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Cognição e produção da subjetividade: O modelo máquina e os novos maquinismos nos estudos

da cognição.

Eduardo Passos*

Resumo

O artigo discute o impacto causado pelo modelo máquina nos estudos da cognição. O modelo da
autopoiese é tomado como uma versão do artificialismo contemporâneo a partir do qual a noção
de subjetividade pode ganhar outros sentidos.

Palavras-chave: Cognição, Subjetividade, Autopoiese

Abstract

Tomemos este ponto de partida. Trata-se do tema da subjetividade contemporânea, só


que focalizando uma aspecto particular das formações subjetivas das últimas décadas. Quero
discutir uma questão de que a cultura moderna tem se ocupado bastante e em diferentes níveis:
não só teórica ou academicamente, mas também nas formulações cotidianas da mídia e nas
construções imaginárias da ficção. E é importante destacar que, mesmo em sua dimensão teórica,
esta questão se reveste de um aspecto ficcional, o que lhe confere uma grande força de atração.

Podemos identificar nos estudos contemporâneos da cognição o pressuposto de que há


máquinas inteligentes e que, como tais, simulam as capacidades do sujeito cognoscente. Busca-se
definir a dimensão subjetiva da máquina, de modo que já não se admite uma fronteira tão estrita
entre o subjetivo e o mecânico. Neste sentido, posso dizer que, a partir da década de 40, a ficção
e as ciência se aproximam num certo campo teórico-tecnológico que, nos anos 70, ganha a
designação genérica de ciência cognitiva ou de ciências da cognição[1]. É nesta cena teórica de
nossos dias que muitas discussões pretendem retomar velhos temas da filosofia e da psicologia
clássica. Não só são revalorizados os estudos acerca de processos cognitivos como o pensamento,
memória, linguagem, como também temas mantidos por anos fora do campo de interesse da
Psicologia, como é o caso do tema da consciência, são resgatados em discussões que se querem
atuais. Em um trabalho anterior, procurei discutir o efeito de desestabilização da forma humana
do pensamento produzido pelo advento das máquinas computacionais. Graças a esta
desestabilização, como busquei argumentar, outros maquinismos inteligentes permitem
configurar a subjetividade cognoscente para além da sua forma humana[2]. O que gostaria de
fazer agora é avançar um pouco mais nessa discussão, apenas apontando para um outro efeito da
revolução computacional nos estudos da cognição, um efeito correlato àquele relativo aos
estudos do pensamento.

Mas retomemos a discussão onde a havíamos deixado. A relação cognição/máquina torna-


se central e paradigmática a partir do advento de um novo dispositivo mecânico capaz de resolver
“inteligentemente” problemas. O computador foi um projeto concebido teoricamente e
implementado tecnologicamente nas décadas de 30 e 40. Embora um instrumento tecnológico
de cálculo, esta máquina foi imediatamente convertida em modelo teórico ou paradigma de
compreensão da realidade. Assiste-se, então, ao advento de um novo mecanicismo, bem
diferente daquele do século XVII que foi uma estratégia específica da racionalidade moderna para
dar conta de uma certa dimensão da realidade. Pois o modelo máquina era aplicado por
Descartes para pensar o que este filósofo chamou de “coisa extensa”, a matéria física. Mas se o
mecanicismo clássico só admitiu uma máquina que simulasse fenômenos físicos, na segunda
metade do século XX surge o projeto de uma máquina cujo poder de emulação parece alcançar
esse outro domínio que na concepção cartesiana só seria atingível por um movimento reflexivo da
razão.

Sabemos que ao dualismo ontológico afirmado por Descartes - essa idéia de que há dois
domínios ontológicos, o da matéria e o do espírito - correspondia um dualismo metodológico.
Para a racionalidade moderna que se inaugura no século XVII, há duas maneiras de conhecer: uma
maneira de conhecer a matéria e outra de conhecer o espírito. Se para a física cartesiana, toda a
realidade é mecânica, em contrapartida, a substância pensante - o cogito, o eu pensante, o
espírito - só poderia ser conhecida por uma outra estratégia metodológica que era aquela
empregada pela “Psicologia Racional”. Neste caso, o conhecimento era obtido por um movimento
reflexivo da razão, pois, para conhecer o próprio sujeito do conhecimento, Descartes acreditava
que só a experiência imediata da reflexão ou a introspecção da razão poderia garantir um método
seguro.

Nos estudos contemporâneos da cognição há esta forte convicção de se ter finalmente


superado o dualismo corpo/mente herança da filosofia moderna e, consequentemente,
superando-se também o dualismo metodológico que impedia o emparelhamento das ciências da
matéria e do espírito. Teríamos então finalmente alcançado uma perspectiva monista nos estudos
da cognição. Mas de que monismo se trata? Na verdade, assim como devemos distinguir formas
de dualismo, há diferentes atitudes monistas. Sabemos que há o dualismo de substância e o
dualismo metodológico ao modo de Descartes, existindo também o dualismo de propriedade
conforme se defenda a idéia da existência de uma única substância embora nela seja possível
identificar diferentes características ou propriedades. Um setor importante do pensamento
contemporâneo acredita que a superação do dualismo estaria garantida pelo advento da máquina
inteligente cuja capacidade de simulação do sujeito do conhecimento permitiria, de uma vez por
todas, a fundação de uma ciência da mente. Eis a conversão do tecnológico em teórico, pois um
instrumento de cálculo se apresenta como modelo de explicação da realidade subjetiva,
ganhando um valor teórico. O computador torna-se um instrumento teórico, ou seja, ele é,
doravante, teoria no sentido grego da palavra (theoría, “ação de contemplar, examinar”). No
campo da ciência cognitiva, “viso” a cognição a partir desse artificio. Mais do que isto, a realidade
subjetiva passa a ser entendida como artifício. Instaura-se um artificialismo, o que eqüivale a dizer
que se supera o naturalismo que imperava nas tentativas iniciais de uma ciência da subjetividade.

Herbert Simon é um importante representante desse campo da ciência, que ele mesmo
designou como “ciência do artificial”, em uma fórmula criada em 1969 no livro com esse título*3+.
A ciência cognitiva é ciência do artificial por duas razões. Ela é artificial, primeiramente, porque
transgride uma maneira, que talvez possamos dizer ser “natural”, de conceber a ciência a partir
da distinção entre sujeito e objeto do conhecimento. Esta distinção estava bem demarcada por
uma ciência que admitia caber ao sujeito os processos da inteligência, do pensamento, enquanto
a matéria, passivamente, se desvela ao conhecimento ou à inteligência do sujeito que conhece. É
esta distinção que é problematizada quando se recusa que a inteligência seja exclusivamente
humana. Será que só o homem pensa? Será que o sujeito do conhecimento ou isso a que
Descartes quis atribuir uma realidade substancial, uma realidade de res cogita, é por definição
humano? Será que só o homem cogita?

Ao pressupor o cogito mecânico, aquela fronteira precisa entre sujeito e objeto do


conhecimento começa a se desestabilizar. Mas, por outro lado, a ciência do artificial, porque ela
toma como tarefa dar conta das capacidades de artifício ou engenho com as quais identifica a
inteligência, ela não pode ser menos uma engenharia. Como que por um necessário
comprometimento ou fusão entre sujeito e objeto, essa ciência do artificial ou das potências de
artificialização tem que ser ela também uma ciência artificial ou que opera por artificialização. Daí
surgirem novas figuras da ciência: engenheiros da subjetividade, tecnólogos da inteligência,
produtores de engenhos artificiais que simulam as potências cognitivas.

Se até então o projeto de uma ciência da subjetividade parecia não suportar as críticas e
suspeitas que lhe foram, desde a segunda metade do século XIX, endereçadas, com o advento das
máquinas inteligentes a situação epistemológica parece se alterar. Pois sobre a psicologia sempre
pesou aquele imperativo que Vico formulou assim: Verum et factum convertuntur, isto é, “o que
é verdadeiro e o que se faz podem ser convertidos um no outro”. Dessa maneira, estava
descartava a possibilidade de uma ciência da subjetividade, já que todo conhecimento rigoroso
tem que se dar como um knowing by doing. Deve-se conhecer fazendo. Ora, como conceber,
então, uma ciência da subjetividade sem supor o cientista repetindo o ato de criação do homem?
O poder de criação da realidade próprio da ciência alcançaria, assim, sua forma mais ousada.

Eis, então, a ousadia que parece impulsionar os novos estudos da cognição. O conhecer
fazendo torna-se uma prática que identificamos no trabalho dos engenheiros de sistemas
inteligentes que constróem programas que simulam capacidades cognitivas tais como resolver
problemas matemáticos ou jogar xadrez. Muito bem, essas máquinas inteligentes só podem ser
caracterizadas assim - e, consequentemente, servindo como modelo para a ciência da
subjetividade - graças a uma forma de complexidade que lhe é própria.

Qual seria esse valor paradigmático das máquinas inteligentes? O computador é um


dispositivo que permite um duplo nível de análise, o que significa dizer que esta realidade-
máquina pode ser descrita de dois modos distintos - distinção de modos de descrever a mesma
realidade e não distinção de domínios substanciais. No computador podemos descrever o que é
da ordem da dimensão material da máquina, o seu nível hardware; e o que é da ordem do seu
processamento simbólico ou informacional, seu nível software. E o importante é que esta
distinção é feita sem que se caia no dualismo. Porque não são duas coisas, duas partes da
máquina ou mesmo duas máquinas distintas, mas trata-se de uma única coisa, uma única
realidade que pode ser perspectivada, visada ou descrita seja na sua dimensão hard, seja na sua
dimensão soft. Dois níveis de descrição: a máquina na sua dimensão material, mas também em
sua lógica de funcionamento, no seu modo de processar informação. O modo de processamento
da informação ou a lógica de organização do funcionamento dessa máquina não aponta para uma
outra realidade da máquina mas sim para um outro nível de descrição do seu hard. A máquina é
um conjunto de circuitos eletrônicos ou engrenagens materiais que funcionam segundo uma
certa programação. Seu funcionamento é sempre o funcionamento segundo uma lógica
instanciada em uma base material.

A força deste modelo-máquina reside, então, na possibilidade que ele oferece de superar o
dualismo cartesiano. Doravante, afirma-se que há um único domínio de realidade como sempre
quis a ciência[4]. Tal monismo assume hoje a designação de funcionalismo computacional. E o
termo indica a ênfase dada pelos autores definidos como funcionalista E este monismo se quer
não reducionista, diferentemente das tentativas até então de fazer uma ciência monista da
subjetividade. Pois foi um reducionismo materialista, por exemplo, acreditar que a subjetividade
pode ser reduzida às periferias sensório e motora do comportamento ou que a determinação
ambiental explica a conduta. O que se quer agora, ou a pretensão máxima desses autores é
terem finalmente chegado a uma ciência da cognição monista materialista sem ser reducionista,
já que se admite uma complexidade do objeto refletida na complexidade dos dois níveis de
descrição propostos no modelo de análise. Mas essa posição em parte ainda dominante no
cenário da ciência cognitiva e da filosofia da mente a ela associada não está isenta de suspeitas.
Pois o caráter não reducionista deste monismo é controverso.

Um autor como J. Searle se dedica atualmente a refutar tal pretensão do funcionalismo.

Por definição esta ciência monista da subjetividade é também ciência da simulação, uma
vez que a máquina com que modelizo a realidade do objeto permite uma certa independência dos
seus níveis descritivos soft e hard. Por exemplo: podemos considerar a situação em que duas
máquinas de bases materiais distintas, um PC Samsung e um IBM, estejam funcionando com o
mesmo programa de edição de texto, digamos o Microsoft Winword. Neste caso, temos
diferentes máquinas do ponto de vista da sua composição material que, no entanto, se
identificam do ponto de vista da sua lógica de operação. Podemos dizer, portanto, que há uma
identidade funcional entre essas duas máquinas já que operam segundo uma mesma lógica de
processamento de informação. Ora, nada impedirá aos entusiastas com as pesquisas em IA
afirmar que esta identidade pode ser estendida para a relação entre a máquina e o homem. A
ciência da subjetividade torna-se uma ciência da simulação quando admite que entre sistemas
materialmente distintos - o hard de silício da máquina e o hard neural do cérebro - pode haver
uma identidade funcional, ou uma identidade soft. Já não é absurdo supor uma dimensão
subjetiva em sistemas não humanos, ou mesmo não biológicos. Essa é a potência de artifício da
ciência cognitiva que lhe permite afirmar a continuidade entre sistemas cujas naturezas materiais
são distintas. O que querem dizer é que a interface computador/ambiente é funcionalmente
idêntica à interface cérebro/ambiente de tal forma que se torna agora indecidível se é a máquina
que prolonga a capacidade cognitiva do homem ou se é o homem que se transforma em uma
derivação da máquina. Coloca-se num certo contínuo ou no mesmo plano essas figuras até então
resguardadas por fronteiras tão precisas. Esse é o artificialismo que vai produzir um fabuloso
efeito de desestabilização da forma humana do pensamento.

Consideremos finalmente que a máquina inteligente é uma figura intercessora no curso da


ciência da subjetividade. Utilizamos o conceito de intercessor na acepção que lhe dá G. Deleuze
em seu livro Conversações[5]. Esta noção explicita a maneira particular de produzir a diferença a
partir da intercessão entre termos. Não nos confundamos com as palavras: intercessão é apenas
homófona à intersecção, pois o sentido aqui é o de interceder. O intercessor é um agente de
interferência ou intervenção, um agente de alterização. O que importa é que um efeito de
desestabilização em dado sistema se realize pela ação de algum fator de transversalização. A
relação que se estabelece entre o intercessor e o termo transversalizado não é de identidade ou
de consonância, pois é pela diferença entre os termos que a função intercessora se realiza. Um
elemento de fora do sistema atravessa este campo, permitindo mudanças no que se tomava
como uma identidade ou natureza., produzindo aqui um efeito de desestabilização. A
desestabilização produzida pelo advento das máquinas inteligentes traça, então, uma linha de
fuga para além do humano, permitindo um devir máquina do sujeito. O que me interessa discutir
é menos a fabulosa possibilidade de sonhar com andróides e poder realizá-los, ou a efetiva
implementação do projeto das máquinas inteligentes, do que esse efeito de interferência cujo
resultado produz a desestabilização da forma humana da subjetividade.
Mas devemos respeitar os fatos da história dos estudos da cognição. Pois, se falamos de
um devir máquina do sujeito cognoscente ou da superação da forma humana do pensamento,
naquele momento quando a força do artifício inaugurava o campo da ciência cognitiva, esse
processo de desestabilização foi refreado por uma velha estratégia da ciência moderna. Verifica-
se um movimento de recaptura, de re-estabilização no campo dos estudos da subjetividade que
estava em franco processo de desteritorialização. A formalização e logicização do sujeito-máquina
ou da máquina-subjetiva foi o procedimento reterritorializante. Para que se pudesse chegar
efetivamente à ciência do artifício, para que essa ciência pudesse se impor como uma nova
estratégia metodológica para os estudos da subjetividade, foi preciso que o organismo/sujeito
fosse esfriado[6]. A condição para o devir máquina do homem foi o seu esfriamento resultado da
logicização das faculdades cognitivas. A cognição pôde ser identificada não só no homem mas
também nas máquinas, já que foi definida como uma sistema formal algoritmizável.
Desestabilizado em sua forma humana, a subjetividade é reteritorializada numa figura do
universal (lembremos que A. Turing, precursor do projeto computacional, chamava seu
dispositivo de Máquina Universal[7]). Se o naturalismo da psicologia capturava a subjetividade na
forma necessária da natureza, agora recaptura-se a subjetividade em uma outra forma, que é a
forma do universal.

Temos então uma nova figura do cogito: calculo logo existo. Com essa nova formulação do
cogito quer-se dar conta da subjetividade, pensando-a na relação de continuidade entre
diferentes sistemas, todos igualmente artificiais pois regidos pela mesma lógica. O eu penso
mantém-se soberano em sua versão hight-tech. O sujeito enquanto fundamento do
conhecimento é redefinido em linguagem de programação computacional. A existência do sujeito
inteligente é indicada pela sua atividade de cálculo. Daí, podermos estender a função cognitiva
para além do humano em direção às máquinas calculadoras. Portanto, já não há mais diferença
em postular a inteligência dos mecanismos ou descrever os mecanismos da inteligência.

O artificialismo tal como é formulado por essa primeira geração dos engenheiros da
inteligência ligados às pesquisas em simulação (IA) é um artificialismo, a meu ver, insuficiente.
Trata-se de um cognitivismo de versão top-down. Neste caso, o universalismo seria uma certa
perspectiva de cima para baixo de compreensão do funcionamento cognitivo, ou seja, postula-se
que a inteligência é a operação de certas estruturas ou faculdades mentais das quais não se pode
perguntar a gênese porque são universais. O comportamento inteligente não é outra coisa senão
a aplicação de cima para baixo dessas estruturas dadas.

Na década de 80, esse modelo do cognitivismo computacional enfrentará, ainda no campo


do artificialismo, os efeitos de um outro intercessor, cujo poder de desestabilização se dá na
forma do privilégio conferido aos sistemas complexos, aos sistemas longe do equilíbrio, aos
sistemas auto-organizados, aos sistemas em rede. Trata-se de uma nova tendência presente nos
campos da matemática, da física e da biologia e que coloca em questão o ideal de inteligibilidade
dominante na ciência moderna tradicional. Assistimos ao advento de uma ciência de sistemas
estranhos - e estranho aqui não é uma metáfora, nem é um adjetivo proposto de fora da ciência,
mas é uma designação propriamente científica[8]. Sistemas estranhos são aqueles que fogem ao
equilíbrio, são sistemas imprevisíveis, que dissipam as suas estruturas, gerando a partir de um
funcionamento auto-organizador novas estruturas. Prigogine chama esses sistemas de estruturas
dissipativas; na matemática, René Thom desenvolve a Teoria das Catástrofes. Na biologia, essa
discussão vai aparecer com a noção de sistemas autopoiéticos.

Na década de 70, surge na Universidade do Chile uma nova versão para a Biologia do
Conhecimento. São os trabalhos de Humberto Maturana e Francisco Varela que, no interior do
campo da ciência cognitiva, contrapõem-se ao modelo top-down de investigação[9]. A questão
que se coloca para estes autores é a da definição da vida: o vivo é um sistema autopoiético, isto é,
sistema capaz de produzir as suas condições de produção. Se ainda é aceito o modelo máquina,
trata-se agora de uma máquina diferente da máquina universal turingiana. A máquina
autopoiética não pode ser explicada a partir do modelo top-down, modelo do perito como o
jogador de xadrez. Pois a maquinação autopoiética não se reduz à aplicação de regras universais
ou de estruturas cognitivas inatas. Recusa-se que a cognição possa ser entendida à semelhança de
programas que jogam o xadrez, ou que conseguem demonstrar teoremas matemáticos. O modelo
top-down dos programas peritos é substituído pelo modelo em rede que toma a atividade
cerebral como um processamento de informação distribuído e não seqüencial, funcionando por
conexões múltiplas. A cognição, segundo este modelo, deixa de ser a aplicação de regras ou a
atividade de processadores lógicos, para se tornar o efeito emergente de uma rede com aptidão à
auto-organização[10] . Coloca-se no centro das preocupações a dimensão temporal, genética e
criativa das estruturas do conhecimento. E se a cognição é o que emerge de uma rede de
elementos subsimbólicos, se ela resulta da atividade de auto-organização de um sistema
fortemente cooperativo (tal como as redes neurais ou as redes linfocitárias), é enfatizada a
dimensão ontogenética da cognição. Nesse sentido, é interessante que a física, a química, a
biologia entrem em uma surpreendente sintonia como a filosofia e a arte, no que estas têm de
problematização da criação. Digamos, então, que podemos identificar um momento filosofante e
poético no campo da ciência cognitiva. A arte e a filosofia atravessam os estudos da cognição
produzindo um efeito de desestabilização e um novo curso é traçado para as investigações da
subjetividade.

Chegamos a um momento da ciência da subjetividade no qual o artificialismo autopoiético


supera tanto o naturalismo quanto o artificialismo formalizante. Temos, então, uma dimensão do
artificial que aposta na potência de criação dos sistemas autônomos porque autopoiéticos. Se
ainda se admite o modelo máquina é porque se postula uma máquina cujo funcionamento explica
a sua própria gênese. Uma máquina que tem sua fonte de artifício não em uma CPU ou em
qualquer programa que ela simplesmente aplica e que foi posto nela por um outro ou outra
máquina (como acontece em sistemas heterônomos). A máquina é autônoma porque se auto-
engendra, se produz continuamente em um curso autopoiético.

Os novos maquinismos apontam para um momento atual do campo do artificialismo no


qual reintensificam-se os processos de desestabilização da forma humana do pensamento. De
diferentes regiões do pensamento podemos localizar a mesma preocupação com a dimensão
criativa da realidade. No campo dos estudos da subjetividade esta problematização não é menos
intensa. Podemos, então, considerar maquinismos subjetivos cuja potência de produção explica
entre outras coisas o homem ou a forma humana da subjetividade. O humano torna-se, portanto,
como um dos efeitos possíveis desse mecanismo de produção da subjetividade. Acredito que esta
seja a questão mais importante para estarmos pensando neste momento de travessia do século:
que efeitos de subjetividade estão sendo produzidos? Como estão se expressando as capacidades
autopoiéticas da subjetividade? Que experiências de auto-organização individuais e/ou coletivas
têm sido realizadas?
* Professor adjunto do Departamento de Psicologia da UFF e coordenador do projeto integrado
de pesquisa "Tempo e Criação: elementos para a redefinição do conceito de cognição" apoiado
pelo CNPq e pela PROPP/UFF.

[1] Há uma vastíssima literatura de apresentação do campo da ciência cognitiva. Dentre várias
outras indicações bibliográficas sugerimos: ANDLER, Daniel (org.) Introduction aux sciences
cognitives.Paris, Gallimard, 1992. DUPUY, Jean-Pierre. Nas origens das Ciências Cognitivas. São
Paulo, Unesp, 1995 [1994]. PENROSE, Roger. The emperor's new mind. Concerning computers,
mids, and the laws of physics. New York, Pinguin, 1991 [1989]. PYLYSHYN, Zenon W. (org.)
Perspectivas de la revolución de los computadores. Madrid, Alianza, 1975 [1970]. VARELA,
Francisco. Connaître: les sciences cognitives, tendences et perspectives. Paris, Seuil, 1989 [1988].
"Abordagens à ciência e tecnologia da cognição". Ciência e Cultura, 40 (5), maio, p. 460-470,
1988

[2] Cf. PASSOS, Eduardo. "Modelo máquina e subjetividade: a desestabilizção da forma humana
do pensamento". Cadernos Avulsos, Coordenação Interdisciplinar de Estudos Culturais (CIEC),
ECO/UFRJ, 1996.

[3] SIMON, Herbert A. As ciências do artificial. Coimbra, Sucessor, 1981 [1969].

[4] Nesse sentido, não podemos concordar com a afirmação de que o projeto da IA forte
(Inteligência Artificial forte) seja “o último bastião do dualismo” como propõe Prado Jr. em sua
apresentação ao livro de J. Searle O mistério da consciência. São Paulo, Paz e Terra, 1998 [1997].

[5] Conversações. Rio de Janeiro, 34 Letras, 1992 [1990].

*6+ A este respeito, Blanché caracteriza a ciência moderna pelo seu “matematismo”, isto é, seu
ideal de inteligibilidade que impõe ao pensamento a exigência última de conquistar o limiar de
formalização. Cf. BLANCHÉ, Robert. La science physique et la réalité: réalisme, positivisme,
mathématisme. Paris, PUF, 1948.

[7] Cf. TURING, Alan M. Maquinaria de cómputo e inteligencia (1950). In:Perspectivas de la


revolución de los computadores. Zenon W. Pylyshyn (org.). Madrid, Alianza, 1975. p. 305-333
[1970].

[8] Para uma discussão do impacto causado na ciência pelas noções de caos determinístico e
atratores estranhos, cf. Ciência Hoje, v.14, n.80, março/abril de 1992.

[9] Cf. MATURANA, Humberto e VARELA, Francisco. Autopoiesis and Cognition: the Realization
of the Living. Dordrecht, D. Reidel Publishing Company, 1980 [1972]. De máquinas e seres vivos.
Autopoiese — a Organização do Vivo. Porto Alegre, Artes Medicas Sul, 1997[1994/1972]. A
árvore do conhecimento. Campinas, Editorial Psy, 1995 [1987]. VARELA, Francisco; THOMPSON,
Evan; ROSCH, Eleanor. L'incription corporelle de l'esprit: sciences cognitives et expérience
humaine. Paris, Seuil, 1993 [1992].

[10] Para uma discussão da distinção entre os modelos da ciência cognitiva, cf. Varela, 1989, op.
cit. Acerca da noção de auto-organizção, cf. VARELA, Francisco. L'auto-organization: de
l'apparence au mécanisme. In:Colloque de Cerisy. L'auto-organization: de la physique au
politique. Paul Dumouchel e Jean-Pierre Dupuy (org.). Paris, Seuil, 1983. p. 147-164.

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