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Prezados(as) alunos(as),
Bons estudos!
Anthony Giddens
*
GIDDENS, Anthony. Sociologia: uma breve porém crítica introdução. Rio de Janeiro: Zahar, 1989, p.09-27.
qualquer outro tipo de radical –, existem claras ligações entre os impulsos que os instigam à ação
e algum tipo de consciência sociológica. Isso não se dá, ou talvez se dê apenas raramente, porque
os sociólogos pregam abertamente a revolta. Ocorre por que o estudo da sociologia,
adequadamente entendida, demonstra de modo inequívoco quão prementes são as questões
sociais com que nos defrontamos no mundo atual. Todos têm algum tipo de consciência dessas
questões, mas o estudo da sociologia favorece a que se lhes dê um enfoque mais agudo. A
sociologia não pode permanecer uma disciplina puramente acadêmica, se “acadêmica” significa
uma busca desinteressada e distanciada, circunscrita ao âmbito estreito dos muros da
universidade.
A sociologia não é uma disciplina similar a um belo presente teórico, a demandar apenas
o esforço de desembrulhar seu conteúdo. Como as outras ciências sociais – que podem incluir,
entre outras disciplinas, a antropologia, a economia e a história –, a sociologia é uma empreitada
intrinsecamente controvertida. Até mesmo porque se caracteriza por permanentes disputas acerca
de sua própria natureza. Mas isso não constitui fraqueza, apesar de ter isso parecido a inúmeros
“sociólogos” profissionais e a muitas pessoas leigas angustiadas com o fato de existirem
numerosas concepções competindo pela maneira adequada de enfocar e analisar o objeto da
sociologia. Os que se afligem com a persistência dos embates sociológicos e com a falta de
consenso para resolvê-los usualmente caracterizam essa situação como sinal de imaturidade da
sociologia. Eles querem que a sociologia se assemelhe a uma ciência natural, gerando um sistema
de leis universais supostamente semelhante àqueles que a ciência natural descobriu e validou. No
entanto, de acordo com a concepção que aqui delinearei, é um equívoco supor que a sociologia
deva ser elaborada à maneira das ciências naturais, ou imaginar que uma ciência natural da
sociedade seja possível ou desejável. Outrossim, gostaria de enfatizar que tal afirmação não
pretende veicular o ponto de vista segundo o qual os métodos e objetivos das ciências naturais se
mostram totalmente irrelevantes para o estudo do comportamento social humano. A sociologia
lida com um objeto factualmente observável, depende da pesquisa empírica e envolve tentativas
de formular teorias e generalizações que darão sentido aos fatos. Mas a natureza dos seres
humanos não é a mesma dos objetos materiais. O estudo de nosso próprio comportamento, no
que se refere a certos aspectos muito importantes, é completamente diferente do estudo dos
fenômenos naturais.
O contexto da sociologia
Neste livro, afirmo que a prática da sociologia demanda o que C. Wright Mills tão
habilmente chamou de “imaginação sociológica” (C. Wright Mills, A imaginação sociológica,
Rio, Zahar, 1965; 6ª ed., 1982). Esse termo tem sido tão utilizado que corre o risco de tornar-se
trivial, e o próprio Mills usou-o num sentido um tanto vago. Ao mencioná-lo, quero referir-me às
várias formas relacionadas de sensibilidade que se mostram indispensáveis à análise sociológica
da maneira como a concebo. Só podemos compreender o mundo social a que deram início as
sociedades industrializadas contemporâneas – a sociedade atual que se formou primeiramente no
Ocidente – mediante um tríplice exercício de imaginação. Essas formas da imaginação
sociológica envolvem uma sensibilidade histórica, antropológica e crítica.
Seres humanos geneticamente idênticos a nós existem há mais ou menos 500 mil anos.
Na medida em que podemos obter algum conhecimento a partir dos resíduos arqueológicos,
“civilizações” baseadas na agricultura existem, quando muito, há apenas 10 mil anos. No entanto,
esse parece um grande período quando comparado à insignificante duração da história recente,
onde predomina o capitalismo industrial. Os historiadores não estão de acordo com relação a
quando o capitalismo, como modo de atividade econômica, começou a predominar; mas é difícil
sustentar a afirmação de que suas origens possam ser encontradas na Europa antes do século XV
ou XVI. O capitalismo industrial, enquanto associação do empreendimento capitalista com a
produção mecânica fabril, remonta à última parte do século XVIII, e nessa época só existia em
determinadas partes da Grã-Bretanha. Os últimos 100 anos, que presenciaram a expansão do
capitalismo industrial em nível mundial, têm, não obstante, causado mudanças sociais mais
perturbadoras em suas consequências que qualquer outro período em toda a história anterior da
humanidade. Os ocidentais vivem em sociedades que assimilaram o primeiro impacto de tais
mudanças. A geração contemporânea está familiarizada com sociedades adaptadas a uma rápida
inovação tecnológica, em que a maioria da população vive em cidades grandes ou pequenas,
dedica-se a um trabalho industrial e é “cidadã” de Estados-Nações. Entretanto, esse novo mundo
social familiar, criado de forma tão rápida e dramática, é único na história da humanidade.
No que se refere à imaginação sociológica, quem analisa hoje em dia as sociedades
industrializadas tem, em primeiro lugar, de se esforçar para recuperar nosso próprio passado
imediato – o “mundo que perdemos”. Só mediante tal esforço de imaginação, que naturalmente
envolve uma consciência histórica, é que podemos compreender como o modo de vida dos que
atualmente vivem nas sociedades industrializadas é diferente do das pessoas que viveram num
passado relativamente recente. Os fatos brutos, como os que mencionei ao falar da urbanização,
nos auxiliam a compreender tal fenômeno. Mas o que é realmente necessário é uma tentativa de
reconstrução imaginativa da constituição das formas de vida social que foram, em grande parte,
erradicadas. Nesse caso, é impossível fazer uma distinção entre o ofício do sociólogo e a arte do
historiador. A Inglaterra setecentista, a sociedade que experimentou pela primeira vez o impacto
da Revolução Industrial, era ainda uma sociedade em que os costumes da comunidade local eram
mantidos pela penetrante influência da religião. Foi uma sociedade em que podemos constatar
uma continuidade com a Grã-Bretanha do século XX, mas onde os contrastes são notáveis. As
organizações que hoje em dia são comuns existiam apenas numa forma rudimentar: não apenas
fábricas e escritórios, mas escolas, faculdades, hospitais e prisões só se tornaram comuns no
século XIX.
De certo modo, naturalmente, essas mudanças na estrutura da vida social são de tipo
material. Ao descrever a Revolução Industrial, assim escreveu um historiador:
A tecnologia moderna não apenas produz mais e mais rápido; ela produz objetos que de modo
algum poderiam ser produzidos pelos métodos de que dispúnhamos anteriormente. A melhor
fiadeira indiana não poderia produzir um fio tão fino e regular como o da fiadeira automática;
nenhuma forja do século XVIII poderia produzir chapas de aço tão grandes, lisas e homogêneas
como as da fábrica moderna. E, o que é mais importante, a moderna tecnologia tem criado coisas
que dificilmente teriam sido concebidas na era pré-industrial: a câmara, o automóvel, o
aeroplano, toda a série de inventos eletrônicos (do rádio ao computador), a usina nuclear e assim
por diante, quase ad infinitum [...]. Isso tem resultado num imenso aumento da produção e
variedade de bens e serviços, sendo o bastante para transformar a vida do homem mais que
qualquer coisa que ele tenha feito desde a descoberta do fogo: o inglês de 1750 estava mais
próximo, em coisas materiais, dos legionários de César do que de seus próprios bisnetos. (David
S. Landes, The Unbound Premetheus, Cambridge, Cambridge University Press, 1969, p. 5.)
Florestan Fernandes
[...] A Sociologia divide-se em várias disciplinas, que estudam a ordem existente nas
relações dos fenômenos sociais de diversos pontos de vista irredutíveis, mas complementares e
convergentes. Contudo, nada se disse [até aqui] sobe as chamadas “sociologias especiais”,
como a Sociologia Econômica, a Sociologia Moral, a Sociologia Jurídica, a Sociologia do
Conhecimento, [a Sociologia da Educação] etc. A rigor, essa designação é imprópria. Como
acontece em qualquer ciência, os métodos sociológicos podem ser aplicados à investigação e à
explicação de qualquer fenômeno social particular sem que, por isso, se deva admitir a
existência de uma disciplina especial, com objeto e problemas próprios! Essa tendência teve
razão de ser no passado, enquanto pairavam dúvidas sobre as questões essenciais, relativas ao
objeto da Sociologia, à natureza da explicação sociológica e às técnicas de investigação,
recomendáveis no estudo sociológico dos fenômenos sociais. Ela simplificava o trabalho dos
especialistas, confinando o âmbito da discussão de questões metodológicas e do significado de
suas contribuições. [...] [A expressão “Sociologia da Educação”] conserva, atualmente, um
sentido figurado, pois a investigação de um fenômeno particular com frequência envolve o
recurso simultâneo às abordagens sociológicas fundamentais. Sob outros aspectos, o uso mais
ou menos livre de tais expressões facilita a identificação do teor das contribuições,
simplificando, assim, as relações do autor com o público. Isto parece ser suficiente para
justificar o emprego delas, já que carecem de sentido lógico os intentos de subdividir,
indefinidamente, os campos da Sociologia.
*
FERNANDES, Florestan. Ensaios de Sociologia Geral e Aplicada. In: FORACCHI, Marialice M.; PEREIRA,
Luiz (orgs.). Educação e sociedade: leituras de sociologia da educação. São Paulo: Editora Nacional, 1964, p.6.
A ANÁLISE SOCIOLÓGICA DA EDUCAÇÃO CONTEMPORÂNEA*
*
RODRIGUES, Alberto Tosi. Sociologia da educação. São Paulo: Lamparina, 2011, p.85-92.
Estruturas, sujeitos e processos
Como vimos, uma questão central para a sociologia é a de identificar qual o peso que têm
sobre as relações sociais da vida cotidiana as estruturas sociais já estabelecidas, consolidadas, já
institucionalizadas. Isto é, saber em que medida um determinado fenômeno social como, por
exemplo, uma reforma (burocrática, política, cultural) do sistema de ensino, é resultante do modo
atual pelo qual as instituições sociais já estabelecidas (o Estado, as Igrejas, o mercado etc.) estão
organizadas ou, por outro lado, é resultante das ações inovadoras de sujeitos sociais interessados
em modificar o funcionamento dessas instituições. É preciso levar em consideração a autoridade
(capacidade de fazer-se obedecer) e a legitimidade (o que dá fundamento à obediência) das
instituições, isto é, das estruturas da sociedade e, ao mesmo tempo, o modo como as disputas por
sua mudança ou por sua continuidade se dão entre os diferentes sujeitos (grupos, classes etc.) que
atuam na vida social. Os processos sociais gerais são, no fim das contas, resultado da interação
entre os sujeitos e as estruturas.
Assim, o sociólogo precisa ter sempre um olho para as estruturas (aquilo que está
estabelecido) e outro olho para os processos (aquilo que está em mudança). Permanência e
mudança são resultantes da tensão que sempre existe entre o peso das instituições e a capacidade
de ação dos sujeitos. Pois as práticas dos sujeitos estarão, com certeza, orientadas para manter ou
mudar os conteúdos das estruturas.
Basta pensar no modo como as sociedades se organizam em termos de classes sociais. Se
pensarmos classe como o modo pelo qual os indivíduos se relacionam com o modo vigente de
produção de mercadorias (versão de Marx) ou como o modo pelo qual estão distribuídas as
possibilidades de acesso ao consumo de bens (versão de Weber), veremos que as sociedades
possuem uma dada estrutura de classes. Ora, é razoável esperar que, sob certas circunstâncias, as
classes em desvantagem econômica (seja na esfera da produção ou na do consumo) empreendam
ações visando a mudança dessa estrutura, enquanto que as classes em vantagem ajam objetivando
sua manutenção. O mesmo raciocínio pode ser empregado para questões raciais ou para questões
que envolvam a distribuição de poder entre homens e mulheres. E não são apenas referentes às
estruturas econômicas, mas também às políticas, jurídicas, ideológicas etc. As leis são também
“estruturadas” com um determinado perfil (em detrimento de outros perfis possíveis), assim como
os modos de pensar e as crenças.
A esfera social compreendida pela política tem nesse ponto uma importância crucial, pois
é nela que são tomadas as decisões obrigatórias, isto é, aquelas decisões que devem ser obedecidas
por todos os membros da sociedade, independentemente de sua vontade, e que se não forem
obedecidas podem possibilitar o emprego de sanções negativas (punições) aos desobedientes. É
por isso que o Estado nacional – e, mais contemporaneamente, algumas estruturas supra estatais,
como, por exemplo, a União Europeia, a ALCA etc. – é um palco privilegiado para a observação
das estruturas e dos processos pelos quais elas se transformam. E é por isso que a sociologia política
não pode ser negligenciada pelos que desejam empreender uma análise sociológica da educação.
Como sabemos, a sociologia é uma ciência que nasceu junto com o capitalismo. Seu
interesse seminal foi o de compreender a sociedade industrial moderna. Compreender as
“afinidades eletivas” que nela se estabeleceram entre as configurações da economia burguesa – que
revolucionava enormemente a produção e o consumo – e as leis e as razões do Estado, as religiões
e a administração pública e privada. De lá para cá o capitalismo e o Estado que a ele articulou-se
expandiram-se e modificaram-se, embora diferenciadamente, em todas as partes do planeta. A
evolução da análise sociológica de certo modo espelha tais mudanças.
Raymond Aron
*
ARON, Raymond. “Émile Durkheim”. In: As etapas do pensamento sociológico. São Paulo: Martins Fontes,
1993, p.297-307.
primitivas, cada indivíduo é o que são os outros; na consciência de cada um predominam, em
número e intensidade, os sentimentos comuns a todos, os sentimentos coletivos.
[...]
A divisão do trabalho que Durkheim procura apreender e definir não se confunde com
a que os economistas imaginam. A diferenciação das profissões e a multiplicação das atividades
industriais exprimem a diferenciação social que Durkheim considera de modo prioritário. Esta
diferenciação se origina na desintegração da solidariedade mecânica [...].
Falando destes temas fundamentais, pode-se tentar identificar algumas das ideias que
decorrem desta análise, e fazem parte da teoria geral do nosso autor.
A primeira trata do conceito de consciência coletiva, que, desde esta época, figura no
primeiro plano do pensamento de Durkheim.
Tal como é definida em De la Division du travail social, a consciência coletiva é
simplesmente “o conjunto das crenças dos sentimentos comuns à média dos membros de uma
sociedade”. Durkheim esclarece que este conjunto “forma um sistema determinado, que tem
vida própria”. A consciência coletiva só existe em função dos sentimentos e crenças presentes
nas consciências individuais, mas se distingue, pelo menos analiticamente, destas últimas, pois
evolui segundo suas próprias leis e não é apenas a expressão ou o efeito das consciências
individuais.
Sem dúvida, ela não tem como substrato um órgão único; é, por definição, difusa, ocupando
toda a extensão da sociedade; mas nem por isso deixa de ter características específicas, que a
tornam uma realidade distinta. Com efeito, ela é independente das condições particulares em
que se situam os indivíduos. Estes passam, ela fica. É a mesma no Norte e no Sul, nas grandes
e nas pequenas cidades, nas diferentes profissões. Por outro lado, não muda em cada geração,
mas ao contrário liga as gerações que se sucedem. Portanto, não se confunde com as
consciências particulares, embora se realize apenas nos indivíduos. É o tipo psíquico da
sociedade, tipo que tem suas propriedades, condições de existência, seu modo de
desenvolvimento, exatamente como os tipos individuais, embora de outra maneira (De la
Division du travail social, p. 46.)
Raymond Aron
No curso da análise dos temas e das ideias fundamentais dos [...] grandes livros de
Durkheim não podemos deixar de notar a semelhança dos métodos utilizados e dos resultados
obtidos. Em [todos eles] o desenvolvimento do pensamento de Durkheim é o mesmo: no ponto
de partida, uma definição do fenômeno; depois, numa segunda fase, a refutação das
interpretações anteriores. Por fim, no ponto de chegada, uma explicação propriamente
sociológica do fenômeno considerado.
A semelhança vai ainda mais longe. [...] As interpretações anteriores, refutadas por
Durkheim, têm a mesma característica: são interpretações individualistas e racionalizantes, tais
como as que encontramos na ciência econômica. Em De la Division du travail social [por
exemplo,] Durkheim afasta a interpretação do progresso no sentido da diferenciação pelos
mecanismos da psicologia individual; demonstra que não se pode explicar a diferenciação social
pelo esforço em aumentar a produtividade, pela busca do prazer ou da felicidade, pelo desejo
de superar o enfado. [...]
[Em todos os] casos, a explicação a que chega é essencialmente sociológica, embora
o adjetivo tenha em cada livro um sentido algo diferente. Em De la Division du travail social a
explicação é sociológica porque propõe a prioridade da sociedade sobre os fenômenos
individuais. Em particular, o acento é posto sobre o volume e a densidade da população como
causas da diferenciação social e da solidariedade orgânica. [...]
Tal como concebida por Durkheim, a sociologia é o estudo dos fatos essencialmente
sociais, e a explicação desses fatos de maneira sociológica.
Les Regles de la méthode sociologique representa a formulação abstrata da prática dos
dois primeiros livros. A obra, que data de 1895, foi concebida quando Durkheim refletia sobre
De la Division du travail social, terminado em 1894 [...].
A concepção da sociologia de Durkheim se baseia em uma teoria do fato social. Seu
objetivo é demonstrar que pode e deve existir uma sociologia objetiva e científica, conforme o
modelo das outras ciências, tendo por objeto o fato social. Para que haja tal sociologia, duas
coisas são necessárias: que seu objeto seja específico, distinguindo-se do objeto das outras
ciências, e que possa ser observado e explicado de modo semelhante ao que acontece com os
*
ARON, Raymond. “Émile Durkheim”. In: As etapas do pensamento sociológico. São Paulo: Martins Fontes,
1993, p.335-345.
fatos observados e explicados pelas outras ciências. Esta dupla exigência leva às duas célebres
fórmulas com que se costuma resumir o pensamento de Durkheim: é preciso considerar os fatos
sociais como coisas; a característica do fato social é que ele exerce uma coerção sobre os
indivíduos.
A primeira fórmula já foi muito discutida [...] e exige um esforço de compreensão. O
ponto de partida é a ideia de que não conhecemos, no sentido científico do termo conhecer, o
que são os fenômenos sociais que nos cercam, no meio dos quais vivemos e, pode-se mesmo
dizer, que vivemos. Não sabemos, de fato, o que é o Estado, a soberania, a liberdade política, a
democracia, o socialismo, o comunismo. Isto não quer dizer que não tenhamos nenhuma ideia
sobre esses fenômenos. Contudo, precisamente porque temos deles uma ideia vaga e confusa é
importante considerar os fatos sociais como coisas, isto é, devemos livrar-nos das pré-noções e
dos preconceitos que nos paralisam quando pretendemos conhecê-los cientificamente. É preciso
observar os fatos sociais do exterior; descobri-los como descobrimos os fatos físicos. Como
temos a ilusão de conhecer as realidades sociais, torna-se importante convencer-nos de que elas
não são conhecidas imediatamente. Por isso Durkheim afirma que é preciso considerar os fatos
sociais como coisas. As coisas são tudo o que nos é dado, tudo o que se oferece (ou antes, se
impõe) à nossa observação.
A fórmula “é preciso considerar os fatos sociais como coisas” nos leva a uma crítica
da economia política, isto é, a uma crítica das discussões abstratas, dos conceitos como o de
valor. Segundo Durkheim, todos esses métodos têm o mesmo defeito fundamental. Partem da
ideia falsa de que podemos compreender os fenômenos sociais a partir da significação que lhes
atribuímos espontaneamente, quando na verdade o sentido verdadeiro desses fenômenos só
pode ser descoberto mediante uma exploração de tipo objetivo e científico.
Passamos, deste ponto, para uma segunda interpretação da fórmula segundo a qual “o
fato social é toda maneira de fazer, suscetível de exercer uma coerção externa sobre o
indivíduo”.
Reconhecemos um fenômeno social na medida em que se impõe ao indivíduo.
Durkheim dá uma série de exemplos, aliás muito variados, que demonstram a pluralidade dos
sentidos que tem, no seu pensamento, o termo coerção. Há coerção quando, numa assembleia
ou numa multidão, um sentimento se impõe a todos, como, por exemplo, quando por reação
coletiva todos riem. Este é um fenômeno tipicamente social, porque tem como apoio e como
sujeito o grupo em seu conjunto, e não um indivíduo em particular. Assim também a moda é
um fenômeno social: cada um se veste de uma certa maneira, num determinado momento,
porque todos se vestem daquele modo. Não é um indivíduo que origina a moda, é a sociedade
que se manifesta por meio de obrigações implícitas e difusas. Durkheim exemplifica também
com as correntes de opinião, que levam ao casamento, ao suicídio, a uma maior ou menor
natalidade, e que qualifica de estados de alma coletivos. Cita, por fim, as instituições da
educação, o direito, as crenças, que têm igualmente como características o fato de serem dados
exteriores aos indivíduos, e que se impõem a todos.
Os fenômenos da multidão, as correntes de opinião, a moralidade, a educação, o direito
e as crenças que os autores alemães chamam de espírito objetivo, tudo isso Durkheim reúne na
mesma categoria, porque lhes reconhece a mesma característica fundamental. São gerais porque
são coletivos; são diferentes nas repercussões que exercem sobre cada indivíduo; têm como
substrato o conjunto da coletividade. Em conseqüência, é legítimo dizer:
Fato social é toda maneira de fazer, fixa ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma
coerção exterior, ou então que é geral em toda a extensão de uma dada sociedade, embora
tendo existência própria, independente das suas manifestações individuais. (Les Regles de la
méthode sociologique, p. 14.)
[...] Idealmente, seria possível conceber uma teoria geral da sociedade cujo princípio
fosse uma filosofia conceitualista comportando uma teoria das categorias de fatos sociais, uma
concepção dos gêneros e das espécies das sociedades e, finalmente, uma doutrina da explicação
que visse no meio social a causa determinante dos fatos sociais.
Esta teoria da sociologia científica se fundamenta numa afirmativa central do
pensamento de Durkheim: a sociedade é uma realidade de natureza diferente das realidades
individuais. Todo fato social tem como causa um outro fato social, e nunca um fato da
psicologia individual.
Émile Durkheim
A palavra educação foi por vezes empregue num sentido muito lato para designar o
conjunto de influências que a natureza ou os outros homens podem exercer, seja sobre a nossa
inteligência, seja sobre a nossa vontade. Abarca, diz Stuart Mill, “tudo aquilo que nós próprios
fazemos e tudo o que os outros fazem por nós com o objetivo de nos aproximar da perfeição da
nossa natureza. Na sua acepção mais lata, abrange mesmo os efeitos indiretos produzidos sobre
o carácter e sobre as faculdades do homem por coisas cujo objetivo é muito diferente: pelas
leis, pelas formas de governo, pelas artes industriais, e até mesmo por fatos físicos,
independentes da vontade do homem, como o clima, o sol e a posição local”. Mas esta definição
envolve fatos completamente díspares e que não podemos reunir sob um mesmo vocábulo sem
nos expormos a confusões. A ação das coisas sobre os homens é muito diferente, pelos seus
processos e pelos seus resultados, daquela que é proveniente dos próprios homens; e a ação dos
contemporâneos sobre os seus contemporâneos difere daquela que os adultos exercem sobre os
mais jovens. É apenas esta última que nos interessa aqui e, por conseguinte, é para ela que
convém reservar a palavra educação.
Mas em que consiste esta ação sui generis? Respostas muito diferentes têm sido dadas
a esta pergunta; podem resumir-se em dois tipos principais. Segundo Kant, “o objetivo da
educação é desenvolver em cada indivíduo toda a perfeição de que ele é capaz”. Mas que se
deve entender por perfeição? É, disse-se frequentemente, o desenvolvimento harmônico de
todas as faculdades humanas. Levar ao ponto mais elevado que possa ser atingido por todas as
potencialidades que temos em nós, realizá-las tão completamente quanto possível, mas sem que
se prejudiquem umas às outras, não é um ideal acima do qual não poderá haver outro?
Mas se, em certa medida, este desenvolvimento harmonioso é, com efeito, necessário
e desejável, não é integralmente realizável; pois que se encontra em contradição com uma outra
regra da conduta humana que não é menos imperiosa: aquela que estabelece que nos
consagremos a uma tarefa especial e restrita. Não podemos e não devemos dedicar-nos todos
ao mesmo gênero de vida; temos, segundo as nossas aptidões, funções diferentes a
*
DURKHEIM, Émile. Educação e Sociologia. Lisboa: Edições 70, 2011, p.43-70.
desempenhar, e devemos colocar-nos em harmonia com aquela que nos incumbe. Não somos
todos feitos para refletir, é necessário homens de sensibilidade e de ação. Por outro lado, é
necessário que haja quem tenha a tarefa de pensar. Ora, o pensamento só se pode desenvolver
quando se desliga do movimento, quando se concentra em si mesmo, quando é afastada da ação
exterior a pessoa que a ele se entrega totalmente. Daí uma primeira diferenciação que é
acompanhada de uma ruptura de equilíbrio. E a ação, por seu lado, como o pensamento, é capaz
de tomar uma grande quantidade de formas diferentes e especiais. Sem dúvida, esta
especialização não exclui um certo fundo comum, e, por conseguinte, um certo equilíbrio das
funções tanto orgânicas quanto psíquicas, sem o qual a saúde do indivíduo seria comprometida,
ao mesmo tempo que a coesão social. Mas nem por isso se pode inferir que uma harmonia
perfeita possa ser apresentada como o fim último da conduta e da educação.
Ainda menos satisfatória é a definição utilitarista segundo a qual a educação teria por
objeto “fazer do indivíduo um instrumento de felicidade para si mesmo e para os seus
semelhantes” (James Mill), pois que a felicidade é uma coisa essencialmente subjetiva que cada
um aprecia à sua maneira. Uma tal fórmula deixa, pois, indeterminado o fim da educação, e,
por conseguinte, a educação em si mesma, uma vez que a abandona à arbitrariedade individual.
Spencer, é verdade, tentou definir objetivamente a felicidade. Para ele, as condições da
felicidade são as da vida. A felicidade completa é a vida completa. Mas que é que se deve
entender pela vida? Se se trata unicamente da vida física, pode dizer-se que sem isso ela seria
impossível; implica, com efeito, um certo equilíbrio entre o organismo e o seu meio, e, pois,
que os dois termos relacionados são dados definíveis, assim deve ser também para a sua relação.
Mas apenas podemos exprimir desse modo as necessidades vitais mais imediatas. Ora, para o
homem, e sobretudo para o homem de hoje, esta vida não é a vida. Pedimos mais à vida que o
mero funcionamento o mais normal possível dos nossos órgãos. Um espírito culto prefere não
viver a renunciar aos prazeres da inteligência. Mesmo do ponto de vista meramente material,
tudo o que ultrapassa o estritamente necessário escapa a qualquer determinação. O standard of
life, o estilo de vida, como dizem os ingleses, o mínimo abaixo do qual não nos parece que se
possa consentir descer, varia infinitamente segundo as condições, os meios e os tempos. O que
considerávamos ontem suficiente, parece-nos hoje abaixo da dignidade humana, tal como a
sentimos presentemente, e tudo leva a crer que as nossas exigências neste ponto terão tendência
a crescer cada vez mais.
Tocamos aqui no erro geral em que incorrem todas estas definições. Elas partem do
postulado que existe uma educação ideal, perfeita, válida para todos os homens indistintamente;
e é esta educação universal e única que o teórico se esforça por definir. Mas a verdade é que,
se se considerar a história, não se encontra nada que confirme tal hipótese. A educação variou
infinitamente conforme os tempos e as regiões. Nas cidades gregas e latinas, a educação
preparava o indivíduo para se subordinar cegamente à coletividade, tomar-se a coisa da
sociedade. Hoje, esforça-se por construir uma personalidade autônoma. Em Atenas, procurava-
se formar espíritos delicados, avisados, subtis, animados pela moderação e pela harmonia,
capazes de apreciar o belo e as alegrias da pura especulação; em Roma, queria-se antes de mais
que as crianças se tomassem homens de ação, apaixonados pela glória militar, indiferentes ao
que tinha a ver com as letras e com as artes. Na Idade Média a educação era antes de mais cristã;
no Renascimento, tomou um caráter mais laico e mais literário; hoje a ciência tende a tomar o
lugar outrora ocupado pela arte. Diremos que o fato não é o ideal; que se a educação variou, é
porque os homens se enganaram acerca do que ela devia ser? Mas se a educação romana tivesse
reproduzido um individualismo comparável ao nosso, a cidade romana não teria podido manter-
se; a civilização latina não teria podido constituir-se nem, por conseguinte, a nossa civilização
moderna, que é, em parte, sua descendente. As sociedades cristãs da Idade Média não teriam
podido sobreviver se tivessem dado ao pensamento racional o lugar que hoje lhe é dado. Há
pois necessidades inelutáveis de que é impossível abstrairmo-nos. A quem pode interessar
imaginar uma educação que seria mortal para a sociedade que a colocasse em prática?
Este postulado tão contestável contém em si mesmo um erro geral. Se se começar por
questionar deste modo qual deve ser a educação ideal, abstraindo completamente do tempo e
do lugar, é porque se admite implicitamente que um sistema educativo não tem nada de real em
si próprio. Não se vê aí um conjunto de práticas e de instituições que se organizaram lentamente
ao longo do tempo, que são solidárias com todas as outras instituições sociais e que as
exprimem, que, por consequência, não podem ser mudadas mais facilmente que a própria
estrutura da sociedade. Parece, sim, um conjunto de conceitos realizados; desta forma parece
depender apenas da lógica. Imagina-se que os homens de qualquer época o organizam
voluntariamente para realizar um fim determinado; que, se esta organização não é a mesma em
todo o lado, é porque se enganaram na natureza quer do fim pretendido, quer dos meios que
permitem alcançá-la. Deste modo, as educações do passado aparecem como uns tantos erros,
totais ou parciais. Não existem, pois, quaisquer dúvidas: não nos devemos solidarizar com as
falhas de observação ou de lógica que os nossos antepassados possam ter feito; mas podemos e
devemos colocar-nos o problema, sem nos ocuparmos das soluções que lhe foram dadas, ou
seja, deixando de lado tudo o que foi, apenas nos devemos interrogar sobre o que devia ter sido.
Os ensinamentos da história podem quando muito servir para nos evitar reincidir nos erros já
cometidos.
Mas, com efeito, cada sociedade, considerada num momento determinado do seu
desenvolvimento, tem um sistema de educação que se impõe aos indivíduos com uma força
geralmente irresistível. É inútil pensarmos que podemos criar os nossos filhos como queremos.
Há costumes com os quais temos de nos conformar; se os infringimos, eles vingam-se nos
nossos filhos. Estes, uma vez adultos, não estarão em condições de viver no meio dos seus
contemporâneos, com os quais não se encontram em harmonia. Quer tenham sido criados com
ideias muito arcaicas ou muito prematuras, não importa; num caso como noutro, não são do seu
tempo e, por conseguinte, não estão em condições de vida normal. Há, pois, em cada momento
do tempo, um tipo regulador de educação de que não nos podemos desligar sem chocar com as
vivas resistências que reprimem as veleidades dos dissidentes.
Ora, os costumes e as ideias que o determinam, não fomos nós, individualmente, que
os fizemos. São o produto da vida em comum e exprimem as suas necessidades. São até, na
maior parte, obra das gerações anteriores. Todo o passado da humanidade contribuiu para fazer
este conjunto de máximas que dirigem a educação atual; toda a nossa história lhe deixou traços,
e até mesmo a história dos povos que nos precederam. É assim que os organismos superiores
trazem em si como que o eco de toda a evolução biológica de que são o resultado. Quando
estudamos historicamente a maneira como são formados e desenvolvidos os sistemas de
educação, apercebemo-nos do que eles dependem da religião, da organização política, do grau
de desenvolvimento das ciências, do estado da indústria etc. Se os desligamos de todas estas
causas históricas, tornam-se incompreensíveis. Como é que, desde logo, o indivíduo pode
pretender reconstruir, através do único esforço da sua reflexão privada, o que não é obra do
pensamento individual? Não se encontra fade a uma tábua rasa na qual pode edificar o que quer,
mas sim frente a realidades existentes que não pode criar, nem destruir, nem transformar à
vontade. Não pode agir sobre elas senão na medida em que aprendeu a conhecê-las, a saber
qual a sua natureza e as condições de que dependem; e não pode sabê-lo sem ir à sua escola,
começando por as observar, como o físico observa a matéria bruta e o biólogo os corpos vivos.
Aliás, como proceder de outro modo? Quando queremos determinar apenas pela
dialética o que deve ser a educação, devemos começar por verificar que fim deve ter. Mas o
que é que nos permite afirmar que a educação tem determinados fins mais do que outros? Não
sabemos a priori qual é a função da respiração ou da circulação no ser vivo. Por que privilégio
estaríamos mais bem esclarecidos no que diz respeito à função educativa? Responderão que,
evidentemente, ela tem por função instruir as crianças. Mas isso é apenas colocar o problema
em termos diferentes; não é resolvê-lo. É preciso dizer em que consiste esta instrução, para que
é que tende, a que necessidades humanas responde. Ora, apenas se pode responder a estas
questões começando por observar em que é que consistiu, a que necessidades respondeu no
passado. Assim, quanto mais não seja para constituir a noção preliminar de educação, para
determinar a coisa que assim denominamos, a observação histórica aparece como
indispensável.
2. Definição da educação
Esta definição da educação permite resolver facilmente a questão, tão controversa, dos
deveres e dos direitos do Estado em matéria de educação.
Opõem-se lhe os direitos da família. A criança, diz-se, é antes de mais dos seus pais:
é, pois, a eles que pertence dirigir, como entenderem, o seu desenvolvimento intelectual e
moral. A educação é então concebida como uma coisa essencialmente privada e doméstica.
Quando nos colocamos neste ponto de vista, tendemos naturalmente para reduzir ao mínimo
possível a intervenção do Estado na matéria. Este deverá, diz-se, limitar-se a servir de auxiliar
e de substituto das famílias. Quando estas não estão em condições de cumprir os seus deveres,
é natural que o Estado se encarregue disso. É até natural que ele lhes entregue a tarefa mais
fácil possível, colocando à disposição escolas para onde possam, se o quiserem, enviar as
crianças. Mas o Estado deve conter-se estritamente dentro destes limites, e evitar qualquer ação
positiva destinada a imprimir uma orientação determinada ao espírito da juventude.
Porém, é necessário que o seu papel se mantenha dessa forma. Se, como acabamos de
estabelecer, a educação tem, antes de mais, uma função coletiva, se ela tem por objeto adaptar
a criança ao meio social onde está destinada a viver, é impossível que a sociedade se
desinteresse de uma tal operação. Como poderá ela estar ausente, uma vez que é o ponto de
referência a partir do qual a educação deverá dirigir a sua ação? É, pois, a ela que pertence
lembrar constantemente ao professor quais são as ideias, os sentimentos que é preciso imprimir
à criança para a colocar em harmonia com o meio no qual deverá viver. Se não estivesse sempre
presente e vigilante para obrigar a ação pedagógica a exercer-se num sentido social, esta
colocar-se-ia necessariamente ao serviço de crenças particulares, e a grande alma da pátria
dividir-se-ia e decompor-se-ia numa quantidade incoerente de pequenas almas fragmentárias
em conflito umas com as outras. Não se pode ir mais completamente contra o objetivo
fundamental de qualquer educação. É preciso escolher: se damos algum valor à existência da
sociedade – e acabamos de ver o que ela representa para nós – é necessário que a educação
assegure entre os cidadãos uma comunhão de ideias e de sentimentos sem os quais qualquer
sociedade é impossível; e para que possa produzir este resultado, é ainda necessário que não
seja abandonada totalmente à arbitrariedade dos particulares.
Uma vez que a educação é uma função essencialmente social, o Estado não pode
desinteressar-se dela. Pelo contrário, tudo o que seja educação deve ser, de alguma forma,
submetido à sua ação. Não quer dizer com isto que deva necessariamente monopolizar o ensino.
A questão é demasiado complexa para que seja possível tratá-la assim de passagem:
entendemos reservá-la. Pode entender-se que os progressos escolares são mais fáceis e mais
rápidos onde seja deixada alguma margem às iniciativas individuais; porque o indivíduo é mais
facilmente inovador do que o Estado. Mas se o Estado deve, no interesse público, deixar abrir
outras escolas para além daquelas de que é diretamente responsável, não quer dizer que deva
manter-se alheio ao que aí se passa. Pelo contrário, a educação que aí é ministrada deve manter-
se submetida ao seu controle. Não é mesmo admissível que a função do educador possa ser
substituída por qualquer um que não apresente garantias especiais que só o Estado pode julgar.
Sem dúvida que os limites nos quais se deve conter esta intervenção podem ser frequentemente
incômodos, mas o princípio da intervenção não terá contestação. Não há escola que possa
reclamar o direito de ministrar, livremente, uma educação antissocial.
É, todavia, necessário reconhecer que o estado de divisão em que se encontram
atualmente os espíritos, no nosso país, torna este dever do Estado particularmente delicado, ao
mesmo tempo, aliás, que mais importante. Não pertence ao Estado, com efeito, criar essa
comunidade de ideias e de sentimentos sem a qual não existe sociedade; ela deve constituir-se
por si própria, e o Estado apenas pode consagrá-la, mantê-la, torná-la mais consciente para os
particulares. Ora, é infelizmente incontestável que, entre nós, esta unidade moral não é, sob
todos os aspectos, o que deveria ser. Estamos divididos entre concepções divergentes e por
vezes até contraditórias. Há nestas divergências um fato impossível de negar e que é necessário
ter em conta. A escola não poderá ser pertença de um partido, e o professor falta aos seus
deveres quando usa a autoridade de que dispõe para arrastar os seus alunos no trilho dos seus
próprios ideais, por mais justificados que lhe possam parecer. Mas, apesar de todas as
dissidências, tem havido até hoje, na base da nossa civilização, um certo número de princípios
que, implícita ou explicitamente, são comuns a todos, que poucos, em todo o caso, ousam negar
abertamente e face a face: respeito pela razão, pela ciência, pelos ideais e sentimentos que estão
na base da moral democrática. O papel do Estado é esclarecer esses princípios essenciais, fazê-
los ensinar nas suas escolas, velar para que em nenhum lugar as crianças os ignorem, e para que
em todo o lado se fale deles com o respeito que lhes é devido. Há, sob este aspecto, uma ação
a exercer que será talvez tanto mais eficaz quanto menos agressiva e menos violenta, e que
melhor se saiba conter em limites ajuizados.
Raymond Aron
A história de toda a sociedade até nossos dias é a história da luta de classes. Homem livre e
escravo, patrício e plebeu, barão e servo, mestre de ofício e companheiro, numa palavra,
opressores e oprimidos, se encontraram sempre em constante oposição, travaram uma luta sem
trégua, ora disfarçada, ora aberta, que terminava sempre por uma transformação revolucionária
de toda a sociedade, ou então pela ruína das diversas classes em luta. (Manifesto Comunista)
Eis aí, portanto, a primeira ideia decisiva de Marx: a história humana se caracteriza pela
luta de grupos humanos que chamaremos classes sociais, cuja definição, que por enquanto
permanece equívoca, implica uma dupla característica; por um lado, a de comportar o
*
ARON, Raymond. As etapas do pensamento sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p.135-143.
antagonismo dos opressores e dos oprimidos e, por outro lado, de tender a uma polarização em
dois blocos, e somente dois.
Todas as sociedades sendo divididas em classes inimigas, a sociedade atual, a capitalista,
não é diferente das que a precederam. No entanto, ela apresenta certas características novas.
Para começar, a burguesia, classe dominante, é incapaz de manter seu reinado sem
revolucionar permanentemente os instrumentos de produção. “A burguesia não pode existir”,
escreve Marx,
Por outro lado, as forças de produção que levarão ao regime socialista estão em processo
de amadurecimento dentro da sociedade atual.
No Manifesto Comunista são apresentadas duas formas da contradição característica da
sociedade capitalista, que, aliás, encontramos também nas obras científicas de Marx.
A primeira é a contradição entre as forças e as relações de produção. A burguesia cria
incessantemente meios de produção mais poderosos. Mas as relações de produção, isto é, ao
que parece, ao mesmo tempo as relações de propriedade e a distribuição de rendas, não se
transformam no mesmo ritmo. O regime capitalista é capaz de produzir cada vez mais. Ora, a
despeito desse aumento de riquezas, a miséria continua sendo a sorte da maioria.
Aparece assim uma segunda forma de contradição, a que existe entre o aumento das
riquezas e a miséria crescente da maioria. Dessa contradição sairá, um dia ou outro, uma crise
revolucionária. O proletariado, que constitui e constituirá cada vez mais a imensa maioria da
população, se constituirá em classe, isto é, numa unidade social aspirando à tomada do poder e
à transformação das relações sociais. Ora, a revolução do proletariado será diferente, por sua
natureza, de todas as revoluções do passado. Todas as revoluções do passado eram feitas por
minorias, em benefício de minorias. A revolução do proletariado será feita pela imensa maioria,
em benefício de todos. A revolução proletária marcará assim o fim das classes e do caráter
antagônico da sociedade capitalista.
Essa revolução, que provocará a supressão simultânea do capitalismo e das classes, será
obra dos próprios capitalistas. Os capitalistas não podem deixar de transformar a organização
social. Empenhados numa concorrência inexpiável, não podem deixar de aumentar os meios de
produção, de ampliar ao mesmo tempo o número dos proletários e de sua miséria.
O caráter contraditório do capitalismo se manifesta no fato de que o crescimento dos
meios de produção em vez de se traduzir pela elevação do nível de vida dos trabalhadores leva
a um duplo processo de proletarização e pauperização.
Marx não nega a existência de muitos grupos intermediários entre os capitalistas e os
proletários, como artesãos, pequenos burgueses, comerciantes, camponeses, proprietários de
terra. Mas faz duas afirmações: que à medida que evolui o regime capitalista, haverá uma
tendência para a cristalização das relações sociais em dois – e somente dois – grupos, os
proletários e os capitalistas; que duas – e somente duas – classes representam uma possibilidade
de regime político, e uma ideia de regime social. As classes intermediárias não têm iniciativa
nem dinamismo histórico. Só duas classes têm condições de imprimir sua marca na sociedade.
Uma é a classe capitalista e a outra a classe proletária. No dia do conflito decisivo, todos serão
obrigados a se alinhar seja com os capitalistas seja com os proletários.
Quando a classe proletária tiver tomado o poder, haverá uma ruptura decisiva com o curso
da história precedente. Com efeito, o caráter contraditório de todas as sociedades conhecidas,
até o presente, terá desaparecido. Marx escreve:
Esse texto é bem característico de um dos temas essenciais da teoria de Marx. A tendência
dos escritores do começo do século XIX é considerar a política ou o Estado como um fenômeno
secundário em relação aos fenômenos essenciais, econômicos ou sociais. Marx participa desse
movimento geral; também ele considera que a política e o Estado são fenômenos secundários,
com relação ao que acontece na sociedade.
Por isso apresenta o poder político como a expressão dos conflitos sociais. O poder
político é o meio pelo qual a classe dominante, classe exploradora, mantém seu domínio e sua
exploração.
Nesta linha de raciocínio, a supressão das contradições de classe deve levar logicamente
ao desaparecimento da política e do Estado, pois política e Estado são, na aparência, o
subproduto ou a expressão dos conflitos sociais.
Esses são os temas da visão histórica e também da propaganda política de Marx. Trata-se
de uma expressão simplificada, mas a ciência de Marx tem por fim demonstrar rigorosamente
essas proposições: o caráter antagônico da sociedade capitalista, a autodestruição, inevitável
dessa sociedade contraditória, a explosão revolucionária que porá fim ao caráter antagônico da
sociedade atual.
Portanto, o centro do pensamento de Marx é a interpretação do regime capitalista
enquanto contraditório, isto é, dominado pela luta de classes. [...] Marx observa, ou pensa
observar, a luta de classes na sociedade capitalista, e encontra em diferentes sociedades
históricas o equivalente à luta de classes do presente.
Segundo Marx, a luta de classes tenderá a uma simplificação. Os diferentes grupos sociais
se polarizarão em torno da burguesia e do proletariado, e é o desenvolvimento das forças
produtivas que será o motor do movimento histórico, levando, pela proletarização e pela
pauperização, à explosão revolucionária e ao surgimento, pela primeira vez na história, de uma
sociedade não antagônica.
A partir desses temas gerais da interpretação histórica de Marx temos [uma tarefa] a
cumprir, [um fundamento] a buscar. [Qual] é, no pensamento de Marx, a teoria geral da
sociedade que explica as contradições da sociedade atual e o caráter antagônico de todas as
sociedades conhecidas? [...]
Em outras palavras, partindo dos temas marxistas que encontramos no Manifesto
Comunista, precisamos explicar: a teoria geral da sociedade, isto é, aquilo a que se chama
vulgarmente materialismo histórico;
[...]
O próprio Marx, num texto que é talvez o mais célebre de todos os que escreveu, resumiu
o conjunto da sua concepção sociológica. No prefácio da Contribuição à Crítica da Economia
Política publicada em Berlim, em 1859, ele assim se exprime:
Eis, em poucas palavras, o resultado geral a que cheguei e que, uma vez alcançado, serviu-me
como foi condutor para meus estudos. Na produção social da sua existência, os homens
estabelecem relações determinadas, necessárias, independentemente da sua vontade. Essas
relações de produção correspondem a um certo grau de evolução das forças produtivas materiais.
O conjunto de tais relações forma a estrutura econômica da sociedade, o fundamento real sobre o
qual se levanta um edifício jurídico e político, e ao qual respondem formas determinadas da
consciência social. O modo de produção da vida material domina em geral o desenvolvimento da
vida social, política e intelectual. Não é a consciência dos homens que determina a sua existência,
mas ao contrário, é sua existência social que determina a sua consciência. Num certo grau de
desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade colidem com as relações de
produção existentes, ou com as relações de propriedade dentro das quais se vinham
movimentando até aquele momento, e que não passam da sua expressão jurídica. Essas condições
que ainda ontem eram formas de desenvolvimento das forças produtivas se transforam agora em
sérios obstáculos. Começa então uma era de revolução social. A transformação dos fundamentos
econômicos é acompanhada de mudanças mais ou menos rápida em todo esse enorme edifício.
Ao considerarmos tais mudanças, é preciso distinguir duas ordens de coisas. Há a transformação
material das condições de produção econômica, que se deve constatar com o espírito rigoroso das
ciências naturais. Mas há também as formas jurídicas, artísticas, filosóficas, em suma, as formas
ideológicas com as quais os homens tomam consciência desse conflito e o levam até o fim. Não
se julga uma pessoa pela ideia que tem de si própria. Não se julga uma época de revolução de
acordo com a consciência que ela tem de si mesma. Esta consciência pode ser melhor explicada
pelas contrariedades da vida material, pelo conflito que opõe as forças produtivas sociais e as
relações de produção. Nunca uma sociedade expira antes de que se desenvolvam todas as forças
produtivas que ela pode comportar; nunca se estabelecem relações de produção superiores sem
que as condições materiais da sua existência tenham nascido no próprio seio da antiga sociedade.
A humanidade nunca se propõe tarefas que não possa realizar. Considerando mais atentamente as
coisas, veremos sempre que a tarefa surge lá onde as condições materiais da sua realização já se
formaram, ou estão em vias de se criar. Reduzidos as suas grandes linhas, os modos de produção
asiático, antigo, feudal e burguês moderno aparecem como épocas progressivas da formação
econômica da sociedade. As relações de produção burguesas são a última forma antagônica do
processo social de produção. Não se trata aqui de um antagonismo individual; nós o entendemos
antes como o produto das condições sociais da existência dos indivíduos; mas as forças produtivas
que se desenvolvem no seio da sociedade burguesa criam ao mesmo tempo as condições materiais
próprias para resolver esse antagonismo. Com esse sistema social, encerra-se portanto a pré-
história da sociedade humana. (prefácio da Contribuição à Crítica da Economia Política)
Octávio Ianni
Seria equívoco pensar que Marx não elaborou uma interpretação do Estado capitalista,
simplesmente porque não a vemos sistematizada em algumas páginas, num ensaio ou livro. A
interpretação do Estado capitalista aparece bastante bem delineada nos vários passos da sua
análise do regime capitalista de produção. Naturalmente a sua concepção de Estado vai se
explicitando ou desenvolvendo à medida que estuda as imbricações ou os desdobramentos
sociais, políticos e econômicos das forças produtivas e das relações de produção, em seus
desenvolvimentos especificamente capitalistas. O conjunto do processo de produção de
mais-valia, de reprodução ampliada do capital ou de mercantilização universal das relações,
pessoas e coisas, somente pode ser compreendido se a análise apreende também o Estado, como
uma dimensão essencial do capitalismo. A teoria da luta de classes seria uma simples abstração,
se as relações e os antagonismos de classes não implicassem no Estado capitalista como
expressão e condição dessas mesmas relações e antagonismos. Quando se refere às estruturas
jurídicas e políticas, que expressam as relações de produção, está se referindo à “superestrutura”
da sociedade, ao poder estatal. Todas as contradições fundamentais do capitalismo envolvem o
Estado, como expressão nuclear da sociedade civil. Em síntese, a análise marxista do capitalismo
seria ininteligível, se Marx não tivesse elaborado, também e necessariamente, uma compreensão
dialética do Estado.
Em seus primeiros escritos, Marx discute e procura superar as concepções hegeliana e
liberal do Estado. Para ele, o Estado nem paira sobre a “sociedade civil” nem exprime a “vontade
geral”. Entende o Estado inserido no jogo das relações entre as pessoas, os grupos e as classes
sociais. Com isto não queremos dizer que Marx teve, já no princípio, uma compreensão nova e
acabada do Estado. Nada disso. A sua compreensão nova ele a elaborou à medida que
desenvolvia os três núcleos principais e combinados da sua atividade: a) a crítica da dialética
hegeliana, do socialismo utópico e da economia política clássica; b) a análise do capitalismo; c) a
participação prático-crítica nas lutas políticas do proletariado. Note-se que, aqui, falamos da
forma pela qual a interpretação de Marx surge em suas obras. Outra questão é saber qual foi ou
*
IANNI, Octávio. Karl Marx: Sociologia. São Paulo: Ática, 1999, p.30-42.
quais foram as ocasiões exatas em que ele realizou a sua compreensão dialética do Estado. Este é
um problema da sua biografia intelectual, da qual não estamos tratando. Aqui falamos
principalmente da exposição e desenvolvimento do seu pensamento. É importante reconhecer,
sob qualquer das suas perspectivas, que, desde os seus primeiros escritos, Marx está preocupado
com as relações e determinações recíprocas entre o Estado e a sociedade, numa ótica diferente
daquelas propostas anteriormente, não apenas por Hegel. Nesse processo crítico, formula a chave
da sua concepção, quando diz que o Estado precisa ser compreendido, simultaneamente, como
uma “colossal superestrutura” do regime capitalista e como o “poder organizado de uma classe”
social em sua relação com as outras.
No início, a discussão realizada por Marx sobre as relações do Estado com a sociedade
civil ou com os indivíduos, os grupos e as classes sociais apreende, principalmente, as dimensões
políticas dessas relações. Afirma que o Estado e a sociedade não são politicamente distintos; que
“o Estado é a estrutura da sociedade”; mas o Estado não é a expressão harmônica e abstrata da
sociedade. Ao contrário, já se constitui como um produto de contradições políticas. Esta é a
primeira e mais geral contradição na qual se funda o poder estatal: “O Estado se funda na
contradição entre o público e a vida privada, entre o interesse geral e o particular”.
Para realizar-se, no entanto, o Estado não pode aparecer aos cidadãos e às associações
(ou grupos, classes, exército, igreja etc.) dessa forma, simplesmente corno um produto de
antagonismos, ou como um feixe de contradições. Isto seria muito transparente e, assim,
insuportável para os cidadãos e as associações. Implicaria uma guerra aberta e ininterrupta entre
uns e outros. Ocorre, no entanto, que, no mesmo processo de sua realização, o Estado já se
constitui fetichizado. Na consciência e na prática das pessoas, tende a aparecer sob uma forma
abstrata, como um ato de vontade coletiva ou como a forma externa da sociedade civil.
No transcurso da produção capitalista, desenvolve-se uma classe trabalhadora que, por educação,
tradição e costume, aceita as exigências desse modo de produção como leis naturais evidentes. A
organização do processo de produção capitalista, em seu pleno desenvolvimento, quebra toda
resistência; a produção contínua de uma superpopulação relativa mantém a lei da oferta e da
procura de trabalho e, portanto, o salário em harmonia com as necessidades de expansão do
capital; e a coação surda das relações econômicas consolida o domínio do capitalista sobre o
trabalhador. Ainda se empregará a violência direta, à margem das leis econômicas, mas
doravante apenas em caráter excepcional. Para a marcha natural das coisas, basta deixar o
trabalhador entregue às “leis naturais da produção”, isto é, à sua dependência do capital, a qual
decorre das próprias condições de produção, e é assegurada e perpetuada por essas condições.
Mas, as coisas corriam de modo diverso durante a gênese histórica da produção capitalista. A
burguesia nascente precisava e empregava a força do Estado, para “regular” o salário, isto é,
comprimi-lo dentro dos limites convenientes à produção de mais-valia, para prolongar a jornada
de trabalho e para manter o próprio trabalhador num grau adequado de dependência. Temos aí
um fator fundamental da chamada acumulação originária. (MARX, K. O Capital.)
“Foi necessário passar tempo e acumular experiência, antes que o proletariado soubesse
distinguir entre a maquinaria e o seu uso capitalista, aprendendo assim a dirigir os seus ataques
não contra os meios materiais de produção, mas contra o modo pelo qual eram usados”. (MARX,
K. O Capital.)
A legislação fabril, essa primeira reação consciente e sistemática da sociedade contra a marcha
espontânea do processo de produção é, pois, um produto tão necessário à indústria moderna
como a fiação de algodão, o self-actor e o telégrafo elétrico. (MARX, K. O Capital.)
Para Marx, pois, o Estado não é apenas e exclusivamente um órgão da classe dominante;
responde também aos movimentos do conjunto da sociedade e das outras classes sociais,
segundo, é óbvio, as determinações das relações capitalistas. Conforme o grau de
desenvolvimento das formas produtivas, das relações de produção e das formas políticas da
sociedade, o Estado pode adquirir contornos mais ou menos nítidos, revelar-se mais ou menos
diretamente vinculado aos interesses exclusivos da burguesia. Inclusive há ocasiões em que pode
ser totalmente capturado por uma facção da burguesia, da mesma maneira que, em outras
ocasiões, pode ser politicamente (não economicamente) capturado por setores da classe média ou
por militares.
Conforme sugere Marx, em vários passos das suas análises, há momentos em que o
poder estatal parece estar suspenso no ar, apresentando-se como se fora independente das classes
sociais. Essas situações ocorrem quando nenhuma das classes se revela capaz de conquistar e
preservar o poder, em conformidade com os seus desígnios. São as ocasiões de crise de
hegemonia. [...] Mas essa situação não impede que o Estado continue organizado e orientado no
sentido determinado pelas relações capitalistas de produção. Nessas ocasiões, prossegue ou pode
mesmo acelerar-se o processo de acumulação de capital, conforme se combinem umas e outras
condições sociais, econômicas e políticas, inclusive externas. Portanto, por trás da aparência de
autonomia, ou independência, que o poder estatal ganha em certos momentos, continuam a operar
as determinações básicas do regime.
Mas isto ainda não explica por que, em determinados momentos, o Estado ganha essa
aparência de autonomia, como se estivesse organizado em conformidade com a ideologia da
classe dominante, que sempre trata de espelhar o poder estatal como se fora a expressão da
vontade geral ou da sociedade civil. A nosso ver, esse fenômeno resulta de que há ocasiões em
que ocorre um descompasso maior ou, mesmo, divórcio mais acentuado entre as estruturas
políticas e as econômicas. Esse é o segredo da crise de hegemonia, que produz a impressão de
que o Estado divorciou-se desta ou daquela classe, pairando sobre a sociedade como um todo. A
crise de hegemonia não é um fenômeno exclusivamente político, ainda que se manifeste
principalmente no nível das relações e estruturas políticas. O poder estatal adquire a aparência de
autonomia nas ocasiões em que ocorre uma crise simultaneamente política e econômica, na qual a
classe dominante ou uma das suas facções mais ativas perde o controle do aparelho estatal e é
obrigada a comparti-lo formalmente com outras classes. Ou, então, essa aparente independência
se manifesta, quando uma facção da classe dominante já não tem força suficiente para manter o
poder, mas não surge outar capaz de substituí-la.
[...]
Enquanto categoria dialética, pois, o Estado adquire os contornos, a estrutura e os
movimentos que se lhe produzem nas relações com as classes constituídas ou em constituição.
Ocorre que o poder estatal é o núcleo de convergência das relações de interdependência,
alienação e antagonismo que caracterizam a produção capitalista. Por isso ele se configura
segundo as determinações das relações capitalistas concretas, isto é, conforme a situação
específica deste ou daquele país, nesta ou naquela época. Essa é a razão por que Marx não define
o Estado capitalista nem distingue os seus poderes principais de modo formal. Para ele o poder
estatal configura-se, internamente, segundo as determinações das relações de produção num país
e numa ocasião específicos. Os poderes executivo, legislativo, judiciário e soberano não podem
ser descritos ou definidos de forma abstrata, nem isoladamente nem em conjunto. Somente em
situações concretas podem ser “categorizados”. Para isso, é indispensável que a análise veja
como se organizam e funcionam os ministérios, a polícia, o exército, a magistratura, o clero, a
constituição, a burocracia e outras esferas do aparelho estatal, tanto em suas atuações mais
específicas como em suas relações recíprocas; tanto em suas relações com a sociedade civil, em
conjunto, como com cada uma das classes sociais. No percurso dessa análise, surgem as relações,
os processos e as estruturas, de par em par com as pessoas, os grupos e as classes sociais, uns e
outros encadeados no conjunto do regime capitalista de produção, em vigor em dado país e
época. A análise dialética do Estado capitalista, portanto, deve revelar, sob uma luz especial, a
forma pela qual se organizam as forças produtivas, as relações de produção, ou seja, as classes
sociais, em seus movimentos e antagonismos.
A verdade é que a mercantilização universal das relações, pessoas e coisas implica,
também, na generalização de estruturas burguesas de poder aos vários países. Algumas dessas
estruturas são a expressão indispensável das relações de alienação e antagonismo que
caracterizam o processo de produção de mais-valia. Ao comparar uns e outros países, tendo em
conta os diversos graus de desenvolvimento das suas forças produtivas e relações de produção,
evidencia-se que o poder estatal burguês guarda algumas significações essenciais comuns, além
das peculiaridades de cada país.
A despeito da matizada diversidade de suas formas, os distintos Estados dos distintos países
civilizados têm em comum o fato de que todos se apoiam nas bases da sociedade burguesa
moderna, ainda que, em alguns lugares, ela se ache mais desenvolvida do que em outros, no
sentido capitalista. Têm, portanto, certos característicos essenciais comuns. (MARX, K. “Gloses
marginales au programme du parti ouvrier allemand”.)
Mas a análise marxista do Estado capitalista não se completa a não ser quando se
delineiam as condições do seu declínio ou crise final. Vimos que o Estado é a expressão mais
acabada das relações que caracterizam o capitalismo. e. na esfera do Estado que as relações de
alienação e antagonismo das classes sociais adquirem plena concretividade e se resolvem. A crise
do Estado burguês é a consequência necessária do agravamento das contradições de classes,
contradições essas nas quais o proletariado e a burguesia são as duas classes substantivas. Na luta
contra a burguesia, o proletariado lutará para conquistar e destruir o poder estatal, já que este se
constitui no núcleo essencial das relações e estruturas de apropriação e dominação do regime. A
Comuna de Paris foi a primeira manifestação do que poderia ser o Estado proletário, em
contraposição ao Estado burguês. Para concretizar-se, o poder operário começou por suprimir
relações e estruturas jurídico-políticas e burocráticas que exprimiam prática e simbolicamente o
poder burguês. Para instaurar a “ditadura do proletariado”, que é a condição básica para a
transição à “sociedade sem classes”, torna-se indispensável suprimir as relações e as estruturas
preexistentes. Isto significa suprimir a “colossal superestrutura” do edifício do Estado capitalista.
PROLETÁRIOS E COMUNISTAS*
*
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. Porto Alegre: L&PM, 2009, p.46-62.
O que distingue o comunismo não é a supressão da propriedade em geral, mas a
supressão da propriedade burguesa.
Ora, a moderna propriedade burguesa é a última e mais consumada expressão da
produção e da apropriação dos produtos baseadas em antagonismos de classe, na exploração de
uns por outros.
Nesse sentido, os comunistas podem resumir suas teorias nesta única expressão:
supressão da propriedade privada.
Nós comunistas, temos sido criticados, sob a alegação de que queremos suprimir a
propriedade pessoal adquirida pelo trabalho individual; a propriedade que constituiria o
fundamento de toda a liberdade, de toda a atividade e de toda a independência pessoal.
A propriedade, fruto do trabalho, do esforço, do mérito pessoal! Será que se está
falando da propriedade do pequeno burguês, do pequeno camponês, forma de propriedade que
precedeu a propriedade burguesa? Não precisamos suprimi-la; o desenvolvimento da indústria
suprimiu-a e continua suprimindo-a diariamente.
Ou então está-se falando da moderna propriedade privada burguesa?
Mas, será que o trabalho assalariado, o trabalho do proletário, possibilita-lhe criar
alguma propriedade? De forma alguma. Cria o capital, isto é, a propriedade que explora o
trabalho assalariado e que só pode aumentar se gerar trabalho assalariado suplementar, para
explorá-lo de novo. A propriedade, na sua forma atual, gravita em torno da oposição entre
capital e trabalho assalariado. Examinemos os dois termos dessa oposição.
Ser capitalista significa ocupar na produção uma posição não pessoal, mas também
social. O capital é um produto coletivo e só pode ser mobilizado pela atividade comum de
inúmeros membros e, em última instância, apenas pela atividade de todos os membros da
sociedade.
Portanto, o capital não é uma força pessoal. É uma força social.
Assim, quando o capital é transformado em uma propriedade coletiva, pertencendo a
todos os membros da sociedade, não é uma propriedade pessoal que se transforma em
propriedade social. É apenas o caráter social da propriedade que se transforma. Esta perde seu
caráter de classe.
Vejamos o trabalho assalariado.
O preço médio do trabalho assalariado é o salário mínimo, isto é, a soma dos meios de
subsistência necessários para manter vivo operário enquanto tal. O que o operário assalariado
obtém por sua atividade é o estritamente necessário para garantir-lhe a sobrevivência. Não
queremos, de forma alguma, suprimir essa apropriação pessoal dos produtos do trabalho,
necessários à reprodução da vida imediata, apropriação que não deixa nenhum benefício líquido
que confira um poder sobre o trabalho alheio. Queremos apenas suprimir o caráter miserável
desta apropriação, em que o operário só vive para aumentar o capital e só vive enquanto o
exigem os interesses da classe dominante.
Na sociedade burguesa, o trabalho vivo é apenas um meio para multiplicar o trabalho
acumulado. Na sociedade comunista, o trabalho acumulado é apenas um meio de aumentar,
enriquecer, fazer avançar a existência dos operários.
Na sociedade burguesa, o passado domina o presente; na sociedade comunista, o
presente domina o passado. Na sociedade burguesa, o capital é independente e pessoal, ao passo
que o indivíduo ativo não tem nem independência nem personalidade.
À supressão dessas relações, a burguesia chama de supressão da personalidade e da
liberdade! Com razão. Trata-se efetivamente da supressão da personalidade, da independência
e da liberdade burguesas.
No bojo das atuais relações de produção burguesas, por liberdade entende-se a
liberdade de comércio, a liberdade de compra e de venda.
Mas, se o comércio cessa, então cessa também o comércio livre. O palavreado sobre a
liberdade de comércio, como todos os outros palavrórios de nossa burguesia sobre a liberdade,
só têm sentido em face do comércio entravado, em face do burguês subjugado da Idade Média;
mas não diante da supressão comunista do comércio, das relações de produção burguesas e da
própria burguesia.
Revoltai-vos por querermos suprimir a propriedade privada. Mas, em vossa sociedade
atual, a propriedade privada está abolida para nove décimos de seus membros. Ela existe
precisamente porque não existe para nove décimos de seus membros. Criticai-nos por
querermos suprimir uma propriedade que pressupõe, como condição necessária, que a imensa
maioria da sociedade seja desprovida de toda propriedade.
Em uma palavra, criticai-nos por querer suprimir vossa propriedade. Efetivamente, é
isso que queremos.
A partir do momento em que o trabalho não pode mais ser transformado em capital,
em dinheiro, em renda fundiária, em resumo, em um poder social suscetível de ser
monopolizado, isto é, a partir do momento em que a propriedade pessoal não pode mais
converter-se em propriedade burguesa, a partir desse instante, declarais que a individualidade
está abolida.
Portanto, confessais que, por indivíduo, não entendeis nada mais do que o burguês, o
proprietário burguês. Efetivamente, semelhante indivíduo deve ser suprimido.
O comunismo não retira a ninguém o poder de asselhorear-se dos produtos sociais;
apenas retira o poder de se subjugar, por tal apropriação, o trabalho alheio.
Tem-se objetado que, com a supressão da propriedade privada, cessaria toda a
atividade e se instalaria um ócio generalizado.
Nesse caso, já há muito tempo a sociedade burguesa teria perecido em virtude do ócio;
pois os que nela trabalham não ganham e os que ganham não trabalham. Toda essa objeção
reduz-se à tautologia: não haverá mais trabalho assalariado quando não mais existir capital.
Todas as críticas feitas ao modo comunista de apropriação e de produção dos produtos
materiais foram estendidas à apropriação e à produção dos produtos intelectuais. Da mesma
forma que, para o burguês, a supressão da propriedade de classe equivale à supressão da própria
produção, a supressão da cultura de classe corresponde, para ele, à supressão da cultura em
geral.
A cultura cuja perda o burguês deplora é, para a imensa maioria dos homens, a sua
transformação em máquinas.
Mas não nos recrimineis medindo a supressão da propriedade privada por vossas ideias
burguesas de liberdade, de cultura, de direito etc. Vossas próprias ideias são o produto de
relações burguesas de produção e de propriedade, da mesma forma que vosso direito é apenas
a vontade de vossa classe erigida em lei, vontade cujo conteúdo é determinado pelas condições
materiais de vida de vossa classe.
A concepção interesseira, pela qual transformais em leis eternas da natureza e da razão
vossas relações de produção e de propriedade, a partir de relações históricas, ultrapassadas no
curso da produção, a compartilhais com todas as classes dominantes já desaparecidas. Aquilo
que concebeis para a propriedade antiga, aquilo que concebeis para a propriedade feudal, não
deveis mais conceber para a propriedade burguesa.
Supressão da família! Até os mais radicais indignam-se com essa perigosa proposta
dos comunistas.
No que repousa a família atual, a família burguesa? No capital, no lucro privado. A
família, na sua plenitude, existe apenas para a burguesia; mas encontra seu complemento na
ausência forçada de família, imposta aos proletários, e na prostituição pública.
A família do burguês desmorona evidentemente com o desmoronamento de seu
complemento, e ambas desaparecem com o desaparecimento do capital.
Recriminai-nos por querermos suprimir a exploração das crianças pelos pais?
Efetivamente, denunciamos esse crime.
Mas dizeis que suprimimos as relações mais íntimas substituindo a educação familiar
pela educação social.
E também vossa educação não está determinada pela sociedade? Pelas relações sociais
em que a realizais, pela intromissão direta ou não da sociedade pelo viés da escola etc.? Os
comunistas não inventaram a ação da sociedade sobre a educação, apenas modificam-lhe o
caráter, subtraindo a educação da influência da classe dominante.
O palavreado burguês sobre a família e a educação, sobre a intimidade das relações
entre pais e filhos torna-se tanto mais repugnante quanto mais a grande indústria dilacera cada
vez mais os laços familiares dos proletários e transforma as crianças em simples objetos de
comércio e em instrumentos de trabalho.
“Mas vós, comunistas, quereis introduzir a comunidade das mulheres”, grita em
uníssono toda a burguesia.
O burguês vê em sua mulher um mero instrumento de produção. Ouve dizer que os
instrumentos de produção serão explorados coletivamente e, naturalmente, só pode concluir
que a sina das mulheres é serem colocadas em comum.
Não imagina que se trata precisamente de suprimir, para as mulheres, o estatuto de
meros instrumentos de produção.
Aliás, não há nada mais ridículo do que essa indignação profundamente moral de
nossos burgueses contra a comunidade das mulheres oficialmente instaurada pelo comunismo.
Os comunistas não precisam introduzir a comunidade das mulheres; esta quase sempre existiu.
Nossos burgueses, não contentes com o fato de que as mulheres e filhas de proletários
estejam à sua disposição, para não falar da prostituição oficial, têm o maior prazer em seduzir
as mulheres legítimas uns dos outros.
Na realidade, o casamento burguês é a comunidade das mulheres casadas. No máximo,
poder-se-ia recriminar os comunistas por quererem substituir uma comunidade de mulheres
hipócrita e dissimulada por uma comunidade oficial e franca. Aliás, é óbvio que, com a
supressão das atuais relações de produção, desaparece também a comunidade de mulheres dela
resultante, isto é, a prostituição oficial e não oficial.
Além disso, os comunistas foram recriminados por quererem suprimir a pátria, a
nacionalidade.
Os operários não têm pátria. Não se lhes pode tirar o que não têm. À medida que o
proletariado deve primeiramente conquistar, em seu benefício, o poder político, erigir-se em
classe nacional e constituir-se a si mesmo como nação, ele continua sendo nacional, mas nunca
no sentido burguês do termo.
As fronteiras nacionais e os antagonismos entre os povos tendem cada vez mais a
desaparecer, com o desenvolvimento da burguesia, com o livre comércio, com o mercado
mundial, com a uniformização da produção industrial e com as condições de vida
correspondentes.
Com a supremacia do proletariado, desaparecerão ainda mais depressa. A unidade de
ação do proletariado, pelo menos nos países civilizados, é uma das primeiras condições de sua
emancipação.
À medida que se suprime a exploração de um indivíduo por outro, suprime-se
igualmente a exploração de uma nação por outra.
Desaparecendo o antagonismo de classes, no interior de uma nação, desaparece
igualmente a hostilidade entre nações.
As acusações levantadas contra o comunismo, em nome de princípios religiosos,
filosóficos e ideológicos, não merecem exame detalhado.
Será necessário um exame mais profundo para compreender que, ao mudarem as
relações de vida dos homens, suas relações sociais, sua existência social, mudam também suas
representações, suas opiniões e suas ideias, em suma, sua consciência?
O que demonstra a história das ideias senão que a produção espiritual se modifica com
a transformação da produção material? As ideias dominantes de uma época sempre foram as
ideias da classe dominante.
Quando se fala de ideias que revolucionam uma sociedade inteira, exprime-se com
isso apenas o fato de que, no âmago da antiga sociedade, se engendraram os elementos de uma
nova sociedade e que a dissolução das ideias antigas acompanha a dissolução das antigas
relações sociais.
Quando o mundo antigo iniciou seu declínio, as religiões antigas foram suplantadas
pela religião cristã. Quando as ideias cristãs sucumbiram, no século XVIII, às ideias das Luzes,
a sociedade feudal travava seu combate mortal contra a burguesia então revolucionária.
As ideias de liberdade de consciência e de religião exprimiam apenas, no domínio do
saber, o reino da livre concorrência.
Dir-se-á: “Ideias religiosas, morais, filosóficas, políticas, jurídicas etc. modificaram-
se no curso do desenvolvimento histórico. A religião, a moral, a filosofia, a política, o direito,
mantiveram-se constantes no bojo dessa mudança. Além disso, há verdades eternas, como
Liberdade, Justiça etc., que são comuns a todos os regimes sociais. Mas o comunismo abole as
verdades eternas, abole a religião e a moral, em vez de lhes conferir nova forma; portanto,
contradiz todos os desenvolvimentos históricos ocorridos até hoje”.
A que se reduz essa acusação? A história de toda a sociedade hoje gira em torno de
oposições de classe, que assumiram diversas formas nas diferentes épocas.
Mas, qualquer que tenha sido a forma assumida, a exploração de uma parte da
sociedade por outra é um fato comum a todos os séculos passados.
Portanto, não é de se admirar que a consciência social de todos os séculos, apesar de
toda a multiplicidade e de toda a diversidade, gravite em torno de certas formas comuns, em
formas de consciência, que só se dissolvem completamente com o desaparecimento total do
antagonismo de classe.
A revolução comunista é a ruptura mais radical com as relações tradicionais de
propriedade. Não admira que, no curso de seu desenvolvimento, rompa radicalmente com as
ideias tradicionais.
Mas deixemos aqui as objeções da burguesia ao comunismo.
Vimos anteriormente que o primeiro passo da revolução operária será a ascensão do
proletariado à classe dominante e à luta pela democracia.
O proletariado utilizará seu poder político para arrancar pouco a pouco todo o capital
da burguesia, para centralizar todos os instrumentos de produção nas mãos do Estado, isto é, do
proletariado organizado como classe dominante, e para aumentar, o mais rapidamente possível,
o contingente das forças de produção.
Naturalmente isso só pode acontecer, de início, mediante intervenções despóticas no
direito de propriedade e nas relações de produção burguesas, isto é, através de medidas que
parecem economicamente insuficientes e insustentáveis, mas que se superam a si próprias no
desenrolar do movimento, e são indispensáveis para revolucionar todo o modo de produção.
Certamente essas medidas diferirão nos diferentes países.
Entretanto, no que toca aos países mais desenvolvidos, de um modo geral podem-se
aplicar as medidas seguintes:
1. Expropriação da propriedade fundiária e utilização da renda resultante para as
despesas do Estado;
2. Imposto acentuadamente progressivo;
3. Supressão do direito de herança;
4. Confisco da propriedade de todos os emigrantes e rebeldes;
5. Centralização do crédito nas mãos do Estado, por meio de um banco nacional com
capital estatal e monopólio exclusivo;
6. Centralização de todos os meios de transporte nas mãos do Estado;
7. Multiplicação das indústrias nacionais, dos instrumentos de produção,
desbravamento e melhora das terras, de acordo com um plano coletivo;
8. Obrigatoriedade do trabalho para todos, organização de exércitos industriais, em
especial para a agricultura;
9. Combinação do trabalho agrícola e do trabalho industrial, medidas para a
eliminação gradual da oposição entre cidade e campo;
10. Educação pública e gratuita para todas as crianças. Supressão do trabalho infantil
em fábricas, em sua forma atual. Combinação da educação com a produção material etc.
Uma vez que desaparecerem as diferenças de classe no curso do desenvolvimento, e
toda a produção concentrar-se nas mãos de indivíduos associados, o poder público perderá seu
caráter político. Em sentido próprio, o poder público é o poder organizado de uma classe para
a opressão de outra. Se o proletariado, em sua luta contra a burguesia deve necessariamente
unificar-se em uma classe única, se, em decorrência de uma revolução, ele se converte em classe
dominante; e como classe dominante, suprimir pela violência as antigas relações de produção,
suprimirá automaticamente, juntamente com essas relações de produção, as condições de
existência da oposição de classe e, por esse viés, as classes em geral e, com isso, sua própria
dominação de classe.
No lugar da antiga sociedade burguesa com suas classes e oposições de classe surge
uma associação em que o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre
desenvolvimento de todos.
CRÍTICA DO PROGRAMA SOCIAL-DEMOCRATA DE GOTHA1
Karl Marx
“B. O Partido Operário Alemão reivindica como base intelectual e moral do Estado:
1. A educação popular, geral e igual, assegurada pelo Estado. Obrigação escolar para
todos. Ensino gratuito2.”
A educação popular igual para todos? O que é que se imagina que esta fórmula é?
Acredita-se que na atual sociedade (e apenas tratamos dela neste momento) a educação possa
ser igual para todas as classes? Ou pretender-se-á forçar as classes superiores a contentarem-se
com a mesquinha educação popular das escolas primárias, educação à qual só podem ter acesso
os trabalhadores assalariados bem como os camponeses, dadas as suas condições econômicas3?
“Obrigação escolar para todos. Instrução gratuita”: a primeira existe mesmo na
Alemanha, a segunda na Suíça e nos Estados Unidos para as escolas primárias. Se, nos diversos
Estados destes últimos, alguns estabelecimentos de ensino superior são igualmente “gratuitos”,
isso de fato significa simplesmente que as despesas de educação das classes superiores são
pagas pelas receitas do conjunto dos impostos. Diga-se de passagem, o mesmo se passa com a
“administração gratuita da justiça”, exigida pelo artigo 5. A justiça penal é gratuita por todo
lado; a justiça civil gira quase que exclusivamente em redor de litígios de propriedade e diz
respeito portanto quase unicamente às classes superiores. Pretender-se-ia que elas mantivessem
os seus processos à custa do tesouro público?
O parágrafo relativo às escolas teria devido pelo menos exigir escolas técnicas
(teóricas e práticas) combinadas com a escola primária.
O que é absolutamente preciso condenar é “uma educação popular pelo Estado”.
Determinar por meio de uma lei geral os recursos das escolas primárias, a qualificação
1
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Crítica da educação e do ensino. Introdução e notas de Roger Dangeville.
Lisboa: Moraes Editores, 1978, p.88-92.
2
Cf. MARX, Notas Marginais ao Programa do Partido Operário Alemão de Gotha (1875), de que extraímos a
crítica de Marx do programa relativo ao ensino.
3
Como Marx salienta, a sociedade burguesa tem necessidade de um determinado efetivo de pessoal qualificado
que o ensino superior lhe fornece: pouco importa ao capital qual é a origem social dos seus membros, desde que
sejam qualificados para executar as suas funções: a promoção social só se faz portanto no interesse geral do
capitalismo e pessoal das forças de trabalho “qualificadas”. Marx considera que esta “promoção”, se se efetua nas
fileiras das classes inferiores, é uma prova da força e da impudência das classes “superiores”: “Tal como, para a
Igreja católica na Idade Média, o fato de recrutar a sua hierarquia sem considerações de condição social, de
nascimento, entre os melhores cérebros do povo, era um dos meios principais de reforçar a dominação do clero e
de assegurar a manutenção dos laicos fora da verdade. Quanto mais uma classe dominante é capaz de acolher nas
suas fileiras os homens mais importantes da classe dominada, mais a sua opressão é sólida e perigosa.” (Marx, O
Capital, III, cap.36.)
necessária ao pessoal docente, as disciplinas ensinadas etc., e – como isso se passa nos Estados
Unidos – mandar verificar por inspetores de Estado a execução das prescrições legais, é
totalmente diferente de fazer do Estado o educador do povo! Antes pelo contrário, é preciso
banir da escola, pela mesma razão, qualquer influência do governo e da Igreja4. E precisamente
no Império prusso-alemão (e que não se fale, recorrendo a um subterfúgio ilusório, do “estado
do futuro”, porque vimos o que é), é pelo contrário o Estado que tem necessidade de uma muito
rude educação pelo povo!
Quanto ao resto, todo o programa, a despeito de todo o seu retinir democrático, está
do princípio ao fim infectado pela servil crença lassaliana no Estado ou – o que não é melhor –
pela crença nos milagres da democracia. Mais exatamente ainda: é um compromisso entre estas
duas espécies de fé no milagre, igualmente afastadas do socialismo.
“Liberdade da ciência”, diz um parágrafo da Constituição Prussiana. Para quê então
falar disso no programa do partido operário?
“Liberdade de consciência”! Se nos empenhássemos nestes termos de Kulturkampf5,
em lembrar ao liberalismo os seus velhos slogans, só o podíamos fazer dizendo: “Cada um deve
poder satisfazer as suas necessidades religiosas bem como corporais, sem que a polícia tenha
algo a ver com isso.” Mas, nesta ocasião, o partido operário não devia antes exprimir a sua
convicção de que “a liberdade de consciência” burguesa não passa da tolerância de toda a
espécie possível de “liberdades de consciência religiosa” e que, pelo seu lado, se esforça, pelo
contrário, por libertar as consciências dos fantasmas religiosos? Mas não pretendemos de forma
alguma ultrapassar o nível burguês!
Chego assim ao fim, porque o anexo junto ao programa não representa uma parte
característica. Posso ser breve.
4
A posição de Marx é estritamente de classe, e opõe-se radicalmente a todo o sistema escolar francês adstrito à
tutela do Estado e tal como é reivindicado pela esquerda laica, mas não antietática. Claro que Marx não se opõe
ao controle do Estado para a “execução das prescrições legais”, e a sua posição vem ao encontro da que ele tem
no que diz respeito à legislação de trabalho: cf. MARX-ENGELS, Le Syndicalisme, PCM, t. I, p.9, nota 4.
O § 4 do programa de Gotha ilustra com que espírito Marx concebia o papel do Estado: “Face ao Estado prusso-
alemão, era necessário claramente precisar que os inspetores não fossem revogáveis senão sob decisão dos
tribunais; que qualquer operário os pudesse atacar em justiça por violação dos seus deveres, que fossem entregues
ao corpo médico.”
5
Os liberais burgueses classificaram de Kulturkampf o conjunto das medidas tomadas por Bismark no decurso dos
anos 1870 para instaurar na Alemanha uma “cultura laica”. Em primeiro lugar, o homem de Estado prussiano
visava, através da Igreja católica, o partido do Centro, que representava todas as sobrevivências dos pequenos
Estados particularistas e antiprussianos do Centro e do Sul da Alemanha. Em seguida, utilizou esta campanha
anticatólica para oprimir os territórios polacos ocupados pela Prússia e, em menor medida, a Alcásia-Lorena.
Enfim, Bismark mascarava as lutas de classes de querelas religiosas, mandando organizar as tropas mais
reacionárias da direita, do catolicismo e do particularismo em redor do partido do Centro cristão numa oposição
militante e empurrando a socialdemocracia alemã para palavras de ordem estéreis de defesa da liberdade de
consciência e outras ninharias democráticas sem conteúdo de classe proletário e socialista. Cf. MARX-ENGELS,
A Social-Democracia Alemã, 10/8, 1975, p.245.
“2. Jornada de trabalho normal.”
Em nenhum outro país, o partido operário se contentou com uma reivindicação tão
vaga, mas sempre precisou a duração da jornada de trabalho, tal como a considera normal nas
condições dadas.
“3. A limitação do trabalho das mulheres e a interdição do trabalho das crianças.”
A regulamentação da jornada de trabalho deve encerrar já a limitação do trabalho das
mulheres no que diz respeito à duração, às pausas etc., da jornada de trabalho6; de outro modo
pode apenas significar a exclusão das mulheres dos ramos da indústria que são particularmente
prejudiciais à sua saúde física ou contrárias à moral do ponto de vista do sexo. Se era isto que
se pensava, era preciso dizê-lo.
“Interdição do trabalho das crianças!” É absolutamente indispensável indicar aqui o
limite de idade.
Uma “interdição geral do trabalho das crianças” é incompatível com a própria
existência da grande indústria: não passa, portanto, de um voto piedoso e estéril. A sua
realização – se fosse possível – seria reacionária. Com efeito, graças a uma estrita
regulamentação do tempo de trabalho segundo a idade e através de outras medidas de proteção
a favor das crianças, a combinação precoce do trabalho produtivo e da instrução é um dos mais
poderosos meios de transformação da sociedade atual7.
“5. Sobre a regulamentação do trabalho nas prisões.”
6
Marx tinha uma ideia precisa e prática da questão da limitação da jornada de trabalho, como é disso testemunho
a passagem seguinte: “Para a instrução dos membros da Associação no continente, cuja experiência sobre as leis
que regem as fábricas é de uma data mais recente do que a dos operários ingleses, acrescentamos que qualquer lei
sobre a limitação da jornada abortará e será destruída pelos capitalistas, se não se tiver cuidado em determinar
precisamente o período do dia que deve englobar as oito horas de trabalho. A duração deste período deve ser
determinada pelas oito horas de trabalho mais as pausas para as refeições. Por exemplo, se as diferentes
interrupções para as refeições se elevam a uma hora, será preciso limitar a nove horas o período legal de trabalho,
digamos das 7 horas da manhã às 4 da tarde, ou das 8 horas da manhã às 5 da tarde.” (MARX, Instruções para os
Delegados do Conselho Central Provisório a Propósito de Diversas Questões (1866), cf. MARX-ENGELS, Le
Syndicalisme, PCM, t. II, p.81.) Todo este parágrafo, que figurava no relatório de Marx ao congresso da AIT de
Genebra, foi omitido nas resoluções publicadas em seguida.
7
Um dos princípios fundamentais de Marx em matéria de educação é, com efeito, a reivindicação do trabalho
produtivo para as crianças, a fim de aniquilar o espírito “pueril” que reina, por exemplo, nas classes parasitárias
da sociedade. Este regresso da escola à produção revivificaria o ensino, ligando-o às fontes dos meios materiais
da vida. A próxima seção desta coletânea será toda dedicada a este problema da fusão da escola e da produção,
que é uma outra forma da combinação do trabalho físico e intelectual no socialismo, no sentido de Marx-Engels.
De nada serve mascarar as conclusões de Marx, argumentando que nos nossos dias, em alguns países “avançados”
(onde a produção está automatizada, como ele o previra desde 1859, por exemplo, nos Grundrisse, 10/8, t. 3,
p.327-337), as crianças já não trabalham na oficina, o que contradiz a sua afirmação segundo a qual “uma
interdição geral do trabalho das crianças é incompatível com a própria existência da grande indústria”. O
capitalismo conquistou hoje vários continentes novos, entre os mais povoados, onde tomou um banho de mocidade
e repete a uma escala alargada, as condições descritas por Marx em O Capital.
Vós colocastes uma reivindicação mesquinha para um programa operário geral. Em
todo o caso, era preciso exprimir claramente que não se pretendia, por simples receio ciumento
da concorrência, admitir que se tratam os presos como se fossem gado, privando-os do seu
único meio de correção, o trabalho produtivo8. É o menos que se pode esperar de socialistas.
8
A concepção de Marx é coerente e sistemática. Claro que ela é explorada – mas para isso completamente truncada
– pelos burgueses e os pretensos países socialistas a fim de extorquir o mais possível de trabalho aos proletários
assalariados em nome do... marxismo. Mas é precisa verdadeiramente uma má fé insigne para confundir o sistema
socialista de Marx, que abole a divisão do trabalho, o dinheiro, as profissões manuais e intelectuais, com o caráter
rebarbativo do trabalho produtivo, o mercado, bem como o salariato e o capital, com um sistema mais ou menos
elaborado de capitalismo de Estado.
Notemos que, nas prisões francesas, utiliza-se cada vez mais o sistema idealista de educação, que faz abstração
das condições materiais dos prisioneiros, para fazer da sua adaptação e inserção na vida civil uma questão de
psicólogos, com os seus métodos de inquisição espiritual de tipo policial sem consciência direta da vida concreta.
TRABALHO DOS ADOLESCENTES E DAS CRIANÇAS DE AMBOS OS SEXOS1
Karl Marx
1
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Crítica da educação e do ensino. Introdução e notas de Roger Dangeville.
Lisboa: Moraes Editores, 1978, p.221-223.
2
Cf. MARX, Instruções para os delegados do Conselho Central Provisório a propósito de diversas questões
(Extracto).
O texto oficial destas resoluções foi editado pelo Conselho Geral da AIT, em 1868; é precedido pela seguinte
observação:
“Algumas das resoluções aprovadas no I Congresso podem ser consideradas como parte integrante dos princípios
da Associação Internacional dos Trabalhadores. Tendo tido as atas deste Congresso apenas uma difusão limitada,
o Conselho Geral considerou útil publicá-las de novo, ao mesmo tempo que as resoluções aprovadas no último
congresso.”
Marx elaborou estas instruções, que se tornaram, após a sua aprovação, as resoluções do I Congresso da AIT,
reunido em Genebra de 3 a 9 de Setembro de 1866. A este respeito, Marx escreveu a Kugelmann, a 9 de Outubro
de 1866: “Limitei de propósito o programa dos delegados enviados por Londres aos pontos que permitem um
acordo imediato e uma ação concertada dos trabalhadores, de maneira a dar um impulso direto às exigências da
luta de classes e da organização dos operários em classe.”
3
Estes dados concretos correspondem evidentemente ao desenvolvimento das forças produtivas do século passado.
crianças e dos adultos deve ser defendido, dado que não o podem fazer eles mesmos. É por isso
que é dever da sociedade agir em seu nome.
Se a burguesia e a aristocracia desprezam os seus deveres para com os seus
descendentes, é lá com eles. A criança que goza dos privilégios destas classes está condenada
a sofrer com os seus próprios preconceitos.
O caso da classe operária é completamente diferente. O trabalhador individual não atua
livremente. Em numerosíssimos casos, é demasiado ignorante para compreender o interesse
verdadeiro do seu filho ou as condições normais do desenvolvimento humano. Contudo, a parte
mais esclarecida da classe operária compreende plenamente que o futuro da sua classe, e por
conseguinte da espécie humana, depende da formação da geração operária que cresce.
Compreende, antes de tudo, que as crianças e os adolescentes devem ser preservados dos efeitos
destruidores do sistema atual. Isso só pode realizar-se pela transformação da razão social em
força social e, nas circunstâncias presentes, só podemos fazê-lo por meio das leis gerais
impostas pelo poder de Estado. Ao impor tais leis, as classes operárias não fortificarão o poder
governamental. Pelo contrário, transformariam o poder dirigido contra elas em seu agente. O
proletariado fará então, por uma medida geral, o que tentaria em vão realizar por uma multidão
de esforços individuais.
Partindo daqui, dizemos que a sociedade não pode permitir nem aos pais nem aos
patrões empregar no trabalho as suas crianças e os seus adolescentes, a menos que combinassem
este trabalho produtivo com a educação.
Por educação, entendemos três coisas:
1. Educação intelectual;
2. Educação corporal, tal como é produzida pelos exercícios de ginástica e militares;
3. Educação tecnológica, abrangendo os princípios gerais e científicos de todos os
processos de produção, e ao mesmo tempo iniciando as crianças e os adolescentes na
manipulação dos instrumentos elementares de todos os ramos de indústria.
À divisão das crianças e dos adolescentes em três categorias, de 9 a 18 anos, deve
corresponder um curso graduado e progressivo para a sua educação intelectual, corporal e
politécnica. Os custos destas escolas politécnicas devem ser em parte cobertos pela venda das
suas próprias produções.
Esta combinação do trabalho produtivo, pago com a educação intelectual, os exercícios
corporais e a formação politécnica, elevará a classe operária muito acima do nível das classes
burguesa e aristocrática.
É óbvio que o emprego de qualquer criança ou adolescente dos 9 aos 18 anos, em
qualquer trabalho noturno ou em qualquer indústria cujos efeitos são prejudiciais à saúde, deve
ser severamente proibido pela lei.
A BASE CAPITALISTA DA EDUCAÇÃO DO FUTURO1
Karl Marx
Por muito débeis que pareçam no seu conjunto os artigos da regulamentação fabril
sobre a educação, proclamam todavia a instrução primária como condição obrigatória do
trabalho das crianças2. O seu êxito era a primeira demonstração da possibilidade de unir o
ensino e a ginástica ao trabalho manual, e vice versa, o trabalho manual ao ensino e à ginástica3.
Ao consultar os mestres-escolas, os inspectores fabris reconheceram depressa que as
crianças das fábricas que frequentam as escolas apenas durante meio dia aprendem tanto como
os alunos regulares, muitas vezes mais.
“E a razão disto é simples. Aquelas que não ficam retidas senão meio dia na escola
estão sempre frescas, bem dispostas e têm mais aptidão e melhor vontade para aproveitarem as
lições. No sistema meio-trabalho, meio-escola, cada uma das duas ocupações repousa e
descansa da outra, e a criança sente-se melhor do que se estivesse agarrada constantemente a
uma delas. Um rapaz que está sentado nos bancos da escola desde manhã cedo, sobretudo em
tempo quente, é incapaz de rivalizar com aquele que chega bem disposto e alegre do seu
trabalho4.”
Encontram-se argumentos suplementares sobre este tema no discurso de Sênior no
congresso sociológico de Edimburgo em 1863. Demonstra, entre outras coisas, como a jornada
de escola prolongada, unilateral e improdutiva das crianças das classes médias e superiores
1
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Crítica da educação e do ensino. Introdução e notas de Roger Dangeville.
Lisboa: Moraes Editores, 1978, p.203-221.
2
Cf. MARX, O Capital, I, in Werke, 23, pp. 507-508 e 510-513.
Neste capítulo, Marx evoca o movimento económico que suscita, no início revolucionário do capitalismo, o
programa de educação que prepara o pleno desenvolvimento do homem sob o socialismo. Contrariamente aos
utopistas que ligavam a educação a um trabalho produtivo desusado (artesanal) ou parcial (agrícola), Owen ligou
a educação ao trabalho produtivo na manufatura moderna. Marx, esse, faz partir o seu sistema do desenvolvimento
das realidades de toda a grande indústria, depois da sua palingenesia no comunismo, onde o homem se terá de
novo apropriado das ciências objetivadas e mortas de hoje nas máquinas, a fim de dominar e moldar segundo as
suas necessidades variadas a produção e a natureza, desenvolvendo-se a si mesmo à escala da sociedade e das suas
forças produtivas.
3
Segundo a legislação fabril inglesa, os pais não podem enviar os filhos com menos de catorze anos para as
fábricas “controladas” sem Ihes prestar ao mesmo tempo a instrução elementar. O fabricante é responsável pela
execução da lei.”A educação de fábrica é obrigatória, é uma condição do trabalho.” (Cf. Relatório ..., Outubro de
1865, p. 11.) (Nota de Marx.)
4
Cf. Relatório ..., loc. cit., p. 118. Um fabricante de seda declara ingenuamente aos comissários de inquérito da
Child Employment Com.: “Estou convencido de que o verdadeiro segredo da produção de operários hábeis consiste
em fazer caminhar juntos desde a infância o trabalho e a instrução. Naturalmente o trabalho não deve exigir nem
demasiados esforços, nem ser repugnante ou doentio. Desejaria que os meus próprios filhos pudessem partilhar o
seu tempo entre a escola por um lado e o trabalho por outro.” (Cf. Child. Employment Com. V. Rep., p. 82, nº 36.)
(Nota de Marx.)
aumenta inutilmente o trabalho dos professores, “fazendo não só perder sem vantagens o tempo
às crianças, a saúde e a energia, mas ainda destruindo-as de maneira absolutamente nociva5”.
Como se pode observar, até nos pormenores, em Robert Owen, o sistema de fabrico
fez nascer o germe da educação do futuro, que combinará para todas as crianças acima de
determinada idade o trabalho produtivo com a instrução e a ginástica, não apenas como método
para aumentar a produção social, mas como o único método para produzir homens
desenvolvidos em todos os sentidos.
Viu-se que a grande indústria suprime tecnicamente a divisão manufatureira do
trabalho, em que todo um homem está, durante a vida, ligado a uma operação parcelar, mas ao
mesmo tempo a sua forma capitalista reproduz esta divisão do trabalho de maneira ainda mais
monstruosa: na sua fábrica propriamente dita, ao transformar o operário em acessório
consciente de uma máquina parcial; em qualquer outro lado, conduz ao mesmo resultado, quer
introduzindo o emprego esporádico de máquinas e do trabalho à máquina, quer introduzindo o
trabalho das mulheres, das crianças e de não-qualificados como base nova da divisão do
trabalho6.
A contradição entre a divisão manufatureira do trabalho e a natureza da grande
indústria manifesta-se por fenômenos de violência, entre outros pelo fato atroz de que uma
grande parte das crianças empregadas nas fábricas e nas manufaturas modernas continuar presa
indissoluvelmente, desde a mais tenra idade e durante anos inteiros, às manipulações mais
simples, sem aprender o mais pequeno trabalho que permita empregá-las utilmente mais tarde,
nem que fosse nesta mesma fábrica ou manufatura. Nas tipografias inglesas, por exemplo, os
aprendizes elevavam-se pouco a pouco, de acordo com o sistema da antiga manufatura e do
5
SENIOR, Report of Proceedings..., VII Congresso Anual da National Association for the promotion of social
Sciences, p. 66.
Para avaliar quanto, num determinado grau do seu desenvolvimento, a grande indústria, ao transtornar o modo de
produção material e as relações sociais de produção, revoluciona igualmente os espíritos, basta comparar o discurso
de N. W. Senior em 1863 com a sua sátira contra a legislação fabril de 1833, ou confrontar as opiniões do congresso
que acabamos de citar com o facto de que, em determinadas zonas de Inglaterra, é ainda proibido aos pais pobres
mandar Instruir os seus filhos sob pena de morrerem de fome. É habitual, por exemplo, no Somersetshire – tal
como conta o sr. Snelle –, que qualquer pessoa que exija uma assistência à paróquia deve retirar os filhos da escola.
Deste modo, M. Wollaston, pastor em Feltham, cita casos em que foi recusado qualquer auxílio a determinadas
famílias “porque mandavam os filhos à escola!” (Nota de Marx.)
6
Onde as máquinas de tipo artesanal acionadas pela força do homem estão em competição direta ou indireta com
máquinas mais desenvolvidas, ou seja movidas por uma força motriz mecânica, tem lugar uma grande alteração
para o trabalhador que aciona a máquina. Na origem, a máquina a vapor substituía o operário; agora, é ele que
deve substituir a máquina. É por isso que a tensão e o dispêndio da sua força de trabalho se tornam monstruosos,
e como devem sê-lo para os adolescentes condenados a esta tortura! O comissário Longe encontrou em Coventry
e nos arredores crianças de dez a quinze anos empregadas em teares de fitas, sem falar de crianças mais novas que
tinham de trabalhar com teares de menor dimensão. “É um trabalho extraordinariamente penoso; o rapaz serve
simplesmente para substituir a força do vapor.” (Child. Empl. Comm. V Rep., 1866, p, 114, n.· 6.) Sobre as
consequências mortíferas «deste sistema de escreveture», tal como é chamado pelo relatório oficial, cf. loc. cit. e
páginas seguintes. (Nota de Marx.)
ofício, dos trabalhos mais simples aos trabalhos mais complexos. Percorriam várias fases antes
de serem tipógrafos feitos. Saber ler e escrever era para todos uma exigência profissional. A
máquina de imprimir alterou tudo isto. Utiliza dois tipos de empregados: um adulto que a vigia
e dois jovens rapazes, na sua maior parte, com a idade de onze a dezessete anos, cuja tarefa
exclusiva consiste em enfiar na máquina uma folha de papel ou retirá-la assim que está
impressa. Realizam esta operação fastidiosa, em Londres nomeadamente, catorze, quinze ou
dezesseis horas seguidas, durante alguns dias da semana, e muitas vezes trinta e seis horas
consecutivas com duas horas apenas de pausa para a refeição e o sono7. A maior parte não sabe
ler, e são em geral criaturas meio selvagens, meio embrutecidas: “O seu trabalho não exige
qualquer espécie de preparação intelectual; têm poucas ocasiões de exercer a sua aptidão e ainda
menos a sua opinião; o seu salário, apesar de bastante elevado para rapazes da sua idade, não
aumenta em proporção à idade; e poucos entre eles têm a perspectiva de obter o cargo melhor
remunerado e mais digno de vigilante, porque a máquina só exige na maior parte das vezes,
para quatro ajudantes, um vigilante8.”
Quando são demasiado “velhos” para a tarefa infantil, ou seja, por volta dos dezessete
anos, são despedidos e tornam-se outras tantas presas do crime. A sua ignorância, a sua
grosseria e a sua degradação física e intelectual fizeram fracassar as poucas tentativas para os
ocupar noutro local.
O que é verdade para a divisão manufatureira do trabalho no seio da oficina é-o
igualmente para a divisão do trabalho no seio da sociedade. Enquanto o artesanato e a
manufatura formarem a base geral da produção social, a subordinação do trabalhador a um ramo
exclusivo da produção, e a destruição da variedade original das suas aptidões e das suas
ocupações9 podem ser consideradas como necessidades do desenvolvimento transitório da
história. Nesta base, cada indústria encontra empiricamente a forma técnica que melhor lhe
corresponde, aperfeiçoa-a pouco a pouco, e fixa-se assim que atingiu um certo grau de
maturidade. O que de tempos a tempos provoca mudanças, é, além da nova matéria do trabalho
fornecida pelo comércio, a transformação gradual do instrumento de trabalho. Também este,
7
Ibid., p. 3, nº 24. (Nota de Marx.)
8
Ibid., p, 7, nº 60. (Nota de Marx.)
9
Segundo o Statistical Account, em determinadas localidades da alta Escócia, um grande número de pastores e de
pequenos camponeses vivia com mulher e filhos. Todos calçavam sapatos feitos por eles mesmos, depois de terem
curtido o coiro, vestiam fatos feitos apenas pelas suas próprias mãos, cujo material era por eles confeccionado a
partir de lã tosquiada dos carneiros ou do linho que eles mesmos tinham cultivado. Na confecção do seu vestuário,
pouco entrava um artigo comprado, à excepção das sovelas, das agulhas, dos dedais e de algumas partes das
ferramentas de ferro empregadas para a tecelagem. As mulhe-res tinham extraído elas mesmas as tintas de arbustos
e de plantas indígenas, etc. (Cf, Dugald STEWART, Works, ed. Hamilton, t. VIII, pp. 327-328.) (Nota de Marx.)
assim que adquiriu uma forma mais ou menos conveniente, se fossiliza e transmite-se muitas
vezes durante séculos de uma geração para outra.
Um facto dos mais característicos, é que até ao século XVIII os ofícios tinham o nome
de mistérios10, em cujas trevas só o indivíduo iniciado praticamente e profissionalmente tinha
o direito de penetrar.
A grande indústria arrancou o véu que escondia dos olhares dos homens o fundamento
material da sua vida, o seu próprio processo de produção social. Até à época manufatureira, os
diferentes ramos de ofício, saídos espontaneamente da divisão do trabalho social, formavam
uns perante os outros tantos recintos em que era proibido ao profano penetrar. Guardavam com
um ciúme inquieto os segredos da sua rotina profissional, cuja teoria continuava a ser um
enigma mesmo para os iniciados. O princípio da indústria moderna consiste em considerar cada
processo em si mesmo e em analisá-lo nos seus movimentos constituintes, independentemente
da sua execução pela força muscular ou a aptidão manual do homem. É assim que se desenvolve
a ciência moderna da tecnologia. Reduziu os elementos, baralhados, pitorescos, fossilizados, e
sem ligação aparente entre si, do processo de produção da sociedade anterior, a aplicações,
conscientemente planificadas e sistematicamente distintas segundo o efeito útil procurado, da
ciência da natureza.
A tecnologia descobriu o pequeno número de formas fundamentais do movimento, nas
quais toda a ação produtiva do homem se resume necessariamente, apesar da diversidade dos
instrumentos utilizados, tal como o maquinismo mais complicado só esconde o jogo de leis
mecânicas simples11.
10
No célebre Livro dos Ofícios, de Étienne Boileau, encontram-se, entre outras prescrições, a seguinte: “Qualquer
companheiro, quando é recebido na ordem dos mestres, deve jurar amar fraternalmente os seus irmãos, mantê-las,
cada um na ordem do seu ofício, ou seja nunca divulgar voluntariamente os segredos do oficio. Deve também jurar
que nunca dará a conhecer ao comprador, para fazer valer as suas mercadorias, os defeitos das mal confeccionadas
pelos outros, no interesse comum da corporação.» (Cf. Regulamentos sobre as Artes e Oficias de Paris, redigidos
no século XIII e conhecidos sob o nome de Livro dos Ofícios, publicado por G. B. Depping, Paris, 1837: os
juramentos dos diferentes ofícios). (Nota de Marx.)
11
Para chegar a esta conclusão revolucionária, segundo a qual as máquinas se resumem a algumas leis mecânicas
simples, apesar de reduzirem tudo ao trabalho simples e permitirem a abolição da divisão do trabalho até ao nível
do indivíduo que poderá FAZER tudo o que fazem os outros, Marx dedicou-se a um enorme trabalho de
investigação e de compilação: cf. os manuscritos dos cadernos V, XIX e XX de 1861-1863, bem como os seus
cadernos de extratos dos mesmos anos. Marx resume as suas conclusões sobre a lógica das invenções sucessivas
do movimento mecânico que derruba todos os preconceitos atuais, sobre as contribuições enormes que a época
capitalista moderna teria dado, na sua carta a Engels de 28 de Janeiro de 1863, onde explica além disso: “Quando
da minha primeira elaboração, ignorava determinadas questões curiosas. Para aclarar ideias, reli inteiramente os
meus cadernos de extratos sobre a tecnologia e frequentei cursos (trabalhos práticos e experiências apenas) do
prof. Willis (Jermynstreet, o instituto de geologia, onde Huxley realizou Igualmente as suas conferências) em
intenção dos operários (...). Para os matemáticos puros, estas questões são indiferentes, mas tornam-se importantes
assim que se trata de demonstrar a conexão entre as relações sociais da humanidade e a evolução destes modos
de produção materiais.” (Cf. Karl Marx, Friedrich Engels, Correspondance, Editions du Progrès, Moscovo,
1971.)
A indústria moderna não considera e nunca trata como definitivo o modo atual de um
processo ou a forma dada de um processo de produção. A sua base técnica é portanto
revolucionária, enquanto a de todos os modos de produção anteriores era essencialmente
conservadora12. Com as máquinas, os processos químicos e outros métodos, ela perturba, ao
mesmo tempo que a base técnica da produção, as funções dos trabalhadores e as combinações
sociais do processo de trabalho. Não deixa assim de revolucionar a divisão do trabalho no seio
da sociedade, e lança sem interrupção massas de capitais e de operários de um ramo de produção
para outro13.
A própria natureza da grande indústria determina a mudança no trabalho, a fluidez das
funções, a mobilidade universal do trabalhador. Mas, por outro lado, reproduz, sob a forma
capitalista, a antiga divisão do trabalho com as suas particularidades ossificadas. Vimos que
esta contradição absoluta entre as necessidades técnicas da grande indústria e os caracteres
sociais que reveste no sistema capitalista, suprime qualquer prazo, qualquer estabilidade e
serenidade nas condições de vida do trabalhador, e ameaça-o constantemente de lhe tirar das
mãos os meios de subsistência impedindo-o de aceder aos meios que lhes permitem trabalhar14
e tornando-o supérfluo pela supressão da sua função parcelar. Sabemos também que este
antagonismo faz nascer a monstruosidade de um exército industrial de reserva, mantido na
miséria, a fim de estar sempre disponível para a procura capitalista; que culmina nas
hecatombes periódicas da classe operária, na dilapidação mais desenfreada das forças de
trabalho e nos destroços da anarquia social, que faz de cada progresso econômico uma
calamidade pública. Este é o lado negativo.
Hoje, a variação no trabalho impõe-se unicamente à maneira de uma lei física
irresistível, cuja ação, esbarrando por todo o lado com obstáculos15, os destrói cegamente.
12
“A burguesia não pode existir sem revolucionar constantemente os instrumentos de produção e por isso mesmo
as relações da produção e todo o conjunto das relações sociais. A primeira condição de existência de todas as
classes industriais precedentes era, em contrapartida, a conservação imutável do seu modo tradicional de produção.
O que distingue portanto a época burguesa de todas as precedentes é o revolucionamento incessante da produção,
o abalo contínuo de todas as situações sociais, a agitação e a incerteza perpétuas. Todas as instituições imutáveis,
ferrugentas, por assim dizer, se dissolvem com o seu cortejo de ideias e de tradições que a sua antiguidade tornava
respeitáveis, todas as novas se gastam sem terem podido consolidar-se. Tudo o que parecia sólido e estabelecido
evapora-se, tudo o que passa por santo é profano, e os homens são finalmente forçados a encarar friamente as suas
diversas posições na vida e as suas relações recíprocas. (ENGELS-MARX, Manifesto do Partido Comunista,
Londres, 1848, p. 5.)
13
No capitalismo desenvolvido em que vivemos atualmente, este movimento é muito menos aparente porque o
aparelho produtivo se tornou senil como todo o modo de produção capitalista. São sobretudo os trabalhadores
estrangeiros imigrados que formam a massa móvel de que Marx fala aqui. Além disso, a mecanização, até mesmo
a automação, reduz, senão as trocas de capitais, pelo menos as trocas de massas consideráveis de operários.
14
“Tiras-me a vida se me roubas os meios pelos quais eu vivo.” (SHAKESPEARE, O Mercador de Veneza, ato
IV, c. 1, v. 375-376.) (Nota de Marx.)
15
Um operário francês escreveu no seu regresso de São Francisco: “Nunca teria acreditado que fosse capaz de
exercer todos os ofícios que tive na Califórnia. Estava firmemente convencido de que fora da tipografia não
Contudo, as próprias catástrofes que a grande indústria suscita fazem com que se torne uma
questão de vida ou de morte reconhecer o carácter variado do trabalho e, por conseguinte, o
maior desenvolvimento possível em todos os sentidos das diversas aptidões do trabalhador,
como uma lei geral da produção moderna, e que se adaptem estas condições de fato à realidade
de todos os dias. É uma questão de vida ou de morte substituir à monstruosidade de uma
sobrepopulação operária, mantida em reserva e sempre disponível para as necessidades
mutáveis da exploração do capital, o homem que esteja absolutamente disponível para as
exigências variáveis do trabalho; a grande indústria obriga a sociedade, sob pena de substituir
ao indivíduo dividido, sujeito a uma função produtiva parcelar, o indivíduo integralmente
desenvolvido que sabe fazer face às exigências mais diversificadas do trabalho das suas diversas
capacidades naturais ou adquiridas.
As instituições que se desenvolveram espontaneamente na base permanentemente
revolucionada pelo processo da grande indústria, são, por um lado, as escolas politécnicas e
agronômicas, e, por outro, as escolas de ensino profissional, onde se ensina aos filhos dos
operários algumas noções de tecnologia bem como a manipulação prática de diversos
instrumentos utilizados na produção16. Se a legislação fabril, como primeira concessão
arrancada a custo ao capital, apenas combina a instrução elementar com o trabalho de oficina,
não há dúvida de que a conquista inevitável do poder político pela classe operária vai introduzir
também o ensino da tecnologia, prática e teórica, nas escolas dos operários17. Do mesmo modo,
está fora de dúvida que tais fermentos de transformação18,cujo termo final é a supressão da
prestava para mais nada. (...) Uma vez no meio desse mundo de aventureiros que mudam de ofício mais facilmente
do que de camisa, santo Deus! fiz como os outros. O ofício de mineiro não me rendia o suficiente e fui à cidade
onde tanto fui tipógrafo como carpinteiro, etc. A profissão de chumbeiro-zinqueiro não foi a que menos me rendeu
(...). Esta experiência (...) convenceu-me de que em nenhuma circunstância ficaria alguma vez seriamente
embaraçado, se o trabalho de qualquer profissão me faltasse. Sinto-me menos molusco e muito mais homem!...
(Cf. A. CORBON, Do Ensino Profissional. Paris, 1860. 2ª ed., p. 50.) (Nota de Marx.)
16
A versão francesa de Roy difere sensivelmente desta frase central deste capítulo. Com efeito, diz: “A burguesia,
ao criar para os seus filhos as escolas politécnicas, agronômicas, etc., obedecia todavia apenas às tendências
íntimas da produção moderna, não deu aos proletários senão a sombra do ensino profissional.”
17
John Bellers, um verdadeiro fenômeno na história da economia política, deu-se conta nos fins do século XVII,
com uma clareza perfeita, da necessidade de abolir o sistema atual de educação e a divisão do trabalho, que
engendram a hipertrofia e a atrofia dos dois extremos da sociedade. Afirma com razão entre outras coisas:
“Aprender na ociosidade não é melhor do que aprender a ociosidade. (...) O trabalho do corpo foi instituído na
origem por Deus (...). O trabalho é tão necessário ao corpo para o manter com saúde, como o alimento para o
manter vivo; o sofrimento que um homem tem para tomar asas, resultará em mal-estar (jogo de palavras
intraduzível entre aises e malaises. – N. T.) O trabalho fornece azeite à lâmpada da vida; o pensamento fornece a
chama. Uma ocupação idiota das crianças (John Bellers pressente aqui as frivolidades de Basedow e dos seus
iniciadores modernos) torna néscio o espírito das crianças.. (Cf. John BELLERS, Proposals for Raising a Colledge
of Industry of ali usefull Trades and Husbendry, Londres, 1696, pp. 12, 14, 16 e 18.) (Nota de Marx.)
18
Fiel ao seu esquema histórico da ditadura do proletariado como fase necessária da passagem ao socialismo
através das suas diferentes fases sucessivas, Marx precisa aqui que se trata de um sistema não definitivo do
comunismo, mas perfeitamente transitório, e é por isso que fala dessas “escolas dos operários” que são os fermentos
da transformação cujo termo final é a abolição de qualquer divisão do trabalho e portanto de todas as classes,
antiga divisão do trabalho, encontram-se em contradição flagrante com o modo capitalista da
indústria e as condições econômicas do operário que lhe correspondem. Contudo, o
desenvolvimento dos antagonismos imanentes à forma capitalista atual é a única via histórica
real que conduz à sua dissolução e à sua metamorfose: tal é o segredo do movimento histórico
que os doutrinários, otimistas ou socialistas, não querem compreender.
Nec sutor ultra crepidam! Sapateiro, deixa-te estar no teu sapato! Este nec plus ultra
da sabedoria do artesão e da manufactura tornou-se loucura e maldição no dia em que o
relojoeiro Watt descobriu a máquina a vapor, barbeiro Arkwright o tear contínuo, e o ourives
Fulton barco a vapor.
Pela regulamentação que impõe às fábricas, às manufaturas, etc., a legislação fabril
aparece apenas como uma primeira intervenção nos direitos de exploração do capital. Em
contrapartida, qualquer regulamentação do pretenso trabalho a domicílio19 apresenta-se como
uma intrusão direta na patria potestas, como frase moderna, a autoridade dos pais, e os
delicados membros do parlamento inglês simularam durante muito tempo recuar com horror
perante este atentado contra a santa instituição da família. Todavia, pela força das coisas, teve
afinal de contas de se reconhecer que, ao minar os fundamentos econômicos da família operária,
a grande indústria dissolveu também as relações familiares. E foi preciso proclamar um direito
das crianças. Lê-se a este respeito no relatório final da Child. Empl. Commission publicado em
1866: “Resulta, infelizmente, do conjunto dos depoimentos das testemunhas que as crianças
dos dois sexos não têm contra ninguém tanta necessidade de proteção como contra os pais.” O
sistema da exploração delimitado do trabalho das crianças em geral e do trabalho ao domicílio
em particular “... perpetua-se pela autoridade arbitrária e funesta, sem freio e sem controle, que
os pais exercem sobre os seus jovens e tenros descendentes. (...) Os pais não devem dispor do
poder absoluto de transformar os seus filhos em puras máquinas, com o único objetivo de daí
ganhar por semana tanto e tanto de salário. (...) As crianças e os adolescentes têm direito à
proteção da lei contra o abuso da autoridade paterna que arruína prematuramente a sua energia
física e as faz cair na base da escala dos seres morais e intelectuais20”.
mesmo a operária. Esta passagem não indica, portanto, o sistema final da educação na sociedade comunista: é
apenas um ponto de partida.
19
1ª ed. alemã de O Capital: este gênero de trabalho faz-se também, a maior parte do tempo, em pequenas oficinas,
como vimos, para o fabrico de rendas e entrançamento de palha, e como se poderia também mostrar mais
particularmente, tomando como exemplo as manufaturas metalúrgicas de Sheffield, Birmingham, etc. (Nota de
Marx.)
20
Child. Empl. Comm. V Rep., p. xxv, nº 162; II Rep., p. XXXVIII, nº 285, 289; p. XXV; XXVI, nº 191. (Nota de
Marx.)
Não é, contudo, o abuso da autoridade paterna que é a fonte da exploração direta ou
indireta da infância, mas é a exploração capitalista que, ao abolir a base econômica que lhe
correspondia, fez disso um abuso21.
Por muito terrível e desgostante que possa parecer hoje a dissolução da família
tradicional no seio do sistema capitalista, não é menos verdade que ao atribuir, fora da esfera
limitada do lar, um papel decisivo às mulheres, aos adolescentes e às crianças de ambos os
sexos, em processos de produção socialmente organizados, a grande indústria criou a nova base
econômica sobre a qual se erguerá uma forma superior da família e das relações entre ambos
os sexos. É naturalmente de igual modo absurdo considerar como absoluta e definitiva a forma
germano-cristã da família bem como as suas formas oriental, grega e romana, as quais
constituem de resto entre si outros tantos escalões de desenvolvimento de uma sucessão
histórica. É não menos evidente que a composição do pessoal operário combinado na fábrica a
partir de indivíduos de ambos os sexos e das idades mais diversas, mesmo se na sua arma
capitalista brutal em que nasceu espontaneamente é uma fonte envenenada de corrupção e de
escravatura, estando aí o trabalhador para o processo de produção e não o processo de produção
para o trabalhador, deverá converter-se no seu contrário, em fonte de um desenvolvimento
humano22, assim que as condições correspondentes forem criadas23.
A necessidade de fazer de uma lei de excepção para as fábricas de fiação e tecelagem
mecânica, esses primeiros frutos da indústria mecânica, uma lei geral, alargada a toda a
produção social, nasceu – como se viu – do próprio curso histórico da grande indústria, cuja
base implica o total derrube da forma tradicional da manufatura, do artesanato e do trabalho
doméstico, tal como o artesanato se transformará sem cessar em manufatura, e esta em fábrica,
enquanto no fim a esfera do artesanato e do trabalho doméstico se torna – num espaço de tempo
maravilhosamente curto relativamente – num antro de sofrimento e de torturas onde a
exploração capitalista festeja os seus bacanais mais infernais com toda a liberdade. Finalmente
21
Na versão francesa de O Capital, a frase seguinte está intercalada aqui no texto: “De resto, a legislação fabril
não será ela a confissão oficial de que a grande indústria fez da exploração das mulheres e das crianças pelo capital,
desse dissolvente radical da família operária de antigamente, uma necessidade económica, a confissão de que
converteu a autoridade paterna num aparelho do mecanismo social destinado a fornecer, direta ou indiretamente,
ao capitalista os filhos do proletário, o qual, sob pena de morte, deve desempenhar o seu papel de intermediário e
de mercador de escravos? De igual modo, todos os esforços desta legislação não pretenderão senão reprimir os
excessos deste sistema de escravatura.”
22
“O trabalho de fábrica pode ser puro e benéfico como o era antigamente o trabalho doméstico, e mesmo num
grau mais elevado.” (Cf. Reports of 31st Oct. 1865. p. 127.) (Todas as notas até à p. 218 são de Marx.)
23
Na edição Roy. esta passagem é dada pela seguinte frase: “Mesmo a composição do trabalhador coletivo por
indivíduos de ambos os sexos de qualquer idade, essa fonte de corrupção e de escravatura sob o reinado capitalista,
contém em si os germes de uma nova evolução social. Na história, como na natureza, a podridão é o laboratório
da vida.” (Cf. Ed. Sociales. livro I. t. 2. p. 168).
há duas circunstâncias que são definitivas: em primeiro lugar, a experiência, sem cessar
repetida, segundo a qual o capital, mal caiu sob o controle do Estado, nem que fosse apenas em
pontos isolados da periferia social, se compensa a um grau tanto mais elevado noutros; em
segundo lugar, o grito lançado pelos próprios capitalistas a favor de condições iguais de
concorrência, ou seja de limitações legais à exploração do trabalho. Sobre isto encontram-se
numerosos documentos nos relatórios das inspeções de fábricas24.
Ouçamos a este respeito dois gritos saídos do coração. Os srs. W. Cooksley
(fabricantes de pregos, de cadeias, etc., em Bristol) tinham adoptado voluntariamente as
prescrições da legislação fabril: “Contudo, como o antigo sistema irregular se mantém nas
fábricas vizinhas, estão expostos ao dissabor de ver os jovens rapazes que empregam, atraídos
(enticed) para outro local por nova tarefa após as oito horas da noite. Esta é, gritam
naturalmente, uma injustiça a nosso respeito e, além disso, uma perda para nós, porque isso
esgota uma parte das forças da nossa juventude, cujo lucro total é para nós25.”
M. J. Simpson (fabricante de caixas e de sacos de papel em Londres) declara aos
comissários da Child. Empl. Comm.:
“... que está disposto a assinar qualquer petição para introduzir a legislação fabril. Mas
no estado atual, após o encerramento da sua oficina, sente-se pouco à vontade, e o seu sono é
perturbado pelo pensamento de que outros fazem trabalhar durante mais tempo e lhe roubam as
encomendas nas suas barbas26.”
“Seria uma injustiça para com os grandes contratadores de mão-de-obra, diz em
conclusão a comissão de inquérito, submeter as suas fábricas à regulamentação, enquanto no
mesmo ramo de negócios, a pequena indústria não teria de suportar qualquer limitação legal do
tempo de trabalho. Os grandes fabricantes não teriam apenas de sofrer esta desigualdade nas
condições da concorrência no que respeita às horas de trabalho, mas o seu pessoal de mulheres
e de crianças seria além disso desviado para seu prejuízo para as oficinas poupadas pela lei.
24
Esta passagem é dada como se segue na edição Roy: “A necessidade de generalizar a legislação fabril, de a
transformar de uma lei de excepção para as fiações e as tecelagens mecânicas em lei da produção social, impunha-
se à Inglaterra, como se viu, pela reação que a grande indústria exercia sobre a manufatura, o ofício e o trabalho
ao domicílio contemporâneos.”
“As próprias barreiras que a exploração das mulheres e das crianças encontrou nas indústrias regulamentadas
conduziram ao seu exagero mais ainda nas indústrias ditas livres.” (Ibidem.)
Finalmente, os “regulamentados” exigem a igualdade legal na concorrência, ou seja, no direito de explorar o
trabalho.
25
Child. Empl. Comm. V. Rep., p. X, nº 35.
26
Ibid., p. IX, nº 26.
Finalmente, isso conduziria à multiplicação das pequenas oficinas que, quase sem excepção,
são as menos favoráveis à saúde, ao conforto, à educação e em geral à promoção do povo27.”
A comissão propõe, no seu relatório final de 1866, submeter à legislação fabril mais
de 1.400.000 crianças, adolescentes e mulheres, de que cerca de metade é explorada pela
pequena indústria e o trabalho ao domicílio: “Se o Parlamento, diz, aceitasse a nossa proposta
em toda a sua extensão, estaria fora de dúvida que tal legislação exerceria a influência mais
salutar, não só sobre os jovens e os fracos de que se ocupa em primeiro lugar, mas ainda sobre
a massa muito mais considerável dos operários adultos que diretamente (as mulheres) e
indiretamente (os homens) caem na sua esfera de ação. Impor-lhe-ia horas de trabalho regulares
e moderadas; economizaria e acumularia as reservas de energia física de que depende o seu
bem-estar bem como a prosperidade do país; preservaria a geração nova dos esforços excessivos
que, numa idade ainda tenra, minam a sua constituição e provocam a sua ruína prematura;
ofereceria finalmente às crianças, pelo menos até aos treze anos, uma instrução elementar que
poria fim a esta ignorância incrível, de que os relatórios da comissão apresentam um tão fiel
retrato e que não se pode encarar sem uma verdadeira dor e um profundo sentimento de
humilhação nacional28.
Vinte e quatro anos antes, uma outra comissão de inquérito sobre o trabalho das
crianças chegara já a estas conclusões. Na altura do discurso da coroa, a 25 de Fevereiro de
1867, o ministro conservador anunciou que formulara em leis as propostas da comissão de
inquérito sobre a indústria. Para isso foi ainda precisa uma nova experimentação in corpore vile
durante vinte anos. Com efeito, em 1840, uma comissão parlamentar fora nomeada para inquirir
sobre o trabalho das crianças. Segundo os termos de N. W. Senior, este relatório desenhou “o
quadro mais horroroso que o mundo alguma vez vira da cupidez, do egoísmo e da crueldade
dos capitalistas e dos pais, da miséria, da degradação e da ruína das crianças e dos adolescentes
(...). Parecia que o relatório descrevia os horrores de uma época recuada (...). Infelizmente,
existem numerosos testemunhos segundo os quais os horrores continuam – e mais intensos do
que nunca (...). Os abusos denunciados em 1842 estão hoje (Outubro de 1863) em plena floração
(...). O relatório de 1842 foi juntado a outros documentos, sem que deles se tenha tomado
conhecimento de outra forma, e ficou para ali durante vinte longos anos durante os quais estas
crianças educadas sem fazerem a mínima ideia do que é aquilo a que chamamos a moral, sem
27
Ibid., p. XXV, nº 165-167. Sobre as vantagens da grande indústria comparada à pequena, cf. Child. Empl. Comm.
III Rep., p. 13, nº 144; p. 26, nº 125; p. 27, nº 140, etc.
28
Child. Empl, Comm. V Rep., 1866, p. XXV, nº 169.
instrução, sem religião, sem terem conhecido os sentimentos naturais do amor familiar, se
tornaram os pais da geração atual29”.
Entretanto, as condições sociais tinham mudado. O Parlamento já não ousava repelir
com o simples objetivo de não receber as propostas da comissão de inquérito de 1863 como
fizera com as da comissão de 1842. Foi por isso que a partir de 1864, quando a nova comissão
não publicara ainda senão uma parte do seu relatório, as manufaturas de artigos de terra
(incluindo as cerâmicas), de tinturaria, de mechas químicas, de cartuchos, de cápsulas e o corte
de tecidos foram submetidas à legislação em vigor para as fábricas têxteis. Na altura do discurso
da coroa de 25 de Fevereiro de 1867, o ministério tory anunciou outras leis baseadas nas
propostas posteriores da comissão que acabara os seus trabalhos em 1866.
A 15 de Agosto de 1867, foi promulgada a lei para a extensão da legislação fabril, e, a
21 de Agosto, a lei para a regulamentação das oficinas, dizendo uma respeito à grande indústria,
e a outra à pequena.
A primeira regula os altos fornos, as fábricas de ferro e de cobre, as fundições, as
fábricas de máquinas com o auxílio de máquinas, as fábricas de guta-percha e de papel, as
fábricas de vidros, as manufaturas de tabaco, as tipografias (incluindo as dos jornais), as
oficinas de encadernadores, e finalmente todos os estabelecimentos industriais sem excepção,
nos quais cinquenta indivíduos ou mais se ocupam simultaneamente, pelo menos por um
período de cem dias no decurso do ano.
Para dar uma ideia da extensão da esfera de aplicação da lei para a regularização das
oficinas, citaremos os artigos seguintes:
“Art. 4º. – Por ofício, entende-se qualquer trabalho manual exercido como profissão
ou com um fim lucrativo que concorre para fazer um artigo qualquer ou uma parte de um artigo,
para o modificar, reparar, ornar, dar-lhe acabamento, ou para o adaptar de qualquer outra forma
à venda.
Por oficina, entende-se qualquer espécie de recinto, ou de local, quer coberto, quer ao
ar livre, onde qualquer “ofício” é exercido por uma criança, um adolescente ou uma mulher, e
onde a pessoa por meio da qual a criança, o adolescente ou a mulher é empregada tem o direito
de acesso e de direção.
Por empregado, entende-se estar ocupado num “ofício” qualquer, mediante um salário
ou não, a soldo de um patrão ou de um parente.
29
SENIOR, op. cit., pp. 55-58.
Por parentes, entende-se pai, mãe, tutor, ou outra pessoa que tenha à sua guarda ou
sob a sua direção uma criança ou adolescente.”
O art. 7º. encerra cláusulas penais para o emprego de crianças, de adolescentes ou de
mulheres em infração a esta lei e submete a multas não só o patrão, parente ou não, mas ainda
“o parente ou a pessoa que tira um benefício direto do trabalho da criança, do adolescente ou
da mulher, ou que o tem sob o seu controle”.
A lei respeitante aos grandes estabelecimentos, o Factory Acts Extension Act, está
atrasada em relação à legislação fabril numa série de excepções viciosas e de cobardes
compromissos com os capitalistas.
A lei de regulamentação das oficinas, infeliz em todos os seus detalhes, continuou
letra morta nas mãos das autoridades municipais e locais encarregadas da sua execução.
Quando, em 1871, o Parlamento lhes retirou este poder para o conferir aos inspectores fabris,
sob cuja alçada atingiu assim duma só vez mais de cem mil oficinas e trezentas fábricas de
tijolos, cuidou-se em não acrescentar senão oito subalternos ao seu corpo administrativo, já
demasiado fraco30.
O que, portanto, mais nos impressiona na legislação inglesa de 1867, é, por um lado,
a necessidade imposta ao Parlamento das classes dirigentes de adotar em princípio medidas tão
extraordinárias e a uma tão grande escala contra os excessos da exploração capitalista e, por
outro, a hesitação, a repugnância e a má fé com as quais as traduziu então nos fatos.
A comissão de inquérito de 1862 propusera também uma nova regulamentação da
indústria mineira, que se distingue de todas as outras indústrias porque os interesses do
proprietário rural (landlord) e do empreendedor capitalista andavam de mãos dadas. O
antagonismo destes dois interesses fora favorável à legislação fabril, e pelo contrário a sua
ausência basta para explicar as lentidões e os subterfúgios da legislação sobre as minas.
A comissão de inquérito de 1840 fizera revelações tão terríveis, tão revoltantes e
suscitara tal escândalo na Europa que, por descargo de consciência, o Parlamento aprovou a lei
sobre as minas de 1842, onde se limitou a proibir o trabalho debaixo da terra, no interior das
minas, às mulheres e às crianças com menos de dez anos.
Uma nova lei sobre a inspeção das minas, de 1860, prescreve que as minas serão
inspecionadas por funcionários públicos, especialmente nomeados para este efeito, e que os
30
O pessoal da inspeção de fabrico compunha-se de dois inspetores, dois inspetores-adjuntos e quarenta e um
subinspetores. Oito subinspetores suplementares foram nomeados em 1871. Todo o orçamento desta
administração, que abrangeu a Inglaterra, a Escócia e a Irlanda, elevava-se apenas em 1871-72 a 25.347 libras
esterlinas, incluindo as despesas legais provocadas pelas perseguições judiciárias contra as violações da legislação
fabril. (Nota ele Marx.)
jovens rapazes de dez a doze anos só poderão ser empregados com a condição de estarem
munidos de um certificado de instrução ou de frequência da escola durante um determinado
número de horas. Esta lei ficou sem efeito dada a insuficiência irrisória do pessoal dos
inspectores, dos limites estreitos dos seus poderes e de outras circunstâncias que se verá a
seguir.
Um dos últimos livros azuis31 sobre as minas: Report from the select committee on
Mines... together with... Evidence, 13 de Julho de 1866, é obra de uma comissão parlamentar
escolhida no seio da Câmara dos Comuns e autorizada a citar e a interrogar testemunhas. É um
grande volume in-fólio onde o relatório da comissão apenas escreve cinco linhas para fazer
compreender que a comissão nada tem a dizer e que precisa interrogar novas testemunhas! O
resto consiste em interrogatórios das testemunhas.
Este tipo de interrogatório evoca as cross examinations (interrogatórios contraditórios)
das testemunhas perante os tribunais ingleses em que o advogado, por meio de perguntas
impudentes, imprevistas, equívocas, confusas, feitas a torto e a direito, procura intimidar,
surpreender, confundir a testemunha e distorcer as palavras que lhe arrancou. Acontece que os
advogados são os próprios inquiridores parlamentares, entre os quais proprietários e
exploradores de minas; as testemunhas são sobretudo os mineiros das hulheiras. Toda esta farsa
é demasiado característica do espírito do capital para que não apresentemos alguns extratos
deste relatório. Para abreviar, classificamo-los por categoria. Claro que a pergunta e a resposta
correspondente estão numeradas nos livros azuis ingleses. (...)
A educação. Os operários das minas exigem, como nas fábricas, uma lei para a
instrução obrigatória das crianças. Declaram que as cláusulas da lei de 1860, que exigem um
certificado de escolaridade para o emprego de rapazes de dez a doze anos, são perfeitamente
ilusórias. Mas eis onde o interrogatório “detalhado” dos juízes de instrução capitalistas se torna
realmente singular:
“Nº 115: Contra quem é a lei mais necessária? Contra os empresários ou contra os
pais? – Contra os dois. – Nº 116: Mais contra estes do que contra aqueles? – Como posso
responder a isso? – Nº 137: Os empresários mostram o desejo de organizar as horas de trabalho
de maneira a favorecer a frequência da escola? – Nunca. – Nº 211: Os operários das minas
melhoram fora de tempo a sua instrução? – Geralmente degradam-se e adquirem maus hábitos;
entregam-se ao jogo e à bebida e perdem-se completamente. Nº 454: Porque não mandar as
crianças às escolas da noite? – Na maior parte dos distritos hulhíferos, não existem; mas, o que
31
Relatórios parlamentares. – N. T.
há é que elas estão de tal forma esgotadas com o longo sobretrabalho que os seus olhos se
fecham de cansaço... Portanto, concluiu o burguês, sois contra a educação? – De modo algum,
etc. – Nº 443: Os exploradores de minas, etc., não são forçados pela lei de 1860 a pedir
certificados de escolaridade para as crianças entre dez e doze anos que empregam? – A lei
ordena-o, claro; mas os empresários não o fazem. – Nº 444: Na vossa opinião, esta cláusula de
lei não é portanto geralmente executada? – Não o é de todo. – Nº 717: Os operários das minas
interessam-se muito por esta questão da educação? – A maior parte. – Nº 718: Desejam
ardentemente a aplicação forçada da lei? – Quase todos. – Nº 720: Então porque não impõem o
respeito pela lei? – Mais de um operário desejaria que não se aceitassem os rapazes sem
certificado de escolaridade; mas passa a ser um homem marcado (a marked man). – Nº 721:
Marcado por quem? – Pelo patrão. – Nº 722: Julgais, portanto, que os patrões perseguiriam
alguém porque teria obedecido à lei? – Creio que o fariam. – Nº 723: Porque não recusam os
operários empregar os rapazes que estão neste caso? – Isso não lhes compete escolher. – Nº
1634: Desejais a intervenção do Parlamento? – Nunca se fará nada de eficaz pela educação das
crianças mineiras, se não for em virtude de uma lei do Parlamento e por via coercitiva. – Nº
1636: Isso aplica-se aos filhos de todos os trabalhadores da Grã-Bretanha ou apenas aos dos
mineiros? – Estou aqui apenas para falar em nome dos mineiros. – Nº 1638: Por que distinguir
os filhos dos mineiros dos outros? –Porque formam uma excepção à regra. – Nº 1639: Sob que
aspecto? – Sob o aspecto físico. – Nº 1640: Porque teria mais valor a instrução para eles do que
para as crianças de outras classes? – Não digo isso; mas, dado o seu excesso de trabalho nas
minas, têm menos oportunidades de poder frequentar as escolas da semana e de domingo. – Nº
1644: Não é verdade que é impossível abordar estas questões de uma maneira absoluta? – Nº
1646: Há muitas escolas nos distritos? – Não. – Nº 1647: Se o Estado exigisse que cada criança
fosse mandada à escola, onde se poderia encontrar escolas suficientes para todas as crianças? –
Creio que, a partir do momento em que as circunstâncias o exigissem, as escolas surgiriam por
si só. – Nº 705, 706: A grande maioria não só das crianças, mas ainda dos operários adultos nas
minas não sabe ler nem escrever.
CRÍTICA DO ENSINO OFICIAL E DOS EXAMES1
Karl Marx
1
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Crítica da educação e do ensino. Introdução e notas de Roger Dangeville.
Lisboa: Moraes Editores, 1978, p.58-60.
2
Cf. MARX, La critique de la philosophie du droit de Hegel, in Mega, I/1, pp.456-457. Após ter mostrado como
o Estado burguês é o produto necessário do privilégio econômico das classes dominantes em relação às massas
exploradas, Marx mostra que o poder governamental implica um corpo profissional que detém um monopólio, na
sociedade da propriedade privada, sendo o Estado apropriado pelos funcionários para “fazerem carreira”. Quando
o ensino é dispensado pelo Estado, o professor torna-se funcionário e participa na burocracia.
3
Após ter sido automatizado, o corpo docente apropria-se por sua conta – como sua propriedade privada – dos
conhecimentos e da ciência acumulados por todas as gerações que trabalham na produção, e transaciona-os contra
um salário para dispensar “o seu” saber.
No mercado a explorar, a necessidade da ciência apresenta-se, evidentemente, como a necessidade de todos, mas
o saber é monopolizado por uma minoria – aquela que teve acesso aos templos do conhecimento que são as
faculdades e universidades. O saber – separado da vida e da produção quotidiana imediata – é um segredo destilado
nos institutos, ficando o resto para a massa que é nisso iniciada apenas elementarmente, sem nunca lhe serem
fornecidos os conhecimentos elevados. A casta dos padres torna-se deste modo laica sob o reinado da Razão
burguesa. A necessidade superior do espírito humano sempre serviu a avidez insaciável de todas as castas de padres
das diferentes espécies que, no decurso da história, sempre apoiaram os dominadores e tiranos. Com a educação
nacional, os professores tornaram-se assim os colegas dos presságios dos pagãos, dos profetas dos judeus, dos
apóstolos dos cristãos, dos imãs dos muçulmanos ou, segundo a expressão de Marx, dos jesuítas.
A educação burguesa parte, em consequência, de um princípio abstrato da produção, o do Iluminismo da Razão,
que é oposto ao materialismo dialético. Assim, coloca na base da ação humana o saber “que se aprende”, ou seja
um conceito que está separado da vida imediata do grande número. Como Marx explica em A Questão Judaica,
esta Razão e este saber são “idealistas” e copiam a revelação das religiões, que privilegia uma casta ou a elite
“culta” – essa minoria, espécie de franco-maçonaria, que comunica à humanidade o querer (a ciência) dessa força
misteriosa “superior”, com a sanção do Estado que fornece os diplomas.
Esta ampla concepção do marxismo permite explicar a evolução, em aparência absolutamente contraditória, do
ensino burguês: no início do capitalismo, o instituidor laico disputou ao clero o monopólio da difusão das luzes do
Saber no povo, numa oposição que permanecia no campo da apropriação da ciência por uma minoria, depois, no
fim do capitalismo, o pároco coexiste cada vez mais nas escolas com os professores laicos – na mesma escola ou
escolas vizinhas em... concorrência, a fim de satisfazer a sede de emulação burguesa.
traição deste mistério, apesar de a autoridade se tornar o princípio do seu saber, e a idolatria
da autoridade ser o seu espírito. No seu seio, o espiritualismo torna-se materialismo mais
grosseiro, o materialismo da obediência passiva, da fé na autoridade, do mecanismo de uma
atividade rígida e formal, de princípios, de concepções e de tradições imóveis.
No que diz respeito ao burocrata tomado à parte, o fim do Estado torna-se o seu fim
privado, e é a caça ao cargo superior: trata-se, para ele, de fazer carreira. Em primeiro lugar,
considera a vida real como material, porque o espírito desta vida encontra na burocracia uma
existência abstrata da vida real.
É preciso pois que a burocracia tenda a tornar a vida tão material quanto possível. Em
segundo lugar, a vida torna-se material para ele na medida em que ela sofre uma abordagem
burocrática, porque o seu espírito lhe está prescrito, o seu fim encontra-se fora dele e sendo a
sua existência a do escritório. O Estado já só existe sob a forma dos diversos espíritos
burocráticos fixos, cuja coesão é mantida pela subordinação e a obediência passiva. A ciência
verdadeira aparece como despida de conteúdo, tal como a vida autêntica aparece como morta,
dado que é esta ciência imaginária e esta vida imaginária que passam por essenciais. O burocrata
tem pois que proceder como jesuíta com o Estado real, e pouco importa que este jesuitismo seja
consciente ou não. Contudo, deve tornar-se consciente, assim que se apercebe deste lado
antinômico – e então torna-se jesuíta patente e querido...
A identidade que Hegel construir entre a sociedade burguesa e o Estado é a de dois
exércitos inimigos, em que cada soldado tem a “possibilidade” de se tornar membro do exército
“inimigo”, “desertando” – e, de fato, Hegel descreve assim exatamente as condições práticas
de hoje.
O mesmo se passa no que diz respeito à sua construção dos “exames”. Num estado
racional, seria bem mais preciso um exame para se tornar sapateiro do que funcionário de
Estado, porque o ofício de sapateiro é um saber sem o qual se pode ser um bom cidadão e um
homem social. Ora acontece que o indispensável “saber de Estado” (ninguém pode ser tido por
ignorante da lei) é uma condição sem a qual se vive fora do Estado, estando separado de si
mesmo e de tudo, como que suspenso no ar. Ora, portanto, o exame não passa de uma fórmula
de fanco-mação, o reconhecimento legal do saber etático como privilégio.
A “conexão” da “função de Estado” e do “indivíduo”, este laço objetivo entre o saber
da sociedade civil e o saber do Estado, o exame, não passa do batismo burocrático da ciência,
o reconhecimento oficial da transubstanciação da ciência profana em ciência sagrada: cada
exame, implica, como lhe sendo próprio, que o examinador saiba tudo. Não há conhecimento
que os cidadãos gregos ou romanos tenham feito exames.
WEBER – TEORIA DA CIÊNCIA*
Raymond Aron
[...] Weber parte da distinção entre quatro tipos de ação: a ação racional com relação a
um objetivo (zweckrational), a ação racional com relação a um valor (wertrational), a ação
afetiva ou emocional e, por último, a ação tradicional.
A ação racional com relação a um objetivo [...] é a ação do engenheiro que constrói
uma ponte, do especulador que se esforça por ganhar dinheiro, do general que quer ganhar uma
batalha. Em todos estes casos a ação zweckrational é definida pelo fato de que o ator concebe
claramente seu objetivo e combina os meios disponíveis para atingi-lo.
[...]
A ação racional com relação a um valor é, por exemplo, a do socialista alemão
Lassalle, que se deixou matar num duelo, ou do capitão que afunda com seu navio. A ação é
racional não porque tende a alcançar um objetivo definido e exterior, mas porque seria
desonroso deixar de responder a um desafio ou abandonar o navio que afunda. O ator age
racionalmente, aceitando todos os riscos, não para obter um resultado extrínseco, mas para
permanecer fiel à sua ideia de honra.
A ação que Weber chama de afetiva é a ação ditada imediatamente pelo estado de
consciência ou o humor do sujeito. É a bofetada dada pela mãe na criança que se comporta de
modo insuportável, é o soco dado numa partida de futebol pelo jogador que perdeu o controle
dos nervos. Em todos estes casos, a ação é definida por uma reação emocional do ator, em
determinadas circunstâncias e não em relação a um objetivo ou a um sistema de valores.
A ação tradicional é aquela ditada pelos hábitos, costumes, e crenças, transformada
numa segunda natureza. Para agir de conformidade com a tradição, o ator não precisa conceber
um objetivo, ou um valor, nem ser impelido por uma emoção; obedece simplesmente a reflexos
enraizados por longa prática.
Esta classificação dos tipos de ação foi discutida e refinada durante quase meio século.
Limito-me aqui a indicá-la, acentuando que, de certo modo, ela elucida todas as concepções de
Max Weber; de fato, voltaremos a encontrá-la em vários níveis.
A sociologia é uma ciência que procura compreender a ação social; a compreensão
implica a percepção do sentido que o ator atribui à sua conduta. [...] O objetivo e a preocupação
*
ARON, Raymond. “Max Weber”. In: As etapas do pensamento sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 1993,
p.464 a 474.
de Weber é compreender o sentido que cada ator dá à própria conduta. A compreensão dos
sentidos subjetivos implica uma classificação dos tipos de conduta e leva à percepção da sua
estrutura inteligível.
A classificação dos tipos de ação comanda em certa medida a interpretação weberiana
da época contemporânea. O traço característico do mundo em que vivemos é a racionalização.
Numa primeira aproximação, esta corresponde a uma ampliação da esfera das ações
zweckrational. O empreendimento econômico é racional, a gestão do Estado pela burocracia
também. A sociedade moderna tende toda ela à organização zweckrational, e o problema
filosófico do nosso tempo, problema eminentemente existencial, consiste em delimitar o setor
da sociedade onde subsiste e deve subsistir uma ação de outro tipo.
***
Esta classificação dos tipos de ação está associada, por fim, com o que constitui o
centro da reflexão filosófica de Max Weber, a saber, os vínculos de solidariedade e de
independência entre a ciência e a política. A indagação sobre o tipo ideal do político e do
cientista apaixonava Max Weber. Como é possível ser ao mesmo tempo um homem de ação e
um professor? O problema era, para ele, ao mesmo tempo filosófico e pessoal.
Embora nunca tenha sido um político, Max Weber jamais deixou de sonhar com a
possibilidade de vir a sê-lo. Na verdade, sua atividade propriamente política foi a de professor,
ocasionalmente atuou como jornalista e, às vezes, como um conselheiro do príncipe,
naturalmente não ouvido. Durante a Primeira Guerra Mundial, enviou um memorando
confidencial ao governo de Berlim quando os líderes militares e políticos alemães se
preparavam para declarar uma guerra submarina irrestrita, o que trazia o risco de precipitar a
intervenção dos Estados Unidos da América. Neste memorando secreto, expunha as razões
pelas quais essa decisão provocaria provavelmente uma catástrofe para a Alemanha. Fez parte
também da delegação alemã que foi à França tomar conhecimento das condições do armistício.
Weber teria apreciado ser um dirigente partidário ou líder político, mas foi sobretudo um
professor e um cientista. O gosto pelas ideias claras e a honestidade intelectual fizeram com
que não deixasse de especular sobre as condições em que a ciência histórica ou sociológica
pode ser objetiva, sobre as condições que permitem à ação política ser conforme à sua vocação.
Estas concepções estão resumidas em duas conferências, intituladas: Politik als Beruf
e Wissenschaft als Beruf, o que significa A política como profissão e A ciência como profissão.
A ação do cientista é racional com referência a um objetivo. O cientista se propõe a
enunciar proposições factuais, relações de causalidade e interpretações compreensivas que
sejam universalmente válidas.
A investigação científica é, assim, um exemplo importante de ação racional com
relação a um objetivo, que é a verdade. Mas este objetivo é determinado por um juízo de valor,
isto é, por um julgamento sobre o valor da verdade demonstrada pelos fatos ou por argumentos
universalmente válidos.
A ação científica é portanto uma combinação da ação racional em relação a um
objetivo e da ação racional em relação a um valor, que é a verdade. A racionalidade resulta do
respeito pelas regras da lógica e da pesquisa, respeito necessário para que os resultados
alcançados sejam válidos.
Tal como Weber a entende, a ciência é um aspecto do processo de racionalização
característico das sociedades ocidentais modernas. Weber chegou mesmo a sugerir, e a afirmar,
que a ciência histórica e sociológica da nossa época representa um fenômeno historicamente
singular, na medida em que não houve, em outras culturas, o equivalente a esta compreensão
racionalizada do funcionamento e do desenvolvimento das sociedades.
A ciência positiva e racional valorizada por Max Weber faz parte do processo histórico
de racionalização, e apresenta duas características que comandam o significado e o alcance da
verdade científica. Estes dois traços específicos são o não-acabamento essencial e a
objetividade, esta última sendo definida pela validade da ciência para todos os que procuram
este tipo de verdade, e pela rejeição dos juízos de valor. O cientista observa com a mesma
serenidade o charlatão e o médico, o demagogo e o estadista.
Para Max Weber, o não-acabamento é fundamental, ele que não imagina, como
Durkheim, uma época futura em que a sociologia estivesse plenamente edificada, com a
existência de um sistema completo de leis sociais. [...] A “ciência” dos tempos antigos podia
considerar-se num certo sentido acabada, porque procurava apreender os princípios do ser. A
ciência moderna é por essência um devenir; ignora as proposições relativas ao sentido último
das coisas, tende a um objetivo situado no infinito e renova sem cessar as indagações dirigidas
à natureza.
Para todas as disciplinas, tanto ciências da natureza como ciências da cultura, o
conhecimento é uma conquista que nunca chega ao seu termo. A ciência é o devenir da ciência.
Pode-se sempre ir mais longe na análise, os monumentos do espírito, o historiador e o sociólogo
espontaneamente formulam novas questões sobre os fatos, presentes ou passados. Como a
história-realidade renova a curiosidade do historiador ou do sociólogo, é impossível conceber
uma história ou uma sociologia acabadas. A história e a sociologia só poderiam ser completadas
se o devenir humano chegasse ao fim. Seria necessário que a humanidade perdesse a capacidade
de criar para que a ciência do homem fosse definitiva.
***
Essa renovação das ciências históricas, graças às questões formuladas pelo historiador,
pode parecer que coloca em dúvida a validade universal da ciência, mas, para Weber, não é
isso. A validade universal da ciência exige que o cientista não projete seus próprios juízos de
valor na investigação em que está empenhado, isto é, que não a contamine com suas
preferências estéticas ou políticas. O fato de que tais preferências se manifestam na orientação
da curiosidade do cientista não exclui a validade universal das ciências históricas e sociológicas,
que devem ser respostas universalmente válidas a questões orientadas legitimamente pelos
nossos interesses e valores, pelo menos em teoria.
Descobrimos assim que as ciências da história e da sociedade cujas características são
analisadas por Weber diferem profundamente das ciências da natureza, embora tenham a
mesma inspiração racional. As características originais e distintivas destas ciências são três:
elas são compreensivas, históricas e se orientam para a cultura.
O termo compreensão no sentido de entendimento, é a tradução clássica do alemão
Verstehen. A ideia de Weber é a seguinte: no domínio dos fenômenos naturais, só podemos
apreender as regularidades observadas por meio de proposições de forma e natureza
matemáticas. Em outras palavras, é preciso explicar os fenômenos por meio de proposições
confirmadas pela experiência, para ter o sentimento de compreendê-las. A compreensão é por
conseguinte mediata, passa por intermediários – conceitos ou relações. No caso da conduta
humana, a compreensão é, num certo sentido, imediata: o professor compreende o
comportamento dos que acompanham suas aulas, o viajante compreende por que o motorista
do táxi para diante do sinal vermelho. Não é necessário constatar quantos motoristas se detêm
diante do sinal vermelho para entender por que razão eles agem assim. A conduta humana tem
uma inteligibilidade intrínseca, que vem do fato de que os homens são dotados de consciência.
Com muita frequência certas relações inteligíveis se tornam imediatamente perceptíveis, entre
atos e objetivos, entre as ações de uma pessoa e as de outra. As condutas sociais têm uma textura
inteligível que as ciências da realidade humana são capazes de apreender. Esta inteligibilidade
não significa que o sociólogo ou o historiador compreendam intuitivamente tais condutas. Pelo
contrário, o cientista social as reconstrói gradualmente, com base em textos e em documentos.
Para o sociólogo, o sentido subjetivo é, ao mesmo tempo, imediatamente perceptível e
equívoco.
A compreensão não implica, no pensamento de Weber, uma faculdade misteriosa,
capacidade exterior ou superior à razão ou aos processos lógicos das ciências da natureza. A
inteligibilidade não é imediata, no sentido de que possamos apreender de súbito, sem qualquer
investigação prévia, o significado da conduta dos outros. Mesmo quando se trata dos nossos
contemporâneos, podemos dar imediatamente uma interpretação de suas ações ou de suas obras,
mas, sem investigação e sem provas não podemos saber qual interpretação é a verdadeira. Em
suma, é mais apropriado falar em inteligibilidade intrínseca do que em inteligibilidade imediata,
lembrando sempre que esta inteligibilidade implica, por essência, uma ambiguidade. O ator
nem sempre conhece os motivos da sua ação; o observador é menos capaz ainda de adivinhá-
los intuitivamente. Precisa investigá-los, para poder distinguir entre o verdadeiro e o verossímil.
A ideia weberiana da compreensão é, em grande parte, tomada da obra de Karl Jaspers,
notadamente dos trabalhos que Jaspers escreveu na juventude sobre a psicopatologia, em
particular o Tratado que Jean-Paul Sartre traduziu em parte. O centro da psicopatologia de
Jaspers reside na distinção entre explicação e compreensão. O psicanalista compreende um
sonho, a relação entre determinada experiência infantil e um certo complexo, o
desenvolvimento de uma neurose. Há portanto, segundo Jaspers, no nível das experiências
vividas, uma compreensão intrínseca dos seus significados. Contudo, existem limites para esta
compreensão. Estamos longe de poder compreender o vínculo entre um certo estado de
consciência e determinado sintoma patológico. Compreende-se uma neurose, mas nem sempre
se compreende uma psicose. Num certo momento a inteligibilidade desaparece dos fenômenos
patológicos. Por outro lado, não se compreende as condutas reflexas. Em termos gerais, pode-
se dizer que as condutas são compreensíveis dentro de certos quadros; fora desses quadros, as
relações entre o estado de consciência e o estado físico ou psicológico deixam de ser
inteligíveis, embora sejam explicáveis.
Esta distinção é, a meu ver, o ponto de partida da ideia weberiana segundo a qual as
condutas sociais oferecem um imenso campo suscetível de uma compreensão, por parte do
sociólogo, comparável à compreensão do psicólogo. É óbvio que a compreensão sociológica
não se confunde com a compreensão psicológica. A esfera autônoma da inteligibilidade social
não abrange a da inteligibilidade psicológica.
Do fato de sermos capazes de compreender resulta que podemos explicar fenômenos
singulares sem a intermediação das proposições gerais. Há um vínculo entre a inteligibilidade
intrínseca dos fenômenos humanos e a orientação histórica destas ciências. Não que elas visem
sempre o que aconteceu uma só vez, e se interessem exclusivamente pelas características
singulares dos fenômenos. Como compreendemos o singular, a dimensão propriamente
histórica assume, nas ciências que têm por objeto a realidade humana, uma importância e um
alcance que ela não pode ter nas ciências da natureza.
Nas ciências da realidade humana deve-se distinguir duas orientações: uma no sentido
da história, do relato daquilo que não acontecerá uma segunda vez, a outra no sentido da
sociologia, isto é, da reconstrução conceitual das instituições sociais e do seu funcionamento.
Estas duas orientações são complementares. Max Weber nunca diria, como Durkheim, que a
curiosidade histórica deve subordinar-se à investigação de generalidades. Quando o objeto do
conhecimento é a humanidade, é legítimo o interesse pelas características singulares de um
indivíduo, de uma época ou de um grupo, tanto quanto pelas leis que comandam o
funcionamento e o desenvolvimento das sociedades.
As ciências que se orientam para a realidade humana são as ciências da cultura, que se
esforçam por compreender ou explicar as obras criadas pelos homens no curso do seu devenir,
não só as obras de arte mas também as leis, as instituições, os regimes políticos, as experiências
religiosas, as teorias científicas. A ciência weberiana se define, assim, como um esforço
destinado a compreender e a explicar os valores aos quais os homens aderiram, e as obras que
construíram.
***
As obras humanas são criadoras de valores, ou se definem por referência a valores.
Como pode existir uma ciência objetiva, isto é, não falseada pelos nossos julgamentos de valor,
obras carregadas de valores? O objetivo específico da ciência é a validade universal. Ela é, para
empregar os conceitos weberianos, uma conduta racional cuja finalidade é atingir julgamentos
de fato, universalmente válidos. Como é possível formular tais julgamentos a propósito de obras
que se definem como criações de valores?
Max Weber respondia a esta questão, que está no centro de toda sua reflexão filosófica
e epistemológica, traçando a distinção entre o julgamento de valor (Werturteil) e a relação com
os valores (Wertbeziehung).
A noção de julgamento de valor é fácil de compreender. O cidadão que considera que
a liberdade é algo essencial, e afirma que a liberdade de expressão e de pensamento é um valor
fundamental, está fazendo um julgamento em que sua personalidade se manifesta. As outras
pessoas estão livres para rejeitar tal julgamento, e achar que a liberdade de expressão não tem
grande importância. Os julgamentos de valor são pessoais e subjetivos; todos têm o direito de
considerar a liberdade como um valor positivo ou negativo, primordial ou secundário; como
um valor que convém salvaguardar antes de tudo, ou que podemos subordinar ou sacrificar a
alguma outra consideração. Por outro lado, a fórmula relação aos valores, significa, para
retomar o exemplo precedente, que o sociólogo da política considerará a liberdade como um
objeto a respeito do qual os sujeitos históricos se debaterão, como aquilo que estava em jogo
nas controvérsias ou nos conflitos entre os homens e os partidos, e que ele irá explorar a
realidade política do passado estabelecendo uma relação entre ela e o valor liberdade. A
liberdade é um ponto de referência para o sociólogo, que nem por isso está obrigado a declarar
seu apreço com relação a ela. Bastar-lhe-á que seja um dos conceitos com a ajuda dos quais vai
delimitar e organizar uma parte da realidade a estudar. Isto implica simplesmente que a
liberdade política seja um valor para os homens que a viveram. Em suma, não formulamos um
julgamento de valor, mas relacionamos a matéria estudada com um valor, que é a liberdade
política.
O julgamento de valor é uma afirmação moral ou vital, a relação aos valores é um
procedimento de seleção e de organização da ciência objetiva. Como professor, Max Weber
queria ser um cientista, e não um político. A distinção entre julgamento de valor e a relação aos
valores lhe permitia ao mesmo tempo marcar a diferença entre a atividade do cientista e a do
político, e a semelhança de interesses entre um e outro.
Esta distinção não é contudo imediatamente óbvia, e coloca vários problemas.
***
Antes de mais nada, por que razão é necessário utilizar este método, e “relacionar a
matéria histórica ou sociológica com valores”? A resposta, em sua forma mais elementar, é que
o cientista, para determinar seu objeto de estudo, está obrigado a fazer uma opção com respeito
à realidade: uma seleção dos fatos e a elaboração de conceitos que exigem um procedimento
do tipo relação aos valores.
Por que é necessário selecionar? A resposta de Max Weber é dupla, e pode situar-se
ora no nível de uma crítica transcendental de inspiração kantiana, ora no de um estudo
epistemológico e metodológico, sem pressupostos filosóficos ou críticos.
No nível da crítica transcendental, a ideia weberiana tem raízes na filosofia do
neokantiano H. Rickert. Para este, o que é dado primordialmente ao espírito humano é uma
matéria informe, que a ciência elabora e constrói. Rickert tinha desenvolvido também a ideia
de que há dois tipos de ciência, conforme a natureza da elaboração a que essa matéria é
submetida. A elaboração característica das ciências da natureza consiste em considerar os
caracteres gerais dos fenômenos e estabelecer relações regulares ou necessárias entre eles. Ela
tende à construção de um sistema de leis ou de relações cada vez mais gerais, tanto quanto
possível de forma matemática. O ideal da ciência natural é a física de Newton ou de Einstein,
na qual os conceitos designam objetos construídos pelo espírito. O sistema é dedutivo e se
organiza a partir de leis ou princípios simples e fundamentais.
Mas existe também um segundo tipo de elaboração científica, característica das
ciências históricas ou das ciências da cultura. Neste caso, o espírito não procura inserir
progressivamente a matéria informe num sistema de relações matemáticas; aplica uma seleção
à matéria relacionando-a a valores. Se um historiador pretendesse contar com todos os detalhes,
com todos os seus caracteres qualitativos, cada um dos atos e dos pensamentos de uma só
pessoa, num só dia, não conseguiria fazê-lo. Alguns romancistas contemporâneos tentaram
registrar os pensamentos que podem cruzar uma consciência durante determinado período de
tempo. Foi o que fez, por exemplo, Michel Butor, no romance La Modification, que se passa
numa viagem entre Paris e Roma. Esta narrativa das aventuras interiores de um singular
indivíduo, durante um só dia, exige um número respeitável de centenas de páginas. Basta
imaginar o trabalho do historiador que pretendesse contar do mesmo modo o que aconteceu em
todas as consciências de todos os soldados que participaram da batalha de Austerlitz para
perceber que esta narrativa impossível exigiria mais páginas do que todos os livros já escritos
sobre todas as épocas da humanidade.
O exemplo, que pertence ao método da experiência mental, mostra bem que pode-se
admitir sem dificuldade que todo relato histórico é uma reconstrução seletiva do que aconteceu
no passado. Esta seleção é predeterminada, em parte, pela seleção operada nos documentos.
Somos incapazes de reconstituir uma grande parte do que aconteceu nos séculos passados pela
simples razão de que os documentos disponíveis não nos permitem conhecer tudo o que
ocorreu. Contudo, mesmo quando os documentos são abundantes, o historiador seleciona em
função do que H. Rickert e Max Weber chamam de valores estéticos, morais ou políticos. Não
tentamos reconstruir tudo o que os homens viveram no passado, tentamos antes reconstruir, a
partir de documentos, sua existência histórica, realizando uma seleção orientada pelos valores
vividos pelos mesmos homens, objeto da história, e pelos valores dos historiadores, sujeitos da
ciência histórica.
Se admitíssemos a ciência como acabada, chegaríamos, no caso das ciências da
natureza, a um sistema hipotético-dedutivo que poderia explicar todos os fenômenos a partir de
princípios, axiomas e leis. Este sistema hipotético-dedutivo não nos permitiria contudo
determinar como e por que, em todos os detalhes concretos, se produziu uma explosão em
determinado momento do tempo e do espaço. Haverá sempre um hiato entre a explicação legal
e o acontecimento histórico concreto.
No caso das ciências da cultura e da história, chega-se não a um sistema hipotético-
dedutivo, mas a um conjunto de interpretações, todas seletivas e inseparáveis do sistema de
valores escolhido. Se cada reconstrução é seletiva, e comandada por um sistema de valores,
haverá tantas perspectivas históricas ou sociológicas quanto sistemas de valores, orientando a
seleção. Passamos assim do nível transcendental para o metodológico, onde se situa o
historiador ou o sociólogo.
Max Weber tomou emprestado a H. Rickert a oposição entre reconstrução
generalizadora e reconstrução singularizante, em função dos valores. O que o interessava nesta
ideia, ele que não era um filósofo profissional, mas um sociólogo, era o fato de que ela lhe
permitia lembrar que uma obra de história ou de sociologia deve seu interesse, em parte, ao
interesse das questões propostas pelo historiador ou sociólogo. As ciências humanas são
animadas e orientadas por questões que os cientistas dirigem à realidade. O interesse das
respostas depende amplamente do interesse das questões. Neste sentido, não é mau que os
sociólogos que estudam a política se interessem pela política, e que os sociólogos da religião
tenham interesse pela religião.
Max Weber pretendia superar deste modo uma antinomia bem conhecida: o cientista
que se apaixona pelo objeto da sua investigação não será nem imparcial nem objetivo. Mas
quem estima que a religião só se compõe de superstição corre o risco de nunca compreender
em profundidade a vida religiosa. Distinguindo assim as perguntas e as respostas, Weber
encontra uma saída: é preciso ter o senso do interesse daquilo que os homens viveram para
compreendê-los autenticamente; mas é preciso distanciar-se do próprio interesse para encontrar
uma resposta universalmente válida a uma questão inspirada pelas paixões do homem histórico.
***
As questões a partir das quais Max Weber elaborou uma sociologia da religião, da
política e da sociedade atual foram de ordem existencial. Têm a ver com a existência de cada
um de nós, com relação à vida em sociedade, à verdade religiosa ou metafísica. Max Weber
perguntou-se quais as regras a que obedece o homem de ação, quais as leis da vida política, que
sentido o homem pode dar a sua existência neste mundo. Qual é a relação entre a concepção
religiosa de cada pessoa e a maneira como vive, sua atitude em relação à economia, ao Estado?
A sociologia weberiana se inspira numa filosofia existencialista que propõe uma dupla negação:
Nenhuma ciência poderá dizer aos homens como devem viver, ou ensinar às
sociedades como se devem organizar. Nenhuma ciência poderá indicar à humanidade qual é o
seu futuro. A primeira negação o opõe a Durkheim, a segunda, a Marx.
Uma filosofia do tipo marxista é falsa porque é incompatível com a natureza da ciência
e da existência humana. Toda ciência histórica e social representa um ponto de vista parcial; é
incapaz de prever o futuro, pois este não é pré-determinado. Na medida em que alguns
acontecimentos futuros são pré-determinados, o homem terá sempre a liberdade, seja de recusar
este determinismo parcial, seja de se adaptar a ele de diferentes maneiras.
***
A distinção entre julgamento de valor e relação aos valores coloca, portanto, duas
outras questões fundamentais:
Na medida em que a seleção e a construção do objeto da ciência dependem das
questões propostas pelo observador, os resultados científicos estão aparentemente relacionados
com a curiosidade do cientista, e portanto com o contexto histórico em que este se situa. Ora, o
objetivo da ciência é chegar a julgamentos universalmente válidos. De que forma uma ciência
orientada por questões que se modificam pode, a despeito de tudo, alcançar uma validade
universal?
Por outro lado (e este ponto é, ao contrário do precedente, filosófico e não
metodológico), por que os julgamentos de valor são, em essência, não universalmente válidos?
Por que são subjetivos ou existenciais, necessariamente contraditórios?
O ato científico, enquanto conduta racional, se orienta pelo valor da verdade
universalmente válida. Ora, a elaboração científica começa por uma escolha que só tem
justificação subjetiva. Quais são, portanto, os procedimentos que permitem para além desta
escolha subjetiva garantir a validade universal dos resultados da ciência?
A maior parte da obra metodológica de Max Weber tem por objetivo responder a esta
dificuldade. Muito esquematicamente, sua resposta é que os resultados científicos devem ser
obtidos, a partir de uma escolha subjetiva, por procedimentos sujeitos a verificação, que se
imponham a todos os espíritos. Esforça-se por demonstrar que a ciência histórica é racional,
demonstrativa; que só procura enunciar proposições do tipo científico, sujeitas a confirmação.
Nas ciências históricas ou sociológicas a intuição não tem um papel diferente do que
desempenha nas ciências naturais. As proposições históricas ou sociológicas são proposições
de fato, que não tendem, de modo algum, a atingir verdades essenciais. Max Weber diria [...]
que os que pretendem apreender a essência de um determinado fenômeno vão além da ciência.
As proposições históricas e sociológicas tratam dos fatos observáveis, e visam atingir uma
realidade definida, a conduta dos homens, na significação que lhes dão os próprios atores.
[...] Max Weber considera a sociologia uma ciência da conduta humana na medida em
que esta conduta é social. [...] Ele dá ênfase ao conceito de significação vivida, ou de sentido
subjetivo. Sua ambição é compreender como os homens puderam viver em sociedades diversas,
em função de crenças diferentes; como, segundo as épocas, se dedicaram a esta ou àquela
atividade, depositando suas esperanças ora neste mundo ora no outro mundo, ora obcecados
pela salvação, ora pelo crescimento econômico.
Cada sociedade tem sua cultura, no sentido que os sociólogos norte-americanos dão
ao termo, isto é, um sistema de crenças e de valores. O sociólogo se esforça para compreender
como os homens viveram inumeráveis formas de existência, que só se tornam inteligíveis à luz
do sistema próprio de crenças e de conhecimentos de cada sociedade considerada.
WEBER – ECONOMIA E SOCIEDADE*
Raymond Aron
*
ARON, Raymond. “Max Weber”. In: As etapas do pensamento sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 1993,
p.509 a 522.
A ação social se organiza em relação social (soziale Beziehung). Há uma relação
social quando o sentido de cada ator, de um grupo de atores que age, se relaciona com a atitude
do outro, de modo que suas ações são mutuamente orientadas. O professor e seus alunos vivem
uma relação social.
Se as condutas de vários atores se orientam regularmente umas com relação a outras,
é preciso que algo determine a regularidade de tais relações sociais. Diz-se que há costume
(Brauch) quando tal relação social é regular, e que há hábito (Sitten) quando a origem dessa
relação é uma longa tradição que a transforma numa segunda natureza. Max Weber emprega o
termo eingeleitet: um costume, por assim dizer, penetra na vida. A tradição se torna uma forma
espontânea de agir.
Neste ponto da análise surge a noção de probabilidade. Quer se trate de costume ou
de hábito, a regularidade não é absoluta. Pode-se dizer que é costume nas universidades os
estudantes não tumultuarem as aulas; portanto, é provável que a palavra do professor encontre
alunos silenciosos, mas esta probabilidade não é uma certeza. Mesmo no caso das universidades
francesas, onde em geral os estudantes ouvem passivamente, não poderíamos dizer, como uma
afirmação de fato, que durante uma hora só o professor fale.
***
O conceito de ordem legítima intervém, logo depois da noção de relação regular. A
regularidade da relação social pode ser apenas o resultado de um longo hábito, mas é mais
frequente que haja fatores suplementares: a convenção ou o direito. A ordem legítima é
convencional quando a sanção que responde à sua violação é uma desaprovação coletiva. É
jurídica quando esta sanção assume a forma de coerção física. Os termos convenção e direito
são definidos pela natureza da sanção correspondente, como em Durkheim.
As ordens legítimas (legitime Ordnung) podem ser classificadas de acordo com as
motivações dos que obedecem. Weber distingue quatro tipos, que lembram os quatro tipos de
ação, mas não são exatamente os mesmos: as ordens são afetivas ou emocionais, racionais
com relação a valores, religiosas e, finalmente, determinadas pelo interesse. As ordens
legítimas determinadas pelo interesse são racionais com relação a um objetivo; as ordens
determinadas pela religião são chamadas tradicionais, o que põe em evidência a afinidade entre
religião e tradição, pelo menos numa certa fase da evolução histórica, pois o profetismo e a
racionalização religiosa nele originada são frequentemente revolucionários.
Da ordem legítima Max Weber passa ao conceito de combate (Kampf) que, desde o
início da análise, tem um sentido evidente. Ao contrário do que alguns sociólogos se inclinam
a crer, as sociedades não são conjuntos harmoniosos. [...] Para Max Weber, as sociedades são
feitas tanto de lutas como de acordos. O combate é uma relação social fundamental. Num duelo,
a ação de cada duelista está orientada para a ação do outro. A orientação recíproca das condutas
é, neste caso, ainda mais necessária do que num acordo, pois o que está em jogo é a própria
existência dos combatentes. A relação social do combate se define pela vontade de cada um dos
atores de impor-se ao outro, malgrado sua resistência. Quando o combate não comporta o uso
da força física, chama-se concorrência. Quando seu objetivo é a própria sobrevivência dos
atores, nós o chamamos de seleção (Auslese).
***
Os conceitos de relação social e de combate permitem, numa etapa subsequente da
conceituação, passar à própria constituição dos grupos sociais. O processo de integração dos
atores pode levar à criação de uma sociedade ou de uma comunidade. A distinção entre estes
dois processos (Vergesellschaftung e Vergemeinschaftung) é a seguinte:
Quando o resultado do processo de integração é uma comunidade (Gemeinschaft), o
fundamento do grupo é um sentimento de pertencimento experimentado pelos participantes,
cuja motivação pode ser afetiva ou tradicional. Se este processo de integração leva a uma
sociedade (Gesellschaft), isto se deve ao fato de que a motivação das ações sociais se constitui
de considerações ou ligações de interesses, ou leva a um acerto de interesses. Uma sociedade
comercial por ações, ou um contrato, são integrações racionais, com relação a um objetivo. O
processo de integração social ou comunitário resulta no agrupamento (Verband). O grupo pode
ser aberto ou fechado se a entrada nele for estritamente reservada ou, ao contrário, acessível a
todos ou quase todos. O agrupamento acrescenta às sociedades ou às comunidades um órgão
de administração (Verwaltungsstab) e uma ordem regulamentar.
Depois do agrupamento vem a empresa (Betrieb). Esta se caracteriza pela ação
contínua de vários atores, e pela racionalidade com vistas a um fim. Um agrupamento de
empresa (Betriebverband) é uma sociedade com um órgão de administração, com vistas a uma
ação racional. A combinação dos conceitos de agrupamento e de empresa mostra bem como
progride a conceituação weberiana. O agrupamento comporta um órgão especializado de
administração, a empresa introduz as duas noções de ação contínua e de ação racional com
vistas a um fim. Combinando as duas noções, obtém-se um grupo de empresa, sociedade sujeita
a um órgão de administração e que exerce uma ação contínua e racional.
Max Weber define ainda alguns conceitos-chave, na sua reconstrução da ação social.
Os dois primeiros são os de associação (Verein) e instituição (Anstalt). Na associação, a
regulamentação é aceita consciente e voluntariamente pelos participantes; na instituição ela é
imposta por decretos aos quais os participantes devem submeter-se.
***
Dois outros conceitos importantes são os de poder (Macht) e de dominação
(Herrschaft). O poder é definido simplesmente como a probabilidade de um ator impor sua
vontade a outro, mesmo contra a resistência deste. Situa-se portanto dentro de uma relação
social, e indica a situação de desigualdade que faz com que um dos atores possa impor sua
vontade ao outro. Estes atores podem ser grupos – por exemplo, Estados – ou indivíduos. A
dominação (Herrschaft) é a situação em que há um senhor (Herr); pode ser definida pela
probabilidade que tem o senhor de contar com a obediência dos que, em teoria, devem obedecê-
lo. A diferença entre poder e dominação está em que, no primeiro caso, o comando não é
necessariamente legítimo, nem a obediência forçosamente um dever; no segundo, a obediência
se fundamenta no reconhecimento, por aqueles que obedecem, das ordens que lhes são dadas.
As motivações da obediência permitirão portanto construir uma tipologia da dominação. Para
passar do poder e da dominação para a realidade política, é preciso acrescentar a ideia de
agrupamento político (politischer Verband). O agrupamento político contém as noções de
território, de continuidade do agrupamento e de ameaça de aplicação da força física para impor
respeito às ordens ou às regras. Entre os agrupamentos políticos, o Estado é a instância que
dispõe do monopólio da coerção física.
Weber introduz, por fim, um último conceito: o de grupo hierocrático, ou sagrado
(hierokratischer Verband). É o agrupamento no qual a dominação pertence aos que detêm os
bens sagrados, e podem dispensá-los. [...] Quando o poder recorre ao sagrado, e o poder
temporal e o espiritual se confundem, a obediência é imposta menos pela coerção física do que
pela posse das receitas de salvação. Se o poder distribui os bens dos quais os indivíduos esperam
a redenção, é ele que possui, para cada um e para todos, o segredo da vida feliz neste mundo ou
no outro.
[...]
***
Os tipos de dominação são em número de três: racional, tradicional e carismática. A
tipologia se fundamenta portanto no caráter próprio da motivação que comanda a obediência.
Racional é a dominação baseada na crença na legalidade da ordem e dos títulos dos que exercem
a dominação. Tradicional é a dominação fundamentada na crença do caráter sagrado das
tradições antigas, e na legitimidade dos que são chamados pela tradição a exercer a autoridade.
Carismática é a dominação que se baseia no devotamento fora do cotidiano, justificado pelo
caráter sagrado ou pela força heroica de uma pessoa e da ordem revelada ou criada por ela.
Os exemplos destes três tipos de dominação são abundantes. O agente tributário nos
faz obedecer porque acreditamos na legalidade dos títulos que lhe permite enviar-nos
documentos de cobrança fiscal. Sua dominação é, portanto, racional. De modo geral, o conjunto
da gestão administrativa das sociedades modernas, quer se trate da regulamentação da
circulação dos automóveis, dos exames universitários, ou do fisco, comporta uma dominação
tal de homens sobre outros homens que estes se submetem às ordens legais ou aos intérpretes e
executantes da própria legalidade e não a indivíduos isolados. A ilustração da dominação
tradicional é menos fácil de encontrar nas sociedades modernas, mas se a Rainha da Inglaterra
exercesse ainda um poder efetivo, o fundamento desta dominação seria o longo passado e a
crença na legitimidade da sua autoridade, cuja origem remonta a muitos séculos. Hoje, resta
apenas a aparência desta dominação. Os homens continuam a respeitar o detentor desse poder
tradicional, mas de fato não têm oportunidade de o obedecer. As leis são promulgadas, em nome
da Rainha, mas não é ela que determina o conteúdo. Hoje, nos países que conservaram a
monarquia, a dominação tradicional é meramente simbólica.
Podemos encontrar nos nossos dias, contudo, muitos exemplos do poder carismático.
Lenin exerceu durante alguns anos uma dominação carismática, que não se baseava na
legalidade ou em antigas tradições, mas no devotamento dos homens, convencidos da virtude
incomum daquele que se propunha convulsionar a ordem social. Hitler e o General de Gaulle
são outros exemplos, embora tão opostos, de chefes carismáticos segundo a definição
weberiana. O próprio de Gaulle acentuou o caráter carismático da sua dominação nas
circunstâncias em que, tendo que escolher entre apelar para a legitimidade eleitoral e apelar
para o 18 de junho de 1940, ele escolheu a segunda alternativa. Em abril de 1961, para exigir
obediência contra os generais rebeldes da Argélia, voltou a envergar o uniforme de General de
Brigada de junho de 1940, dirigindo-se aos oficiais e aos soldados não como Presidente da
República eleito por um congresso mas como o general de Gaulle, que há vinte anos
representava a legitimidade nacional. Quando um homem declara encarnar a legitimidade
nacional durante dois decênios, sua dominação não pertence mais à ordem racional, como não
pertence à ordem tradicional (o general de Gaulle não nasceu numa família real reinante), é
carismático.
O chefe está fora do cotidiano, do mesmo modo que está fora do cotidiano o
devotamento que os homens consagram a esta personalidade heroica e exemplar.
Como é natural, estes três tipos de dominação pertencem a uma classificação
simplificada. Max Weber esclarece que a realidade é sempre uma mistura ou confusão desses
três tipos puros.
[...]
***
De qualquer forma, esta tipologia da dominação permite a Max Weber entrar na
casuística conceitual dos tipos de dominação. Partindo da noção de dominação racional, ele
analisa as características da organização burocrática. Tomando como ponto de partida a noção
de dominação tradicional, acompanha o seu desenvolvimento e diferenciação progressiva:
dominação gerontocrática, patriarcal, patrimonial. Esforça-se por demonstrar como é possível
passar da definição simplificada de uma forma de dominação para a infinita diversidade das
instituições historicamente observadas, mediante a discriminação de diferentes modos. A
diversidade histórica se torna então inteligível, porque deixa de parecer arbitrária.
Desde que existem homens que refletem sobre as instituições sociais a primeira
surpresa é causada pela existência do outro. De fato, vivemos numa sociedade, mas há outras
sociedades; uma certa ordenação política ou religiosa nos parece evidente, ou sagrada, e há
outras ordens. Podemos reagir a esta descoberta pela afirmação agressiva ou ansiosa da validade
absoluta da nossa ordem, e a desvalorização simultânea de todas as outras. A sociologia começa
com o reconhecimento desta diversidade e com a vontade de compreendê-la, o que não implica
que todas as modalidades de ordem social se situem no mesmo nível de valor, mas apenas que
todas são inteligíveis porque exprimem a mesma natureza humana e social. A política de
Aristóteles tornou inteligível a diversidade de regimes das cidades gregas; a sociologia política
de Max Weber tenta fazer o mesmo no contexto da história universal. Aristóteles se interrogava
a respeito das dificuldades que cada regime precisava resolver, e as perspectivas de
sobrevivência e prosperidade de cada um. Max Weber pergunta qual é a evolução provável,
possível ou necessária de um tipo de dominação.
A análise das transformações da dominação carismática é exemplar. Esta forma de
dominação tem, na sua origem, algo que está fora do cotidiano (ausseralltäglich). Possui
portanto, em si mesma, alguma coisa de precário, porque os homens não podem viver de forma
duradoura fora do cotidiano, e porque tudo o que é incomum inevitavelmente se desgasta.
Ocorre, em consequência, um processo estreitamente ligado à dominação carismática: o retorno
do poder carismático à vida cotidiana (Veralltaglichung deo Charismas). A dominação
fundamentada nas qualidades excepcionais de um homem pode sobreviver a esse homem? Todo
regime marcado pela origem carismática do seu líder supremo não pode deixar de ser
confrontado com a questão da sobrevivência e da herança. Max Weber se volta assim para uma
tipologia dos métodos pelos quais se resolve o problema mais importante da dominação
carismática que é o da sucessão.
Pode haver uma procura organizada de outro portador do carisma, como na teocracia
tibetana tradicional. Os oráculos e o apelo ao julgamento divino podem ser utilizados também
para institucionalização do excepcional. O chefe carismático pode escolher pessoalmente seu
sucessor, mas e preciso que este seja aceito pela comunidade dos fiéis. O sucessor pode ser
selecionado igualmente pelo estado-maior do chefe carismático, e depois reconhecido pela
comunidade. Pode-se admitir que o carisma é inseparável do sangue, tornando-se hereditário
(Erbcharisma). A dominação carismática leva neste caso à dominação tradicional. A graça de
uma pessoa se torna propriedade de uma família. Finalmente, o carisma pode ser transmitido
de acordo com certos processos mágicos ou religiosos. A coroação dos reis da França
representava a transmissão da graça; desse modo, ela passava a pertencer a uma família, e não
a um homem.
Este exemplo simples ilustra bem o método e o sistema de Max Weber. Seu objetivo
é sempre o mesmo. Trata-se de identificar a lógica das instituições humanas e de compreender
as singularidades das instituições, sem com isto renunciar ao uso dos conceitos. Trata-se de
elaborar uma sistematização flexível que permita ao mesmo tempo integrar fenômenos diversos
num quadro contextual único e não eliminar o que constitui a singularidade de cada regime ou
de cada sociedade.
Esta forma de conceituação leva Max Weber a perguntar qual é a influência exercida
pelo modo de dominação sobre a organização e a racionalidade da economia; qual a relação
entre um tipo de economia e um tipo de direito. Em outras palavras, a conceitualização não tem
só por fim uma compreensão mais ou menos sistemática, mas também a colocação dos
problemas de causalidade ou das influências recíprocas dos diferentes setores do universo
social. A categoria que domina esta análise causal é a de oportunidade ou de influência e de
probabilidade. Um tipo de economia influencia o direito num certo sentido; é provável que um
tipo de dominação se manifeste na administração ou no direito de uma certa maneira. Mas não
há, nem pode haver, causalidade unilateral de uma série de instituições particulares sobre o
resto da sociedade. Neste sentido, o método weberiano pode ser admirado ou criticado, pois
multiplica as relações parciais e não acrescenta aquilo que os filósofos chamam hoje de
totalização. No estudo sociológico das religiões, Max Weber se esforçou por reconstruir o
conjunto de uma maneira de viver e pensar o mundo. Ele não ignorava a necessidade de inserir
cada elemento de uma existência ou de uma sociedade num conjunto. Contudo, em Economia
e Sociedade analisa as relações entre os setores e, por isso, multiplica as relações parciais sem
reconstruir a totalidade. Parece-me que Max Weber poderia justificar-se afirmando que não
excluía outros métodos, e que, no nível da generalidade conceitual em que se situa sua análise,
era impossível identificar relações causais comportando uma rigorosa necessidade, e que era
impossível também reconstruir a totalidade de uma sociedade particular, ou de um regime
político singular, porque o objetivo procurado é a apreensão dos diferentes aspectos de tais
totalidades, com a ajuda dos conceitos.
***
A sociologia política de Max Weber é inseparável da realidade histórica em que viveu.
Politicamente, Weber era, na Alemanha de Guilherme II, um nacional-liberal. Weber foi um
nacional-liberal, mas não um liberal no sentido norte-americano. Ele não era propriamente um
democrata no sentido francês, inglês ou norte-americano. Punha acima de tudo a grandeza da
nação e o poder do Estado. Indubitavelmente, estimava as liberdades a que aspiram os liberais
do velho continente. Sem um mínimo de direitos individuais, escreveu, não poderíamos mais
viver. Não acreditava, porém, na vontade geral ou no direito dos povos de dispor de si mesmos,
nem na ideologia democrática. Se desejava uma “parlamentarização” do regime alemão, era
para aprimorar a qualidade dos líderes, e não por princípio. Pertencia à geração pós-
bismarckiana, que se propunha como tarefa primordial a manutenção da herança do fundador
do Império alemão, e como segunda tarefa o acesso da Alemanha à política mundial
(Weltpolitik). Não era um desses sociólogos (como Durkheim) que acreditavam que as funções
militares dos Estados eram anacrônicas. Acreditava na permanência dos conflitos entre as
grandes potências e esperava que a Alemanha unificada ocupasse um lugar importante no
cenário mundial. Só levava em conta as questões sociais da atualidade tomando como referência
o objetivo supremo da grandeza do Reich. Weber foi um adversário apaixonado de Guilherme
II, a quem atribuiu, durante a guerra de 1914, a principal responsabilidade pelas desgraças que
se abateram sobre sua pátria. Na mesma época, esboçou um projeto de reforma das instituições
cujo objetivo era a “parlamentarização” do regime alemão. Atribuía a mediocridade da
diplomacia do II Reich ao sistema de recrutamento dos ministros e à ausência de vida
parlamentar.
Pensava Weber que a dominação burocrática caracteriza todas as sociedades
modernas e constitui um setor importante de qualquer regime, mas o funcionário não foi feito
para impulsionar o Estado ou para exercer funções propriamente políticas, e sim para aplicar os
regulamentos de acordo com os precedentes. Formou-se na disciplina, não na iniciativa e na
luta e, por isto, será normalmente um mau ministro. O recrutamento dos políticos implica regras
diferentes das que se aplicam ao recrutamento dos burocratas. Por isso, Max Weber desejava a
transformação do regime alemão no sentido parlamentar. As assembleias dariam oportunidade
de aparecerem melhores líderes, isto é, de líderes melhor formados para a batalha política do
que aqueles que só escolhiam um imperador ou que ocupavam funções no alto da hierarquia
administrativa.
O regime alemão comportava um elemento tradicional, o Imperador, e um elemento
burocrático, a administração. Faltava-lhe o elemento carismático. Observando as democracias
anglo-saxãs, Max Weber imaginava um líder político carismático que, como chefe partidário,
adquirisse na luta as qualidades sem as quais não há estadista, a saber, a coragem de decidir, a
audácia de inovar, a capacidade de despertar a fé e de conseguir a obediência. Este sonho de
um líder carismático foi vivido pela geração que sucedeu à de Max Weber. Mas, evidentemente,
este não teria reconhecido seu sonho na realidade alemã de 1933-1945.
***
A sociologia política de Weber leva a uma interpretação da sociedade presente, como
sua sociologia da religião conduz a uma interpretação das civilizações contemporâneas. O que
singulariza o universo em que vivemos é o “desencantamento” do mundo. A ciência nos habitua
a ver a realidade exterior apenas como conjunto de forças cegas que podemos pôr à nossa
disposição; nada resta dos mitos e das divindades com que o pensamento selvagem povoava o
universo. Nesse mundo despojado desses encantamentos, e cego, as sociedades se desenvolvem
no sentido de uma organização cada vez mais racional e burocrática.
Sabemos que uma obra só é realmente científica quando pode e deve ser ultrapassada.
Daí o caráter patético de uma vida dedicada à pesquisa que, mesmo no caso de êxito, está
condenada a não encontrar toda a verdade. Jamais chegaremos ao ponto final do nosso esforço
renovado; nunca teremos resposta definitiva às perguntas que consideramos mais importantes.
Por outro lado, quanto mais racional a sociedade, mais cada um de nós está condenado
ao que os marxistas chamam de alienação. Sentimo-nos sujeitos a um conjunto que vai além de
nós, condenados a só realizar uma parte daquilo que poderíamos ser; condenados a exercer,
toda a nossa vida, uma ocupação limitada sem outra esperança de grandeza senão a de aceitar
tal limitação.
Desde logo, o que é preciso salvaguardar antes de tudo, dizia Max Weber, são os
direitos humanos que dão a cada indivíduo a possibilidade de viver uma existência autêntica,
independente do lugar que ocupa na organização racional. Do ponto de vista político, é a
margem de livre competição graças à qual se afirma a personalidade, e podem ser escolhidos
os líderes verdadeiros, e não meros burocratas.
Além da racionalização científica do mundo, precisamos reservar os direitos de uma
religião puramente interior. Além da racionalização burocrática, é preciso salvaguardar a
liberdade de consciência e o confronto das pessoas. Sem suprimir as desigualdades entre os
indivíduos e entre as classes, o socialismo marcaria – se se transformasse de utopia em realidade
– uma etapa do processo de burocratização integral.
A conclusão weberiana procede da análise existencial da incompatibilidade dos
valores e da luta entre os deuses. O mundo é racionalizado pela ciência, pela administração e
pela gestão rigorosa dos empreendimentos econômicos, mas continua a luta entre as classes, as
nações e os deuses. Como não há um árbitro, ou um juiz, só existe uma atitude adequada à
dignidade: a escolha solitária de cada um de nós, diante da sua consciência. Pode ser que a
última palavra desta atitude filosófica seja a de engajamento. Max Weber dizia: escolha e
decisão (Entscheidung). A decisão era menos a escolha entre dois partidos do que o
engajamento em favor de um deus que podia ser um demônio.
A CIÊNCIA COMO VOCAÇÃO*
Max Weber
[...]
Devemos deixar clara uma coisa: que a decisão sobre os destinos acadêmicos seja, em
proporção tão grande, um “acaso”, não se deve apenas à insuficiência da seleção pela formação
coletiva da vontade. Todo jovem que se sente atraído pela erudição deve compreender
claramente que a tarefa à sua frente tem um aspecto duplo. Deve ter qualidades não só como
erudito, mas também como professor. E os dois aspectos não coincidem. Pode-se ser um
intelectual de destaque e ao mesmo tempo um professor abominavelmente ruim. [...]
A situação, porém, é tal que as universidades alemãs, especialmente as pequenas
universidades, estão empenhadas numa competição ridícula em busca de alunos. Os hoteleiros
das cidades universitárias celebram a chegada do milésimo estudante com uma festa e gostariam
de comemorar a chegada do número 2.000 com uma passeata de tochas. O interesse pelas
anuidades – devemos declará-lo francamente – é afetado pelas nomeações nos campos que
“atraem alunos”. E, à parte isso, o número de alunos matriculados é uma prova de qualificação,
que pode ser vista em termos de números, ao passo que a qualificação pela competência
universitária é imponderável. Esta, o que é muito natural, é frequentemente contestável,
precisamente aos inovadores audaciosos. Quase todos são, assim, afetados pela obsessão com
as vantagens imensuráveis que isso importa da grande frequência de alunos. Dizer de um
docente que é mau professor e, habitualmente, pronunciar uma sentença de morte acadêmica,
mesmo que ele seja o mais destacado erudito do mundo. E a questão de ser ele bom professor
ou não é determinada pelo número de alunos que condescendem em frequentar-lhe o curso.
A afluência ou não de alunos a um curso é determinada em grande parte – parte maior do
que se acreditaria ser possível – por elementos exclusivamente externos: temperamento e
mesmo a inflexão de voz do professor. Depois de um a boa experiência e sóbria reflexão, tenho
profunda desconfiança dos cursos que atraem multidões, por mais inevitáveis que sejam. A
democracia só deve ser usada quando for adequada. O preparo científico, e tal como devemos
praticá-lo de acordo com a tradição das universidades alemãs, é assunto de um a aristocracia
intelectual, e não devemos ocultar a nós mesmos tal fato. Na verdade, é certo que apresentar os
problemas científicos de modo que uma mente não-instruída, mas receptiva, os possa
compreender e – o que para nós é decisivo – possa vir a refletir sobre eles de forma
*
WEBER, Max. “A ciência como vocação”. In: Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: LTC, 1982, p.154-183.
independente, talvez seja a tarefa pedagógica mais difícil de todas. Mas se essa tarefa é ou não
realizada não será o número de alunos que o demonstrará. E – voltando ao nosso tema – essa
arte mesma é um dom pessoal e de modo algum coincide com as qualificações científicas do
universitário.
Em contraste com a França, a Alemanha não tem uma academia de “imortais” da ciência.
Segundo as tradições alemãs, as universidades fazem justiça às exigências tanto da pesquisa
quanto do ensino. Se as duas habilidades se conjugam num homem, é uma questão puramente
ocasional. Daí ser a vida acadêmica um acaso louco. Se o jovem estudioso pede meu conselho
sobre a habilitação, é difícil arcar com a responsabilidade de encorajá-lo. Se ele for judeu, então,
diremos lasciate ogni speranza. Mas devemos perguntar aos demais: você acredita, em sã
consciência, que pode ver mediocridade atrás de mediocridade, ano após ano, passar à sua
frente, sem se amargurar e sem sofrer? Naturalmente, recebemos sempre a resposta: “É claro,
vivo apenas para a minha vocação”. Não obstante, comprovei que poucos homens podem
suportar essa situação sem ressentimento.
Julguei necessário dizer tudo isso sobre as condições externas da vocação do homem
universitário. Mas acredito que na realidade desejais ouvir algo diverso, ou seja, a vocação
íntima para a ciência. Em nossa época, a situação interna, em contraste com a organização da
ciência como vocação, é em primeiro lugar condicionada pelos fatos de que a ciência entrou
numa fase de especialização antes desconhecida e que isto continuará. Não só externamente,
mas também interiormente, a questão está num ponto em que o indivíduo só pode adquirir a
consciência certa de realizar algo verdadeiramente perfeito no caso de ser um especialista
rigoroso.
Todo o trabalho que se estende pelos campos correlatos, que ocasionalmente
empreendemos e que os sociólogos devem, necessariamente, realizar repetidamente, é onerado
pela compreensão resignada de que, na melhor das hipóteses, proporcionamos ao especialista
questões úteis, às quais não chegaria de seu próprio ponto de vista especializado. Nosso próprio
trabalho deve, inevitavelmente, continuar altamente imperfeito. Somente pela especialização
rigorosa pode o trabalhador científico adquirir plena consciência, de uma vez por todas, e talvez
não tenha outra oportunidade em sua vida, de ter realizado alguma coisa duradoura. Uma
realização verdadeiramente definitiva e boa é, hoje, sempre uma realização especializada. E
quem não tiver a capacidade de colocar antolhos, por assim dizer, e chegar à ideia de que a sorte
de sua alma depende de fazer ou não a conjetura correta, neste trecho deste manuscrito, bem
pode manter-se longe da ciência. Jamais terá o que podemos chamar de “experiência pessoal”
da ciência. Sem essa estranha embriaguez, ridicularizada por todos os que vivem fora do
ambiente; sem esta paixão, esta afirmação de que “milhares de anos devem passar antes que
ingresseis na vida e milhares mais esperam em silêncio” – segundo se tenha ou não êxito em
fazer essa conjetura; sem isso, não haverá vocação para a ciência e seria melhor que vos
dedicásseis a qualquer outra coisa. Pois nada é digno do homem como homem, a menos que ele
possa empenhar-se na sua realização com dedicação apaixonada.
[...]
***
O progresso científico é uma fração, a mais importante, do processo de intelectualização
que estamos sofrendo há milhares de anos e que hoje em dia é habitualmente julgado de forma
tão extremamente negativa. Vamos esclarecer, primeiro, o que significa praticamente essa
racionalização intelectualista, criada pela ciência e pela tecnologia orientada cientificamente.
Significará que nós, hoje, por exemplo, sentados neste auditório, temos maior
conhecimento das condições de vida em que existimos do que um índio americano ou um
hotentote? Dificilmente. A menos que seja um físico, quem anda num bonde não tem ideia de
como o carro se movimenta. E não precisa saber. Basta-lhe poder “contar” com o
comportamento do bonde e orientar a sua conduta de acordo com essa expectativa; mas nada
sabe sobre o que é necessário para produzir o bonde ou movimentá-lo. O selvagem tem um
conhecimento incomparavelmente maior sobre as suas ferramentas. Quando gastamos dinheiro
hoje tenho certeza que, até mesmo se houver colegas de Economia Política neste auditório, cada
um deles terá uma diferente resposta pronta para a pergunta: como é possível comprar algum a
coisa com dinheiro – por vezes mais, por vezes menos? O selvagem sabe o que faz para
conseguir sua alimentação diária e que instituições lhe servem nessa empresa. A crescente
intelectualização e racionalização não indicam, portanto, um conhecimento maior e geral das
condições sob as quais vivemos.
Significa mais alguma coisa, ou seja, o conhecimento ou crença em que, se quiséssemos,
poderíamos ter esse conhecimento a qualquer momento. Significa principalmente, portanto,
que não há forças misteriosas incalculáveis, mas que podemos, em princípio, dominar todas as
coisas pelo cálculo. Isto significa que o mundo foi desencantado. Já não precisamos recorrer
aos meios mágicos para dominar ou implorar aos espíritos, como fazia o selvagem, para quem
esses poderes misteriosos existiam. Os meios técnicos e os cálculos realizam o serviço. Isto,
acima de tudo, é o que significa a intelectualização.
[...]
***
Hoje, falamos habitualmente da ciência como “livre de todas as pressuposições”. Haverá
tal coisa? Depende do que entendermos por isso. Todo trabalho científico pressupõe que as
regras da lógica e do método são válidas; são as bases gerais de nossa orientação no mundo; e,
pelo menos para nossa questão especial, essas pressuposições são o aspecto menos
problemático da ciência. A ciência pressupõe, ainda, que o produto do trabalho científico é
importante no sentido de que “vale a pena conhecê-lo”. Nisto estão encerrados todos os nossos
problemas, evidentemente. Pois esta pressuposição não pode ser provada por meios científicos
– só pode ser interpretada com referência ao seu significado último, que devemos rejeitar ou
aceitar, segundo a nossa posição última em relação à vida.
Além disso, a natureza da relação do trabalho científico e suas pressuposições varia muito,
segundo a estrutura destas. As Ciências Naturais, por exemplo, a Física, a Química, a
Astronomia, pressupõem como auto evidente o fato de que vale a pena conhecer as leis últimas
dos acontecimentos cósmicos, na medida em que a ciência pode formulá-las. Isso ocorre não
só porque com esse conhecimento podemos alcançar resultados técnicos, mas pela própria
fruição do conhecimento, se a sua busca for uma “vocação”. Não obstante, essa pressuposição
não pode de modo algum ser provada. E menos ainda se pode provar que vale a pena a existência
do mundo que essas ciências descrevem, que ela tem qualquer “significado”, ou que há sentido
em viver nesse mundo. A ciência não procura resposta para essas questões.
Vejamos a Medicina moderna, uma tecnologia prática que está cientificamente muito
desenvolvida. A “pressuposição” geral da Medicina é apresentada trivialmente na afirmação de
que a Ciência Médica tem a tarefa de manter a vida como tal e diminuir o sofrimento na medida
máxima de suas possibilidades. Não obstante, isso é problemático. Com seus meios, o médico
preserva a vida dos que estão mortalmente enfermos, mesmo que o paciente implore a sua
libertação da vida, mesmo que seus parentes, para quem a vida do paciente é indigna e para
quem o custo de manter essa vida indigna se torna insuportável, lhe assegurem a redenção do
sofrimento. Talvez se trate de um pobre lunático, cujos parentes, quer o confessem ou não,
desejam, e devem desejar, sua morte. Não obstante, as pressuposições da Medicina, e do código
penal, impedem ao médico suspender seus esforços terapêuticos. Se a vida vale a pena ser
vivida e quando – esta questão não é indagada pela Medicina. A Ciência Natural nos dá uma
resposta para a questão do que devemos fazer se desejamos dominar a vida tecnicamente. Deixa
totalmente de lado, ou faz as suposições que se enquadram nas suas finalidades, se devemos e
queremos realmente dominar a vida tecnicamente e se, em última análise, há sentido nisso.
Vejamos uma disciplina como a Estética. O fato de que existem obras de arte é aceito sem
crítica pela Estética, que busca estabelecer em que condições tal fato existe, mas não suscita a
questão de ser talvez o campo da arte um campo de grandiosidade diabólica, um campo deste
mundo e portanto, em sua essência, hostil a Deus, e, em seu espírito mais íntimo e aristocrático,
hostil à fraternidade do homem. Daí, a Estética não indagar se deve haver obras de arte.
Vejamos a Jurisprudência. Estabelece o que é válido, de acordo com as regras do
pensamento jurídico, que é em parte limitado pelo que é logicamente compulsivo e em parte
por esquemas fixados convencionalmente. O pensamento jurídico é válido quando certas regras
jurídicas e certos métodos de interpretação são reconhecidos como obrigatórios. Se deve haver
lei e se devemos estabelecer essas regras – tais questões não são respondidas pela
Jurisprudência. Ela só pode afirmar: para quem quiser este resultado, segundo as normas de
nosso pensamento jurídico, esta norma jurídica é o meio adequado de alcançá-lo.
Vejamos as Ciências Histórica e Cultural. Elas nos ensinam como compreender e
interpretar os fenômenos políticos, artísticos, literários e sociais em termos de suas origens.
Mas não nos dão resposta para a questão de se a existência desses fenômenos foi, e é,
compensadora. E não respondem à questão de se vale a pena o esforço necessário para conhecê-
las. Pressupõem haver interesse em participar, através desse processo, da comunidade de
“homens civilizados”. Mas não podem provar “cientificamente” que seja esse o caso; e o fato
de pressuporem esse interesse não prova, de forma alguma, que ele existe. Na verdade, ele não
é evidente por si mesmo.
Vejamos, finalmente, as disciplinas que me são próximas: Sociologia, História,
Economia, Ciência Política e os tipos de Filosofia Cultural que têm como tarefa interpretar
essas ciências. Afirma-se, e concordo com isso, que a política está deslocada na sala de aulas.
Não é o lugar adequado, no que concerne aos alunos. Se, por exemplo, na sala de aula de meu
ex-colega Dietrich Schäfer, de Berlim, os alunos pacifistas lhe cercassem a mesa e provocassem
tumulto, eu deploraria esse fato da mesma forma que deploro a agitação provocada pelos
estudantes antipacifistas contra o Professor Fõrster, cujas opiniões estão, sob certos aspectos,
totalmente longe das minhas. Mas a política também não deve entrar na sala de aula levada pelo
docente, e quando este se interessa cientificamente pela Política, ainda muito menos.
Tomar uma posição política prática é uma coisa, e analisar as estruturas políticas e as
posições partidárias é outra. Ao falar num comício político sobre a democracia, não escondemos
nosso ponto de vista pessoal; na verdade, expressá-lo claramente e tomar uma posição é o nosso
dever. As palavras que usamos nesse comício não são meios de análise científica, mas meios
de conseguir votos e vencer os adversários. Não são arados para revolver o solo do pensamento
contemplativo; são espadas contra os inimigos: tais palavras são armas. Seria um ultraje, porém,
usá-las do mesmo modo na sala de aula ou na sala de conferências. Se, por exemplo, estivermos
discutindo “democracia”, examinaremos suas várias formas, analisaremos os modos pelos quais
funcionam, determinaremos que resultados tem uma forma para as condições de vida em
comparação com a outra. Então, enfrentamos as formas da democracia com formas não
democráticas de ordem política e procuramos chegar à posição em que o estudante possa
encontrar o ponto do qual, em termos de seus ideais últimos, venha a tomar uma posição. Mas
o verdadeiro professor evitará impor, da sua cátedra, qualquer posição política ao aluno, quer
seja ela expressa ou sugerida. “Deixar que os fatos falem por si” é a forma mais parcial de
apresentar uma posição política ao aluno.
Por que nos devemos abster de assim agir? Afirmo, antecipadamente, que alguns colegas
muito estimados são de opinião que não é possível praticar essa autocontenção e que, mesmo
se o fosse, seria uma extravagância evitar declarar-se. Não é possível demonstrar
cientificamente qual o dever de um professor acadêmico. Só podemos pedir dele que tenha a
integridade intelectual de ver que uma coisa é apresentar os fatos, determinar as relações
matemáticas ou lógicas, ou a estrutura interna dos valores culturais, e outra coisa é responder a
perguntas sobre o valor da cultura e seus conteúdos individuais, e à questão de como devemos
agir na comunidade cultural e nas associações políticas. São problemas totalmente
heterogêneos. Se perguntarmos por que não nos devemos ocupar de ambos os tipos de
problemas na sala de aula, a resposta será: porque o profeta e o demagogo não pertencem à
cátedra acadêmica.
Ao profeta e ao demagogo, dizemos: “Ide para as ruas e falai abertamente ao mundo”, ou
seja, falai onde a crítica é possível. Na sala de aula ficamos frente à nossa audiência, que tem
de permanecer calada. Considero irresponsabilidade explorar a circunstância de que, em
benefício de sua carreira, os alunos têm de frequentar o curso de um professor onde não há
ninguém presente para fazer-lhe críticas. A tarefa do professor é servir aos alunos com o seu
conhecimento e experiência e não impor-lhes suas opiniões políticas pessoais. É, sem dúvida,
possível que o professor individual não consiga eliminar totalmente suas simpatias pessoais.
Fica, então, sujeito à crítica mais violenta no foro de sua própria consciência. E tal deficiência
nada prova; outros erros são também possíveis, por exemplo, exposições errôneas de fatos, e,
não obstante, nada provam contra o dever de se buscar a verdade. Também rejeito essa hipótese
no interesse mesmo da ciência. Estou pronto a provar, com as obras de nossos historiadores,
que sempre que o homem de ciência introduz seu julgamento pessoal de valor, cessa a plena
compreensão dos fatos. Mas isto foge ao âmbito do tema desta noite e exigiria uma elucidação
mais demorada.
Apenas indago: como podem um católico devoto, de um lado, e um maçom, de outro,
num curso sobre as formas da Igreja e do Estado, ou sobre a história religiosa, vir a pensar de
maneira semelhante sobre esses assuntos? Isto está fora de questão. Não obstante, o professor
acadêmico deve desejar, e deve exigir de si mesmo, servir a um e a outro, com seu conhecimento
e métodos. Pode-se dizer, porém, e com acerto, que o católico devoto jamais aceitará a opinião
sobre os fatores que provocaram o aparecimento do cristianismo que um professor livre de seus
pressupostos dogmáticos lhe apresenta. Certamente! A diferença, porém, está no seguinte: a
ciência “livre de pressuposições”, no sentido de uma rejeição dos laços religiosos, não conhece
o “milagre” e a “revelação”. Se o fizesse, a ciência seria infiel às suas próprias
“pressuposições”. O crente conhece tanto o milagre quanto a revelação. E a ciência “livre de
pressuposições” espera dele nada menos – e nada mais – do que o reconhecimento de que se o
processo puder ser explicado sem essas intervenções sobrenaturais, que uma explicação
empírica tem de eliminar como fatores causais, o processo terá de ser explicado da forma pela
qual a ciência tenta explicá-lo. E o crente pode fazer isso sem ser infiel a sua crença.
Mas a contribuição da ciência terá qualquer sentido para um homem que não se interessa
em conhecer os fatos, como tais, e para quem apenas o ponto de vista prático tem importância?
Talvez a ciência contribua, não obstante, com alguma coisa.
A tarefa primordial de um professor útil é ensinar seus alunos a reconhecer os fatos
“inconvenientes” – e quero dizer os fatos que são inconvenientes para suas opiniões partidárias.
E para cada opinião partidária há fatos que são extremamente inconvenientes, para minha
própria opinião e para a opinião dos outros. Acredito que o professor realiza mais do que uma
simples tarefa intelectual se compelir sua audiência a se habituar à existência de tais fatos. Eu
seria tão imodesto a ponto de aplicar a expressão “realização moral”, embora talvez ela possa
parecer demasiado grandiosa para uma coisa que nem precisa ser dita.
[...]
***
Finalmente, pode-se levantar a questão: “Se assim é, que contribuição real e positiva traz
a ciência para a ‘vida’ prática e pessoal?” Com isso estamos novamente de volta ao problema
da ciência como “vocação”.
Primeiro, é claro, a ciência contribui para a tecnologia do controle da vida calculando os
objetos externos bem como as atividades do homem. Bem, direis vós, afinal de contas isso
equivale ao verdureiro do rapaz americano. Concordo plenamente.
Segundo, a ciência pode contribuir com algo que o verdureiro não pode: métodos de
pensamento, os instrumentos e o treinamento para o pensamento. Direis, talvez: “Bem, isso não
são verduras, mas não vai, também, além dos meios para conseguir as verduras”. Fiquemos
hoje por aqui.
Felizmente, porém, a contribuição da ciência não alcança seu limite, com isso. Estamos
em condições de levar-vos a um terceiro objetivo: a clareza. Pressupomos, decerto, que nós
mesmos possuímos clareza. Na medida em que isso ocorre, podemos deixar-vos claro o
seguinte:
Na prática, podeis tomar esta ou aquela posição em relação a um problema de valor –
simplificando, pensai, por favor, nos fenômenos sociais como exemplos. Se tomardes esta ou
aquela posição, então, segundo a experiência científica, tereis de usar tais e tais meios para
colocar em prática vossa convicção. Ora, tais meios talvez sejam de tal ordem que sua rejeição
vos pareça imperiosa. Tendes, então, simplesmente de escolher entre o fim e os meios
inevitáveis. Justificará o “fim ” os meios? Ou não? O professor pode apresentar-vos a
necessidade de tal escolha. Não pode fazer mais do que isso, enquanto quiser continuar como
professor, e não tornar-se um demagogo. Ele pode, decerto, dizer-vos também que, se desejais
este e aquele fim, então deveis aceitar as consequências subsidiárias que, segundo toda
experiência, ocorrerão. Encontramo-nos novamente na mesma situação de antes. Há ainda
problemas que também podem surgir para o técnico, que em numerosos casos tem de tomar
decisões de acordo com o princípio do menor mal ou do relativamente melhor. Apenas, para
ele, um a coisa, a principal, é habitualmente dada, o fim. Mas tão logo problemas realmente
“últimos” estão em jogo para nós, tal não é o caso. Com isso, finalmente, chegamos ao serviço
final que a ciência, como tal, pode prestar ao objetivo da clareza, e ao mesmo tempo chegamos
aos limites da ciência.
Além disso, podemos e devemos dizer: em termos de seu significado, tal ou qual posição
prática pode ser deduzida com coerência interior, e daí integridade, a partir desta ou daquela
posição de weltanschauliche última. Talvez só possa ser deduzida dessa posição fundamental,
ou talvez de várias, mas não pode ser deduzida destas ou daquelas outras posições. Falando
figuradamente, servimos a este deus e ofendemos ao outro deus quando resolvemos adotar uma
ou outra posição. E se continuarmos fiéis a nós mesmos, chegaremos necessariamente a certas
conclusões finais que, subjetivamente, têm sentido. É isso o que, pelo menos em princípio,
podemos realizar. A Filosofia, como disciplina especial, e as discussões filosóficas de
princípios nas outras Ciências procuram realizar isso. Assim, se formos competentes em nossa
empresa (o que devemos pressupor, aqui) podemos forçar o indivíduo, ou pelo menos podemos
ajudá-lo, a prestar a si mesmo contas do significado último de sua própria conduta. Isto não
me parece pouco, mesmo em relação a nossa vida pessoal. Sou tentado, novamente, a dizer de
um professor que consegue êxito sob tal aspecto: ele está a serviço de forças “morais”; ele
cumpre o dever de provocar o auto esclarecimento e um senso de responsabilidade. E creio que
ele estará mais capaz de realizar isso na medida em que evitar conscienciosamente o desejo de
impor ou sugerir, pessoalmente, à sua audiência a posição que tomou.
A proposição que apresento aqui parte sempre do fato fundamental de que, enquanto a
vida continuar imanente e for interpretada em seus próprios termos, conhecerá apenas a luta
incessante desses deuses entre si. Ou, falando diretamente, as atitudes últimas possíveis para
com a vida são inconciliáveis, daí sua luta jamais chegar a uma conclusão final. Assim, é
necessária uma escolha decisiva. Se, nessas condições, a ciência é uma “vocação” digna para
alguém, e se a ciência em si tem “vocação” objetivamente digna, são julgamentos de valor sobre
os quais nada podemos dizer na sala de aula. Afirmar o valor da ciência é uma pressuposição a
ser ensinada ali. Pessoalmente, pelo meu trabalho mesmo, respondo pela afirmativa, e também
o respondo precisamente do ponto de vista que odeia o intelectualismo como o pior dos males,
tal como o faz hoje a juventude, ou habitualmente apenas imagina que faz. Nesse caso, a
advertência é válida para os jovens: “Cuidado, o diabo é velho; envelhecei também para
compreendê-lo”. Isto não significa a idade, no sentido da certidão de nascimento. Significa que
se desejarmos haver-nos com esse diabo teremos de não fugir à sua frente, como gostam de
fazer tantas pessoas, hoje. Em primeiro lugar, temos de perceber-lhe os processos, para
compreender seu poder e suas limitações.
[...]
BUROCRACIA*
Max Weber
Características da burocracia
*
WEBER, Max. “Burocracia”. In: Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: LTC, 1982, p.229-282.
uma decisão de uma autoridade inferior para a sua autoridade superior, de uma forma regulada
com precisão. Com o pleno desenvolvimento do tipo burocrático, a hierarquia dos cargos é
organizada monocraticamente. O princípio da autoridade hierárquica de cargo encontra-se em
todas as organizações burocráticas: no Estado e nas organizações eclesiásticas, bem como nas
grandes organizações partidárias e empresas privadas. Não importa, para o caráter da
burocracia, que sua autoridade seja chamada “privada” ou “pública”.
Quando o princípio de “competência” jurisdicional é realizado plenamente através da
subordinação hierárquica – pelo menos no cargo público – não significa que a autoridade
“superior” esteja simplesmente autorizada a se ocupar dos assuntos da autoridade “inferior”.
Na verdade, ocorre o inverso. Uma vez criado e tendo realizado sua tarefa, o cargo tende a
continuar existindo e a ser ocupado por outra pessoa.
III. A administração de um cargo moderno se baseia em documentos escritos (“os
arquivos”), preservados em sua forma original ou em esboço. Há, porém, um quadro de
funcionários e escreventes subalternos de todos os tipos. O quadro de funcionários que ocupe
ativamente um cargo “público”, juntamente com seus arquivos de documentos e expedientes,
constitui uma “repartição”. Na empresa privada, a “repartição” é frequentemente chamada de
“escritório”.
Em princípio, a organização moderna do serviço público separa a repartição do domicílio
privado do funcionário e, em geral, a burocracia segrega a atividade oficial como algo distinto
da esfera da vida privada. Os dinheiros e o equipamento público estão divorciados da
propriedade privada da autoridade. Essa condição é, em toda parte, produto de um longo
desenvolvimento. Hoje em dia, é observada tanto no setor público como na iniciativa privada;
nesta última, o princípio se estende até mesmo ao empresário. Em princípio, o escritório
executivo está separado da residência, a correspondência comercial é separada da pessoal, e os
bens da empresa são distintos das fortunas privadas. A coerência da moderna administração de
empresas tem sido proporcional a essa separação. O início do processo já pode ser observado
na Idade Média.
É peculiar ao empresário moderno comportar-se como o “primeiro funcionário” de sua
empresa, da mesma forma pela qual um governante de um Estado moderno, especificamente
burocrático, considera-se como o “primeiro servidor” do Estado. A ideia de que as atividades
das repartições estatais são intrinsecamente diferentes, em caráter, da administração dos
escritórios das empresas privadas é uma noção da Europa continental, totalmente estranha ao
pensamento americano.
IV. A administração burocrática, pelo menos toda a administração especializada – que é
caracteristicamente moderna – pressupõe habitualmente um treinamento especializado e
completo. Isso ocorre cada vez mais com o diretor moderno e o empregado das empresas
privadas, e também com o funcionário do Estado.
V. Quando o cargo está plenamente desenvolvido, a atividade oficial exige a plena
capacidade de trabalho do funcionário, a despeito do fato de ser rigorosamente delimitado o
tempo de permanência na repartição, que lhe é exigido. Normalmente, isso é apenas o produto
de uma longa evolução, tanto nos cargos públicos como privados. Antigamente, em todos os
casos, a situação normal era inversa: os negócios oficiais eram considerados como uma
atividade secundária.
VI. O desempenho do cargo segue regras gerais, mais ou menos estáveis, mais ou menos
exaustivas, e que podem ser aprendidas. O conhecimento dessas regras representa um
aprendizado técnico especial, a que se submetem esses funcionários. Envolve jurisprudência,
ou administração pública ou privada.
A redução do cargo moderno a regras está profundamente arraigada à sua própria
natureza. A teoria da moderna administração pública, por exemplo, sustenta que a autoridade
para ordenar certos assuntos através de decretos – legalmente atribuída às autoridades públicas
– não dá à repartição o direito de regular o assunto através de normas expelidas em cada caso,
mas tão-somente para regulamentar a matéria abstratamente. Isso contrasta de forma extrema
com a regulamentação de todas as relações através dos privilégios individuais e concessão de
favores, que domina de forma absoluta no patrimonialismo, pelo menos na medida em que essas
relações não são fixadas pela tradição sagrada.
A posição do funcionário
Não podemos analisar aqui os efeitos culturais gerais e de longo alcance que o progresso
da estrutura burocrática racional de domínio, como tal, provoca independentemente das áreas
de que se apossa. Naturalmente, a burocracia promove um modo de vida “racionalista”, mas o
conceito de racionalismo possibilita uma ampla variedade de contextos. Geralmente, podemos
dizer apenas que a burocratização de todo o domínio promove, de forma muito intensa, o
desenvolvimento de uma “objetividade racional” e do tipo de personalidade do perito
profissional. Isto tem ramificações de longo alcance, mas somente um elemento importante do
processo pode ser indicado aqui: seu efeito sobre a natureza do treinamento e educação.
As instituições educacionais do continente europeu, especialmente as de instrução
superior – as universidades, bem como as academias técnicas, escolas de comércio, ginásios e
outras escolas de ensino médio – são dominadas e influenciadas pela necessidade de tipo de
“educação” que produz um sistema de exames especiais e a especialização que é, cada vez mais,
indispensável à burocracia moderna.
***
O “exame especial”, no sentido presente, foi e ainda é encontrado também fora das
estruturas burocráticas propriamente ditas; assim, hoje ele é observado nas profissões “livres”
da Medicina e do Direito e nos comércios organizados como guildas. Os exames de
conhecimentos não são fenômenos indispensáveis nem concomitantes de burocratização. As
burocracias francesa, inglesa e americana abriram mão, há muito tempo, desses exames,
totalmente ou em grande parte, pois o treinamento e serviço nas organizações partidárias os
substituíram.
A “democracia” também toma uma posição ambivalente frente aos exames
especializados, tal como frente a todos os fenômenos da burocracia – embora a democracia, em
si, promova tal situação. Exames especiais, por sua vez, significam ou parecem significar uma
“seleção” dos que se qualificam, de todas as camadas sociais, ao invés de um Governo de
notáveis. Mas, por outro lado, a democracia teme que o sistema de mérito e títulos resulte numa
“casta” privilegiada. Daí, lutar ela contra o sistema de exames especiais.
O exame especial encontra-se até mesmo nas épocas pré-burocráticas ou
semiburocráticas. Na verdade, o centro regular e mais antigo dos exames especiais são as
formas de dominação organizadas em prebendas. A esperança da prebenda, primeiro das
prebendas da Igreja – como no Oriente islâmico e na Idade Média ocidental – e depois, como
ocorreu especialmente na China, as prebendas seculares, são os prêmios típicos pelos quais as
pessoas estudam e são examinadas. Os exames, porém, na verdade só têm um caráter
parcialmente especializado.
O desenvolvimento moderno da plena burocratização coloca em primeiro plano,
irresistivelmente, o sistema de exames racionais, especializados. A reforma do serviço público
importa, gradualmente, o treinamento especializado para os Estados Unidos. Em todos os outros
países, esse sistema também progride, partindo de seu berço principal, a Alemanha. A crescente
burocratização da administração fortalece a importância do exame especializado na Inglaterra.
Na China, a tentativa de substituir a burocracia semipatrimonial e antiga por uma burocracia
moderna trouxe o exame especializado; tomou o lugar de um sistema de exames antigo e
estruturado de forma muito diferente. A burocratização do capitalismo, com sua exigência de
técnicos, funcionários, preparados com especialização, etc., generalizou o sistema de exames
por todo o mundo. Acima de tudo, a evolução é muito estimulada pelo prestígio social dos
títulos educacionais, adquiridos através desses exames. É ainda mais o caso quando o título
educacional é usado com vantagem econômica. Hoje, os diplomas são o que o teste dos
ancestrais foi no passado, pelo menos onde a nobreza continuou poderosa: um pré-requisito
para a igualdade de nascimento, uma qualificação para um canonicato e para o cargo estatal.
O desenvolvimento do diploma universitário, das escolas de comércio e engenharia, e o
clamor universal pela criação dos certificados educacionais em todos os campos levam à
formação de uma camada privilegiada nos escritórios e repartições. Esses certificados apoiam
as pretensões de seus portadores, de intermatrimônios com famílias notáveis (nos escritórios
comerciais, as pessoas esperam naturalmente a preferência em relação à filha do chefe), as
pretensões de serem admitidas em círculos que seguem “códigos de honra”, pretensões de
remuneração “respeitável” ao invés da remuneração pelo trabalho realizado, pretensões de
progresso garantido e pensões na velhice e, acima de tudo, pretensões de monopolizar cargos
social e economicamente vantajosos. Quando ouvimos, de todos os lados, a exigência de uma
adoção de currículos regulares e exames especiais, a razão disso é, decerto, não uma “sede de
educação” surgida subitamente, mas o desejo de restringir a oferta dessas posições e sua
monopolização pelos donos dos títulos educacionais. Hoje, o “exame” é o meio universal desse
monopólio e, portanto, os exames avançam irresistivelmente. Como a educação necessária à
aquisição do título exige despesas consideráveis e um período de espera de remuneração plena,
essa luta significa um recuo para o talento (carisma) em favor da riqueza, pois os custos
“intelectuais” dos certificados de educação são sempre baixos, e com o crescente volume desses
certificados os custos intelectuais não aumentam, mas decrescem.
A exigência de um estilo de vida cavalheiresco na antiga qualificação feudal na Alemanha
é substituída pela necessidade de participar em sua presente forma rudimentar, tal como
representada pelos grupos duelistas nas universidades que também distribuem os diplomas. Nos
países anglo-saxões, os clubes atléticos e sociais realizam essa mesma função. A burocracia,
por sua vez, luta em toda parte por um “direito ao cargo”, pela adoção de um processo
disciplinar regular e pela eliminação da autoridade totalmente arbitrária do “chefe” sobre o
funcionário, o seu progresso ordenado e a provisão pela velhice. Nisso, a burocracia é apoiada
pelo sentimento “democrático” dos governados, que exige a minimização do domínio. Os
partidários dessa posição consideram-se capazes de discernir um enfraquecimento das
prerrogativas do senhor, em qualquer enfraquecimento do poder arbitrário do senhor sobre os
funcionários. Sob esse aspecto, a burocracia, tanto nos escritórios comerciais quanto no serviço
público, é a base de um a evolução especialmente estamental, já desenvolvida de forma bem
diferente pelos ocupantes de cargos no passado. Já mencionamos que essas características
estamentais são habitualmente também exploradas, e que pela sua natureza contribuem para a
utilidade técnica da burocracia na realização de suas tarefas específicas.
A “democracia” reage precisamente contra o inevitável caráter estamental da burocracia.
A democracia procura substituir a nomeação de funcionários pela eleição para curtos mandatos;
procura substituir um processo regulamentado de disciplina pela substituição de funcionários
pela eleição. Assim, a democracia procura substituir a disposição arbitrária do “senhor”
hierarquicamente superior pela autoridade, igualmente arbitrária, dos governados e dos chefes
políticos que os dominam.
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O prestígio social baseado na vantagem da educação e treinamento especiais não é, de
forma alguma, específico à burocracia. Ao contrário! Mas o prestígio educacional em outras
estruturas de domínio repousa substancialmente em bases diferentes.
Usando palavras que se assemelham a slogans; podemos dizer que o “homem culto”, e
não o “especialista”, tem sido o objetivo visado pela educação e formou a base da consideração
social em vários sistemas, como as estruturas de domínio feudal, teocrática e patrimonial: na
administração inglesa dos notáveis, na velha burocracia patrimonial chinesa, bem como sob o
domínio dos demagogos na chamada democracia helénica.
A expressão “homem culto” é usada aqui num sentido completamente neutro em relação
ao valor; é compreendida como significando apenas que a meta da educação consiste na
qualidade da posição do homem na vida, que foi considerada “culta”, e não num preparo
especializado para ser um perito. A personalidade “culta” era o ideal educacional, marcado pela
estrutura do domínio e pela condição social para a participação na camada dominante. Tal
educação visava a um tipo cavalheiresco ou a um tipo ascético; ou, a um tipo literário, como na
China; um tipo de ginasta-humanista, como na Hélade; ou visava à forma convencional do
gentleman, como no caso do cavaleiro anglo-saxão. A qualificação da camada dominante, como
tal, baseava-se na posse de uma qualidade “mais” cultural (no sentido absolutamente variável,
neutro em relação ao valor, em que usamos aqui a expressão), e não num conhecimento “mais”
especializado. A capacidade militar, teológica e jurídica era, decerto, praticada com
intensidade; mas o centro de gravidade na educação helénica, na medieval, bem como na
chinesa, estava nos elementos educacionais totalmente diferentes do que era “útil” na
especialidade de cada qual.
Por trás de todas as discussões atuais sobre as bases do sistema educacional, a luta dos
“especialistas” contra o tipo mais antigo de “homem culto” se oculta em algum aspecto
decisivo. Essa luta é determinada pela expansão irresistível da burocratização de todas as
relações públicas e privadas de autoridade e pela crescente importância dos peritos e do
conhecimento especializado. Essa luta está presente em todas as questões culturais íntimas.
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Durante o seu progresso, a organização burocrática teve de superar os obstáculos
essencialmente negativos que obstruíram o processo de nivelamento necessário à burocracia.
Além disso, as estruturas administrativas baseadas em princípios diferentes cruzam-se com as
organizações burocráticas. Como estas foram examinadas acima, somente alguns princípios
estruturais especialmente importantes serão examinados aqui, rapidamente, e de forma
simplificada. Seríamos afastados, e muito, de nosso campo, se fossemos discutir todos os tipos
existentes na prática. Vamos proceder formulando as seguintes perguntas:
1. Até que ponto as estruturas administrativas estão sujeitas à determinação econômica?
Ou até que ponto as oportunidades de desenvolvimento são criadas por outras circunstâncias,
por exemplo, as exclusivamente políticas? Ou, finalmente, até que ponto é a evolução
determinada por uma lógica “autônoma”, que é exclusivamente da estrutura técnica como tal?
2. Indagaremos se esses princípios estruturais, por sua vez, liberam ou não efeitos
econômicos específicos, e, se assim for, quais. Ao fazê-lo, temos de, naturalmente, observar
desde o início as transações superpostas de todos esses princípios orgânicos. Seus tipos “puros”,
afinal de contas, devem ser considerados simplesmente como casos marginais, especialmente
valiosos e indispensáveis à análise. As realidades históricas, que quase sempre surgem em
formas mistas, se movimentam entre esses tipos puros.
A estrutura burocrática é, em toda parte, produto de um desenvolvimento tardio. Quanto
mais recuamos sobre nossos próprios passos, tanto mais típica se torna a ausência de burocracia
e funcionalismo na estrutura de domínio. A burocracia tem um caráter “racional”: regras, meios,
fins e objetivos dominam sua posição. Em toda parte, a sua origem e sua divisão tiveram, até
agora, resultados “revolucionários”, num sentido especial, que ainda não foi discutido. É a
mesma influência que o avanço do racionalismo teve em geral. A marcha da burocracia destruiu
as estruturas de domínio que não tinham caráter racional, no sentido especial da palavra. Daí
podermos indagar: Que estruturas eram essas?