­
nas marginalmente se fez apelo às noções clássicas da geo­
grafia física. Estas afirmações podem passar ainda por sacri­
légios. Com efeito, desde há pouco mais de- meio século
que os geógrafos franceses, muito particularmente, comun­
gam em conjunto no culto da geomorfologia. Não é possível
imaginar um bom geógrafo que não tenha feito algumas
longas gamas sobre flexuras ou superfícies de erosão. Não
é concebível um bom estudo regional que não comece por
alguns capítulos consagrados ao relevo e ao clima. Homens
de letras de formação encontraram, nas origens da sua dis­
ciplina, tais compensações intelectuais na descoberta das
ciências naturais que erigiram nessas terras a maior parte
dos totens e tabus da sua casta (32).
Poderão os grandes conjuntos da geomorfologia estru­
tural fundar uma subdivisão de primeiro grau do universo
terrestre? Para um aprofundamento dos conhecimentos
próprios desta especialidade científica, uma tal classificação
é evidentemente legítima. Assim, ao adoptar, «como divisão
de primeira ordem, as grandes unidades tectónicas», Pierre
Birot distingue os grandes socos, a diagonal alpina, o domí-32

(32) Refira-se, bem entendido, a A. Reynaud, Epistêmologie


de la gêomorphologie. 1971.
199

nio peripacífico, as terras polares e as ilhas vulcânicas ( 33h


Mas será preciso sublinhar que este primado da geologi';
pouco contribui para o estudo das relações entre os homem
e o seu meio de vida? É certo que pode ser útil, e mesmo
indispensável, conhecer bem, por exemplo, o relevo das
«planícies, planaltos, e montanhas médias da Europa Cen­
tral e Ocidental», como um elemento das civilizações euro­
péias. Mas afectar a este factor o lugar determinante na
estrutura das combinações é empobrecê-las singularmente.
Os geógrafos não permaneceram explicitamente «determi­
nistas» durante muito tempo. No entanto, conservaram
hábitos que concedem ao relevo e, para além dele, à estru­
tura geológica, à evolução geomorfológica, uma parte
essencial na explicação das «paisagens» regionais. Este
privilégio aparece cada vez mais como um arcaísmo her­
dado da história da disciplina geográfica, do que como
uma realidade de observação, ou como uma incontestável
demonstração. O lugar crescente dado, de há uma vintena
de anos para cá, aos fenômenos bioclimáticos no estudo
dos espaços naturais traz-lhe um real enriquecimento.
Com efeito, estes constituem provavelmente, em si próprios,
uma combinação mais rica do que a que tudo funda na
herança geológica. Mais flexível, pela integração dos ele­
mentos do clima, vegetação, solos, relevo, hidrologia, fauna;
mais plástica, por uma concepção do tempo menos mani-
queista, revela-se muito mais completa para descrever e
explicar os espaços de vida. Uma nova geografia física oferece
assim à reflexão da geografia humana o quadro das suas
«zonas» e dos seus «domínios». As subdivisões fundamen-

(33) P. B irot, Les régions naturelles du globe, 1970.


200 I

tais do mundo deverão por isso passar a ser as que distin­


guem por exemplo a zona equatorial, as zonas tropicais
húmidas, as zonas tropicais áridas e subtropicais, as zonas
temperadas, as zonas frias (34)? Os novos programas esta­
belecidos em França, de há uma dezena de anos para cá,
e os manuais correspondentes, aliás de grande valor, deixá-
lo-iam supor facilmente.
De facto, nas suas relações com a geografia humana e
a geografia regional, a geografia zonal sofre já os mesmos
avatares da geomorfologia estrutural. Afirmada como ciên­
cia, e frequentemente praticada como tal, estende muito
legitimaraente os seus próprios métodos e os seus próprios
conceitos a investigações que já não têm forçosamente por
objecto as relações dos homens com os lugares. Os estudos
respeitantes às superfícies de erosão, ou os trabalhos sobre
os sedimentos e os declives de erosão, contribuem pro­
vavelmente muito para o conhecimento da «epiderme da
terra» ( 35), mas os volumes que lhe têm sido consagrados
não têm relação com o que esse conhecimento pode forne­
cer à apreensão do espaço pelos homens. Diante de uma tal
manifestação de energia, e muitas vezes de talento, só duas
atitudes parecem possíveis: a aceitação do imperialismo
ou a afirmação da independência. De facto, quer se queira
quer não, quer se diga quer não, pelo seu dinamismo, pela
sua antiguidade, pelos seus usos como pelos seus ritos, a
geografia física impõe os seus determinismos às concepções
que se podem ter do homem na Terra, ao associar-se a uma

( 34) A classificação é tirada dos títulos da colecção A. Colin,


( JS) Segundo a expressão de J. T ricart, Uêpiderme de la Terre.
1962.
201

geografia dita «humana» para se tornar «regional». Mais


vale pois, com toda a clareza para ambas, assumir o divór­
cio que separa hoje as duas disciplinas. As «zonas», tal como
os «arcos» ou os «socos», não se podem impor ao estudo do
homem na Terra.
Seria no entanto um erro não querer reconhecer os
componentes físicos dos lugares vividos. Mas devem ser
restituídos numa perspectiva recentrada sobre o homem.
Neste domínio, há sem dúvida mais a esperar da emergência
de uma ecologia humana do que das investigações clássicas
da geografia física.

B) Os grandes espaços econômicos

Parcialmente libertada da influência naturalista, a geo­


grafia tem adoptado de bom grado, no decurso dos últimos
vinte anos, o primado do econômico. Este propõe a distin­
ção de grandes espaços econômicos, que correspondem aos
estádios de crescimento reconhecidos tanto pelos marxistas
como pelos liberais, e que têm o mérito de uma certa clareza.
Existe assim uma classificação que se reproduz em nume­
rosas obras. A área dos países desenvolvidos opõe-se ao
Terceiro Mundo subdesenvolvido. No primeiro grupo, a
área «ocidental» dos países de economia liberal deve ser
distinguida do «bloco soviético». No seio do segundo
grupo, o regime sócio-político (comunismos, socialismos
planificadores, liberalismos), ou então o isolamento dos
continentes (América Latina, África, Ásia), ou ainda o
grau de subdesenvolvimento (países em vias de desenvolvi­
mento, países de subdesenvolvimento médio, países pro
fundamente subdesenvolvidos) permitem praticar interes­
santes subdivisões.
202

A análise econômica distingue ainda, em graus com­


preendidos entre estes grandes sistemas e as regiões, espaços
intermédios. Durante muito tempo, os impérios coloniais
associaram parceiros econômicos em trocas desiguais,
metrópole industrializada e territórios ultramarinos sub-
desenvolvidòs. A «zona sterling» e a «zona franco», que
prolongam os grandes domínios coloniais, correspondem
ainda a uma certa realidade de preferência econômica.
Mas solidariedades mais igualitárias e estreitas unem agora
entre si nações do mesmo nível econômico: assim, na Europa,
a Comunidade Econômica Européia (C. E. E., na Europa
Ocidental) e o Conselho de Assistência Econômica Mútua
(C. A. E. M., na Europa Central e Oriental) (3 6).
Poderiam ser evocadas ainda outras solidariedades
espaciais. Algumas delas manifestam-se por feixes de inter-
-relações horizontais que dotam com uma certa especifi­
cidade extensões bastante vastas. Particularmente nos países
desenvolvidos, a importância das redes de transportes e de
comunicações tende para a identificação de espaços econo­
micamente densos, muito atraentes para as actividades e os
homens, em oposição a espaços remanescentes, deixados de
lado e «reservatórios» do crescimento (de homens, de espaço,
de recursos primários, etc.). A Europa Renana constitui um
bom exemplo de espaço economicamente denso. O Mezzo-
giomo ou a França do Oeste afirmam-se como espaços
remanescentes. Outras solidariedades espaciais exercem-se
sem continuidade física em inter-relações verticais que unem
os estabelecimentos associados de uma mesma concentração
financeira. Difícil de delimitar, ainda mal estudado, o

( 36) P. Claval, Régions, nations, grands espaces, 1968.


203

espaço das grandes firmas, e particularmente das firmas


multinacionais, as mais importantes, não deixa por isso de
ser uma realidade com que os homens devem contar cada
vez m ais(37).
Muito melhor, com efeito, que as determinações físi­
cas, os grandes espaços econômicos dão conta de maneira
interessante das divisões maiores do universo humanizado.
O primado do econômico, geralmente admitido, explica o
sucesso deste sistema de referências. Em França, particular­
mente sob o impulso de P. George no decurso dos anos 50,
os estudos geográficos receberam da distinção países sub-
desenvolvidos/países industrializados de economia liberal/
países de economia socialista um novo impulso. E, cm última
instância, trata-se com efeito de três maneiras fundamentais
de ser e de agir no Mundo, e de o ver. Mas, assim como não
se poderia identificar o primado do econômico como uma
redução de todos os valores humanos a este, também as
grandes divisões do espaço dos homens não se podem
compreender plenamente apenas por essa referência,

C) As nações

As nações constituem um tipo muito rico de grande


espaço, pelo menos as mais extensas. Geralmente mais vastas
que as regiões que as compõem, as nações têm com efeito
uma expressão espacial, cujos componentes bebem em todos
os sectores da combinação geográfica...

(37) Entre alguns estudos pioneiros, X. B rowaeys, «Les firmes


multinationales», Annales de Gèographie, 1974.
204

As nações afirmam primeiramente uma certa unidade


do poder político e dos seus atributos, administração, jus­
tiça, polícia, exército. No interior das suas fronteiras, os
uniformes e os emblemas simbolizam uma especificidade sem
quebra, e uma autoridade. A fronteira de Estado é um dos
limites geográficos mais francos que existem, afirmada
tanto militar como juridicamente, e muito precisamente
inscrita no mapa, assim como no terreno. Quer seja seve­
ramente controlada, como as fronteiras que balizam a «Cor­
tina de Ferro», ou de passagem muito suave, como as que
separavam os países da Comunidade Econômica Européia,
a fronteira nunca deixa de ser um limite sem margens entre
dois sistemas de referência política e administrativa, duas
maneiras de ser controlado, administrado, julgado... Esta
divisão do espaço político só apareceu de maneira tão rígida
no decurso do período moderno. É interessante notar que a
sua influência se desenvolveu paralela ou consecutivamente
ao «desenclavamento» dos espaços de vida que, durante
longos séculos, segundo P. Chaunu ( 3S), permaneceram
fechados nas suas próprias descontinuidades. Como se
uma nova regulação, de tipo político, se viesse substituir
às impostas pelas necessidades físicas e pelo uso.
Mas as nações contemporâneas construiram-se também
com base noutros atributos, para além dos da autoridade
política. Inscrevem-se a maior parte das vezes, não no qua­
dro de uma única unidade natural, mas em volta de um
«berço» de origem, para as mais antigas e mais enraizadas,
ou ao longo de uma vasta frente de expansão, para as mais

(38) P. C haunu , Vhistoire, science sociale; le temps, I’espace,


Ia société à Vépoque moderne, 1974.
conquistadoras: a França em volta da Bacia de Paris ou
a Hungria na Bacia panonense, os Estados Unidos da costa
atlântica e dos Apalaches às Rochosas e à costa pacífica,
a U. R. S. S. pertencendo a ambas as formas, pelos seus
«berços» ocidentais e pelas suas margens orientais, do Volga
ao Pacífico. A kistória acrescenta-se à natureza na identifi­
cação destes espaços. A demonstração é fácil de levar a cabo
para as nações mais antigas da velha Europa: Paris para a
França, Budapeste para a Hungria, Londres para a Ingla­
terra, etc., são lugares que parecem ter fixado no seu plano,
nos seus monumentos, nas suas pedras o essencial da histó­
ria da nação, a ponto de restituirem a todos a sua imagem
ou a sua recordação. Mas a irradiação do espaço-história,
mais difusa, estende-se muito para lá da capital. Algumas
nações mais jovens também não escapam a este peso histó­
rico do espaço. Numa dezena de anos, bastante pesados, a
guerra, a revolução, a independência, soldaram e valori­
zaram psicologicamente um espaço argelino que se buscava
a si próprio. Em condições menos dramáticas, a colonização
e a descolonização dotaram o Senegal, a Costa do Marfim,
os Camarões... com uma parte da sua identidade, no seio
de fronteiras no entanto bastante artificiais. Por fim, as
nações afirmam-se ainda por uma certa unidade de orga­
nização econômica, tanto no mundo socialista como no
sistema ocidental, como o mostrou P. Claval ( 39). As nações
existem pois, muito nitidamente. A unidade de língua, de
cultura, o sentimento popular de comunhão solda mais
vigorosamente ainda a maior parte delas. A nação constitui,
por conseguinte, um espaço forte no «puzzle» do universo

( 39) p. Claval, op. cit., 1968.


206

humanizado, tanto objectivamente como enquanto imagem


a que aderem as populações que o compõem. A língua
mostra neste caso, o vigor desta comunhão recíproca do
espaço e dos homens. Os homens não vivem «sobre» ou
«na» nação. Os homens e o território são a nação.
Os geógrafos mostram geralmente aversão pelo estudo
deste fenômeno. Tomam o território nacional como quadro,
mas muito raramente como objecto. No decurso dos últi­
mos anos, P. Claval constitui excepção, com o seu Regiões,
nações, grandes espaços, já citados, muito orientado para a
apreensão dos fenômenos econômicos.
As nações não podem no entanto constituir um quadro
totalmente satisfatório para definir os grandes espaços de
civilização. Em primeiro lugar, as desnaturações de que o
próprio termo «nação» foi politicamente objecto devem
suscitar uma escrupulosa atenção... Em torno da palavra
«nação», os povos têm oscilado das «nacionalidades» ao
«nacionalismo», da afirmação de uma personalidade colec-
tiva à exaltação dc um mito, no esquecimento das mais objec-
tivas realidades. E essas novas religiões ofereceram como
ópio os mais sangrentos holocaustos. Os geógrafos fran­
ceses gostam pouco de se queimar com tais demônios.
De facto, se não se deve ignorar o conceito, se é também
conveniente estudar as suas realidades e os seus mitos,
mais do que fingir o seu vazio, não nos poderiamos fechar
apenas neste sistema de análise sem grandes riscos, intelec­
tuais e outros. Em segundo lugar, a extraordinária hetero-
geneidade das nações, tanto cultural como histórica e espa­
cialmente, faz da nação um modelo pouco explorável.
A U. R. S. S. cobre 22 400 000 km2... e Singapura 581 km2.
A China conta cerca de 800 milhões de habitantes... e a
Islândia pouco mais de 200 000. A China prossegue uma
207

história que se desenrola desde há várias dezenas de séculos...


e a Guiné-Bissau nasce para a independência. A respeita­
bilidade internacional impõe a estrita igualdade jurídica e
moral destas unidades díspares. Mas as diferenças dc escala,
tanto na realidade como na percepção das coisas, fazem
delas espaços fundamentalmente diferentes, que vão das
áreas infra-regionais em alguns casos aos grandes conjun­
tos continentais.

2. OS ESPAÇOS DE CIVILIZAÇÃO

Se afastarmos as definições que implicam uma ideia dc


progresso ou de desigualdade entre os povos, uma civili­
zação pode rcconhecer-se, segundo o dicionário, como «um
conjunto de fenômenos sociais (religiosos, morais, esté­
ticos, científicos, tccnicos) comuns a uma grande socie­
dade ou a um grupo de sociedades». No seu nível mais alto,
esta combinação é também geográfica, pois não é conce­
bível sem um espaço, área de extensão, suporte de activi-
dades e de vida, obra traduzida à medida dos homens, parte
integrante da própria civilização, pelos valores que projecta
ou que perpetua. Entre os geógrafos franceses, P. Gourou
deu uma atenção muito particular a estes espaços de civi­
lização, talvez tomados num sentido um tanto mais restri­
tivo do que aquele que acaba de ser proposto. Captada assim
no grau mais alto da escaía dos fenômenos, a combinação
geográfica apenas retém, em vastas áreas, alguns factores
Mas esses são essenciais. Os homens já não se encontram aí
associados pelas inter-relações múltiplas de uma forte coe­
rência. Mas têm em comum alguns traços, e muito parti­
cularmente uma certa visão do espaço e do mundo. É por
este ângulo, e na lógica dos capítulos precedentes, que um
208

geógrafo pode tentar examinar os grandes espaços de civi­


lização.

A) Os espaços de adaptação e de celebração

As primeiras análises mostraram, nos diferentes níveis


das combinações geográficas, lugares mal fixados, casas
precárias, encontros episódicos entre os grupos, espaços
sociais oscilando do acampamento para o território, regiões
a que foi preciso chamar «fluidas»... Um primeiro tipo de
grandes civilizações inscreve no espaço marcas de tal modo
discretas que análises superficiais facilmente concluem pela
ausência de marca, pelo «selvagem» ou pelo «natural».
De facto, este campo, aberto sobretudo aos estudos dos
etnólogos, revela humanidades de uma extraordinária
riqueza, na diversidade das civilizações e na subtileza das
relações que as unem ao mundo. Muito modestamente, o
geógrafo tomará em conta alguns traços que lhe dizem mais
particularmente respeito. Mas deveria fazer melhor, de
tal modo poderíam ser ricos estes ensinamentos.

A extensão, associada a densidades de população muito


baixas, constitui a primeira característica destes espaços.
Dois exemplos, de natureza muito diferente, mostram-no
bem. Nas florestas da Bacia do Amazonas e das suas mar­
gens, ou seja mais de 3 500 000 km2, vivem cerca de 200 000
índios. Mesmo antes da chegada dos Brancos, não eram
sem dúvida muito mais de 1 milhão. As distâncias con­
tam-se em centenas e em dezenas de quilômetros, sem
possibilidade de encurtamento das distâncias-tempo por
meios rápidos. Os grupos humanos contam-se em dezenas
de pessoas. À volta do imenso Sahara (cerca de 9 milhões
209

de quilômetros quadrados), o Islão Africano agrupa socie­


dades mais numerosas; mas às fortes densidades cm peque­
níssimas extensões que se concentram a norte do Maghreb
e no Vale do Nilo, opõem-se os espaços quase vazios do
deserto e das suas margens sahelianas. Em espaços aparen­
temente infinitos, os homens parecem perdidos.

A natureza, nestas condições, acha-se pouco alterada


pelas actividades humanas, de tal modo estas são ínfimas,
pontuais, em relação às extensões consideradas. É assim
frequentemente dita «virgem», «selvagem», «original»,
nomeadamente pelos Europeus. Os povos que nela vivem
conhecem-na intimamente, pelo menos em redor dos
acampamentos e dos itinerários habituais dos percursos.
Mas não poderiamos confundir o espaço de civilização
com o grande conjunto natural. De facto, se os grupos
humanos interpretam uma certa «natureza», não é forço-
samente a dos geógrafo, mas antes a que lhes convém, ou
a que encontraram nos acasos da história. O Islão não e
«a civilização do deserto», mas sim a de um espaço com­
plexo que associa o deserto, o mar, as suas costas, a cidade
e os campos, podendo faltar um ou vários elementos, con­
forme as regiões. Na bacia amazônica, a floresta também
não é tudo. Penetrada pelos rios, estilhaçada em ilhas de
gradações múltiplas conforme os níveis, atravessada por
clareiras, prolongada nas suas margens em savana arbori­
zada, subdivide-se e humaniza-se. Mesmo essa natureza,
longe de constituir um absoluto intocável, é um encontro
e uma interpretação.

A adaptação dos homens às condições físicas opera-se


com meios frequentemente hábeis mas sempre rudimentares

R E-14
210

tecnicamente. A mais pura e mais rude confrontação coloca


as sociedades mais desprovidas face aos espaços naturais
mais difíceis para a vida. Três grandes zonas abrigam assim,
muito particularmente, populações confrontadas com con­
dições de subsistência muito duras. As margens árcticas
submetidas aos grandes frios. A diagonal árida, do Sahara
à Mongólia, a que se pode acrescentar o deserto austra­
liano, esmagados pela secura. As florestas densas da zona
interptropical, asfixiadas pela luxúria da vegetação. Nume­
rosos estudos sobre os «modos de vida» mostraram como
é que grupos vivendo na maior penúria técnica se podiam
no entanto adaptar, pela mobilidade do habitat, pela caça,
a pesca ou a recolecção, pela cultura itinerante ou pela
pastorícia, a condições de vida particularmente severas.
Os Europeus sentem algumas dificuldade em emitir
sobre estas civilizações juízos que não sejam extremos.
A literatura oscila entre cs mitos dos «bons selvagens», dos
«ascetas do deserto», da «natureza original», do «paraíso
perdido», e os da crueldade e da miséria num mundo sempre
«hostil», «difícil» e «caprichoso»... Mas o que em defi­
nitivo parece mais surpreendente é a procura, mesmo nos
grupos mais estreitos e isolados, e apesar de todas as difi­
culdades naturais, de uma espécie de acordo fundamental
com o mundo, que passa por uma visão e uma recriação do
espaço. A aldeia índia edifica por alguns dias o seu próprio
universo, as suas oposições, as suas tensões, as suas divisões
explícitas ou disfarçadas na ordem do acampamento.
O espaço do Islão parece sem limites, mas não sem desíg­
nios. Pontuado por signos, projecta-se desde os retraí-
mentos envolventes da intimidade pessoal ou familiar até
aos vastos horizontes abertos para o infinito das con­
quistas e dos sonhos, desde os recintos fortemente cons­
211

truídos das mesquitas ou dos modestos rectângulos de


oração no meio dos campos e das pastagens, até à Cidade
Santa para a qual todos os mirhab estão voltados, afirmação
focalizada de uma oração única. Na extrema precaridade das
relações materiais dos homens com o mundo, o espaço
duplica-se de valores sagrados que afirmam o seu conheci­
mento através de ritos ou meditações, que asseguram pela
ordem oculta ou formulada das coisas a permanência do
que é frágil, e que prolongam pela magia ou pela fé os
limites do inassimilável, O espaço torna-se celebração.

B) Os espaços de domesticação e de comunhão

As aldeias das planícies russas ainda assediadas pelas


recordações históricas dos Tatares (e desses novos Tatares
do Oeste que foram os Alemães), as aldeias kabílias do
Djurdjura em contacto com grupos árabes que ainda há
menos de um século nomadizavam na estepe, as rudes
aldeias wolofs do Senegal ainda imbricadas com acampa­
mentos peuls, os arrozais e as aldeias das planícies chi­
nesas e vietnamitas muito próximas dos «rays», das coli­
nas e planaltos arborizados... outros tantos contrastes,
muitas vezes gritantes a curta distância, entre dois tipos pro­
fundamente diferentes de espaços de civilização. Os capí­
tulos precedentes aproximaram entre si, da casa à região,
as grandes civilizações campesinas. Por diferentes que sejam,
com efeito, a civilização dos agricultores-rizicultores da
Ásia das Monções, os campesinatos da Europa e da Bacia
mediterrânica, as civilizações aldeãs das savanas africanas
(estas últimas sob alguma reserva) têm em comum certas
concepções fundamentais das relações do homem com o
212

espaço, que deram as suas raízes às massas mais numerosas


da humanidade.

A cerca e a construção fixam os grupos huinanos ao


solo, num universo perfeitamente circunscrito. Construí­
das para durar muito para além de uma vida humana, as
casas, as aldeias, as vilas, as cidades encontram-se nos mes­
mos sítios, os seus sítios, de século para século. E mesmo
quando uma calamidade as põe à prova, incêndio, guerra,
inundação, uma reconstrução obstinada restitui-lhes mais
ou menos os mesmos lugares. No entanto, esta regra da
permanência sofre muitas desigualdades... As aldeias afri­
canas, a maior parte das vezes saídas das grandes migrações
dos últimos séculos, parecem ainda precárias, enquanto as
mediterrânicas, construídas em pedra, se confundem com a
própria estrutura dos lugares. À construção vem-se juntar a
cerca. A cerca eventualmente materializada em muros,
diques, sebes, árvores, mas também a cerca imaterial e
no entanto tão real dos limites de campos abertos e de
finages, de comunas e regiões, de países e nações. A cerca
não é (ou já não é) divisória estanque, mas sim sucessivas
«conchas» do homem, da intimidade ao desconhecido, da
segurança à aventura, fronteiras de uma permeabilidade
fraccionada, conforme a idade, o sexo, a condição social,
o temperamento pessoal e as contingências históricas. Na
permanência relativa das tramas agrárias, das redes de
caminhos e estradas, das armaduras provinciais, a cerca e
a construção fecham e fixam as estruturas do espaço vivido.

A domesticação da natureza realiza um equilíbrio pre­


cário, mas sem cessar reafirmado, entre as necessárias reno­
vações biológicas e as necessidades de subsistência de popu­
213

lações numerosas, mesmo muito numerosas. A natureza


é totalmente apropriada, num universo doméstico que a
submete às suas próprias exigências (as da subsistência do
grupo), adoptando ao mesmo tempo para si própria s leis
dos equilíbrios biológicos. Tal como os animais são domes­
ticados, as plantas são seleccionadas e cultivadas, as ter1 .
desbravadas, irrigadas, drenadas, trabalhadas, as floresfas
cortadas e replantadas, os risos canalizados ou «mondados»,
os pântanos e os charcos limpos... A natureza inscreve-se
numa dupla dimensão e num duplo equilíbrio: os dois ritmos
biológicos e os do trabalho campestre. Uma pradaria é ao
mesmo tempo uma inclinação, um substrato, um solo,
uma boa ou mã drenagem, um tapete de gramíneas, legu-
minosas e plantas adventícias, uma certa repartição sazonal
das temperaturas e das chuvas, um crescimento rápido de
primavera, um «capacho» de verão, uma recuperação de
outono, um longo sono de inverno... mas também sebes
cortadas, fossos «mondados», drenos conservados, escar-
deamentos, estrumação e adubação, passagens de animais
em pastagem, limpezas de bosta e gradagens, ceifas de
fenos... (40) Entre a natureza submetida ao trabalho
humano e os homens sujeitos aos ritmos da natureza esta­
belece-se uma intimidade de relações que suscita uma recrea­
ção material e psicológica do espaço, de valores ambíguos.
As paisagens inteiramente «humanizadas» não deixam por
isso de ser «naturais».

O culto da comunhão e da duração inscreve-se no seio


das mesmas estruturas. A comunhão não é apenas apro­

(40) Descrição sumária do trabalho de uma pastagem tradicio­


nal da Normandia.
214

priação material e econômica das coisas. É um valor fun­


damental, econômico e psicológico, histórico e sociológico,
uma relação estrutural dos homens com os lugares, a todos
os níveis da escala das combinações: casa, bairro, aldeia,
região, nação... A apropriação da terra (privada ou colec-
tiva), o sentimento de pertencer a uma região, o nacio­
nalismo encontram neste contexto o seu pleno florescimento.
Paralelamente, prevalece o culto daquilo que dura. O espaço
fechado, sem outro horizonte para além de si próprio, só
encontra a sua superação num desafio ao tempo dos homens.
As sociedades exaltam a religião dos antepassados, o respeito
dos anciãos e dos mortos, a ligação à família ou às linhagens.
A tradição tem força de ensinamento. O espaço inscreve-se
nessa duração que se renova sem cessar ao ritmo da vida e
da morte, ao mesmo tempo que se perpetua. Carrega-se assim
de valores de espessuras múltiplas, que dão a cada árvore,
cada casa, cada região ou cada nação uma qualidade parti­
cular. O isolamento dos círculos de vida locais, a fragmen­
tação das regiões, a balcanização das nações, são os coro­
lários normais desta visão do espaço (41).

C) O espaço unidimenslonal

O espaço numa só dimensão, tal como o homem:


assim se pode qualificar, parafraseando um tanto H. Mar-
cuse, o espaço da sociedade industrial chegada ao seu mais
alto nível de crescimento. A expressão neste caso exige o

(41) No entanto a civilização chinesa exerce sobretudo uma


influência unificadora num vasto território nacional.
215

singular. De facto é uma civilização única e universal que


tende a impor-se.

A conquista do universo por uma civilização dominante


pertence aos mais velhos sonhos da humanidade. O Impé­
rio romano fez deles, durante vários séculos, um embrião
de realidade, criando à sua maneira um espaço «unidimen-
sional», cuja geometria eficaz prefigurava as projecções
contemporâneas. Os impérios coloniais retomaram o mesmo
desígnio numa escala mais vasta, mas na confusão da con­
corrência. O sonho só se torna manifestamente realidade no
decurso dos últimos vinte anos dos tempos contemporâ­
neos, com o crescimento da sociedade industrial levado ao
seu mais alto nível.
A conquista parte da Europa ocidental, do Japãc
cada vez mais nitidamente, dos Estados Unidos. Estes d •
rentes imperialismos só já a título secundário são concor­
rentes. Fundamentalmente, concorrem para o mesmo pro­
jecto: a extensão máxima (quer dizer universal) da área do
lucro e da mercadoria, a transformação das sociedades tra­
dicionais para esse efeito, a mutação do espaço às ordens
do crescimento. Dispondo de meios materiais muito pode­
rosos, e particularmente de meios de comunicação que trans­
formam completamente as distâncias-tcmpo, a conquista
pôde-se estender simultaneamente aos cinco continentes,
sem preocupação nenhuma de continuidade no espaço.
As grances metrópoles constituem os seus pontos normais
de apoio. Pela primeira vez, uma grande civilização encon­
tra a sua expressão espacial, menos num território único
(ou alguns territórios associados), do que numa rede mun­
dial de grandes metrópoles solidárias, repetindo por todo
o lado cs mesmos modelos arquitectónicos (as torres, o
216

betão, o vidro, o aço...), sociais (a massa...), econômicos


(a eficácia, o crescimento, o lucro...). Mas este espaço
unidimensional tem também a sua expressão agrícola,
com as grandes explorações integradas de agricultura indus­
trial, os espaços turísticos, as estações de veraneio de massa,
as cidades mineiras, as bases militares...

A desnaturação do espaço acompanha a extensão da


civilização técnica. Realiza-se num duplo movimento com­
plementar. Como mostrámos já nos capítulos precedentes,
nas cidades e seus satélites edifica-se um novo espaço com
materiais inteiramente elaborados pela indústria, e de
acordo com planos e dimensões que já nada devem aos
ritmos biológicos. Mas, como corolário, realiza-se, pri­
meiro insidiosamente, em seguida cada vez mais macissa-
mente, uma alteração não compensada dos equilíbrios do
solo, do subsolo, da vida das plantas e dos animais, dos
recursos energéticos, das formações vegetais, das águas cor­
rentes, dos mares, etc. A actualidade insiste agora muito
nos perigos da poluição. A situação pode atingir um ponto
crítico em regiões super-industrializadas como o Ruhr ( 42)
ou as zonas portuárias do Japão (4J). A própria doença
e a morte tornam-se produtos industriais. O espaço desna-
turado substituiu a terra pelo betão, o horizonte pela ver­
tical das torres, e os bacilos do ar e da água por resíduos
tóxicos.

(42) Particularmente em Duisburgo, em redor de um alto forno


gigante da firma Thyssen.
(43) Onde grassam doenças graves devidas à ejecrão de pro­
dutos tóxicos à base de chumbo, cádmio, zinco, policloreto de dife-
nil, etc. (segundo Le S.mvage, Fev. 1974).
217

O efêmero ritma as novas concordâncias do espaço e


do tempo. No entanto, a técnica pode realizar prodígios para
fazer durar os homens e as coisas. O betão resiste às intem­
péries, e mesmo aos tremores de terra, como nenhum mate­
rial da era pré-industrial. A medicina contemporânea pro­
longa a esperança de vida dos homens para lá de setenta
anos, nas sociedades que podem ganhar plenamente com
isso, ou seja, uma duração duas a três vezes mais longa do
que há um século ou dois e do que nas sociedades sem assis­
tência médica. Mas, paralelamente, o crescimento dita sem
cessar a renovação e o apelo do futuro. Destróí-se tanto
quanto se constrói. A eficácia impõe aos trabalhadores-
-consumidores uma fragmentação dos tempos de repouso,
de trabalho, deslocação, lazer, e uma explosão do espaço
social. A moda surge como uma tentativa irrisória de reno­
vação das coisas; as suas imagens obsessivas tornam-se o
cenário do espaço quotidiano. A estandardização banaliza
os lugares e deixa por toda a parte a impressão do «já visto».
Mas, nesta uniformidade agressiva, o futuro solicita sem ces­
sar o instante presente. Para modelar uma cidade nova ou
uma região reordenada, o plano projcctada para 1985 ou
para 2000, ao ritmo de um crescimento constante, ganha
muito mais importância do que a tradição, do que todo o
desenrolar do passado. A cidade em construção permanente,
em perpétuo «devir», parece escapar à duração, para já só
participar no instante e no futuro.
Em conclusão desta análise, colocaremos três questões.
As respostas não são evidentes.

1) O capitalismo industrial constitui o motor da


extensão de um espaço unidimensional. Proporá o socia-
2IS

lismo, para o mundo contemporâneo, uma outra constru­


ção do espaço, nomeadamente na U. R. S. S. ou nos paí­
ses da Europa de Leste? Teoricamente, assim parece.
Praticamente, num universo que alia também o estandarte
do betão à procura da eficácia, é mais contestável. Salvo
entre os utópicos do século XIX, os projectos socialistas
praticamente não integraram o espaço vivido dos homens
nas suas perspectivas. Devemos no entanto sublinhar o
papel desempenhado na Grã-Bretanha pelo partido tra­
balhista, na elaboração e realização de uma política origi­
nal de reordenamento do espaço assim como a atenção con­
cedida aos problemas do meio ambiente pelos governos
sociais-democratas dos Estados escandinavos.

2) Os espaços precários da adaptação e da celebração


da natureza foram elaborados por sociedades cuja vida his­
tórica e pré-histórica se estende desde o aparecimento do
homem até aos nossos dias, ou seja, por várias dezenas de
milênios. Os espaços domesticados do enraizamento são
fruto de civilizações campesinas cujas origens remontam,
tanto na China como na Europa, a vários séculos antes
de J. C. O espaço unidimensional só se elabora verdadei­
ramente no decurso dos últimos decênios. Teremos de ver
nesta enumeração a justaposição de diferentes modelos das
relações dos homens com o espaço, ou uma evolução ine­
lutável da humanidade?

3) A crise da energia que eclodiu em 1973 repõe em


causa o crescimento contínuo dos países muito industria-
219

lízados, ao mesmo tempo que acentua a crítica dos funda­


mentos e das modalidades do seu desenvolvimento. A civi­
lização do espaço unidimensional acabará por ser tão e s­
mera como o tempo que a ritma?
Mas para que outros espaços?

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