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Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Letras, linguística e suas interfaces no 40, p.

47-73, 2010 47

Contribuições da Análise Institucional para


uma abordagem das práticas linguageiras:
a noção de implicação na pesquisa de campo

Décio Rocha
Bruno Deusdará

O
presente artigo tematiza a problemática da implicação, tópico ao
qual vem sendo atribuída uma grande importância quando se assume
uma perspectiva que provisoriamente caracterizaremos como não
cientificista em relação à produção de saberes no campo das ciências sociais.
O referido tópico será aqui discutido como um vetor importante oriun-
do da prática analítica em perspectiva institucionalista, que nos permitirá
interrogar certos impasses da pesquisa de campo voltada para as práticas de
linguagem em um enfoque discursivo. Assim sendo, o que ora propomos é
repensar as fronteiras que, entre nós, constituíram a Análise do discurso e a
Análise institucional como especialidades de formações acadêmicas distintas,
a fim de favorecer novas composições nessa paisagem disciplinar, atualizando
sua força instituinte.
Nosso propósito será o de incluir nos contornos que envolvem a referida
problemática os estudos comprometidos com um certo modo de apreender
as práticas linguageiras segundo a perspectiva desenvolvida por analistas do
discurso – denominação vaga, tendo em vista a diversidade de abordagens que
reclamam para si o “selo da discursividade”, mas que possuem em comum, se-
gundo podemos avaliar, o fato de não reservarem em suas discussões qualquer
espaço efetivamente relevante de problematização das implicações, ou, pelo
menos, de o fazerem apenas de forma marginal.
Trataremos especificamente de algumas dúvidas que se atualizam a partir
da opção pela pesquisa de campo. Queremos especialmente colocar em discus-
são uma certa concepção de pesquisa de campo que a veria como uma etapa
de mera “coleta de dados”. Ora, parece-nos insuficiente compreender os textos,
produzidos em situações concretas de enunciação, como “dados” a serem cole-
tados, extraídos desses contextos e passíveis de análise em outras coordenadas
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de espaço-tempo, sem qualquer reflexão sobre esse procedimento que se carac-


teriza como uma intervenção de ordem ético-política. A título de ilustração da
demanda a que nos vemos respondendo com a interface que aqui pretende-
mos constituir entre uma atitude institucionalista e uma perspectiva discursiva,
faremos menção ao que dizem manuais de metodologia a esse respeito. Em
Santos (1999), o campo como “fonte de informações” opõe-se ao laboratório e
se define da seguinte maneira: “Lugar natural onde acontecem os fatos e fenôme-
nos. A pesquisa de campo é a que recolhe os dados in natura, como percebidos pelo
pesquisador” (Santos, 1999, p. 30). Vemos assim que os “dados” mencionados
no trecho acima relacionam-se com os “fatos” e os “fenômenos”, seja por uma
relação de equivalência, seja por representarem fragmentos, pedaços deles.
Antecipando um debate que privilegiaremos neste artigo, diremos que
aquilo que se considera como sendo um “dado” resulta fundamentalmente
de um duplo procedimento: por um lado, a naturalização de um real sócio-
histórico pré-existente à presença do pesquisador e não alterado por sua pre-
sença; por outro, a autonomização do real, o qual se apresentaria claramente
delimitado em unidades que a qualquer momento poderiam ser capturadas
pelo pesquisador.
O recurso à noção de implicação terá por objetivo precípuo desfazer
equívocos como o que ora apontamos. Falaremos, pois, de implicação, par-
tindo de uma definição mínima do conceito, o qual remete à noção de não-
neutralidade do pesquisador diante do tipo de conhecimento que produz, isto
é, uma espécie de mescla essencial de forças no interior da qual resultariam as
posições de sujeito e de objeto – formas que se deixam apreender a partir de
um “exercício de individualização” que já é efeito: efeito-sujeito e efeito-obje-
to. Em outras palavras, o pesquisador está inelutavelmente presente naquilo
que pretende analisar e que só pode ver a partir do lugar que ocupa; o pesqui-
sador não pode não ser perspectivo, mas pode explorar aquilo que condiciona
seu olhar, sua intervenção.
Nosso percurso neste artigo estará organizado em quatro momentos:
. conceituação de implicação, noção-chave que, a nosso ver, possibilita
um rearranjo de fronteiras disciplinares, viabilizando uma problematização da
pesquisa de campo;
. apresentação de um breve panorama conceitual, situando a noção de
implicação no bojo do movimento institucionalista francês;
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. desdobramentos da noção de implicação, ampliando-a e estendendo-a


aos estudos voltados para as práticas linguageiras;
. relato de trabalhos centrados nas práticas linguageiras que indiquem a
pertinência da noção de implicação.

1. Sobre a noção de implicação

A noção de implicação, que definimos segundo a ótica do instituciona-


lismo francês1, remete à impossibilidade de objetividade, de neutralidade na
pesquisa, ou seja, impossibilidade de apagamento das instituições de diferen-
tes ordens que atravessam o pesquisador e que são constitutivas de seu fazer:
implicações afetivas, profissionais, institucionais, etc.
O tema das implicações põe em questão a impossibilidade da adoção de
critérios de objetividade como norteadores de uma atividade de pesquisa, em
especial no que concerne àquela desenvolvida em ciências sociais, território no
qual, de forma privilegiada, se coloca em dúvida a “relação de exterioridade de
quem pesquisa face ao que é pesquisado”2: ... a noção de implicação revela-se
indispensável a qualquer abordagem de um objeto de conhecimento que reco-
nhece a realidade social como complexa. (GUILLIER; SAMSON, 1997, p. 23)
Com efeito, no referido território de pesquisa, não existem um objeto
(mundo exterior representável) e um sujeito (mundo interior, consciência re-
presentante) dados de antemão, cisão que remeteria à posição dualista cartesia-
na. Verifica-se, desse modo, a impossibilidade de uma exterioridade essencial,
de uma ruptura3 entre sujeito e objeto, produzindo-se, antes, uma mescla de
forças – mescla que não corresponde nem a um sujeito, nem a um objeto
individualizados, e que foi inicialmente associada à noção psicanalítica de con-
tratransferência, para designar o conjunto de reações do analista/pesquisador
frente ao analisando. ... é comum em psicologia falar de ‘implicação’ para
1
Segundo Baremblitt (1992, p. 13-4), sob a denominação institucionalismo reúne-se um le-
que variado de tendências, de escolas, cujo denominador comum poderia ser grosso modo
localizado no fato de todas pretenderem “propiciar, apoiar, deflagrar nas comunidades, nos
coletivos, nos conjuntos de pessoas, processos de autoanálise e processos de autogestão”.
2
Tradução nossa, procedimento a ser adotado no decorrer de todo o artigo.
3
Como reformulantes de objetividade, Guillier & Samson falam ainda da impossível “exterio-
ridade – ruptura – distanciação” na pesquisa em ciências sociais (GUILLIER; SAMSON,
1997, p. 23).
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designar a existência de um lugar [un lieu], de um elo [un lien], apresentando


uma relação de confusão entre o analista e seu paciente. (GUILLIER; SAM-
SON, 1997, p. 24)4.
Em breve retrospectiva, os conceitos de transferência e contratransferência
institucional foram produzidos em psicanálise entre 1960 e 1965. Por con-
tratransferência entende-se o “conjunto das reações inconscientes do analista
à pessoa do analisando e, mais particularmente, à transferência deste” (LA-
PLANCHE: PONTALIS, 2001, p.102). Quanto à delimitação do conceito,
duas são as possibilidades de entendimento: (i) contratransferência é tudo o
que, da personalidade do analista, pode intervir no tratamento; (ii) contra-
transferência remete apenas aos processos inconscientes que a transferência do
analisando provoca no analista. Como se percebe, a caracterização fornecida
para a referida noção parece por si só justificar sua posterior substituição pelo
conceito de implicação.
Para Barbier (1985), trabalhar as implicações em um dado campo de in-
tervenção (o qual pode ser um estabelecimento, um grupo informal, um grupo
institucionalizado, um grupo amplo como, por exemplo, um vilarejo) significa
explicitar a ação latente ou manifesta das instituições nesse campo. Sustentan-
do um ponto de vista que defende uma tipologia tripartite das implicações –
implicações de nível psicoafetivo, de nível histórico-existencial (relativo ao etos
e ao habitus da classe social de origem do pesquisador) e de nível estrutural-
profissional –, o autor apresenta a seguinte formulação para o conceito:

[a implicação é] o engajamento pessoal e coletivo do pesqui-


sador em e por sua práxis científica, em função de sua história
familiar e libidinal, de suas posições passada e atual nas relações
de produção e de classe, e de seu projeto sócio-político em ato,
de tal modo que o investimento que resulte inevitavelmente de
tudo isso seja parte integrante e dinâmica de toda atividade de
conhecimento. (BARBIER, 1985, p. 120)

4
É interessante observar o jogo de palavras possibilitado pela língua francesa no que concerne
aos significantes lieu e lien, “coincidência” que não faz senão enfatizar a impossibilidade de
distinguir em absoluto o lugar (lieu) ocupado pelo analista e o elo (lien) que o liga a seu
outro, a saber, o analisando.
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Com efeito, vários são os autores que trouxeram sua contribuição para
uma definição de implicação, acentuando a impossibilidade de se evitar o
tema, como se percebe no ponto de vista sustentado por Lourau, para quem
“somente a análise das implicações permite compreender e transformar rela-
tivamente os atos falhos da pesquisa em ciências sociais.” (apud MERINO
1997, p. 60).
Uma mesma ordem de reflexão pode ser resgatada em Morin: o pesqui-
sador não se contenta em analisar os dados sociais relativos a seu objeto; antes,
ele integra em seu dispositivo5 a elucidação de “perturbações” induzidas para
tentar “compreender-se a si mesmo enquanto observador” (MERINO, 1997,
p. 60). Ou ainda: “é da ordem da implicação todo fator pessoal que tenha uma
relação entre o sujeito e o objeto de pesquisa, entre o pesquisador e o objeto de
conhecimento científico”. (MERINO, 1997, p. 60)
Segundo Savoye (apud FERRARATO, 1994, p.145), a implicação “é a
configuração singular das relações nas quais o pesquisador é enredado: relação
com o seu objeto de pesquisa, com a instituição de pesquisa da qual ele depen-
de, com o contexto político e social que o engloba etc.”.
Em mais uma iniciativa de definição, localizamos a seguinte proposta:

... entendemos por implicação o grau de envolvimento, sempre


presente, do analista para com o objeto estudado (implicação
de ordem afetiva, política, ideológica etc.) que vai de encontro à
famosa neutralidade herdada do cientificismo ultrapassado que
coloca o investigador fora do contexto estudado, distante do
objeto ... (NEVES et al., 1987, p. 58)

Não nos alongaremos mais na diversidade de respostas oferecidas por ou-


tros autores em relação à noção de implicação, pois consideramos suficientes as
que até aqui elencamos. Acrescentaremos apenas uma reflexão de Lefort que
nos parece particularmente feliz no sentido de garantir uma postura de acolhi-
mento da referida idéia de implicação no âmbito de toda e qualquer atividade
pesquisa. Com efeito, segundo o autor, o que caracteriza uma sociedade demo-

5
Dispositivo (ou agenciamento) “é uma montagem ou artifício produtor de inovações que ...
atualiza virtualidades ...” (BAREMBLITT, 1992, p. 151).
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crática é que nela nada se encontra fundado a priori (apud GUILLIER; SA-
MSON, 1997, pp. 24-5). Ora, tal inexistência de fundamentos dados a priori
mantém precisamente um estreito vínculo com o debate possibilitado pela aná-
lise das implicações, tendo em vista tratar-se de um conceito que contribui para
desnaturalizar muito do que aprendemos a ver como sendo um “dado natural”.
Por essa razão, acreditamos que um papel fundamental desempenhado pelas
implicações esteja muito adequadamente formulado na definição que se segue,
papel que, como veremos, produz ressonâncias ineludíveis sobre a dimensão
ética de nossa própria possibilidade de atuar em um dado campo:

[no que concerne à implicação] A questão principal não nos


parece resumir-se ... à necessidade de analisar a maneira como
aquele que intervém se vincula aos indivíduos, grupos e insti-
tuições com os quais trabalha. (...). Quando falamos em análise
da implicação, não nos referimos apenas a isto, nem sequer pri-
mordialmente a isto. Trata-se, isto sim, da análise dos víncu-
los (afetivos, profissionais e políticos) com as instituições em
análise naquela intervenção em tal ou qual organização e, de
forma ainda mais generalizada, da análise dos vínculos (afeti-
vos, profissionais, políticos) com todo o sistema institucional.
(RODRIGUES; SOUZA, 1987, p. 33).6

Como se pode depreender, a mencionada dimensão ética que aqui se con-


sidera afasta-se de um provável sentido de “caráter, costume ou estado original
de um homem” (COOK, 1993, p. 124), de uma compreensão de sujeito a
partir da noção de pessoa, de ciência como conhecimento formal ao qual se
deva chegar segundo determinada fórmula ou manutenção de procedimento
prévios, e assume a indissociabilidade dos vínculos – afetivos, profissionais e
6
As autoras ilustram os diferentes níveis de trabalho sobre as implicações indicando que, se, por
exemplo, um grupo de estagiários de psicologia de uma universidade particular realizasse uma
intervenção em uma escola pública, a análise da implicação incluiria, certamente, não apenas
as identificações e rivalidades entre os analistas e os professores, os alunos e a própria direção da
escola, mas, mais fundamentalmente, “os vínculos com as instituições em análise (a instituição
da universidade e a instituição da escola ...) e os vínculos com todo o sistema institucional (o
público e o privado, o dinheiro, a comunidade científica, o Estado, ... e, até mesmo, a própria
instituição da análise institucional!).” (RODRIGUES; SOUZA, 1987, p. 33).
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políticos -, das escolhas e dos processos múltiplos que configuram subjetividades


e intersubjetividades em toda e qualquer contingência da prática de pesquisa,
atravessando-a e constituindo-a em seus vieses de análise. Fato que em nada
desacredita seu patamar científico. Compartilha, assim, com uma visão de ética,
que considera a maneira pela qual nos conduzimos enquanto sujeitos morais de
nossas ações, e também com uma visão de ciência, que se relaciona às condições
de sua institucionalização e consagração de seus saberes em nossa sociedade:

“As ciências do homem não são separáveis das relações de poder


que as tornam possíveis e que suscitam saberes mais ou menos
capazes de atravessar um limiar epistemológico ou de formar
um conhecimento” (DELEUZE, 2005, p. 82).

2. Breve panorama conceitual do institucionalismo

Para uma compreensão mais balizada da noção de implicação, consideramos


necessário recorrer a outros conceitos do institucionalismo francês que se arti-
culam com o tema. Na realidade, não seria difícil multiplicar as conexões possí-
veis de serem estabelecidas entre implicação e uma grande diversidade de noções.
Tendo em vista, no entanto, os limites que se impõe este artigo, privilegiamos os
pontos de contato entre implicação e as seguintes noções: instituição (instituinte
e instituído); atravessamento e transversalidade; analisador; campo de análise e
campo de intervenção; encomenda, demanda, (análise da) oferta. Julgamos que
essas noções, dentre outras ainda que poderíamos convocar, são suficientes para
uma problematização da postura a ser assumida pelo linguista na pesquisa de cam-
po, criando ferramentas que favoreçam a desnaturalização da prática de pesquisa.
A análise implicacional é regularmente vista como sendo o ponto mais
delicado da Análise institucional7, perspectiva teórico-metodológica que remete
a todo e qualquer trabalho de explicitação de uma dada realidade institucio-

7
Expressão cunhada por Guattari para responder às exigências de interdisciplinaridade entre,
por um lado, a psicoterapia institucional nascente no início dos anos 50 do último século
(grosso modo, uma rearticulação da prática hospitalar da psiquiatria tradicional com o pen-
samento psicanalítico), de cuja construção ele próprio participou ativamente, e, por outro,
diversas outras práticas similares em campos variados, a exemplo da pedagogia, do urbanis-
mo, dos movimentos estudantis, etc. (GUATTARI, 1985, p. 103).
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nal, isto é, de explicitação de um dado estado de configuração de um campo


institucional. Segundo Hess (2001, p. 181), qualquer um pode praticá-la,
uma vez que não se trata de uma “nova disciplina produzindo novos especia-
listas”. Desse modo, o que é preciso para praticá-la é que se evidencie o sentido
do embate entre forças instituintes e forças instituídas nas instituições que
atravessam o sujeito e também as forças que esse sujeito atravessa. Em outras
palavras, tal revisão do processo de institucionalização implica que se possa
dar conta “de sua própria institucionalização como sujeito social”: “não posso
me colocar entre parênteses”, dirá Hess (2001, p.164). Como exemplos de
implicações a serem analisadas, o autor cita a própria escolha de um tema de
pesquisa, ou então a escolha entre fazer x, y ou z, decisões que não comportam
qualquer grau de neutralidade ou de naturalidade:

O homem, como a instituição, se produz e se reproduz perma-


nentemente. O que é curioso é que, ao se produzir, o homem
produz a instituição; exatamente como a instituição que, ao se
produzir, produz ... homens ... Essa dialética entre a reprodução
social e a reprodução do sujeito no campo social obriga o pes-
quisador a recolocar em questão a ilusão de uma neutralidade
ou de uma objetividade possível no campo das ciências huma-
nas. (HESS, 2001, p. 164)

Compreende-se, desse modo, que instituição não deva “se confundir com
o estabelecimento e suas paredes, o local de trabalho”. Instituição “é o que vem
à luz no enunciado das implicações de cada um em uma situação, segundo um
dispositivo de trocas construído por um modo de intervenção” (FERRARATO,
1994, p. 145).
Rodrigues e Souza (1987) revêem diferentes possibilidades de entendi-
mento da noção de instituição, segundo a tradição francesa do conceito:
. a instituição-estabelecimento, concepção que se assenta nos trabalhos
de Psicoterapia Institucional que têm início na década de 40 do último século:

... instituição é pensada como ESTABELECIMENTO de cui-


dados, num duplo sentido: um estabelecimento que merece ser
cuidado (terapeutizado) e que, deste modo, pode ser mobiliza-
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do a serviço da ação terapêutica – os enfermos seriam curados


pela institucionalização, ou melhor, pela participação ativa na
vida e nas transformações institucionais. (...) [por extensão] ins-
tituições são ... todos os ESTABELECIMENTOS ou ORGA-
NIZAÇÕES, com existência material e / ou jurídica: escolas,
hospitais empresas, associações, etc. Tal sentido está presente
em afirmações tais como: ‘trabalho em uma instituição” (RO-
DRIGUES; SOUZA, 1987, p. 21);

. a instituição-dispositivo instalado no interior dos estabelecimentos,


como seria o caso, por exemplo, dos “grupos operativos, grupos de discussão,
assembléias, equipes de trabalho, conselhos de classe, etc., instalados no inte-
rior de estabelecimentos tais como escolas, hospitais, empresas, etc.” (RODRI-
GUES; SOUZA, 1987, p. 22). E mais: “conhecer tais técnicas [técnicas de
trabalho institucional] e saber manejá-las qualificaria, ao menos parcialmente,
o ‘trabalhador institucional’, o ‘perito’ ou ‘especialista’ em instituições.” (RO-
DRIGUES; SOUZA, 1987, p. 22);
. a instituição-produção, atividade8, novo entendimento de instituição
originário dos movimentos anti-institucionais, os quais enfatizam ser a insti-
tuição o “produto da sociedade instituinte em tal momento de sua história”
(RODRIGUES; SOUZA, 1987, p. 23), isto é, uma não-natureza. Trata-se de
uma “forma geral das relações sociais, que se instrumenta em estabelecimentos
e / ou dispositivos” (RODRIGUES; SOUZA, 1987, p. 23).

O objetivo da Análise Institucional seria trazer à luz essa dia-


lética instituinte-instituído... Para tanto, ela pode intervir EM
estabelecimentos e COM dispositivos, mas sempre visando a
apreender a instituição em seu sentido ativo. (RODRIGUES;
SOUZA, 1987, p. 24).

Vemos, deste modo, que, em consonância com Ferrarato (1994), a noção


de instituição visa alcançar um estatuto conceitual, não mais permanecendo

8
Os termos produção e atividade são opções de Rodrigues e Souza (1987, p. 24) para atualizar
esta terceira acepção de instituição.
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no plano meramente empírico da organização ou do dispositivo. Neste caso,


não mais se poderá dizer, por exemplo, que a escola ou o conselho de classe
sejam instituições. Antes, diremos que na organização escola ou no dispositi-
vo conselho de classe (re)produzem-se relações que multiplicam o campo das
instituições (conceituais) para as quais poderemos nos voltar: a instituição
da formação, da educação, da infância, dos diferentes profissionais da educa-
ção, da avaliação, dos diversos campos do saber, dos processos de seleção etc.
O analista deve intervir, segundo Rodrigues e Souza (1987, p. 26), não na
“organização-produto (dispositivos e objetivos naturalizados) e sim no nível
da(s) instituição(ões) que se instrumenta(m) na mesma”, problematizando-
a(s). Isso porque o objetivo da análise seria não o mero atendimento ao que
solicita o cliente (melhoramento das relações, por exemplo), mas a subversão
do instituído.
Para as autoras, uma atitude “institucionalista” se define por intermédio
de quatro “pontos de convergência”: o questionamento das formas clássicas de
pesquisa baseada em critérios de cientificidade; o questionamento dos especia-
lismos profissionais instituídos; a ênfase na análise da implicação; a análise da
instituição da Análise Institucional, a qual vem sendo vista como “propriedade
dos psicólogos”9.
Assim, pois, as autoras oferecem uma definição de instituição: “certas for-
mas de relações sociais, tomadas como gerais, que se instrumentam nas orga-
nizações e nas técnicas, sendo nelas produzidas, re-produzidas, transformadas
e / ou subvertidas.” (RODRIGUES; SOUZA, 1987, p. 32)
Na definição que oferecemos de instituição, fizemos menção ao encontro
de um plano em que se atualizam elementos da ordem do instituído e um
plano de forças instituintes. Devemos agora acrescentar que, em consonância
com a argumentação de Baremblitt (1992), cada um desses planos constitui
uma malha na qual se entrelaçam seus diferentes elementos: por um lado,

9
Segundo Rodrigues e Souza (1987, p. 34), “ao menos no contexto do Rio de Janeiro, as
práticas autodenominadas de Análise Institucional vêm sendo desenvolvidas quase que ex-
clusivamente por profissionais ‘psi’: são psicólogos, psicanalistas ..., psicopedagogos ... e,
fundamentalmente, profissionais ‘psi’ ligados à instituição escola (os antigos ‘psicólogos es-
colares’)”. De nossa parte, conforme dissemos no início deste artigo, estamos convencidos
de que muitas das contribuições do institucionalismo poderiam revigorar a reflexão de nossa
abordagem discursiva das práticas linguageiras.
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entrelaçamento, interpenetração, entre os elementos instituídos, isto é, aque-


les que trabalham no sentido de promover a reprodução, a estabilização; por
outro lado, entrelaçamento, interpenetração, entre os elementos instituintes,
ou seja, os que trabalham para a produção, para a promoção das utopias. Esse
duplo modo de entrelaçamentos em toda dinâmica das instituições possibi-
lita-nos distinguir duas noções: a noção de atravessamento (interpenetração
dos elementos a serviço do instituído) e a de transversalidade (interpenetração
entre as diferentes forças instituídas). A citação que a seguir reproduzimos é
bastante esclarecedora sobre a noção de atravessamento:

Nós dizemos... que uma escola é um estabelecimento das or-


ganizações do ensino, que por sua vez são uma realização da
instituição da educação. Mas acontece que uma escola não só
alfabetiza, não só instrui, não só educa... senão que, de alguma
forma ela também prepara força de trabalho (alienado), ou seja,
uma escola também é uma fábrica. Por outro lado, uma esco-
la... também consegue manter os alunos presos durante seis a
oito horas por dia e... o que fundamentalmente lhes ensina é a
obedecer e o que basicamente lhes transmite é um sistema de
prêmios e punições, especialmente de punições. Neste sentido
é que uma escola é também um cárcere. Mas, além disso, o que
a escola ensina é uma série de valores do que deve ser cons-
truído, do que deve ser destruído, ensina formas de exercício
da agressividade. Então, de alguma maneira, também se pode
dizer que uma escola é um quartel. Então, ...uma escola, no
nível do instituído, do organizado, ...no nível da reprodução,
...está atravessada pelas outras organizações. (BAREMBLITT,
1992, p. 36-7)

Como se percebe no fragmento, os atravessamentos da escola remetem


ao conjunto de circunstâncias que colaboram para a manutenção de um de-
terminado estado de coisas (manutenção da exploração, do silenciamento, dos
sistemas de classificação, etc.). Porém, retomando Baremblitt (1992), uma
escola não é apenas isso:
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... uma escola também é um âmbito onde se tem a ocasião de


formar uma agrupamento político-militar, um clube infantil;
... onde se pode aprender a lutar pelos direitos; ... onde se pode
integrar um sistema de ajuda mútua entre os alunos; ... onde se
podem adquirir elementos para poder materializar as correntes
instituintes, produtivas; numa escola também se pode aprender
a lutar contra a exploração, a dominação, a mistificação. (BA-
REMBLITT, 1992, p. 37)

Em definição largamente inspirada em Hess (2001, pp.217-8), diremos


que a transversalidade é o conjunto dos pertencimentos do sujeito para além
da organização considerada, por meio de cuja explicitação o sujeito logra
questionar a relação de assujeitamento imposta pela instituição. Ou ainda,
retomando literalmente o autor, diremos que a transversalidade é algo cuja
elucidação “reintroduz o exterior no interior” (HESS, 2001, p. 217).
Tendo em vista essa segunda ordem de considerações acerca da escola,
compreende-se em que sentido ela também pode ser vista como lugar de in-
terpenetração de outras organizações, instituições, para a atualização de forças
organizantes, isto é, instituintes. Esse é precisamente o plano dito de trans-
versalidade, o qual, diferentemente de outras duas dimensões também sem-
pre presentes nas organizações – a saber, a mera verticalidade das hierarquias
estabelecidas e a horizontalidade das relações informais – é responsável pela
produção de “dispositivos que não respeitam os limites das unidades organi-
zacionais formalmente constituídas, gerando assim movimentos e montagens
alternativos, marginais e até clandestinos às estruturas oficiais e consagradas”
(BAREMBLITT, 1992, p. 38).
Não é difícil perceber que a produção de tais “movimentos e montagens al-
ternativos”, que questionam o plano do instituído, é obra do trabalho realizado
por analisadores10. Segundo Baremblitt (1992), analisadores são efeitos ou fenô-
menos formalmente comparáveis àquilo que se privilegia no trabalho analítico
empreendido pela psicanálise, a exemplo do sonho, dos atos falhos, dos lapsus
linguae, chistes, sintomas, delírios, etc. O analisador é o “elemento que revela
10
O termo analisador foi utilizado no contexto da neurofisiologia por Ivan Pavlov (1849-
1936) para se referir aos sistemas sensoriais, compostos por receptores, vias nervosas e zonas
cerebrais associadas, que permitem analisar a complexidade do mundo percebido.
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e faz falar a dicotomia constitucional da instituição: a saber, a luta entre forças


instituintes e forças instituídas” (HESS, 2001, p. 182). Em outras palavras, é o
elemento que vem atualizar o não-dito da instituição (e também o não realizado,
isto é, os comportamentos proibidos, outro modo de manifestação do recalque).
Consideram-se, em geral, dois tipos de analisadores: (i) analisadores es-
pontâneos ou naturais (que BAREMBLITT, 1992, p. 72, prefere denominar
históricos), a saber, aqueles que se produzem “naturalmente” na vida históri-
co-social; (ii) analisadores artificiais ou construídos, isto é, inventados pelo
analista para favorecer a explicitação de saberes, de conflitos e dos possíveis
caminhos projetados na vida de uma instituição.
Hess e Authier (1994) ilustram de modo particularmente claro a função
de um analisador, recorrendo ao seguinte exemplo: “... o primeiro homem que
construiu uma bússola para revelar a existência dos campos magnéticos cons-
truiu um analisador desses campos. Porém, não se pode falar de analisador a
cada emprego da bússola ...” (HESS; AUTHIER, 1994, p. 79)
Se não se pode falar de analisador nos empregos ulteriores da bússo-
la, isso se deve ao fato de um analisador sempre implicar a análise de uma
nova realidade. Em outras palavras, o analisador não é um gadget guardado na
manga do analista para ser aplicado indiscriminadamente a qualquer situação,
pois, segundo Hess e Authier (1994), isso significaria negar a singularidade de
cada instituição.
Uma outra distinção que se deve fazer com base no referido conceito de
instituição é aquela que se verifica entre campo de análise e campo de interven-
ção. Com efeito, tal distinção é essencial para que possamos, a seguir, cumprir
as seguinte etapas:
. descrever as diferentes formas de encaminhamento de uma intervenção;
. relacionar as noções de oferta, encomenda e demanda tendo em vista o
necessário trabalho de análise que tais conceitos pressupõem.
Por campo de análise compreende-se “o perímetro escolhido como ob-
jeto para aplicar o aparelho conceitual disponível...: a inteligência acerca de
como ele funciona, a articulação de suas determinações, a forma em que são
gerados seus efeitos etc.” (BAREMBLITT, 1992, p.157). Quanto mais amplo
for o campo de análise, maior a possibilidade de entendimento do campo de
intervenção, o qual pode ser definido como “o recorte que delimitará o espaço
dentro do qual se planejarão e executarão as estratégias, logísticas e técnicas,
Rocha, Décio; Deusdará, Bruno Contribuições da Análise Institucional para
60 uma abordagem das práticas linguageiras: a noção de implicação na pesquisa de campo

que deverão operar neste âmbito específico para transformá-lo de acordo com
as metas propostas.” (BAREMBLITT, 1992, p. 158). Compreende-se que o
campo de intervenção pressupõe necessariamente um campo de análise com
base no qual aquele será pensado e compreendido. Desse modo, “...o campo
de intervenção é, em geral, infinitamente menor que o campo de análise ...”
(BAREMBLITT, 1992, p. 67).
Baremblitt (1992, p. 102-4) apresenta-nos uma tipologia das diferentes
modalidades de intervenção:
. um serviço (de intervenção) é oferecido a partir de posições tradicio-
nais, clássicas (por exemplo, o serviço oferecido por um profissional liberal
ou autônomo, por uma sociedade científica de Análise institucional, por um
estabelecimento privado, por um departamento ou setor específico de uma
Faculdade);
. um serviço (de intervenção) é oferecido por parte de uma equipe que
integra a organização na qual se pretende intervir;
. um serviço (de intervenção) é oferecido como no caso anterior, mas de
modo menos burocratizado e de forma menos profissional (como é o caso de
institucionalistas que, militando num partido político, são solicitados a inter-
vir em um segmento específico a pedido do partido);
. um institucionalista integrante de uma dada organização à qual pertence
organicamente ou não passa a intervir em algum segmento sem que tenha ha-
vido qualquer solicitação de seus serviços (caso de um membro de uma associa-
ção de moradores que, no exercício de sua função como integrante da referida
associação, opera como institucionalista, sem que seja explicitada tal condição);
. um exercício cotidiano de uma prática institucionalista (o sujeito não
oferece serviços como institucionalista, mas alimenta uma concepção institu-
cionalista de mundo e, por isso, vive suas relações cotidianas – no trabalho, em
família, etc. – com base em tais princípios).
Uma tal tipologia das diferentes modalidades de intervenção vem atu-
alizar, como não é difícil perceber, diferentes modalidades de atualização
da oferta. A tal questão prende-se a da diferença que separa encomenda,
demanda e oferta.
A encomenda (também chamada de demanda latente, pedido, encargo)
remete aos “sentidos não explícitos, não manifestos, dissimulados, ignorados
ou reprimidos, e que comporta uma demanda de bens ou serviços”, ou seja,
Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Letras, linguística e suas interfaces no 40, p. 47-73, 2010 61

trata-se de um termo que alude a uma “exigência de soluções imaginárias ou


de ações destinadas a restaurar a ordem constituída quando a mesma está
ameaçada.” (BAREMBLITT, 1992, p. 169).
Análise da demanda

... é a análise e deciframento que se faz do pedido de intervenção


por parte de uma organização. (...) É o material de acesso inicial
que já contém valiosos aspectos conscientes, manifestos, deli-
berados, assim como todo um filão de aspectos inconscientes e
não-ditos que remetem a um esboço inicial da ... problemática
da organização solicitante. (BAREMBLITT, 1992, p. 153).

É importante que a análise da demanda esteja articulada com a análise


da produção dessa demanda (também denominada “análise da oferta”). Com
efeito, não existe demanda se não existe uma oferta prévia de análise. Em
outras palavras, a própria organização de análise é geradora da demanda que
lhe é formulada, e um dos passos centrais será então explicitar “a publicida-
de, a divulgação científica ou não científica, a proposição direta ou indireta
dos serviços que a organização analítica faz e que não pode não ser causante,
geradora ou moduladora da demanda de serviço que lhe é formulada.” (BA-
REMBLITT, 1992, p. 68-9).
Baremblitt lembra ainda que o pedido nunca coincide com a demanda,
devendo ser decifrado com base nela, pois “seu sentido varia segundo qual seja
o segmento organizacional que a formula.” (BAREMBLITT, 1992, p. 169).
Com efeito, o pedido pode efetivamente ser formulado a partir de diferentes
“lugares” institucionais:
(i) a hierarquia superior de uma dada organização de trabalho;
(ii) o trabalhador (localizado em diferentes níveis de hierarquia na or-
ganização de trabalho) que se encontra em formação e que faz coincidir seu
projeto de trabalho monográfico de pesquisa com uma dada realidade vivida
em seu espaço de atuação profissional11;

11
Este parece ser o caso das encomendas de intervenção solicitadas por intermédio de profis-
sionais inscritos em cursos do antigo DESS (Diplôme d’Études Supérieures Spécialisées) na
Université de Aix-en-Provence, na França.
Rocha, Décio; Deusdará, Bruno Contribuições da Análise Institucional para
62 uma abordagem das práticas linguageiras: a noção de implicação na pesquisa de campo

(iii) o pesquisador, que pode (ou não) coincidir com o trabalhador.


Tal diversidade de lugares institucionais não deixará de ser significativa para
a análise da demanda. Nas pesquisas que vêm se desenvolvendo no viés da articu-
lação linguagem e trabalho, parecem ser positivamente valorizados os casos descri-
tos em (i), uma vez que o pedido de intervenção por parte da própria hierarquia
superior da organização de trabalho funciona como “reconhecimento social” do
mérito e da “eficácia” dos serviços oferecidos pelo grupo de pesquisa; paralela-
mente, diremos que vêm sendo menos valorizados os casos descritos em (iii),
uma vez que tudo se passa então como se, em função do recentíssimo interesse do
profissional dos estudos da linguagem por problemas voltados para o mundo do
trabalho, o pesquisador-linguista precisasse criar “artificialmente” a encomenda,
uma vez que nunca seria solicitado a “resolver” problemas como os apontados.
O que queremos acentuar a esse respeito é que não compartilhamos os
referidos critérios de valorização. Uma experiência bem-sucedida de interven-
ção, seja ela deflagrada pelo próprio pesquisador, seja por um pedido enca-
minhado pela hierarquia da organização ou pelo trabalhador em formação,
identifica-se, antes, pela capacidade de mobilizar dispositivos de análise da
demanda, isto é, daquilo que subjaz ao pedido inicialmente feito. Um bom
termômetro, portanto, da legitimidade de um trabalho de campo é, pois, a
capacidade de o analista “se enxergar” na situação que lhe chega, isto é, sua
condição de trabalhar suas implicações e, a partir de então, reafirmar o caráter
necessariamente perspectivo dos saberes que resultarão daquele encontro.
Uma última contribuição acerca do modo pelo qual se articulam en-
comenda e demanda pode ser localizada em Rodrigues (2004), que explici-
ta o viés predominantemente psicanalítico que norteou o entendimento das
referidas noções, tendo em vista a crença na existência de “algo latente a ser
desvelado por uma espécie de leitura psicanalítica de estilo hermenêutico”
(RODRIGUES, 2004, p. 139). A autora retoma, então, o modo pelo qual
Lourau apresenta a questão, recolocando o encontro de encomenda e demanda
de forma não canônica, distanciando-se do universo da ótica psicanalítica e
aproximando-se de algo da ordem do predominantemente bélico, tendo em
vista que o autor se refere, então, a “... estratégias, campos em luta, desvios.
A relação entre encomenda e demanda se vê circunstanciada pelo dispositivo
socioanalítico de intervenção, em lugar de remeter a profundidades, verdades,
sentidos ocultos e / ou níveis essencializados” (RODRIGUES, 2004, p. 140).
Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Letras, linguística e suas interfaces no 40, p. 47-73, 2010 63

3. O que o institucionalismo traz para a nossa reflexão?

Tendo em vista nossa opção por trabalhar com uma perspectiva discursiva
das práticas linguageiras, podemos nos indagar por que escolhemos esses conceitos
desenvolvidos na perspectiva institucionalista para articulá-los com o de implicação.
Diríamos, em primeiro lugar, que proceder a uma análise das implica-
ções de sua atuação em um dado campo significaria, para o linguista / analista
do discurso, recusar qualquer movimento de naturalização de sua presença no
referido campo, assim como dos conhecimentos que nele se produzem.
Muitas vezes – talvez mesmo esta seja a regra – deparamos com situações
em que o linguista deixa implícito um certo “desejo de invisibilidade”, quando
não torna esse mesmo desejo algo que francamente explicita. Dito com outras
palavras, trata-se do desejo de estar presente em um dado campo, sem que sua
presença venha a interferir na dinâmica das relações que ali se verificam. Tal
posição significa que prevalece a ingênua crença de que o analista-linguista não
produziria qualquer alteração do meio, ou que ele poderia se tornar “neutro”
na cena em que atua e, por extensão, ter acesso à realidade “exatamente como
ela realmente se apresenta”12. Isto é subestimar o valor da palavra: acreditar
que ela possa se produzir “no vácuo”, sem um direcionamento, pretensamente
livre das coerções que pesam sobre uma dada situação de enunciação - posição
francamente antibakhtiniana que declaradamente rejeitamos.
Logo, para nós, acolher a necessidade de lidar com as implicações é criar
as condições para um tratamento efetivamente dialógico das práticas lingua-
geiras. E, como vimos anteriormente, trabalhar as implicações implica uma re-
visão de quais são nossos atravessamentos institucionais, nossas possibilidades
mesmas de estar naquele campo, de “falar uma mesma língua” que o referido
campo ou, pelo menos, de ter a condição de negociar efeitos de sentido que se
produzem para muito além do que poderíamos controlar.
12
Como vimos no item anterior, a própria instituição do lugar do analista é geradora do tipo
de demandas que lhe são encaminhadas! Além disso, negar um lugar de relevo à análise das
implicações significa negligenciar, não sem uma boa dose de ingenuidade, o duplo sentido
adquirido pelo termo, segundo Hess (2001): por um lado, implicar-se em / com alguma coisa,
significando enredar-se, envolver-se com algo; por outro, estar implicado, expressão que remete
aos múltiplos pertencimentos institucionais do sujeito. Assim, se é verdade que podemos
nos iludir tentando evitar as implicações na primeira acepção do termo, compreende-se por
que razão seria impossível esquivarmo-nos de sua presença no segundo sentido indicado.
Rocha, Décio; Deusdará, Bruno Contribuições da Análise Institucional para
64 uma abordagem das práticas linguageiras: a noção de implicação na pesquisa de campo

A começar pela relatividade de nossa possibilidade de atuação: nossa


materialidade de trabalho são os enunciados proferidos no interior de dadas
condições. Este é um limite – e, é claro, uma possibilidade a ser valorizada – de
nossa atuação, e um limite já tão distendido quanto possível, se for lembrado
que a linguística que praticamos é uma linguística enunciativa, que traz para
seu campo de ação uma série de questões definitivamente ausentes do âmbito
do chamado “núcleo duro” dos estudos linguísticos, o qual se volta para a
análise da língua enquanto sistema.
A exemplo da reflexão de Rodrigues e Souza (1987), diremos que, se
trabalhamos com as práticas linguageiras, isso não deverá, contudo, significar
que sejam linguísticas as demandas que nos chegam. Aqui queremos retomar
o problema da desconstrução dos especialismos profissionais que leva as au-
toras a afirmar que o fato de trabalharem com níveis psicológicos enquanto
possibilidade de intervenção numa situação não significa que também nesse
nível deva se situar a análise a ser levada a cabo: “necessariamente psicologiza-
remos e despolitizaremos [nossas perspectivas de análise] porque este é nosso
especialismo instituído?” (RODRIGUES; SOUZA, 1987, p. 32).
Da mesma forma, numa paródia do texto de Rodrigues e Souza, dire-
mos não ser adequado permanecer num plano estritamente linguístico – no
sentido de uma linguística do sistema abstrato – o qual se configura como
vetor de despolitização, apenas por ser este (pretensamente) o nosso “especia-
lismo instituído”. Por essa razão, queremos mais uma vez subscrever a defini-
ção de discurso que localizamos em Maingueneau (1989), a qual tem o mérito
de não separar produção textual (nível de uma intervenção mais imediata
do profissional-linguista) e produção de uma dada comunidade discursiva
(elemento que não pode ser esquecido no plano da análise a ser realizada):
“... falaremos de prática discursiva para designar esta reversibilidade essen-
cial entre as duas faces, social e textual, do discurso” (MAINGUENEAU,
1989, p. 56).
O autor ainda nos adverte no que concerne ao modo pelo qual devemos
entender a noção de “comunidade discursiva”:

... o grupo ou a organização de grupos no interior dos quais


são produzidos, gerados os textos que dependem da formação
discursiva ... [e também] tudo o que esses grupos implicam no
Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Letras, linguística e suas interfaces no 40, p. 47-73, 2010 65

plano da organização material e modos de vida. (MAINGUE-


NEAU, 1989, p. 56).

Desse modo, para além dos limites impostos pelos especialismos que via
de regra nos tornam míopes e que, por essa razão, constituem um verdadeiro
desserviço na formação de novos profissionais da área e na própria produção
de conhecimentos, reafirmamos aqui nosso maior interesse pela tematização
de questões de ordem política que envolvem um determinado modo de atuali-
zação da dimensão do social que podemos – e desejamos – ajudar a construir.
Aliás, essa era a “aposta” e o “desafio” que encontrávamos em Foucault (1984),
em Rodrigues e Souza (1987) e em Hess (2001) acerca da viabilidade (e mes-
mo a necessidade) de desconstruir tais especialismos. Acrescentamos que o
próprio perfil do horizonte teórico no qual nos situamos – o de uma Análise
do discurso de base enunciativa – já nos parece favorecer tal posicionamento,
trazendo-nos algo que, de certo modo, já nos é familiar, uma vez que também
nós, analistas do discurso, trabalhamos em um campo que não chega a se
constituir como propriedade privada de ninguém.
Por que analistas do discurso decidem tematizar as implicações? Eis a
questão que talvez o leitor esteja se fazendo já há algum tempo, tendo em vista
a novidade de tal procedimento.
De forma bastante sintética, diremos que, se tematizamos as implica-
ções, isto se explica pelo fato de sabermos que: (i) toda prática produz efeitos;
(ii) é impossível continuar acreditando que nos encontramos no interior de
um dispositivo sujeito X objeto; (iii) todo exercício de leitura do real que nos
cerca apresenta uma dimensão ético-política da intervenção que norteará o
sentido de social que desejamos construir, um social não naturalizado.
Não há neutralidade do pesquisador, assim como não há neutralidade
no pesquisado, por muito que se queira assegurá-la/valorizá-la como possí-
vel. Isto, no entanto, não significa crer que o fazer científico seja uma im-
possibilidade: o rigor intrínseco a toda pesquisa precisa considerar o atraves-
samento dos limites e da amplitude do que somos capazes de “ver”, “ouvir”
e “dizer”. O que se faz visível/dizível tem como constitutivo o irremediável
estar situado em um determinado tempo e espaço. Concretiza-se em marcas
que consideram a intervenção sempre por meio de um gênero de discurso,
produzindo enunciados que registram a diversidade e a complexidade da
Rocha, Décio; Deusdará, Bruno Contribuições da Análise Institucional para
66 uma abordagem das práticas linguageiras: a noção de implicação na pesquisa de campo

experiência do humano (BAKHTIN, 1992, 1987). Como afirmamos ao iní-


cio do artigo, “estou inelutavelmente presente naquilo que pretendo analisar
e que só posso ver a partir do lugar que ocupo”, assim como “meu olhar so-
bre o outro não coincide nunca com o olhar que ele tem de si” (AMORIM,
2003, p. 14).
Retomando a mencionada possibilidade de explorar a problemática de
estudos comprometidos com um certo modo de apreender as práticas lingua-
geiras e o fato de os estudos na área da Análise do discurso não reservarem
explicitamente em suas discussões espaço para a questão das implicações, pri-
vilegiamos em nosso artigo considerações acerca dos dispositivos de captação/
produção de textos para análise.
Teríamos, assim, breves indicações acerca de dispositivos de captação/
produção de textos que funcionam, em um dos casos, como analisador histó-
rico – também chamado de analisador natural, que emerge do próprio jogo
de forças das situações a serem estudadas – e, em outro, como analisador
construído – ou seja, produzido pelo pesquisador com o intuito de explicitar
certos saberes que se mostram subjacentes a certas situações de trabalho. Dian-
te da perspectiva que ora assumimos, o quadro-mural da sala de professores de
uma escola da rede pública estadual13 e a entrevista são compreendidos como
dispositivo de captação/produção de textos, a partir de uma ótica discursiva,
ou seja, como produção situada sócio-historicamente, como prática lingua-
geira que se define por uma dada configuração enunciativa que a singulariza
(MAINGUENEAU, 1989).
Comentaremos brevemente esses dois tipos de dispositivos a que fizemos
referência no parágrafo anterior. Iniciaremos explicitando que discussões nos
conduzem a considerar o quadro-mural como dispositivo de captação/produ-
ção de textos, procurando evidenciar a que demandas formuladas pela própria
pesquisa tal opção pretende responder.
Diríamos inicialmente que a referida pesquisa, ao discutir as diferentes
imagens de professor que se produzem e circulam na escola, propõe um debate
relacionando os diversos espaços pelos quais o trabalhador docente circula na
escola e os modos a partir dos quais esse trabalhador é convocado a trabalhar.
A esse respeito, vejamos o fragmento que segue:

13
Pesquisa realizada por Deusdará (2006).
Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Letras, linguística e suas interfaces no 40, p. 47-73, 2010 67

Atentando especificamente para o(a)s trabalhadore(a)s docen-


tes, a dinâmica de circulação parece fazê-lo(a)s transitar entre a
sala de professores e a sala de aula. Chegam cedo, dirigem-se à
sala de professores, assinam o ponto, aguardam o sinal tocar, os
alunos sobem, logo em seguida, o(a)s professore(a)s. Na hora
do intervalo, o retorno. O(a)s alunos espalham-se no pátio,
já o(a)s professore(a)s retornam para a sala destinada a ele(a)
s. Bebem água e café, dirigem-se ao banheiro, conversam. Ao
término do intervalo, toca novamente o sinal, aguardam o(a)
s alunos subirem e, mais uma vez, dirigem-se às salas de aula.
(DEUSDARÁ, 2006, p. 57-58)

Fazendo incidir o foco de análise sobre essa dinâmica de circulação dos in-
divíduos no espaço escolar, em consonância evidente com as reflexões foucaul-
tianas acerca das instituições disciplinares, a pesquisa em questão vai propondo
a construção de uma demanda de análise que contribua para a desnaturalização
dos sentidos instituídos em torno do trabalho docente. Tal percurso de pesqui-
sa parece colocar para essas investigações o desafio de pensar a linguagem como
um dos planos de constituição do real. A linguagem deixa de ser compreendida
apenas como um plano de representação de eventos exteriores a ela. No caso
em análise, julga-se haver diversos modos de intervir sobre o trabalho do pro-
fessor, entre eles, pode-se afixar textos no mural da sala de professores.

Desse modo, ao optarmos pelo mural como campo produtor de


pistas para a análise, estamos pressupondo que haja uma “massa
de textos”, um conjunto de interações sendo produzido na sala
de professore(a)s, dos quais o mural representa um possível re-
corte. A própria existência do mural já pressupõe uma escolha
de alguns entre tantos outros textos, que circulam por outros
momentos e em outros espaços, tendo como referência um cer-
to propósito comunicativo de falar ao(à)s professore(a)s. Assim
como a escolha de alguns entre tantos outros textos pressupõe
um certo funcionamento do mural, põe em ação seu propósito
comunicativo, a seleção a que procedemos desses textos não
pode ser compreendida como uma simples “coleta”, mas como
Rocha, Décio; Deusdará, Bruno Contribuições da Análise Institucional para
68 uma abordagem das práticas linguageiras: a noção de implicação na pesquisa de campo

uma “nova situação de enunciação” que viabilizará a construção


de um outro texto, de uma outra possibilidade de falar sobre o
trabalho docente. (DEUSDARÁ, 2006, p. 81)

A partir desse fragmento, eis o que se evidencia:

Sabemos que todos os textos que figuraram no mural no perío-


do de nossas observações constituem material importante para
compreender os diferentes modos de produção / circulação
de saberes do trabalho docente, na sala de professore(a)s. Por
exemplo, a presença de um artigo de jornal abordando o episó-
dio recente da política nacional em que parlamentares e minis-
tros vinculados ao governo federal são acusados de corrupção
(episódio que ficou conhecido como “mensalão”) fala-nos de
um mural que pressupõe a existência de um leitor que se inte-
ressa (ou se deseja que assim o seja) por questões que, ao menos
aparentemente, extrapolam seu cotidiano mais imediato. O
referido texto, assim como vários, evidenciam uma dimensão
importante do mural, não interpelam seus leitores apenas como
professore(a)s de uma determinada escola, mas também como
cidadãos, membros de uma determinada categoria, etc. (DEU-
SDARÁ, 2006, p. 72)

Desse modo, a opção pelo mural como campo produtor de pistas para a
análise pressupõe a existência de uma “massa de textos”, um conjunto de inte-
rações sendo produzido na sala de professore(a)s, dos quais o mural representa
um possível recorte. A própria existência do mural já se sustenta em uma es-
colha de alguns entre tantos outros textos, que circulam por outros momentos
e em outros espaços, tendo como referência um certo propósito comunicativo
de falar ao(à)s professore(a)s. Assim como a escolha de alguns entre tantos
outros textos pressupõe um certo funcionamento do mural, a seleção feita dos
textos a serem analisados pela referida pesquisa não pode ser compreendida
como uma simples “coleta”, mas como uma “nova situação de enunciação”
que viabilizará a construção de um outro texto, de uma outra possibilidade de
falar sobre o trabalho docente.
Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Letras, linguística e suas interfaces no 40, p. 47-73, 2010 69

O segundo dispositivo de captação/produção de textos que anunciamos


funciona, diferentemente do anterior, como um analisador construído, uma
vez que remete à ação do pesquisador que o “inventa” com o objetivo de
explicitar determinados saberes que pretende colocar em análise. Trata-se da
entrevista, gênero discursivo que nos parece carecer de um trabalho de con-
ceptualização, a exemplo da iniciativa de trabalhos como os de Daher (1998)
e de Rocha, Daher e Sant’Anna (2004), que buscam explicitar a complexidade
do gênero. Assim, queremos agora discutir o estatuto de textos produzidos em
situação de entrevista no contexto das interações verbais que dão sustentação
a um trabalho de pesquisa em ciências humanas e sociais.
No âmbito das pesquisas realizadas em diversos campos de conheci-
mento, a entrevista vem sendo concebida na acepção mais corrente do termo,
como a que nos apresenta o verbete de dicionário on line: “encontro combina-
do; conferência entre duas pessoas em local e hora antecipadamente combina-
dos; declarações feitas por alguém e que um jornalista publica, posteriormente
na imprensa”14. O verbete refere-se a ela como situação que envolve um prévio
contato entre pessoas com a finalidade de acordar a posterior coleta de infor-
mações ou opiniões. Menciona apenas um dos “subgêneros” da entrevista,
e atribui ao jornalista o papel de mero coletor, reprodutor e divulgador das
informações recebidas.
Essa concepção sobre o gênero é recorrente também em obras de meto-
dologia de pesquisa em ciências humanas. Em artigo publicado por Rocha,
Daher e Sant’Anna (2004), são apresentados e comentados vários fragmentos,
extraídos de algumas dessas publicações, nas quais se verifica a existência de
variadas crenças como a de que a entrevista seria uma ferramenta “que auxilia
o informante a expressar uma informação [tratada como verdade oculta] a ser
recolhida pelo entrevistador numa determinada interação” (2004). Ou seja, é
compreendida como mero instrumento de captação de “enunciados verdadei-
ros”, de “saberes objetivos”. A constatação merece de nossa parte pelo menos
dois comentários que remetem diretamente à problemática das implicações.
No primeiro, recorremos a Maingueneau. O autor afirma que, quando se
trabalha com o discurso, há que se ter em mente o fato de que “falar implica o
dispositivo no qual estamos falando. Falamos sempre por meio de um dispositivo,

14
www.priberam.pt/dlpo/ definir_resultados.aspx Consulta em 20 de julho de 2006.
Rocha, Décio; Deusdará, Bruno Contribuições da Análise Institucional para
70 uma abordagem das práticas linguageiras: a noção de implicação na pesquisa de campo

de um gênero com regras próprias. Não existe nenhuma fala que esteja fora
de um certo tipo de dispositivo. Não existe uma fala absoluta.” (2006, p. 2).
Além disso, “O discurso não é só linguagem, implica parceiros, papéis .... não
está fora da sociedade, está dentro. Permite que o sujeito se comunique, se
construa”.
Os resultados das reflexões ora apresentadas apontam para a pertinência
de uma perspectiva dialógica segundo a qual a entrevista em situação de pes-
quisa não pode corresponder ao que se entende por gênero primário (Bakhtin,
1992), tendo em vista sua complexidade enunciativa: não se trata de mera
ferramenta a serviço da captação de verdades, representando, antes, um dis-
positivo de produção / captação de textos, isto é, um dispositivo que permite
retomar / condensar várias situações de enunciação ocorridas em momen-
tos anteriores (Rocha; Daher; Sant’Anna, 2004). O enfoque que defendemos
para a entrevista representa, acima de tudo, uma opção política que fazemos
diante do perfil de pesquisador que pretendemos construir e do modo como
pretendemos lidar com a alteridade. A esse respeito, o conceito bakhtiniano
de exotopia (Bakhtin, 1992) é revelador da dimensão ética da problemática da
alteridade no que concerne à criação tanto teórica quanto artística: é preciso
situar o olhar do outro e devolver-lhe um ponto de vista (o do pesquisador)
sobre o referido olhar.
O outro comentário retoma considerações de Daher (1998) acerca do
dispositivo de entrevista construído para fins de pesquisa de campo. Com
efeito, a autora reconhece a inadequação de um modelo de entrevista aca-
dêmica no qual figurem tão-somente as perguntas a serem dirigidas ao(s)
entrevistado(s). Em seu lugar, propõe o registro em um quadro de cinco colu-
nas dos tópicos relevantes para a elaboração da entrevista no referido contexto:
na primeira coluna, os blocos temáticos a serem contemplados na entrevista;
na segunda, os objetivos a serem alcançados na entrevista; na terceira, o pro-
blema a ser investigado a cada momento da entrevista; na quarta, as hipóteses
feitas pelo pesquisador acerca das respostas dos entrevistados; na última, as
perguntas a serem dirigidas ao(s) entrevistado(s).
A construção do referido quadro não seguia um caminho retilíneo; ao
contrário, o que era problematizado em cada linha de uma dada coluna servia
de base de reflexão para a formulação da linha correspondente da(s) coluna(s)
adjacente(s).
Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Letras, linguística e suas interfaces no 40, p. 47-73, 2010 71

Dentre as vantagens encontradas na formulação do referido quadro, des-


tacam-se minimamente os seguintes pontos: (i) o(s) problema(s) de pesquisa
era(m) rigorosamente distinguido(s) dos problemas referentes à realização da
entrevista; (ii) era possibilitada uma base bastante segura para avaliar a distância
verificada entre as hipóteses construídas pelos pesquisadores (isto é, as implica-
ções dos pesquisadores com o campo a ser investigado, as quais se atualizavam
naquilo que os pesquisadores demonstravam já saber acerca do campo) e as
respostas obtidas na entrevista (isto é, aquilo que efetivamente se produzia no
referido campo); (iii) a entrevista podia finalmente ser vista não como mera
“coleta de dados”, mas como real intervenção na produção de um texto.

4. À guisa de conclusão:

O presente artigo apenas muito de leve toca numa questão que nos pare-
ce crucial para um tratamento adequado das práticas discursivas: a análise das
implicações tematizada pela Análise institucional, problemática que tivemos
a oportunidade de aproximar neste artigo à análise da relação entre uma dada
produção linguageira e seu entorno. Dito de outro modo, a tematização das
implicações do pesquisador das práticas linguageiras com / em seu campo pa-
rece retomar o antigo debate acerca das condições de produção dos discursos.
Eis o que nos parece lícito concluir a partir de uma das observações de Lourau
(1979) que a seguir transcrevemos:

Não estamos totalmente determinados, não estamos totalmen-


te indeterminados: porque há uma História, somos seres so-
bredeterminados - sobredeterminantes. Nas situações-limites
intensas, ...compreendemos subitamente que forças sociais
nos atravessam e aprendemos ao mesmo tempo a controlá-
las, a inflecti-las. (...) Condição indispensável à produção da
transversalidade: não um ‘equilíbrio’ que seria o da ausência de
história, mas um afrontamento, um conflito, uma contradição
para resolver. (LOURAU, 1979, p. 39)

Se nem estamos totalmente determinados por um fora (o que implicaria o


divórcio homem / mundo), nem produzimos tudo a partir de um marco zero,
Rocha, Décio; Deusdará, Bruno Contribuições da Análise Institucional para
72 uma abordagem das práticas linguageiras: a noção de implicação na pesquisa de campo

devemos concluir que o debate acerca das implicações vem reencontrar, no ter-
ritório da Análise do discurso que compartilhamos, a temática dos enlaçamentos
(Maingueneau, 1989), uma vez que esta coloca em cena “a ausência de exteriori-
dade entre coerções enunciativas e práticas institucionais” (Maingueneau, 1989,
p. 67). Uma tal observação parece-nos representar uma interessante hipótese de
trabalho, gerando desafios para futuras investigações referentes aos lugares e aos
modos de inscrição das implicações nas práticas linguageiras.

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Recebido: 31/04/2010
Aprovado: 09/06/2010

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