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da cognição.
Eduardo Passos*
Resumo
O artigo discute o impacto causado pelo modelo máquina nos estudos da cognição. O modelo da
autopoiese é tomado como uma versão do artificialismo contemporâneo a partir do qual a noção
de subjetividade pode ganhar outros sentidos.
Abstract
Sabemos que ao dualismo ontológico afirmado por Descartes - essa idéia de que há dois
domínios ontológicos, o da matéria e o do espírito - correspondia um dualismo metodológico.
Para a racionalidade moderna que se inaugura no século XVII, há duas maneiras de conhecer: uma
maneira de conhecer a matéria e outra de conhecer o espírito. Se para a física cartesiana, toda a
realidade é mecânica, em contrapartida, a substância pensante - o cogito, o eu pensante, o
espírito - só poderia ser conhecida por uma outra estratégia metodológica que era aquela
empregada pela “Psicologia Racional”. Neste caso, o conhecimento era obtido por um movimento
reflexivo da razão, pois, para conhecer o próprio sujeito do conhecimento, Descartes acreditava
que só a experiência imediata da reflexão ou a introspecção da razão poderia garantir um método
seguro.
Herbert Simon é um importante representante desse campo da ciência, que ele mesmo
designou como “ciência do artificial”, em uma fórmula criada em 1969 no livro com esse título*3+.
A ciência cognitiva é ciência do artificial por duas razões. Ela é artificial, primeiramente, porque
transgride uma maneira, que talvez possamos dizer ser “natural”, de conceber a ciência a partir
da distinção entre sujeito e objeto do conhecimento. Esta distinção estava bem demarcada por
uma ciência que admitia caber ao sujeito os processos da inteligência, do pensamento, enquanto
a matéria, passivamente, se desvela ao conhecimento ou à inteligência do sujeito que conhece. É
esta distinção que é problematizada quando se recusa que a inteligência seja exclusivamente
humana. Será que só o homem pensa? Será que o sujeito do conhecimento ou isso a que
Descartes quis atribuir uma realidade substancial, uma realidade de res cogita, é por definição
humano? Será que só o homem cogita?
Se até então o projeto de uma ciência da subjetividade parecia não suportar as críticas e
suspeitas que lhe foram, desde a segunda metade do século XIX, endereçadas, com o advento das
máquinas inteligentes a situação epistemológica parece se alterar. Pois sobre a psicologia sempre
pesou aquele imperativo que Vico formulou assim: Verum et factum convertuntur, isto é, “o que
é verdadeiro e o que se faz podem ser convertidos um no outro”. Dessa maneira, estava
descartava a possibilidade de uma ciência da subjetividade, já que todo conhecimento rigoroso
tem que se dar como um knowing by doing. Deve-se conhecer fazendo. Ora, como conceber,
então, uma ciência da subjetividade sem supor o cientista repetindo o ato de criação do homem?
O poder de criação da realidade próprio da ciência alcançaria, assim, sua forma mais ousada.
Eis, então, a ousadia que parece impulsionar os novos estudos da cognição. O conhecer
fazendo torna-se uma prática que identificamos no trabalho dos engenheiros de sistemas
inteligentes que constróem programas que simulam capacidades cognitivas tais como resolver
problemas matemáticos ou jogar xadrez. Muito bem, essas máquinas inteligentes só podem ser
caracterizadas assim - e, consequentemente, servindo como modelo para a ciência da
subjetividade - graças a uma forma de complexidade que lhe é própria.
A força deste modelo-máquina reside, então, na possibilidade que ele oferece de superar o
dualismo cartesiano. Doravante, afirma-se que há um único domínio de realidade como sempre
quis a ciência[4]. Tal monismo assume hoje a designação de funcionalismo computacional. E o
termo indica a ênfase dada pelos autores definidos como funcionalista E este monismo se quer
não reducionista, diferentemente das tentativas até então de fazer uma ciência monista da
subjetividade. Pois foi um reducionismo materialista, por exemplo, acreditar que a subjetividade
pode ser reduzida às periferias sensório e motora do comportamento ou que a determinação
ambiental explica a conduta. O que se quer agora, ou a pretensão máxima desses autores é
terem finalmente chegado a uma ciência da cognição monista materialista sem ser reducionista,
já que se admite uma complexidade do objeto refletida na complexidade dos dois níveis de
descrição propostos no modelo de análise. Mas essa posição em parte ainda dominante no
cenário da ciência cognitiva e da filosofia da mente a ela associada não está isenta de suspeitas.
Pois o caráter não reducionista deste monismo é controverso.
Por definição esta ciência monista da subjetividade é também ciência da simulação, uma
vez que a máquina com que modelizo a realidade do objeto permite uma certa independência dos
seus níveis descritivos soft e hard. Por exemplo: podemos considerar a situação em que duas
máquinas de bases materiais distintas, um PC Samsung e um IBM, estejam funcionando com o
mesmo programa de edição de texto, digamos o Microsoft Winword. Neste caso, temos
diferentes máquinas do ponto de vista da sua composição material que, no entanto, se
identificam do ponto de vista da sua lógica de operação. Podemos dizer, portanto, que há uma
identidade funcional entre essas duas máquinas já que operam segundo uma mesma lógica de
processamento de informação. Ora, nada impedirá aos entusiastas com as pesquisas em IA
afirmar que esta identidade pode ser estendida para a relação entre a máquina e o homem. A
ciência da subjetividade torna-se uma ciência da simulação quando admite que entre sistemas
materialmente distintos - o hard de silício da máquina e o hard neural do cérebro - pode haver
uma identidade funcional, ou uma identidade soft. Já não é absurdo supor uma dimensão
subjetiva em sistemas não humanos, ou mesmo não biológicos. Essa é a potência de artifício da
ciência cognitiva que lhe permite afirmar a continuidade entre sistemas cujas naturezas materiais
são distintas. O que querem dizer é que a interface computador/ambiente é funcionalmente
idêntica à interface cérebro/ambiente de tal forma que se torna agora indecidível se é a máquina
que prolonga a capacidade cognitiva do homem ou se é o homem que se transforma em uma
derivação da máquina. Coloca-se num certo contínuo ou no mesmo plano essas figuras até então
resguardadas por fronteiras tão precisas. Esse é o artificialismo que vai produzir um fabuloso
efeito de desestabilização da forma humana do pensamento.
Temos então uma nova figura do cogito: calculo logo existo. Com essa nova formulação do
cogito quer-se dar conta da subjetividade, pensando-a na relação de continuidade entre
diferentes sistemas, todos igualmente artificiais pois regidos pela mesma lógica. O eu penso
mantém-se soberano em sua versão hight-tech. O sujeito enquanto fundamento do
conhecimento é redefinido em linguagem de programação computacional. A existência do sujeito
inteligente é indicada pela sua atividade de cálculo. Daí, podermos estender a função cognitiva
para além do humano em direção às máquinas calculadoras. Portanto, já não há mais diferença
em postular a inteligência dos mecanismos ou descrever os mecanismos da inteligência.
O artificialismo tal como é formulado por essa primeira geração dos engenheiros da
inteligência ligados às pesquisas em simulação (IA) é um artificialismo, a meu ver, insuficiente.
Trata-se de um cognitivismo de versão top-down. Neste caso, o universalismo seria uma certa
perspectiva de cima para baixo de compreensão do funcionamento cognitivo, ou seja, postula-se
que a inteligência é a operação de certas estruturas ou faculdades mentais das quais não se pode
perguntar a gênese porque são universais. O comportamento inteligente não é outra coisa senão
a aplicação de cima para baixo dessas estruturas dadas.
Na década de 70, surge na Universidade do Chile uma nova versão para a Biologia do
Conhecimento. São os trabalhos de Humberto Maturana e Francisco Varela que, no interior do
campo da ciência cognitiva, contrapõem-se ao modelo top-down de investigação[9]. A questão
que se coloca para estes autores é a da definição da vida: o vivo é um sistema autopoiético, isto é,
sistema capaz de produzir as suas condições de produção. Se ainda é aceito o modelo máquina,
trata-se agora de uma máquina diferente da máquina universal turingiana. A máquina
autopoiética não pode ser explicada a partir do modelo top-down, modelo do perito como o
jogador de xadrez. Pois a maquinação autopoiética não se reduz à aplicação de regras universais
ou de estruturas cognitivas inatas. Recusa-se que a cognição possa ser entendida à semelhança de
programas que jogam o xadrez, ou que conseguem demonstrar teoremas matemáticos. O modelo
top-down dos programas peritos é substituído pelo modelo em rede que toma a atividade
cerebral como um processamento de informação distribuído e não seqüencial, funcionando por
conexões múltiplas. A cognição, segundo este modelo, deixa de ser a aplicação de regras ou a
atividade de processadores lógicos, para se tornar o efeito emergente de uma rede com aptidão à
auto-organização[10] . Coloca-se no centro das preocupações a dimensão temporal, genética e
criativa das estruturas do conhecimento. E se a cognição é o que emerge de uma rede de
elementos subsimbólicos, se ela resulta da atividade de auto-organização de um sistema
fortemente cooperativo (tal como as redes neurais ou as redes linfocitárias), é enfatizada a
dimensão ontogenética da cognição. Nesse sentido, é interessante que a física, a química, a
biologia entrem em uma surpreendente sintonia como a filosofia e a arte, no que estas têm de
problematização da criação. Digamos, então, que podemos identificar um momento filosofante e
poético no campo da ciência cognitiva. A arte e a filosofia atravessam os estudos da cognição
produzindo um efeito de desestabilização e um novo curso é traçado para as investigações da
subjetividade.
[1] Há uma vastíssima literatura de apresentação do campo da ciência cognitiva. Dentre várias
outras indicações bibliográficas sugerimos: ANDLER, Daniel (org.) Introduction aux sciences
cognitives.Paris, Gallimard, 1992. DUPUY, Jean-Pierre. Nas origens das Ciências Cognitivas. São
Paulo, Unesp, 1995 [1994]. PENROSE, Roger. The emperor's new mind. Concerning computers,
mids, and the laws of physics. New York, Pinguin, 1991 [1989]. PYLYSHYN, Zenon W. (org.)
Perspectivas de la revolución de los computadores. Madrid, Alianza, 1975 [1970]. VARELA,
Francisco. Connaître: les sciences cognitives, tendences et perspectives. Paris, Seuil, 1989 [1988].
"Abordagens à ciência e tecnologia da cognição". Ciência e Cultura, 40 (5), maio, p. 460-470,
1988
[2] Cf. PASSOS, Eduardo. "Modelo máquina e subjetividade: a desestabilizção da forma humana
do pensamento". Cadernos Avulsos, Coordenação Interdisciplinar de Estudos Culturais (CIEC),
ECO/UFRJ, 1996.
[4] Nesse sentido, não podemos concordar com a afirmação de que o projeto da IA forte
(Inteligência Artificial forte) seja “o último bastião do dualismo” como propõe Prado Jr. em sua
apresentação ao livro de J. Searle O mistério da consciência. São Paulo, Paz e Terra, 1998 [1997].
*6+ A este respeito, Blanché caracteriza a ciência moderna pelo seu “matematismo”, isto é, seu
ideal de inteligibilidade que impõe ao pensamento a exigência última de conquistar o limiar de
formalização. Cf. BLANCHÉ, Robert. La science physique et la réalité: réalisme, positivisme,
mathématisme. Paris, PUF, 1948.
[8] Para uma discussão do impacto causado na ciência pelas noções de caos determinístico e
atratores estranhos, cf. Ciência Hoje, v.14, n.80, março/abril de 1992.
[9] Cf. MATURANA, Humberto e VARELA, Francisco. Autopoiesis and Cognition: the Realization
of the Living. Dordrecht, D. Reidel Publishing Company, 1980 [1972]. De máquinas e seres vivos.
Autopoiese — a Organização do Vivo. Porto Alegre, Artes Medicas Sul, 1997[1994/1972]. A
árvore do conhecimento. Campinas, Editorial Psy, 1995 [1987]. VARELA, Francisco; THOMPSON,
Evan; ROSCH, Eleanor. L'incription corporelle de l'esprit: sciences cognitives et expérience
humaine. Paris, Seuil, 1993 [1992].
[10] Para uma discussão da distinção entre os modelos da ciência cognitiva, cf. Varela, 1989, op.
cit. Acerca da noção de auto-organizção, cf. VARELA, Francisco. L'auto-organization: de
l'apparence au mécanisme. In:Colloque de Cerisy. L'auto-organization: de la physique au
politique. Paul Dumouchel e Jean-Pierre Dupuy (org.). Paris, Seuil, 1983. p. 147-164.