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169 1/04) Terreno intermediario entre a criagdo e a conviecdo, o ensaio é uma pega de realidade em rosa que nio perde de vista a poesia ensaio e sua prosa “MAX DENSE, ‘ygia Pape ‘Sem titulo, 1956 Imagens da série Tecelar ‘©ProjetoLygia Pape Que ninguém se admire ao ver um l6gico a ponto de dizer duas ou trés coisas sobre as questdes mais sutis da prosa, sua forma e seu estilo ~ duas ou trés coisas que se costuma ouvir apenas da parte de criticos ou mestres da criagio lite- riria, Parece-me que chegada a hora de examinar, tanto a0 espelho do esprit géométrique como ao espelho do esprit de finesse, os elementos e 0s resultados do gosto literdrio ¢ Poético. Podemos nos valer das ideias de Pascal para tracar Aistingdes precisas no dominio verbal e chegar a uma com- preensio de certas formas caracteristicas. No seria bom que (0s poetas ¢ os escritores se exprimissem de vez em quando, sobre seu material, suas criagdes, sobre prosa, poesia, frag- ‘mentos, versos ¢ frases? Creio que dai poderia surgir uma teoria respeitavel, no ambito da qual o processo estético se apresentaria no apenas como fruto da criagio, mas tam- bém como fruto da reflexdo sobre a criagao. Além do mais, tal teoria teria a vantagem de ser de origem ao mesmo tempo racional e empirica Assim, bem podemos perguntar em linhas muito amplas: 0 que distinguiria uma passagem de prosa pura de uma de poesia pura? Como Sulzer jé demonstrou, 0 ‘verso por si s6 € insuficiente como fronteira entre uma e outra. A constatacdo € esclarecedora, mas, dito isto, é 36 com grande esforgo que consigo acompanhar, ac longo das 0 obras literdrias, o traco sutil da transicio continua da poesia a prosa. Podemos tentar capturar a perfeicio intima disso que ora chama- ‘mos de prosa, ora de poesia, definindo a prosa como uma espécie de poesia generalizada. Desse ponto de vista, 0 ritmo ea métrica, que caracterizam toda poesia, se transfeririam em suave continuidade para os periodos bem articulados e para as cesuras bem cortadas do estilo prosaico; a ser assim, aquilo que Lessing chamou, numa for ‘mula tio bela, de “discurso sensivel levado a perfeicdo” jvollkommene sinnliche Rede] se metamorfosearia na ordem de uma prosa que atinge sua densidade maxima e seu auge clissico nos fragmentos de Pascal, nos discursos de Galileu, nas meditacdes de Descartes, nos romances de Goethe e na metafisica de Hegel - ao mesmo tempo que neles atinge os limites da dispersdo do fenémeno prosaico. Con- luo que, em altima instncia, 0 poeta ndo pode ser compreendide seno a partir da poesia, assim como o escritor nao pode sé-lo senao. ‘a partir da prosa;uma e outra exigem alguns comentarios, antes que eu chegue a meu objeto propriamente dito. intelectual é ou bem um criador ou bem um educador. Ou bem: cria uma obra ou bem defende uma convieglo. Para a obra, o tempo é indiferente; para a convicgio, nao. Hé uma diferenca essencial entre o poeta e o escritor; num sentido ontoldgico, o poeta acrescenta 20 ser {das Sein vermehrt}, a0 passo que oescritor, por obra desuas conviegses, ‘tenta manipulara esséncia do ser, tenta fazer valer o espitito concreto que ele representa. Estou convicto de que a criagao é uma categoria estética, 20 passe que a conviegao tem na ética 0 seu lugar natural, o que confere 2 cada qual uma autonomia ontolégica. A arte interessa por suas cris {gdes, € todo estado estético produzido pela arte constitui uma apro- ximagiio 20 ato de criaglo de um ser; por sua vez, 0 estado ético (em todos os seus graus, da conviceio a revolucio, da cultura a superaczo dda mesma) esta sempre is voltas com a esséncia desse ser (das Wesem dieses Seins). A poesia consumada é expressao de um estado estétion, 20 passo que a prosa magistral trai sua origem ética. Portanto, a distin ‘gio sutil entre o estilo estético ¢ 0 estilo ético (que se espelha na dif renga entre o estilo idealmente poético e um estilo idealmente épico) sempre uma distingao qualitativa entre modalidades, a despeito das sabidas transigdes entre uma e outra. eescritor se volta para um espaco mais limitado e pacifico que odo poeta, mas nem por isso seu olhar é de comunhio ou meditacio, 25 conttario: ele é seletivo, imperativo, destrutivo, construtivo, inquicte: ‘86 oescritor movido por uma conviegio pode igualmente ser cientists fil6sofo, crtico politico ou religioso. Talvez seja preciso ter deixade: m para trés 0 prazer profundo da eriagZo pura para substituir 0 canto pela vontade, pela meta ardorosamente perseguida. A mira posta no leitor desvia o escritor da criacao, assim como a mira na utilidade des- via ciéncia da verdade intocdvel. A paixio sem peias que responde pela criagio da obra nao se comunica facilmente com a vontade sem. Peias do espitito que representa uma conviecao. A historia das ideias ‘nos ensina que intelectual, o representante de uma convicgao, ganha influéneia e se faz necessatio nas épocas dificeis. Aconstatagao beira ‘ supérfluo. Ao contratio da prosa, a compreensio da poesia depende ‘menos do contexto de época. Nesse sentido preciso, Lessing, Herder, Kierkegaard, Marx e Nietzsche sio grandes escritores, interessados e ‘empenhados no trabalho de tornar visivel esséneia humana, Hoje em dia, pertencem a essa mesma categoria autores como Gide, Sartre © ‘Camus, na Franca, ou Unamuno e Ortega, na Espana, ou ainda Gottfried Benn, Ernst Jiinger, Walter Benjamin, Theodor Haecker e Karl Kraus, no ambito da lingua alema, ra, pode-se observar nesses mesmos escritores uma peculiar coineidéncia de convieeao e criacdo. Esses autores sio todos casos intermedirios, no sentido mais genuino da palavra. Em sua criagao reside inegavelmente a poesia, mas a expresso, a forma como a cria- «fo se da e se apresenta, é da ordem do argumento porfiado — no do argumento fundado no pathos ou na demonstragio cabal e gran- diosa, mas do argumento que se articula discretamente, por meio da repetico incansével. Tal prosa lana luz.e vida sobre 0s objetos de ue ela fala e que ela gostaria de dar a conhecer; ao mesmo tempo, cla fala sobre si mesma, ela se dé a conhecer como expressio autén- tica do espirito. £ caracteristico que esse modo de proceder se intro- duza mesmo nas construgdes verbais. As conviegdes esto embuti- das na expressio do pensamento, que procede por meio de signos; no todo, a prosa se mostra como uma configuragio de palavras, ela ‘manipula signos e os associa a determinadas construgdes, periodos, assagens, em cujo ambito devem se manifestar cettos contetidos determinados; ela respira o ar da mais estrita precisio, mas, ao fim © a0 cabo, é apenas criptorracional. Bla oculta sua propria raciona- lidade. Por qué? Porque cla nao quer ser pura conviccio, porque ela ainda é poesia, porque ela s6 se remata no afi por uma criacao sem macula. Nao pode ser de outra maneira quando se persegue ‘uma meta ditada nao apenas pela intenco, mas também pela forma, ‘quando nio apenas o conhecimento, mas também sua expresso e ‘comunicagao péem em movimento a vontade do autor ~e 0 fazem a tal ponto que nao sera de admirar quea vontade vi mesmo “além do espirito”, para dizé-lo nos termos da censura cartesiana. Em sie para

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