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APRESENTAÇÃO

Prezados(as) alunos(as),

Sejam muito bem-vindos à disciplina Sociologia da Educação!


Espero que todos estejam animados com o curso de Pedagogia e com a modalidade de
estudos à distância. Como são muitos os desafios que temos pela frente, nós precisamos garantir
uma boa dose de disciplina e determinação, para, assim, desenvolvermos juntos todas as
possibilidades de ensino-aprendizagem que estamos tendo a oportunidade de vivenciar.
Esta disciplina tem por objetivos: discutir as relações entre educação, sociedade e
sociologia, situando-as no contexto da modernidade; apresentar alguns conceitos básicos da
sociologia clássica, destacando alguns dos pontos mais importantes de cada uma das escolas
sociológicas (positivismo, materialismo histórico e sociologia compreensiva); estudar e
comparar as concepções teóricas sobre educação e ensino presente nos autores clássicos da
Sociologia (Durkheim, Marx e Weber); debater a contribuição destes autores para se pensar a
educação, a escola e a atuação docente no mundo moderno e contemporâneo; e, contribuir para
o desenvolvimento de uma “imaginação sociológica”.
É de fundamental importância ressaltar que este Guia de Estudos foi elaborado no formato
de coletânea de textos, ou seja, todos os textos aqui presentes foram extraídos de outras fontes
e compilados a partir destas. Os autores e as obras estão referenciados já no início de cada texto.
Sendo assim, as ideias e conceitos aqui apresentados e discutidos não são de autoria do
professor da disciplina, mas pertencem aos autores dos textos aos quais o conteúdo original foi
preservado.

Bons estudos!

Prof. Me. Renato Brasil Mazzeu


SOCIOLOGIA: QUESTÕES E PROBLEMAS*

Anthony Giddens

A sociologia é uma disciplina que desfruta de uma reputação curiosamente ambivalente.


Por um lado, muitas são as pessoas que a associam ao fomento de rebeliões, como se não
passasse de um estímulo à revolta. Mesmo que tenham vaga noção dos tópicos estudados pela
sociologia, ainda assim a vinculam à subversão, às estrepitosas exigências feitas por desleixados
militantes estudantis. Por outro lado, uma visão muito diferente da sociologia é em geral – talvez
mais comumente que a primeira – abraçada por indivíduos que tiveram com ela um contato direto
em escolas e universidades. Isso é que faz com que seja um enfadonho e não-instrutivo
empreendimento que, longe de impelir os estudantes às barricadas, é capaz de matá-los de tédio.
Dentro dessa perspectiva, a sociologia assume a inócua condição de ciência. Mas não com tanta
força explicativa quanto as ciências naturais erigidas em modelos pelos sociólogos.
Creio que os que reagiram desse último modo têm certa dose de razão. A sociologia tem
sido concebida por muitos de seus divulgadores – até mesmo pela maioria – de tal maneira que
tem dado ensejo a que asserções triviais sejam enganosamente veiculadas numa linguagem
pseudocientífica. É equivocada a concepção de que a sociologia pertence ao grupo das ciências
naturais e que deva, em razão disso, tentar servilmente imitar seus procedimentos e objetivos. Ao
menos em certa medida, seus críticos leigos estão cobertos de razão em se mostrarem céticos
quanto às realizações que a sociologia é capaz de produzir quando assim entendida.
Minha intenção neste livro é associar a sociologia ao primeiro tipo de visão, mais que ao
segundo. Mas isso não significa que pretenda vincular a sociologia a algum tipo de fúria
irracional encarada pela maioria das pessoas como forma de conduta louvável e adequada. Não
quero, porém, esposar a concepção de que a sociologia, entendida da maneira pela qual a
descrevo, encerra necessariamente um teor subversivo. Em minha opinião, seu caráter subversivo
ou crítico não acarreta que ela seja um empreendimento intelectual sem valor. Ao contrário, a
sociologia só tem esse caráter porque lida com problemas que se mostram (ou deveriam
mostrar-se) prementes para todos nós, problemas que geram as principais controvérsias e
conflitos na própria sociedade. Por mais que possa haver estudantes dóceis ou radicais – ou

*
GIDDENS, Anthony. Sociologia: uma breve porém crítica introdução. Rio de Janeiro: Zahar, 1989, p.09-27.
qualquer outro tipo de radical –, existem claras ligações entre os impulsos que os instigam à ação
e algum tipo de consciência sociológica. Isso não se dá, ou talvez se dê apenas raramente, porque
os sociólogos pregam abertamente a revolta. Ocorre por que o estudo da sociologia,
adequadamente entendida, demonstra de modo inequívoco quão prementes são as questões
sociais com que nos defrontamos no mundo atual. Todos têm algum tipo de consciência dessas
questões, mas o estudo da sociologia favorece a que se lhes dê um enfoque mais agudo. A
sociologia não pode permanecer uma disciplina puramente acadêmica, se “acadêmica” significa
uma busca desinteressada e distanciada, circunscrita ao âmbito estreito dos muros da
universidade.
A sociologia não é uma disciplina similar a um belo presente teórico, a demandar apenas
o esforço de desembrulhar seu conteúdo. Como as outras ciências sociais – que podem incluir,
entre outras disciplinas, a antropologia, a economia e a história –, a sociologia é uma empreitada
intrinsecamente controvertida. Até mesmo porque se caracteriza por permanentes disputas acerca
de sua própria natureza. Mas isso não constitui fraqueza, apesar de ter isso parecido a inúmeros
“sociólogos” profissionais e a muitas pessoas leigas angustiadas com o fato de existirem
numerosas concepções competindo pela maneira adequada de enfocar e analisar o objeto da
sociologia. Os que se afligem com a persistência dos embates sociológicos e com a falta de
consenso para resolvê-los usualmente caracterizam essa situação como sinal de imaturidade da
sociologia. Eles querem que a sociologia se assemelhe a uma ciência natural, gerando um sistema
de leis universais supostamente semelhante àqueles que a ciência natural descobriu e validou. No
entanto, de acordo com a concepção que aqui delinearei, é um equívoco supor que a sociologia
deva ser elaborada à maneira das ciências naturais, ou imaginar que uma ciência natural da
sociedade seja possível ou desejável. Outrossim, gostaria de enfatizar que tal afirmação não
pretende veicular o ponto de vista segundo o qual os métodos e objetivos das ciências naturais se
mostram totalmente irrelevantes para o estudo do comportamento social humano. A sociologia
lida com um objeto factualmente observável, depende da pesquisa empírica e envolve tentativas
de formular teorias e generalizações que darão sentido aos fatos. Mas a natureza dos seres
humanos não é a mesma dos objetos materiais. O estudo de nosso próprio comportamento, no
que se refere a certos aspectos muito importantes, é completamente diferente do estudo dos
fenômenos naturais.
O contexto da sociologia

O desenvolvimento da sociologia, assim como suas preocupações atuais, tem de ser


apreendido no contexto das mudanças que criaram o mundo moderno. Vivemos numa época de
maciça transformação social. No decorrer de apenas dois séculos tiveram lugar avassaladoras
mudanças sociais que, nos dias de hoje, são ainda mais aceleradas. Tais mudanças, que se
originaram na Europa Ocidental, fazem-se sentir agora por toda parte. Elas dissolveram
totalmente as formas de organização social em que a humanidade viveu durante milhares de anos.
Seu núcleo deve ser encontrado nas que têm sido descritas como “as duas grandes revoluções”
dos séculos XVIII e XIX que tiveram lugar na Europa. A primeira é a Revolução Francesa de
1789, que corresponde não apenas a um conjunto específico de eventos, mas também a um
símbolo de transformações políticas de nossa era. Pois a Revolução de 1789 foi muito diferente
das rebeliões que a antecederam. De tempos em tempos, os camponeses se rebelavam contra os
senhores feudais, mas tentavam apenas afastar certos indivíduos do poder, ou fazer com que os
preços ou as taxas fossem reduzidos. Com a Revolução Francesa (a qual podemos associar, com
certas reservas, à revolução anticolonial ocorrida na América do Norte em 1776), pela primeira
vez na história uma ordem social foi completamente transformada por um movimento conduzido
por ideias puramente seculares – liberdade e igualdade universais. E se, mesmo nos dias de hoje,
os ideais dos revolucionários raramente são realizados, ao menos eles criaram um clima de
mudança política que se tem mostrado uma das forças dinâmicas da história contemporânea.
Atualmente, poucos são os Estados cujos governantes não proclamam tratar-se de “democracias”,
seja qual for sua compleição política real. Isso é algo totalmente novo na história da humanidade.
É claro que existiram outras repúblicas, especialmente as da Grécia e Roma clássicas. Porém, não
passaram de casos raros. E nesses casos, os que integravam o corpo de “cidadãos” constituíam
uma minoria da população, cuja maioria era composta de escravos ou de pessoas que não
desfrutavam das prerrogativas dos grupos restritos que tinham acesso à cidadania.
A segunda “grande revolução” foi a chamada “Revolução Industrial”, que ocorreu na
Inglaterra no final do século XVIII e se disseminou, ao longo do século XIX, pela Europa
Ocidental e Estados Unidos. Às vezes, a Revolução Industrial é apresentada como um conjunto
de inovações técnicas: especialmente a utilização do vapor para manufaturar a produção e a
introdução de novas formas de maquinaria acionadas por tais fontes de energia. Entretanto, essas
invenções técnicas foram apenas parte de um conjunto muito mais amplo de mudanças sociais e
econômicas. A transformação mais importante. foi a migração em massa da força de trabalho
proveniente do campo para os setores do trabalho industrial em constante expansão. Tal processo
acabou levando também à mecanização da produção agrária, além de promover a expansão das
cidades com uma intensidade jamais vista na história. Calcula-se que antes do século XIX,
mesmo nas sociedades mais urbanizadas, não mais que 10% da população habitavam as pequenas
ou as grandes cidades – e geralmente muito menos na maioria dos Estados e impérios sustentados
pela agricultura. Consoante os padrões modernos, virtualmente todas as cidades nas sociedades
pré-industriais, mesmo os mais afamados centros cosmopolitas, eram relativamente pequenas.
Estimou-se, por exemplo, a população londrina do século XIV em 30 mil habitantes e a de
Florença durante o mesmo período em 90 mil. No início do século XIX, a população de Londres
já ultrapassara a de qualquer cidade em todos os tempos, alcançando a cifra de cerca de 900 mil
almas. Mas, em 1800, mesmo com tão grande centro metropolitano, apenas uma pequena minoria
da população da Inglaterra e País de Gales residia em cidades. Um século depois, quase 40% da
população residiam em cidades de 100 mil habitantes ou mais e cerca de 60%, em cidades de 20
mil habitantes ou mais.

QUADRO 1.1. Percentagem da população mundial que reside em cidades.


Cidades de 20 mil Cidades de 100 ml
habitantes ou mais habitantes ou mais
1800 2,4 1,7
1850 4,3 2,3
1900 9,2 5,5
1950 20,9 13,1
1970 31,2 16,7
FONTE; Kingsley Davis, “The origin and growth of urbanisation in the world”,
American Journal of Sociology, vol. 61, 1955 (atualizado).

O Quadro 1.1 mostra que a urbanização tem-se expandido dramaticamente em escala


mundial, e que isso continua a ocorrer. Todos os países industrializados são muito urbanizados,
quaisquer que sejam os critérios que usemos para distinguir a “pequena” e a “grande” cidade dos
centros menos populosos. No entanto, também nos países do Terceiro Mundo se verifica rápida
expansão das áreas urbanas. As maiores áreas urbanas do mundo contemporâneo mostram-se
imensas, quando as contrastamos com cidades de sociedades anteriores ao século XIX.
Se a industrialização e a urbanização estão no centro das transformações que
dissolveram inexoravelmente as formas mais tradicionais de sociedade, devemos mencionar um
terceiro fenômeno que lhes está associado. Trata-se do surpreendente aumento da população
mundial nos dias de hoje, comparativamente com o passado. Já se estimou que, na época do
nascimento de Cristo, a população do mundo provavelmente não chegava a 300 milhões de
habitantes. Até o século XVIII, sua totalidade parece ter crescido de maneira bem constante,
ainda que lenta; provavelmente, a população do mundo duplicou durante esse período. Desde
então tem ocorrido a tão falada “explosão populacional”, embora pouco se saiba sobre ela.
Atualmente, há quase 4 bilhões de pessoas vivendo no mundo, e esse número tem aumentado de
tal modo que, a perdurar tal situação, a população mundial duplicará a cada 40 anos. Embora as
consequências de tal crescimento populacional para o futuro da espécie humana sejam
assustadoras, podendo ser objeto de grande controvérsia, os fatores, que subjazem às origens do
recente crescimento demográfico são menos controvertidos que os da industrialização ou
urbanização. Na maior parte da história da humanidade, houve um equilíbrio geral entre as taxas
de natalidade e de mortalidade. Ainda que, em alguns aspectos, se trate de questão complexa,
nela se destacam dois fenômenos principais. O primeiro é que, anteriormente aos dois últimos
séculos, a média de vida raramente ultrapassava os 35 anos, e em geral era menor. O segundo
fator foi a taxa de mortalidade infantil: não era incomum, na Europa medieval e alhures, que até a
metade das crianças nascidas em cada ano morresse antes de alcançar a idade adulta. O aumento
da expectativa de vida e o dramático decréscimo da taxa de mortalidade infantil – produzidos
pelas melhores condições sanitárias e higiênicas e pelo progresso da medicina, que propiciou a
cura das principais doenças infecciosas – têm contribuído para esse prodigioso crescimento
populacional.

Sociologia: uma definição e algumas considerações preliminares

A sociologia surgiu quando aqueles que se viram envolvidos na série inicial de


mudanças ocasionadas pelas “duas grandes revoluções” que tiveram lugar em solo europeu
buscaram compreender as condições de sua emergência e suas prováveis consequências.
Naturalmente, nenhuma área de estudo pode ser exatamente demarcada em termos de suas
origens. Podemos prontamente traçar uma linha contínua que vai dos autores de meados do
século XVIII aos períodos mais recentes do pensamento social. De fato, a formação da sociologia
envolveu um clima ideológico que contribuiu para incrementar ambos os processos
revolucionários.
Como deveríamos definir a “sociologia”? Vejamos uma definição trivial. A sociologia
diz respeito ao estudo das sociedades humanas. Ora, só podemos formular a noção de sociedade
de modo muito geral. Pois sob a categoria geral de “sociedades” desejamos incluir não apenas os
países industrializados, mas também os imensos Estados imperiais sustentados pela agricultura
(como o Império Romano ou a China tradicional) e, no extremo oposto, as pequenas
comunidades tribais que apenas podem abranger um número insignificante de indivíduos.
Uma sociedade é um grupo, ou sistema, de modos institucionalizados de conduta. Falar
de formas “institucionalizadas” de conduta social é referir-se a modalidades de crença e
comportamento que ocorrem e recorrem – ou, como expressa a terminologia da moderna teoria
social, são socialmente reproduzidas – no tempo e no espaço. A linguagem é excelente exemplo
de uma forma de atividade institucionalizada, ou instituição, por ser tão fundamental para a vida
social. Todos nós falamos línguas que, enquanto indivíduos, nenhum de nós criou, embora
possamos utilizar a linguagem de forma criativa. No entanto, muitos outros aspectos da vida
social podem ser institucionalizados, ou seja, tornam-se geralmente práticas adotadas que
mantêm uma forma reconhecidamente similar ao longo das gerações. Por conseguinte, podemos
falar de instituições econômicas, políticas[, educacionais] e assim por diante. E devemos
assinalar que semelhante uso do conceito de “instituição” difere da maneira em que o termo é
frequentemente empregado na linguagem comum, como vago sinônimo de “grupo” ou
“coletividade” – como quando, ao falarmos de uma prisão[, escola] ou hospital, nos referimos a
uma “instituição”.
Essas considerações servem para mostrar como devemos compreender o termo
“sociedade”, mas não podemos deixar a questão por resolver. Como objeto de estudo a
“sociedade” é abordada tanto pela sociologia quanto pelas demais ciências sociais. A
característica distintiva da sociologia reside no fato de ela concernir principalmente àquelas
formas de sociedade que têm emergido na esteira das “duas grandes revoluções”: as sociedades
industrialmente avançadas. Terei muito a dizer nos capítulos que se seguem a respeito de o que
implica a expressão “industrialmente avançadas”. Mas não será prejudicial para nossa discussão
se propusermos a seguinte definição: a sociologia focaliza principalmente o estudo das
instituições das sociedades “avançadas” ou “industrializadas” e as condições de transformação
dessas instituições.
Entretanto, quero atribuir ênfase especial ao fato de as sociedades “avançadas” não
poderem ser tratadas como se estivessem isoladas do resto do mundo, ou das sociedades que as
precederam no tempo – ainda que grande parte dos trabalhos sociológicos tenha sido escrita
como se assim fosse. Além disso, é igualmente importante enfatizar que não é possível traçar
precisamente linhas divisórias entre a sociologia e outras áreas de estudo. Nem é desejável que
possamos fazê-lo. Algumas questões da teoria social, que têm a ver com a maneira pela qual o
comportamento e as instituições humanas deveriam ser conceitualizados, são objeto de estudo
por parte das ciências sociais como um todo. As diferentes “áreas” de comportamento humano
que são abordadas pelas diversas ciências sociais formam uma divisão intelectual do trabalho que
só pode ser justificada de maneira muito geral. A antropologia, por exemplo, está nominalmente
preocupada com as sociedades “mais simples”: as sociedades tribais, as chefias e os Estados
sustentados pela agricultura. Tais sociedades, porém, vêm sendo completamente dissolvidas pelas
profundas mudanças sociais que têm acometido o mundo ou estão em vias de serem incorporadas
pelos modernos Estados industriais. O objeto de estudo da economia, para considerarmos outro
exemplo, é a produção e a distribuição de bens materiais. Contudo, as instituições econômicas
sempre estão, obviamente, associadas a outras instituições nos sistemas sociais, que as
influenciam e são por elas influenciadas. Finalmente, a história, como o estudo do contínuo
distanciamento entre passado e presente, constitui a fonte material da totalidade das ciências
sociais.
Muitos pensadores notáveis associados ao desenvolvimento da sociologia ficaram
impressionados com a importância da ciência e da tecnologia para as mudanças que
testemunharam. Portanto, ao estabelecerem as metas da sociologia, buscaram, no estudo das
questões sociais humanas, conseguir o mesmo êxito obtido pelas ciências naturais ao explicarem
o mundo material. A sociologia devia ser uma “ciência natural da sociedade”. Augusto Comte
(1798-1857), que cunhou o termo “sociologia”, formulou essa concepção de modo mais claro e
abrangente. Alegou que todas as ciências, inclusive a sociologia, compartilham uma estrutura
global de lógica e de método; todas visam descobrir as leis universais que regem os fenômenos
particulares com os quais lidam. Comte acreditava que, se descobrirmos as leis que regem a
sociedade humana, poderemos forjar nosso próprio destino, do mesmo modo que a ciência nos
tem permitido controlar os eventos que fazem parte do mundo natural. Sua famosa fórmula,
Prévoir pour pouvoir (prever para poder), expressa essa ideia.
Desde a época de Comte, a noção de que a sociologia deveria tomar como modelo as
ciências naturais tem predominado – embora certamente não tenha deixado de sofrer objeções,
sendo também expressa de várias e diferentes maneiras. Émile Durkheim (1858-1917), uma das
figuras mais influentes que contribuíram para o desenvolvimento da sociologia no século XX,
deu continuidade a alguns aspectos importantes do pensamento de Comte. Segundo ele, a
sociologia diz respeito aos “fatos sociais”, que podem ser abordados do mesmo modo objetivo
que os fatos com que lidam as ciências naturais. Em seu pequeno, mas por demais influente livro
As regras do método sociológico (1895), Durkheim propôs que os fenômenos sociais deveriam
ser tratados como coisas: deveríamos considerar a nós mesmos como se fôssemos objetos que
fazem parte da natureza. Assim sendo, ele acentuou as similaridades entre a sociologia e a ciência
natural.
Como mencionei anteriormente, rejeito esse tipo de ponto de vista, ainda que ele tenha
sido muito difundido em sociologia. Falar da sociologia, e de outros temas, como a antropologia
ou a economia, como “ciências sociais” é enfatizar que elas envolvem o estudo sistemático de um
objeto empírico. Tal terminologia não nos confundirá enquanto percebermos que a sociologia e
as outras ciências sociais diferem das ciências naturais em dois aspectos essenciais.
(1) Não podemos abordar a sociedade, ou os “fatos sociais”, como fazemos com os
objetos ou eventos que fazem parte do mundo natural, pois as sociedades só existem na medida
em que são criadas e recriadas por nossas próprias ações como seres humanos. No que tange à
teoria social, não podemos tratar as atividades humanas como se fossem determinadas por certas
causas da mesma forma que os eventos naturais. Temos de compreender o que chamaríamos de
duplo envolvimento de indivíduos e instituições: criamos a sociedade e ao mesmo tempo somos
criados por ela. Já mencionei que as instituições são padrões de atividade social reproduzidos ao
longo do tempo e do espaço. Vale a pena refletir por um momento sobre as consequências de tal
característica. Falar de “reprodução” da conduta social ou dos sistemas sociais é referir-se à
repetição de modelos similares de atividade por parte de atores separados no tempo e no espaço.
Realmente, é muito importante enfatizar esse aspecto, pois muitas teorias sociais – inclusive a de
Durkheim – tendem a pensar em termos de imagens físicas, e tal tendência pode acarretar
danosas consequências. Os sistemas sociais envolvem padrões de relacionamento entre
indivíduos e grupos. Muitos sociólogos concebem tais padrões como as paredes de um edifício
ou como o esqueleto de um corpo. Trata-se de uma atitude equivocada, por implicar uma imagem
por demais estática e imutável das sociedades, isto é, por não esclarecer que a padronização dos
sistemas sociais só existe na medida em que os indivíduos reiteram ativamente formas
particulares de conduta em tempos e lugares distintos. Se tivéssemos de usar esse tipo de
imagem, deveríamos dizer que os sistemas sociais são como edifícios que estão sendo
constantemente reconstruídos pelos próprios tijolos que os compõem.
(2) A partir do que foi dito, podemos concluir que as implicações práticas da sociologia
não são e não podem ser diretamente análogas aos usos tecnológicos da ciência. Os átomos não
podem saber o que os cientistas dizem sobres eles, ou mudar de comportamento com base nesse
conhecimento. Já com os seres humanos dá-se o contrário. Por conseguinte, a relação entre a
sociologia e seu “objeto de estudo” é necessariamente diferente da implicada pelas ciências
naturais. Se considerarmos a atividade social como um conjunto mecânico de eventos,
determinado pelas leis naturais, não só compreenderemos mal o passado, mas também
deixaremos de perceber de que modo a análise sociológica pode contribuir para exercer alguma
influência em nosso possível futuro. Como seres humanos, não apenas vivemos na história, mas
nossa compreensão da história é uma parte integrante daquilo que a história é e do que pode vir a
ser. Eis por que não nos podemos satisfazer com a ideia de Comte do Prévoir pour pouvoir,
considerada como tecnologia social. Quando se trata de ciências sociais, dirigimo-nos a outros
seres humanos e não a um mundo inerte de objetos. Geralmente, por mostrar que o que a alguns
se afigura inevitável ou inquestionável – por se assemelhar a uma lei natural – é, de fato, um
produto histórico, a análise sociológica pode desempenhar um papel emancipatório na sociedade
humana. Simultaneamente, a análise sociológica mostra sobriedade. Pois, embora o
conhecimento possa contribuir de modo importante para se alcançar o poder, com este não se
identifica. E nosso conhecimento de história é sempre inseguro e incompleto.

A imaginação sociológica: a sociologia como crítica

Neste livro, afirmo que a prática da sociologia demanda o que C. Wright Mills tão
habilmente chamou de “imaginação sociológica” (C. Wright Mills, A imaginação sociológica,
Rio, Zahar, 1965; 6ª ed., 1982). Esse termo tem sido tão utilizado que corre o risco de tornar-se
trivial, e o próprio Mills usou-o num sentido um tanto vago. Ao mencioná-lo, quero referir-me às
várias formas relacionadas de sensibilidade que se mostram indispensáveis à análise sociológica
da maneira como a concebo. Só podemos compreender o mundo social a que deram início as
sociedades industrializadas contemporâneas – a sociedade atual que se formou primeiramente no
Ocidente – mediante um tríplice exercício de imaginação. Essas formas da imaginação
sociológica envolvem uma sensibilidade histórica, antropológica e crítica.
Seres humanos geneticamente idênticos a nós existem há mais ou menos 500 mil anos.
Na medida em que podemos obter algum conhecimento a partir dos resíduos arqueológicos,
“civilizações” baseadas na agricultura existem, quando muito, há apenas 10 mil anos. No entanto,
esse parece um grande período quando comparado à insignificante duração da história recente,
onde predomina o capitalismo industrial. Os historiadores não estão de acordo com relação a
quando o capitalismo, como modo de atividade econômica, começou a predominar; mas é difícil
sustentar a afirmação de que suas origens possam ser encontradas na Europa antes do século XV
ou XVI. O capitalismo industrial, enquanto associação do empreendimento capitalista com a
produção mecânica fabril, remonta à última parte do século XVIII, e nessa época só existia em
determinadas partes da Grã-Bretanha. Os últimos 100 anos, que presenciaram a expansão do
capitalismo industrial em nível mundial, têm, não obstante, causado mudanças sociais mais
perturbadoras em suas consequências que qualquer outro período em toda a história anterior da
humanidade. Os ocidentais vivem em sociedades que assimilaram o primeiro impacto de tais
mudanças. A geração contemporânea está familiarizada com sociedades adaptadas a uma rápida
inovação tecnológica, em que a maioria da população vive em cidades grandes ou pequenas,
dedica-se a um trabalho industrial e é “cidadã” de Estados-Nações. Entretanto, esse novo mundo
social familiar, criado de forma tão rápida e dramática, é único na história da humanidade.
No que se refere à imaginação sociológica, quem analisa hoje em dia as sociedades
industrializadas tem, em primeiro lugar, de se esforçar para recuperar nosso próprio passado
imediato – o “mundo que perdemos”. Só mediante tal esforço de imaginação, que naturalmente
envolve uma consciência histórica, é que podemos compreender como o modo de vida dos que
atualmente vivem nas sociedades industrializadas é diferente do das pessoas que viveram num
passado relativamente recente. Os fatos brutos, como os que mencionei ao falar da urbanização,
nos auxiliam a compreender tal fenômeno. Mas o que é realmente necessário é uma tentativa de
reconstrução imaginativa da constituição das formas de vida social que foram, em grande parte,
erradicadas. Nesse caso, é impossível fazer uma distinção entre o ofício do sociólogo e a arte do
historiador. A Inglaterra setecentista, a sociedade que experimentou pela primeira vez o impacto
da Revolução Industrial, era ainda uma sociedade em que os costumes da comunidade local eram
mantidos pela penetrante influência da religião. Foi uma sociedade em que podemos constatar
uma continuidade com a Grã-Bretanha do século XX, mas onde os contrastes são notáveis. As
organizações que hoje em dia são comuns existiam apenas numa forma rudimentar: não apenas
fábricas e escritórios, mas escolas, faculdades, hospitais e prisões só se tornaram comuns no
século XIX.
De certo modo, naturalmente, essas mudanças na estrutura da vida social são de tipo
material. Ao descrever a Revolução Industrial, assim escreveu um historiador:

A tecnologia moderna não apenas produz mais e mais rápido; ela produz objetos que de modo
algum poderiam ser produzidos pelos métodos de que dispúnhamos anteriormente. A melhor
fiadeira indiana não poderia produzir um fio tão fino e regular como o da fiadeira automática;
nenhuma forja do século XVIII poderia produzir chapas de aço tão grandes, lisas e homogêneas
como as da fábrica moderna. E, o que é mais importante, a moderna tecnologia tem criado coisas
que dificilmente teriam sido concebidas na era pré-industrial: a câmara, o automóvel, o
aeroplano, toda a série de inventos eletrônicos (do rádio ao computador), a usina nuclear e assim
por diante, quase ad infinitum [...]. Isso tem resultado num imenso aumento da produção e
variedade de bens e serviços, sendo o bastante para transformar a vida do homem mais que
qualquer coisa que ele tenha feito desde a descoberta do fogo: o inglês de 1750 estava mais
próximo, em coisas materiais, dos legionários de César do que de seus próprios bisnetos. (David
S. Landes, The Unbound Premetheus, Cambridge, Cambridge University Press, 1969, p. 5.)

A escalada e a disseminação da inovação tecnológica constituem inegavelmente uma das


características distintivas das atuais sociedades industrializadas. E estão intimamente associadas
ao declínio da tradição, o esteio da vida cotidiana na comunidade aldeã local, importante até
mesmo na vida urbana da era pré-capitalista. A tradição incluía o presente no passado, e
implicava uma experiência do tempo distinta da que predomina nas sociedades ocidentais
contemporâneas. O dia de cada um não era dividido em “tempo de trabalho” e “tempo livre”,
como ocorre hoje em dia; e não se separava claramente o “trabalho” das demais atividades, fosse
no espaço ou no tempo.
Já me referi à interseção de duas grandes revoluções que se situam na origem das
transformações das sociedades da Europa Ocidental. A segunda foi a revolução política, que está
associada à origem do Estado-Nação, fenômeno tão significativo para a criação do mundo
moderno como o incremento da industrialização. Os que vivem no Ocidente consideram-se
“cidadãos” de uma nação particular, e nenhum deles poderia deixar de estar consciente do
importante papel que o Estado (governo centralizado e administração local) desempenha em suas
vidas. No entanto, o desenvolvimento dos direitos de cidadania, particularmente o sufrágio
universal, é relativamente recente. Trata-se do nacionalismo o sentimento de se pertencer a uma
comunidade nacional distinta, separada das outras. Essas se tornaram características da
organização “interna” dos Estados-Nações, mas é igualmente importante atentar para o fato de
que as relações entre Estados-Nações são fundamentalmente distintivas da era moderna.
Hoje em dia, vivemos num sistema mundial que não encontra paralelo nas eras que nos
antecederam. As “duas grandes revoluções” têm-se disseminado em escala mundial. O
capitalismo industrial baseia-se numa complexa especialização da produção, numa divisão do
trabalho em que as relações de troca estão espalhadas pelo mundo inteiro. Consideremos as
roupas que estamos vestindo, a sala em que estamos ou a comida que comeremos na próxima
refeição. É improvável que nós mesmos tenhamos confeccionado nossas roupas, construído
nossas próprias moradias ou cultivado os alimentos que consumimos. Nos países
industrializados, estamos acostumados com tal situação, mas, antes do advento do capitalismo
industrial, a divisão do trabalho era muito menos complexa. A maior parte da população
satisfazia diretamente quase todas as suas necessidades e, quando não o fazia, utilizava o serviço
de outras pessoas de sua comunidade local. Entretanto, atualmente os produtos são
manufaturados e trocados num âmbito mundial, o que demanda uma divisão do trabalho
verdadeiramente global. Não apenas muitos dos bens consumidos no Ocidente são produzidos no
Oriente, e até certo ponto vice-versa, mas também podemos constatar intrincadas ligações entre
processos de produção levados a cabo em lugares distintos. Determinadas partes de um aparelho
de TV, por exemplo, podem ser feitas num país e outras partes, alhures; ele pode ser montado
noutro lugar e ainda ser vendido noutro país.
Mas não foi somente a expansão das relações econômicas que deu origem a um novo e
único sistema mundial. A expansão do capitalismo tem sido acompanhada pela predominância
geral do Estado-Nação. Já me referi a algumas características “internas” do Estado-Nação. [...]
Contudo, num sentido importante, é enganador falar “do” Estado-Nação pois, a partir de suas
origens na Europa, sempre tem havido Estados-Nações que se relacionam ambiguamente, de
maneira harmônica ou conflituosa. Hoje em dia, todo o mundo está dividido em diversos
Estados-Nações. Não só a emergência dos Estados-Nações na Europa, mas especialmente seu
desenvolvimento noutras partes do mundo é, uma vez mais, fenômeno relativamente recente.
Durante a maior parte de sua história, a humanidade esteve escassamente disseminada pelo
mundo, vivendo em sociedades muito pequenas, caçando animais e coletando vegetais
comestíveis. Trata-se das chamadas sociedades de “caçadores e coletores”. No decorrer dos
últimos 10 milênios, o mundo manteve-se ainda esparsamente habitado, em comparação com a
época atual, por pessoas que viviam em sociedades de caça e coleta, pequenas comunidades
agrícolas, cidades-Estados ou impérios. Alguns impérios, principalmente o da China, foram
muito vastos. Mas eram muito diferentes dos Estados-Nações contemporâneos. Por exemplo, o
Governo central chinês, na China tradicional, nunca logrou obter um controle muito direto sobre
suas várias províncias, especialmente as mais extensas. A maior parte dos que se sujeitavam a
soberania do Estado chinês levava uma vida muito diferente da de seus governantes, com os
quais tinha muito pouco em comum no que se refere à cultura ou à língua.
Ademais, embora os vários tipos de sociedades mencionados se relacionem de diversas
formas, essas ligações certamente não estavam disseminadas pelo mundo como ocorre
atualmente. A observação “Oriente é Oriente e Ocidente é Ocidente e os dois nunca se
encontrarão”, anterior ao século atual, expressava uma circunstância muito real. Houve contatos
esporádicos e um certo comércio intermitente entre a China e a Europa do século XI em diante;
mas durante os séculos que se seguiram, a China e o Ocidente habitaram universos separados.
Atualmente, tudo isso mudou, não obstante diferenças culturais possam ainda separar Oriente e
Ocidente. A China não é mais um império, mas um Estado-Nação, se bem que de grandes
dimensões, não só em termos de território, mas também de população. Naturalmente, é também
um declarado Estado socialista. Embora os Estados-Nações estejam atualmente disseminados
pelo mundo, de maneira alguma têm seguido o modelo “liberal-democrático” que se estabeleceu
com mais firmeza na Europa Ocidental.
Se a primeira dimensão da imaginação sociológica envolve o desenvolvimento de uma
sensibilidade histórica, a segunda acarreta o aperfeiçoamento de um insight antropológico. Fazer
tal afirmação é novamente enfatizar a tênue natureza das fronteiras convencionalmente
reconhecidas entre as diversas ciências sociais. A obtenção de um sentido histórico de quão
recentes e dramáticas são as transformações sociais ocorridas nos dois séculos passados é difícil.
Mas talvez seja ainda mais difícil superar a crença, explícita ou implícita, de que os modos de
vida que têm sido desenvolvidos no Ocidente são, de alguma forma, superiores ao de outras
culturas. Tal crença é encorajada pela ampla disseminação do próprio capitalismo ocidental, o
qual acarretou uma série de eventos que desgastou ou destruiu muitas outras culturas com que
entrou em contato. Além disso, muitos pensadores sociais têm atribuído forma concreta a essa
noção ao tentarem incluir a história humana em esquemas de evolução social nos quais a
“evolução” é compreendida em termos da capacidade de diversos tipos de sociedade de
controlarem ou dominarem seu meio ambiente material. Inevitavelmente, a industrialização
ocidental parece ser o ápice desses esquemas, visto que inegavelmente ela tem alcançado uma
produtividade material imensamente maior que as de quaisquer outras sociedades que a
precederam na história.
No entanto, tais esquemas evolucionistas expressam um etnocentrismo que cabe à
imaginação sociológica dissipar. Uma concepção etnocêntrica é aquela que adota o ponto de vista
de sua própria sociedade ou cultura como padrão de medida para avaliar todas as outras. Sem
dúvida, tal atitude está profundamente enraizada na cultura ocidental. E também tem
caracterizado muitas outras sociedades. Contudo, no Ocidente a convicção de superioridade tem
sido, de certo modo, uma expressão, bem como uma justificação, da acerba dominação sobre
outras maneiras de viver por parte do capitalismo industrial. Porém, não devemos confundir o
poder econômico e militar das sociedades ocidentais, que lhes tem permitido assumir uma
posição preeminente no mundo, com o ápice de um esquema evolutivo. A valorização da
produtividade material, tão pronunciada no Ocidente moderno, é em si mesma uma atitude
especificamente anômala, quando comparada com outras culturas.
A dimensão antropológica da imaginação sociológica é importante porque nos permite
apreciar a diversidade dos modos de existência humanos que se têm sucedido em nosso mundo.
Uma das ironias da era moderna é que o estudo sistemático da diversidade das culturas humanas
– “o trabalho de campo antropológico” – surgiu paralelamente à voraz expansão do capitalismo
industrial e do militarismo ocidental que acelerava a destruição de tais culturas. No entanto, o
aspecto antropológico da imaginação sociológica tem caracterizado as ciências sociais desde seu
início, rivalizando com o pensamento evolucionista de caráter etnocêntrico. No Discurso sobre a
origem da desigualdade entre os homens (1755), de Jean-Jacques Rousseau, encontramos
repetidas vezes a ideia esclarecedora de que, ao nos tornarmos conscientes da desconcertante
variedade das sociedades humanas, podemos aprender a compreender melhor a nós mesmos. “O
mundo todo”, observou Rousseau, está constituído por sociedades “das quais conhecemos apenas
os nomes, não obstante ousemos opinar sobre a raça humana!” E em seguida pede-nos para
imaginar uma expedição constituída de intrépidos observadores que se mostrem sensíveis à
diversidade da experiência humana para descrever as multifacetadas sociedades existentes, acerca
das quais conhecemos muito pouco. “Suponhamos”, escreve Rousseau, “que esses novos
Hércules, ao voltarem de suas memoráveis expedições, ponham-se calmamente a escrever a
história natural, moral e política daquilo que viram. Então, veríamos um novo mundo emergir de
suas penas e, consequentemente, aprenderíamos a conhecer a nós mesmos.”
No decorrer do século e meio que se seguiu à publicação do Discurso de Rousseau,
viajantes, missionários, comerciantes e outros mais realizaram essas viagens. No entanto, seus
relatos eram incertos ou parciais, ou assumiam o próprio etnocentrismo que Rousseau pretendera
atacar. O trabalho de campo antropológico de tipo sistemático e minucioso só teve início por
volta da virada do século XX. Desde essa época, a partir da qual seu campo de estudo diminuiu
rapidamente, a antropologia logrou reunir muitas informações a respeito de diferentes culturas.
Por um lado, tal informação confirma a unidade da raça humana; não tem fundamento a
afirmação de que as pessoas que vivem em sociedades pequenas e “primitivas” são de algum
modo geneticamente inferiores às que vivem em “civilizações” supostamente mais avançadas.
Não conhecemos sociedades humanas que não possuam formas desenvolvidas de linguagem, e
não parece haver correlação entre tipos de sociedade e complexidade linguística. Por outro lado,
a moderna pesquisa antropológica também subjaz o amplo espectro de instituições pelas quais os
seres humanos podem ordenar suas vidas.
Geralmente, o antropólogo contemporâneo é um cronista do desastre, de culturas
devastadas pela destruição militar, assoladas por enfermidades introduzidas pelo contato com o
ocidental ou arruinadas pela dissolução de seus costumes tradicionais. Segundo Claude
Lévi-Strauss, talvez o mais eminente pensador que se dedica e esse assunto nos dias de hoje, o
antropólogo é o “aluno e a testemunha” desses povos em via de extinção. A luta para impedir o
contínuo despojamento dos direitos desses povos, ou pelo menos para suavizar-lhes o
ajustamento a novos modos de vida quando o seu já se desintegrou, envolve questões urgentes e
bastante práticas. No entanto, a importância de tais lutas não deveria levar-nos a ignorar a
importância do trabalho antropológico que foi produzido no decorrer dos últimos 50 anos, pois a
partir de tal trabalho podemos manter viva a imagem de formas de vida social que podem estar às
vésperas de serem erradicadas para sempre.
Ao combinar esse segundo sentido com o primeiro, o exercício da imaginação
sociológica possibilita-nos ultrapassar o acanhado ponto de vista de só pensar em termos do tipo
de sociedade que conhecemos de modo imediato. Assim sendo, cada qual é diretamente relevante
para a terceira forma de imaginação sociológica que quero assinalar. Ela concerne às
possibilidades futuras. Ao criticar a ideia de que a sociologia se assemelha a uma ciência natural,
aleguei com veemência que nenhum processo social é regido por leis inalteráveis. Como seres
humanos, não estamos condenados a sermos arrastados por forças que sejam tão inevitáveis
quanto as leis naturais. Mas isso significa que devemos estar conscientes das alternativas futuras
que potencialmente se nos apresentam. É nesse terceiro sentido que a imaginação sociológica se
une à tarefa da sociologia ao contribuir para a crítica das formas existentes de sociedade.
[...]
SOCIOLOGIA DA EDUCAÇÃO COMO “SOCIOLOGIA ESPECIAL”*

Florestan Fernandes

[...] A Sociologia divide-se em várias disciplinas, que estudam a ordem existente nas
relações dos fenômenos sociais de diversos pontos de vista irredutíveis, mas complementares e
convergentes. Contudo, nada se disse [até aqui] sobe as chamadas “sociologias especiais”,
como a Sociologia Econômica, a Sociologia Moral, a Sociologia Jurídica, a Sociologia do
Conhecimento, [a Sociologia da Educação] etc. A rigor, essa designação é imprópria. Como
acontece em qualquer ciência, os métodos sociológicos podem ser aplicados à investigação e à
explicação de qualquer fenômeno social particular sem que, por isso, se deva admitir a
existência de uma disciplina especial, com objeto e problemas próprios! Essa tendência teve
razão de ser no passado, enquanto pairavam dúvidas sobre as questões essenciais, relativas ao
objeto da Sociologia, à natureza da explicação sociológica e às técnicas de investigação,
recomendáveis no estudo sociológico dos fenômenos sociais. Ela simplificava o trabalho dos
especialistas, confinando o âmbito da discussão de questões metodológicas e do significado de
suas contribuições. [...] [A expressão “Sociologia da Educação”] conserva, atualmente, um
sentido figurado, pois a investigação de um fenômeno particular com frequência envolve o
recurso simultâneo às abordagens sociológicas fundamentais. Sob outros aspectos, o uso mais
ou menos livre de tais expressões facilita a identificação do teor das contribuições,
simplificando, assim, as relações do autor com o público. Isto parece ser suficiente para
justificar o emprego delas, já que carecem de sentido lógico os intentos de subdividir,
indefinidamente, os campos da Sociologia.

*
FERNANDES, Florestan. Ensaios de Sociologia Geral e Aplicada. In: FORACCHI, Marialice M.; PEREIRA,
Luiz (orgs.). Educação e sociedade: leituras de sociologia da educação. São Paulo: Editora Nacional, 1964, p.6.
A ANÁLISE SOCIOLÓGICA DA EDUCAÇÃO CONTEMPORÂNEA*

Alberto Tosi Rodrigues


[...]
Talvez [...] você já tenha se perguntado de que modo, afinal, o aparato conceitual desta
disciplina pode lhe ser útil no momento de tomar a educação como objeto de investigação.
Se ainda não se perguntou, já é hora.
Pois as formulações teóricas dos pensadores que fundaram a sociologia e os
desenvolvimentos temáticos que a elas se juntaram ao longo de todo o século XX oferecem hoje
um arsenal analítico substantivo e positivo, à disposição dos estudiosos da educação que se
dedicam à realização de investigações empíricas.
A pergunta inicial, aqui, talvez seja a seguinte: o que singulariza uma análise tipicamente
sociológica? Em que medida uma análise de um problema educacional qualquer pode ser
considerada sociológica? A resposta é importante para que sejamos capazes de saber, afinal, o que
é fazer uma sociologia da educação.
Como convém a todas as disciplinas científicas, a sociologia tem seus próprios métodos
de análise e suas técnicas de pesquisa. Mas creio que não é o momento de enveredar por discussões
metodológicas. O que gostaria de sublinhar aqui são as “pontes”, as conexões ou, se preferir, os
links que a sociologia é capaz de estabelecer entre os processos e instituições educacionais, de um
lado, e os processos e instituições sociais mais gerais, de outro.
[...] Achei que ajudaria se tentássemos traçar [...] um esboço dos procedimentos que o
sociólogo está acostumado a utilizar quando depara com um problema que deseja investigar,
inclusive os problemas da educação.
[...] O que pretendo aqui é, digamos assim, esboçar um guia básico, muito sintético, das
distinções e dos procedimentos sociológicos que possibilitam a construção das conexões entre
problemas sociais específicos (como os problemas educacionais) e o funcionamento geral da
sociedade.

*
RODRIGUES, Alberto Tosi. Sociologia da educação. São Paulo: Lamparina, 2011, p.85-92.
Estruturas, sujeitos e processos

Como vimos, uma questão central para a sociologia é a de identificar qual o peso que têm
sobre as relações sociais da vida cotidiana as estruturas sociais já estabelecidas, consolidadas, já
institucionalizadas. Isto é, saber em que medida um determinado fenômeno social como, por
exemplo, uma reforma (burocrática, política, cultural) do sistema de ensino, é resultante do modo
atual pelo qual as instituições sociais já estabelecidas (o Estado, as Igrejas, o mercado etc.) estão
organizadas ou, por outro lado, é resultante das ações inovadoras de sujeitos sociais interessados
em modificar o funcionamento dessas instituições. É preciso levar em consideração a autoridade
(capacidade de fazer-se obedecer) e a legitimidade (o que dá fundamento à obediência) das
instituições, isto é, das estruturas da sociedade e, ao mesmo tempo, o modo como as disputas por
sua mudança ou por sua continuidade se dão entre os diferentes sujeitos (grupos, classes etc.) que
atuam na vida social. Os processos sociais gerais são, no fim das contas, resultado da interação
entre os sujeitos e as estruturas.
Assim, o sociólogo precisa ter sempre um olho para as estruturas (aquilo que está
estabelecido) e outro olho para os processos (aquilo que está em mudança). Permanência e
mudança são resultantes da tensão que sempre existe entre o peso das instituições e a capacidade
de ação dos sujeitos. Pois as práticas dos sujeitos estarão, com certeza, orientadas para manter ou
mudar os conteúdos das estruturas.
Basta pensar no modo como as sociedades se organizam em termos de classes sociais. Se
pensarmos classe como o modo pelo qual os indivíduos se relacionam com o modo vigente de
produção de mercadorias (versão de Marx) ou como o modo pelo qual estão distribuídas as
possibilidades de acesso ao consumo de bens (versão de Weber), veremos que as sociedades
possuem uma dada estrutura de classes. Ora, é razoável esperar que, sob certas circunstâncias, as
classes em desvantagem econômica (seja na esfera da produção ou na do consumo) empreendam
ações visando a mudança dessa estrutura, enquanto que as classes em vantagem ajam objetivando
sua manutenção. O mesmo raciocínio pode ser empregado para questões raciais ou para questões
que envolvam a distribuição de poder entre homens e mulheres. E não são apenas referentes às
estruturas econômicas, mas também às políticas, jurídicas, ideológicas etc. As leis são também
“estruturadas” com um determinado perfil (em detrimento de outros perfis possíveis), assim como
os modos de pensar e as crenças.
A esfera social compreendida pela política tem nesse ponto uma importância crucial, pois
é nela que são tomadas as decisões obrigatórias, isto é, aquelas decisões que devem ser obedecidas
por todos os membros da sociedade, independentemente de sua vontade, e que se não forem
obedecidas podem possibilitar o emprego de sanções negativas (punições) aos desobedientes. É
por isso que o Estado nacional – e, mais contemporaneamente, algumas estruturas supra estatais,
como, por exemplo, a União Europeia, a ALCA etc. – é um palco privilegiado para a observação
das estruturas e dos processos pelos quais elas se transformam. E é por isso que a sociologia política
não pode ser negligenciada pelos que desejam empreender uma análise sociológica da educação.
Como sabemos, a sociologia é uma ciência que nasceu junto com o capitalismo. Seu
interesse seminal foi o de compreender a sociedade industrial moderna. Compreender as
“afinidades eletivas” que nela se estabeleceram entre as configurações da economia burguesa – que
revolucionava enormemente a produção e o consumo – e as leis e as razões do Estado, as religiões
e a administração pública e privada. De lá para cá o capitalismo e o Estado que a ele articulou-se
expandiram-se e modificaram-se, embora diferenciadamente, em todas as partes do planeta. A
evolução da análise sociológica de certo modo espelha tais mudanças.

Capitalismo, Estado e sociologia

Analisar a educação de hoje, do ponto de vista da sociologia, demanda, portanto, que


conheçamos o caráter da fase contemporânea do capitalismo.
Ao tempo de Durkheim e Marx o capitalismo vivia a primeira fase de sua vida adulta, a
fase concorrencial. Era o momento do liberalismo econômico, do livre mercado, o chamado
laissez-faire. As profundas transformações econômicas deflagradas pela Revolução Industrial (por
volta da década de 1930 do século XIX) e a reorientação intelectual propiciada pelo
desenvolvimento da economia política burguesa (especialmente os trabalhos de Adam Smith e
David Ricardo) foram as chaves tanto para a emergência de um novo mundo quanto para a
disseminação de uma nova concepção de mundo. O mercado – esse espaço de relações sociais de
compra e venda de mercadorias e de trabalho humano – passou a ser concebido como um
mecanismo plástico, auto ajustável, uma espécie de grande reunião impessoal em que todos os
anônimos participantes contribuem com o bem comum e cada um fica com a parte da riqueza social
que de fato deveria caber-lhe. A somatória de todos os interesses particulares representados no
mercado, por obra de uma “mão invisível” (conforme a célebre metáfora de Adam Smith),
resultaria na consecução dos interesses coletivos. Os preços das mercadorias e o valor dos salários
seriam determinados pela relação entre a quantidade e qualidade dos bens oferecidos, de um lado,
e o desejo e a capacidade de comprá-los, de outro. O Estado era pensado, do ponto de vista dessa
concepção liberal, como a instituição que deveria garantir os contratos privados da economia e a
liberdade das relações de troca, mas jamais imiscuir-se nos assuntos do mercado, sob pena de
arruinar sua estabilidade natural. A trinca formada pela empresa capitalista, o mercado e o Estado
estaria, assim, harmoniosamente equilibrada.
Como sabemos, a história e os críticos da economia e da política capitalistas, como Marx,
demonstraram ser esta uma imagem que não coincidia nem com a dura realidade social
efetivamente vivida sob a égide do capital nem tampouco com o próprio funcionamento da
economia capitalista.
[...]
Sociedade, economia, política e educação

Como compreender os debates e conflitos sociais que envolvem a educação


contemporânea sem levar em conta a configuração atual dos conflitos em torno da economia e do
Estado capitalistas? Como entender a escola e o ensino atuais sem entender o confronto hoje
colocado entre os interesses privados e a regulamentação do Estado?
Essa é a contribuição que a sociologia pode dar ao estudo dos fenômenos educacionais:
confrontá-las com os mundos econômico, político e cultural em meio aos quais ocorrem. Os
sociólogos ensinam que as ideias não nascem dos cérebros privilegiados, nem têm existência
própria, soltas no ar. As concepções de mundo, as ideias e os valores que as pessoas compartilham
entre si e que ensinam a seus filhos e alunos não são dádivas do céu; são construídas na teia
cotidiana de relações e interações. São invenções do homem, são construções sociais. E são sempre
resultado dos conflitos e dos consensos que se estabelecem na sociedade, são fruto das relações de
poder e da violência (física ou simbólica) que alguns grupos ou classes são capazes de exercer
sobre outros.
As ideias e valores, o mundo da cultura, enfim, o conteúdo que ao fim e ao cabo é ensinado
nas relações educacionais, são fruto da luta cotidiana por interesses econômicos e por poder
político. O próprio método, a pedagogia com a qual se ensinam esses conteúdos contém, à luz da
análise sociológica, um viés ideológico. Os grupos e classes dominantes procuram sempre fazer
com que as ideias e os valores aceitos por todos sejam os seus próprios valores e ideias. As práticas
pedagógicas, isto é, os princípios e métodos que informam as técnicas educacionais estão sujeitas
ao conflito ideológico vigente numa dada sociedade.
[...]
DA DIVISÃO DO TRABALHO SOCIAL*

Raymond Aron

De La Division du travail social (1893), tese de doutoramento de Durkheim, é seu


primeiro grande livro.
[...] O tema deste primeiro livro é central no pensamento do autor: as relações entre os
indivíduos e a coletividade. Como pode uma coleção de indivíduos constituir uma sociedade?
Como se chega a esta condição da existência social que é o consenso?
A esta pergunta fundamental Durkheim responde distinguindo duas formas de
solidariedade: a solidariedade dita mecânica e a orgânica.
A primeira é, para usar a expressão de Durkheim, uma solidariedade por semelhança.
Quando esta forma de solidariedade domina uma sociedade, os indivíduos diferem pouco uns
dos outros membros de uma mesma coletividade, eles se assemelham porque têm os mesmos
sentimentos, os mesmos valores, reconhecem os mesmos objetos como sagrados. A sociedade
tem coerência porque os indivíduos ainda não se diferenciaram.
A forma oposta de solidariedade, a orgânica, é aquela em que o consenso, isto é, a
unidade coerente da coletividade, resulta de uma diferenciação, ou se exprime por seu
intermédio. Os indivíduos não se assemelham, são diferentes. E, de certo modo, são diferentes
porque o consenso se realiza.
Durkheim chama de orgânica a solidariedade baseada na diferenciação dos indivíduos,
por analogia com os órgãos de um ser vivo, cada um dos quais exerce uma função própria;
embora os órgãos não se pareçam uns com os outros, todos são igualmente indispensáveis à
vida.
As duas formas de solidariedade correspondem, no pensamento de Durkheim, a duas
formas extremas de organização social. As sociedades que há meio século chamávamos de
primitivas, e que hoje preferimos chamar de arcaicas, ou sociedades sem escrita (mudança de
terminologia que exprime uma mudança de atitude com relação a essas sociedades), se
caracterizam pela prevalência da solidariedade mecânica. Os indivíduos de um clã são, por
assim dizer, intercambiáveis. O resultado, e esta é uma das ideias essenciais do pensamento de
Durkheim, é que o indivíduo não vem, historicamente, em primeiro lugar. A tomada de
consciência da individualidade decorre do próprio desenvolvimento histórico. Nas sociedades

*
ARON, Raymond. “Émile Durkheim”. In: As etapas do pensamento sociológico. São Paulo: Martins Fontes,
1993, p.297-307.
primitivas, cada indivíduo é o que são os outros; na consciência de cada um predominam, em
número e intensidade, os sentimentos comuns a todos, os sentimentos coletivos.
[...]
A divisão do trabalho que Durkheim procura apreender e definir não se confunde com
a que os economistas imaginam. A diferenciação das profissões e a multiplicação das atividades
industriais exprimem a diferenciação social que Durkheim considera de modo prioritário. Esta
diferenciação se origina na desintegração da solidariedade mecânica [...].
Falando destes temas fundamentais, pode-se tentar identificar algumas das ideias que
decorrem desta análise, e fazem parte da teoria geral do nosso autor.
A primeira trata do conceito de consciência coletiva, que, desde esta época, figura no
primeiro plano do pensamento de Durkheim.
Tal como é definida em De la Division du travail social, a consciência coletiva é
simplesmente “o conjunto das crenças dos sentimentos comuns à média dos membros de uma
sociedade”. Durkheim esclarece que este conjunto “forma um sistema determinado, que tem
vida própria”. A consciência coletiva só existe em função dos sentimentos e crenças presentes
nas consciências individuais, mas se distingue, pelo menos analiticamente, destas últimas, pois
evolui segundo suas próprias leis e não é apenas a expressão ou o efeito das consciências
individuais.

Sem dúvida, ela não tem como substrato um órgão único; é, por definição, difusa, ocupando
toda a extensão da sociedade; mas nem por isso deixa de ter características específicas, que a
tornam uma realidade distinta. Com efeito, ela é independente das condições particulares em
que se situam os indivíduos. Estes passam, ela fica. É a mesma no Norte e no Sul, nas grandes
e nas pequenas cidades, nas diferentes profissões. Por outro lado, não muda em cada geração,
mas ao contrário liga as gerações que se sucedem. Portanto, não se confunde com as
consciências particulares, embora se realize apenas nos indivíduos. É o tipo psíquico da
sociedade, tipo que tem suas propriedades, condições de existência, seu modo de
desenvolvimento, exatamente como os tipos individuais, embora de outra maneira (De la
Division du travail social, p. 46.)

Esta consciência coletiva comporta, de acordo com as sociedades, maior ou menor


extensão ou força. Nas sociedades dominadas pela solidariedade mecânica, a consciência
coletiva abrange a maior parte das consciências individuais. Nas sociedades arcaicas, a fração
das existências individuais submetida a sentimentos comuns é quase co-extensiva com a
existência inteira.
Nas sociedades onde aparece a diferenciação dos indivíduos, cada um tem, em muitas
circunstâncias, a liberdade de crer, de querer e agir conforme suas preferências. Nas sociedades
de solidariedade mecânica, ao contrário, a maior parte da existência é orientada pelos
imperativos e proibições sociais. O adjetivo social significa, neste momento do pensamento de
Durkheim, apenas que tais imperativos e proibições se impõem à média, à maioria dos membros
do grupo; que eles têm por origem o grupo, e não o indivíduo, denotando o fato de que este se
submete a esses imperativos e proibições como a um poder superior.
A força desta consciência coletiva acompanha a sua extensão. Nas sociedades
primitivas, ela não só abrange a maior parte da existência individual, como também os
sentimentos coletivos têm força extrema, que se manifesta pelo rigor dos castigos impostos aos
que violam as proibições sociais. Quanto mais forte a consciência coletiva, maior a indignação
com o crime, isto é, contra a violação do imperativo social. Finalmente, a consciência coletiva
também é particularizada. Cada um dos atos da existência social, em particular cada um dos
ritos religiosos, é definido com precisão. Os detalhes relativos ao que é preciso fazer, e ao que
é preciso crer, são impostos pela consciência coletiva.
Por outro lado, quando reina a solidariedade orgânica Durkheim pensa observar
também uma redução da esfera da existência que cobre a consciência coletiva, um
enfraquecimento das reações coletivas contra a violação das proibições e sobretudo uma
margem maior na interpretação individual dos imperativos sociais.
Para dar um exemplo simples, o que a justiça exige, numa sociedade primitiva, é fixado
com exatidão minuciosa pelos sentimentos coletivos. Por outro lado, nas sociedades onde a
divisão do trabalho é mais avançada, essa exigência só será feita de modo abstrato, por assim
dizer universal. Num caso, a justiça é que tal indivíduo receba tal sanção precisa; em outro, que
haja uma espécie de igualdade nos contratos e que cada um receba o que lhe é devido, que é
definido de muitas formas, nenhuma das quais é isenta de dúvidas, e fixada de modo unívoco.
Dessa análise, Durkheim deduz uma ideia que manteve por toda a sua vida, e que
ocupa o centro de toda sua sociologia: a que pretende que o indivíduo nasce da sociedade, e não
que a sociedade nasce dos indivíduos.
Enunciada assim, a fórmula parece paradoxal, mas o próprio Durkheim a exprime
muitas vezes nesses termos. Procurando reconstituir seu pensamento, diria que o primado da
sociedade sobre o indivíduo tem pelo menos dois sentidos; que no fundo nada têm de paradoxal.
O primeiro é o da prioridade histórica das sociedades em que os indivíduos se
assemelham uns aos outros e estão, por assim dizer, perdidos no todo, com relação àquelas
outras sociedades cujos membros adquiriram ao mesmo tempo consciência da sua
responsabilidade e da capacidade que têm de exprimi-la. As sociedades coletivistas, onde cada
um se assemelha a todos, vêm historicamente em primeiro lugar.
Dessa prioridade histórica resulta uma prioridade lógica na explicação dos fenômenos
sociais. Se a solidariedade mecânica precedeu a solidariedade orgânica, não se pode, com efeito,
explicar os fenômenos da diferenciação social e da solidariedade orgânica a partir dos
indivíduos. Enganam-se os economistas que explicam a divisão do trabalho pelo interesse dos
indivíduos em compartilhar as ocupações de modo a fazer crescer o rendimento da coletividade.
Essa explicação pela racionalidade da conduta individual parece a Durkheim uma inversão da
ordem. Dizer que os homens dividiram o trabalho e atribuíram uma ocupação específica a cada
um para aumentar a eficácia do rendimento coletivo é admitir que os indivíduos são diferentes
uns dos outros, e conscientes dessa diferença, antes da diferenciação social. Com efeito, a
consciência da individualidade não podia existir antes da solidariedade orgânica e da divisão
do trabalho. A busca racional do aumento da produção não pode explicar a diferenciação social,
pois esta busca pressupõe justamente tal diferenciação social.
Durkheim esboça, neste ponto, o que será uma das ideias fundamentais em toda a sua
carreira: a definição da sociologia como a prioridade do todo sobre as partes, ou a
irredutibilidade do conjunto social à soma dos elementos, e a explicação dos elementos pelo
todo.
No estudo da divisão do trabalho, Durkheim descobriu duas ideias essenciais: a
prioridade histórica das sociedades onde a consciência individual está inteiramente fora de si e
a necessidade de explicar os fenômenos individuais pelo estado da coletividade, e não o estado
da coletividade pelos fenômenos individuais.
O fenômeno da divisão do trabalho que o sociólogo quer explicar é diferente, portanto,
do que os economistas entendem pelo mesmo conceito. A divisão do trabalho é uma certa
estrutura de toda a sociedade, de que a divisão técnica ou econômica do trabalho não passa de
uma manifestação.
Depois de definir cientificamente a divisão do trabalho, é necessário estudá-la melhor.
A resposta dada por Durkheim à questão metodológica é a seguinte: para estudar
cientificamente um fenômeno social, é preciso estudá-lo objetivamente, isto é, do exterior,
encontrando o meio pelo qual os estados de consciência não perceptíveis diretamente podem
ser reconhecidos e compreendidos. Estes sintomas, ou expressões dos fenômenos de
consciência são, em De la Division du travail social, os fenômenos jurídicos. De modo
sugestivo, e talvez um pouco simplista, Durkheim caracteriza um dos tipos de solidariedade: o
direito repressivo, que pune as faltas ou crimes, e o direito restitutivo, ou cooperativo, cuja
essência não é a punição das violações das regras sociais, mas repor as coisas em ordem quando
uma falta foi cometida, ou organizar a cooperação entre os indivíduos.
O direito repressivo revela a consciência coletiva nas sociedades de solidariedade
mecânica, já que, pelo próprio fato de que multiplica as sanções, manifesta a força dos
sentimentos comuns, sua extensão e sua particularização. Quanto mais ampla a consciência
coletiva, quanto mais forte e particularizada, maior será o número de atos considerados como
crimes, isto é, atos que violam um imperativo, ou um interdito, que ferem diretamente a
consciência da coletividade.
Esta definição de crime é tipicamente sociológica, no sentido em que Durkheim
interpreta o termo sociológico. Nesta acepção, crime é simplesmente um ato proibido pela
consciência coletiva. Não importa que pareça inocente ao observador situado em outra
sociedade, ou em outro período histórico. Num estudo sociológico, o crime só pode ser definido
do exterior tomando como referência o estado da consciência coletiva da sociedade
considerada. Esta definição é portanto objetiva e relativista.
Dizer que alguém é sociologicamente um criminoso não significa que o consideremos
culpado com relação a Deus, ou com relação à nossa própria concepção de justiça. Criminoso
é aquele que, numa sociedade determinada, deixou de obedecer às leis do Estado. Nesse sentido,
Sócrates provavelmente merecia ser considerado criminoso.
Evidentemente basta levar essa ideia até as últimas consequências para que ela se torne
trivial, ou então chocante para o espírito. A definição sociológica do crime leva, de fato,
logicamente, a um relativismo integral, fácil de pensar em termos abstratos, mas ao qual, na
realidade, ninguém adere, nem mesmo aqueles que o professam.
De qualquer forma, depois de ter esboçado uma teoria do crime, Durkheim deduz dela
sem dificuldade uma teoria das sanções. Afasta com um certo desprezo as interpretações
clássicas, segundo as quais as sanções teriam por finalidade prevenir a repetição do ato culpado.
Para ele, a sanção não tem a função de amedrontar ou de dissuadir; seu sentido não é este. A
função do castigo é satisfazer a consciência comum, ferida pelo ato cometido por um dos
membros da coletividade. Ela exige reparação e o castigo do culpado é esta reparação feita aos
sentimentos de todos.
Durkheim considera esta teoria da sanção mais satisfatória do que a interpretação
racionalista pelo efeito de dissuasão. É provável que, sociologicamente, ele estivesse certo. Mas
não devemos deixar de reconhecer que se o castigo é sobretudo uma reparação feita à
consciência coletiva o prestígio da justiça e a autoridade das sanções ficam enfraquecidas.
[...]
No direito restitutivo, não se trata de punir, mas sim de restabelecer o estado das coisas
como deve ser segundo a justiça. Aquele que não resgatou sua dívida deve pagá-la. Mas esse
direito restitutivo, ao qual pertence por exemplo o direito comercial, não é a única forma de
direito característica das sociedades de solidariedade orgânica. Quando menos, deve-se
interpretar o direito restitutivo num sentido muito amplo, de modo a englobar todas as regras
jurídicas que têm por objeto a organização da cooperação entre os indivíduos. O direito
administrativo ou o direito constitucional pertencem, como o comercial, ao gênero do direito
cooperativo: constituem menos a expressão dos sentimentos comuns de uma coletividade do
que a organização da coexistência regular e ordenada de indivíduos já diferenciados.
Poder-se-ia acreditar que Durkheim encontra assim uma ideia que tinha uma função
importante [...] nas teorias dos economistas clássicos: a ideia de que a sociedade moderna se
baseia essencialmente no contrato, isto é, em acordos concluídos livremente pelos indivíduos.
Neste caso, a visão de Durkheim se ajustaria de certo modo à fórmula clássica “do estatuto ao
contrato”, ou ainda “de uma sociedade dominada por imperativos coletivos a uma sociedade na
qual a ordem comum é criada pelas livres decisões dos indivíduos”.
Mas não é esta a ideia de Durkheim. Para ele, a sociedade moderna não se baseia no
contrato, como a divisão do trabalho não se explica a partir de decisões racionais dos indivíduos
de repartir as ocupações para aumentar a produção coletiva. Se a sociedade moderna fosse
“contratualista”, poderia ser explicada pelo comportamento dos indivíduos. Ora, o que o
sociólogo quer demonstrar é precisamente o contrário.
Opondo-se assim aos “contratualistas” [...] e aos economistas, Durkheim não nega que
nas sociedades modernas os contratos concluídos livremente pelos indivíduos tenham um papel
importante. Mas esse elemento contratual é um derivado da estrutura da sociedade, e até mesmo
um derivado do estado da consciência coletiva na sociedade moderna. Para que haja uma esfera
cada vez mais ampla, onde os indivíduos possam concluir livremente acordos entre si, é preciso
que a sociedade tenha uma estrutura jurídica que autorize essas decisões autônomas dos
indivíduos. Em outras palavras, os contratos interindividuais se situam dentro de um contexto
social que não é determinado pelos próprios indivíduos. A divisão do trabalho pela
diferenciação é a condição primordial da existência de uma esfera de contrato. Encontra-se aqui
o princípio da prioridade da estrutura social sobre o indivíduo, ou ainda da prioridade do tipo
social sobre os fenômenos individuais.
Os contratos são concluídos entre indivíduos, mas suas condições são fixadas por uma
legislação que traduz a concepção que a sociedade global tem do justo e do injusto, do tolerável
e do proibido.
A sociedade onde predomina o tipo orgânico de solidariedade não é definida, portanto,
pela substituição da comunidade pelo contrato. [...] Ela se define prioritariamente pela
diferenciação social, de que o contratualismo é uma consequência e manifestação.
Quando os economistas ou os sociólogos explicam a sociedade moderna pelo contrato,
eles invertem a ordem histórica e lógica. É a partir da sociedade global que compreendemos o
que são os indivíduos e como (e por que) eles podem livremente contratar entre si.
Mas, qual é a causa da solidariedade orgânica ou da diferenciação social que é
considerada como a característica essencial das sociedades modernas?
Observemos, antes de mais nada, que não é evidente que Durkheim tenha razões para
formular este problema nos termos em que o enuncia: qual é a causa do desenvolvimento da
solidariedade orgânica e da diferenciação social? Ele não pode ter certeza a priori de que é
possível ou mesmo impossível encontrar a causa de um fenômeno que não é simples ou
isolável, mas sim um aspecto do conjunto da sociedade. Durkheim quer determinar a causa do
desenvolvimento da divisão do trabalho nas sociedades modernas.
Trata-se aqui de um fenômeno essencialmente social. Quando o fenômeno a explicar
tem esta natureza, segundo o princípio da homogeneidade da causa e do efeito, a causa deve ser
também social, o que elimina a explicação individualista. Curiosamente, Durkheim afasta assim
uma explicação [...] segundo a qual o fator essencial do desenvolvimento social teria sido o
enfado ou a procura da felicidade. De fato, nada prova que nas sociedades modernas os homens
sejam mais felizes do que nas sociedades arcaicas. Não há dúvida de que neste ponto ele tem
razão. A única coisa surpreendente é que julgue necessário – mas na sua época, provavelmente,
era necessário – escrever tantas páginas para demonstrar que a diferenciação social não pode
ser explicada pela busca do prazer ou da felicidade.
É verdade, afirma ele, que os prazeres são mais numerosos e sutis nas sociedades
modernas, mas esta diferenciação dos prazeres é o resultado da diferenciação social, não a
causa. Quanto à felicidade, ninguém poderia dizer que somos mais felizes do que os homens
que nos precederam. Durkheim naquela época já estava impressionado pelo fenômeno do
suicídio: apresenta a frequência dos suicídios como a melhor prova de que a felicidade não
aumenta com o progresso, nas sociedades modernas. Sugere que os suicídios são mais comuns
hoje do que no passado. Contudo, na falta de estatísticas sobre as sociedades antigas, não
podemos ter certeza disto.
A divisão do trabalho não pode portanto ser explicada pelo enfado, pela busca da
felicidade, pelo aumento dos prazeres, ou pelo desejo de aumentar a produção coletiva. A
divisão do trabalho é um fenômeno social, que só pode ser explicado por outro fenômeno social:
o de uma combinação do volume, densidade material e moral da sociedade.
O volume da sociedade é simplesmente o número dos indivíduos que pertencem a uma
determinada sociedade. Este volume não pode explicar, isoladamente, a diferenciação social.
Numa sociedade numerosa, estabelecida num vasto território, mas constituída pela justaposição
de segmentos e pela aproximação de um grande número de tribos, cada tribo conservando sua
estrutura tradicional, o volume em si mesmo não provocaria a diferenciação.
Para que o volume, isto é, o aumento do número dos indivíduos, se torne uma causa
da diferenciação, é preciso acrescentar a densidade, nos dois sentidos, o material e o moral. A
densidade material é o número dos indivíduos em relação a uma superfície dada do solo. A
densidade moral é a intensidade das comunicações e trocas entre esses indivíduos. Quanto mais
intenso o relacionamento entre os indivíduos, maior a densidade. A diferenciação social resulta
da combinação dos fenômenos do volume e da densidade material e moral.
Para explicar esse mecanismo, Durkheim invoca o conceito da luta pela vida, que
Darwin popularizou na segunda metade do século XIX. Quanto mais numerosos os indivíduos
que procuram viver em conjunto, mais intensa a luta pela vida. A diferenciação social é a
solução pacífica da luta pela vida. Em vez de alguns serem eliminados, para que outros
sobrevivam, como ocorre no reino animal, a diferenciação social permite a um número maior
de indivíduos sobreviver, diferenciando-se. Cada um deixa de estar em competição com todos,
podendo assim ter um papel, e preencher uma função. Deixa de ser necessário eliminar a
maioria dos indivíduos, a partir do momento em que, não sendo eles semelhantes entre si, porém
diferentes, cada um colabora com uma contribuição que lhe é própria para a vida de todos.
Esta explicação está de acordo com o que Durkheim considera uma regra do método
sociológico: a explicação de um fenômeno social por outro fenômeno social e a explicação de
um fenômeno global por outro fenômeno global.
Desde este primeiro trabalho importante, o pensamento de Durkheim se organiza em
torno de algumas ideias essenciais.
A diferenciação social, fenômeno característico das sociedades modernas, é a condição
criadora da liberdade individual. Só numa sociedade onde a consciência coletiva perdeu uma
parte da sua rigidez o indivíduo pode ter uma certa autonomia de julgamento e de ação.
Nessa sociedade individualista, o problema mais importante é o de manter o mínimo
de consciência coletiva, à falta da qual a solidariedade orgânica provocaria a desintegração
social.
O indivíduo é a expressão da coletividade. No sistema de solidariedade mecânica ele
é intercambiável. Numa sociedade arcaica, não seria apropriado chamá-lo de “o mais
insubstituível dos seres” [...]. Mas, mesmo quando se integra numa sociedade onde cada um
pode e quer ser o mais insubstituível dos seres, o indivíduo ainda é a expressão da coletividade.
A estrutura desta impõe a cada um uma responsabilidade própria. Mesmo na sociedade que
permite a cada um ser o que é individualmente, há uma parte, maior do que acreditamos, de
consciência coletiva, presente nas consciências individuais. A sociedade de diferenciação
orgânica não se poderia manter se, fora ou acima do reino contratual, não houvessem
imperativos e interditos, valores e objetos sagrados coletivos, que vinculassem as pessoas ao
todo social.
AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO*

Raymond Aron

No curso da análise dos temas e das ideias fundamentais dos [...] grandes livros de
Durkheim não podemos deixar de notar a semelhança dos métodos utilizados e dos resultados
obtidos. Em [todos eles] o desenvolvimento do pensamento de Durkheim é o mesmo: no ponto
de partida, uma definição do fenômeno; depois, numa segunda fase, a refutação das
interpretações anteriores. Por fim, no ponto de chegada, uma explicação propriamente
sociológica do fenômeno considerado.
A semelhança vai ainda mais longe. [...] As interpretações anteriores, refutadas por
Durkheim, têm a mesma característica: são interpretações individualistas e racionalizantes, tais
como as que encontramos na ciência econômica. Em De la Division du travail social [por
exemplo,] Durkheim afasta a interpretação do progresso no sentido da diferenciação pelos
mecanismos da psicologia individual; demonstra que não se pode explicar a diferenciação social
pelo esforço em aumentar a produtividade, pela busca do prazer ou da felicidade, pelo desejo
de superar o enfado. [...]
[Em todos os] casos, a explicação a que chega é essencialmente sociológica, embora
o adjetivo tenha em cada livro um sentido algo diferente. Em De la Division du travail social a
explicação é sociológica porque propõe a prioridade da sociedade sobre os fenômenos
individuais. Em particular, o acento é posto sobre o volume e a densidade da população como
causas da diferenciação social e da solidariedade orgânica. [...]
Tal como concebida por Durkheim, a sociologia é o estudo dos fatos essencialmente
sociais, e a explicação desses fatos de maneira sociológica.
Les Regles de la méthode sociologique representa a formulação abstrata da prática dos
dois primeiros livros. A obra, que data de 1895, foi concebida quando Durkheim refletia sobre
De la Division du travail social, terminado em 1894 [...].
A concepção da sociologia de Durkheim se baseia em uma teoria do fato social. Seu
objetivo é demonstrar que pode e deve existir uma sociologia objetiva e científica, conforme o
modelo das outras ciências, tendo por objeto o fato social. Para que haja tal sociologia, duas
coisas são necessárias: que seu objeto seja específico, distinguindo-se do objeto das outras
ciências, e que possa ser observado e explicado de modo semelhante ao que acontece com os

*
ARON, Raymond. “Émile Durkheim”. In: As etapas do pensamento sociológico. São Paulo: Martins Fontes,
1993, p.335-345.
fatos observados e explicados pelas outras ciências. Esta dupla exigência leva às duas célebres
fórmulas com que se costuma resumir o pensamento de Durkheim: é preciso considerar os fatos
sociais como coisas; a característica do fato social é que ele exerce uma coerção sobre os
indivíduos.
A primeira fórmula já foi muito discutida [...] e exige um esforço de compreensão. O
ponto de partida é a ideia de que não conhecemos, no sentido científico do termo conhecer, o
que são os fenômenos sociais que nos cercam, no meio dos quais vivemos e, pode-se mesmo
dizer, que vivemos. Não sabemos, de fato, o que é o Estado, a soberania, a liberdade política, a
democracia, o socialismo, o comunismo. Isto não quer dizer que não tenhamos nenhuma ideia
sobre esses fenômenos. Contudo, precisamente porque temos deles uma ideia vaga e confusa é
importante considerar os fatos sociais como coisas, isto é, devemos livrar-nos das pré-noções e
dos preconceitos que nos paralisam quando pretendemos conhecê-los cientificamente. É preciso
observar os fatos sociais do exterior; descobri-los como descobrimos os fatos físicos. Como
temos a ilusão de conhecer as realidades sociais, torna-se importante convencer-nos de que elas
não são conhecidas imediatamente. Por isso Durkheim afirma que é preciso considerar os fatos
sociais como coisas. As coisas são tudo o que nos é dado, tudo o que se oferece (ou antes, se
impõe) à nossa observação.
A fórmula “é preciso considerar os fatos sociais como coisas” nos leva a uma crítica
da economia política, isto é, a uma crítica das discussões abstratas, dos conceitos como o de
valor. Segundo Durkheim, todos esses métodos têm o mesmo defeito fundamental. Partem da
ideia falsa de que podemos compreender os fenômenos sociais a partir da significação que lhes
atribuímos espontaneamente, quando na verdade o sentido verdadeiro desses fenômenos só
pode ser descoberto mediante uma exploração de tipo objetivo e científico.
Passamos, deste ponto, para uma segunda interpretação da fórmula segundo a qual “o
fato social é toda maneira de fazer, suscetível de exercer uma coerção externa sobre o
indivíduo”.
Reconhecemos um fenômeno social na medida em que se impõe ao indivíduo.
Durkheim dá uma série de exemplos, aliás muito variados, que demonstram a pluralidade dos
sentidos que tem, no seu pensamento, o termo coerção. Há coerção quando, numa assembleia
ou numa multidão, um sentimento se impõe a todos, como, por exemplo, quando por reação
coletiva todos riem. Este é um fenômeno tipicamente social, porque tem como apoio e como
sujeito o grupo em seu conjunto, e não um indivíduo em particular. Assim também a moda é
um fenômeno social: cada um se veste de uma certa maneira, num determinado momento,
porque todos se vestem daquele modo. Não é um indivíduo que origina a moda, é a sociedade
que se manifesta por meio de obrigações implícitas e difusas. Durkheim exemplifica também
com as correntes de opinião, que levam ao casamento, ao suicídio, a uma maior ou menor
natalidade, e que qualifica de estados de alma coletivos. Cita, por fim, as instituições da
educação, o direito, as crenças, que têm igualmente como características o fato de serem dados
exteriores aos indivíduos, e que se impõem a todos.
Os fenômenos da multidão, as correntes de opinião, a moralidade, a educação, o direito
e as crenças que os autores alemães chamam de espírito objetivo, tudo isso Durkheim reúne na
mesma categoria, porque lhes reconhece a mesma característica fundamental. São gerais porque
são coletivos; são diferentes nas repercussões que exercem sobre cada indivíduo; têm como
substrato o conjunto da coletividade. Em conseqüência, é legítimo dizer:

Fato social é toda maneira de fazer, fixa ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma
coerção exterior, ou então que é geral em toda a extensão de uma dada sociedade, embora
tendo existência própria, independente das suas manifestações individuais. (Les Regles de la
méthode sociologique, p. 14.)

Estas são as duas proposições que servem de fundamento para a metodologia de


Durkheim: observar os fatos sociais como coisas e reconhecê-los pela coerção que exercem
sobre os indivíduos. Estas duas proposições já foram objeto de discussões intermináveis, as
quais, em grande parte, têm a ver com a ambiguidade dos termos empregados.
[...]
O debate sobre os termos coisa e coerção foi ainda mais vivo porque Durkheim, como
filósofo, é um conceitualista. Tem tendência a considerar os conceitos como realidades ou, pelo
menos, achar que a distinção dos gêneros e das espécies está inscrita na própria realidade. Em
sua teoria sociológica, os problemas de definição e de classificação ocupam um lugar
importante.
Em seus [...] livros [...] Durkheim começa por definir o fenômeno considerado. Para
ele esta operação é essencial, pois se trata de isolar uma categoria de fatos.

Toda investigação científica se relaciona com um grupo determinado de fenômenos


abrangidos numa mesma definição. A primeira tarefa do sociólogo é portanto definir as coisas
que está estudando, para que se possa saber de que se trata, e para que ele o saiba também.
Esta é a condição primordial e mais indispensável de qualquer prova ou verificação. Com
efeito, uma teoria só pode ser controlada se reconhecidos os fatos que ela deve explicar. Além
disso, como é por esta definição inicial que se constitui o objeto da ciência, este variará de
acordo com o modo pelo qual a definição é feita. (Les Regles de la méthode sociologique, p.
34.)
Durkheim está sempre inclinado a pensar que uma vez definida certa categoria de fatos
será possível encontrar para eles uma única explicação. Um efeito determinado provém sempre
da mesma causa. [...]
A regra segundo a qual é preciso chegar a definições é a seguinte: “Jamais se deve
tomar outro objeto de investigação que não seja um grupo de fenômenos definidos previamente
por certas características externas que lhes são comuns, abrangendo na mesma investigação
todos os que respondem a esta definição”. Durkheim comenta assim este preceito: “Por
exemplo: constatamos a existência de um certo número de atos que apresentam uma
característica externa – uma vez realizados, determinam por parte da sociedade uma reação
particular, que chamamos de pena. Reconhecemos assim um grupo sui generis, ao qual
impomos uma rubrica comum; chamamos de crime todo ato punido, e fazemos do crime, assim
definido, o objeto de uma ciência especial, a criminologia”. Portanto, o que caracteriza um
crime é o fato de que suscita por parte da sociedade uma reação chamada sanção, a qual revela
que a consciência coletiva foi ferida pelo ato considerado culpado. Serão crimes todos os atos
que apresentarem esta característica externa de, uma vez realizados, determinarem da parte da
sociedade a reação particular a que chamamos castigo.
[...]
Essa tendência a ver os fatos sociais como suscetíveis de serem classificados em
gêneros e em espécies aparece no capítulo V, dedicado às regras relativas à constituição dos
tipos sociais. A classificação das sociedades, de Durkheim, se baseia no princípio de que o
diferente grau de complexidade é que as diferencia. [...]
[...]
[Outros] sociólogos do século XIX, [como] Augusto Comte e Karl Marx, se
esforçaram por determinar os momentos principais do devenir histórico, e as fases do progresso
intelectual, econômico e social da humanidade. Segundo Durkheim, estas tentativas não levam
a nada. Contudo, é possível fazer uma classificação cientificamente válida dos gêneros e
espécies de sociedades, com base num critério que reflete a estrutura da sociedade considerada:
o número dos segmentos justapostos numa sociedade complexa e o modo de combinação desses
segmentos.
As teorias da definição e classificação dos gêneros e espécies levam à distinção do
normal e do patológico, bem como à teoria da explicação.
A distinção do normal e do patológico, desenvolvida no Capítulo III de Les Regles de
la méthode sociologique, tem um papel importante no pensamento de Durkheim. A meu ver,
esta distinção continuará a ser, até o fim da sua carreira, uma das bases do seu pensamento [...].
A importância desta distinção se relaciona com as intenções de reforma de Durkheim.
Sua vontade de ser um cientista puro não o impedia de afirmar que a sociologia não valeria uma
só hora de trabalho se não permitisse o aperfeiçoamento da sociedade. Tinha a esperança de
poder fundamentar conselhos de ação no estudo objetivo e científico dos fenômenos. A
distinção entre o normal e o patológico é precisamente uma das intermediações entre a
observação dos fatos e os preceitos. Se um fenômeno é normal, não há por que querer eliminá-
lo, mesmo que nos afete moralmente. Mas, se é patológico, temos um argumento científico para
justificar projetos de reforma.
Para Durkheim, um fenômeno é normal quando pode ser encontrado, de modo geral,
numa sociedade de determinado tipo, em certa fase do seu processo de desenvolvimento. O
crime é um fenômeno normal ou, mais exatamente, uma certa taxa de crime é normal. Assim,
define-se a normalidade pela generalidade, mas, como as sociedades são diferentes, é
impossível conhecer a generalidade de modo abstrato e universal. Será considerado normal o
fenômeno que encontrarmos mais frequentemente numa sociedade dada, num certo momento
do seu desenvolvimento. Esta definição da normalidade não exclui que, subsidiariamente, se
procure explicar a generalidade, isto é, se faça um esforço para descobrir a causa que determina
a frequência do fenômeno considerado. Mas o sinal primeiro e decisivo da normalidade de um
fenômeno é simplesmente sua frequência.
Assim como a normalidade é definida pela generalidade, a explicação, segundo
Durkheim, é definida pela causa. Explicar um fenômeno social é procurar sua causa eficiente,
identificar o fenômeno antecedente que o produz, necessariamente. De forma subsidiária, uma
vez estabelecida a causa de um fenômeno pode-se procurar igualmente a função que exerce, a
sua utilidade. Mas a explicação funcionalista, apresentando um caráter teleológico, deve estar
subordinada à procura da causa eficiente, pois “fazer ver a utilidade de um fato não é o mesmo
que explicar como aconteceu, nem como ele é o que é. Suas utilizações pressupõem
propriedades específicas que o caracterizam, mas não o criam. A necessidade que temos das
coisas não pode fazer com que elas sejam de uma maneira ou de outra; por conseguinte, não é
esta necessidade que pode retirá-las do nada e conferir-lhes existência”. (Les RegIes de la
méthode sociologique, p. 90.)
As causas dos fenômenos sociais devem ser procuradas no meio social. É a estrutura
da sociedade considerada que constitui a causa dos fenômenos que a sociologia quer explicar.
“É na natureza da própria sociedade que devemos procurar a explicação da vida social.” (p.
101.) Ou ainda: “A origem primordial de todo processo social de alguma importância deve ser
procurada na constituição do meio social interno”. (p. 111.)
A explicação dos fenômenos pelo meio social se opõe à explicação histórica segundo
a qual a causa de um fenômeno deveria ser procurada no passado, isto é, no estado anterior da
sociedade. Durkheim considera que a explicação histórica não é uma verdadeira explicação
científica. Pensa que se podem explicar os fenômenos sociais pelas condições concomitantes.
Chega mesmo a dizer que se o meio social não explica os fenômenos observados num
determinado momento da história, é impossível estabelecer uma relação de causalidade. De
certa maneira, a causalidade eficiente do meio social representa, para Durkheim, a condição da
existência da sociologia científica. Esta consiste em estudar os fatos do exterior, em definir
rigorosamente conceitos graças aos quais é possível isolar categorias de fenômenos, classificar
as sociedades em gêneros e espécies e, por fim, dentro de uma dada sociedade, explicar um fato
particular pelo meio social.
A prova da explicação é obtida pelo emprego do método das variações concomitantes:

Só temos um meio de demonstrar que um fenômeno é a causa de um outro: comparar os casos


em que estão simultaneamente presentes ou ausentes e verificar se as variações apresentadas
nestas diferentes combinações de circunstâncias revelam que um depende do outro. Quando
podem ser provocados artificialmente, de acordo com a vontade do observador, o método é a
experimentação propriamente dita. Quando, ao contrário, a produção dos fatos não está à nossa
disposição, e só podemos abordá-los tal como ocorrem espontaneamente, o método utilizado
é o da experimentação indireta, ou método comparativo. (p. 124.)

[...] O método das variações concomitantes pode e deve comportar a comparação de


um mesmo fenômeno [...] em sociedades pertencentes ou não à mesma espécie. O objetivo é
acompanhar o desenvolvimento integral de um fenômeno dado [...] através de todas as espécies
sociais.

Só se pode explicar um fato social de alguma complexidade acompanhando seu


desenvolvimento integral, através de todas as espécies sociais. A sociologia comparada não é
um ramo especial da sociologia: é a própria sociologia, quando esta deixa de ser puramente
descritiva e aspira a explicar os fatos. (p. 137.)

[...] Idealmente, seria possível conceber uma teoria geral da sociedade cujo princípio
fosse uma filosofia conceitualista comportando uma teoria das categorias de fatos sociais, uma
concepção dos gêneros e das espécies das sociedades e, finalmente, uma doutrina da explicação
que visse no meio social a causa determinante dos fatos sociais.
Esta teoria da sociologia científica se fundamenta numa afirmativa central do
pensamento de Durkheim: a sociedade é uma realidade de natureza diferente das realidades
individuais. Todo fato social tem como causa um outro fato social, e nunca um fato da
psicologia individual.

Dir-se-á porém que, como a sociedade é formada exclusivamente de indivíduos, a origem


primordial dos fenômenos sociológicos não pode deixar de ser psicológica. Com este
raciocínio pode-se com igual facilidade afirmar que os fenômenos biológicos são explicáveis,
analiticamente, pelos fenômenos inorgânicos. Com efeito, é certo que na célula viva só há
moléculas de matéria bruta. Contudo, elas estão associadas, e é esta associação que causa os
novos fenômenos que caracterizam a vida, e que não podemos localizar, nem mesmo em
germe, em qualquer dos elementos associados. É que o todo não é idêntico à soma de suas
partes; o todo é alguma coisa diferente e suas propriedades não são iguais às das partes que o
compõem. A associação não é, portanto, como já se pensou algumas vezes, um fenômeno em
si mesmo infecundo, que consista apenas em relações externas de fatos conhecidos e
propriedades identificadas. Não será ela, ao contrário, a fonte de todas as atividades que se
produziram sucessivamente durante a evolução geral das coisas? Que diferença há entre os
organismos inferiores e os outros, entre o ser vivo organizado e o simples plastídio, entre este
e as moléculas inorgânicas que o compõem, a não ser diferenças de associação? Em última
análise, todos estes seres se compõem de elementos da mesma natureza; elementos que se
encontram às vezes justapostos, às vezes associados de uma maneira, outras vezes de modo
diferente. Temos mesmo o direito de perguntar se esta lei não penetra no mundo mineral, e se
as diferenças que separam os corpos inorgânicos não têm a mesma origem. Em virtude deste
princípio, a sociedade não é mera soma de indivíduos, mas o sistema formado pela sua
associação representa uma realidade específica, com características próprias. Sem dúvida,
nada pode haver de coletivo sem consciências particulares. Esta condição necessária, porém,
não é suficiente. É preciso, além disso, que as consciências se associem e se combinem, e se
combinem de determinada maneira. Dessa combinação resulta a vida social; assim, é essa
combinação que a explica. Juntando-se, penetrando-se, fundindo-se, as almas individuais dão
vida a um ser, ser psíquico se preferirmos, que constitui porém uma individualidade psíquica
de gênero novo. É portanto na natureza desta individualidade, e não na das unidades que a
compõem, que é preciso ir buscar as causas próximas e determinantes dos fatos que se
produzem. O grupo pensa, sente, age de modo completamente diferente daquilo que fariam os
membros, se estes estivessem isolados. Assim, se partirmos destes últimos não poderemos
compreender o que acontece no grupo. Numa palavra, há, entre a psicologia e a sociologia, a
mesma solução de continuidade que encontramos entre a biologia e as ciências psicoquímicas.
(Les RegIes de la méthode sociologique, p. 102-103.)

Este é o centro do pensamento metodológico de Durkheim. Para ele o fato social é


específico, provocado pela associação dos indivíduos, e diferente, pela sua natureza, do que se
passa no nível das consciências individuais. Os fatos sociais podem ser objeto de uma ciência
geral porque se distribuem em categorias, e os próprios conjuntos sociais podem ser
classificados em gêneros e espécies.
A EDUCAÇÃO, A SUA NATUREZA E O SEU PAPEL*

Émile Durkheim

1. As definições da educação: exame crítico

A palavra educação foi por vezes empregue num sentido muito lato para designar o
conjunto de influências que a natureza ou os outros homens podem exercer, seja sobre a nossa
inteligência, seja sobre a nossa vontade. Abarca, diz Stuart Mill, “tudo aquilo que nós próprios
fazemos e tudo o que os outros fazem por nós com o objetivo de nos aproximar da perfeição da
nossa natureza. Na sua acepção mais lata, abrange mesmo os efeitos indiretos produzidos sobre
o carácter e sobre as faculdades do homem por coisas cujo objetivo é muito diferente: pelas
leis, pelas formas de governo, pelas artes industriais, e até mesmo por fatos físicos,
independentes da vontade do homem, como o clima, o sol e a posição local”. Mas esta definição
envolve fatos completamente díspares e que não podemos reunir sob um mesmo vocábulo sem
nos expormos a confusões. A ação das coisas sobre os homens é muito diferente, pelos seus
processos e pelos seus resultados, daquela que é proveniente dos próprios homens; e a ação dos
contemporâneos sobre os seus contemporâneos difere daquela que os adultos exercem sobre os
mais jovens. É apenas esta última que nos interessa aqui e, por conseguinte, é para ela que
convém reservar a palavra educação.
Mas em que consiste esta ação sui generis? Respostas muito diferentes têm sido dadas
a esta pergunta; podem resumir-se em dois tipos principais. Segundo Kant, “o objetivo da
educação é desenvolver em cada indivíduo toda a perfeição de que ele é capaz”. Mas que se
deve entender por perfeição? É, disse-se frequentemente, o desenvolvimento harmônico de
todas as faculdades humanas. Levar ao ponto mais elevado que possa ser atingido por todas as
potencialidades que temos em nós, realizá-las tão completamente quanto possível, mas sem que
se prejudiquem umas às outras, não é um ideal acima do qual não poderá haver outro?
Mas se, em certa medida, este desenvolvimento harmonioso é, com efeito, necessário
e desejável, não é integralmente realizável; pois que se encontra em contradição com uma outra
regra da conduta humana que não é menos imperiosa: aquela que estabelece que nos
consagremos a uma tarefa especial e restrita. Não podemos e não devemos dedicar-nos todos
ao mesmo gênero de vida; temos, segundo as nossas aptidões, funções diferentes a

*
DURKHEIM, Émile. Educação e Sociologia. Lisboa: Edições 70, 2011, p.43-70.
desempenhar, e devemos colocar-nos em harmonia com aquela que nos incumbe. Não somos
todos feitos para refletir, é necessário homens de sensibilidade e de ação. Por outro lado, é
necessário que haja quem tenha a tarefa de pensar. Ora, o pensamento só se pode desenvolver
quando se desliga do movimento, quando se concentra em si mesmo, quando é afastada da ação
exterior a pessoa que a ele se entrega totalmente. Daí uma primeira diferenciação que é
acompanhada de uma ruptura de equilíbrio. E a ação, por seu lado, como o pensamento, é capaz
de tomar uma grande quantidade de formas diferentes e especiais. Sem dúvida, esta
especialização não exclui um certo fundo comum, e, por conseguinte, um certo equilíbrio das
funções tanto orgânicas quanto psíquicas, sem o qual a saúde do indivíduo seria comprometida,
ao mesmo tempo que a coesão social. Mas nem por isso se pode inferir que uma harmonia
perfeita possa ser apresentada como o fim último da conduta e da educação.
Ainda menos satisfatória é a definição utilitarista segundo a qual a educação teria por
objeto “fazer do indivíduo um instrumento de felicidade para si mesmo e para os seus
semelhantes” (James Mill), pois que a felicidade é uma coisa essencialmente subjetiva que cada
um aprecia à sua maneira. Uma tal fórmula deixa, pois, indeterminado o fim da educação, e,
por conseguinte, a educação em si mesma, uma vez que a abandona à arbitrariedade individual.
Spencer, é verdade, tentou definir objetivamente a felicidade. Para ele, as condições da
felicidade são as da vida. A felicidade completa é a vida completa. Mas que é que se deve
entender pela vida? Se se trata unicamente da vida física, pode dizer-se que sem isso ela seria
impossível; implica, com efeito, um certo equilíbrio entre o organismo e o seu meio, e, pois,
que os dois termos relacionados são dados definíveis, assim deve ser também para a sua relação.
Mas apenas podemos exprimir desse modo as necessidades vitais mais imediatas. Ora, para o
homem, e sobretudo para o homem de hoje, esta vida não é a vida. Pedimos mais à vida que o
mero funcionamento o mais normal possível dos nossos órgãos. Um espírito culto prefere não
viver a renunciar aos prazeres da inteligência. Mesmo do ponto de vista meramente material,
tudo o que ultrapassa o estritamente necessário escapa a qualquer determinação. O standard of
life, o estilo de vida, como dizem os ingleses, o mínimo abaixo do qual não nos parece que se
possa consentir descer, varia infinitamente segundo as condições, os meios e os tempos. O que
considerávamos ontem suficiente, parece-nos hoje abaixo da dignidade humana, tal como a
sentimos presentemente, e tudo leva a crer que as nossas exigências neste ponto terão tendência
a crescer cada vez mais.
Tocamos aqui no erro geral em que incorrem todas estas definições. Elas partem do
postulado que existe uma educação ideal, perfeita, válida para todos os homens indistintamente;
e é esta educação universal e única que o teórico se esforça por definir. Mas a verdade é que,
se se considerar a história, não se encontra nada que confirme tal hipótese. A educação variou
infinitamente conforme os tempos e as regiões. Nas cidades gregas e latinas, a educação
preparava o indivíduo para se subordinar cegamente à coletividade, tomar-se a coisa da
sociedade. Hoje, esforça-se por construir uma personalidade autônoma. Em Atenas, procurava-
se formar espíritos delicados, avisados, subtis, animados pela moderação e pela harmonia,
capazes de apreciar o belo e as alegrias da pura especulação; em Roma, queria-se antes de mais
que as crianças se tomassem homens de ação, apaixonados pela glória militar, indiferentes ao
que tinha a ver com as letras e com as artes. Na Idade Média a educação era antes de mais cristã;
no Renascimento, tomou um caráter mais laico e mais literário; hoje a ciência tende a tomar o
lugar outrora ocupado pela arte. Diremos que o fato não é o ideal; que se a educação variou, é
porque os homens se enganaram acerca do que ela devia ser? Mas se a educação romana tivesse
reproduzido um individualismo comparável ao nosso, a cidade romana não teria podido manter-
se; a civilização latina não teria podido constituir-se nem, por conseguinte, a nossa civilização
moderna, que é, em parte, sua descendente. As sociedades cristãs da Idade Média não teriam
podido sobreviver se tivessem dado ao pensamento racional o lugar que hoje lhe é dado. Há
pois necessidades inelutáveis de que é impossível abstrairmo-nos. A quem pode interessar
imaginar uma educação que seria mortal para a sociedade que a colocasse em prática?
Este postulado tão contestável contém em si mesmo um erro geral. Se se começar por
questionar deste modo qual deve ser a educação ideal, abstraindo completamente do tempo e
do lugar, é porque se admite implicitamente que um sistema educativo não tem nada de real em
si próprio. Não se vê aí um conjunto de práticas e de instituições que se organizaram lentamente
ao longo do tempo, que são solidárias com todas as outras instituições sociais e que as
exprimem, que, por consequência, não podem ser mudadas mais facilmente que a própria
estrutura da sociedade. Parece, sim, um conjunto de conceitos realizados; desta forma parece
depender apenas da lógica. Imagina-se que os homens de qualquer época o organizam
voluntariamente para realizar um fim determinado; que, se esta organização não é a mesma em
todo o lado, é porque se enganaram na natureza quer do fim pretendido, quer dos meios que
permitem alcançá-la. Deste modo, as educações do passado aparecem como uns tantos erros,
totais ou parciais. Não existem, pois, quaisquer dúvidas: não nos devemos solidarizar com as
falhas de observação ou de lógica que os nossos antepassados possam ter feito; mas podemos e
devemos colocar-nos o problema, sem nos ocuparmos das soluções que lhe foram dadas, ou
seja, deixando de lado tudo o que foi, apenas nos devemos interrogar sobre o que devia ter sido.
Os ensinamentos da história podem quando muito servir para nos evitar reincidir nos erros já
cometidos.
Mas, com efeito, cada sociedade, considerada num momento determinado do seu
desenvolvimento, tem um sistema de educação que se impõe aos indivíduos com uma força
geralmente irresistível. É inútil pensarmos que podemos criar os nossos filhos como queremos.
Há costumes com os quais temos de nos conformar; se os infringimos, eles vingam-se nos
nossos filhos. Estes, uma vez adultos, não estarão em condições de viver no meio dos seus
contemporâneos, com os quais não se encontram em harmonia. Quer tenham sido criados com
ideias muito arcaicas ou muito prematuras, não importa; num caso como noutro, não são do seu
tempo e, por conseguinte, não estão em condições de vida normal. Há, pois, em cada momento
do tempo, um tipo regulador de educação de que não nos podemos desligar sem chocar com as
vivas resistências que reprimem as veleidades dos dissidentes.
Ora, os costumes e as ideias que o determinam, não fomos nós, individualmente, que
os fizemos. São o produto da vida em comum e exprimem as suas necessidades. São até, na
maior parte, obra das gerações anteriores. Todo o passado da humanidade contribuiu para fazer
este conjunto de máximas que dirigem a educação atual; toda a nossa história lhe deixou traços,
e até mesmo a história dos povos que nos precederam. É assim que os organismos superiores
trazem em si como que o eco de toda a evolução biológica de que são o resultado. Quando
estudamos historicamente a maneira como são formados e desenvolvidos os sistemas de
educação, apercebemo-nos do que eles dependem da religião, da organização política, do grau
de desenvolvimento das ciências, do estado da indústria etc. Se os desligamos de todas estas
causas históricas, tornam-se incompreensíveis. Como é que, desde logo, o indivíduo pode
pretender reconstruir, através do único esforço da sua reflexão privada, o que não é obra do
pensamento individual? Não se encontra fade a uma tábua rasa na qual pode edificar o que quer,
mas sim frente a realidades existentes que não pode criar, nem destruir, nem transformar à
vontade. Não pode agir sobre elas senão na medida em que aprendeu a conhecê-las, a saber
qual a sua natureza e as condições de que dependem; e não pode sabê-lo sem ir à sua escola,
começando por as observar, como o físico observa a matéria bruta e o biólogo os corpos vivos.
Aliás, como proceder de outro modo? Quando queremos determinar apenas pela
dialética o que deve ser a educação, devemos começar por verificar que fim deve ter. Mas o
que é que nos permite afirmar que a educação tem determinados fins mais do que outros? Não
sabemos a priori qual é a função da respiração ou da circulação no ser vivo. Por que privilégio
estaríamos mais bem esclarecidos no que diz respeito à função educativa? Responderão que,
evidentemente, ela tem por função instruir as crianças. Mas isso é apenas colocar o problema
em termos diferentes; não é resolvê-lo. É preciso dizer em que consiste esta instrução, para que
é que tende, a que necessidades humanas responde. Ora, apenas se pode responder a estas
questões começando por observar em que é que consistiu, a que necessidades respondeu no
passado. Assim, quanto mais não seja para constituir a noção preliminar de educação, para
determinar a coisa que assim denominamos, a observação histórica aparece como
indispensável.

2. Definição da educação

Para definir a educação é necessário pois considerar os sistemas educativos que


existem ou que existiram, aproximá-los, destrinçar as características que lhes são comuns. O
conjunto destas características constituirá a definição que procuramos.
Determinámos já, de passagem, dois elementos. Para que haja educação, é necessário
termos em presença uma geração de adultos e uma geração de jovens, e uma ação exercida
pelos primeiros sobre os segundos. Resta-nos definir a natureza desta ação.
Não há sociedade onde o sistema educativo não apresente um duplo aspecto: é, ao
mesmo tempo, uno e múltiplo.
É múltiplo. Com efeito, num certo sentido, podemos dizer que há tantos tipos
diferentes de educação como meios diferentes nessa sociedade. É ela formada por castas? A
educação varia de uma casta para a outra; a dos patrícios não era a dos plebeus; a do Brâmane
não era a do Xudra. Do mesmo modo, na Idade Média, que diferença entre a cultura que recebia
o jovem pajem, instruído em todas as artes da cavalaria, e a do aldeão que ia aprender à escola
da sua paróquia alguns magros elementos de cálculo, de canto e de gramática! Não vemos nós
ainda hoje a educação variar com as classes sociais ou mesmo com os habitats? A da cidade
não é a do campo, a do burguês não é a do operário. Dir-se-á que esta organização não é
moralmente justificável, que apenas podemos ver aí uma sobrevivência destinada a
desaparecer? A tese é fácil de defender. É evidente que a educação das nossas crianças não deve
depender do acaso que as faz nascer aqui ou ali, de uns pais em vez de outros. Mas então,
mesmo que a consciência moral do nosso tempo tivesse recebido neste ponto a satisfação que
espera, a educação não se tornaria por isso mais uniforme. Então, mesmo que o percurso de
uma criança não fosse, em grande parte, predeterminado por uma hereditariedade cega, a
diversidade moral das profissões não deixaria de arrastar consigo uma grande diversidade
pedagógica. Cada profissão, com efeito, constitui um meio sui generis que reclama aptidões
particulares e conhecimentos especiais, onde reinam certas ideias, certos usos, certas maneiras
de ver as coisas; e como a criança deve ser preparada tendo em vista a função que será chamada
a desempenhar, a educação, a partir de uma certa idade, não pode mais continuar a ser a mesma
para todos os assuntos a que se aplica. É por isso que vemos que, em todos os países civilizados,
tende cada vez mais a diversificar-se e a especializar-se; e esta especialização torna-se cada vez
mais precoce. A heterogeneidade que assim se produz não assenta, como aquela de que
acabamos de constatar a existência, em desigualdades injustas; mas não é menor. Para encontrar
uma educação absolutamente homogênea e igualitária, será necessário retroceder até às
sociedades pré-históricas, no seio das quais não existe nenhuma diferenciação; e mesmo estes
tipos de sociedades não representam mais do que um momento lógico na história da
humanidade.
Mas, qualquer que seja a importância destas educações especiais, elas não são toda a
educação. Podemos mesmo dizer que não se bastam a si mesmas; onde quer que as observemos,
não divergem umas das outras senão a partir de um certo ponto aquém do qual se confundem.
Repousam todas numa base comum. Não há povo onde não exista um certo número de ideias,
de sentimentos e de práticas que a educação inculca a todas as crianças indistintamente, seja
qual for a categoria social a que pertençam. Da mesma forma, quando a sociedade está dividida
em castas fechadas entre si, há sempre uma religião comum a todas, e, por conseguinte, os
princípios da cultura religiosa, que é então fundamental, são os mesmos para o entendimento
de toda a população. Se cada casta, cada família, tem os seus deuses especiais, há divindades
gerais que são reconhecidas por todos e que todas as crianças aprendem a adorar. E como estas
divindades encarnam e personificam certos sentimentos, certas maneiras de conceber o mundo
e a vida, não se pode ser iniciado no seu culto sem adquirir, da mesma forma, toda uma série
de hábitos mentais que ultrapassam a esfera da vida puramente religiosa. Da mesma forma, na
Idade Média, servos, aldeões, burgueses e nobres recebiam igualmente uma mesma educação
cristã. Se é assim em sociedades onde a diversidade intelectual e moral atinge este grau de
contraste, com quanto mais razão o é nos povos mais avançados onde as classes, ainda que
permaneçam distintas, são, no entanto, separadas por um abismo menos profundo! E onde estes
elementos comuns de toda uma educação não se exprimem sob a forma de símbolos religiosos,
não deixam, todavia, de existir. Ao longo da nossa história, constituiu-se todo um conjunto de
ideias acerca da natureza humana, acerca da importância respectiva das nossas diferentes
faculdades, acerca do direito e do dever, acerca da sociedade, do indivíduo, do progresso, da
ciência, da arte etc., que estão na própria base do nosso espírito nacional; toda a educação, tanto
a do rico como a do pobre, aquela que conduz às carreiras liberais como a que prepara para as
funções industriais, tem por objeto fixá-las nas consciências.
Resulta destes fatos que cada sociedade tem um certo ideal de homem, do que ele deve
ser tanto do ponto de vista intelectual, como do físico ou do moral; que este ideal é, em certa
medida, o mesmo para todos os cidadãos; que a partir de um certo ponto se diferencia consoante
os meios particulares que cada sociedade compreende no seu seio. É este ideal, ao mesmo tempo
uno e diverso, que é o polo da educação. Ela tem, pois, por função suscitar na criança: 1°. Um
certo número de estados físicos e mentais que a sociedade à qual pertence considera não
deverem estar ausentes de nenhum dos seus membros; 2º. Certos estados físicos e mentais que
determinado grupo social (casta, classe, família, profissão) considera igualmente que se devem
encontrar em todos aqueles que o formam. Assim, é a sociedade, no seu conjunto, e cada meio
social particular, que determinam este ideal que a educação realiza. A sociedade só pode
subsistir se existir entre os seus membros uma homogeneidade suficiente; a educação perpetua
e reforça esta homogeneidade fixando com antecedência na alma da criança as similitudes
essenciais que a vida coletiva exige. Mas, por outro lado, sem uma certa diversidade, qualquer
cooperação será impossível: a educação assegura a persistência desta diversidade necessária ao
diversificar-se e especializar-se ela própria. Se a sociedade chegou a um grau de
desenvolvimento em que as antigas divisões em castas e em classes não podem mais manter-
se, prescreverá uma educação mais una na sua base. Se, no mesmo momento, o trabalho está
mais diversificado, provocará nas crianças, sobre um primeiro fundo de ideias e de sentimentos
comuns, uma mais rica diversidade de aptidões profissionais. Se vive em estado de guerra com
as sociedades envolventes, esforça-se por formar os espíritos com base num modelo fortemente
nacionalista; se a concorrência internacional toma uma forma mais pacífica, o tipo de educação
que procura realizar é mais geral e mais humano. A educação não é pois para ela mais que o
meio pelo qual prepara no coração das crianças as condições essenciais para a sua própria
existência. Veremos adiante como é que o próprio indivíduo tem interesse em se submeter a
estas exigências.
Chegamos pois à fórmula seguinte: A educação é a ação exercida pelas gerações
adultas sobre aquelas que ainda não estão maduras para a vida social. Tem por objeto suscitar
e desenvolver na criança um certo número de estados físicos, intelectuais e morais que lhe
exigem a sociedade política no seu conjunto e o meio ao qual se destina particularmente.

3. Consequência da definição precedente: carácter social da educação

Resulta da definição precedente que a educação consiste numa socialização metódica


da jovem geração. Em cada um de nós, podemos dizê-lo, existem dois seres que, apesar de
apenas poderem ser separáveis por abstração, não deixam de ser distintos. Um é feito de todos
os estados mentais que apenas se ligam a nós mesmos e aos acontecimentos da nossa vida
pessoal: é o que podemos chamar o ser individual. O outro é um sistema de ideias, de
sentimentos e de hábitos que exprimem em nós, não a nossa personalidade, mas o grupo ou os
grupos diferentes de que fazemos parte: as crenças religiosas, as crenças e as práticas morais,
as tradições nacionais ou profissionais, as opiniões coletivas de todo o gênero. O seu conjunto
forma o ser social. Constituir este ser em cada um de nós, tal é o fim da educação.
Assim se mostra, aliás, a importância do seu papel e a fecundidade da sua ação. Com
efeito, este ser social não só não surgiu completo na constituição primitiva do homem; mas
também não resultou de um desenvolvimento espontâneo. Espontaneamente, o homem não
estava inclinado a submeter-se a uma autoridade política, a respeitar uma disciplina moral, a
devotar-se e sacrificar-se. Não havia nada na nossa natureza congênita que nos predispusesse
necessariamente a tornarmo-nos servidores de divindades, emblemas simbólicos da sociedade,
a prestar-lhes um culto, a privarmo-nos para as honrar. Foi a própria sociedade que, à medida
que se foi formando e consolidando, extraiu do seu próprio seio estas grandes forças morais
diante das quais o homem sentiu a sua inferioridade. Ora, se nos abstrairmos das vagas e incertas
tendências que podem ser devidas à hereditariedade, a criança, ao entrar na vida, apenas leva
consigo a sua natureza de indivíduo. A sociedade encontra-se, pois, a cada nova geração, em
presença de uma tábua quase rasa sobre a qual é preciso construir tudo de novo. É preciso que,
pelas vias mais rápidas, ao ser egoísta e a-social que acaba de nascer, ela acrescente outra, capaz
de levar uma vida moral e social. Eis a obra da educação, e apercebemo-nos de toda a sua
grandeza. Ela não se limita a desenvolver o organismo individual no sentido marcado pela sua
natureza, a tornar aparentes as potencialidades escondidas que só pedem para ser reveladas. Ela
cria no homem um novo ser.
Esta virtude criadora é, aliás, um privilégio especial da educação humana. É
completamente diferente aquela que recebem os animais, se podemos aplicar este nome ao
treino progressivo a que são submetidos por parte dos seus pais. Pode apressar o
desenvolvimento de certos instintos que estão adormecidos no animal; mas não o inicia numa
vida nova. Facilita o jogo das funções naturais; mas não cria nada. Instruído pela sua mãe, o
filhote aprende mais rapidamente a voar ou a fazer o seu ninho; mas não aprende quase nada
com os seus pais que não pudesse descobrir pela sua experiência pessoal. É que os animais ou
vivem fora de qualquer estado social ou formam sociedades muito simples, que funcionam
graças a mecanismos instintivos, que cada indivíduo traz em si, completamente constituídos,
desde o seu nascimento. A educação não pode, pois, acrescentar nada de essencial à natureza,
uma vez que esta é suficiente para tudo, para a vida do grupo como para a do indivíduo. Pelo
contrário, no homem, as aptidões de todo o gênero que a vida social pressupõe são muito mais
complexas para se poderem encarnar, de qualquer maneira, nos nossos tecidos, e
materializarem-se sob a forma de predisposições orgânicas. Daqui se depreende que elas não
se podem transmitir de uma geração para outra através da hereditariedade. É pela educação que
se faz a transmissão.
Todavia, dir-se-á que, se é possível conceber, com efeito, que as qualidades
propriamente morais, porque impõem privações ao indivíduo, porque constrangem os seus
movimentos naturais, apenas podem ser suscitadas em nós por uma ação vinda de fora, não há
também outras que todo o homem está interessado em adquirir e procura espontaneamente?
Tais são as qualidades diversas da inteligência que lhe permitem apropriar melhor a sua conduta
à natureza das coisas. Tais são também as qualidades físicas, e tudo o que contribui para o vigor
e para a saúde do organismo. Para aquelas, ao menos, parece que a educação, desenvolvendo-
as, não faz mais do que avançar adiante do próprio desenvolvimento da natureza, levar o
indivíduo a um estado de perfeição relativa em direção à qual tende por si próprio, ainda que lá
possa chegar mais rapidamente graças à colaboração da sociedade.
Mas o que demonstra bem, apesar das aparências, que aqui como noutro ponto, a
educação responde antes de mais às necessidades sociais, é que há sociedades onde estas
qualidades não foram minimamente cultivadas, e que em todo o caso foram entendidas muito
diferentemente consoante as sociedades. Seria necessário que todas as vantagens de uma sólida
cultura intelectual tivessem sido reconhecidas por todos os povos. A ciência, o espírito crítico,
que hoje colocamos tão alto, foram durante muito tempo olhados com suspeição. Não
conhecemos uma grande doutrina que proclama felizes os pobres de espírito? Devemos
acautelar-nos e não acreditar que esta indiferença pelo saber tenha sido artificialmente imposta
aos homens violando a sua natureza. Eles não possuem por si próprios o apetite instintivo de
ciência que frequente e arbitrariamente lhes atribuem. Apenas desejam a ciência na medida em
que a experiência lhes ensinou que não podem passar sem ela. Ora, no que diz respeito ao
aperfeiçoamento da sua vida individual, só têm de o fazer. Como já dizia Rousseau, para
satisfazer as necessidades vitais, a sensação, a experiência e o instinto poderiam ser suficientes
como o são para o animal. Se o homem não tivesse conhecido outras necessidades para além
daquelas, muito simples, que têm as suas raízes na constituição individual, não teria procurado
a ciência, tanto mais que ela só foi adquirida após laboriosos e dolorosos esforços. Só conheceu
a sede do saber quando a sociedade a despertou nele, e a própria sociedade só a despertou
quando ela própria sentiu a sua necessidade. Esse momento chegou quando a vida social, sob
todas as suas formas, se tornou demasiado complexa para poder funcionar de outro modo que
não baseando-se no pensamento refletido, quer dizer, no pensamento iluminado pela ciência.
Então, a cultura científica tornou-se indispensável, e é por isso que a sociedade a reclama dos
seus membros e lhe impõe como um dever. Mas, na origem, enquanto que a organização social
era muito simples, muito pouco variada, sempre igual a si própria, a tradição cega bastava,
como o instinto ao animal. Portanto, o pensamento e o livre-arbítrio eram inúteis e mesmo
perigosos, pois só serviam para ameaçar a tradição. Por isso foram proscritos.
O mesmo se passou em relação às qualidades físicas. Que o estado do meio social
incline a consciência pública para o ascetismo, e a educação física será relegada para segundo
plano. É um pouco o que aconteceu nas escolas da Idade Média; e este ascetismo era necessário,
pois a única maneira de se adaptar à rudeza daqueles tempos difíceis era apreciá-la. Da mesma
forma, consoante a corrente de opinião, esta mesma educação será entendida nos sentidos mais
diversos. Em Esparta, tinha sobretudo por objeto endurecer os membros até à fadiga; em Atenas
era um meio de fazer corpos belos à vista; no tempo dos cavaleiros, pedia-se lhe que formasse
guerreiros ágeis e submissos; nos nossos dias, não tem mais do que um fim higiênico, e
preocupa-se principalmente em conter os efeitos perigosos de uma cultura intelectual muito
intensa. Assim, mesmo as qualidades que parecem, à primeira vista, tão espontaneamente
desejáveis, apenas são procuradas pelo indivíduo quando a sociedade o convida, e este procura-
as da maneira que ela lhe prescreve.
Estamos assim em condições de responder a uma questão que se sobrepõe a todas as
precedentes. Ao demonstrarmos o aperfeiçoamento da sociedade, de acordo com as
necessidades, os indivíduos parece que sofreriam dessa forma uma insuportável tirania. Mas,
na realidade, eles próprios estão interessados nessa submissão; pois o ser novo que a ação
coletiva, por via da educação, edifica assim em cada um de nós, representa o que há de melhor
em nós, o que há, em nós de verdadeiramente humano. O homem, com efeito, só é um homem
porque vive em sociedade. É difícil, no decurso de um artigo, demonstrar com rigor uma
proposição tão geral e tão importante, e que resume os trabalhos da sociologia contemporânea.
Mas, antes de mais, podemos dizer que é cada vez menos contestada. Até porque não é
impossível lembrar sumariamente os factos que a justificam.
Para começar, se há hoje um fato historicamente estabelecido, é que a moral está
estreitamente relacionada com a natureza das sociedades, pois que, como demonstramos de
passagem, ela muda quando as sociedades mudam. Quer dizer que resulta da vida em comum.
É a sociedade, com efeito, que nos extrai de nós mesmos, que nos obriga a contar com outros
interesses além·dos nossos, é ela que nos ensinou a dominar as nossas paixões, os nossos
instintos, a conceder-lhe a autoridade, a privarmo-nos, a sacrificarmo-nos, a subordinar os
nossos objetivos pessoais a objetivos mais elevados. Todo o sistema de representação que
mantém em nós a ideia e o sentimento da regra, da disciplina, tanto interna como externa, é a
sociedade que o instituiu nas nossas consciências. É assim que adquirimos esta potencialidade
de resistirmos a nós próprios, este domínio sobre as nossas tendências que é um dos traços
distintivos da fisionomia humana e que está tanto mais desenvolvido quanto nós mais
plenamente somos homens.
Não devemos menos à sociedade do ponto de vista intelectual. É a ciência que elabora
as noções cardinais que dominam o nosso pensamento: noções de causa, de leis, de espaço, de
número, noções dos corpos, da vida, da consciência, da sociedade etc. Todas estas ideias
fundamentais estão perpetuamente em evolução: é que elas são o resumo, o resultado de todo o
trabalho científico, longe de serem o seu ponto de partida como acreditava Pestalozzi. Não
representamos hoje o homem, a natureza, as causas, o próprio espaço, como eram representados
na Idade Média; é que os nossos conhecimentos e os nossos métodos científicos já não são os
mesmos. Ora, a ciência é uma obra coletiva, pois que supõe uma vasta cooperação de todos os
sábios, não só de uma mesma época, mas de todas as épocas sucessivas da história. – Antes que
as ciências fossem constituídas, a religião executava o mesmo ofício; pois que toda a mitologia
consiste numa representação, já muito elaborada, do homem e do universo. A ciência, aliás, foi
a herdeira da religião. Ora, uma religião é uma instituição social. – Ao aprender uma língua,
aprendemos todo um sistema de ideias, distintas e classificadas, e herdamos todo o trabalho de
onde saíram essas classificações que resumem séculos de experiências. Mas há mais: sem a
linguagem, não teríamos, Por assim dizer, ideias gerais; pois é a palavra que, fixando-os, dá aos
conceitos uma consistência suficiente para que possam ser manuseados comodamente pelo
espírito. Foi, pois, a linguagem que nos permitiu elevarmo-nos acima da mera sensação; e não
é necessário demonstrar que a linguagem é, em primeiro lugar, uma coisa social.
Vemos por estes exemplos ao que se reduziria o homem se lhe retirássemos tudo o que
contém da sociedade: cairia na categoria do animal. Se conseguiu ultrapassar o estado em que
se encontram os animais, foi antes de mais porque não se restringiu ao fruto dos seus esforços
pessoais, mas coopera regularmente com os seus semelhantes; o que reforça o rendimento da
atividade de cada um. E em seguida, e principalmente, porque os produtos do trabalho de uma
geração não são perdidos por aquela que se segue. Do que um animal pôde aprender ao longo
da sua existência individual, quase nada lhe pode sobreviver. Pelo contrário, os resultados da
experiência humana conservam-se quase integralmente e mesmo em detalhe, graças aos livros,
aos monumentos figurados, aos utensílios, a todo o gênero de instrumentos que se transmitem
de geração em geração, à tradição oral etc. O solo da natureza cobre-se assim de um rico aluvião
que cresce sem cessar. Em vez de se dissipar de cada vez que uma geração se extingue e é
substituída por outra, a sabedoria humana acumula-se sem fim, e é esta acumulação incessante
que eleva o homem acima do animal e acima de si próprio. Mas, da mesma forma que a
cooperação de que falamos, esta acumulação só é possível na e pela sociedade. Porque, para
que o legado de cada geração possa ser conservado e reunido aos outros, é necessário haver
uma personalidade moral que subsista sobre as gerações que passam, que as ligue umas às
outras: é a sociedade. Assim, o antagonismo que se admitiu frequentemente entre a sociedade
e o indivíduo não tem qualquer correspondência com os fatos. Longe de se oporem e de só se
poderem desenvolver em sentido inverso um do outro, estes dois termos implicam-se. O
indivíduo, querendo a sociedade, quer-se a si próprio. A ação que esta exerce sobre ele,
nomeadamente por via da educação, não tem de modo algum por objeto e por efeito comprimi-
lo, diminui-lo, deformá-lo, mas, pelo contrário, engrandecê-lo e fazer dele um ser
verdadeiramente humano. Sem dúvida que ele só pode engrandecer-se esforçando-se. Mas é
que o poder de se esforçar voluntariamente é precisamente uma das características mais
essenciais do homem.

4. O papel do Estado em matéria de educação

Esta definição da educação permite resolver facilmente a questão, tão controversa, dos
deveres e dos direitos do Estado em matéria de educação.
Opõem-se lhe os direitos da família. A criança, diz-se, é antes de mais dos seus pais:
é, pois, a eles que pertence dirigir, como entenderem, o seu desenvolvimento intelectual e
moral. A educação é então concebida como uma coisa essencialmente privada e doméstica.
Quando nos colocamos neste ponto de vista, tendemos naturalmente para reduzir ao mínimo
possível a intervenção do Estado na matéria. Este deverá, diz-se, limitar-se a servir de auxiliar
e de substituto das famílias. Quando estas não estão em condições de cumprir os seus deveres,
é natural que o Estado se encarregue disso. É até natural que ele lhes entregue a tarefa mais
fácil possível, colocando à disposição escolas para onde possam, se o quiserem, enviar as
crianças. Mas o Estado deve conter-se estritamente dentro destes limites, e evitar qualquer ação
positiva destinada a imprimir uma orientação determinada ao espírito da juventude.
Porém, é necessário que o seu papel se mantenha dessa forma. Se, como acabamos de
estabelecer, a educação tem, antes de mais, uma função coletiva, se ela tem por objeto adaptar
a criança ao meio social onde está destinada a viver, é impossível que a sociedade se
desinteresse de uma tal operação. Como poderá ela estar ausente, uma vez que é o ponto de
referência a partir do qual a educação deverá dirigir a sua ação? É, pois, a ela que pertence
lembrar constantemente ao professor quais são as ideias, os sentimentos que é preciso imprimir
à criança para a colocar em harmonia com o meio no qual deverá viver. Se não estivesse sempre
presente e vigilante para obrigar a ação pedagógica a exercer-se num sentido social, esta
colocar-se-ia necessariamente ao serviço de crenças particulares, e a grande alma da pátria
dividir-se-ia e decompor-se-ia numa quantidade incoerente de pequenas almas fragmentárias
em conflito umas com as outras. Não se pode ir mais completamente contra o objetivo
fundamental de qualquer educação. É preciso escolher: se damos algum valor à existência da
sociedade – e acabamos de ver o que ela representa para nós – é necessário que a educação
assegure entre os cidadãos uma comunhão de ideias e de sentimentos sem os quais qualquer
sociedade é impossível; e para que possa produzir este resultado, é ainda necessário que não
seja abandonada totalmente à arbitrariedade dos particulares.
Uma vez que a educação é uma função essencialmente social, o Estado não pode
desinteressar-se dela. Pelo contrário, tudo o que seja educação deve ser, de alguma forma,
submetido à sua ação. Não quer dizer com isto que deva necessariamente monopolizar o ensino.
A questão é demasiado complexa para que seja possível tratá-la assim de passagem:
entendemos reservá-la. Pode entender-se que os progressos escolares são mais fáceis e mais
rápidos onde seja deixada alguma margem às iniciativas individuais; porque o indivíduo é mais
facilmente inovador do que o Estado. Mas se o Estado deve, no interesse público, deixar abrir
outras escolas para além daquelas de que é diretamente responsável, não quer dizer que deva
manter-se alheio ao que aí se passa. Pelo contrário, a educação que aí é ministrada deve manter-
se submetida ao seu controle. Não é mesmo admissível que a função do educador possa ser
substituída por qualquer um que não apresente garantias especiais que só o Estado pode julgar.
Sem dúvida que os limites nos quais se deve conter esta intervenção podem ser frequentemente
incômodos, mas o princípio da intervenção não terá contestação. Não há escola que possa
reclamar o direito de ministrar, livremente, uma educação antissocial.
É, todavia, necessário reconhecer que o estado de divisão em que se encontram
atualmente os espíritos, no nosso país, torna este dever do Estado particularmente delicado, ao
mesmo tempo, aliás, que mais importante. Não pertence ao Estado, com efeito, criar essa
comunidade de ideias e de sentimentos sem a qual não existe sociedade; ela deve constituir-se
por si própria, e o Estado apenas pode consagrá-la, mantê-la, torná-la mais consciente para os
particulares. Ora, é infelizmente incontestável que, entre nós, esta unidade moral não é, sob
todos os aspectos, o que deveria ser. Estamos divididos entre concepções divergentes e por
vezes até contraditórias. Há nestas divergências um fato impossível de negar e que é necessário
ter em conta. A escola não poderá ser pertença de um partido, e o professor falta aos seus
deveres quando usa a autoridade de que dispõe para arrastar os seus alunos no trilho dos seus
próprios ideais, por mais justificados que lhe possam parecer. Mas, apesar de todas as
dissidências, tem havido até hoje, na base da nossa civilização, um certo número de princípios
que, implícita ou explicitamente, são comuns a todos, que poucos, em todo o caso, ousam negar
abertamente e face a face: respeito pela razão, pela ciência, pelos ideais e sentimentos que estão
na base da moral democrática. O papel do Estado é esclarecer esses princípios essenciais, fazê-
los ensinar nas suas escolas, velar para que em nenhum lugar as crianças os ignorem, e para que
em todo o lado se fale deles com o respeito que lhes é devido. Há, sob este aspecto, uma ação
a exercer que será talvez tanto mais eficaz quanto menos agressiva e menos violenta, e que
melhor se saiba conter em limites ajuizados.

5. Poder da educação – os meios de ação

Após termos determinado o objetivo da educação, precisamos de determinar como e


em que medida é possível atingir esse objetivo, quer dizer, como e em que medida pode a
educação ser eficaz.
A questão foi sempre muito controversa. Para Fontenelle, “nem a boa educação faz o
bom carácter, nem a má o destrói”. Pelo contrário, para Locke, para Helvétius, a educação é
toda-poderosa. Segundo este último, “todos os homens nascem iguais e com iguais aptidões; só
a educação faz as diferenças”. A teoria de Jacotot aproxima-se da precedente. – A solução que
se dá ao problema depende da ideia que se faz da importância e da natureza das predisposições
inatas, por um lado, e, por outro, da capacidade dos meios de ação de que dispõe o educador.
A educação não cria o homem do nada, como creem Locke e Helvétius; aplica-se a
disposições que encontra feitas. Por outro lado, pode admitir-se que de um modo geral estas
tendências congênitas são muito fortes, muito difíceis de destruir ou de transformar
radicalmente; porque dependem de condições orgânicas em relação às quais o educador pouco
pode fazer. Por conseguinte, na medida em que têm um objetivo definido, em que inclinam o
espírito e o carácter para maneiras de agir e de pensar estreitamente determinadas, todo o futuro
do indivíduo se encontra predeterminado, e não resta muito a fazer à educação.
Mas, felizmente, uma das características do homem é que as predisposições inatas são
nele muito gerais e muito vagas. Com efeito, o tipo de predisposição assente, rígida, invariável,
que não deixa qualquer espaço à ação de causas exteriores, é o instinto. Ora, podemos
perguntar-nos se existe no homem um só instinto propriamente dito. Falamos algumas vezes de
instinto de conservação; mas a expressão é imprópria. Porque um instinto é um sistema de
movimentos determinados, sempre os mesmos, que, uma vez desencadeados pela sensação, se
encadeiam automaticamente uns nos outros até que chegam ao seu termo natural, sem que a
reflexão intervenha em momento algum; ora, os movimentos que executamos quando a nossa
vida está em perigo não têm minimamente esta determinação nem esta invariabilidade
automática. Mudam consoante as situações; adaptamo-los às circunstâncias; quer dizer que não
se desenrolam sem uma certa escolha consciente, ainda que muito rápida. O que chamamos
instinto de conservação não é, definitivamente, mais do que um impulso geral para fugir à
morte, sem que os meios através dos quais a procuramos evitar sejam predeterminados de uma
vez por todas. Podemos dizer outro tanto do que chamamos, por vezes, o instinto maternal, o
instinto paternal, e mesmo o instinto sexual. São impulsos numa direção; mas os meios através
dos quais estes impulsos se atualizam mudam de um indivíduo para o outro, de ocasião para
ocasião. Resta, pois, um largo espaço reservado às experiências, às acomodações pessoais, e,
por conseguinte, à ação de causas que só podem fazer sentir a sua influência após o nascimento.
Ora, a educação é uma destas causas.
Pretendeu-se, é verdade, que a criança herdaria por vezes uma tendência mais forte
para um ato definido, como o suicídio, o roubo, o assassínio, a fraude etc. Mas estas asserções
não estão minimamente de acordo com os fatos. Por muito que o tenham dito, não se nasce
criminoso; ainda menos se está votado, desde o nascimento, a um ou outro gênero de crime, o
paradoxo dos criminologistas italianos já não conta, hoje em dia, com muitos defensores. O que
é herdado é uma certa falta de equilíbrio mental, que torna o indivíduo mais refratário a uma
conduta ordenada e disciplinada. Mas um tal temperamento não predestina mais um homem
para ser um criminoso do que um explorador apaixonado por aventuras, um profeta, um
inovador político, um inventor, etc. Podemos dizer o mesmo de todas as aptidões profissionais.
Como salienta Bain, “o filho de um grande filólogo não herda um único vocábulo; o filho de
um grande viajante pode, na escola, ser ultrapassado em geografia pelo filho de um mineiro”.
O que a criança recebe dos seus pais são faculdades muito gerais; é um tanto de atenção, uma
certa dose de perseverança, um juízo saudável, imaginação etc. Mas cada uma destas faculdades
pode servir para todo o gênero de fins diferentes. Uma criança dotada de uma imaginação muito
viva poderá, segundo as circunstâncias, segundo as influências que se farão sentir sobre ela,
tornar-se um pintor ou um poeta, ou um engenheiro de espírito inventivo, ou um arrojado
financeiro. O desvio é, pois, considerável entre as qualidades naturais e a forma especial que
elas devem tomar para serem utilizadas durante a vida. Quer dizer que o futuro não está
estreitamente predeterminado pela nossa constituição congênita. A razão é fácil de
compreender. As únicas formas de atividade que podem ser transmitidas hereditariamente são
aquelas que se repetem sempre de uma maneira muito idêntica para poderem fixar-se de uma
forma rígida nos tecidos do organismo. Ora, a vida humana depende de múltiplas condições,
complexas e, por conseguinte, mutáveis; é, pois, necessário que ela própria mude e se modifique
sem cessar. Daí que seja impossível que se cristalize de uma forma definida e definitiva. Apenas
disposições muito genéricas, muito vagas, exprimindo caracteres comuns a todas as
experiências particulares, podem sobreviver e passar de uma geração a outra.
Dizer que os caracteres inatos são, na sua maioria, muito genéricos, quer dizer que são
muito maleáveis, muito flexíveis, uma vez que podem receber determinações muito diferentes.
Entre as virtualidades indecisas que constituem o homem no momento em que ele nasce e a
personagem muito definida em que se deve tomar para desempenhar na sociedade um papel
útil, a distância é, pois, considerável. É esta distância que a educação deve fazer percorrer à
criança. Vemos que um vasto campo está aberto à sua ação.
Mas, para exercer esta ação, terá ela meios suficientemente enérgicos?
Para dar uma ideia do que constitui a ação educativa e mostrar a sua força, um
psicólogo contemporâneo, Guyau, comparou-a à sugestão hipnótica; e a relação não deixa de
ter fundamento.
A sugestão hipnótica supõe, com efeito, as duas condições seguintes: l°. O estado em
que se encontra o sujeito hipnotizado caracteriza-se pela sua excepcional passividade. O espírito
está quase reduzido ao estado de tábua rasa; uma espécie de vazio foi criado na consciência; a
vontade está como que paralisada. Por conseguinte, a ideia sugerida, não encontrando nenhuma
ideia contrária, pode instalar-se com um mínimo de resistência. 2°. Todavia, como o vazio
nunca é absoluto, é necessário que a ideia sugerida tenha ela própria uma força de ação
particular. Para isso, é necessário que o hipnotizador fale num tom de comando, com autoridade.
É preciso que diga: Quero; que indique que a recusa de obedecer não é concebível, que o ato
deverá ser concluído, que a coisa deve ser vista como ele a mostra, que não pode ser de outra
forma. Se fraqueja, vemos o sujeito hesitar, resistir, por vezes recusar-se mesmo a obedecer. Se
entra em discussão, é por causa do seu poder. Quanto mais a sugestão vai contra o
temperamento natural do hipnotizado, mais o tom imperativo será indispensável.
Ora, estas duas questões encontram-se nas relações que o educador sustenta com a
criança submetida à sua ação: 1º. A criança está naturalmente num estado de passividade
completamente comparável àquele em que o hipnotizado se encontra artificialmente colocado.
A sua consciência não contém ainda mais do que um pequeno número de representações
capazes de lutar contra aquelas que lhe são sugeridas; a sua vontade é ainda rudimentar. É
também facilmente sugestionável. Pela mesma razão, está muito acessível ao contágio do
exemplo, muito inclinada para a imitação; 2°. O ascendente que o professor tem naturalmente
sobre o seu aluno, na sequência da superioridade da sua experiência e da sua cultura, dará
naturalmente à sua ação a força eficaz que lhe é necessária.
Esta comparação mostra quanto é necessário que o educador esteja sereno; porque
sabemos toda a força da sugestão hipnótica. Se, então, a ação educativa tem, mesmo em menor
grau, uma eficácia análoga, é permitido esperar mais dela, desde que nos saibamos servir dela
convenientemente. Longe de ficarmos desencorajados pela nossa incapacidade, devemos
principalmente sentir-nos assustados com a extensão do nosso poder. Se professores e pais
sentissem, de uma forma mais constante, que nada se pode passar diante da criança sem deixar
nela alguma marca, que o moldar do seu espírito e do seu carácter depende destes milhares de
pequenas ações insensíveis que se produzem a cada instante e aos quais não prestamos atenção
por causa da sua insignificante aparência, como zelariam mais pela sua linguagem e pela sua
conduta! Seguramente, a educação não pode chegar a grandes resultados quando procede por
safanões bruscos e intermitentes. Como diz Herbart, não é admoestando a criança com
veemência de tempos a tempos que se pode agir fortemente sobre ela. Mas quando a educação
é paciente e contínua, quando não procura os sucessos imediatos e aparentes, mas prossegue
lentamente num sentido bem determinado, sem se deixar desviar por incidentes exteriores e
circunstâncias estranhas, dispõe de todos os meios necessários para marcar profundamente as
almas.
Ao mesmo tempo vemos qual é a força essencial da ação educativa. O que faz a
influência do hipnotizador é a autoridade que tem sobre os circunstantes. Por analogia, podemos
dizer que a educação deve ser, essencialmente, objeto de autoridade. Esta importante
proposição pode, aliás, ser estabelecida diretamente. Com efeito, vimos que a educação tem por
objetivo sobrepor, ao ser individual e a-social que somos à nascença, um ser inteiramente novo.
Deve levar-nos a ultrapassar a nossa natureza inicial: é através desta condição que a criança se
tomará um homem. Ora, só podemos elevar-nos acima de nós mesmos através de um esforço
mais ou menos penoso. Nada é mais falso e enganador que a concepção epicuriana da educação,
a concepção de um Montaigne, por exemplo, segundo a qual o homem pode formar-se
brincando e sem outro estímulo que a atração do prazer. Se a vida não tem nada de obscuro e é
criminoso escurecê-la artificialmente aos olhos da criança, é todavia séria e importante, e a
educação, que prepara a vida, deve participar desta importância. Para aprender a conter o seu
egoísmo natural, a subordinar-se a fins mais elevados, a submeter os seus desejos ao domínio
da sua vontade, a contê-los dentro de limites justos, é preciso que a criança exerça sobre si
própria uma forte contenção. Ora, nós apenas nos constrangemos, nos violentamos, por uma ou
outra destas razões: porque é preciso por uma necessidade física, ou porque o devemos fazer
moralmente. Mas a criança não pode sentir a necessidade que nos impõem fisicamente estes
esforços, porque não está imediatamente em contato com as duras realidades da vida que tomam
esta atitude indispensável. Ainda não está envolvida na luta; apesar do que Spencer tenha dito,
não a podemos deixar exposta às rudes reações das coisas. É preciso que esteja já formada, em
grande parte, quando as abordar a sério. Não é, pois, sob a sua pressão que podemos contar para
a determinar a conter a sua vontade e a adquirir sobre si própria o domínio necessário.
Resta o dever. O sentimento do dever, eis, com efeito, qual é para a criança, e mesmo
para o adulto, o estímulo por excelência do esforço. O amor-próprio logo o pressupõe. Porque,
para ser sensível, como convém, às punições e às recompensas, é preciso ter já consciência da
sua dignidade e, por conseguinte, do seu dever. Mas a criança apenas pode conhecer o dever
através dos seus professores ou dos seus pais; apenas pode saber o que é através da forma como
lhe revelem, pela sua linguagem e pela sua conduta. É, pois, conveniente que aqueles sejam,
para ela, o dever encarnado e personificado. Quer dizer que a autoridade moral é a qualidade
mestra do educador. Porque é pela autoridade que tem em si que o dever é o dever. O que ele
tem de sui generis é o tom imperativo com que fala às consciências, o respeito que inspira às
vontades e que as faz inclinar-se desde que começa a falar. Por conseguinte, é indispensável
que uma impressão do mesmo gênero se liberte da pessoa do professor.
Não é necessário demonstrar que a autoridade assim entendida nada tem de violento
nem de coercivo: consiste inteiramente num certo ascendente moral. Supõe realizadas no
professor duas condições principais. É preciso, primeiro, que tenha vontade. Porque a
autoridade implica a confiança, e a criança não pode confiar em qualquer um que veja hesitar,
tergiversar, voltar atrás nas suas decisões. Mas esta primeira condição não é a mais essencial.
O que importa, antes de mais, é que a autoridade que deve mostrar, o professor a sinta realmente
em si. Constitui uma força que ele não pode manifestar se não a possuir efetivamente. Ora, de
onde pode ela vir? Será do poder material de que está investido, do direito que tem de punir e
de recompensar? Mas o medo do castigo é uma coisa muito diferente do respeito pela
autoridade. Só tem valor moral se o castigo for reconhecido como justo por aquele que o sofre:
o que implica que a autoridade que pune é já reconhecida como legítima. O que coloca uma
questão. Não é de trás que o professor pode trazer a autoridade, é de si próprio; ela só pode vir
de uma força interior. É preciso que ele creia, não em si, sem dúvida, não nas qualidades
superiores da sua inteligência ou do seu coração, mas na sua tarefa e na grandeza da sua tarefa.
O que faz a autoridade de que é colorida frequentemente a palavra do padre, é a elevada ideia
que ele faz da sua missão; porque fala em nome de um deus em que acredita, de que se sente
mais próximo que a multidão dos profanos. O professor laico pode e deve ter algo deste
sentimento. Também ele é a voz de uma grande pessoa moral que o ultrapassa: é a sociedade.
Da mesma forma que o padre é o intérprete do seu deus, ele é o intérprete das grandes ideias
morais do seu tempo e dos seu país. Esteja ele ligado as estas ideias, sinta toda a sua grandeza,
e a autoridade que há nelas e de que tem consciência, e elas não podem deixar de se comunicar
à sua pessoa e a tudo o que dela emana. Numa autoridade que decorre de fonte tão impessoal,
não será possível entrar nem orgulho, nem vaidade, nem pedantismo. É completamente feita do
respeito que tem pelas suas funções e, se assim podemos dizer, pelo seu ministério. É este
respeito que, através do canal da palavra, do gesto, passa da sua consciência para a consciência
da criança.
Tem-se oposto a liberdade e a autoridade, como se estes dois fatores da educação se
contradissessem e se limitassem um ao outro. Mas esta oposição é artificial. Na realidade, estes
dois termos implicam-se, em vez de se excluírem. A liberdade é filha da autoridade,
evidentemente. Porque ser livre, não é fazer o que nos apetece; é sermos responsáveis por nós
próprios, é sabermos agir pela razão e cumprirmos o nosso dever. Ora, é justamente para dotar
a criança deste domínio de si própria que a autoridade do professor deve ser exercida. A
autoridade do professor é apenas um aspecto da autoridade do dever e da razão. A criança deve,
pois, exercitar-se a reconhecê-la na palavra do educador e a submeter-se ao seu ascendente; é
através desta condição que saberá, mais tarde, encontrá-la na sua consciência e aí se lhe
conformar.
A ANÁLISE SÓCIOECONÔMICA DO CAPITALISMO*

Raymond Aron

O pensamento de Marx é uma análise e uma compreensão da sociedade capitalista no seu


funcionamento atual, na sua estrutura presente e no seu devenir necessário. [...] Marx focaliza
a contradição que lhe parece inerente à sociedade moderna, que ele chama capitalismo.
Enquanto no positivismo o conflito entre trabalhadores e empresários são fenômenos
marginais, imperfeições da sociedade industrial cuja correção é relativamente fácil, para Marx
esses conflitos entre os operários e os empresários ou, para empregar o vocabulário marxista,
entre o proletariado e os capitalistas, são o fato mais importante das sociedades modernas, o
que revela a natureza essencial dessas sociedades, ao mesmo tempo em que permite prever o
desenvolvimento histórico.
O pensamento de Marx é uma interpretação do caráter contraditório ou antagônico da
sociedade capitalista. De um certo modo, toda a obra de Marx é um esforço destinado a
demonstrar que esse caráter contraditório é inseparável da estrutura fundamental do regime
capitalista e é, também, o motor do movimento histórico.
Os [...] textos célebres que me proponho analisar, O Manifesto Comunista, [e] o prefácio
da Contribuição à Crítica da Economia Política [...], são [...] maneiras de explicar, de
fundamentar e precisar esse caráter antagônico do regime capitalista.
O Manifesto Comunista é um texto que, se quisermos, podemos qualificar de não
científico. Trata-se de uma brochura de propaganda, mas nele Marx e Engels apresentaram, de
forma sucinta, algumas das suas ideias científicas.
O tema central do Manifesto Comunista é a luta de classes.

A história de toda a sociedade até nossos dias é a história da luta de classes. Homem livre e
escravo, patrício e plebeu, barão e servo, mestre de ofício e companheiro, numa palavra,
opressores e oprimidos, se encontraram sempre em constante oposição, travaram uma luta sem
trégua, ora disfarçada, ora aberta, que terminava sempre por uma transformação revolucionária
de toda a sociedade, ou então pela ruína das diversas classes em luta. (Manifesto Comunista)

Eis aí, portanto, a primeira ideia decisiva de Marx: a história humana se caracteriza pela
luta de grupos humanos que chamaremos classes sociais, cuja definição, que por enquanto
permanece equívoca, implica uma dupla característica; por um lado, a de comportar o

*
ARON, Raymond. As etapas do pensamento sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p.135-143.
antagonismo dos opressores e dos oprimidos e, por outro lado, de tender a uma polarização em
dois blocos, e somente dois.
Todas as sociedades sendo divididas em classes inimigas, a sociedade atual, a capitalista,
não é diferente das que a precederam. No entanto, ela apresenta certas características novas.
Para começar, a burguesia, classe dominante, é incapaz de manter seu reinado sem
revolucionar permanentemente os instrumentos de produção. “A burguesia não pode existir”,
escreve Marx,

sem transformar constantemente os instrumentos de produção, portanto as relações de produção,


portanto o conjunto das condições sociais. Ao contrário, a primeira condição da existência de
todas as classes industriais anteriores era a de conservar inalterado o antigo modo de produção...
No curso do seu domínio de classe, que ainda não tem um século, a burguesia criou forças
produtivas mais maciças e mais colossais do que as que haviam sido criadas por todas as gerações
do passado, em conjunto. (Manifesto Comunista)

Por outro lado, as forças de produção que levarão ao regime socialista estão em processo
de amadurecimento dentro da sociedade atual.
No Manifesto Comunista são apresentadas duas formas da contradição característica da
sociedade capitalista, que, aliás, encontramos também nas obras científicas de Marx.
A primeira é a contradição entre as forças e as relações de produção. A burguesia cria
incessantemente meios de produção mais poderosos. Mas as relações de produção, isto é, ao
que parece, ao mesmo tempo as relações de propriedade e a distribuição de rendas, não se
transformam no mesmo ritmo. O regime capitalista é capaz de produzir cada vez mais. Ora, a
despeito desse aumento de riquezas, a miséria continua sendo a sorte da maioria.
Aparece assim uma segunda forma de contradição, a que existe entre o aumento das
riquezas e a miséria crescente da maioria. Dessa contradição sairá, um dia ou outro, uma crise
revolucionária. O proletariado, que constitui e constituirá cada vez mais a imensa maioria da
população, se constituirá em classe, isto é, numa unidade social aspirando à tomada do poder e
à transformação das relações sociais. Ora, a revolução do proletariado será diferente, por sua
natureza, de todas as revoluções do passado. Todas as revoluções do passado eram feitas por
minorias, em benefício de minorias. A revolução do proletariado será feita pela imensa maioria,
em benefício de todos. A revolução proletária marcará assim o fim das classes e do caráter
antagônico da sociedade capitalista.
Essa revolução, que provocará a supressão simultânea do capitalismo e das classes, será
obra dos próprios capitalistas. Os capitalistas não podem deixar de transformar a organização
social. Empenhados numa concorrência inexpiável, não podem deixar de aumentar os meios de
produção, de ampliar ao mesmo tempo o número dos proletários e de sua miséria.
O caráter contraditório do capitalismo se manifesta no fato de que o crescimento dos
meios de produção em vez de se traduzir pela elevação do nível de vida dos trabalhadores leva
a um duplo processo de proletarização e pauperização.
Marx não nega a existência de muitos grupos intermediários entre os capitalistas e os
proletários, como artesãos, pequenos burgueses, comerciantes, camponeses, proprietários de
terra. Mas faz duas afirmações: que à medida que evolui o regime capitalista, haverá uma
tendência para a cristalização das relações sociais em dois – e somente dois – grupos, os
proletários e os capitalistas; que duas – e somente duas – classes representam uma possibilidade
de regime político, e uma ideia de regime social. As classes intermediárias não têm iniciativa
nem dinamismo histórico. Só duas classes têm condições de imprimir sua marca na sociedade.
Uma é a classe capitalista e a outra a classe proletária. No dia do conflito decisivo, todos serão
obrigados a se alinhar seja com os capitalistas seja com os proletários.
Quando a classe proletária tiver tomado o poder, haverá uma ruptura decisiva com o curso
da história precedente. Com efeito, o caráter contraditório de todas as sociedades conhecidas,
até o presente, terá desaparecido. Marx escreve:

Quando, no curso do desenvolvimento, os antagonismos de classe tiverem desaparecido e toda a


produção estiver concentrada nas mãos dos indivíduos associados, o poder político perderá seu
caráter político. No sentido estrito do termo, o poder político é o poder organizado de uma classe
para a opressão de uma outra. Se, na luta contra a burguesia, o proletariado é forçado a se unir em
uma classe; se através de uma revolução ele se constitui em classe dominante e, como tal, abole
pela violência as antigas relações de produção – então, ao suprimir o sistema de produção ele
elimina ao mesmo tempo as condições de existência do antagonismo de classe; então, ao suprimir
as classes em geral, ele elimina pelo mesmo ato sua própria dominação enquanto classe. A antiga
sociedade burguesa, com suas classes e seus conflitos de classe, será substituída por uma
associação em que o livre desenvolvimento de cada um será a condição do livre desenvolvimento
de todos. (Manifesto Comunista)

Esse texto é bem característico de um dos temas essenciais da teoria de Marx. A tendência
dos escritores do começo do século XIX é considerar a política ou o Estado como um fenômeno
secundário em relação aos fenômenos essenciais, econômicos ou sociais. Marx participa desse
movimento geral; também ele considera que a política e o Estado são fenômenos secundários,
com relação ao que acontece na sociedade.
Por isso apresenta o poder político como a expressão dos conflitos sociais. O poder
político é o meio pelo qual a classe dominante, classe exploradora, mantém seu domínio e sua
exploração.
Nesta linha de raciocínio, a supressão das contradições de classe deve levar logicamente
ao desaparecimento da política e do Estado, pois política e Estado são, na aparência, o
subproduto ou a expressão dos conflitos sociais.
Esses são os temas da visão histórica e também da propaganda política de Marx. Trata-se
de uma expressão simplificada, mas a ciência de Marx tem por fim demonstrar rigorosamente
essas proposições: o caráter antagônico da sociedade capitalista, a autodestruição, inevitável
dessa sociedade contraditória, a explosão revolucionária que porá fim ao caráter antagônico da
sociedade atual.
Portanto, o centro do pensamento de Marx é a interpretação do regime capitalista
enquanto contraditório, isto é, dominado pela luta de classes. [...] Marx observa, ou pensa
observar, a luta de classes na sociedade capitalista, e encontra em diferentes sociedades
históricas o equivalente à luta de classes do presente.
Segundo Marx, a luta de classes tenderá a uma simplificação. Os diferentes grupos sociais
se polarizarão em torno da burguesia e do proletariado, e é o desenvolvimento das forças
produtivas que será o motor do movimento histórico, levando, pela proletarização e pela
pauperização, à explosão revolucionária e ao surgimento, pela primeira vez na história, de uma
sociedade não antagônica.
A partir desses temas gerais da interpretação histórica de Marx temos [uma tarefa] a
cumprir, [um fundamento] a buscar. [Qual] é, no pensamento de Marx, a teoria geral da
sociedade que explica as contradições da sociedade atual e o caráter antagônico de todas as
sociedades conhecidas? [...]
Em outras palavras, partindo dos temas marxistas que encontramos no Manifesto
Comunista, precisamos explicar: a teoria geral da sociedade, isto é, aquilo a que se chama
vulgarmente materialismo histórico;
[...]
O próprio Marx, num texto que é talvez o mais célebre de todos os que escreveu, resumiu
o conjunto da sua concepção sociológica. No prefácio da Contribuição à Crítica da Economia
Política publicada em Berlim, em 1859, ele assim se exprime:

Eis, em poucas palavras, o resultado geral a que cheguei e que, uma vez alcançado, serviu-me
como foi condutor para meus estudos. Na produção social da sua existência, os homens
estabelecem relações determinadas, necessárias, independentemente da sua vontade. Essas
relações de produção correspondem a um certo grau de evolução das forças produtivas materiais.
O conjunto de tais relações forma a estrutura econômica da sociedade, o fundamento real sobre o
qual se levanta um edifício jurídico e político, e ao qual respondem formas determinadas da
consciência social. O modo de produção da vida material domina em geral o desenvolvimento da
vida social, política e intelectual. Não é a consciência dos homens que determina a sua existência,
mas ao contrário, é sua existência social que determina a sua consciência. Num certo grau de
desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade colidem com as relações de
produção existentes, ou com as relações de propriedade dentro das quais se vinham
movimentando até aquele momento, e que não passam da sua expressão jurídica. Essas condições
que ainda ontem eram formas de desenvolvimento das forças produtivas se transforam agora em
sérios obstáculos. Começa então uma era de revolução social. A transformação dos fundamentos
econômicos é acompanhada de mudanças mais ou menos rápida em todo esse enorme edifício.
Ao considerarmos tais mudanças, é preciso distinguir duas ordens de coisas. Há a transformação
material das condições de produção econômica, que se deve constatar com o espírito rigoroso das
ciências naturais. Mas há também as formas jurídicas, artísticas, filosóficas, em suma, as formas
ideológicas com as quais os homens tomam consciência desse conflito e o levam até o fim. Não
se julga uma pessoa pela ideia que tem de si própria. Não se julga uma época de revolução de
acordo com a consciência que ela tem de si mesma. Esta consciência pode ser melhor explicada
pelas contrariedades da vida material, pelo conflito que opõe as forças produtivas sociais e as
relações de produção. Nunca uma sociedade expira antes de que se desenvolvam todas as forças
produtivas que ela pode comportar; nunca se estabelecem relações de produção superiores sem
que as condições materiais da sua existência tenham nascido no próprio seio da antiga sociedade.
A humanidade nunca se propõe tarefas que não possa realizar. Considerando mais atentamente as
coisas, veremos sempre que a tarefa surge lá onde as condições materiais da sua realização já se
formaram, ou estão em vias de se criar. Reduzidos as suas grandes linhas, os modos de produção
asiático, antigo, feudal e burguês moderno aparecem como épocas progressivas da formação
econômica da sociedade. As relações de produção burguesas são a última forma antagônica do
processo social de produção. Não se trata aqui de um antagonismo individual; nós o entendemos
antes como o produto das condições sociais da existência dos indivíduos; mas as forças produtivas
que se desenvolvem no seio da sociedade burguesa criam ao mesmo tempo as condições materiais
próprias para resolver esse antagonismo. Com esse sistema social, encerra-se portanto a pré-
história da sociedade humana. (prefácio da Contribuição à Crítica da Economia Política)

Encontramos nessa passagem todas as ideias essenciais da interpretação econômica da


história, com a única reserva de que nem a noção de classes nem o conceito de luta de classes
aparecem aí explicitamente. No entanto, é fácil reintroduzi-los nessa concepção geral.
1) Primeira ideia e ideia essencial: os homens entram em relações determinadas,
necessárias, que são independentes da sua vontade. Em outras palavras, convém seguir o
movimento da história analisando a estrutura das sociedades, as forças de produção e as relações
de produção, e não adotando como origem da interpretação o modo de pensar dos homens. Há
relações sociais que se impõem aos indivíduos, não se levando em conta suas preferências. A
compreensão do processo histórico está condicionada à compreensão de tais relações sociais
supra individuais.
2) Em toda sociedade podemos distinguir a base econômica, ou infraestrutura, e a
superestrutura. A primeira é constituída essencialmente pelas forças e pelas relações de
produção; na superestrutura figuram as instituições jurídicas e políticas, bem como os modos
de pensar, as ideologias, as filosofias.
3) O motor do movimento histórico é a contradição, em cada momento da história, entre
as forças e as relações de produção. As forças de produção são, ao que parece, essencialmente
a capacidade de uma certa sociedade de produzir; capacidade que é função dos conhecimentos
científicos, do aparelhamento técnico, da própria organização do trabalho coletivo. As relações
de produção, que não aparecem definidas precisamente nesse texto, parecem caracterizadas
essencialmente pelas relações de propriedade. Existe, com efeito, a fórmula: “as relações de
produção existentes, ou aquilo que é apenas sua expressão jurídica, as relações de propriedade
dentro das quais elas atuaram até aquele momento”. Contudo, as relações de produção não se
confundem necessariamente com as relações de propriedade, ou, quando menos, as relações de
produção podem incluir também a distribuição da renda nacional, mais ou menos estreitamente
determinada pelas relações de propriedade.
Em outras palavras, a dialética da história é constituída pelo movimento das forças
produtivas, que entram em contradição, em certas épocas revolucionárias, com as relações de
produção, isto é, tanto as relações de propriedade como a distribuição da renda entre os
indivíduos ou grupos da coletividade.
4) Nessa contradição entre força e relações de produção, é fácil introduzir a luta de
classes, embora o texto não faça alusão. Basta considerar que nos períodos revolucionários, isto
é, nos períodos de contradição entre forças e relações de produção, uma classe está associada
às antigas relações de produção, que constituem um obstáculo ao desenvolvimento das forças
produtivas, enquanto que outra classe é progressiva, representa novas relações de produção que,
em vez de serem um obstáculo no caminho do desenvolvimento de forças produtivas,
favorecerão ao máximo o desenvolvimento dessas forças.
Passemos dessas fórmulas abstratas à interpretação do capitalismo. Na sociedade
capitalista, a burguesia está associada à propriedade privada dos meios de produção e, por isso
mesmo, a uma certa distribuição da renda nacional. Em contrapartida, o proletariado, que
constitui o outro polo da sociedade, que representa uma outra organização da coletividade, se
torna, num certo momento da história, o representante de uma nova organização da sociedade,
organização que será mais progressiva do que a organização capitalista. Esta nova organização
marcará uma fase ulterior do processo histórico, um desenvolvimento mais avançado das forças
produtivas.
5) Essa dialética das forças e das relações da produção sugere uma teoria das revoluções.
Com efeito, dentro dessa visão histórica, as revoluções não são acidentais, mas sim a expressão
de uma necessidade histórica. As revoluções preenchem funções necessárias, e se produzem
quando ocorrem determinadas condições.
As relações de produção capitalistas se desenvolveram a princípio no seio da sociedade
feudal. A Revolução Francesa se realizou no momento em que as novas relações de produção
capitalistas atingiram certo grau de maturidade. Pelo menos nesse texto, Marx prevê um
processo análogo para a passagem do capitalismo ao socialismo. As forças de produção devem
desenvolver-se no seio da sociedade capitalista; as relações de produção socialistas devem
amadurecer dentro da sociedade atual, antes que se produza a revolução que marcará o fim da
pré-história da humanidade. Em função dessa teoria da revolução, a II Internacional, a
socialdemocracia, se inclinava para a atitude relativamente passiva. Era preciso o
amadurecimento natural das forças e das relações de produção do futuro antes que ocorresse a
revolução. Marx diz que a humanidade nunca coloca problemas que não pode resolver: a
socialdemocracia tinha medo de realizar a revolução cedo demais – é por isso, aliás, que ela
nunca a realizou.
6) Nesta interpretação histórica, Marx não distingue só a infra e a superestrutura, mas
também a realidade social e a consciência: não é a consciência dos homens que determina a
realidade, mas ao contrário, é a realidade social que determina sua consciência. Daí a concepção
de conjunto segundo a qual é preciso explicar a maneira de pensar dos homens pelas relações
sociais às quais estão integrados.
Proposições como essa podem servir de fundamento para aquilo que hoje chamamos de
sociologia do conhecimento.
7) Finalmente, o último tema que está incluído no texto: Marx esboça, em largos traços,
as etapas da história humana. [...] Marx distingue as etapas da história humana a partir dos
regimes econômicos. Determina quatro regimes ou, para empregar sua terminologia, quatro
modos de produção: o asiático, o antigo, o feudal e o burguês.
Esses quatro modos de produção podem ser divididos em dois grupos:
Os modos de produção antigo, feudal e burguês se sucederam na história do Ocidente.
Representam as três etapas da história ocidental, caracterizada por determinados tipos de
relações entre os homens que trabalhavam. O modo de produção antigo é caracterizado pela
escravidão; o modo de produção feudal pela servidão; o modo de produção burguês pelo
trabalho assalariado. Eles constituem três modos distintos de exploração do homem pelo
homem. O modo de produção burguês constitui a última formação social antagônica porque,
ou na medida em que, o modo de produção socialista, isto é, a associação dos produtores, não
implica mais a exploração do homem pelo homem, a subordinação dos trabalhadores manuais
a uma classe, detentora da propriedade dos meios de produção e do poder político.
Por outro lado, o modo de produção asiático não parece constituir uma etapa da história
do Ocidente. Na verdade, os intérpretes de Marx têm discutido incansavelmente a respeito da
unidade, ou falta de unidade, do processo histórico. Com efeito, se o modo de produção asiático
caracteriza uma civilização distinta da do Ocidente, é provável que várias linhas de evolução
histórica sejam possíveis segundo os grupos humanos.
Além disso, o modo de produção asiático não parece definido pela subordinação de
escravos, de servos ou de assalariados a uma classe proprietária dos meios de produção, mas
pela subordinação de todos os trabalhadores ao Estado. Se esta interpretação do modo de
produção asiático é correta, sua estrutura social não seria caracterizada pela luta de classes, no
sentido ocidental do termo, mas pela exploração do toda a sociedade pelo Estado, ou pela classe
burocrática.
[...]
Essas são, a meu ver, as ideias diretrizes de uma interpretação econômica da história.
ESTADO E SOCIEDADE*

Octávio Ianni

Seria equívoco pensar que Marx não elaborou uma interpretação do Estado capitalista,
simplesmente porque não a vemos sistematizada em algumas páginas, num ensaio ou livro. A
interpretação do Estado capitalista aparece bastante bem delineada nos vários passos da sua
análise do regime capitalista de produção. Naturalmente a sua concepção de Estado vai se
explicitando ou desenvolvendo à medida que estuda as imbricações ou os desdobramentos
sociais, políticos e econômicos das forças produtivas e das relações de produção, em seus
desenvolvimentos especificamente capitalistas. O conjunto do processo de produção de
mais-valia, de reprodução ampliada do capital ou de mercantilização universal das relações,
pessoas e coisas, somente pode ser compreendido se a análise apreende também o Estado, como
uma dimensão essencial do capitalismo. A teoria da luta de classes seria uma simples abstração,
se as relações e os antagonismos de classes não implicassem no Estado capitalista como
expressão e condição dessas mesmas relações e antagonismos. Quando se refere às estruturas
jurídicas e políticas, que expressam as relações de produção, está se referindo à “superestrutura”
da sociedade, ao poder estatal. Todas as contradições fundamentais do capitalismo envolvem o
Estado, como expressão nuclear da sociedade civil. Em síntese, a análise marxista do capitalismo
seria ininteligível, se Marx não tivesse elaborado, também e necessariamente, uma compreensão
dialética do Estado.
Em seus primeiros escritos, Marx discute e procura superar as concepções hegeliana e
liberal do Estado. Para ele, o Estado nem paira sobre a “sociedade civil” nem exprime a “vontade
geral”. Entende o Estado inserido no jogo das relações entre as pessoas, os grupos e as classes
sociais. Com isto não queremos dizer que Marx teve, já no princípio, uma compreensão nova e
acabada do Estado. Nada disso. A sua compreensão nova ele a elaborou à medida que
desenvolvia os três núcleos principais e combinados da sua atividade: a) a crítica da dialética
hegeliana, do socialismo utópico e da economia política clássica; b) a análise do capitalismo; c) a
participação prático-crítica nas lutas políticas do proletariado. Note-se que, aqui, falamos da
forma pela qual a interpretação de Marx surge em suas obras. Outra questão é saber qual foi ou

*
IANNI, Octávio. Karl Marx: Sociologia. São Paulo: Ática, 1999, p.30-42.
quais foram as ocasiões exatas em que ele realizou a sua compreensão dialética do Estado. Este é
um problema da sua biografia intelectual, da qual não estamos tratando. Aqui falamos
principalmente da exposição e desenvolvimento do seu pensamento. É importante reconhecer,
sob qualquer das suas perspectivas, que, desde os seus primeiros escritos, Marx está preocupado
com as relações e determinações recíprocas entre o Estado e a sociedade, numa ótica diferente
daquelas propostas anteriormente, não apenas por Hegel. Nesse processo crítico, formula a chave
da sua concepção, quando diz que o Estado precisa ser compreendido, simultaneamente, como
uma “colossal superestrutura” do regime capitalista e como o “poder organizado de uma classe”
social em sua relação com as outras.
No início, a discussão realizada por Marx sobre as relações do Estado com a sociedade
civil ou com os indivíduos, os grupos e as classes sociais apreende, principalmente, as dimensões
políticas dessas relações. Afirma que o Estado e a sociedade não são politicamente distintos; que
“o Estado é a estrutura da sociedade”; mas o Estado não é a expressão harmônica e abstrata da
sociedade. Ao contrário, já se constitui como um produto de contradições políticas. Esta é a
primeira e mais geral contradição na qual se funda o poder estatal: “O Estado se funda na
contradição entre o público e a vida privada, entre o interesse geral e o particular”.
Para realizar-se, no entanto, o Estado não pode aparecer aos cidadãos e às associações
(ou grupos, classes, exército, igreja etc.) dessa forma, simplesmente corno um produto de
antagonismos, ou como um feixe de contradições. Isto seria muito transparente e, assim,
insuportável para os cidadãos e as associações. Implicaria uma guerra aberta e ininterrupta entre
uns e outros. Ocorre, no entanto, que, no mesmo processo de sua realização, o Estado já se
constitui fetichizado. Na consciência e na prática das pessoas, tende a aparecer sob uma forma
abstrata, como um ato de vontade coletiva ou como a forma externa da sociedade civil.

O Estado anula, a seu modo, as diferenças de nascimento, de estado social, de cultura e de


ocupação, ao declarar o nascimento, o estado social, a cultura e a ocupação do homem como
diferenças não políticas; ao proclamar todo membro do povo, sem atender a estas diferenças,
participante da soberania popular em base de igualdade; ao abordar todos os elementos da vida
real do povo do ponto de vista do Estado. Contudo, o Estado deixa que a propriedade privada, a
cultura e a ocupação atuem a seu modo, isto é, como propriedade privada, como cultura e como
ocupação, e façam valer a sua natureza especial." (MARX, K. A questão judaica.)
Como o Estado é a forma sob a qual os indivíduos de uma classe dominante fazem valer os seus
interesses comuns, na qual se condensa toda a sociedade civil de uma época, segue-se disso que
todas as instituições comuns têm como mediador o Estado e adquirem, através dele, uma forma
política. Daí a ilusão de que a lei se baseia na vontade e, além disso, na vontade separada de sua
base real, na vontade livre. E, da mesma maneira, por sua vez, se reduz o direito à lei. (MARX,
K; ENGELS, F. A ideologia alemã.)

Em seguida, Marx apanha as dimensões políticas e econômicas do Estado, ao


compreender o Estado burguês como uma expressão essencial das relações de produção
específicas do capitalismo. Ao aprofundar a análise do regime capitalista, mostra como o Estado
é, em última instância, um órgão da classe dominante. O monopólio do aparelho estatal,
diretamente ou por meio de grupos interpostos, é a condição básica do exercício da dominação.
“O governo moderno não é senão um comitê administrativo dos negócios da classe burguesa”, o
que significa, em outros termos, que “o poder político, na verdade, é o poder organizado de uma
classe para a opressão de outras”.
[...]
Como vemos, para Marx, o Estado é, ao mesmo tempo, constituído e constituinte nas
relações de dependência, alienação e antagonismo, que estão na essência das relações capitalistas
de produção. Por isso, Marx não reduziria o poder estatal a apenas uma das suas expressões,
ainda que fundamental. A condição de órgão de classe é uma determinação básica, conferindo-lhe
as condições essenciais de desenvolvimento e crise; mas não é a única nem aparece com
exclusividade. O Estado é a “colossal superestrutura” da sociedade capitalista, ao mesmo tempo
que o “poder organizado de uma classe” social, a burguesia, sobre as outras.
Na medida em que as relações de produção são, simultaneamente, relações de
dependência, alienação e antagonismo, não podem ser preservadas, a não ser que uma das classes
sociais seja hegemônica ou disponha de elementos para definir as estruturas e as atividades do
aparelho estatal. Isto não impede, entretanto, que o Estado exprima, simultaneamente, os
interesses da burguesia e alguns interesses de outras classes sociais. O que se verifica, em
situações concretas, é que as classes são representadas diferencialmente no Estado burguês.
Como se forma e aperfeiçoa à medida que se desenvolvem as forças produtivas e as relações de
produção, o Estado burguês está constitutivamente organizado e orientado pelas exigências da
acumulação capitalista. Não se pode dar a uma classe sem tirar de outra, da mesma forma que não
se pode tirar tudo de uma classe, sob pena de extingui-la. É preciso ter em conta que o poder
estatal varia conforme a conjugação das forças econômicas e políticas. Há ocasiões em que a
burguesia monopoliza totalmente o aparelho estatal, como na ditadura; há ocasiões nas quais esse
monopólio não pode exercer-se de modo exclusivo, como na democracia burguesa. Às vezes a
burguesia é obrigada a transigir, fazendo concessões à classe média ou, mesmo, ao proletariado.
Além do mais, o movimento interno da sociedade capitalista gera, frequentemente, descompassos
entre as forças políticas do proletariado, da classe média e da burguesia, na cidade e no campo,
em suas relações internas e externas.
Já nos primeiros momentos do capitalismo, a burguesia ascendente tende a usar todo o
poder do Estado para acelerar a reprodução do capital e, ao mesmo tempo, destruir ou incorporar
os remanescentes do feudalismo. Desde a época da acumulação originária, o poder estatal surge
vinculado à burguesia. Essa supremacia é facilitada pelo fato de que, na época, os trabalhadores
estão sendo surpreendidos pelas transformações sociais que acompanham a expansão da
mercantilização geral das relações, pessoas e coisas. Nessa época, está em curso a revolução
burguesa.

No transcurso da produção capitalista, desenvolve-se uma classe trabalhadora que, por educação,
tradição e costume, aceita as exigências desse modo de produção como leis naturais evidentes. A
organização do processo de produção capitalista, em seu pleno desenvolvimento, quebra toda
resistência; a produção contínua de uma superpopulação relativa mantém a lei da oferta e da
procura de trabalho e, portanto, o salário em harmonia com as necessidades de expansão do
capital; e a coação surda das relações econômicas consolida o domínio do capitalista sobre o
trabalhador. Ainda se empregará a violência direta, à margem das leis econômicas, mas
doravante apenas em caráter excepcional. Para a marcha natural das coisas, basta deixar o
trabalhador entregue às “leis naturais da produção”, isto é, à sua dependência do capital, a qual
decorre das próprias condições de produção, e é assegurada e perpetuada por essas condições.
Mas, as coisas corriam de modo diverso durante a gênese histórica da produção capitalista. A
burguesia nascente precisava e empregava a força do Estado, para “regular” o salário, isto é,
comprimi-lo dentro dos limites convenientes à produção de mais-valia, para prolongar a jornada
de trabalho e para manter o próprio trabalhador num grau adequado de dependência. Temos aí
um fator fundamental da chamada acumulação originária. (MARX, K. O Capital.)

Para que as estruturas de apropriação (econômicas) e dominação (políticas) possam


operar de forma adequada e integrada, segundo os interesses da classe dominante, é indispensável
que as classes subalternas, em particular o proletariado, sejam subjugadas mas não aniquiladas.
Essa é uma condição essencial da própria hegemonia burguesa. A alienação da mais-valia, como
produto do trabalho expropriado ou não pago, somente pode exercer-se se ela se mantém em
níveis suportáveis, física e socialmente, pelo proletariado: Daí a necessidade de que o Estado
burguês exprima, ainda que em grau mínimo, e como reflexo da própria hegemonia burguesa,
algum interesse do proletariado. Nesse jogo está uma condição para a sobrevivência do Estado
burguês, como expressão e condição das relações capitalistas de produção. A conciliação de
interesses desiguais e contraditórios, como os da burguesia, da classe média e do proletariado, é
simultaneamente uma condição para subjugá-los aos interesses da burguesia ou à sua facção mais
forte. Acresce que a conciliação tanto propicia a continuidade e aceleração da produção de
mais-valia como permite evitar o agravamento das contradições de classes além dos limites
convenientes à vigência do regime.
Ao examinar a produção de mais-valia absoluta e mais-valia relativa, Marx demonstra
que há um momento em que o proletariado começa a lutar por sua sobrevivência física. O regime
inicialmente estava dizimando uma parte da classe operária. Em consequência, esta ensaia
algumas reações, ainda que de forma anárquica ou politicamente pouco eficaz. Esse é o sentido
básico do movimento luddita, que preconizava a destruição das máquinas.

“Foi necessário passar tempo e acumular experiência, antes que o proletariado soubesse
distinguir entre a maquinaria e o seu uso capitalista, aprendendo assim a dirigir os seus ataques
não contra os meios materiais de produção, mas contra o modo pelo qual eram usados”. (MARX,
K. O Capital.)

Ao mesmo tempo, certos setores do aparelho estatal, inclusive como representantes da


burguesia, começam a compreender que as perspectivas de expansão das relações capitalistas
poderiam ver-se prejudicadas, se fossem mantidos os níveis então vigentes de exploração da
força de trabalho. Nessa época, ainda era importante a produção de mais-valia absoluta,
resultante da extensão da jornada de trabalho. Além disso, o operariado era composto também de
crianças, além de adolescentes e adultos de ambos os sexos. Então começa-se a pôr em prática a
legislação fabril, que “limita” a jornada de trabalho de crianças, adolescentes e adultos, bem
como “proíbe” que certas atividades produtivas sejam desempenhadas por crianças ou mulheres.
Tornara-se inevitável que o poder estatal formulasse e pusesse em prática uma legislação fabril,
para a “proteção física e espiritual da classe operária”.

A legislação fabril, essa primeira reação consciente e sistemática da sociedade contra a marcha
espontânea do processo de produção é, pois, um produto tão necessário à indústria moderna
como a fiação de algodão, o self-actor e o telégrafo elétrico. (MARX, K. O Capital.)

Para Marx, pois, o Estado não é apenas e exclusivamente um órgão da classe dominante;
responde também aos movimentos do conjunto da sociedade e das outras classes sociais,
segundo, é óbvio, as determinações das relações capitalistas. Conforme o grau de
desenvolvimento das formas produtivas, das relações de produção e das formas políticas da
sociedade, o Estado pode adquirir contornos mais ou menos nítidos, revelar-se mais ou menos
diretamente vinculado aos interesses exclusivos da burguesia. Inclusive há ocasiões em que pode
ser totalmente capturado por uma facção da burguesia, da mesma maneira que, em outras
ocasiões, pode ser politicamente (não economicamente) capturado por setores da classe média ou
por militares.
Conforme sugere Marx, em vários passos das suas análises, há momentos em que o
poder estatal parece estar suspenso no ar, apresentando-se como se fora independente das classes
sociais. Essas situações ocorrem quando nenhuma das classes se revela capaz de conquistar e
preservar o poder, em conformidade com os seus desígnios. São as ocasiões de crise de
hegemonia. [...] Mas essa situação não impede que o Estado continue organizado e orientado no
sentido determinado pelas relações capitalistas de produção. Nessas ocasiões, prossegue ou pode
mesmo acelerar-se o processo de acumulação de capital, conforme se combinem umas e outras
condições sociais, econômicas e políticas, inclusive externas. Portanto, por trás da aparência de
autonomia, ou independência, que o poder estatal ganha em certos momentos, continuam a operar
as determinações básicas do regime.
Mas isto ainda não explica por que, em determinados momentos, o Estado ganha essa
aparência de autonomia, como se estivesse organizado em conformidade com a ideologia da
classe dominante, que sempre trata de espelhar o poder estatal como se fora a expressão da
vontade geral ou da sociedade civil. A nosso ver, esse fenômeno resulta de que há ocasiões em
que ocorre um descompasso maior ou, mesmo, divórcio mais acentuado entre as estruturas
políticas e as econômicas. Esse é o segredo da crise de hegemonia, que produz a impressão de
que o Estado divorciou-se desta ou daquela classe, pairando sobre a sociedade como um todo. A
crise de hegemonia não é um fenômeno exclusivamente político, ainda que se manifeste
principalmente no nível das relações e estruturas políticas. O poder estatal adquire a aparência de
autonomia nas ocasiões em que ocorre uma crise simultaneamente política e econômica, na qual a
classe dominante ou uma das suas facções mais ativas perde o controle do aparelho estatal e é
obrigada a comparti-lo formalmente com outras classes. Ou, então, essa aparente independência
se manifesta, quando uma facção da classe dominante já não tem força suficiente para manter o
poder, mas não surge outar capaz de substituí-la.
[...]
Enquanto categoria dialética, pois, o Estado adquire os contornos, a estrutura e os
movimentos que se lhe produzem nas relações com as classes constituídas ou em constituição.
Ocorre que o poder estatal é o núcleo de convergência das relações de interdependência,
alienação e antagonismo que caracterizam a produção capitalista. Por isso ele se configura
segundo as determinações das relações capitalistas concretas, isto é, conforme a situação
específica deste ou daquele país, nesta ou naquela época. Essa é a razão por que Marx não define
o Estado capitalista nem distingue os seus poderes principais de modo formal. Para ele o poder
estatal configura-se, internamente, segundo as determinações das relações de produção num país
e numa ocasião específicos. Os poderes executivo, legislativo, judiciário e soberano não podem
ser descritos ou definidos de forma abstrata, nem isoladamente nem em conjunto. Somente em
situações concretas podem ser “categorizados”. Para isso, é indispensável que a análise veja
como se organizam e funcionam os ministérios, a polícia, o exército, a magistratura, o clero, a
constituição, a burocracia e outras esferas do aparelho estatal, tanto em suas atuações mais
específicas como em suas relações recíprocas; tanto em suas relações com a sociedade civil, em
conjunto, como com cada uma das classes sociais. No percurso dessa análise, surgem as relações,
os processos e as estruturas, de par em par com as pessoas, os grupos e as classes sociais, uns e
outros encadeados no conjunto do regime capitalista de produção, em vigor em dado país e
época. A análise dialética do Estado capitalista, portanto, deve revelar, sob uma luz especial, a
forma pela qual se organizam as forças produtivas, as relações de produção, ou seja, as classes
sociais, em seus movimentos e antagonismos.
A verdade é que a mercantilização universal das relações, pessoas e coisas implica,
também, na generalização de estruturas burguesas de poder aos vários países. Algumas dessas
estruturas são a expressão indispensável das relações de alienação e antagonismo que
caracterizam o processo de produção de mais-valia. Ao comparar uns e outros países, tendo em
conta os diversos graus de desenvolvimento das suas forças produtivas e relações de produção,
evidencia-se que o poder estatal burguês guarda algumas significações essenciais comuns, além
das peculiaridades de cada país.

A despeito da matizada diversidade de suas formas, os distintos Estados dos distintos países
civilizados têm em comum o fato de que todos se apoiam nas bases da sociedade burguesa
moderna, ainda que, em alguns lugares, ela se ache mais desenvolvida do que em outros, no
sentido capitalista. Têm, portanto, certos característicos essenciais comuns. (MARX, K. “Gloses
marginales au programme du parti ouvrier allemand”.)
Mas a análise marxista do Estado capitalista não se completa a não ser quando se
delineiam as condições do seu declínio ou crise final. Vimos que o Estado é a expressão mais
acabada das relações que caracterizam o capitalismo. e. na esfera do Estado que as relações de
alienação e antagonismo das classes sociais adquirem plena concretividade e se resolvem. A crise
do Estado burguês é a consequência necessária do agravamento das contradições de classes,
contradições essas nas quais o proletariado e a burguesia são as duas classes substantivas. Na luta
contra a burguesia, o proletariado lutará para conquistar e destruir o poder estatal, já que este se
constitui no núcleo essencial das relações e estruturas de apropriação e dominação do regime. A
Comuna de Paris foi a primeira manifestação do que poderia ser o Estado proletário, em
contraposição ao Estado burguês. Para concretizar-se, o poder operário começou por suprimir
relações e estruturas jurídico-políticas e burocráticas que exprimiam prática e simbolicamente o
poder burguês. Para instaurar a “ditadura do proletariado”, que é a condição básica para a
transição à “sociedade sem classes”, torna-se indispensável suprimir as relações e as estruturas
preexistentes. Isto significa suprimir a “colossal superestrutura” do edifício do Estado capitalista.
PROLETÁRIOS E COMUNISTAS*

Karl Marx & Friedrich Engels

Qual é a relação dos comunistas com os proletários em geral?


Os comunistas não são um partido à parte entre outros partidos operários.
Seus interesses não são distintos dos interesses do conjunto do proletariado.
Não estabelecem princípios particulares, segundo os quais pretendem moldar o
movimento proletário.
Os comunistas diferenciam-se dos outros partidos proletários apenas em dois pontos:
de uma parte, nas diversas lutas nacionais dos proletários, fazem prevalecer os interesses
comuns do conjunto do proletariado, independentemente da nacionalidade; de outra parte, nos
diversos estágios de desenvolvimento da luta entre proletariado e burguesia, representam
sempre o interesse do movimento geral.
Portanto, na prática, os comunistas são a fração mais decidida, mais mobilizadora dos
partidos operários de todos os países. Na teoria, têm, sobre o resto do proletariado, a vantagem
de ter uma visão clara das condições, da marcha e dos resultados gerais do movimento
proletário.
O objetivo imediato dos comunistas é o mesmo de todos os demais partidos
proletários: formação do proletariado em classe, derrubada da dominação burguesa, conquista
do poder político pelo proletariado.
As concepções teóricas dos comunistas não repousam, de forma alguma, em ideias ou
princípios inventados ou descobertos por este ou por aquele reformador do mundo.
São apenas a expressão geral das relações efetivas de uma luta de classes que existe,
de um movimento histórico que se processa diante de nossos olhos. A supressão das relações
de propriedade existentes até hoje não é, de forma alguma, o caráter distintivo exclusivo do
comunismo.
Todas as relações de propriedade foram submetidas à contínua mudança da História,
à sua contínua transformação.
A Revolução Francesa, por exemplo, aboliu a propriedade feudal em benefício da
propriedade burguesa.

*
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. Porto Alegre: L&PM, 2009, p.46-62.
O que distingue o comunismo não é a supressão da propriedade em geral, mas a
supressão da propriedade burguesa.
Ora, a moderna propriedade burguesa é a última e mais consumada expressão da
produção e da apropriação dos produtos baseadas em antagonismos de classe, na exploração de
uns por outros.
Nesse sentido, os comunistas podem resumir suas teorias nesta única expressão:
supressão da propriedade privada.
Nós comunistas, temos sido criticados, sob a alegação de que queremos suprimir a
propriedade pessoal adquirida pelo trabalho individual; a propriedade que constituiria o
fundamento de toda a liberdade, de toda a atividade e de toda a independência pessoal.
A propriedade, fruto do trabalho, do esforço, do mérito pessoal! Será que se está
falando da propriedade do pequeno burguês, do pequeno camponês, forma de propriedade que
precedeu a propriedade burguesa? Não precisamos suprimi-la; o desenvolvimento da indústria
suprimiu-a e continua suprimindo-a diariamente.
Ou então está-se falando da moderna propriedade privada burguesa?
Mas, será que o trabalho assalariado, o trabalho do proletário, possibilita-lhe criar
alguma propriedade? De forma alguma. Cria o capital, isto é, a propriedade que explora o
trabalho assalariado e que só pode aumentar se gerar trabalho assalariado suplementar, para
explorá-lo de novo. A propriedade, na sua forma atual, gravita em torno da oposição entre
capital e trabalho assalariado. Examinemos os dois termos dessa oposição.
Ser capitalista significa ocupar na produção uma posição não pessoal, mas também
social. O capital é um produto coletivo e só pode ser mobilizado pela atividade comum de
inúmeros membros e, em última instância, apenas pela atividade de todos os membros da
sociedade.
Portanto, o capital não é uma força pessoal. É uma força social.
Assim, quando o capital é transformado em uma propriedade coletiva, pertencendo a
todos os membros da sociedade, não é uma propriedade pessoal que se transforma em
propriedade social. É apenas o caráter social da propriedade que se transforma. Esta perde seu
caráter de classe.
Vejamos o trabalho assalariado.
O preço médio do trabalho assalariado é o salário mínimo, isto é, a soma dos meios de
subsistência necessários para manter vivo operário enquanto tal. O que o operário assalariado
obtém por sua atividade é o estritamente necessário para garantir-lhe a sobrevivência. Não
queremos, de forma alguma, suprimir essa apropriação pessoal dos produtos do trabalho,
necessários à reprodução da vida imediata, apropriação que não deixa nenhum benefício líquido
que confira um poder sobre o trabalho alheio. Queremos apenas suprimir o caráter miserável
desta apropriação, em que o operário só vive para aumentar o capital e só vive enquanto o
exigem os interesses da classe dominante.
Na sociedade burguesa, o trabalho vivo é apenas um meio para multiplicar o trabalho
acumulado. Na sociedade comunista, o trabalho acumulado é apenas um meio de aumentar,
enriquecer, fazer avançar a existência dos operários.
Na sociedade burguesa, o passado domina o presente; na sociedade comunista, o
presente domina o passado. Na sociedade burguesa, o capital é independente e pessoal, ao passo
que o indivíduo ativo não tem nem independência nem personalidade.
À supressão dessas relações, a burguesia chama de supressão da personalidade e da
liberdade! Com razão. Trata-se efetivamente da supressão da personalidade, da independência
e da liberdade burguesas.
No bojo das atuais relações de produção burguesas, por liberdade entende-se a
liberdade de comércio, a liberdade de compra e de venda.
Mas, se o comércio cessa, então cessa também o comércio livre. O palavreado sobre a
liberdade de comércio, como todos os outros palavrórios de nossa burguesia sobre a liberdade,
só têm sentido em face do comércio entravado, em face do burguês subjugado da Idade Média;
mas não diante da supressão comunista do comércio, das relações de produção burguesas e da
própria burguesia.
Revoltai-vos por querermos suprimir a propriedade privada. Mas, em vossa sociedade
atual, a propriedade privada está abolida para nove décimos de seus membros. Ela existe
precisamente porque não existe para nove décimos de seus membros. Criticai-nos por
querermos suprimir uma propriedade que pressupõe, como condição necessária, que a imensa
maioria da sociedade seja desprovida de toda propriedade.
Em uma palavra, criticai-nos por querer suprimir vossa propriedade. Efetivamente, é
isso que queremos.
A partir do momento em que o trabalho não pode mais ser transformado em capital,
em dinheiro, em renda fundiária, em resumo, em um poder social suscetível de ser
monopolizado, isto é, a partir do momento em que a propriedade pessoal não pode mais
converter-se em propriedade burguesa, a partir desse instante, declarais que a individualidade
está abolida.
Portanto, confessais que, por indivíduo, não entendeis nada mais do que o burguês, o
proprietário burguês. Efetivamente, semelhante indivíduo deve ser suprimido.
O comunismo não retira a ninguém o poder de asselhorear-se dos produtos sociais;
apenas retira o poder de se subjugar, por tal apropriação, o trabalho alheio.
Tem-se objetado que, com a supressão da propriedade privada, cessaria toda a
atividade e se instalaria um ócio generalizado.
Nesse caso, já há muito tempo a sociedade burguesa teria perecido em virtude do ócio;
pois os que nela trabalham não ganham e os que ganham não trabalham. Toda essa objeção
reduz-se à tautologia: não haverá mais trabalho assalariado quando não mais existir capital.
Todas as críticas feitas ao modo comunista de apropriação e de produção dos produtos
materiais foram estendidas à apropriação e à produção dos produtos intelectuais. Da mesma
forma que, para o burguês, a supressão da propriedade de classe equivale à supressão da própria
produção, a supressão da cultura de classe corresponde, para ele, à supressão da cultura em
geral.
A cultura cuja perda o burguês deplora é, para a imensa maioria dos homens, a sua
transformação em máquinas.
Mas não nos recrimineis medindo a supressão da propriedade privada por vossas ideias
burguesas de liberdade, de cultura, de direito etc. Vossas próprias ideias são o produto de
relações burguesas de produção e de propriedade, da mesma forma que vosso direito é apenas
a vontade de vossa classe erigida em lei, vontade cujo conteúdo é determinado pelas condições
materiais de vida de vossa classe.
A concepção interesseira, pela qual transformais em leis eternas da natureza e da razão
vossas relações de produção e de propriedade, a partir de relações históricas, ultrapassadas no
curso da produção, a compartilhais com todas as classes dominantes já desaparecidas. Aquilo
que concebeis para a propriedade antiga, aquilo que concebeis para a propriedade feudal, não
deveis mais conceber para a propriedade burguesa.
Supressão da família! Até os mais radicais indignam-se com essa perigosa proposta
dos comunistas.
No que repousa a família atual, a família burguesa? No capital, no lucro privado. A
família, na sua plenitude, existe apenas para a burguesia; mas encontra seu complemento na
ausência forçada de família, imposta aos proletários, e na prostituição pública.
A família do burguês desmorona evidentemente com o desmoronamento de seu
complemento, e ambas desaparecem com o desaparecimento do capital.
Recriminai-nos por querermos suprimir a exploração das crianças pelos pais?
Efetivamente, denunciamos esse crime.
Mas dizeis que suprimimos as relações mais íntimas substituindo a educação familiar
pela educação social.
E também vossa educação não está determinada pela sociedade? Pelas relações sociais
em que a realizais, pela intromissão direta ou não da sociedade pelo viés da escola etc.? Os
comunistas não inventaram a ação da sociedade sobre a educação, apenas modificam-lhe o
caráter, subtraindo a educação da influência da classe dominante.
O palavreado burguês sobre a família e a educação, sobre a intimidade das relações
entre pais e filhos torna-se tanto mais repugnante quanto mais a grande indústria dilacera cada
vez mais os laços familiares dos proletários e transforma as crianças em simples objetos de
comércio e em instrumentos de trabalho.
“Mas vós, comunistas, quereis introduzir a comunidade das mulheres”, grita em
uníssono toda a burguesia.
O burguês vê em sua mulher um mero instrumento de produção. Ouve dizer que os
instrumentos de produção serão explorados coletivamente e, naturalmente, só pode concluir
que a sina das mulheres é serem colocadas em comum.
Não imagina que se trata precisamente de suprimir, para as mulheres, o estatuto de
meros instrumentos de produção.
Aliás, não há nada mais ridículo do que essa indignação profundamente moral de
nossos burgueses contra a comunidade das mulheres oficialmente instaurada pelo comunismo.
Os comunistas não precisam introduzir a comunidade das mulheres; esta quase sempre existiu.
Nossos burgueses, não contentes com o fato de que as mulheres e filhas de proletários
estejam à sua disposição, para não falar da prostituição oficial, têm o maior prazer em seduzir
as mulheres legítimas uns dos outros.
Na realidade, o casamento burguês é a comunidade das mulheres casadas. No máximo,
poder-se-ia recriminar os comunistas por quererem substituir uma comunidade de mulheres
hipócrita e dissimulada por uma comunidade oficial e franca. Aliás, é óbvio que, com a
supressão das atuais relações de produção, desaparece também a comunidade de mulheres dela
resultante, isto é, a prostituição oficial e não oficial.
Além disso, os comunistas foram recriminados por quererem suprimir a pátria, a
nacionalidade.
Os operários não têm pátria. Não se lhes pode tirar o que não têm. À medida que o
proletariado deve primeiramente conquistar, em seu benefício, o poder político, erigir-se em
classe nacional e constituir-se a si mesmo como nação, ele continua sendo nacional, mas nunca
no sentido burguês do termo.
As fronteiras nacionais e os antagonismos entre os povos tendem cada vez mais a
desaparecer, com o desenvolvimento da burguesia, com o livre comércio, com o mercado
mundial, com a uniformização da produção industrial e com as condições de vida
correspondentes.
Com a supremacia do proletariado, desaparecerão ainda mais depressa. A unidade de
ação do proletariado, pelo menos nos países civilizados, é uma das primeiras condições de sua
emancipação.
À medida que se suprime a exploração de um indivíduo por outro, suprime-se
igualmente a exploração de uma nação por outra.
Desaparecendo o antagonismo de classes, no interior de uma nação, desaparece
igualmente a hostilidade entre nações.
As acusações levantadas contra o comunismo, em nome de princípios religiosos,
filosóficos e ideológicos, não merecem exame detalhado.
Será necessário um exame mais profundo para compreender que, ao mudarem as
relações de vida dos homens, suas relações sociais, sua existência social, mudam também suas
representações, suas opiniões e suas ideias, em suma, sua consciência?
O que demonstra a história das ideias senão que a produção espiritual se modifica com
a transformação da produção material? As ideias dominantes de uma época sempre foram as
ideias da classe dominante.
Quando se fala de ideias que revolucionam uma sociedade inteira, exprime-se com
isso apenas o fato de que, no âmago da antiga sociedade, se engendraram os elementos de uma
nova sociedade e que a dissolução das ideias antigas acompanha a dissolução das antigas
relações sociais.
Quando o mundo antigo iniciou seu declínio, as religiões antigas foram suplantadas
pela religião cristã. Quando as ideias cristãs sucumbiram, no século XVIII, às ideias das Luzes,
a sociedade feudal travava seu combate mortal contra a burguesia então revolucionária.
As ideias de liberdade de consciência e de religião exprimiam apenas, no domínio do
saber, o reino da livre concorrência.
Dir-se-á: “Ideias religiosas, morais, filosóficas, políticas, jurídicas etc. modificaram-
se no curso do desenvolvimento histórico. A religião, a moral, a filosofia, a política, o direito,
mantiveram-se constantes no bojo dessa mudança. Além disso, há verdades eternas, como
Liberdade, Justiça etc., que são comuns a todos os regimes sociais. Mas o comunismo abole as
verdades eternas, abole a religião e a moral, em vez de lhes conferir nova forma; portanto,
contradiz todos os desenvolvimentos históricos ocorridos até hoje”.
A que se reduz essa acusação? A história de toda a sociedade hoje gira em torno de
oposições de classe, que assumiram diversas formas nas diferentes épocas.
Mas, qualquer que tenha sido a forma assumida, a exploração de uma parte da
sociedade por outra é um fato comum a todos os séculos passados.
Portanto, não é de se admirar que a consciência social de todos os séculos, apesar de
toda a multiplicidade e de toda a diversidade, gravite em torno de certas formas comuns, em
formas de consciência, que só se dissolvem completamente com o desaparecimento total do
antagonismo de classe.
A revolução comunista é a ruptura mais radical com as relações tradicionais de
propriedade. Não admira que, no curso de seu desenvolvimento, rompa radicalmente com as
ideias tradicionais.
Mas deixemos aqui as objeções da burguesia ao comunismo.
Vimos anteriormente que o primeiro passo da revolução operária será a ascensão do
proletariado à classe dominante e à luta pela democracia.
O proletariado utilizará seu poder político para arrancar pouco a pouco todo o capital
da burguesia, para centralizar todos os instrumentos de produção nas mãos do Estado, isto é, do
proletariado organizado como classe dominante, e para aumentar, o mais rapidamente possível,
o contingente das forças de produção.
Naturalmente isso só pode acontecer, de início, mediante intervenções despóticas no
direito de propriedade e nas relações de produção burguesas, isto é, através de medidas que
parecem economicamente insuficientes e insustentáveis, mas que se superam a si próprias no
desenrolar do movimento, e são indispensáveis para revolucionar todo o modo de produção.
Certamente essas medidas diferirão nos diferentes países.
Entretanto, no que toca aos países mais desenvolvidos, de um modo geral podem-se
aplicar as medidas seguintes:
1. Expropriação da propriedade fundiária e utilização da renda resultante para as
despesas do Estado;
2. Imposto acentuadamente progressivo;
3. Supressão do direito de herança;
4. Confisco da propriedade de todos os emigrantes e rebeldes;
5. Centralização do crédito nas mãos do Estado, por meio de um banco nacional com
capital estatal e monopólio exclusivo;
6. Centralização de todos os meios de transporte nas mãos do Estado;
7. Multiplicação das indústrias nacionais, dos instrumentos de produção,
desbravamento e melhora das terras, de acordo com um plano coletivo;
8. Obrigatoriedade do trabalho para todos, organização de exércitos industriais, em
especial para a agricultura;
9. Combinação do trabalho agrícola e do trabalho industrial, medidas para a
eliminação gradual da oposição entre cidade e campo;
10. Educação pública e gratuita para todas as crianças. Supressão do trabalho infantil
em fábricas, em sua forma atual. Combinação da educação com a produção material etc.
Uma vez que desaparecerem as diferenças de classe no curso do desenvolvimento, e
toda a produção concentrar-se nas mãos de indivíduos associados, o poder público perderá seu
caráter político. Em sentido próprio, o poder público é o poder organizado de uma classe para
a opressão de outra. Se o proletariado, em sua luta contra a burguesia deve necessariamente
unificar-se em uma classe única, se, em decorrência de uma revolução, ele se converte em classe
dominante; e como classe dominante, suprimir pela violência as antigas relações de produção,
suprimirá automaticamente, juntamente com essas relações de produção, as condições de
existência da oposição de classe e, por esse viés, as classes em geral e, com isso, sua própria
dominação de classe.
No lugar da antiga sociedade burguesa com suas classes e oposições de classe surge
uma associação em que o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre
desenvolvimento de todos.
CRÍTICA DO PROGRAMA SOCIAL-DEMOCRATA DE GOTHA1

Karl Marx

“B. O Partido Operário Alemão reivindica como base intelectual e moral do Estado:
1. A educação popular, geral e igual, assegurada pelo Estado. Obrigação escolar para
todos. Ensino gratuito2.”
A educação popular igual para todos? O que é que se imagina que esta fórmula é?
Acredita-se que na atual sociedade (e apenas tratamos dela neste momento) a educação possa
ser igual para todas as classes? Ou pretender-se-á forçar as classes superiores a contentarem-se
com a mesquinha educação popular das escolas primárias, educação à qual só podem ter acesso
os trabalhadores assalariados bem como os camponeses, dadas as suas condições econômicas3?
“Obrigação escolar para todos. Instrução gratuita”: a primeira existe mesmo na
Alemanha, a segunda na Suíça e nos Estados Unidos para as escolas primárias. Se, nos diversos
Estados destes últimos, alguns estabelecimentos de ensino superior são igualmente “gratuitos”,
isso de fato significa simplesmente que as despesas de educação das classes superiores são
pagas pelas receitas do conjunto dos impostos. Diga-se de passagem, o mesmo se passa com a
“administração gratuita da justiça”, exigida pelo artigo 5. A justiça penal é gratuita por todo
lado; a justiça civil gira quase que exclusivamente em redor de litígios de propriedade e diz
respeito portanto quase unicamente às classes superiores. Pretender-se-ia que elas mantivessem
os seus processos à custa do tesouro público?
O parágrafo relativo às escolas teria devido pelo menos exigir escolas técnicas
(teóricas e práticas) combinadas com a escola primária.
O que é absolutamente preciso condenar é “uma educação popular pelo Estado”.
Determinar por meio de uma lei geral os recursos das escolas primárias, a qualificação

1
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Crítica da educação e do ensino. Introdução e notas de Roger Dangeville.
Lisboa: Moraes Editores, 1978, p.88-92.
2
Cf. MARX, Notas Marginais ao Programa do Partido Operário Alemão de Gotha (1875), de que extraímos a
crítica de Marx do programa relativo ao ensino.
3
Como Marx salienta, a sociedade burguesa tem necessidade de um determinado efetivo de pessoal qualificado
que o ensino superior lhe fornece: pouco importa ao capital qual é a origem social dos seus membros, desde que
sejam qualificados para executar as suas funções: a promoção social só se faz portanto no interesse geral do
capitalismo e pessoal das forças de trabalho “qualificadas”. Marx considera que esta “promoção”, se se efetua nas
fileiras das classes inferiores, é uma prova da força e da impudência das classes “superiores”: “Tal como, para a
Igreja católica na Idade Média, o fato de recrutar a sua hierarquia sem considerações de condição social, de
nascimento, entre os melhores cérebros do povo, era um dos meios principais de reforçar a dominação do clero e
de assegurar a manutenção dos laicos fora da verdade. Quanto mais uma classe dominante é capaz de acolher nas
suas fileiras os homens mais importantes da classe dominada, mais a sua opressão é sólida e perigosa.” (Marx, O
Capital, III, cap.36.)
necessária ao pessoal docente, as disciplinas ensinadas etc., e – como isso se passa nos Estados
Unidos – mandar verificar por inspetores de Estado a execução das prescrições legais, é
totalmente diferente de fazer do Estado o educador do povo! Antes pelo contrário, é preciso
banir da escola, pela mesma razão, qualquer influência do governo e da Igreja4. E precisamente
no Império prusso-alemão (e que não se fale, recorrendo a um subterfúgio ilusório, do “estado
do futuro”, porque vimos o que é), é pelo contrário o Estado que tem necessidade de uma muito
rude educação pelo povo!
Quanto ao resto, todo o programa, a despeito de todo o seu retinir democrático, está
do princípio ao fim infectado pela servil crença lassaliana no Estado ou – o que não é melhor –
pela crença nos milagres da democracia. Mais exatamente ainda: é um compromisso entre estas
duas espécies de fé no milagre, igualmente afastadas do socialismo.
“Liberdade da ciência”, diz um parágrafo da Constituição Prussiana. Para quê então
falar disso no programa do partido operário?
“Liberdade de consciência”! Se nos empenhássemos nestes termos de Kulturkampf5,
em lembrar ao liberalismo os seus velhos slogans, só o podíamos fazer dizendo: “Cada um deve
poder satisfazer as suas necessidades religiosas bem como corporais, sem que a polícia tenha
algo a ver com isso.” Mas, nesta ocasião, o partido operário não devia antes exprimir a sua
convicção de que “a liberdade de consciência” burguesa não passa da tolerância de toda a
espécie possível de “liberdades de consciência religiosa” e que, pelo seu lado, se esforça, pelo
contrário, por libertar as consciências dos fantasmas religiosos? Mas não pretendemos de forma
alguma ultrapassar o nível burguês!
Chego assim ao fim, porque o anexo junto ao programa não representa uma parte
característica. Posso ser breve.

4
A posição de Marx é estritamente de classe, e opõe-se radicalmente a todo o sistema escolar francês adstrito à
tutela do Estado e tal como é reivindicado pela esquerda laica, mas não antietática. Claro que Marx não se opõe
ao controle do Estado para a “execução das prescrições legais”, e a sua posição vem ao encontro da que ele tem
no que diz respeito à legislação de trabalho: cf. MARX-ENGELS, Le Syndicalisme, PCM, t. I, p.9, nota 4.
O § 4 do programa de Gotha ilustra com que espírito Marx concebia o papel do Estado: “Face ao Estado prusso-
alemão, era necessário claramente precisar que os inspetores não fossem revogáveis senão sob decisão dos
tribunais; que qualquer operário os pudesse atacar em justiça por violação dos seus deveres, que fossem entregues
ao corpo médico.”
5
Os liberais burgueses classificaram de Kulturkampf o conjunto das medidas tomadas por Bismark no decurso dos
anos 1870 para instaurar na Alemanha uma “cultura laica”. Em primeiro lugar, o homem de Estado prussiano
visava, através da Igreja católica, o partido do Centro, que representava todas as sobrevivências dos pequenos
Estados particularistas e antiprussianos do Centro e do Sul da Alemanha. Em seguida, utilizou esta campanha
anticatólica para oprimir os territórios polacos ocupados pela Prússia e, em menor medida, a Alcásia-Lorena.
Enfim, Bismark mascarava as lutas de classes de querelas religiosas, mandando organizar as tropas mais
reacionárias da direita, do catolicismo e do particularismo em redor do partido do Centro cristão numa oposição
militante e empurrando a socialdemocracia alemã para palavras de ordem estéreis de defesa da liberdade de
consciência e outras ninharias democráticas sem conteúdo de classe proletário e socialista. Cf. MARX-ENGELS,
A Social-Democracia Alemã, 10/8, 1975, p.245.
“2. Jornada de trabalho normal.”
Em nenhum outro país, o partido operário se contentou com uma reivindicação tão
vaga, mas sempre precisou a duração da jornada de trabalho, tal como a considera normal nas
condições dadas.
“3. A limitação do trabalho das mulheres e a interdição do trabalho das crianças.”
A regulamentação da jornada de trabalho deve encerrar já a limitação do trabalho das
mulheres no que diz respeito à duração, às pausas etc., da jornada de trabalho6; de outro modo
pode apenas significar a exclusão das mulheres dos ramos da indústria que são particularmente
prejudiciais à sua saúde física ou contrárias à moral do ponto de vista do sexo. Se era isto que
se pensava, era preciso dizê-lo.
“Interdição do trabalho das crianças!” É absolutamente indispensável indicar aqui o
limite de idade.
Uma “interdição geral do trabalho das crianças” é incompatível com a própria
existência da grande indústria: não passa, portanto, de um voto piedoso e estéril. A sua
realização – se fosse possível – seria reacionária. Com efeito, graças a uma estrita
regulamentação do tempo de trabalho segundo a idade e através de outras medidas de proteção
a favor das crianças, a combinação precoce do trabalho produtivo e da instrução é um dos mais
poderosos meios de transformação da sociedade atual7.
“5. Sobre a regulamentação do trabalho nas prisões.”

6
Marx tinha uma ideia precisa e prática da questão da limitação da jornada de trabalho, como é disso testemunho
a passagem seguinte: “Para a instrução dos membros da Associação no continente, cuja experiência sobre as leis
que regem as fábricas é de uma data mais recente do que a dos operários ingleses, acrescentamos que qualquer lei
sobre a limitação da jornada abortará e será destruída pelos capitalistas, se não se tiver cuidado em determinar
precisamente o período do dia que deve englobar as oito horas de trabalho. A duração deste período deve ser
determinada pelas oito horas de trabalho mais as pausas para as refeições. Por exemplo, se as diferentes
interrupções para as refeições se elevam a uma hora, será preciso limitar a nove horas o período legal de trabalho,
digamos das 7 horas da manhã às 4 da tarde, ou das 8 horas da manhã às 5 da tarde.” (MARX, Instruções para os
Delegados do Conselho Central Provisório a Propósito de Diversas Questões (1866), cf. MARX-ENGELS, Le
Syndicalisme, PCM, t. II, p.81.) Todo este parágrafo, que figurava no relatório de Marx ao congresso da AIT de
Genebra, foi omitido nas resoluções publicadas em seguida.
7
Um dos princípios fundamentais de Marx em matéria de educação é, com efeito, a reivindicação do trabalho
produtivo para as crianças, a fim de aniquilar o espírito “pueril” que reina, por exemplo, nas classes parasitárias
da sociedade. Este regresso da escola à produção revivificaria o ensino, ligando-o às fontes dos meios materiais
da vida. A próxima seção desta coletânea será toda dedicada a este problema da fusão da escola e da produção,
que é uma outra forma da combinação do trabalho físico e intelectual no socialismo, no sentido de Marx-Engels.
De nada serve mascarar as conclusões de Marx, argumentando que nos nossos dias, em alguns países “avançados”
(onde a produção está automatizada, como ele o previra desde 1859, por exemplo, nos Grundrisse, 10/8, t. 3,
p.327-337), as crianças já não trabalham na oficina, o que contradiz a sua afirmação segundo a qual “uma
interdição geral do trabalho das crianças é incompatível com a própria existência da grande indústria”. O
capitalismo conquistou hoje vários continentes novos, entre os mais povoados, onde tomou um banho de mocidade
e repete a uma escala alargada, as condições descritas por Marx em O Capital.
Vós colocastes uma reivindicação mesquinha para um programa operário geral. Em
todo o caso, era preciso exprimir claramente que não se pretendia, por simples receio ciumento
da concorrência, admitir que se tratam os presos como se fossem gado, privando-os do seu
único meio de correção, o trabalho produtivo8. É o menos que se pode esperar de socialistas.

8
A concepção de Marx é coerente e sistemática. Claro que ela é explorada – mas para isso completamente truncada
– pelos burgueses e os pretensos países socialistas a fim de extorquir o mais possível de trabalho aos proletários
assalariados em nome do... marxismo. Mas é precisa verdadeiramente uma má fé insigne para confundir o sistema
socialista de Marx, que abole a divisão do trabalho, o dinheiro, as profissões manuais e intelectuais, com o caráter
rebarbativo do trabalho produtivo, o mercado, bem como o salariato e o capital, com um sistema mais ou menos
elaborado de capitalismo de Estado.
Notemos que, nas prisões francesas, utiliza-se cada vez mais o sistema idealista de educação, que faz abstração
das condições materiais dos prisioneiros, para fazer da sua adaptação e inserção na vida civil uma questão de
psicólogos, com os seus métodos de inquisição espiritual de tipo policial sem consciência direta da vida concreta.
TRABALHO DOS ADOLESCENTES E DAS CRIANÇAS DE AMBOS OS SEXOS1

Karl Marx

Consideramos a tendência da indústria moderna para fazer cooperar as crianças e os


adolescentes de ambos os sexos na grande obra da produção social como um progresso legítimo
e salutar, apesar de a maneira como esta tendência se realiza sob o reinado do capital ser
perfeitamente abominável2.
Numa sociedade racional, seja que criança for, a partir da idade de nove anos, deve
ser um trabalhador produtivo, tal como um adulto em posse de todos os seus meios não pode
desobrigar-se da lei geral da natureza, segundo a qual aquele que quer comer deve igualmente
trabalhar, não só com o seu cérebro, mas também com as suas mãos. Mas, de momento, não
temos de nos ocupar senão das classes operárias. Consideramos útil dividi-las em três categorias
que devem ser abordadas diferentemente.
A primeira compreende as crianças de 9 a 12 anos; a segunda, as de 13 a 15 anos; a
terceira, as de 16 e 17 anos. Propomos que o emprego da primeira categoria, em qualquer
trabalho, na fábrica ou ao domicílio, seja legalmente restringido a duas horas; o da segunda, a
quatro horas, e o da terceira a seis. Para a terceira categoria, deve haver uma interrupção de
uma hora, pelo menos, para a refeição e o recreio3.
Seria desejável que as escolas elementares começassem a instrução das crianças antes
da idade de nove anos; mas, de momento, só nos preocupamos com os contravenenos
absolutamente indispensáveis para contrabalançar os efeitos de um sistema social que degrada
o operário ao ponto de o transformar num simples instrumento de acumulação de capital, e que
fatalmente muda os pais em comerciantes de escravos dos seus próprios filhos. O direito das

1
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Crítica da educação e do ensino. Introdução e notas de Roger Dangeville.
Lisboa: Moraes Editores, 1978, p.221-223.
2
Cf. MARX, Instruções para os delegados do Conselho Central Provisório a propósito de diversas questões
(Extracto).
O texto oficial destas resoluções foi editado pelo Conselho Geral da AIT, em 1868; é precedido pela seguinte
observação:
“Algumas das resoluções aprovadas no I Congresso podem ser consideradas como parte integrante dos princípios
da Associação Internacional dos Trabalhadores. Tendo tido as atas deste Congresso apenas uma difusão limitada,
o Conselho Geral considerou útil publicá-las de novo, ao mesmo tempo que as resoluções aprovadas no último
congresso.”
Marx elaborou estas instruções, que se tornaram, após a sua aprovação, as resoluções do I Congresso da AIT,
reunido em Genebra de 3 a 9 de Setembro de 1866. A este respeito, Marx escreveu a Kugelmann, a 9 de Outubro
de 1866: “Limitei de propósito o programa dos delegados enviados por Londres aos pontos que permitem um
acordo imediato e uma ação concertada dos trabalhadores, de maneira a dar um impulso direto às exigências da
luta de classes e da organização dos operários em classe.”
3
Estes dados concretos correspondem evidentemente ao desenvolvimento das forças produtivas do século passado.
crianças e dos adultos deve ser defendido, dado que não o podem fazer eles mesmos. É por isso
que é dever da sociedade agir em seu nome.
Se a burguesia e a aristocracia desprezam os seus deveres para com os seus
descendentes, é lá com eles. A criança que goza dos privilégios destas classes está condenada
a sofrer com os seus próprios preconceitos.
O caso da classe operária é completamente diferente. O trabalhador individual não atua
livremente. Em numerosíssimos casos, é demasiado ignorante para compreender o interesse
verdadeiro do seu filho ou as condições normais do desenvolvimento humano. Contudo, a parte
mais esclarecida da classe operária compreende plenamente que o futuro da sua classe, e por
conseguinte da espécie humana, depende da formação da geração operária que cresce.
Compreende, antes de tudo, que as crianças e os adolescentes devem ser preservados dos efeitos
destruidores do sistema atual. Isso só pode realizar-se pela transformação da razão social em
força social e, nas circunstâncias presentes, só podemos fazê-lo por meio das leis gerais
impostas pelo poder de Estado. Ao impor tais leis, as classes operárias não fortificarão o poder
governamental. Pelo contrário, transformariam o poder dirigido contra elas em seu agente. O
proletariado fará então, por uma medida geral, o que tentaria em vão realizar por uma multidão
de esforços individuais.
Partindo daqui, dizemos que a sociedade não pode permitir nem aos pais nem aos
patrões empregar no trabalho as suas crianças e os seus adolescentes, a menos que combinassem
este trabalho produtivo com a educação.
Por educação, entendemos três coisas:
1. Educação intelectual;
2. Educação corporal, tal como é produzida pelos exercícios de ginástica e militares;
3. Educação tecnológica, abrangendo os princípios gerais e científicos de todos os
processos de produção, e ao mesmo tempo iniciando as crianças e os adolescentes na
manipulação dos instrumentos elementares de todos os ramos de indústria.
À divisão das crianças e dos adolescentes em três categorias, de 9 a 18 anos, deve
corresponder um curso graduado e progressivo para a sua educação intelectual, corporal e
politécnica. Os custos destas escolas politécnicas devem ser em parte cobertos pela venda das
suas próprias produções.
Esta combinação do trabalho produtivo, pago com a educação intelectual, os exercícios
corporais e a formação politécnica, elevará a classe operária muito acima do nível das classes
burguesa e aristocrática.
É óbvio que o emprego de qualquer criança ou adolescente dos 9 aos 18 anos, em
qualquer trabalho noturno ou em qualquer indústria cujos efeitos são prejudiciais à saúde, deve
ser severamente proibido pela lei.
A BASE CAPITALISTA DA EDUCAÇÃO DO FUTURO1

Karl Marx

Por muito débeis que pareçam no seu conjunto os artigos da regulamentação fabril
sobre a educação, proclamam todavia a instrução primária como condição obrigatória do
trabalho das crianças2. O seu êxito era a primeira demonstração da possibilidade de unir o
ensino e a ginástica ao trabalho manual, e vice versa, o trabalho manual ao ensino e à ginástica3.
Ao consultar os mestres-escolas, os inspectores fabris reconheceram depressa que as
crianças das fábricas que frequentam as escolas apenas durante meio dia aprendem tanto como
os alunos regulares, muitas vezes mais.
“E a razão disto é simples. Aquelas que não ficam retidas senão meio dia na escola
estão sempre frescas, bem dispostas e têm mais aptidão e melhor vontade para aproveitarem as
lições. No sistema meio-trabalho, meio-escola, cada uma das duas ocupações repousa e
descansa da outra, e a criança sente-se melhor do que se estivesse agarrada constantemente a
uma delas. Um rapaz que está sentado nos bancos da escola desde manhã cedo, sobretudo em
tempo quente, é incapaz de rivalizar com aquele que chega bem disposto e alegre do seu
trabalho4.”
Encontram-se argumentos suplementares sobre este tema no discurso de Sênior no
congresso sociológico de Edimburgo em 1863. Demonstra, entre outras coisas, como a jornada
de escola prolongada, unilateral e improdutiva das crianças das classes médias e superiores

1
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Crítica da educação e do ensino. Introdução e notas de Roger Dangeville.
Lisboa: Moraes Editores, 1978, p.203-221.
2
Cf. MARX, O Capital, I, in Werke, 23, pp. 507-508 e 510-513.
Neste capítulo, Marx evoca o movimento económico que suscita, no início revolucionário do capitalismo, o
programa de educação que prepara o pleno desenvolvimento do homem sob o socialismo. Contrariamente aos
utopistas que ligavam a educação a um trabalho produtivo desusado (artesanal) ou parcial (agrícola), Owen ligou
a educação ao trabalho produtivo na manufatura moderna. Marx, esse, faz partir o seu sistema do desenvolvimento
das realidades de toda a grande indústria, depois da sua palingenesia no comunismo, onde o homem se terá de
novo apropriado das ciências objetivadas e mortas de hoje nas máquinas, a fim de dominar e moldar segundo as
suas necessidades variadas a produção e a natureza, desenvolvendo-se a si mesmo à escala da sociedade e das suas
forças produtivas.
3
Segundo a legislação fabril inglesa, os pais não podem enviar os filhos com menos de catorze anos para as
fábricas “controladas” sem Ihes prestar ao mesmo tempo a instrução elementar. O fabricante é responsável pela
execução da lei.”A educação de fábrica é obrigatória, é uma condição do trabalho.” (Cf. Relatório ..., Outubro de
1865, p. 11.) (Nota de Marx.)
4
Cf. Relatório ..., loc. cit., p. 118. Um fabricante de seda declara ingenuamente aos comissários de inquérito da
Child Employment Com.: “Estou convencido de que o verdadeiro segredo da produção de operários hábeis consiste
em fazer caminhar juntos desde a infância o trabalho e a instrução. Naturalmente o trabalho não deve exigir nem
demasiados esforços, nem ser repugnante ou doentio. Desejaria que os meus próprios filhos pudessem partilhar o
seu tempo entre a escola por um lado e o trabalho por outro.” (Cf. Child. Employment Com. V. Rep., p. 82, nº 36.)
(Nota de Marx.)
aumenta inutilmente o trabalho dos professores, “fazendo não só perder sem vantagens o tempo
às crianças, a saúde e a energia, mas ainda destruindo-as de maneira absolutamente nociva5”.
Como se pode observar, até nos pormenores, em Robert Owen, o sistema de fabrico
fez nascer o germe da educação do futuro, que combinará para todas as crianças acima de
determinada idade o trabalho produtivo com a instrução e a ginástica, não apenas como método
para aumentar a produção social, mas como o único método para produzir homens
desenvolvidos em todos os sentidos.
Viu-se que a grande indústria suprime tecnicamente a divisão manufatureira do
trabalho, em que todo um homem está, durante a vida, ligado a uma operação parcelar, mas ao
mesmo tempo a sua forma capitalista reproduz esta divisão do trabalho de maneira ainda mais
monstruosa: na sua fábrica propriamente dita, ao transformar o operário em acessório
consciente de uma máquina parcial; em qualquer outro lado, conduz ao mesmo resultado, quer
introduzindo o emprego esporádico de máquinas e do trabalho à máquina, quer introduzindo o
trabalho das mulheres, das crianças e de não-qualificados como base nova da divisão do
trabalho6.
A contradição entre a divisão manufatureira do trabalho e a natureza da grande
indústria manifesta-se por fenômenos de violência, entre outros pelo fato atroz de que uma
grande parte das crianças empregadas nas fábricas e nas manufaturas modernas continuar presa
indissoluvelmente, desde a mais tenra idade e durante anos inteiros, às manipulações mais
simples, sem aprender o mais pequeno trabalho que permita empregá-las utilmente mais tarde,
nem que fosse nesta mesma fábrica ou manufatura. Nas tipografias inglesas, por exemplo, os
aprendizes elevavam-se pouco a pouco, de acordo com o sistema da antiga manufatura e do

5
SENIOR, Report of Proceedings..., VII Congresso Anual da National Association for the promotion of social
Sciences, p. 66.
Para avaliar quanto, num determinado grau do seu desenvolvimento, a grande indústria, ao transtornar o modo de
produção material e as relações sociais de produção, revoluciona igualmente os espíritos, basta comparar o discurso
de N. W. Senior em 1863 com a sua sátira contra a legislação fabril de 1833, ou confrontar as opiniões do congresso
que acabamos de citar com o facto de que, em determinadas zonas de Inglaterra, é ainda proibido aos pais pobres
mandar Instruir os seus filhos sob pena de morrerem de fome. É habitual, por exemplo, no Somersetshire – tal
como conta o sr. Snelle –, que qualquer pessoa que exija uma assistência à paróquia deve retirar os filhos da escola.
Deste modo, M. Wollaston, pastor em Feltham, cita casos em que foi recusado qualquer auxílio a determinadas
famílias “porque mandavam os filhos à escola!” (Nota de Marx.)
6
Onde as máquinas de tipo artesanal acionadas pela força do homem estão em competição direta ou indireta com
máquinas mais desenvolvidas, ou seja movidas por uma força motriz mecânica, tem lugar uma grande alteração
para o trabalhador que aciona a máquina. Na origem, a máquina a vapor substituía o operário; agora, é ele que
deve substituir a máquina. É por isso que a tensão e o dispêndio da sua força de trabalho se tornam monstruosos,
e como devem sê-lo para os adolescentes condenados a esta tortura! O comissário Longe encontrou em Coventry
e nos arredores crianças de dez a quinze anos empregadas em teares de fitas, sem falar de crianças mais novas que
tinham de trabalhar com teares de menor dimensão. “É um trabalho extraordinariamente penoso; o rapaz serve
simplesmente para substituir a força do vapor.” (Child. Empl. Comm. V Rep., 1866, p, 114, n.· 6.) Sobre as
consequências mortíferas «deste sistema de escreveture», tal como é chamado pelo relatório oficial, cf. loc. cit. e
páginas seguintes. (Nota de Marx.)
ofício, dos trabalhos mais simples aos trabalhos mais complexos. Percorriam várias fases antes
de serem tipógrafos feitos. Saber ler e escrever era para todos uma exigência profissional. A
máquina de imprimir alterou tudo isto. Utiliza dois tipos de empregados: um adulto que a vigia
e dois jovens rapazes, na sua maior parte, com a idade de onze a dezessete anos, cuja tarefa
exclusiva consiste em enfiar na máquina uma folha de papel ou retirá-la assim que está
impressa. Realizam esta operação fastidiosa, em Londres nomeadamente, catorze, quinze ou
dezesseis horas seguidas, durante alguns dias da semana, e muitas vezes trinta e seis horas
consecutivas com duas horas apenas de pausa para a refeição e o sono7. A maior parte não sabe
ler, e são em geral criaturas meio selvagens, meio embrutecidas: “O seu trabalho não exige
qualquer espécie de preparação intelectual; têm poucas ocasiões de exercer a sua aptidão e ainda
menos a sua opinião; o seu salário, apesar de bastante elevado para rapazes da sua idade, não
aumenta em proporção à idade; e poucos entre eles têm a perspectiva de obter o cargo melhor
remunerado e mais digno de vigilante, porque a máquina só exige na maior parte das vezes,
para quatro ajudantes, um vigilante8.”
Quando são demasiado “velhos” para a tarefa infantil, ou seja, por volta dos dezessete
anos, são despedidos e tornam-se outras tantas presas do crime. A sua ignorância, a sua
grosseria e a sua degradação física e intelectual fizeram fracassar as poucas tentativas para os
ocupar noutro local.
O que é verdade para a divisão manufatureira do trabalho no seio da oficina é-o
igualmente para a divisão do trabalho no seio da sociedade. Enquanto o artesanato e a
manufatura formarem a base geral da produção social, a subordinação do trabalhador a um ramo
exclusivo da produção, e a destruição da variedade original das suas aptidões e das suas
ocupações9 podem ser consideradas como necessidades do desenvolvimento transitório da
história. Nesta base, cada indústria encontra empiricamente a forma técnica que melhor lhe
corresponde, aperfeiçoa-a pouco a pouco, e fixa-se assim que atingiu um certo grau de
maturidade. O que de tempos a tempos provoca mudanças, é, além da nova matéria do trabalho
fornecida pelo comércio, a transformação gradual do instrumento de trabalho. Também este,

7
Ibid., p. 3, nº 24. (Nota de Marx.)
8
Ibid., p, 7, nº 60. (Nota de Marx.)
9
Segundo o Statistical Account, em determinadas localidades da alta Escócia, um grande número de pastores e de
pequenos camponeses vivia com mulher e filhos. Todos calçavam sapatos feitos por eles mesmos, depois de terem
curtido o coiro, vestiam fatos feitos apenas pelas suas próprias mãos, cujo material era por eles confeccionado a
partir de lã tosquiada dos carneiros ou do linho que eles mesmos tinham cultivado. Na confecção do seu vestuário,
pouco entrava um artigo comprado, à excepção das sovelas, das agulhas, dos dedais e de algumas partes das
ferramentas de ferro empregadas para a tecelagem. As mulhe-res tinham extraído elas mesmas as tintas de arbustos
e de plantas indígenas, etc. (Cf, Dugald STEWART, Works, ed. Hamilton, t. VIII, pp. 327-328.) (Nota de Marx.)
assim que adquiriu uma forma mais ou menos conveniente, se fossiliza e transmite-se muitas
vezes durante séculos de uma geração para outra.
Um facto dos mais característicos, é que até ao século XVIII os ofícios tinham o nome
de mistérios10, em cujas trevas só o indivíduo iniciado praticamente e profissionalmente tinha
o direito de penetrar.
A grande indústria arrancou o véu que escondia dos olhares dos homens o fundamento
material da sua vida, o seu próprio processo de produção social. Até à época manufatureira, os
diferentes ramos de ofício, saídos espontaneamente da divisão do trabalho social, formavam
uns perante os outros tantos recintos em que era proibido ao profano penetrar. Guardavam com
um ciúme inquieto os segredos da sua rotina profissional, cuja teoria continuava a ser um
enigma mesmo para os iniciados. O princípio da indústria moderna consiste em considerar cada
processo em si mesmo e em analisá-lo nos seus movimentos constituintes, independentemente
da sua execução pela força muscular ou a aptidão manual do homem. É assim que se desenvolve
a ciência moderna da tecnologia. Reduziu os elementos, baralhados, pitorescos, fossilizados, e
sem ligação aparente entre si, do processo de produção da sociedade anterior, a aplicações,
conscientemente planificadas e sistematicamente distintas segundo o efeito útil procurado, da
ciência da natureza.
A tecnologia descobriu o pequeno número de formas fundamentais do movimento, nas
quais toda a ação produtiva do homem se resume necessariamente, apesar da diversidade dos
instrumentos utilizados, tal como o maquinismo mais complicado só esconde o jogo de leis
mecânicas simples11.

10
No célebre Livro dos Ofícios, de Étienne Boileau, encontram-se, entre outras prescrições, a seguinte: “Qualquer
companheiro, quando é recebido na ordem dos mestres, deve jurar amar fraternalmente os seus irmãos, mantê-las,
cada um na ordem do seu ofício, ou seja nunca divulgar voluntariamente os segredos do oficio. Deve também jurar
que nunca dará a conhecer ao comprador, para fazer valer as suas mercadorias, os defeitos das mal confeccionadas
pelos outros, no interesse comum da corporação.» (Cf. Regulamentos sobre as Artes e Oficias de Paris, redigidos
no século XIII e conhecidos sob o nome de Livro dos Ofícios, publicado por G. B. Depping, Paris, 1837: os
juramentos dos diferentes ofícios). (Nota de Marx.)
11
Para chegar a esta conclusão revolucionária, segundo a qual as máquinas se resumem a algumas leis mecânicas
simples, apesar de reduzirem tudo ao trabalho simples e permitirem a abolição da divisão do trabalho até ao nível
do indivíduo que poderá FAZER tudo o que fazem os outros, Marx dedicou-se a um enorme trabalho de
investigação e de compilação: cf. os manuscritos dos cadernos V, XIX e XX de 1861-1863, bem como os seus
cadernos de extratos dos mesmos anos. Marx resume as suas conclusões sobre a lógica das invenções sucessivas
do movimento mecânico que derruba todos os preconceitos atuais, sobre as contribuições enormes que a época
capitalista moderna teria dado, na sua carta a Engels de 28 de Janeiro de 1863, onde explica além disso: “Quando
da minha primeira elaboração, ignorava determinadas questões curiosas. Para aclarar ideias, reli inteiramente os
meus cadernos de extratos sobre a tecnologia e frequentei cursos (trabalhos práticos e experiências apenas) do
prof. Willis (Jermynstreet, o instituto de geologia, onde Huxley realizou Igualmente as suas conferências) em
intenção dos operários (...). Para os matemáticos puros, estas questões são indiferentes, mas tornam-se importantes
assim que se trata de demonstrar a conexão entre as relações sociais da humanidade e a evolução destes modos
de produção materiais.” (Cf. Karl Marx, Friedrich Engels, Correspondance, Editions du Progrès, Moscovo,
1971.)
A indústria moderna não considera e nunca trata como definitivo o modo atual de um
processo ou a forma dada de um processo de produção. A sua base técnica é portanto
revolucionária, enquanto a de todos os modos de produção anteriores era essencialmente
conservadora12. Com as máquinas, os processos químicos e outros métodos, ela perturba, ao
mesmo tempo que a base técnica da produção, as funções dos trabalhadores e as combinações
sociais do processo de trabalho. Não deixa assim de revolucionar a divisão do trabalho no seio
da sociedade, e lança sem interrupção massas de capitais e de operários de um ramo de produção
para outro13.
A própria natureza da grande indústria determina a mudança no trabalho, a fluidez das
funções, a mobilidade universal do trabalhador. Mas, por outro lado, reproduz, sob a forma
capitalista, a antiga divisão do trabalho com as suas particularidades ossificadas. Vimos que
esta contradição absoluta entre as necessidades técnicas da grande indústria e os caracteres
sociais que reveste no sistema capitalista, suprime qualquer prazo, qualquer estabilidade e
serenidade nas condições de vida do trabalhador, e ameaça-o constantemente de lhe tirar das
mãos os meios de subsistência impedindo-o de aceder aos meios que lhes permitem trabalhar14
e tornando-o supérfluo pela supressão da sua função parcelar. Sabemos também que este
antagonismo faz nascer a monstruosidade de um exército industrial de reserva, mantido na
miséria, a fim de estar sempre disponível para a procura capitalista; que culmina nas
hecatombes periódicas da classe operária, na dilapidação mais desenfreada das forças de
trabalho e nos destroços da anarquia social, que faz de cada progresso econômico uma
calamidade pública. Este é o lado negativo.
Hoje, a variação no trabalho impõe-se unicamente à maneira de uma lei física
irresistível, cuja ação, esbarrando por todo o lado com obstáculos15, os destrói cegamente.

12
“A burguesia não pode existir sem revolucionar constantemente os instrumentos de produção e por isso mesmo
as relações da produção e todo o conjunto das relações sociais. A primeira condição de existência de todas as
classes industriais precedentes era, em contrapartida, a conservação imutável do seu modo tradicional de produção.
O que distingue portanto a época burguesa de todas as precedentes é o revolucionamento incessante da produção,
o abalo contínuo de todas as situações sociais, a agitação e a incerteza perpétuas. Todas as instituições imutáveis,
ferrugentas, por assim dizer, se dissolvem com o seu cortejo de ideias e de tradições que a sua antiguidade tornava
respeitáveis, todas as novas se gastam sem terem podido consolidar-se. Tudo o que parecia sólido e estabelecido
evapora-se, tudo o que passa por santo é profano, e os homens são finalmente forçados a encarar friamente as suas
diversas posições na vida e as suas relações recíprocas. (ENGELS-MARX, Manifesto do Partido Comunista,
Londres, 1848, p. 5.)
13
No capitalismo desenvolvido em que vivemos atualmente, este movimento é muito menos aparente porque o
aparelho produtivo se tornou senil como todo o modo de produção capitalista. São sobretudo os trabalhadores
estrangeiros imigrados que formam a massa móvel de que Marx fala aqui. Além disso, a mecanização, até mesmo
a automação, reduz, senão as trocas de capitais, pelo menos as trocas de massas consideráveis de operários.
14
“Tiras-me a vida se me roubas os meios pelos quais eu vivo.” (SHAKESPEARE, O Mercador de Veneza, ato
IV, c. 1, v. 375-376.) (Nota de Marx.)
15
Um operário francês escreveu no seu regresso de São Francisco: “Nunca teria acreditado que fosse capaz de
exercer todos os ofícios que tive na Califórnia. Estava firmemente convencido de que fora da tipografia não
Contudo, as próprias catástrofes que a grande indústria suscita fazem com que se torne uma
questão de vida ou de morte reconhecer o carácter variado do trabalho e, por conseguinte, o
maior desenvolvimento possível em todos os sentidos das diversas aptidões do trabalhador,
como uma lei geral da produção moderna, e que se adaptem estas condições de fato à realidade
de todos os dias. É uma questão de vida ou de morte substituir à monstruosidade de uma
sobrepopulação operária, mantida em reserva e sempre disponível para as necessidades
mutáveis da exploração do capital, o homem que esteja absolutamente disponível para as
exigências variáveis do trabalho; a grande indústria obriga a sociedade, sob pena de substituir
ao indivíduo dividido, sujeito a uma função produtiva parcelar, o indivíduo integralmente
desenvolvido que sabe fazer face às exigências mais diversificadas do trabalho das suas diversas
capacidades naturais ou adquiridas.
As instituições que se desenvolveram espontaneamente na base permanentemente
revolucionada pelo processo da grande indústria, são, por um lado, as escolas politécnicas e
agronômicas, e, por outro, as escolas de ensino profissional, onde se ensina aos filhos dos
operários algumas noções de tecnologia bem como a manipulação prática de diversos
instrumentos utilizados na produção16. Se a legislação fabril, como primeira concessão
arrancada a custo ao capital, apenas combina a instrução elementar com o trabalho de oficina,
não há dúvida de que a conquista inevitável do poder político pela classe operária vai introduzir
também o ensino da tecnologia, prática e teórica, nas escolas dos operários17. Do mesmo modo,
está fora de dúvida que tais fermentos de transformação18,cujo termo final é a supressão da

prestava para mais nada. (...) Uma vez no meio desse mundo de aventureiros que mudam de ofício mais facilmente
do que de camisa, santo Deus! fiz como os outros. O ofício de mineiro não me rendia o suficiente e fui à cidade
onde tanto fui tipógrafo como carpinteiro, etc. A profissão de chumbeiro-zinqueiro não foi a que menos me rendeu
(...). Esta experiência (...) convenceu-me de que em nenhuma circunstância ficaria alguma vez seriamente
embaraçado, se o trabalho de qualquer profissão me faltasse. Sinto-me menos molusco e muito mais homem!...
(Cf. A. CORBON, Do Ensino Profissional. Paris, 1860. 2ª ed., p. 50.) (Nota de Marx.)
16
A versão francesa de Roy difere sensivelmente desta frase central deste capítulo. Com efeito, diz: “A burguesia,
ao criar para os seus filhos as escolas politécnicas, agronômicas, etc., obedecia todavia apenas às tendências
íntimas da produção moderna, não deu aos proletários senão a sombra do ensino profissional.”
17
John Bellers, um verdadeiro fenômeno na história da economia política, deu-se conta nos fins do século XVII,
com uma clareza perfeita, da necessidade de abolir o sistema atual de educação e a divisão do trabalho, que
engendram a hipertrofia e a atrofia dos dois extremos da sociedade. Afirma com razão entre outras coisas:
“Aprender na ociosidade não é melhor do que aprender a ociosidade. (...) O trabalho do corpo foi instituído na
origem por Deus (...). O trabalho é tão necessário ao corpo para o manter com saúde, como o alimento para o
manter vivo; o sofrimento que um homem tem para tomar asas, resultará em mal-estar (jogo de palavras
intraduzível entre aises e malaises. – N. T.) O trabalho fornece azeite à lâmpada da vida; o pensamento fornece a
chama. Uma ocupação idiota das crianças (John Bellers pressente aqui as frivolidades de Basedow e dos seus
iniciadores modernos) torna néscio o espírito das crianças.. (Cf. John BELLERS, Proposals for Raising a Colledge
of Industry of ali usefull Trades and Husbendry, Londres, 1696, pp. 12, 14, 16 e 18.) (Nota de Marx.)
18
Fiel ao seu esquema histórico da ditadura do proletariado como fase necessária da passagem ao socialismo
através das suas diferentes fases sucessivas, Marx precisa aqui que se trata de um sistema não definitivo do
comunismo, mas perfeitamente transitório, e é por isso que fala dessas “escolas dos operários” que são os fermentos
da transformação cujo termo final é a abolição de qualquer divisão do trabalho e portanto de todas as classes,
antiga divisão do trabalho, encontram-se em contradição flagrante com o modo capitalista da
indústria e as condições econômicas do operário que lhe correspondem. Contudo, o
desenvolvimento dos antagonismos imanentes à forma capitalista atual é a única via histórica
real que conduz à sua dissolução e à sua metamorfose: tal é o segredo do movimento histórico
que os doutrinários, otimistas ou socialistas, não querem compreender.
Nec sutor ultra crepidam! Sapateiro, deixa-te estar no teu sapato! Este nec plus ultra
da sabedoria do artesão e da manufactura tornou-se loucura e maldição no dia em que o
relojoeiro Watt descobriu a máquina a vapor, barbeiro Arkwright o tear contínuo, e o ourives
Fulton barco a vapor.
Pela regulamentação que impõe às fábricas, às manufaturas, etc., a legislação fabril
aparece apenas como uma primeira intervenção nos direitos de exploração do capital. Em
contrapartida, qualquer regulamentação do pretenso trabalho a domicílio19 apresenta-se como
uma intrusão direta na patria potestas, como frase moderna, a autoridade dos pais, e os
delicados membros do parlamento inglês simularam durante muito tempo recuar com horror
perante este atentado contra a santa instituição da família. Todavia, pela força das coisas, teve
afinal de contas de se reconhecer que, ao minar os fundamentos econômicos da família operária,
a grande indústria dissolveu também as relações familiares. E foi preciso proclamar um direito
das crianças. Lê-se a este respeito no relatório final da Child. Empl. Commission publicado em
1866: “Resulta, infelizmente, do conjunto dos depoimentos das testemunhas que as crianças
dos dois sexos não têm contra ninguém tanta necessidade de proteção como contra os pais.” O
sistema da exploração delimitado do trabalho das crianças em geral e do trabalho ao domicílio
em particular “... perpetua-se pela autoridade arbitrária e funesta, sem freio e sem controle, que
os pais exercem sobre os seus jovens e tenros descendentes. (...) Os pais não devem dispor do
poder absoluto de transformar os seus filhos em puras máquinas, com o único objetivo de daí
ganhar por semana tanto e tanto de salário. (...) As crianças e os adolescentes têm direito à
proteção da lei contra o abuso da autoridade paterna que arruína prematuramente a sua energia
física e as faz cair na base da escala dos seres morais e intelectuais20”.

mesmo a operária. Esta passagem não indica, portanto, o sistema final da educação na sociedade comunista: é
apenas um ponto de partida.
19
1ª ed. alemã de O Capital: este gênero de trabalho faz-se também, a maior parte do tempo, em pequenas oficinas,
como vimos, para o fabrico de rendas e entrançamento de palha, e como se poderia também mostrar mais
particularmente, tomando como exemplo as manufaturas metalúrgicas de Sheffield, Birmingham, etc. (Nota de
Marx.)
20
Child. Empl. Comm. V Rep., p. xxv, nº 162; II Rep., p. XXXVIII, nº 285, 289; p. XXV; XXVI, nº 191. (Nota de
Marx.)
Não é, contudo, o abuso da autoridade paterna que é a fonte da exploração direta ou
indireta da infância, mas é a exploração capitalista que, ao abolir a base econômica que lhe
correspondia, fez disso um abuso21.
Por muito terrível e desgostante que possa parecer hoje a dissolução da família
tradicional no seio do sistema capitalista, não é menos verdade que ao atribuir, fora da esfera
limitada do lar, um papel decisivo às mulheres, aos adolescentes e às crianças de ambos os
sexos, em processos de produção socialmente organizados, a grande indústria criou a nova base
econômica sobre a qual se erguerá uma forma superior da família e das relações entre ambos
os sexos. É naturalmente de igual modo absurdo considerar como absoluta e definitiva a forma
germano-cristã da família bem como as suas formas oriental, grega e romana, as quais
constituem de resto entre si outros tantos escalões de desenvolvimento de uma sucessão
histórica. É não menos evidente que a composição do pessoal operário combinado na fábrica a
partir de indivíduos de ambos os sexos e das idades mais diversas, mesmo se na sua arma
capitalista brutal em que nasceu espontaneamente é uma fonte envenenada de corrupção e de
escravatura, estando aí o trabalhador para o processo de produção e não o processo de produção
para o trabalhador, deverá converter-se no seu contrário, em fonte de um desenvolvimento
humano22, assim que as condições correspondentes forem criadas23.
A necessidade de fazer de uma lei de excepção para as fábricas de fiação e tecelagem
mecânica, esses primeiros frutos da indústria mecânica, uma lei geral, alargada a toda a
produção social, nasceu – como se viu – do próprio curso histórico da grande indústria, cuja
base implica o total derrube da forma tradicional da manufatura, do artesanato e do trabalho
doméstico, tal como o artesanato se transformará sem cessar em manufatura, e esta em fábrica,
enquanto no fim a esfera do artesanato e do trabalho doméstico se torna – num espaço de tempo
maravilhosamente curto relativamente – num antro de sofrimento e de torturas onde a
exploração capitalista festeja os seus bacanais mais infernais com toda a liberdade. Finalmente

21
Na versão francesa de O Capital, a frase seguinte está intercalada aqui no texto: “De resto, a legislação fabril
não será ela a confissão oficial de que a grande indústria fez da exploração das mulheres e das crianças pelo capital,
desse dissolvente radical da família operária de antigamente, uma necessidade económica, a confissão de que
converteu a autoridade paterna num aparelho do mecanismo social destinado a fornecer, direta ou indiretamente,
ao capitalista os filhos do proletário, o qual, sob pena de morte, deve desempenhar o seu papel de intermediário e
de mercador de escravos? De igual modo, todos os esforços desta legislação não pretenderão senão reprimir os
excessos deste sistema de escravatura.”
22
“O trabalho de fábrica pode ser puro e benéfico como o era antigamente o trabalho doméstico, e mesmo num
grau mais elevado.” (Cf. Reports of 31st Oct. 1865. p. 127.) (Todas as notas até à p. 218 são de Marx.)
23
Na edição Roy. esta passagem é dada pela seguinte frase: “Mesmo a composição do trabalhador coletivo por
indivíduos de ambos os sexos de qualquer idade, essa fonte de corrupção e de escravatura sob o reinado capitalista,
contém em si os germes de uma nova evolução social. Na história, como na natureza, a podridão é o laboratório
da vida.” (Cf. Ed. Sociales. livro I. t. 2. p. 168).
há duas circunstâncias que são definitivas: em primeiro lugar, a experiência, sem cessar
repetida, segundo a qual o capital, mal caiu sob o controle do Estado, nem que fosse apenas em
pontos isolados da periferia social, se compensa a um grau tanto mais elevado noutros; em
segundo lugar, o grito lançado pelos próprios capitalistas a favor de condições iguais de
concorrência, ou seja de limitações legais à exploração do trabalho. Sobre isto encontram-se
numerosos documentos nos relatórios das inspeções de fábricas24.
Ouçamos a este respeito dois gritos saídos do coração. Os srs. W. Cooksley
(fabricantes de pregos, de cadeias, etc., em Bristol) tinham adoptado voluntariamente as
prescrições da legislação fabril: “Contudo, como o antigo sistema irregular se mantém nas
fábricas vizinhas, estão expostos ao dissabor de ver os jovens rapazes que empregam, atraídos
(enticed) para outro local por nova tarefa após as oito horas da noite. Esta é, gritam
naturalmente, uma injustiça a nosso respeito e, além disso, uma perda para nós, porque isso
esgota uma parte das forças da nossa juventude, cujo lucro total é para nós25.”
M. J. Simpson (fabricante de caixas e de sacos de papel em Londres) declara aos
comissários da Child. Empl. Comm.:
“... que está disposto a assinar qualquer petição para introduzir a legislação fabril. Mas
no estado atual, após o encerramento da sua oficina, sente-se pouco à vontade, e o seu sono é
perturbado pelo pensamento de que outros fazem trabalhar durante mais tempo e lhe roubam as
encomendas nas suas barbas26.”
“Seria uma injustiça para com os grandes contratadores de mão-de-obra, diz em
conclusão a comissão de inquérito, submeter as suas fábricas à regulamentação, enquanto no
mesmo ramo de negócios, a pequena indústria não teria de suportar qualquer limitação legal do
tempo de trabalho. Os grandes fabricantes não teriam apenas de sofrer esta desigualdade nas
condições da concorrência no que respeita às horas de trabalho, mas o seu pessoal de mulheres
e de crianças seria além disso desviado para seu prejuízo para as oficinas poupadas pela lei.

24
Esta passagem é dada como se segue na edição Roy: “A necessidade de generalizar a legislação fabril, de a
transformar de uma lei de excepção para as fiações e as tecelagens mecânicas em lei da produção social, impunha-
se à Inglaterra, como se viu, pela reação que a grande indústria exercia sobre a manufatura, o ofício e o trabalho
ao domicílio contemporâneos.”
“As próprias barreiras que a exploração das mulheres e das crianças encontrou nas indústrias regulamentadas
conduziram ao seu exagero mais ainda nas indústrias ditas livres.” (Ibidem.)
Finalmente, os “regulamentados” exigem a igualdade legal na concorrência, ou seja, no direito de explorar o
trabalho.
25
Child. Empl. Comm. V. Rep., p. X, nº 35.
26
Ibid., p. IX, nº 26.
Finalmente, isso conduziria à multiplicação das pequenas oficinas que, quase sem excepção,
são as menos favoráveis à saúde, ao conforto, à educação e em geral à promoção do povo27.”
A comissão propõe, no seu relatório final de 1866, submeter à legislação fabril mais
de 1.400.000 crianças, adolescentes e mulheres, de que cerca de metade é explorada pela
pequena indústria e o trabalho ao domicílio: “Se o Parlamento, diz, aceitasse a nossa proposta
em toda a sua extensão, estaria fora de dúvida que tal legislação exerceria a influência mais
salutar, não só sobre os jovens e os fracos de que se ocupa em primeiro lugar, mas ainda sobre
a massa muito mais considerável dos operários adultos que diretamente (as mulheres) e
indiretamente (os homens) caem na sua esfera de ação. Impor-lhe-ia horas de trabalho regulares
e moderadas; economizaria e acumularia as reservas de energia física de que depende o seu
bem-estar bem como a prosperidade do país; preservaria a geração nova dos esforços excessivos
que, numa idade ainda tenra, minam a sua constituição e provocam a sua ruína prematura;
ofereceria finalmente às crianças, pelo menos até aos treze anos, uma instrução elementar que
poria fim a esta ignorância incrível, de que os relatórios da comissão apresentam um tão fiel
retrato e que não se pode encarar sem uma verdadeira dor e um profundo sentimento de
humilhação nacional28.
Vinte e quatro anos antes, uma outra comissão de inquérito sobre o trabalho das
crianças chegara já a estas conclusões. Na altura do discurso da coroa, a 25 de Fevereiro de
1867, o ministro conservador anunciou que formulara em leis as propostas da comissão de
inquérito sobre a indústria. Para isso foi ainda precisa uma nova experimentação in corpore vile
durante vinte anos. Com efeito, em 1840, uma comissão parlamentar fora nomeada para inquirir
sobre o trabalho das crianças. Segundo os termos de N. W. Senior, este relatório desenhou “o
quadro mais horroroso que o mundo alguma vez vira da cupidez, do egoísmo e da crueldade
dos capitalistas e dos pais, da miséria, da degradação e da ruína das crianças e dos adolescentes
(...). Parecia que o relatório descrevia os horrores de uma época recuada (...). Infelizmente,
existem numerosos testemunhos segundo os quais os horrores continuam – e mais intensos do
que nunca (...). Os abusos denunciados em 1842 estão hoje (Outubro de 1863) em plena floração
(...). O relatório de 1842 foi juntado a outros documentos, sem que deles se tenha tomado
conhecimento de outra forma, e ficou para ali durante vinte longos anos durante os quais estas
crianças educadas sem fazerem a mínima ideia do que é aquilo a que chamamos a moral, sem

27
Ibid., p. XXV, nº 165-167. Sobre as vantagens da grande indústria comparada à pequena, cf. Child. Empl. Comm.
III Rep., p. 13, nº 144; p. 26, nº 125; p. 27, nº 140, etc.
28
Child. Empl, Comm. V Rep., 1866, p. XXV, nº 169.
instrução, sem religião, sem terem conhecido os sentimentos naturais do amor familiar, se
tornaram os pais da geração atual29”.
Entretanto, as condições sociais tinham mudado. O Parlamento já não ousava repelir
com o simples objetivo de não receber as propostas da comissão de inquérito de 1863 como
fizera com as da comissão de 1842. Foi por isso que a partir de 1864, quando a nova comissão
não publicara ainda senão uma parte do seu relatório, as manufaturas de artigos de terra
(incluindo as cerâmicas), de tinturaria, de mechas químicas, de cartuchos, de cápsulas e o corte
de tecidos foram submetidas à legislação em vigor para as fábricas têxteis. Na altura do discurso
da coroa de 25 de Fevereiro de 1867, o ministério tory anunciou outras leis baseadas nas
propostas posteriores da comissão que acabara os seus trabalhos em 1866.
A 15 de Agosto de 1867, foi promulgada a lei para a extensão da legislação fabril, e, a
21 de Agosto, a lei para a regulamentação das oficinas, dizendo uma respeito à grande indústria,
e a outra à pequena.
A primeira regula os altos fornos, as fábricas de ferro e de cobre, as fundições, as
fábricas de máquinas com o auxílio de máquinas, as fábricas de guta-percha e de papel, as
fábricas de vidros, as manufaturas de tabaco, as tipografias (incluindo as dos jornais), as
oficinas de encadernadores, e finalmente todos os estabelecimentos industriais sem excepção,
nos quais cinquenta indivíduos ou mais se ocupam simultaneamente, pelo menos por um
período de cem dias no decurso do ano.
Para dar uma ideia da extensão da esfera de aplicação da lei para a regularização das
oficinas, citaremos os artigos seguintes:
“Art. 4º. – Por ofício, entende-se qualquer trabalho manual exercido como profissão
ou com um fim lucrativo que concorre para fazer um artigo qualquer ou uma parte de um artigo,
para o modificar, reparar, ornar, dar-lhe acabamento, ou para o adaptar de qualquer outra forma
à venda.
Por oficina, entende-se qualquer espécie de recinto, ou de local, quer coberto, quer ao
ar livre, onde qualquer “ofício” é exercido por uma criança, um adolescente ou uma mulher, e
onde a pessoa por meio da qual a criança, o adolescente ou a mulher é empregada tem o direito
de acesso e de direção.
Por empregado, entende-se estar ocupado num “ofício” qualquer, mediante um salário
ou não, a soldo de um patrão ou de um parente.

29
SENIOR, op. cit., pp. 55-58.
Por parentes, entende-se pai, mãe, tutor, ou outra pessoa que tenha à sua guarda ou
sob a sua direção uma criança ou adolescente.”
O art. 7º. encerra cláusulas penais para o emprego de crianças, de adolescentes ou de
mulheres em infração a esta lei e submete a multas não só o patrão, parente ou não, mas ainda
“o parente ou a pessoa que tira um benefício direto do trabalho da criança, do adolescente ou
da mulher, ou que o tem sob o seu controle”.
A lei respeitante aos grandes estabelecimentos, o Factory Acts Extension Act, está
atrasada em relação à legislação fabril numa série de excepções viciosas e de cobardes
compromissos com os capitalistas.
A lei de regulamentação das oficinas, infeliz em todos os seus detalhes, continuou
letra morta nas mãos das autoridades municipais e locais encarregadas da sua execução.
Quando, em 1871, o Parlamento lhes retirou este poder para o conferir aos inspectores fabris,
sob cuja alçada atingiu assim duma só vez mais de cem mil oficinas e trezentas fábricas de
tijolos, cuidou-se em não acrescentar senão oito subalternos ao seu corpo administrativo, já
demasiado fraco30.
O que, portanto, mais nos impressiona na legislação inglesa de 1867, é, por um lado,
a necessidade imposta ao Parlamento das classes dirigentes de adotar em princípio medidas tão
extraordinárias e a uma tão grande escala contra os excessos da exploração capitalista e, por
outro, a hesitação, a repugnância e a má fé com as quais as traduziu então nos fatos.
A comissão de inquérito de 1862 propusera também uma nova regulamentação da
indústria mineira, que se distingue de todas as outras indústrias porque os interesses do
proprietário rural (landlord) e do empreendedor capitalista andavam de mãos dadas. O
antagonismo destes dois interesses fora favorável à legislação fabril, e pelo contrário a sua
ausência basta para explicar as lentidões e os subterfúgios da legislação sobre as minas.
A comissão de inquérito de 1840 fizera revelações tão terríveis, tão revoltantes e
suscitara tal escândalo na Europa que, por descargo de consciência, o Parlamento aprovou a lei
sobre as minas de 1842, onde se limitou a proibir o trabalho debaixo da terra, no interior das
minas, às mulheres e às crianças com menos de dez anos.
Uma nova lei sobre a inspeção das minas, de 1860, prescreve que as minas serão
inspecionadas por funcionários públicos, especialmente nomeados para este efeito, e que os

30
O pessoal da inspeção de fabrico compunha-se de dois inspetores, dois inspetores-adjuntos e quarenta e um
subinspetores. Oito subinspetores suplementares foram nomeados em 1871. Todo o orçamento desta
administração, que abrangeu a Inglaterra, a Escócia e a Irlanda, elevava-se apenas em 1871-72 a 25.347 libras
esterlinas, incluindo as despesas legais provocadas pelas perseguições judiciárias contra as violações da legislação
fabril. (Nota ele Marx.)
jovens rapazes de dez a doze anos só poderão ser empregados com a condição de estarem
munidos de um certificado de instrução ou de frequência da escola durante um determinado
número de horas. Esta lei ficou sem efeito dada a insuficiência irrisória do pessoal dos
inspectores, dos limites estreitos dos seus poderes e de outras circunstâncias que se verá a
seguir.
Um dos últimos livros azuis31 sobre as minas: Report from the select committee on
Mines... together with... Evidence, 13 de Julho de 1866, é obra de uma comissão parlamentar
escolhida no seio da Câmara dos Comuns e autorizada a citar e a interrogar testemunhas. É um
grande volume in-fólio onde o relatório da comissão apenas escreve cinco linhas para fazer
compreender que a comissão nada tem a dizer e que precisa interrogar novas testemunhas! O
resto consiste em interrogatórios das testemunhas.
Este tipo de interrogatório evoca as cross examinations (interrogatórios contraditórios)
das testemunhas perante os tribunais ingleses em que o advogado, por meio de perguntas
impudentes, imprevistas, equívocas, confusas, feitas a torto e a direito, procura intimidar,
surpreender, confundir a testemunha e distorcer as palavras que lhe arrancou. Acontece que os
advogados são os próprios inquiridores parlamentares, entre os quais proprietários e
exploradores de minas; as testemunhas são sobretudo os mineiros das hulheiras. Toda esta farsa
é demasiado característica do espírito do capital para que não apresentemos alguns extratos
deste relatório. Para abreviar, classificamo-los por categoria. Claro que a pergunta e a resposta
correspondente estão numeradas nos livros azuis ingleses. (...)
A educação. Os operários das minas exigem, como nas fábricas, uma lei para a
instrução obrigatória das crianças. Declaram que as cláusulas da lei de 1860, que exigem um
certificado de escolaridade para o emprego de rapazes de dez a doze anos, são perfeitamente
ilusórias. Mas eis onde o interrogatório “detalhado” dos juízes de instrução capitalistas se torna
realmente singular:
“Nº 115: Contra quem é a lei mais necessária? Contra os empresários ou contra os
pais? – Contra os dois. – Nº 116: Mais contra estes do que contra aqueles? – Como posso
responder a isso? – Nº 137: Os empresários mostram o desejo de organizar as horas de trabalho
de maneira a favorecer a frequência da escola? – Nunca. – Nº 211: Os operários das minas
melhoram fora de tempo a sua instrução? – Geralmente degradam-se e adquirem maus hábitos;
entregam-se ao jogo e à bebida e perdem-se completamente. Nº 454: Porque não mandar as
crianças às escolas da noite? – Na maior parte dos distritos hulhíferos, não existem; mas, o que

31
Relatórios parlamentares. – N. T.
há é que elas estão de tal forma esgotadas com o longo sobretrabalho que os seus olhos se
fecham de cansaço... Portanto, concluiu o burguês, sois contra a educação? – De modo algum,
etc. – Nº 443: Os exploradores de minas, etc., não são forçados pela lei de 1860 a pedir
certificados de escolaridade para as crianças entre dez e doze anos que empregam? – A lei
ordena-o, claro; mas os empresários não o fazem. – Nº 444: Na vossa opinião, esta cláusula de
lei não é portanto geralmente executada? – Não o é de todo. – Nº 717: Os operários das minas
interessam-se muito por esta questão da educação? – A maior parte. – Nº 718: Desejam
ardentemente a aplicação forçada da lei? – Quase todos. – Nº 720: Então porque não impõem o
respeito pela lei? – Mais de um operário desejaria que não se aceitassem os rapazes sem
certificado de escolaridade; mas passa a ser um homem marcado (a marked man). – Nº 721:
Marcado por quem? – Pelo patrão. – Nº 722: Julgais, portanto, que os patrões perseguiriam
alguém porque teria obedecido à lei? – Creio que o fariam. – Nº 723: Porque não recusam os
operários empregar os rapazes que estão neste caso? – Isso não lhes compete escolher. – Nº
1634: Desejais a intervenção do Parlamento? – Nunca se fará nada de eficaz pela educação das
crianças mineiras, se não for em virtude de uma lei do Parlamento e por via coercitiva. – Nº
1636: Isso aplica-se aos filhos de todos os trabalhadores da Grã-Bretanha ou apenas aos dos
mineiros? – Estou aqui apenas para falar em nome dos mineiros. – Nº 1638: Por que distinguir
os filhos dos mineiros dos outros? –Porque formam uma excepção à regra. – Nº 1639: Sob que
aspecto? – Sob o aspecto físico. – Nº 1640: Porque teria mais valor a instrução para eles do que
para as crianças de outras classes? – Não digo isso; mas, dado o seu excesso de trabalho nas
minas, têm menos oportunidades de poder frequentar as escolas da semana e de domingo. – Nº
1644: Não é verdade que é impossível abordar estas questões de uma maneira absoluta? – Nº
1646: Há muitas escolas nos distritos? – Não. – Nº 1647: Se o Estado exigisse que cada criança
fosse mandada à escola, onde se poderia encontrar escolas suficientes para todas as crianças? –
Creio que, a partir do momento em que as circunstâncias o exigissem, as escolas surgiriam por
si só. – Nº 705, 706: A grande maioria não só das crianças, mas ainda dos operários adultos nas
minas não sabe ler nem escrever.
CRÍTICA DO ENSINO OFICIAL E DOS EXAMES1

Karl Marx

A burocracia é um círculo, de que ninguém pode sair2. A sua hierarquia é a do saber.


A cabeça confia às esferas inferiores o cuidado de conhecer o detalhe, em troca do que as esferas
inferiores cedem à cúpula a inteligência do geral – e ambos fazem assim mutuamente a troca.
A burocracia é o Estado imaginário que flanqueia o Estado real, é o espiritualismo do
Estado. Todas as coisas obtêm assim um duplo significado – um real, o outro burocrático. O
mesmo se passa com a vontade, por exemplo.
O que é real é consequentemente tratado burocraticamente, ou seja, como uma coisa
espiritual, do além. A burocracia tem na sua posse o Estado, o ser espiritual da sociedade: é a
sua propriedade privada3.
O espírito universal da burocracia é o segredo, o mistério; enquanto corporação
fechada, mantém para si mesma face ao exterior, graças à hierarquia que representa. A abertura
de espírito ou das mentalidades em relação ao Estado aparece consequentemente como uma

1
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Crítica da educação e do ensino. Introdução e notas de Roger Dangeville.
Lisboa: Moraes Editores, 1978, p.58-60.
2
Cf. MARX, La critique de la philosophie du droit de Hegel, in Mega, I/1, pp.456-457. Após ter mostrado como
o Estado burguês é o produto necessário do privilégio econômico das classes dominantes em relação às massas
exploradas, Marx mostra que o poder governamental implica um corpo profissional que detém um monopólio, na
sociedade da propriedade privada, sendo o Estado apropriado pelos funcionários para “fazerem carreira”. Quando
o ensino é dispensado pelo Estado, o professor torna-se funcionário e participa na burocracia.
3
Após ter sido automatizado, o corpo docente apropria-se por sua conta – como sua propriedade privada – dos
conhecimentos e da ciência acumulados por todas as gerações que trabalham na produção, e transaciona-os contra
um salário para dispensar “o seu” saber.
No mercado a explorar, a necessidade da ciência apresenta-se, evidentemente, como a necessidade de todos, mas
o saber é monopolizado por uma minoria – aquela que teve acesso aos templos do conhecimento que são as
faculdades e universidades. O saber – separado da vida e da produção quotidiana imediata – é um segredo destilado
nos institutos, ficando o resto para a massa que é nisso iniciada apenas elementarmente, sem nunca lhe serem
fornecidos os conhecimentos elevados. A casta dos padres torna-se deste modo laica sob o reinado da Razão
burguesa. A necessidade superior do espírito humano sempre serviu a avidez insaciável de todas as castas de padres
das diferentes espécies que, no decurso da história, sempre apoiaram os dominadores e tiranos. Com a educação
nacional, os professores tornaram-se assim os colegas dos presságios dos pagãos, dos profetas dos judeus, dos
apóstolos dos cristãos, dos imãs dos muçulmanos ou, segundo a expressão de Marx, dos jesuítas.
A educação burguesa parte, em consequência, de um princípio abstrato da produção, o do Iluminismo da Razão,
que é oposto ao materialismo dialético. Assim, coloca na base da ação humana o saber “que se aprende”, ou seja
um conceito que está separado da vida imediata do grande número. Como Marx explica em A Questão Judaica,
esta Razão e este saber são “idealistas” e copiam a revelação das religiões, que privilegia uma casta ou a elite
“culta” – essa minoria, espécie de franco-maçonaria, que comunica à humanidade o querer (a ciência) dessa força
misteriosa “superior”, com a sanção do Estado que fornece os diplomas.
Esta ampla concepção do marxismo permite explicar a evolução, em aparência absolutamente contraditória, do
ensino burguês: no início do capitalismo, o instituidor laico disputou ao clero o monopólio da difusão das luzes do
Saber no povo, numa oposição que permanecia no campo da apropriação da ciência por uma minoria, depois, no
fim do capitalismo, o pároco coexiste cada vez mais nas escolas com os professores laicos – na mesma escola ou
escolas vizinhas em... concorrência, a fim de satisfazer a sede de emulação burguesa.
traição deste mistério, apesar de a autoridade se tornar o princípio do seu saber, e a idolatria
da autoridade ser o seu espírito. No seu seio, o espiritualismo torna-se materialismo mais
grosseiro, o materialismo da obediência passiva, da fé na autoridade, do mecanismo de uma
atividade rígida e formal, de princípios, de concepções e de tradições imóveis.
No que diz respeito ao burocrata tomado à parte, o fim do Estado torna-se o seu fim
privado, e é a caça ao cargo superior: trata-se, para ele, de fazer carreira. Em primeiro lugar,
considera a vida real como material, porque o espírito desta vida encontra na burocracia uma
existência abstrata da vida real.
É preciso pois que a burocracia tenda a tornar a vida tão material quanto possível. Em
segundo lugar, a vida torna-se material para ele na medida em que ela sofre uma abordagem
burocrática, porque o seu espírito lhe está prescrito, o seu fim encontra-se fora dele e sendo a
sua existência a do escritório. O Estado já só existe sob a forma dos diversos espíritos
burocráticos fixos, cuja coesão é mantida pela subordinação e a obediência passiva. A ciência
verdadeira aparece como despida de conteúdo, tal como a vida autêntica aparece como morta,
dado que é esta ciência imaginária e esta vida imaginária que passam por essenciais. O burocrata
tem pois que proceder como jesuíta com o Estado real, e pouco importa que este jesuitismo seja
consciente ou não. Contudo, deve tornar-se consciente, assim que se apercebe deste lado
antinômico – e então torna-se jesuíta patente e querido...
A identidade que Hegel construir entre a sociedade burguesa e o Estado é a de dois
exércitos inimigos, em que cada soldado tem a “possibilidade” de se tornar membro do exército
“inimigo”, “desertando” – e, de fato, Hegel descreve assim exatamente as condições práticas
de hoje.
O mesmo se passa no que diz respeito à sua construção dos “exames”. Num estado
racional, seria bem mais preciso um exame para se tornar sapateiro do que funcionário de
Estado, porque o ofício de sapateiro é um saber sem o qual se pode ser um bom cidadão e um
homem social. Ora acontece que o indispensável “saber de Estado” (ninguém pode ser tido por
ignorante da lei) é uma condição sem a qual se vive fora do Estado, estando separado de si
mesmo e de tudo, como que suspenso no ar. Ora, portanto, o exame não passa de uma fórmula
de fanco-mação, o reconhecimento legal do saber etático como privilégio.
A “conexão” da “função de Estado” e do “indivíduo”, este laço objetivo entre o saber
da sociedade civil e o saber do Estado, o exame, não passa do batismo burocrático da ciência,
o reconhecimento oficial da transubstanciação da ciência profana em ciência sagrada: cada
exame, implica, como lhe sendo próprio, que o examinador saiba tudo. Não há conhecimento
que os cidadãos gregos ou romanos tenham feito exames.
WEBER – TEORIA DA CIÊNCIA*

Raymond Aron

[...] Weber parte da distinção entre quatro tipos de ação: a ação racional com relação a
um objetivo (zweckrational), a ação racional com relação a um valor (wertrational), a ação
afetiva ou emocional e, por último, a ação tradicional.
A ação racional com relação a um objetivo [...] é a ação do engenheiro que constrói
uma ponte, do especulador que se esforça por ganhar dinheiro, do general que quer ganhar uma
batalha. Em todos estes casos a ação zweckrational é definida pelo fato de que o ator concebe
claramente seu objetivo e combina os meios disponíveis para atingi-lo.
[...]
A ação racional com relação a um valor é, por exemplo, a do socialista alemão
Lassalle, que se deixou matar num duelo, ou do capitão que afunda com seu navio. A ação é
racional não porque tende a alcançar um objetivo definido e exterior, mas porque seria
desonroso deixar de responder a um desafio ou abandonar o navio que afunda. O ator age
racionalmente, aceitando todos os riscos, não para obter um resultado extrínseco, mas para
permanecer fiel à sua ideia de honra.
A ação que Weber chama de afetiva é a ação ditada imediatamente pelo estado de
consciência ou o humor do sujeito. É a bofetada dada pela mãe na criança que se comporta de
modo insuportável, é o soco dado numa partida de futebol pelo jogador que perdeu o controle
dos nervos. Em todos estes casos, a ação é definida por uma reação emocional do ator, em
determinadas circunstâncias e não em relação a um objetivo ou a um sistema de valores.
A ação tradicional é aquela ditada pelos hábitos, costumes, e crenças, transformada
numa segunda natureza. Para agir de conformidade com a tradição, o ator não precisa conceber
um objetivo, ou um valor, nem ser impelido por uma emoção; obedece simplesmente a reflexos
enraizados por longa prática.
Esta classificação dos tipos de ação foi discutida e refinada durante quase meio século.
Limito-me aqui a indicá-la, acentuando que, de certo modo, ela elucida todas as concepções de
Max Weber; de fato, voltaremos a encontrá-la em vários níveis.
A sociologia é uma ciência que procura compreender a ação social; a compreensão
implica a percepção do sentido que o ator atribui à sua conduta. [...] O objetivo e a preocupação

*
ARON, Raymond. “Max Weber”. In: As etapas do pensamento sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 1993,
p.464 a 474.
de Weber é compreender o sentido que cada ator dá à própria conduta. A compreensão dos
sentidos subjetivos implica uma classificação dos tipos de conduta e leva à percepção da sua
estrutura inteligível.
A classificação dos tipos de ação comanda em certa medida a interpretação weberiana
da época contemporânea. O traço característico do mundo em que vivemos é a racionalização.
Numa primeira aproximação, esta corresponde a uma ampliação da esfera das ações
zweckrational. O empreendimento econômico é racional, a gestão do Estado pela burocracia
também. A sociedade moderna tende toda ela à organização zweckrational, e o problema
filosófico do nosso tempo, problema eminentemente existencial, consiste em delimitar o setor
da sociedade onde subsiste e deve subsistir uma ação de outro tipo.
***
Esta classificação dos tipos de ação está associada, por fim, com o que constitui o
centro da reflexão filosófica de Max Weber, a saber, os vínculos de solidariedade e de
independência entre a ciência e a política. A indagação sobre o tipo ideal do político e do
cientista apaixonava Max Weber. Como é possível ser ao mesmo tempo um homem de ação e
um professor? O problema era, para ele, ao mesmo tempo filosófico e pessoal.
Embora nunca tenha sido um político, Max Weber jamais deixou de sonhar com a
possibilidade de vir a sê-lo. Na verdade, sua atividade propriamente política foi a de professor,
ocasionalmente atuou como jornalista e, às vezes, como um conselheiro do príncipe,
naturalmente não ouvido. Durante a Primeira Guerra Mundial, enviou um memorando
confidencial ao governo de Berlim quando os líderes militares e políticos alemães se
preparavam para declarar uma guerra submarina irrestrita, o que trazia o risco de precipitar a
intervenção dos Estados Unidos da América. Neste memorando secreto, expunha as razões
pelas quais essa decisão provocaria provavelmente uma catástrofe para a Alemanha. Fez parte
também da delegação alemã que foi à França tomar conhecimento das condições do armistício.
Weber teria apreciado ser um dirigente partidário ou líder político, mas foi sobretudo um
professor e um cientista. O gosto pelas ideias claras e a honestidade intelectual fizeram com
que não deixasse de especular sobre as condições em que a ciência histórica ou sociológica
pode ser objetiva, sobre as condições que permitem à ação política ser conforme à sua vocação.
Estas concepções estão resumidas em duas conferências, intituladas: Politik als Beruf
e Wissenschaft als Beruf, o que significa A política como profissão e A ciência como profissão.
A ação do cientista é racional com referência a um objetivo. O cientista se propõe a
enunciar proposições factuais, relações de causalidade e interpretações compreensivas que
sejam universalmente válidas.
A investigação científica é, assim, um exemplo importante de ação racional com
relação a um objetivo, que é a verdade. Mas este objetivo é determinado por um juízo de valor,
isto é, por um julgamento sobre o valor da verdade demonstrada pelos fatos ou por argumentos
universalmente válidos.
A ação científica é portanto uma combinação da ação racional em relação a um
objetivo e da ação racional em relação a um valor, que é a verdade. A racionalidade resulta do
respeito pelas regras da lógica e da pesquisa, respeito necessário para que os resultados
alcançados sejam válidos.
Tal como Weber a entende, a ciência é um aspecto do processo de racionalização
característico das sociedades ocidentais modernas. Weber chegou mesmo a sugerir, e a afirmar,
que a ciência histórica e sociológica da nossa época representa um fenômeno historicamente
singular, na medida em que não houve, em outras culturas, o equivalente a esta compreensão
racionalizada do funcionamento e do desenvolvimento das sociedades.
A ciência positiva e racional valorizada por Max Weber faz parte do processo histórico
de racionalização, e apresenta duas características que comandam o significado e o alcance da
verdade científica. Estes dois traços específicos são o não-acabamento essencial e a
objetividade, esta última sendo definida pela validade da ciência para todos os que procuram
este tipo de verdade, e pela rejeição dos juízos de valor. O cientista observa com a mesma
serenidade o charlatão e o médico, o demagogo e o estadista.
Para Max Weber, o não-acabamento é fundamental, ele que não imagina, como
Durkheim, uma época futura em que a sociologia estivesse plenamente edificada, com a
existência de um sistema completo de leis sociais. [...] A “ciência” dos tempos antigos podia
considerar-se num certo sentido acabada, porque procurava apreender os princípios do ser. A
ciência moderna é por essência um devenir; ignora as proposições relativas ao sentido último
das coisas, tende a um objetivo situado no infinito e renova sem cessar as indagações dirigidas
à natureza.
Para todas as disciplinas, tanto ciências da natureza como ciências da cultura, o
conhecimento é uma conquista que nunca chega ao seu termo. A ciência é o devenir da ciência.
Pode-se sempre ir mais longe na análise, os monumentos do espírito, o historiador e o sociólogo
espontaneamente formulam novas questões sobre os fatos, presentes ou passados. Como a
história-realidade renova a curiosidade do historiador ou do sociólogo, é impossível conceber
uma história ou uma sociologia acabadas. A história e a sociologia só poderiam ser completadas
se o devenir humano chegasse ao fim. Seria necessário que a humanidade perdesse a capacidade
de criar para que a ciência do homem fosse definitiva.
***
Essa renovação das ciências históricas, graças às questões formuladas pelo historiador,
pode parecer que coloca em dúvida a validade universal da ciência, mas, para Weber, não é
isso. A validade universal da ciência exige que o cientista não projete seus próprios juízos de
valor na investigação em que está empenhado, isto é, que não a contamine com suas
preferências estéticas ou políticas. O fato de que tais preferências se manifestam na orientação
da curiosidade do cientista não exclui a validade universal das ciências históricas e sociológicas,
que devem ser respostas universalmente válidas a questões orientadas legitimamente pelos
nossos interesses e valores, pelo menos em teoria.
Descobrimos assim que as ciências da história e da sociedade cujas características são
analisadas por Weber diferem profundamente das ciências da natureza, embora tenham a
mesma inspiração racional. As características originais e distintivas destas ciências são três:
elas são compreensivas, históricas e se orientam para a cultura.
O termo compreensão no sentido de entendimento, é a tradução clássica do alemão
Verstehen. A ideia de Weber é a seguinte: no domínio dos fenômenos naturais, só podemos
apreender as regularidades observadas por meio de proposições de forma e natureza
matemáticas. Em outras palavras, é preciso explicar os fenômenos por meio de proposições
confirmadas pela experiência, para ter o sentimento de compreendê-las. A compreensão é por
conseguinte mediata, passa por intermediários – conceitos ou relações. No caso da conduta
humana, a compreensão é, num certo sentido, imediata: o professor compreende o
comportamento dos que acompanham suas aulas, o viajante compreende por que o motorista
do táxi para diante do sinal vermelho. Não é necessário constatar quantos motoristas se detêm
diante do sinal vermelho para entender por que razão eles agem assim. A conduta humana tem
uma inteligibilidade intrínseca, que vem do fato de que os homens são dotados de consciência.
Com muita frequência certas relações inteligíveis se tornam imediatamente perceptíveis, entre
atos e objetivos, entre as ações de uma pessoa e as de outra. As condutas sociais têm uma textura
inteligível que as ciências da realidade humana são capazes de apreender. Esta inteligibilidade
não significa que o sociólogo ou o historiador compreendam intuitivamente tais condutas. Pelo
contrário, o cientista social as reconstrói gradualmente, com base em textos e em documentos.
Para o sociólogo, o sentido subjetivo é, ao mesmo tempo, imediatamente perceptível e
equívoco.
A compreensão não implica, no pensamento de Weber, uma faculdade misteriosa,
capacidade exterior ou superior à razão ou aos processos lógicos das ciências da natureza. A
inteligibilidade não é imediata, no sentido de que possamos apreender de súbito, sem qualquer
investigação prévia, o significado da conduta dos outros. Mesmo quando se trata dos nossos
contemporâneos, podemos dar imediatamente uma interpretação de suas ações ou de suas obras,
mas, sem investigação e sem provas não podemos saber qual interpretação é a verdadeira. Em
suma, é mais apropriado falar em inteligibilidade intrínseca do que em inteligibilidade imediata,
lembrando sempre que esta inteligibilidade implica, por essência, uma ambiguidade. O ator
nem sempre conhece os motivos da sua ação; o observador é menos capaz ainda de adivinhá-
los intuitivamente. Precisa investigá-los, para poder distinguir entre o verdadeiro e o verossímil.
A ideia weberiana da compreensão é, em grande parte, tomada da obra de Karl Jaspers,
notadamente dos trabalhos que Jaspers escreveu na juventude sobre a psicopatologia, em
particular o Tratado que Jean-Paul Sartre traduziu em parte. O centro da psicopatologia de
Jaspers reside na distinção entre explicação e compreensão. O psicanalista compreende um
sonho, a relação entre determinada experiência infantil e um certo complexo, o
desenvolvimento de uma neurose. Há portanto, segundo Jaspers, no nível das experiências
vividas, uma compreensão intrínseca dos seus significados. Contudo, existem limites para esta
compreensão. Estamos longe de poder compreender o vínculo entre um certo estado de
consciência e determinado sintoma patológico. Compreende-se uma neurose, mas nem sempre
se compreende uma psicose. Num certo momento a inteligibilidade desaparece dos fenômenos
patológicos. Por outro lado, não se compreende as condutas reflexas. Em termos gerais, pode-
se dizer que as condutas são compreensíveis dentro de certos quadros; fora desses quadros, as
relações entre o estado de consciência e o estado físico ou psicológico deixam de ser
inteligíveis, embora sejam explicáveis.
Esta distinção é, a meu ver, o ponto de partida da ideia weberiana segundo a qual as
condutas sociais oferecem um imenso campo suscetível de uma compreensão, por parte do
sociólogo, comparável à compreensão do psicólogo. É óbvio que a compreensão sociológica
não se confunde com a compreensão psicológica. A esfera autônoma da inteligibilidade social
não abrange a da inteligibilidade psicológica.
Do fato de sermos capazes de compreender resulta que podemos explicar fenômenos
singulares sem a intermediação das proposições gerais. Há um vínculo entre a inteligibilidade
intrínseca dos fenômenos humanos e a orientação histórica destas ciências. Não que elas visem
sempre o que aconteceu uma só vez, e se interessem exclusivamente pelas características
singulares dos fenômenos. Como compreendemos o singular, a dimensão propriamente
histórica assume, nas ciências que têm por objeto a realidade humana, uma importância e um
alcance que ela não pode ter nas ciências da natureza.
Nas ciências da realidade humana deve-se distinguir duas orientações: uma no sentido
da história, do relato daquilo que não acontecerá uma segunda vez, a outra no sentido da
sociologia, isto é, da reconstrução conceitual das instituições sociais e do seu funcionamento.
Estas duas orientações são complementares. Max Weber nunca diria, como Durkheim, que a
curiosidade histórica deve subordinar-se à investigação de generalidades. Quando o objeto do
conhecimento é a humanidade, é legítimo o interesse pelas características singulares de um
indivíduo, de uma época ou de um grupo, tanto quanto pelas leis que comandam o
funcionamento e o desenvolvimento das sociedades.
As ciências que se orientam para a realidade humana são as ciências da cultura, que se
esforçam por compreender ou explicar as obras criadas pelos homens no curso do seu devenir,
não só as obras de arte mas também as leis, as instituições, os regimes políticos, as experiências
religiosas, as teorias científicas. A ciência weberiana se define, assim, como um esforço
destinado a compreender e a explicar os valores aos quais os homens aderiram, e as obras que
construíram.
***
As obras humanas são criadoras de valores, ou se definem por referência a valores.
Como pode existir uma ciência objetiva, isto é, não falseada pelos nossos julgamentos de valor,
obras carregadas de valores? O objetivo específico da ciência é a validade universal. Ela é, para
empregar os conceitos weberianos, uma conduta racional cuja finalidade é atingir julgamentos
de fato, universalmente válidos. Como é possível formular tais julgamentos a propósito de obras
que se definem como criações de valores?
Max Weber respondia a esta questão, que está no centro de toda sua reflexão filosófica
e epistemológica, traçando a distinção entre o julgamento de valor (Werturteil) e a relação com
os valores (Wertbeziehung).
A noção de julgamento de valor é fácil de compreender. O cidadão que considera que
a liberdade é algo essencial, e afirma que a liberdade de expressão e de pensamento é um valor
fundamental, está fazendo um julgamento em que sua personalidade se manifesta. As outras
pessoas estão livres para rejeitar tal julgamento, e achar que a liberdade de expressão não tem
grande importância. Os julgamentos de valor são pessoais e subjetivos; todos têm o direito de
considerar a liberdade como um valor positivo ou negativo, primordial ou secundário; como
um valor que convém salvaguardar antes de tudo, ou que podemos subordinar ou sacrificar a
alguma outra consideração. Por outro lado, a fórmula relação aos valores, significa, para
retomar o exemplo precedente, que o sociólogo da política considerará a liberdade como um
objeto a respeito do qual os sujeitos históricos se debaterão, como aquilo que estava em jogo
nas controvérsias ou nos conflitos entre os homens e os partidos, e que ele irá explorar a
realidade política do passado estabelecendo uma relação entre ela e o valor liberdade. A
liberdade é um ponto de referência para o sociólogo, que nem por isso está obrigado a declarar
seu apreço com relação a ela. Bastar-lhe-á que seja um dos conceitos com a ajuda dos quais vai
delimitar e organizar uma parte da realidade a estudar. Isto implica simplesmente que a
liberdade política seja um valor para os homens que a viveram. Em suma, não formulamos um
julgamento de valor, mas relacionamos a matéria estudada com um valor, que é a liberdade
política.
O julgamento de valor é uma afirmação moral ou vital, a relação aos valores é um
procedimento de seleção e de organização da ciência objetiva. Como professor, Max Weber
queria ser um cientista, e não um político. A distinção entre julgamento de valor e a relação aos
valores lhe permitia ao mesmo tempo marcar a diferença entre a atividade do cientista e a do
político, e a semelhança de interesses entre um e outro.
Esta distinção não é contudo imediatamente óbvia, e coloca vários problemas.
***
Antes de mais nada, por que razão é necessário utilizar este método, e “relacionar a
matéria histórica ou sociológica com valores”? A resposta, em sua forma mais elementar, é que
o cientista, para determinar seu objeto de estudo, está obrigado a fazer uma opção com respeito
à realidade: uma seleção dos fatos e a elaboração de conceitos que exigem um procedimento
do tipo relação aos valores.
Por que é necessário selecionar? A resposta de Max Weber é dupla, e pode situar-se
ora no nível de uma crítica transcendental de inspiração kantiana, ora no de um estudo
epistemológico e metodológico, sem pressupostos filosóficos ou críticos.
No nível da crítica transcendental, a ideia weberiana tem raízes na filosofia do
neokantiano H. Rickert. Para este, o que é dado primordialmente ao espírito humano é uma
matéria informe, que a ciência elabora e constrói. Rickert tinha desenvolvido também a ideia
de que há dois tipos de ciência, conforme a natureza da elaboração a que essa matéria é
submetida. A elaboração característica das ciências da natureza consiste em considerar os
caracteres gerais dos fenômenos e estabelecer relações regulares ou necessárias entre eles. Ela
tende à construção de um sistema de leis ou de relações cada vez mais gerais, tanto quanto
possível de forma matemática. O ideal da ciência natural é a física de Newton ou de Einstein,
na qual os conceitos designam objetos construídos pelo espírito. O sistema é dedutivo e se
organiza a partir de leis ou princípios simples e fundamentais.
Mas existe também um segundo tipo de elaboração científica, característica das
ciências históricas ou das ciências da cultura. Neste caso, o espírito não procura inserir
progressivamente a matéria informe num sistema de relações matemáticas; aplica uma seleção
à matéria relacionando-a a valores. Se um historiador pretendesse contar com todos os detalhes,
com todos os seus caracteres qualitativos, cada um dos atos e dos pensamentos de uma só
pessoa, num só dia, não conseguiria fazê-lo. Alguns romancistas contemporâneos tentaram
registrar os pensamentos que podem cruzar uma consciência durante determinado período de
tempo. Foi o que fez, por exemplo, Michel Butor, no romance La Modification, que se passa
numa viagem entre Paris e Roma. Esta narrativa das aventuras interiores de um singular
indivíduo, durante um só dia, exige um número respeitável de centenas de páginas. Basta
imaginar o trabalho do historiador que pretendesse contar do mesmo modo o que aconteceu em
todas as consciências de todos os soldados que participaram da batalha de Austerlitz para
perceber que esta narrativa impossível exigiria mais páginas do que todos os livros já escritos
sobre todas as épocas da humanidade.
O exemplo, que pertence ao método da experiência mental, mostra bem que pode-se
admitir sem dificuldade que todo relato histórico é uma reconstrução seletiva do que aconteceu
no passado. Esta seleção é predeterminada, em parte, pela seleção operada nos documentos.
Somos incapazes de reconstituir uma grande parte do que aconteceu nos séculos passados pela
simples razão de que os documentos disponíveis não nos permitem conhecer tudo o que
ocorreu. Contudo, mesmo quando os documentos são abundantes, o historiador seleciona em
função do que H. Rickert e Max Weber chamam de valores estéticos, morais ou políticos. Não
tentamos reconstruir tudo o que os homens viveram no passado, tentamos antes reconstruir, a
partir de documentos, sua existência histórica, realizando uma seleção orientada pelos valores
vividos pelos mesmos homens, objeto da história, e pelos valores dos historiadores, sujeitos da
ciência histórica.
Se admitíssemos a ciência como acabada, chegaríamos, no caso das ciências da
natureza, a um sistema hipotético-dedutivo que poderia explicar todos os fenômenos a partir de
princípios, axiomas e leis. Este sistema hipotético-dedutivo não nos permitiria contudo
determinar como e por que, em todos os detalhes concretos, se produziu uma explosão em
determinado momento do tempo e do espaço. Haverá sempre um hiato entre a explicação legal
e o acontecimento histórico concreto.
No caso das ciências da cultura e da história, chega-se não a um sistema hipotético-
dedutivo, mas a um conjunto de interpretações, todas seletivas e inseparáveis do sistema de
valores escolhido. Se cada reconstrução é seletiva, e comandada por um sistema de valores,
haverá tantas perspectivas históricas ou sociológicas quanto sistemas de valores, orientando a
seleção. Passamos assim do nível transcendental para o metodológico, onde se situa o
historiador ou o sociólogo.
Max Weber tomou emprestado a H. Rickert a oposição entre reconstrução
generalizadora e reconstrução singularizante, em função dos valores. O que o interessava nesta
ideia, ele que não era um filósofo profissional, mas um sociólogo, era o fato de que ela lhe
permitia lembrar que uma obra de história ou de sociologia deve seu interesse, em parte, ao
interesse das questões propostas pelo historiador ou sociólogo. As ciências humanas são
animadas e orientadas por questões que os cientistas dirigem à realidade. O interesse das
respostas depende amplamente do interesse das questões. Neste sentido, não é mau que os
sociólogos que estudam a política se interessem pela política, e que os sociólogos da religião
tenham interesse pela religião.
Max Weber pretendia superar deste modo uma antinomia bem conhecida: o cientista
que se apaixona pelo objeto da sua investigação não será nem imparcial nem objetivo. Mas
quem estima que a religião só se compõe de superstição corre o risco de nunca compreender
em profundidade a vida religiosa. Distinguindo assim as perguntas e as respostas, Weber
encontra uma saída: é preciso ter o senso do interesse daquilo que os homens viveram para
compreendê-los autenticamente; mas é preciso distanciar-se do próprio interesse para encontrar
uma resposta universalmente válida a uma questão inspirada pelas paixões do homem histórico.
***
As questões a partir das quais Max Weber elaborou uma sociologia da religião, da
política e da sociedade atual foram de ordem existencial. Têm a ver com a existência de cada
um de nós, com relação à vida em sociedade, à verdade religiosa ou metafísica. Max Weber
perguntou-se quais as regras a que obedece o homem de ação, quais as leis da vida política, que
sentido o homem pode dar a sua existência neste mundo. Qual é a relação entre a concepção
religiosa de cada pessoa e a maneira como vive, sua atitude em relação à economia, ao Estado?
A sociologia weberiana se inspira numa filosofia existencialista que propõe uma dupla negação:
Nenhuma ciência poderá dizer aos homens como devem viver, ou ensinar às
sociedades como se devem organizar. Nenhuma ciência poderá indicar à humanidade qual é o
seu futuro. A primeira negação o opõe a Durkheim, a segunda, a Marx.
Uma filosofia do tipo marxista é falsa porque é incompatível com a natureza da ciência
e da existência humana. Toda ciência histórica e social representa um ponto de vista parcial; é
incapaz de prever o futuro, pois este não é pré-determinado. Na medida em que alguns
acontecimentos futuros são pré-determinados, o homem terá sempre a liberdade, seja de recusar
este determinismo parcial, seja de se adaptar a ele de diferentes maneiras.
***
A distinção entre julgamento de valor e relação aos valores coloca, portanto, duas
outras questões fundamentais:
Na medida em que a seleção e a construção do objeto da ciência dependem das
questões propostas pelo observador, os resultados científicos estão aparentemente relacionados
com a curiosidade do cientista, e portanto com o contexto histórico em que este se situa. Ora, o
objetivo da ciência é chegar a julgamentos universalmente válidos. De que forma uma ciência
orientada por questões que se modificam pode, a despeito de tudo, alcançar uma validade
universal?
Por outro lado (e este ponto é, ao contrário do precedente, filosófico e não
metodológico), por que os julgamentos de valor são, em essência, não universalmente válidos?
Por que são subjetivos ou existenciais, necessariamente contraditórios?
O ato científico, enquanto conduta racional, se orienta pelo valor da verdade
universalmente válida. Ora, a elaboração científica começa por uma escolha que só tem
justificação subjetiva. Quais são, portanto, os procedimentos que permitem para além desta
escolha subjetiva garantir a validade universal dos resultados da ciência?
A maior parte da obra metodológica de Max Weber tem por objetivo responder a esta
dificuldade. Muito esquematicamente, sua resposta é que os resultados científicos devem ser
obtidos, a partir de uma escolha subjetiva, por procedimentos sujeitos a verificação, que se
imponham a todos os espíritos. Esforça-se por demonstrar que a ciência histórica é racional,
demonstrativa; que só procura enunciar proposições do tipo científico, sujeitas a confirmação.
Nas ciências históricas ou sociológicas a intuição não tem um papel diferente do que
desempenha nas ciências naturais. As proposições históricas ou sociológicas são proposições
de fato, que não tendem, de modo algum, a atingir verdades essenciais. Max Weber diria [...]
que os que pretendem apreender a essência de um determinado fenômeno vão além da ciência.
As proposições históricas e sociológicas tratam dos fatos observáveis, e visam atingir uma
realidade definida, a conduta dos homens, na significação que lhes dão os próprios atores.
[...] Max Weber considera a sociologia uma ciência da conduta humana na medida em
que esta conduta é social. [...] Ele dá ênfase ao conceito de significação vivida, ou de sentido
subjetivo. Sua ambição é compreender como os homens puderam viver em sociedades diversas,
em função de crenças diferentes; como, segundo as épocas, se dedicaram a esta ou àquela
atividade, depositando suas esperanças ora neste mundo ora no outro mundo, ora obcecados
pela salvação, ora pelo crescimento econômico.
Cada sociedade tem sua cultura, no sentido que os sociólogos norte-americanos dão
ao termo, isto é, um sistema de crenças e de valores. O sociólogo se esforça para compreender
como os homens viveram inumeráveis formas de existência, que só se tornam inteligíveis à luz
do sistema próprio de crenças e de conhecimentos de cada sociedade considerada.
WEBER – ECONOMIA E SOCIEDADE*

Raymond Aron

Economia e Sociedade (Wirtschaft und Gesellschaft) é um tratado de sociologia geral


que desenvolve ao mesmo tempo uma sociologia econômica, jurídica, política e religiosa.
Seu objeto é a história universal. Todas as civilizações, todas as épocas e todas as
sociedades são utilizadas como exemplos ou ilustrações. Mas este tratado é uma obra de
sociologia, não de história. Tem o objetivo de tornar inteligíveis as diferentes formas de
economia, de direito, de dominação e de religião, inserindo-as num único sistema conceitual.
Esse tratado de sociologia geral orienta-se para o presente; propõe-se a pôr em evidência a
originalidade da civilização ocidental, comparativamente às outras civilizações.
São quase oitocentas páginas cerradas [...] [que] não permite ao leitor saltar páginas, e
é quase impossível de resumir. Procurarei assim retraçar as etapas da conceituação geral para
explicar em que consiste aquilo que alguns têm chamado de nominalismo e individualismo de
Max Weber. Tomarei como exemplo a sociologia política, para mostrar como se opera a
conceituação weberiana num nível menos abstrato.
***
Segundo Weber, a sociologia é a ciência da ação social, que ela quer compreender
interpretando, e cujo desenvolvimento quer explicar, socialmente. Os três termos fundamentais
são, aqui, compreender (verstehen), interpretar (deuten) e explicar (erklaren), respectivamente,
apreender a significação, organizar o sentido subjetivo em conceitos e evidenciar as
regularidades das condutas.
A ação social é um comportamento humano (Verhalten), em outras palavras, uma
atitude interior ou exterior voltada para a ação, ou para a abstenção. Este comportamento é a
ação quando o ator atribui à sua conduta um certo sentido. A ação é social quando, de acordo
com o sentido que lhe atribui o ator, ela se relaciona com o comportamento de outras pessoas.
O professor age socialmente na medida em que o ritmo lento da sua elocução se relaciona com
a conduta dos seus estudantes, que devem fazer um esforço para tomar nota das demonstrações
escritas no quadro-negro. Se falasse sozinho, muito depressa, sem se dirigir a ninguém, sua
ação não seria social, pois não estaria orientada para a conduta de um grupo de ouvintes.

*
ARON, Raymond. “Max Weber”. In: As etapas do pensamento sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 1993,
p.509 a 522.
A ação social se organiza em relação social (soziale Beziehung). Há uma relação
social quando o sentido de cada ator, de um grupo de atores que age, se relaciona com a atitude
do outro, de modo que suas ações são mutuamente orientadas. O professor e seus alunos vivem
uma relação social.
Se as condutas de vários atores se orientam regularmente umas com relação a outras,
é preciso que algo determine a regularidade de tais relações sociais. Diz-se que há costume
(Brauch) quando tal relação social é regular, e que há hábito (Sitten) quando a origem dessa
relação é uma longa tradição que a transforma numa segunda natureza. Max Weber emprega o
termo eingeleitet: um costume, por assim dizer, penetra na vida. A tradição se torna uma forma
espontânea de agir.
Neste ponto da análise surge a noção de probabilidade. Quer se trate de costume ou
de hábito, a regularidade não é absoluta. Pode-se dizer que é costume nas universidades os
estudantes não tumultuarem as aulas; portanto, é provável que a palavra do professor encontre
alunos silenciosos, mas esta probabilidade não é uma certeza. Mesmo no caso das universidades
francesas, onde em geral os estudantes ouvem passivamente, não poderíamos dizer, como uma
afirmação de fato, que durante uma hora só o professor fale.
***
O conceito de ordem legítima intervém, logo depois da noção de relação regular. A
regularidade da relação social pode ser apenas o resultado de um longo hábito, mas é mais
frequente que haja fatores suplementares: a convenção ou o direito. A ordem legítima é
convencional quando a sanção que responde à sua violação é uma desaprovação coletiva. É
jurídica quando esta sanção assume a forma de coerção física. Os termos convenção e direito
são definidos pela natureza da sanção correspondente, como em Durkheim.
As ordens legítimas (legitime Ordnung) podem ser classificadas de acordo com as
motivações dos que obedecem. Weber distingue quatro tipos, que lembram os quatro tipos de
ação, mas não são exatamente os mesmos: as ordens são afetivas ou emocionais, racionais
com relação a valores, religiosas e, finalmente, determinadas pelo interesse. As ordens
legítimas determinadas pelo interesse são racionais com relação a um objetivo; as ordens
determinadas pela religião são chamadas tradicionais, o que põe em evidência a afinidade entre
religião e tradição, pelo menos numa certa fase da evolução histórica, pois o profetismo e a
racionalização religiosa nele originada são frequentemente revolucionários.
Da ordem legítima Max Weber passa ao conceito de combate (Kampf) que, desde o
início da análise, tem um sentido evidente. Ao contrário do que alguns sociólogos se inclinam
a crer, as sociedades não são conjuntos harmoniosos. [...] Para Max Weber, as sociedades são
feitas tanto de lutas como de acordos. O combate é uma relação social fundamental. Num duelo,
a ação de cada duelista está orientada para a ação do outro. A orientação recíproca das condutas
é, neste caso, ainda mais necessária do que num acordo, pois o que está em jogo é a própria
existência dos combatentes. A relação social do combate se define pela vontade de cada um dos
atores de impor-se ao outro, malgrado sua resistência. Quando o combate não comporta o uso
da força física, chama-se concorrência. Quando seu objetivo é a própria sobrevivência dos
atores, nós o chamamos de seleção (Auslese).
***
Os conceitos de relação social e de combate permitem, numa etapa subsequente da
conceituação, passar à própria constituição dos grupos sociais. O processo de integração dos
atores pode levar à criação de uma sociedade ou de uma comunidade. A distinção entre estes
dois processos (Vergesellschaftung e Vergemeinschaftung) é a seguinte:
Quando o resultado do processo de integração é uma comunidade (Gemeinschaft), o
fundamento do grupo é um sentimento de pertencimento experimentado pelos participantes,
cuja motivação pode ser afetiva ou tradicional. Se este processo de integração leva a uma
sociedade (Gesellschaft), isto se deve ao fato de que a motivação das ações sociais se constitui
de considerações ou ligações de interesses, ou leva a um acerto de interesses. Uma sociedade
comercial por ações, ou um contrato, são integrações racionais, com relação a um objetivo. O
processo de integração social ou comunitário resulta no agrupamento (Verband). O grupo pode
ser aberto ou fechado se a entrada nele for estritamente reservada ou, ao contrário, acessível a
todos ou quase todos. O agrupamento acrescenta às sociedades ou às comunidades um órgão
de administração (Verwaltungsstab) e uma ordem regulamentar.
Depois do agrupamento vem a empresa (Betrieb). Esta se caracteriza pela ação
contínua de vários atores, e pela racionalidade com vistas a um fim. Um agrupamento de
empresa (Betriebverband) é uma sociedade com um órgão de administração, com vistas a uma
ação racional. A combinação dos conceitos de agrupamento e de empresa mostra bem como
progride a conceituação weberiana. O agrupamento comporta um órgão especializado de
administração, a empresa introduz as duas noções de ação contínua e de ação racional com
vistas a um fim. Combinando as duas noções, obtém-se um grupo de empresa, sociedade sujeita
a um órgão de administração e que exerce uma ação contínua e racional.
Max Weber define ainda alguns conceitos-chave, na sua reconstrução da ação social.
Os dois primeiros são os de associação (Verein) e instituição (Anstalt). Na associação, a
regulamentação é aceita consciente e voluntariamente pelos participantes; na instituição ela é
imposta por decretos aos quais os participantes devem submeter-se.
***
Dois outros conceitos importantes são os de poder (Macht) e de dominação
(Herrschaft). O poder é definido simplesmente como a probabilidade de um ator impor sua
vontade a outro, mesmo contra a resistência deste. Situa-se portanto dentro de uma relação
social, e indica a situação de desigualdade que faz com que um dos atores possa impor sua
vontade ao outro. Estes atores podem ser grupos – por exemplo, Estados – ou indivíduos. A
dominação (Herrschaft) é a situação em que há um senhor (Herr); pode ser definida pela
probabilidade que tem o senhor de contar com a obediência dos que, em teoria, devem obedecê-
lo. A diferença entre poder e dominação está em que, no primeiro caso, o comando não é
necessariamente legítimo, nem a obediência forçosamente um dever; no segundo, a obediência
se fundamenta no reconhecimento, por aqueles que obedecem, das ordens que lhes são dadas.
As motivações da obediência permitirão portanto construir uma tipologia da dominação. Para
passar do poder e da dominação para a realidade política, é preciso acrescentar a ideia de
agrupamento político (politischer Verband). O agrupamento político contém as noções de
território, de continuidade do agrupamento e de ameaça de aplicação da força física para impor
respeito às ordens ou às regras. Entre os agrupamentos políticos, o Estado é a instância que
dispõe do monopólio da coerção física.
Weber introduz, por fim, um último conceito: o de grupo hierocrático, ou sagrado
(hierokratischer Verband). É o agrupamento no qual a dominação pertence aos que detêm os
bens sagrados, e podem dispensá-los. [...] Quando o poder recorre ao sagrado, e o poder
temporal e o espiritual se confundem, a obediência é imposta menos pela coerção física do que
pela posse das receitas de salvação. Se o poder distribui os bens dos quais os indivíduos esperam
a redenção, é ele que possui, para cada um e para todos, o segredo da vida feliz neste mundo ou
no outro.
[...]
***
Os tipos de dominação são em número de três: racional, tradicional e carismática. A
tipologia se fundamenta portanto no caráter próprio da motivação que comanda a obediência.
Racional é a dominação baseada na crença na legalidade da ordem e dos títulos dos que exercem
a dominação. Tradicional é a dominação fundamentada na crença do caráter sagrado das
tradições antigas, e na legitimidade dos que são chamados pela tradição a exercer a autoridade.
Carismática é a dominação que se baseia no devotamento fora do cotidiano, justificado pelo
caráter sagrado ou pela força heroica de uma pessoa e da ordem revelada ou criada por ela.
Os exemplos destes três tipos de dominação são abundantes. O agente tributário nos
faz obedecer porque acreditamos na legalidade dos títulos que lhe permite enviar-nos
documentos de cobrança fiscal. Sua dominação é, portanto, racional. De modo geral, o conjunto
da gestão administrativa das sociedades modernas, quer se trate da regulamentação da
circulação dos automóveis, dos exames universitários, ou do fisco, comporta uma dominação
tal de homens sobre outros homens que estes se submetem às ordens legais ou aos intérpretes e
executantes da própria legalidade e não a indivíduos isolados. A ilustração da dominação
tradicional é menos fácil de encontrar nas sociedades modernas, mas se a Rainha da Inglaterra
exercesse ainda um poder efetivo, o fundamento desta dominação seria o longo passado e a
crença na legitimidade da sua autoridade, cuja origem remonta a muitos séculos. Hoje, resta
apenas a aparência desta dominação. Os homens continuam a respeitar o detentor desse poder
tradicional, mas de fato não têm oportunidade de o obedecer. As leis são promulgadas, em nome
da Rainha, mas não é ela que determina o conteúdo. Hoje, nos países que conservaram a
monarquia, a dominação tradicional é meramente simbólica.
Podemos encontrar nos nossos dias, contudo, muitos exemplos do poder carismático.
Lenin exerceu durante alguns anos uma dominação carismática, que não se baseava na
legalidade ou em antigas tradições, mas no devotamento dos homens, convencidos da virtude
incomum daquele que se propunha convulsionar a ordem social. Hitler e o General de Gaulle
são outros exemplos, embora tão opostos, de chefes carismáticos segundo a definição
weberiana. O próprio de Gaulle acentuou o caráter carismático da sua dominação nas
circunstâncias em que, tendo que escolher entre apelar para a legitimidade eleitoral e apelar
para o 18 de junho de 1940, ele escolheu a segunda alternativa. Em abril de 1961, para exigir
obediência contra os generais rebeldes da Argélia, voltou a envergar o uniforme de General de
Brigada de junho de 1940, dirigindo-se aos oficiais e aos soldados não como Presidente da
República eleito por um congresso mas como o general de Gaulle, que há vinte anos
representava a legitimidade nacional. Quando um homem declara encarnar a legitimidade
nacional durante dois decênios, sua dominação não pertence mais à ordem racional, como não
pertence à ordem tradicional (o general de Gaulle não nasceu numa família real reinante), é
carismático.
O chefe está fora do cotidiano, do mesmo modo que está fora do cotidiano o
devotamento que os homens consagram a esta personalidade heroica e exemplar.
Como é natural, estes três tipos de dominação pertencem a uma classificação
simplificada. Max Weber esclarece que a realidade é sempre uma mistura ou confusão desses
três tipos puros.
[...]
***
De qualquer forma, esta tipologia da dominação permite a Max Weber entrar na
casuística conceitual dos tipos de dominação. Partindo da noção de dominação racional, ele
analisa as características da organização burocrática. Tomando como ponto de partida a noção
de dominação tradicional, acompanha o seu desenvolvimento e diferenciação progressiva:
dominação gerontocrática, patriarcal, patrimonial. Esforça-se por demonstrar como é possível
passar da definição simplificada de uma forma de dominação para a infinita diversidade das
instituições historicamente observadas, mediante a discriminação de diferentes modos. A
diversidade histórica se torna então inteligível, porque deixa de parecer arbitrária.
Desde que existem homens que refletem sobre as instituições sociais a primeira
surpresa é causada pela existência do outro. De fato, vivemos numa sociedade, mas há outras
sociedades; uma certa ordenação política ou religiosa nos parece evidente, ou sagrada, e há
outras ordens. Podemos reagir a esta descoberta pela afirmação agressiva ou ansiosa da validade
absoluta da nossa ordem, e a desvalorização simultânea de todas as outras. A sociologia começa
com o reconhecimento desta diversidade e com a vontade de compreendê-la, o que não implica
que todas as modalidades de ordem social se situem no mesmo nível de valor, mas apenas que
todas são inteligíveis porque exprimem a mesma natureza humana e social. A política de
Aristóteles tornou inteligível a diversidade de regimes das cidades gregas; a sociologia política
de Max Weber tenta fazer o mesmo no contexto da história universal. Aristóteles se interrogava
a respeito das dificuldades que cada regime precisava resolver, e as perspectivas de
sobrevivência e prosperidade de cada um. Max Weber pergunta qual é a evolução provável,
possível ou necessária de um tipo de dominação.
A análise das transformações da dominação carismática é exemplar. Esta forma de
dominação tem, na sua origem, algo que está fora do cotidiano (ausseralltäglich). Possui
portanto, em si mesma, alguma coisa de precário, porque os homens não podem viver de forma
duradoura fora do cotidiano, e porque tudo o que é incomum inevitavelmente se desgasta.
Ocorre, em consequência, um processo estreitamente ligado à dominação carismática: o retorno
do poder carismático à vida cotidiana (Veralltaglichung deo Charismas). A dominação
fundamentada nas qualidades excepcionais de um homem pode sobreviver a esse homem? Todo
regime marcado pela origem carismática do seu líder supremo não pode deixar de ser
confrontado com a questão da sobrevivência e da herança. Max Weber se volta assim para uma
tipologia dos métodos pelos quais se resolve o problema mais importante da dominação
carismática que é o da sucessão.
Pode haver uma procura organizada de outro portador do carisma, como na teocracia
tibetana tradicional. Os oráculos e o apelo ao julgamento divino podem ser utilizados também
para institucionalização do excepcional. O chefe carismático pode escolher pessoalmente seu
sucessor, mas e preciso que este seja aceito pela comunidade dos fiéis. O sucessor pode ser
selecionado igualmente pelo estado-maior do chefe carismático, e depois reconhecido pela
comunidade. Pode-se admitir que o carisma é inseparável do sangue, tornando-se hereditário
(Erbcharisma). A dominação carismática leva neste caso à dominação tradicional. A graça de
uma pessoa se torna propriedade de uma família. Finalmente, o carisma pode ser transmitido
de acordo com certos processos mágicos ou religiosos. A coroação dos reis da França
representava a transmissão da graça; desse modo, ela passava a pertencer a uma família, e não
a um homem.
Este exemplo simples ilustra bem o método e o sistema de Max Weber. Seu objetivo
é sempre o mesmo. Trata-se de identificar a lógica das instituições humanas e de compreender
as singularidades das instituições, sem com isto renunciar ao uso dos conceitos. Trata-se de
elaborar uma sistematização flexível que permita ao mesmo tempo integrar fenômenos diversos
num quadro contextual único e não eliminar o que constitui a singularidade de cada regime ou
de cada sociedade.
Esta forma de conceituação leva Max Weber a perguntar qual é a influência exercida
pelo modo de dominação sobre a organização e a racionalidade da economia; qual a relação
entre um tipo de economia e um tipo de direito. Em outras palavras, a conceitualização não tem
só por fim uma compreensão mais ou menos sistemática, mas também a colocação dos
problemas de causalidade ou das influências recíprocas dos diferentes setores do universo
social. A categoria que domina esta análise causal é a de oportunidade ou de influência e de
probabilidade. Um tipo de economia influencia o direito num certo sentido; é provável que um
tipo de dominação se manifeste na administração ou no direito de uma certa maneira. Mas não
há, nem pode haver, causalidade unilateral de uma série de instituições particulares sobre o
resto da sociedade. Neste sentido, o método weberiano pode ser admirado ou criticado, pois
multiplica as relações parciais e não acrescenta aquilo que os filósofos chamam hoje de
totalização. No estudo sociológico das religiões, Max Weber se esforçou por reconstruir o
conjunto de uma maneira de viver e pensar o mundo. Ele não ignorava a necessidade de inserir
cada elemento de uma existência ou de uma sociedade num conjunto. Contudo, em Economia
e Sociedade analisa as relações entre os setores e, por isso, multiplica as relações parciais sem
reconstruir a totalidade. Parece-me que Max Weber poderia justificar-se afirmando que não
excluía outros métodos, e que, no nível da generalidade conceitual em que se situa sua análise,
era impossível identificar relações causais comportando uma rigorosa necessidade, e que era
impossível também reconstruir a totalidade de uma sociedade particular, ou de um regime
político singular, porque o objetivo procurado é a apreensão dos diferentes aspectos de tais
totalidades, com a ajuda dos conceitos.
***
A sociologia política de Max Weber é inseparável da realidade histórica em que viveu.
Politicamente, Weber era, na Alemanha de Guilherme II, um nacional-liberal. Weber foi um
nacional-liberal, mas não um liberal no sentido norte-americano. Ele não era propriamente um
democrata no sentido francês, inglês ou norte-americano. Punha acima de tudo a grandeza da
nação e o poder do Estado. Indubitavelmente, estimava as liberdades a que aspiram os liberais
do velho continente. Sem um mínimo de direitos individuais, escreveu, não poderíamos mais
viver. Não acreditava, porém, na vontade geral ou no direito dos povos de dispor de si mesmos,
nem na ideologia democrática. Se desejava uma “parlamentarização” do regime alemão, era
para aprimorar a qualidade dos líderes, e não por princípio. Pertencia à geração pós-
bismarckiana, que se propunha como tarefa primordial a manutenção da herança do fundador
do Império alemão, e como segunda tarefa o acesso da Alemanha à política mundial
(Weltpolitik). Não era um desses sociólogos (como Durkheim) que acreditavam que as funções
militares dos Estados eram anacrônicas. Acreditava na permanência dos conflitos entre as
grandes potências e esperava que a Alemanha unificada ocupasse um lugar importante no
cenário mundial. Só levava em conta as questões sociais da atualidade tomando como referência
o objetivo supremo da grandeza do Reich. Weber foi um adversário apaixonado de Guilherme
II, a quem atribuiu, durante a guerra de 1914, a principal responsabilidade pelas desgraças que
se abateram sobre sua pátria. Na mesma época, esboçou um projeto de reforma das instituições
cujo objetivo era a “parlamentarização” do regime alemão. Atribuía a mediocridade da
diplomacia do II Reich ao sistema de recrutamento dos ministros e à ausência de vida
parlamentar.
Pensava Weber que a dominação burocrática caracteriza todas as sociedades
modernas e constitui um setor importante de qualquer regime, mas o funcionário não foi feito
para impulsionar o Estado ou para exercer funções propriamente políticas, e sim para aplicar os
regulamentos de acordo com os precedentes. Formou-se na disciplina, não na iniciativa e na
luta e, por isto, será normalmente um mau ministro. O recrutamento dos políticos implica regras
diferentes das que se aplicam ao recrutamento dos burocratas. Por isso, Max Weber desejava a
transformação do regime alemão no sentido parlamentar. As assembleias dariam oportunidade
de aparecerem melhores líderes, isto é, de líderes melhor formados para a batalha política do
que aqueles que só escolhiam um imperador ou que ocupavam funções no alto da hierarquia
administrativa.
O regime alemão comportava um elemento tradicional, o Imperador, e um elemento
burocrático, a administração. Faltava-lhe o elemento carismático. Observando as democracias
anglo-saxãs, Max Weber imaginava um líder político carismático que, como chefe partidário,
adquirisse na luta as qualidades sem as quais não há estadista, a saber, a coragem de decidir, a
audácia de inovar, a capacidade de despertar a fé e de conseguir a obediência. Este sonho de
um líder carismático foi vivido pela geração que sucedeu à de Max Weber. Mas, evidentemente,
este não teria reconhecido seu sonho na realidade alemã de 1933-1945.
***
A sociologia política de Weber leva a uma interpretação da sociedade presente, como
sua sociologia da religião conduz a uma interpretação das civilizações contemporâneas. O que
singulariza o universo em que vivemos é o “desencantamento” do mundo. A ciência nos habitua
a ver a realidade exterior apenas como conjunto de forças cegas que podemos pôr à nossa
disposição; nada resta dos mitos e das divindades com que o pensamento selvagem povoava o
universo. Nesse mundo despojado desses encantamentos, e cego, as sociedades se desenvolvem
no sentido de uma organização cada vez mais racional e burocrática.
Sabemos que uma obra só é realmente científica quando pode e deve ser ultrapassada.
Daí o caráter patético de uma vida dedicada à pesquisa que, mesmo no caso de êxito, está
condenada a não encontrar toda a verdade. Jamais chegaremos ao ponto final do nosso esforço
renovado; nunca teremos resposta definitiva às perguntas que consideramos mais importantes.
Por outro lado, quanto mais racional a sociedade, mais cada um de nós está condenado
ao que os marxistas chamam de alienação. Sentimo-nos sujeitos a um conjunto que vai além de
nós, condenados a só realizar uma parte daquilo que poderíamos ser; condenados a exercer,
toda a nossa vida, uma ocupação limitada sem outra esperança de grandeza senão a de aceitar
tal limitação.
Desde logo, o que é preciso salvaguardar antes de tudo, dizia Max Weber, são os
direitos humanos que dão a cada indivíduo a possibilidade de viver uma existência autêntica,
independente do lugar que ocupa na organização racional. Do ponto de vista político, é a
margem de livre competição graças à qual se afirma a personalidade, e podem ser escolhidos
os líderes verdadeiros, e não meros burocratas.
Além da racionalização científica do mundo, precisamos reservar os direitos de uma
religião puramente interior. Além da racionalização burocrática, é preciso salvaguardar a
liberdade de consciência e o confronto das pessoas. Sem suprimir as desigualdades entre os
indivíduos e entre as classes, o socialismo marcaria – se se transformasse de utopia em realidade
– uma etapa do processo de burocratização integral.
A conclusão weberiana procede da análise existencial da incompatibilidade dos
valores e da luta entre os deuses. O mundo é racionalizado pela ciência, pela administração e
pela gestão rigorosa dos empreendimentos econômicos, mas continua a luta entre as classes, as
nações e os deuses. Como não há um árbitro, ou um juiz, só existe uma atitude adequada à
dignidade: a escolha solitária de cada um de nós, diante da sua consciência. Pode ser que a
última palavra desta atitude filosófica seja a de engajamento. Max Weber dizia: escolha e
decisão (Entscheidung). A decisão era menos a escolha entre dois partidos do que o
engajamento em favor de um deus que podia ser um demônio.
A CIÊNCIA COMO VOCAÇÃO*

Max Weber
[...]
Devemos deixar clara uma coisa: que a decisão sobre os destinos acadêmicos seja, em
proporção tão grande, um “acaso”, não se deve apenas à insuficiência da seleção pela formação
coletiva da vontade. Todo jovem que se sente atraído pela erudição deve compreender
claramente que a tarefa à sua frente tem um aspecto duplo. Deve ter qualidades não só como
erudito, mas também como professor. E os dois aspectos não coincidem. Pode-se ser um
intelectual de destaque e ao mesmo tempo um professor abominavelmente ruim. [...]
A situação, porém, é tal que as universidades alemãs, especialmente as pequenas
universidades, estão empenhadas numa competição ridícula em busca de alunos. Os hoteleiros
das cidades universitárias celebram a chegada do milésimo estudante com uma festa e gostariam
de comemorar a chegada do número 2.000 com uma passeata de tochas. O interesse pelas
anuidades – devemos declará-lo francamente – é afetado pelas nomeações nos campos que
“atraem alunos”. E, à parte isso, o número de alunos matriculados é uma prova de qualificação,
que pode ser vista em termos de números, ao passo que a qualificação pela competência
universitária é imponderável. Esta, o que é muito natural, é frequentemente contestável,
precisamente aos inovadores audaciosos. Quase todos são, assim, afetados pela obsessão com
as vantagens imensuráveis que isso importa da grande frequência de alunos. Dizer de um
docente que é mau professor e, habitualmente, pronunciar uma sentença de morte acadêmica,
mesmo que ele seja o mais destacado erudito do mundo. E a questão de ser ele bom professor
ou não é determinada pelo número de alunos que condescendem em frequentar-lhe o curso.
A afluência ou não de alunos a um curso é determinada em grande parte – parte maior do
que se acreditaria ser possível – por elementos exclusivamente externos: temperamento e
mesmo a inflexão de voz do professor. Depois de um a boa experiência e sóbria reflexão, tenho
profunda desconfiança dos cursos que atraem multidões, por mais inevitáveis que sejam. A
democracia só deve ser usada quando for adequada. O preparo científico, e tal como devemos
praticá-lo de acordo com a tradição das universidades alemãs, é assunto de um a aristocracia
intelectual, e não devemos ocultar a nós mesmos tal fato. Na verdade, é certo que apresentar os
problemas científicos de modo que uma mente não-instruída, mas receptiva, os possa
compreender e – o que para nós é decisivo – possa vir a refletir sobre eles de forma

*
WEBER, Max. “A ciência como vocação”. In: Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: LTC, 1982, p.154-183.
independente, talvez seja a tarefa pedagógica mais difícil de todas. Mas se essa tarefa é ou não
realizada não será o número de alunos que o demonstrará. E – voltando ao nosso tema – essa
arte mesma é um dom pessoal e de modo algum coincide com as qualificações científicas do
universitário.
Em contraste com a França, a Alemanha não tem uma academia de “imortais” da ciência.
Segundo as tradições alemãs, as universidades fazem justiça às exigências tanto da pesquisa
quanto do ensino. Se as duas habilidades se conjugam num homem, é uma questão puramente
ocasional. Daí ser a vida acadêmica um acaso louco. Se o jovem estudioso pede meu conselho
sobre a habilitação, é difícil arcar com a responsabilidade de encorajá-lo. Se ele for judeu, então,
diremos lasciate ogni speranza. Mas devemos perguntar aos demais: você acredita, em sã
consciência, que pode ver mediocridade atrás de mediocridade, ano após ano, passar à sua
frente, sem se amargurar e sem sofrer? Naturalmente, recebemos sempre a resposta: “É claro,
vivo apenas para a minha vocação”. Não obstante, comprovei que poucos homens podem
suportar essa situação sem ressentimento.
Julguei necessário dizer tudo isso sobre as condições externas da vocação do homem
universitário. Mas acredito que na realidade desejais ouvir algo diverso, ou seja, a vocação
íntima para a ciência. Em nossa época, a situação interna, em contraste com a organização da
ciência como vocação, é em primeiro lugar condicionada pelos fatos de que a ciência entrou
numa fase de especialização antes desconhecida e que isto continuará. Não só externamente,
mas também interiormente, a questão está num ponto em que o indivíduo só pode adquirir a
consciência certa de realizar algo verdadeiramente perfeito no caso de ser um especialista
rigoroso.
Todo o trabalho que se estende pelos campos correlatos, que ocasionalmente
empreendemos e que os sociólogos devem, necessariamente, realizar repetidamente, é onerado
pela compreensão resignada de que, na melhor das hipóteses, proporcionamos ao especialista
questões úteis, às quais não chegaria de seu próprio ponto de vista especializado. Nosso próprio
trabalho deve, inevitavelmente, continuar altamente imperfeito. Somente pela especialização
rigorosa pode o trabalhador científico adquirir plena consciência, de uma vez por todas, e talvez
não tenha outra oportunidade em sua vida, de ter realizado alguma coisa duradoura. Uma
realização verdadeiramente definitiva e boa é, hoje, sempre uma realização especializada. E
quem não tiver a capacidade de colocar antolhos, por assim dizer, e chegar à ideia de que a sorte
de sua alma depende de fazer ou não a conjetura correta, neste trecho deste manuscrito, bem
pode manter-se longe da ciência. Jamais terá o que podemos chamar de “experiência pessoal”
da ciência. Sem essa estranha embriaguez, ridicularizada por todos os que vivem fora do
ambiente; sem esta paixão, esta afirmação de que “milhares de anos devem passar antes que
ingresseis na vida e milhares mais esperam em silêncio” – segundo se tenha ou não êxito em
fazer essa conjetura; sem isso, não haverá vocação para a ciência e seria melhor que vos
dedicásseis a qualquer outra coisa. Pois nada é digno do homem como homem, a menos que ele
possa empenhar-se na sua realização com dedicação apaixonada.
[...]
***
O progresso científico é uma fração, a mais importante, do processo de intelectualização
que estamos sofrendo há milhares de anos e que hoje em dia é habitualmente julgado de forma
tão extremamente negativa. Vamos esclarecer, primeiro, o que significa praticamente essa
racionalização intelectualista, criada pela ciência e pela tecnologia orientada cientificamente.
Significará que nós, hoje, por exemplo, sentados neste auditório, temos maior
conhecimento das condições de vida em que existimos do que um índio americano ou um
hotentote? Dificilmente. A menos que seja um físico, quem anda num bonde não tem ideia de
como o carro se movimenta. E não precisa saber. Basta-lhe poder “contar” com o
comportamento do bonde e orientar a sua conduta de acordo com essa expectativa; mas nada
sabe sobre o que é necessário para produzir o bonde ou movimentá-lo. O selvagem tem um
conhecimento incomparavelmente maior sobre as suas ferramentas. Quando gastamos dinheiro
hoje tenho certeza que, até mesmo se houver colegas de Economia Política neste auditório, cada
um deles terá uma diferente resposta pronta para a pergunta: como é possível comprar algum a
coisa com dinheiro – por vezes mais, por vezes menos? O selvagem sabe o que faz para
conseguir sua alimentação diária e que instituições lhe servem nessa empresa. A crescente
intelectualização e racionalização não indicam, portanto, um conhecimento maior e geral das
condições sob as quais vivemos.
Significa mais alguma coisa, ou seja, o conhecimento ou crença em que, se quiséssemos,
poderíamos ter esse conhecimento a qualquer momento. Significa principalmente, portanto,
que não há forças misteriosas incalculáveis, mas que podemos, em princípio, dominar todas as
coisas pelo cálculo. Isto significa que o mundo foi desencantado. Já não precisamos recorrer
aos meios mágicos para dominar ou implorar aos espíritos, como fazia o selvagem, para quem
esses poderes misteriosos existiam. Os meios técnicos e os cálculos realizam o serviço. Isto,
acima de tudo, é o que significa a intelectualização.
[...]
***
Hoje, falamos habitualmente da ciência como “livre de todas as pressuposições”. Haverá
tal coisa? Depende do que entendermos por isso. Todo trabalho científico pressupõe que as
regras da lógica e do método são válidas; são as bases gerais de nossa orientação no mundo; e,
pelo menos para nossa questão especial, essas pressuposições são o aspecto menos
problemático da ciência. A ciência pressupõe, ainda, que o produto do trabalho científico é
importante no sentido de que “vale a pena conhecê-lo”. Nisto estão encerrados todos os nossos
problemas, evidentemente. Pois esta pressuposição não pode ser provada por meios científicos
– só pode ser interpretada com referência ao seu significado último, que devemos rejeitar ou
aceitar, segundo a nossa posição última em relação à vida.
Além disso, a natureza da relação do trabalho científico e suas pressuposições varia muito,
segundo a estrutura destas. As Ciências Naturais, por exemplo, a Física, a Química, a
Astronomia, pressupõem como auto evidente o fato de que vale a pena conhecer as leis últimas
dos acontecimentos cósmicos, na medida em que a ciência pode formulá-las. Isso ocorre não
só porque com esse conhecimento podemos alcançar resultados técnicos, mas pela própria
fruição do conhecimento, se a sua busca for uma “vocação”. Não obstante, essa pressuposição
não pode de modo algum ser provada. E menos ainda se pode provar que vale a pena a existência
do mundo que essas ciências descrevem, que ela tem qualquer “significado”, ou que há sentido
em viver nesse mundo. A ciência não procura resposta para essas questões.
Vejamos a Medicina moderna, uma tecnologia prática que está cientificamente muito
desenvolvida. A “pressuposição” geral da Medicina é apresentada trivialmente na afirmação de
que a Ciência Médica tem a tarefa de manter a vida como tal e diminuir o sofrimento na medida
máxima de suas possibilidades. Não obstante, isso é problemático. Com seus meios, o médico
preserva a vida dos que estão mortalmente enfermos, mesmo que o paciente implore a sua
libertação da vida, mesmo que seus parentes, para quem a vida do paciente é indigna e para
quem o custo de manter essa vida indigna se torna insuportável, lhe assegurem a redenção do
sofrimento. Talvez se trate de um pobre lunático, cujos parentes, quer o confessem ou não,
desejam, e devem desejar, sua morte. Não obstante, as pressuposições da Medicina, e do código
penal, impedem ao médico suspender seus esforços terapêuticos. Se a vida vale a pena ser
vivida e quando – esta questão não é indagada pela Medicina. A Ciência Natural nos dá uma
resposta para a questão do que devemos fazer se desejamos dominar a vida tecnicamente. Deixa
totalmente de lado, ou faz as suposições que se enquadram nas suas finalidades, se devemos e
queremos realmente dominar a vida tecnicamente e se, em última análise, há sentido nisso.
Vejamos uma disciplina como a Estética. O fato de que existem obras de arte é aceito sem
crítica pela Estética, que busca estabelecer em que condições tal fato existe, mas não suscita a
questão de ser talvez o campo da arte um campo de grandiosidade diabólica, um campo deste
mundo e portanto, em sua essência, hostil a Deus, e, em seu espírito mais íntimo e aristocrático,
hostil à fraternidade do homem. Daí, a Estética não indagar se deve haver obras de arte.
Vejamos a Jurisprudência. Estabelece o que é válido, de acordo com as regras do
pensamento jurídico, que é em parte limitado pelo que é logicamente compulsivo e em parte
por esquemas fixados convencionalmente. O pensamento jurídico é válido quando certas regras
jurídicas e certos métodos de interpretação são reconhecidos como obrigatórios. Se deve haver
lei e se devemos estabelecer essas regras – tais questões não são respondidas pela
Jurisprudência. Ela só pode afirmar: para quem quiser este resultado, segundo as normas de
nosso pensamento jurídico, esta norma jurídica é o meio adequado de alcançá-lo.
Vejamos as Ciências Histórica e Cultural. Elas nos ensinam como compreender e
interpretar os fenômenos políticos, artísticos, literários e sociais em termos de suas origens.
Mas não nos dão resposta para a questão de se a existência desses fenômenos foi, e é,
compensadora. E não respondem à questão de se vale a pena o esforço necessário para conhecê-
las. Pressupõem haver interesse em participar, através desse processo, da comunidade de
“homens civilizados”. Mas não podem provar “cientificamente” que seja esse o caso; e o fato
de pressuporem esse interesse não prova, de forma alguma, que ele existe. Na verdade, ele não
é evidente por si mesmo.
Vejamos, finalmente, as disciplinas que me são próximas: Sociologia, História,
Economia, Ciência Política e os tipos de Filosofia Cultural que têm como tarefa interpretar
essas ciências. Afirma-se, e concordo com isso, que a política está deslocada na sala de aulas.
Não é o lugar adequado, no que concerne aos alunos. Se, por exemplo, na sala de aula de meu
ex-colega Dietrich Schäfer, de Berlim, os alunos pacifistas lhe cercassem a mesa e provocassem
tumulto, eu deploraria esse fato da mesma forma que deploro a agitação provocada pelos
estudantes antipacifistas contra o Professor Fõrster, cujas opiniões estão, sob certos aspectos,
totalmente longe das minhas. Mas a política também não deve entrar na sala de aula levada pelo
docente, e quando este se interessa cientificamente pela Política, ainda muito menos.
Tomar uma posição política prática é uma coisa, e analisar as estruturas políticas e as
posições partidárias é outra. Ao falar num comício político sobre a democracia, não escondemos
nosso ponto de vista pessoal; na verdade, expressá-lo claramente e tomar uma posição é o nosso
dever. As palavras que usamos nesse comício não são meios de análise científica, mas meios
de conseguir votos e vencer os adversários. Não são arados para revolver o solo do pensamento
contemplativo; são espadas contra os inimigos: tais palavras são armas. Seria um ultraje, porém,
usá-las do mesmo modo na sala de aula ou na sala de conferências. Se, por exemplo, estivermos
discutindo “democracia”, examinaremos suas várias formas, analisaremos os modos pelos quais
funcionam, determinaremos que resultados tem uma forma para as condições de vida em
comparação com a outra. Então, enfrentamos as formas da democracia com formas não
democráticas de ordem política e procuramos chegar à posição em que o estudante possa
encontrar o ponto do qual, em termos de seus ideais últimos, venha a tomar uma posição. Mas
o verdadeiro professor evitará impor, da sua cátedra, qualquer posição política ao aluno, quer
seja ela expressa ou sugerida. “Deixar que os fatos falem por si” é a forma mais parcial de
apresentar uma posição política ao aluno.
Por que nos devemos abster de assim agir? Afirmo, antecipadamente, que alguns colegas
muito estimados são de opinião que não é possível praticar essa autocontenção e que, mesmo
se o fosse, seria uma extravagância evitar declarar-se. Não é possível demonstrar
cientificamente qual o dever de um professor acadêmico. Só podemos pedir dele que tenha a
integridade intelectual de ver que uma coisa é apresentar os fatos, determinar as relações
matemáticas ou lógicas, ou a estrutura interna dos valores culturais, e outra coisa é responder a
perguntas sobre o valor da cultura e seus conteúdos individuais, e à questão de como devemos
agir na comunidade cultural e nas associações políticas. São problemas totalmente
heterogêneos. Se perguntarmos por que não nos devemos ocupar de ambos os tipos de
problemas na sala de aula, a resposta será: porque o profeta e o demagogo não pertencem à
cátedra acadêmica.
Ao profeta e ao demagogo, dizemos: “Ide para as ruas e falai abertamente ao mundo”, ou
seja, falai onde a crítica é possível. Na sala de aula ficamos frente à nossa audiência, que tem
de permanecer calada. Considero irresponsabilidade explorar a circunstância de que, em
benefício de sua carreira, os alunos têm de frequentar o curso de um professor onde não há
ninguém presente para fazer-lhe críticas. A tarefa do professor é servir aos alunos com o seu
conhecimento e experiência e não impor-lhes suas opiniões políticas pessoais. É, sem dúvida,
possível que o professor individual não consiga eliminar totalmente suas simpatias pessoais.
Fica, então, sujeito à crítica mais violenta no foro de sua própria consciência. E tal deficiência
nada prova; outros erros são também possíveis, por exemplo, exposições errôneas de fatos, e,
não obstante, nada provam contra o dever de se buscar a verdade. Também rejeito essa hipótese
no interesse mesmo da ciência. Estou pronto a provar, com as obras de nossos historiadores,
que sempre que o homem de ciência introduz seu julgamento pessoal de valor, cessa a plena
compreensão dos fatos. Mas isto foge ao âmbito do tema desta noite e exigiria uma elucidação
mais demorada.
Apenas indago: como podem um católico devoto, de um lado, e um maçom, de outro,
num curso sobre as formas da Igreja e do Estado, ou sobre a história religiosa, vir a pensar de
maneira semelhante sobre esses assuntos? Isto está fora de questão. Não obstante, o professor
acadêmico deve desejar, e deve exigir de si mesmo, servir a um e a outro, com seu conhecimento
e métodos. Pode-se dizer, porém, e com acerto, que o católico devoto jamais aceitará a opinião
sobre os fatores que provocaram o aparecimento do cristianismo que um professor livre de seus
pressupostos dogmáticos lhe apresenta. Certamente! A diferença, porém, está no seguinte: a
ciência “livre de pressuposições”, no sentido de uma rejeição dos laços religiosos, não conhece
o “milagre” e a “revelação”. Se o fizesse, a ciência seria infiel às suas próprias
“pressuposições”. O crente conhece tanto o milagre quanto a revelação. E a ciência “livre de
pressuposições” espera dele nada menos – e nada mais – do que o reconhecimento de que se o
processo puder ser explicado sem essas intervenções sobrenaturais, que uma explicação
empírica tem de eliminar como fatores causais, o processo terá de ser explicado da forma pela
qual a ciência tenta explicá-lo. E o crente pode fazer isso sem ser infiel a sua crença.
Mas a contribuição da ciência terá qualquer sentido para um homem que não se interessa
em conhecer os fatos, como tais, e para quem apenas o ponto de vista prático tem importância?
Talvez a ciência contribua, não obstante, com alguma coisa.
A tarefa primordial de um professor útil é ensinar seus alunos a reconhecer os fatos
“inconvenientes” – e quero dizer os fatos que são inconvenientes para suas opiniões partidárias.
E para cada opinião partidária há fatos que são extremamente inconvenientes, para minha
própria opinião e para a opinião dos outros. Acredito que o professor realiza mais do que uma
simples tarefa intelectual se compelir sua audiência a se habituar à existência de tais fatos. Eu
seria tão imodesto a ponto de aplicar a expressão “realização moral”, embora talvez ela possa
parecer demasiado grandiosa para uma coisa que nem precisa ser dita.
[...]
***
Finalmente, pode-se levantar a questão: “Se assim é, que contribuição real e positiva traz
a ciência para a ‘vida’ prática e pessoal?” Com isso estamos novamente de volta ao problema
da ciência como “vocação”.
Primeiro, é claro, a ciência contribui para a tecnologia do controle da vida calculando os
objetos externos bem como as atividades do homem. Bem, direis vós, afinal de contas isso
equivale ao verdureiro do rapaz americano. Concordo plenamente.
Segundo, a ciência pode contribuir com algo que o verdureiro não pode: métodos de
pensamento, os instrumentos e o treinamento para o pensamento. Direis, talvez: “Bem, isso não
são verduras, mas não vai, também, além dos meios para conseguir as verduras”. Fiquemos
hoje por aqui.
Felizmente, porém, a contribuição da ciência não alcança seu limite, com isso. Estamos
em condições de levar-vos a um terceiro objetivo: a clareza. Pressupomos, decerto, que nós
mesmos possuímos clareza. Na medida em que isso ocorre, podemos deixar-vos claro o
seguinte:
Na prática, podeis tomar esta ou aquela posição em relação a um problema de valor –
simplificando, pensai, por favor, nos fenômenos sociais como exemplos. Se tomardes esta ou
aquela posição, então, segundo a experiência científica, tereis de usar tais e tais meios para
colocar em prática vossa convicção. Ora, tais meios talvez sejam de tal ordem que sua rejeição
vos pareça imperiosa. Tendes, então, simplesmente de escolher entre o fim e os meios
inevitáveis. Justificará o “fim ” os meios? Ou não? O professor pode apresentar-vos a
necessidade de tal escolha. Não pode fazer mais do que isso, enquanto quiser continuar como
professor, e não tornar-se um demagogo. Ele pode, decerto, dizer-vos também que, se desejais
este e aquele fim, então deveis aceitar as consequências subsidiárias que, segundo toda
experiência, ocorrerão. Encontramo-nos novamente na mesma situação de antes. Há ainda
problemas que também podem surgir para o técnico, que em numerosos casos tem de tomar
decisões de acordo com o princípio do menor mal ou do relativamente melhor. Apenas, para
ele, um a coisa, a principal, é habitualmente dada, o fim. Mas tão logo problemas realmente
“últimos” estão em jogo para nós, tal não é o caso. Com isso, finalmente, chegamos ao serviço
final que a ciência, como tal, pode prestar ao objetivo da clareza, e ao mesmo tempo chegamos
aos limites da ciência.
Além disso, podemos e devemos dizer: em termos de seu significado, tal ou qual posição
prática pode ser deduzida com coerência interior, e daí integridade, a partir desta ou daquela
posição de weltanschauliche última. Talvez só possa ser deduzida dessa posição fundamental,
ou talvez de várias, mas não pode ser deduzida destas ou daquelas outras posições. Falando
figuradamente, servimos a este deus e ofendemos ao outro deus quando resolvemos adotar uma
ou outra posição. E se continuarmos fiéis a nós mesmos, chegaremos necessariamente a certas
conclusões finais que, subjetivamente, têm sentido. É isso o que, pelo menos em princípio,
podemos realizar. A Filosofia, como disciplina especial, e as discussões filosóficas de
princípios nas outras Ciências procuram realizar isso. Assim, se formos competentes em nossa
empresa (o que devemos pressupor, aqui) podemos forçar o indivíduo, ou pelo menos podemos
ajudá-lo, a prestar a si mesmo contas do significado último de sua própria conduta. Isto não
me parece pouco, mesmo em relação a nossa vida pessoal. Sou tentado, novamente, a dizer de
um professor que consegue êxito sob tal aspecto: ele está a serviço de forças “morais”; ele
cumpre o dever de provocar o auto esclarecimento e um senso de responsabilidade. E creio que
ele estará mais capaz de realizar isso na medida em que evitar conscienciosamente o desejo de
impor ou sugerir, pessoalmente, à sua audiência a posição que tomou.
A proposição que apresento aqui parte sempre do fato fundamental de que, enquanto a
vida continuar imanente e for interpretada em seus próprios termos, conhecerá apenas a luta
incessante desses deuses entre si. Ou, falando diretamente, as atitudes últimas possíveis para
com a vida são inconciliáveis, daí sua luta jamais chegar a uma conclusão final. Assim, é
necessária uma escolha decisiva. Se, nessas condições, a ciência é uma “vocação” digna para
alguém, e se a ciência em si tem “vocação” objetivamente digna, são julgamentos de valor sobre
os quais nada podemos dizer na sala de aula. Afirmar o valor da ciência é uma pressuposição a
ser ensinada ali. Pessoalmente, pelo meu trabalho mesmo, respondo pela afirmativa, e também
o respondo precisamente do ponto de vista que odeia o intelectualismo como o pior dos males,
tal como o faz hoje a juventude, ou habitualmente apenas imagina que faz. Nesse caso, a
advertência é válida para os jovens: “Cuidado, o diabo é velho; envelhecei também para
compreendê-lo”. Isto não significa a idade, no sentido da certidão de nascimento. Significa que
se desejarmos haver-nos com esse diabo teremos de não fugir à sua frente, como gostam de
fazer tantas pessoas, hoje. Em primeiro lugar, temos de perceber-lhe os processos, para
compreender seu poder e suas limitações.
[...]
BUROCRACIA*

Max Weber

Características da burocracia

A burocracia moderna funciona da seguinte forma específica:


I. Rege o princípio de áreas de jurisdição fixas e oficiais, ordenadas de acordo com
regulamentos, ou seja, por leis ou normas administrativas.
1. As atividades regulares necessárias aos objetivos da estrutura governada
burocraticamente são distribuídas de forma fixa como deveres oficiais.
2. A autoridade de dar as ordens necessárias à execução desses deveres oficiais se distribui
de forma estável, sendo rigorosamente delimitada pelas normas relacionadas com os meios de
coerção, físicos, sacerdotais ou outros, que possam ser colocados à disposição dos funcionários
ou autoridades.
3. Tomam-se medidas metódicas para a realização regular e contínua desses deveres e
para a execução dos direitos correspondentes; somente as pessoas que têm qualificações
previstas por um regulamento geral são empregadas.
Nos Governos públicos e legais, esses três elementos, constituem a “autoridade
burocrática”. No domínio econômico privado, constituem a “administração” burocrática. A
burocracia, assim compreendida, se desenvolve plenamente em comunidades políticas e
eclesiásticas apenas no Estado moderno, e na economia privada, apenas nas mais avançadas
instituições do capitalismo. A autoridade permanente e pública, com jurisdição fixa, não
constitui a norma histórica, mas a exceção. Isso acontece até mesmo nas grandes estruturas
políticas, como as do Oriente antigo, os impérios de conquista alemães e mongólicos, ou das
muitas estruturas feudais do Estado. Em todos esses casos, o governante executa as medidas
mais importantes através de pessoas de sua confiança pessoal, comensais, servos-cortesãos.
Seus encargos e sua autoridade não são delimitados com precisão, e têm uma natureza
temporária, sendo criadas para cada caso específico.
II. Os princípios da hierarquia dos postos e dos níveis de autoridades significam um
sistema firmemente ordenado de mando e subordinação, no qual há uma supervisão dos postos
inferiores pelos superiores. Esse sistema oferece aos governados a possibilidade de recorrer de

*
WEBER, Max. “Burocracia”. In: Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: LTC, 1982, p.229-282.
uma decisão de uma autoridade inferior para a sua autoridade superior, de uma forma regulada
com precisão. Com o pleno desenvolvimento do tipo burocrático, a hierarquia dos cargos é
organizada monocraticamente. O princípio da autoridade hierárquica de cargo encontra-se em
todas as organizações burocráticas: no Estado e nas organizações eclesiásticas, bem como nas
grandes organizações partidárias e empresas privadas. Não importa, para o caráter da
burocracia, que sua autoridade seja chamada “privada” ou “pública”.
Quando o princípio de “competência” jurisdicional é realizado plenamente através da
subordinação hierárquica – pelo menos no cargo público – não significa que a autoridade
“superior” esteja simplesmente autorizada a se ocupar dos assuntos da autoridade “inferior”.
Na verdade, ocorre o inverso. Uma vez criado e tendo realizado sua tarefa, o cargo tende a
continuar existindo e a ser ocupado por outra pessoa.
III. A administração de um cargo moderno se baseia em documentos escritos (“os
arquivos”), preservados em sua forma original ou em esboço. Há, porém, um quadro de
funcionários e escreventes subalternos de todos os tipos. O quadro de funcionários que ocupe
ativamente um cargo “público”, juntamente com seus arquivos de documentos e expedientes,
constitui uma “repartição”. Na empresa privada, a “repartição” é frequentemente chamada de
“escritório”.
Em princípio, a organização moderna do serviço público separa a repartição do domicílio
privado do funcionário e, em geral, a burocracia segrega a atividade oficial como algo distinto
da esfera da vida privada. Os dinheiros e o equipamento público estão divorciados da
propriedade privada da autoridade. Essa condição é, em toda parte, produto de um longo
desenvolvimento. Hoje em dia, é observada tanto no setor público como na iniciativa privada;
nesta última, o princípio se estende até mesmo ao empresário. Em princípio, o escritório
executivo está separado da residência, a correspondência comercial é separada da pessoal, e os
bens da empresa são distintos das fortunas privadas. A coerência da moderna administração de
empresas tem sido proporcional a essa separação. O início do processo já pode ser observado
na Idade Média.
É peculiar ao empresário moderno comportar-se como o “primeiro funcionário” de sua
empresa, da mesma forma pela qual um governante de um Estado moderno, especificamente
burocrático, considera-se como o “primeiro servidor” do Estado. A ideia de que as atividades
das repartições estatais são intrinsecamente diferentes, em caráter, da administração dos
escritórios das empresas privadas é uma noção da Europa continental, totalmente estranha ao
pensamento americano.
IV. A administração burocrática, pelo menos toda a administração especializada – que é
caracteristicamente moderna – pressupõe habitualmente um treinamento especializado e
completo. Isso ocorre cada vez mais com o diretor moderno e o empregado das empresas
privadas, e também com o funcionário do Estado.
V. Quando o cargo está plenamente desenvolvido, a atividade oficial exige a plena
capacidade de trabalho do funcionário, a despeito do fato de ser rigorosamente delimitado o
tempo de permanência na repartição, que lhe é exigido. Normalmente, isso é apenas o produto
de uma longa evolução, tanto nos cargos públicos como privados. Antigamente, em todos os
casos, a situação normal era inversa: os negócios oficiais eram considerados como uma
atividade secundária.
VI. O desempenho do cargo segue regras gerais, mais ou menos estáveis, mais ou menos
exaustivas, e que podem ser aprendidas. O conhecimento dessas regras representa um
aprendizado técnico especial, a que se submetem esses funcionários. Envolve jurisprudência,
ou administração pública ou privada.
A redução do cargo moderno a regras está profundamente arraigada à sua própria
natureza. A teoria da moderna administração pública, por exemplo, sustenta que a autoridade
para ordenar certos assuntos através de decretos – legalmente atribuída às autoridades públicas
– não dá à repartição o direito de regular o assunto através de normas expelidas em cada caso,
mas tão-somente para regulamentar a matéria abstratamente. Isso contrasta de forma extrema
com a regulamentação de todas as relações através dos privilégios individuais e concessão de
favores, que domina de forma absoluta no patrimonialismo, pelo menos na medida em que essas
relações não são fixadas pela tradição sagrada.

A posição do funcionário

Tudo isso resulta, para a posição interna e externa do funcionário, no seguinte:


I. A ocupação de um cargo é uma “profissão”. Isso se evidencia, primeiro, na exigência
de um treinamento rígido, que demanda toda a capacidade de trabalho durante um longo período
de tempo e nos exames especiais que, em geral, são pré-requisitos para o emprego. Além disso,
a posição do funcionário tem a natureza de um dever. Isso determina a estrutura interna de suas
relações, da forma seguinte: jurídica e praticamente, a ocupação de um cargo não é considerada
como uma fonte de rendas ou emolumentos a ser explorada, como ocorria normalmente durante
a Idade Média e frequentemente até recentemente. Nem é a ocupação do cargo considerada
como uma troca habitual de serviços por equivalentes, como é o caso dos contratos livres de
trabalho. O ingresso num cargo, inclusive na economia privada, é considerado como a aceitação
de uma obrigação específica de administração fiel, em troca de uma existência segura. É
decisivo para a natureza específica da fidelidade moderna ao cargo que, no tipo puro, ele não
estabeleça uma relação pessoal, como era o caso da fé que tinha o senhor ou patriarca nas
relações feudais ou patrimoniais. A lealdade moderna é dedicada a finalidades impessoais e
funcionais. Atrás das segundas, estão habitualmente, é claro, “ideias de valores culturais”. São
o ersatz do senhor sobrenatural ou terreno, mas pessoal: ideias como “Estado”, “igreja”,
“comunidades”, “partido” ou “empresa” são consideradas como peculiares à comunidade:
proporcionam uma áurea ideológica para o senhor.
O funcionário político – pelo menos, no Estado moderno bem desenvolvido – não é
considerado um servo pessoal do governante. Hoje, o bispo, o sacerdote e o pregador já não
são, como nos tempos cristãos antigos, detentores de um carisma exclusivamente pessoal. Os
valores supramundanos e sagrados que eles oferecem são proporcionados a todos os que
parecem dignos deles e que os solicitam. Antigamente, esses líderes agiam sob a ordem pessoal
de seu senhor; em princípio, só eram responsáveis perante ele. Hoje em dia, apesar da
sobrevivência parcial da velha teoria, esses líderes religiosos são funcionários a serviço de um
propósito objetivo, que na “igreja” da atualidade se tornou rotineiro e, por sua vez,
ideologicamente oco.
II. A posição pessoal do funcionário é determinada da forma seguinte:
1. Quer ocupe um posto público ou privado, o funcionário moderno pretende sempre e
habitualmente desfruta uma estima social específica, em comparação com os governados. Sua
posição social é assegurada pelas normas que se referem à hierarquia ocupada e, para o
funcionário político, pelas definições especiais do código criminal contra “insultos aos
funcionários” e “desprezo” às autoridades do Estado e da Igreja.
[...]
2. O tipo puro de funcionário burocrático é nomeado por uma autoridade superior. Uma
autoridade eleita pelos governados não é uma figura exclusivamente burocrática. Decerto, a
existência formal de uma eleição não significa, em si, que atrás dela não se esconde uma
nomeação – o que ocorre no estado, especialmente, no caso da nomeação indicada pelos chefes
partidários. Tal nomeação independe dos estatutos legais, dependendo, sim, da forma pela qual
funciona o mecanismo partidário. Uma vez organizados firmemente, os partidos podem
transformar uma eleição formalmente livre na simples aclamação de um candidato designado
pelo chefe do partido. Em geral, porém, uma eleição formalmente livre se transforma numa
luta, conduzida segundo regras definidas, em busca de votos em favor de um dos dois
candidatos designados.
[...]
3. Normalmente, a posição do funcionário é vitalícia, pelo menos nas burocracias
públicas, e isso ocorre cada vez mais em todas as organizações semelhantes. Como norma
concreta, sempre se pressupõe o cargo vitalício, mesmo quando ocorre o afastamento ou a
renomeação periódica. Em contraste com o trabalhador da empresa privada, o funcionário é
normalmente mantido no posto. A vitaliciedade legal ou real, porém, não é reconhecida como
um direito do funcionário à posse do cargo, como ocorria em muitas organizações autoritárias
no passado. Quando há garantias jurídicas contra o afastamento ou a transferência arbitrária,
estas servem simplesmente para assegurar uma demissão rigorosamente objetiva de deveres
específicos ao cargo, livre de quaisquer considerações pessoais. Na Alemanha, isso ocorre com
os funcionários da Justiça e, em proporções crescentes, com os administrativos.
[...]
4. O funcionário recebe compensação pecuniária regular de um salário normalmente fixo
e a segurança na velhice representada por uma pensão. O salário não é medido como uma
remuneração em termos de trabalho feito, mas de acordo com a hierarquia, ou seja, segundo o
tipo de função (o grau hierárquico) e, além disso, possivelmente, segundo o tempo de serviço.
A segurança relativamente grande da renda do funcionário, bem como as recompensas em
consideração social, fazem do cargo público uma posição muito ambicionada, especialmente
em países que já não oferecem oportunidades de lucros coloniais. Neles, a situação permite
salários relativamente baixos para os funcionários.
5. O funcionário se prepara para uma “carreira” dentro da ordem hierárquica do serviço
público. Passa dos cargos inferiores e de menor remuneração para os postos mais elevados. O
funcionário médio naturalmente deseja uma fixação mecânica das condições de promoção: se
não de cargos, pelo menos de níveis de salário. Deseja que sejam fixadas em termos de
“antiguidade” ou possivelmente segundo os graus alcançados num sistema de exame de
habilitações, que na realidade assegure ao cargo um caráter vitalício indelével, com efeitos em
toda a sua carreira. A isso se juntam o desejo de condicionar o direito ao cargo e a tendência
crescente à organização corporativa e à segurança econômica. Tudo isso cria a tendência de
considerar os cargos como “prebendas” para os que estão habilitados através de certificados de
cursos. A necessidade de levar em conta as qualificações gerais, pessoais e intelectuais,
independentes do caráter subalterno da certidão educacional, levou a uma situação na qual os
cargos políticos mais elevados, especialmente os de “ministros”, são preenchidos
principalmente sem referência a tais certificados ou certidões.

A “racionalização” da educação e treinamento

Não podemos analisar aqui os efeitos culturais gerais e de longo alcance que o progresso
da estrutura burocrática racional de domínio, como tal, provoca independentemente das áreas
de que se apossa. Naturalmente, a burocracia promove um modo de vida “racionalista”, mas o
conceito de racionalismo possibilita uma ampla variedade de contextos. Geralmente, podemos
dizer apenas que a burocratização de todo o domínio promove, de forma muito intensa, o
desenvolvimento de uma “objetividade racional” e do tipo de personalidade do perito
profissional. Isto tem ramificações de longo alcance, mas somente um elemento importante do
processo pode ser indicado aqui: seu efeito sobre a natureza do treinamento e educação.
As instituições educacionais do continente europeu, especialmente as de instrução
superior – as universidades, bem como as academias técnicas, escolas de comércio, ginásios e
outras escolas de ensino médio – são dominadas e influenciadas pela necessidade de tipo de
“educação” que produz um sistema de exames especiais e a especialização que é, cada vez mais,
indispensável à burocracia moderna.
***
O “exame especial”, no sentido presente, foi e ainda é encontrado também fora das
estruturas burocráticas propriamente ditas; assim, hoje ele é observado nas profissões “livres”
da Medicina e do Direito e nos comércios organizados como guildas. Os exames de
conhecimentos não são fenômenos indispensáveis nem concomitantes de burocratização. As
burocracias francesa, inglesa e americana abriram mão, há muito tempo, desses exames,
totalmente ou em grande parte, pois o treinamento e serviço nas organizações partidárias os
substituíram.
A “democracia” também toma uma posição ambivalente frente aos exames
especializados, tal como frente a todos os fenômenos da burocracia – embora a democracia, em
si, promova tal situação. Exames especiais, por sua vez, significam ou parecem significar uma
“seleção” dos que se qualificam, de todas as camadas sociais, ao invés de um Governo de
notáveis. Mas, por outro lado, a democracia teme que o sistema de mérito e títulos resulte numa
“casta” privilegiada. Daí, lutar ela contra o sistema de exames especiais.
O exame especial encontra-se até mesmo nas épocas pré-burocráticas ou
semiburocráticas. Na verdade, o centro regular e mais antigo dos exames especiais são as
formas de dominação organizadas em prebendas. A esperança da prebenda, primeiro das
prebendas da Igreja – como no Oriente islâmico e na Idade Média ocidental – e depois, como
ocorreu especialmente na China, as prebendas seculares, são os prêmios típicos pelos quais as
pessoas estudam e são examinadas. Os exames, porém, na verdade só têm um caráter
parcialmente especializado.
O desenvolvimento moderno da plena burocratização coloca em primeiro plano,
irresistivelmente, o sistema de exames racionais, especializados. A reforma do serviço público
importa, gradualmente, o treinamento especializado para os Estados Unidos. Em todos os outros
países, esse sistema também progride, partindo de seu berço principal, a Alemanha. A crescente
burocratização da administração fortalece a importância do exame especializado na Inglaterra.
Na China, a tentativa de substituir a burocracia semipatrimonial e antiga por uma burocracia
moderna trouxe o exame especializado; tomou o lugar de um sistema de exames antigo e
estruturado de forma muito diferente. A burocratização do capitalismo, com sua exigência de
técnicos, funcionários, preparados com especialização, etc., generalizou o sistema de exames
por todo o mundo. Acima de tudo, a evolução é muito estimulada pelo prestígio social dos
títulos educacionais, adquiridos através desses exames. É ainda mais o caso quando o título
educacional é usado com vantagem econômica. Hoje, os diplomas são o que o teste dos
ancestrais foi no passado, pelo menos onde a nobreza continuou poderosa: um pré-requisito
para a igualdade de nascimento, uma qualificação para um canonicato e para o cargo estatal.
O desenvolvimento do diploma universitário, das escolas de comércio e engenharia, e o
clamor universal pela criação dos certificados educacionais em todos os campos levam à
formação de uma camada privilegiada nos escritórios e repartições. Esses certificados apoiam
as pretensões de seus portadores, de intermatrimônios com famílias notáveis (nos escritórios
comerciais, as pessoas esperam naturalmente a preferência em relação à filha do chefe), as
pretensões de serem admitidas em círculos que seguem “códigos de honra”, pretensões de
remuneração “respeitável” ao invés da remuneração pelo trabalho realizado, pretensões de
progresso garantido e pensões na velhice e, acima de tudo, pretensões de monopolizar cargos
social e economicamente vantajosos. Quando ouvimos, de todos os lados, a exigência de uma
adoção de currículos regulares e exames especiais, a razão disso é, decerto, não uma “sede de
educação” surgida subitamente, mas o desejo de restringir a oferta dessas posições e sua
monopolização pelos donos dos títulos educacionais. Hoje, o “exame” é o meio universal desse
monopólio e, portanto, os exames avançam irresistivelmente. Como a educação necessária à
aquisição do título exige despesas consideráveis e um período de espera de remuneração plena,
essa luta significa um recuo para o talento (carisma) em favor da riqueza, pois os custos
“intelectuais” dos certificados de educação são sempre baixos, e com o crescente volume desses
certificados os custos intelectuais não aumentam, mas decrescem.
A exigência de um estilo de vida cavalheiresco na antiga qualificação feudal na Alemanha
é substituída pela necessidade de participar em sua presente forma rudimentar, tal como
representada pelos grupos duelistas nas universidades que também distribuem os diplomas. Nos
países anglo-saxões, os clubes atléticos e sociais realizam essa mesma função. A burocracia,
por sua vez, luta em toda parte por um “direito ao cargo”, pela adoção de um processo
disciplinar regular e pela eliminação da autoridade totalmente arbitrária do “chefe” sobre o
funcionário, o seu progresso ordenado e a provisão pela velhice. Nisso, a burocracia é apoiada
pelo sentimento “democrático” dos governados, que exige a minimização do domínio. Os
partidários dessa posição consideram-se capazes de discernir um enfraquecimento das
prerrogativas do senhor, em qualquer enfraquecimento do poder arbitrário do senhor sobre os
funcionários. Sob esse aspecto, a burocracia, tanto nos escritórios comerciais quanto no serviço
público, é a base de um a evolução especialmente estamental, já desenvolvida de forma bem
diferente pelos ocupantes de cargos no passado. Já mencionamos que essas características
estamentais são habitualmente também exploradas, e que pela sua natureza contribuem para a
utilidade técnica da burocracia na realização de suas tarefas específicas.
A “democracia” reage precisamente contra o inevitável caráter estamental da burocracia.
A democracia procura substituir a nomeação de funcionários pela eleição para curtos mandatos;
procura substituir um processo regulamentado de disciplina pela substituição de funcionários
pela eleição. Assim, a democracia procura substituir a disposição arbitrária do “senhor”
hierarquicamente superior pela autoridade, igualmente arbitrária, dos governados e dos chefes
políticos que os dominam.
***
O prestígio social baseado na vantagem da educação e treinamento especiais não é, de
forma alguma, específico à burocracia. Ao contrário! Mas o prestígio educacional em outras
estruturas de domínio repousa substancialmente em bases diferentes.
Usando palavras que se assemelham a slogans; podemos dizer que o “homem culto”, e
não o “especialista”, tem sido o objetivo visado pela educação e formou a base da consideração
social em vários sistemas, como as estruturas de domínio feudal, teocrática e patrimonial: na
administração inglesa dos notáveis, na velha burocracia patrimonial chinesa, bem como sob o
domínio dos demagogos na chamada democracia helénica.
A expressão “homem culto” é usada aqui num sentido completamente neutro em relação
ao valor; é compreendida como significando apenas que a meta da educação consiste na
qualidade da posição do homem na vida, que foi considerada “culta”, e não num preparo
especializado para ser um perito. A personalidade “culta” era o ideal educacional, marcado pela
estrutura do domínio e pela condição social para a participação na camada dominante. Tal
educação visava a um tipo cavalheiresco ou a um tipo ascético; ou, a um tipo literário, como na
China; um tipo de ginasta-humanista, como na Hélade; ou visava à forma convencional do
gentleman, como no caso do cavaleiro anglo-saxão. A qualificação da camada dominante, como
tal, baseava-se na posse de uma qualidade “mais” cultural (no sentido absolutamente variável,
neutro em relação ao valor, em que usamos aqui a expressão), e não num conhecimento “mais”
especializado. A capacidade militar, teológica e jurídica era, decerto, praticada com
intensidade; mas o centro de gravidade na educação helénica, na medieval, bem como na
chinesa, estava nos elementos educacionais totalmente diferentes do que era “útil” na
especialidade de cada qual.
Por trás de todas as discussões atuais sobre as bases do sistema educacional, a luta dos
“especialistas” contra o tipo mais antigo de “homem culto” se oculta em algum aspecto
decisivo. Essa luta é determinada pela expansão irresistível da burocratização de todas as
relações públicas e privadas de autoridade e pela crescente importância dos peritos e do
conhecimento especializado. Essa luta está presente em todas as questões culturais íntimas.
***
Durante o seu progresso, a organização burocrática teve de superar os obstáculos
essencialmente negativos que obstruíram o processo de nivelamento necessário à burocracia.
Além disso, as estruturas administrativas baseadas em princípios diferentes cruzam-se com as
organizações burocráticas. Como estas foram examinadas acima, somente alguns princípios
estruturais especialmente importantes serão examinados aqui, rapidamente, e de forma
simplificada. Seríamos afastados, e muito, de nosso campo, se fossemos discutir todos os tipos
existentes na prática. Vamos proceder formulando as seguintes perguntas:
1. Até que ponto as estruturas administrativas estão sujeitas à determinação econômica?
Ou até que ponto as oportunidades de desenvolvimento são criadas por outras circunstâncias,
por exemplo, as exclusivamente políticas? Ou, finalmente, até que ponto é a evolução
determinada por uma lógica “autônoma”, que é exclusivamente da estrutura técnica como tal?
2. Indagaremos se esses princípios estruturais, por sua vez, liberam ou não efeitos
econômicos específicos, e, se assim for, quais. Ao fazê-lo, temos de, naturalmente, observar
desde o início as transações superpostas de todos esses princípios orgânicos. Seus tipos “puros”,
afinal de contas, devem ser considerados simplesmente como casos marginais, especialmente
valiosos e indispensáveis à análise. As realidades históricas, que quase sempre surgem em
formas mistas, se movimentam entre esses tipos puros.
A estrutura burocrática é, em toda parte, produto de um desenvolvimento tardio. Quanto
mais recuamos sobre nossos próprios passos, tanto mais típica se torna a ausência de burocracia
e funcionalismo na estrutura de domínio. A burocracia tem um caráter “racional”: regras, meios,
fins e objetivos dominam sua posição. Em toda parte, a sua origem e sua divisão tiveram, até
agora, resultados “revolucionários”, num sentido especial, que ainda não foi discutido. É a
mesma influência que o avanço do racionalismo teve em geral. A marcha da burocracia destruiu
as estruturas de domínio que não tinham caráter racional, no sentido especial da palavra. Daí
podermos indagar: Que estruturas eram essas?

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